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TRATADO DOS DOIS PRECEITOS DA

CARIDADE E DOS DEZ MANDAMENTOS DA


LEI DE DEUS
Coordenação Editorial
Victor Ferreira Coelho
Julia Verneque Silva
Tradução
Braz Florentino Henriques de Souza

Capa

Roberto Lopes Cruz Braga da Silva


Diagramação
Rodrigo Ferreira de Sá
Revisão
Julia Verneque Silva

Distribuição
Cedet – Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
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CEP: 13087-605 – Campinas – SP
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Tomás, de Aquino, Santo, 1225?-1274


O tratado dos dois preceitos da caridade e os dez mandamentos da lei de Deus / Tomás de
Aquino; [tradução Braz Florentino Henriques de Souza]. –
Governador Valadares, MG: Edições Virtus, 2020.

Título original: In duo praecepta caritatis et in decem legis praecepta: de dilectione Dei
Opuscula theologica
ISBN 978-65-992185-0-7

1. Caridade 2. Deus - Amor 3. Dez Mandamentos 4. Igreja Católica I. Título.

20- 43064 CDD-241.52


Os direitos autorais desta edição pertencem a Edições Virtus
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ......................................................................7
AO LEITOR ............................................................................ 19

PARTE I
CAPÍTULO I
Tratado dos dois preceitos da caridade e dos dez mandamentos da lei de Deus
.......................................................................... 27

CAPÍTULO II
Do amor de Deus ...................................................................... 43
CAPÍTULO III
Do amor do próximo ................................................................. 51
PARTE II
CAPÍTULO IV
Do primeiro preceito da lei .......................................................... 63

CAPÍTULO V
Do segundo preceito da lei .......................................................... 73
CAPÍTULO VI
Do terceiro preceito da lei ........................................................... 83
CAPÍTULO VII
Do quarto preceito da lei ............................................................ 97

CAPÍTULO VIII
Do quinto preceito da lei ........................................................... 109 CAPÍTULO X
Do sétimo preceito da lei .......................................................... 133

CAPITULO IX
Do sexto preceito da lei ............................................................ 123
CAPÍTULO XI
Do oitavo preceito da lei ........................................................... 141
CAPÍTULO XII
Do nono preceito da lei ............................................................ 151 CAPÍTULO XIII
Do décimo preceito da lei.......................................................... 157
ANEXO I
CATEQUESE ........................................................................ 165
EXAME DE CONSCIÊNCIA ..................................................... 166 Para confissão
ATO DE CONTRIÇÃO............................................................ 172

ANEXO II
PINTURA .......................................................................... 173 A Confissão, 1838 de
Giuseppe Molteni

APRESENTAÇÃO

Tenho a mais grata satisfação de abrir e recomendar para os leitores


esta joia rara tirada do copioso tesouro de Santo Tomás de Aquino
sobre Os Dois Preceitos da Caridade e os Dez Mandamentos da
Lei1, excelente iniciativa de meus queridos Victor e Júlia, das
Edições Virtus, para alimentar a alma do nascente exército de
valorosos combatentes de Cristo Rei, que se aventura numa
verdadeira cruzada de reconquista da Terra de Santa Cruz rumo a
uma nova Cristandade2.
Trata-se um autêntico opúsculo do Doutor Angélico3, fruto de seus
sermões anotados por seu confrade Pedro de Ândria, na Quaresma
de 1273. Na ocasião, o Santo pregava ao povo napolitano na
catedral ou na capela dos frades dominicanos, em forma de
catequese simples e orgânica. Deixando de lado o latim, que era a
língua oficial para o ensino da teologia e das disputas entre
estudiosos, para se expressar no dialeto aprendido na infância, no
castelo de Roccasecca, próximo a Nápoles. No ano seguinte,
atendendo a convocação do Papa Gregório X para o Concílio de
Lion, que devia iniciar o 1º de maio, caiu enfermo, e sendo acolhido
pelos monges cistercienses da abadia de Fossanova, ali entregou
seu espírito em 7 de março de 1274, depois de ter recebido a
Eucaristia.

1 De duobus praeceptis caritatis et decem legis praeceptis .


2 Não aquela, porém, de Jacques Maritain, cujo liberalismo pretendeu substituir a
Cristandade medieval.
3 Cf. CORNÉLIO FABRO, Breve Introdução ao Tomismo, Edições Cristo Rei, Brasília
2020, pág. 20.

Esta obra, junto a outras semelhantes – Sermão sobre o Credo, o


Pai Nosso e a Ave Maria – compõem o que chamamos o Catecismo
de Santo Tomás, e este é o esquema que todos os catecismos
universais da Igreja seguirão, até o último, promulgado por João
Paulo II.

Como o próprio nome sugere esta exposição se divide em duas


partes: a primeira, após uma introdução, aborda os dois preceitos da
caridade, isto é, o amor a Deus e o amor ao próximo; a segunda,
por sua vez, comenta os dez mandamentos da lei de Deus, na
respectiva ordem. Ambas permeadas de inigualável simplicidade,
clareza, objetividade e perspicácia do Aquinate.

Muito oportuna, urgente e necessária se faz a edição deste título do


Doutor Angélico na atualidade, já que, como se disse, estamos em
uma reconquista para uma nova Cristandade. Ora, isso é impossível
sem que a santidade seja o espírito que anime esses bravos
soldados. Foi pela santidade de seus filhos que outrora a Igreja se
restaurou superando crises terríveis que a assolavam. Não há
Cristandade sem cristianismo autêntico, e este só é possível se for
vivificado pelo Espírito de Cristo, Espírito de Caridade, que nos
impele a cumprir os mandamentos divinos, e a Cristandade é forjada
a partir do interior das almas em que o Espírito Divino habita4.
4 Cf. JULIO MEINVIELLE, El Cristianismo en la Revolución Anticristiana, Cruz y Fierro
Editores, 4ª ed., Buenos Aires, 1982. Págs. 24, 68, 84.

A perfeição cristã consiste essencialmente nos preceitos, e com


este nome se designa tudo aquilo que está mandado por Deus, que
em resumo se refere a Ele e ao próximo, e cujo incumprimento é
pecado: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor”
(Lev 19,18); “Nesses dois mandamentos se resumem toda a lei e os
profetas” (Mt 22,40).

A caridade é o motor para cumprir os mandamentos de Deus, assim


o disse Cristo: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos”5.
Ela nos impele, disse São Paulo6. Nela, conforme Santo Tomás7,
consiste, especialmente, a perfeição da vida cristã. Pois um ser
alcança sua perfeição quando chega a seu fim. A caridade é aquela
virtude que nos une diretamente a Deus, nosso último fim8. Logo, a
perfeição cristã consiste especialmente na caridade.

Esta afirmação aparece claramente na Sagrada Escritura9. Cristo


nos ensina que do amor a Deus e ao próximo depende toda a lei e
os profetas10. E São Paulo tem textos explícitos sobre este
ensinamento: “Acima de tudo, revesti-vos da caridade, que é o
vínculo da perfeição” (Cl 3,14); “A caridade é o pleno cumprimento
da lei” (Rm13,10); “Por ora subsistem a fé, a esperança e a caridade
- as três. Porém, a maior delas é a caridade” (1Cor 13,13)11.
5 Jo 14,15.
6 2Cor 5,14.
7 Cf. Suma Teológica, II-II, 184, 1.
8 1Jo 4,16: “Nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem para conosco. Deus é amor
e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele”.
9 Cf. ANTONIO ROYO MARÍN, Teología de la Perfección Cristiana, Biblioteca de autores
cristianos, Madrid 2008, pág. 188.
10 Mt 22,35-40; Mc 12,28-31.
11 Cf. ainda: 1Cor 13,1-3; Gl 5,6; Ef 3,17-18; 1Tm 1,5.

Note o leitor, que quando Nosso Senhor, ao ser interrogado pelo


mestre da lei sobre qual era o primeiro de todos os mandamentos,
respondeu não só sobre o primeiro, mas também sobre o segundo:
“O primeiro é este: Ouve, ó Israel! O Senhor nosso Deus é o único
Senhor.Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a
tua alma, de todo o teu entendimento e com toda a tua força! O
segundo mandamento é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo!
Não existe outro mandamento maior do que estes” (Mc 12, 29-31).
Ou seja, Cristo quis indicar pelo menos duas coisas:

Primeiro, a totalidade de nosso amor a Deus, pois Ele o merece sem


reservas e com direito de justiça, todo o nosso ser: nossa alma e
nosso corpo, nossa inteligência e nossa vontade, isto é, nosso saber
e nosso querer; nossa saúde e nossa doença, nossos bens
espirituais e materiais; nosso passado, presente e futuro, nossas
preocupações e esperanças, em uma palavra: tudo. Como diria
Santo Inácio de Loyola: “Todas a minhas intenções, ações e
operações”12.

Segundo, a indissolubilidade do amor que temos a Deus do amor ao


próximo. Como bem ensina o Discípulo Amado: “Se alguém disser:
Amo a Deus, mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que
não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem
não vê.Temos de Deus este mandamento: o que amar a Deus, ame
também a seu irmão” (1Jo 4,20-21).
12 Exercícios Espirituais, 23.

Este ensinamento do Senhor resume o cumprimento de todos os


mandamentos e o ensinamento dos profetas, já que todos os
mandamentos se cumprem por amor: “Nesses dois mandamentos
se resumem toda a lei e os profetas” (Mt 22,40) e “Não existe outro
mandamento maior do que estes” (Mc 12,31).
Advirta-se, porém, ao cristão superficial e desavisado que a
caridade é um amor sobrenatural, uma virtude teologal – ou seja,
refere-se diretamente a Deus – infundida pelo Espírito Santo no
Batismo e na Crisma, e somente presente de modo formal na alma
em estado de graça. Isto é sério! Quando falamos de amor de
caridade não falamos de qualquer amor nem de qualquer caridade.

Pasme quem pensava que quando São Paulo na primeira carta aos
Coríntios disse que, mesmo que falasse as línguas dos homens e
dos anjos, que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os
mistérios e toda a ciência, que tivesse toda a fé, que distribuísse
todos os seus bens em sustento dos pobres, e ainda que
entregasse o seu corpo para ser queimado, mas se não tivesse
caridade, nada seria e de nada valeria (cf. 13,1-4), pasme quem
pensava que ele estava se referindo a caridade como um
sentimento piedoso, ou que se referia a um amor natural, romântico
ou poético. Não. Ele se referia ao amor-graça, ao amor-dom, ao
amor-alma, ao amor-vida, ao amor-vivificante, a virtude sobrenatural
da caridade indelevelmente unida a graça santificante, selo de
Deus, ao Espírito Santo, Dom de Deus, a inabitação trinitária na
alma justificada, alma do justo, alma em graça de Deus. Ele se
referia àquele amor de Cristo quando disse: “Dou-vos um novo
mandamento: Amai
-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós
deveis amar-vos uns aos outros. Nisto todos conhecerão que sois
meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,34-35), ou
“Amai-vos uns aos outros, como eu vos amo” (Jo 15,12). Como
Cristo nos ama? Quem é o Amor de Cristo,Amor do Filho pelo Pai e
do Pai pelo Filho? Isso mesmo. É o Espírito Santo. Assim Cristo nos
ama, no Espírito Santo. Só se pode amar como o Pai, dando o Filho,
só se pode amar como o Filho, dando a vida, quem ama no Espírito
Santo, Espírito de Amor. Daí que São João afirma: “Aquele que não
ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,8). E São
Paulo: “Vós, porém, não viveis segundo a carne, mas segundo o
Espírito, se realmente o espírito de Deus habita em vós. Se alguém
não possui o Espírito de Cristo, este não é dele.Ora, se Cristo está
em vós, o corpo, em verdade, está morto pelo pecado, mas o
Espírito vive pela justificação” (Rm 8,9-10).

Portanto, caro leitor, nada de melhor podemos fazer nesta vida do


que cumprir os dois mandamentos da caridade, pois assim se
resume e se cumpre plenamente os dez mandamentos da lei de
Deus, felicidade de todo homem e de toda sociedade: “Feliz a nação
cujo Deus é o Senhor” (Sl 33,12). Nada mais benéfico, nada mais
frutífero, nada mais feliz ao homem do que cumprir a lei do amor:
“Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem
em vós, pedireis tudo o que quiserdes e vos será feito. Nisto é
glorificado meu Pai, para que deis muito fruto e vos torneis meus
discípulos. Como o Pai me ama, assim também eu vos amo.
Perseverai no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos,
sereis constantes no meu amor, como também eu guardei os
mandamentos de meu Pai e persisto no seu amor. Disse-vos essas
coisas para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria
seja completa” (Jo 15,7-11).

Do dito, resta claro que a caridade ou amor sobrenatural não se


confunde com o mero sentimento natural do amor, a mera filantropia
(amor ao homem), a mera beneficência, o mero bem
-querer ou querer bem, o mero respeito civilizado dos cidadãos, mas
a caridade transcende todos esses conceitos e nos une diretamente
a Deus.

Agora podemos entender melhor os santos, os melhores amigos de


Cristo. Santo Inácio de Loyola, na nota que antecede a
contemplação para alcançar amor, que encerra e coroa os santos
Exercícios Espirituais, faz notar duas verdades fundamentais: “A
primeira é que o amor se deve pôr mais nas obras que nas palavras.
A segunda é que o amor consiste na comunicação recíproca, a
saber, em dar e comunicar a pessoa que ama à pessoa amada, o
que tem ou do que tem ou pode; e, vice-versa, a pessoa que é
amada à pessoa que ama; de maneira que, se um tem ciência, a dê
ao que a não tem, e do mesmo modo quanto a honras ou riquezas;
e assim em tudo reciprocamente, um ao outro”13.

Ilustremos um pouco o que afirmamos acima, valendo-nos dessas


duas verdades que se confirmam com a Sagrada Escritura e se
cumprem com a vida dos santos.

A primeira delas diz que o amor se deve pôr mais nas obras que nas
palavras. De fato, a caridade não deve ser somente afetiva, mas
também efetiva. A Sagrada Escritura é cheia de exortações sobre
esta verdade, vejamos algumas delas:
• Mt 7,21: “Nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor,
13 Exercícios Espirituais, 230-231.
entrará no Reino dos céus, mas sim aquele que faz a vontade de
meu Pai que está nos céus”14.

• 1Jo 3,18: “Meus filhinhos, não amemos com palavras nem de


boca, mas com obras e verdade”.
• Jo 14,15: “Se me amais, guardareis meus mandamentos”.
• 1Jo 2, 4-6: “Quem diz que o conhece e não lhe guarda os
mandamentos é mentiroso e a verdade não está com ele. Mas
naquele que lhe guarda a palavra, o amor de Deus é
verdadeiramente perfeito. É assim que sabemos estarmos nele.
Quem diz que permanece nele, deve também viver como ele viveu”.

Os santos testemunharam, sobretudo com a vida, esta


verdade:

• Santo Antônio de Pádua: “Estamos fartos de palavras; calem-se as


palavras e falem a obras”.
• São Gregório: “O amor a Deus jamais é ocioso. Se há amor, opera
grandes coisas. Se se recusa de operar, não é amor”.
• Santa Teresa de Jesus dizia a suas irmãs: “Obras são amores.
Para isso a oração, para isso o matrimônio espiritual, para fazer
nascer obras”.
• A caridade é a chave para viver neste vale de lágrimas, neste
mundo de confusão, aflição e mortificação, pois como dizia São Luís
Orione: “Somente a caridade salvará o mundo”. Nestes tempos
sombrios, devemos redescobrir o valor de viver o amor de
Evangelho, de amar o próximo mais próximo, o próximo distante, o
próximo conhecido e anônimo, pois como dizia o mesmo santo: “A
caridade abre os olhos para a fé e aquece os corações de amor a
Deus..., a caridade é a melhor apologia da fé católica..., a caridade
14 Mt 7,15-20; 21,28-32.
conquista, a caridade move, leva à fé e à esperança”.

Devemos romper com a nossa fé inoperante, com o amor


interesseiro, egoísta e preguiçoso e passar das obras da caridade à
caridade das obras. Portanto, se verdadeiramente amamos a Deus
e queremos cumprir a sua vontade, é necessário tomar atitude.

A segunda verdade fundamental afirmada por Santo Inácio “é que o


amor consiste na comunicação recíproca, a saber, em dar e
comunicar a pessoa que ama à pessoa amada o que tem ou do que
tem ou pode; e, vice-versa, a pessoa que é amada à pessoa que
ama”. Observe-se que se trata de um amor de benevolência mútuo,
e quando o amor é assim, se dá a amizade, e se esta for cristã,
então se dá a caridade. As passagens bíblicas aqui são igualmente
claras:

• Jo 3,16: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu

Filho único”.
• 1Jo 4,10: “Nisto consiste o amor: não em termos nós ama
do a Deus, mas em ele nos ter amado e enviado seu Filho
para expiar nossos pecados”.
• 1Jo 4,19: “Amemos a Deus, porque Deus nos amou primeiro”.
Dizia São Bernardo: “Só com amor a criatura pode intercambiar o
amor de Deus por ela, ainda que de modo desproporcionado”. Amor
com amor se paga. Para Santo Tomás, a semelhança é a causa do
amor. Se aplicamos isso a nossa relação com Deus, a graça que
está em nós é que nos faz semelhantes a Ele. Portanto, a graça é
que nos faz capaz de amá-Lo. Quando o Senhor pediu tríplice
confissão de amor de Pedro, na verdade pedia que ele devolvesse o
que era seu, o amor.
Devemos erradicar em nós tudo aquilo que não é amor a Deus. Se
entre nós e Deus não tem amor, não é culpa de Deus, é culpa
nossa. O cristão sempre que se aproxima de Deus sente alegria e o
desejo de comunicá-la. Cristo não escondeu sua tristeza, mas
escondeu sua alegria, porque sua alegria é tão grande quanto Deus.
O Amor de Deus é contrário ao amor próprio. A caridade se antecipa
as necessidades do próximo e faz com que saiamos de nós
mesmos. Disse Cristo: “Eu estou no meio de vós, como aquele que
serve” (Lc 22,27). Nesse sentido, é extremamente estimulante o
texto de São Paulo aos Gálatas: “Aquele que recebe a catequese da
palavra, reparta de todos os seus bens com aquele que o instrui.
Não vos enganeis: de Deus não se zomba. O que o homem semeia,
isso mesmo colherá. Quem semeia na carne, da carne colherá a
corrupção; quem semeia no Espírito, do Espírito colherá a vida
eterna. Não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo
colheremos, se não relaxarmos. Por isso, enquanto temos tempo,
façamos o bem a todos os homens, mas particularmente aos irmãos
na fé” (6,6-10).

Sem entrar diretamente ao corpo do livro, o que deixaremos para


que o “mais sábio dos santos e o mais santo dos sábios” apresente
ao próprio leitor, resta-me apenas augurar o maior êxito para as
Edições Virtus. Que esta importante iniciativa atinja o seu propósito
de instruir e impelir muitos filhos desta Pátria,Terra de Santa Cruz,
ao amor de Deus e do próximo e ao cumprimento dos sagrados
mandamentos da lei. É o que muito desejo e para onde aponto as
minhas orações.

São Paulo, 10 de agosto de 2020.


Pe. Fábio Vanderlei, IVE

AO LEITOR
Evangelium non erubesco

Em 1856, uma ideia piedosa surgiu como por encanto entre os


alunos da Faculdade desta cidade. Amparada pelos respectivos
Lentes, essa ideia teve em breve de realizar-se, e com a sua
realização apareceu a Irmandade de Nossa Senhora do Bom
Conselho, destinada a prestar culto à Santíssima Virgem Maria sob
aquela invocação, e que hoje felizmente conta dois anos de
existência.

Congratulando-me então com os jovens acadêmicos com a criação


de nossa piedosa confraria, julguei descobrir nela, senão uma
prova, ao menos um sintoma, do grande trabalho religioso que se
opera no mundo no sentido do catolicismo, e que deve levantar os
povos abatidos pelos excessos e pelas loucuras da impiedade;
julguei descobrir particularmente para o Brasil, para este vasto
império da Santa Cruz, o presságio de dias muito mais próximos e
felizes. E Deus queira que nós não tenhamos enganado. O culto à
Virgem Maria saído das entranhas mesmo do Cristianismo, será
sempre o penhor e a garantia mais seguros do reinado de Jesus
Cristo sobre a terra. Oxalá que jamais o abandonemos!

A vista do exposto, é claro que partilho francamente as ilusões


daqueles que estão persuadidos como o Rei profeta de que: Se o
Senhor não guardar a cidade debalde vigiarão os que a defendem; e
sendo assim, já não será de admirar que tinha como dever
imperioso para todos os filhos da Igreja Católica e para todos os
cidadãos amantes da nossa pátria, a quem Deus houver liberalizado
algum dos dotes da inteligência, o servir à causa da Religião,
auxiliando pela palavra e pela pena o movimento saudável que
conduz os homens à unidade de crenças e de costumes e por este
meio ao único porto da salvação.

Não me sendo porém lícito aspirar às honras de uma produção


original de algum valor em assunto tão delicado e momentoso,
limito-me por ora a traduzir e oferecer ao público, com especialidade
aos nossos caríssimos Irmãos de Bom Conselho, não um panegírico
da Religião Cristã, ou um quadro das maravilhas por ela operadas
no mundo em prol da verdadeira civilização ; mas simplesmente o
Tratado dos Dois Preceitos da Caridade e dos Dez Mandamentos da
Lei – por Santo Tomás de Aquino, e dar-me-ei por feliz se for lido e
apreciado como merece.

Propagar por todos os modos possíveis a moral evangélica, ou nas


escolas ou fora delas, trabalhar por incutir nas almas o duplo
princípio do amor de Deus e do amor dos homens, sobre que toda
essa moral é fundada, sempre me pareceu o negócio mais
importante dos Estados – o elemento primário e indispensável da
civilização dos povos. Sem condenar os esforços que se fazem para
aumentar a riqueza pública, e com ela o bem estar material, porque
segundo a bela expressão de um estimável autor, a prosperidade
das nações sobe como hino festivo para Deus, de quem procede
toda a magnificência, não podemos contudo admitir que os
primeiros, senão todos os cuidados, sejam concedidos aos
progressos da indústria, esquecendo-se o fim sublime do homem, e
não se advertindo mesmo que todas as riquezas, e todos os gozos
materiais serão insuficientes para firmar a ordem e a tranquilidade
pública, se com mais veras não se trabalhar por tornar os ricos e
abastados mais benévolos e mais submissos.

Um dos resultados imediatos dessa moral divina, e que não devo


passar aqui em silêncio, seria estabelecer e vulgarizar a doutrina
dos deveres, como o contrapeso e corretivo saudável da doutrina
dos direitos; que se ensina nas escolas superiores, e tem tanta voga
na política. Em verdade, eu não descubro nada mais funesto do que
o ensino (teórico ou prático) da última destas duas doutrinas, sem o
prévio estabelecimento da outra que lhe deve servir de base.

As leis civis proclamam que tudo quanto não é expressamente


proibido, considera-se como permitido; mas, como elas não
abrangem debaixo de suas formas genéricas senão um pequeno
número de ações, daí resulta que a fragilidade humana tem vasto
campo para as suas livres excursões, e o que mais é, magnífico
princípio de justificação para as quedas mais vergonhosas; estou no
meu direito, tal é a resposta insolente que a cada passo se encontra
na boca daqueles a quem a consciência acusa de terem faltado aos
seus deveres, e que não descobrem outra justificação aos seus
atos. Por outro lado, como os direitos muitas vezes se não podem
sustentar facilmente, havendo até perigo em defendê-los, segundo a
posição mais ou menos elevada do violador, daí vem que o egoísmo
e a covardia acham sempre boa conta em fazer abandonar os
impulsos mais nobres do coração humano, e aconselhar a
composição com os adversários poderosos, com aqueles mesmo
para cuja destruição todos devem concorrer. E o que abre a porta a
este procedimento, o que o legitima aos olhos de muitos, é a
máxima corrente e bem conhecida, segundo a qual todos podem
licitamente renunciar aos seus direitos.

Os corifeus da moderna escola de direito julgam escapar às


consequências desta ordem, criando uma classe de direitos
inalienáveis. Mas isto não passa de uma sutileza pouco sustentável.
Não há direitos que por si mesmos sejam inalienáveis. Esse caráter
só lhes pode vir do dever, que com ele se mistura, e lhe serve de
fundamento. Todo o direito é uma vantagem que se pode renunciar.
Se o dever prende e obriga o homem.

Na ordem política porém, o caráter mais saliente da doutrina dos


direitos, tal pelo menos como os fatos o estabelecem, é a violência,
ela exalta as cabeças fracas, e torna os homens arrogantes,
pretensiosos e turbulentos. Por isso, dizia com razão o sábio autor
da Legislação primitiva que a revolução francesa tinha começado
pela declaração dos direitos do homem, e que só havia de acabar
pela declaração dos direitos de Deus. Ora, os direitos de Deus são
os deveres dos homens, e o único meio de estabelecer e vulgarizar
em todas as classes da sociedade a doutrina completa dos deveres,
e prevenir com ela as desordens e as revoluções, é a propagação
da moral evangélica, dessa moral nascida do amor de um Deus de
paz para com os homens.
Eis aí em poucas palavras os motivos que me levaram na escolha
da pequena obra que traduzi, e onde o leitor encontrará a exposição
a mais bela e sublime dos grandes princípios do amor de Deus e do
amor dos homens, o comentário mais completo, o mais claro e o
mais filosófico aos preceitos do Decálogo, de que temos
conhecimento.

Bem sei que para ser cristão não basta conhecer e praticar a moral
do Evangelho, mas é preciso ainda acreditar nos dogmas e seguir o
culto da Religião divina. Estou mesmo intimamente convencido de
que os dogmas e o culto são, como se tem dito, os dois esteios
sólidos e necessários da moral, e que é sobretudo pela união de
seus dogmas com a sua moral, que o Cristianismo tem gerado todos
esses prodígios e maravilhas que assombram o universo. Mas, tal é
o mecanismo da Religião divina, que todas as suas partes se ligam
e se atraem irresistivelmente, e pode-se com segurança trabalhar no
aumento de uma sem que as outras sofram. Entretanto, a moral do
Decálogo e do Evangelho, parece-me em todo o caso o prelúdio
mais feliz para o ensino da fé católica, que não pode ter maiores
inimigos do que a perversidade do coração e o desregramento da
vida. Seria da minha parte temeridade se quisesse empreender o
elogio do autor que escolhi. Quem haverá que desconheça o grande
e venerável nome de Santo Tomás de Aquino? Qual o cristão que
não tenha alguma ideia desse gênio assombroso, que o testemunho
dos séculos tem imortalizado com epítetos de Anjo da escola e de
Doutor Angélico? Qual o homem de algumas letras que não tenha
hoje notícia do seu vasto saber, e erudição nas coisas divinas e
humanas, depois que o moderno apóstolo do catolicismo (o imortal
Ventura) se encarregou de desenvolver e vulgarizar as suas
doutrinas, armando-se delas, como de poderosa clava, para
esmagar o racionalismo europeu, restabelecer a verdadeira filosofia
e com ela os direitos da Revelação? Se alguém houver que não
esteja em alguma destas hipóteses, a este talvez poderá talvez
servir mais do que a ninguém o Tratado dos Dois Preceitos da
Caridade, e dos Dez Mandamentos da Lei, pequeno volume onde os
mais doutos e esclarecidos têm encontrado verdadeiro chefe de
obra, em tudo digno do insigne teólogo e profundo filósofo que
produziu as duas Sumas.

Quanto a tradução que fiz, só tenho duas palavras a dizer. Procurei


antes de tudo ser claro e fiel ao pensamento do autor. Se a despeito
porém de toda a minha diligência, alguma expressão me escapou
menos conforme ao espírito da obra, e que Santo Tomás
desaprovaria como contrário ao seu pensamento, e à doutrina
católica, eu desde já a desaprovo, retrato, submetendo, como
submeto, todo o meu fraco trabalho ao juízo dos Pastores legítimos
da Igreja, perante quem só me animo a aparecer escudado na
intenção que me guiou.

Recife, 16 de Agosto de 1858. Dr Braz Florentino Henriques De


Souza.

I TRATADO DOS DO IS PRECEITOS DA I TRATADO DOS


DOIS PRECEITOS DA CARIDADE E DOS DEZ
MANDAMENTOS DA LEI DE DEUS

CAPÍTULO 1
TRATADOS DOS DOIS PRECEITOS DA CARIDADE
E DOS DEZ MANDAMENTOS DA LEI
1. Três coisas são necessárias ao homem para andar no caminho
da salvação: a ciência da fé, a ciência dos desejos, a ciência das
obras. Destas três ciências, a primeira nos é ensinada no símbolo
(que vulgarmente chamamos: Creio em Deus Pai), onde estão
formulados todos os dogmas da nossa Religião; a segunda, na
oração dominical (que é o Padre Nosso); a terceira, na lei. Vamos
ocupar-nos com a ciência das obras. Quatro leis presidem as
nossas ações: a primeira é a lei natural, que não é outra coisa
senão a consciência, luz intelectual posta por Deus em nossa alma,
e que nos mostra o que devemos fazer e o que devemos evitar. Esta
luz intelectual, esta lei natural, Deus fez dela presente ao homem
apenas criado. Entretanto, não faltam indivíduos que julgam escusar
suas culpas pretextando a ignorância de seus deveres; a esses é
que convém aplicar estas palavras do Rei profeta, Muitos dizem:
quem nos ensinará o que é bem?15 Como se não soubessem o que
devem fazer! Porém o Rei profeta lhes responde nestes termos:
Senhor, vós pusestes em nós a vossa luz. Isto é, essa luz intelectual
que nos esclarece sobre nossos deveres.
15 Sl 4,7.

Ninguém pode ignorar, por exemplo, que não deve fazer a outrem o
que não quereria que lhe fizessem; e os outros preceitos da lei
natural estão igualmente gravados na consciência de todos. Esta lei,
dizemos, foi dada ao homem no momento da criação; mas o
demônio submeteu a criatura de Deus a uma outra lei, a lei da
concupiscência. Enquanto o primeiro homem foi fiel ao seu Criador,
observando os preceitos divinos, a carne obedeceu também ao
espírito, e os sentidos permaneceram submissos à razão.

2. Mas, depois que o homem, cedendo às pérfidas insinuações de


Satanás, se revoltou contra Deus, os sentidos se revoltaram
também contra a razão e a carne contra o espírito. Daí vem que o
homem, posto queira o bem que a razão lhe mostra, é arrastado ao
mal pela concupiscência. Esta luta de que é teatro a nossa alma,
São Paulo a descreveu em uma de suas Epístolas aos Romanos
Vejo, diz ele, em meus sentidos uma lei que combate a lei de meu
espírito.16 Muitas vezes acontece que a lei da concupiscência triunfa
da lei natural, e que a carne sobrepuja o espírito; por isso
acrescenta o Apóstolo: essa lei funesta me escraviza ao pecado. O
homem, dominado pela lei da concupiscência, mais forte para ele do
que a lei natural, tinha portanto necessidade de ser desviado do mal
e conduzido ao bem por uma lei nova. Satisfazer essa necessidade
foi a missão da lei mosaica.

3. Observemos que há dois motivos, que desviam o homem do mal


e o conduzem ao bem, a saber, o temor e o amor. Desses dois
motivos o que primeiro obra sobre ele é o temor. O que o induz
antes de tudo e mais poderosamente a evitar o crime é o
pensamento do inferno e das penas aplicadas ao criminoso pelo
soberano Juiz. Eis aí porque diz o Provérbios: O temor do Senhor é
o princípio da sabedoria17; eis aí porque ele diz ainda: O temor do
Senhor desvia o pecado. Sem dúvida aquele que se abstém de
fazer o mal pelo temor do castigo, não é ainda virtuoso, mas tem
chegado ao ponto de partida da virtude. Assim a lei mosaica
desviava o homem do mal e o conduzia ao bem pela ameaça e o
temor. Todo aquele que violava um preceito dessa lei severa, era
morto sem piedade, em presença de duas ou três testemunhas18
como recorda São Paulo aos Hebreus. Mas, o temor é um motivo
insuficiente para desviar o homem do mal e conduzi-lo ao bem; a lei
mosaica só sujeitava aos seus preceitos o homem físico, o homem
espiritual escapava ao seu poder. Era necessário pois à virtude um
novo motivo, à moral uma nova lei; esse motivo é o amor, essa lei é
o Evangelho. Assim, à lei do temor sucede a lei do amor.

4. Mas, convém notar que entre a lei do temor e a lei do amor existe
tríplice diferença. A primeira é que a lei do temor nos impõe
obediência servil, ao passo que a lei do amor nos pede uma
submissão voluntária e livre. Aquele que obra pelo temor, obra como
escravo, mas aquele cujas ações não tem outro motivo senão o
amor, obra como homem livre e a sua obediência é toda filial. Onde
há o Espírito do Senhor, diz São Paulo, aí há liberdade19. Com
efeito, graças ao amor, o homem obedece a Deus como um filho a
seu Pai. A segunda diferença é que a lei do temor prometia os bens
temporais àqueles que observassem seus preceitos, ao pas
17 Eclo 1,16.
18 Hb 10,28.

so que a lei do amor promete os bens celestes como recompensa


da virtude. Intérprete da lei do temor, Isaías faz dizer assim o
Senhor: Se fordes submissos aos meus mandamentos e dóceis à
minha voz, gozareis dos bens da terra20. Autor da lei do amor, Jesus
Cristo nos diz: Se quiserdes possuir a vida eterna, observai os
mandamentos de Deus21. Precursor de Jesus Cristo, São João
exclama: Fazei penitência, porque o reino dos Céus está próximo22.
A terceira diferença é que a lei do temor é dura, ao passo que a lei
do amor é cheia de doçura. São Pedro diz, falando dos preceitos
mosaicos Porque procurais vós impor-nos um jugo que nossos Pais
não poderão suportar, e que nos oprimiria?23 Jesus Cristo diz,
falando da moral do Evangelho O meu jugo é suave e o meu peso
leve.24 São Paulo diz por sua vez:Vós não recebestes como os
judeus, o espírito do temor que torna o homem escravo, mas o
espírito de amor que faz o homem filho de Deus.25

5. Assim pois, eu o repito, quatro leis presidem as nossas ações: a


lei natural que Deus gravou no coração do homem ao criá-lo; a lei
da concupiscência, cujo autor é o demônio; a lei do temor
promulgada por Moisés; e a lei do amor trazida ao mundo por Jesus
Cristo. Mas é evidente que todos os homens não podem consagrar
o seu tempo ao estudo da moral, e por isso é que Jesus Cristo
expôs os preceitos da lei do amor com brevidade e precisão, a fim
de que todos os homens estivessem ao alcance de conhecê
20 Is 1,19.
21 Mt 19,17.
22 Mt 3,2.
23 At 15,10.
24 Mt 11,30.

-los, e não pudessem, violando-os, pretextar a ignorância dos seus


deveres. A palavra do Senhor, diz São Paulo, ecoará sobre a terra e
todos a compreenderão26. Mas é preciso notar que essa lei de amor
deve ser a regra de todas as ações humanas. Nas artes nós
chamamos belo o que é conforme ao tipo da beleza; do mesmo
modo em moral, um ato é virtuoso quando está de acordo com a lei
do amor; todo o ato que se desvia dessa regra divina não pode ser
bom nem justo. Se estudarmos agora os efeitos do amor divino
sobre o homem, acharemos quatro principais, que merecem toda a
nossa admiração.

6. Primeiramente o amor divino dá ao homem a vida espiritual. O


objeto amado existe no coração daquele que ama: assim aquele
que ama a Deus, possui Deus em seu coração:Todo aquele que tem
a caridade vive em Deus e Deus vive nele27, diz São João. O amor
transforma ainda aquele que ama, e o torna semelhante ao objeto
amado. Se amamos um objeto vil e desprezível, tornamo-nos vis e
desprezíveis como ele. Ouvi as palavras do profeta: tornaram
-se abomináveis como os objetos que amaram.28 Pelo contrário, se
amamos a Deus, tornamo-nos homens divinos; porque aquele que é
unido a Deus recebe dele a vida espiritual.29 Ora, diz Santo
Agostinho: da mesma maneira que a alma é a vida do corpo, assim
Deus é a vida da alma. O corpo é dotado de vida quando a alma
habita nele e o faz obrar, logo que a alma se aparta, o corpo fica
imóvel e não é mais que um cadáver: assim a alma possui a vida
perfeita e revela o seu poder pela virtude, quando é unida a Deus
pelo amor; ela desfalece e morre, desde que o amor e Deus a
abandonam.Todo aquele que não ama permanece na morte30.
26 Rm 9,28.
27 1Jo 4,16.
28 Os 9,10.
Não se deve esquecer que aquele que possui todos os dons do
Espírito Santo sem o amor, não possui a vida. O dom das línguas, o
dom da fé e todos os outros dons da graça, não podem dar a vida,
se não se acham reunidos ao amor. Ainda que se envolva um
cadáver em vestuários onde brilhem o ouro de envolta com as
pedras preciosas, ele não deixa por isso de ser cadáver. Assim pois,
é a vida espiritual o primeiro efeito do amor divino.

7. Em segundo lugar, o amor divino nos torna atentos à observância


dos mandamentos de Deus. Aquele que ama a Deus, nunca está
ocioso, diz São Gregório. Ele realiza grandes coisas, se o amor o
anima verdadeiramente; se se recusa à prática da virtude, o amor
não habita em seu coração: por consequência, o sinal mais
manifesto do amor divino é a prontidão em cumprir os mandamentos
de Deus. Não vemos nós que aquele que ama, entrega-se às
maiores e mais difíceis empresas para obedecer à voz do objeto
amado? Aquele que me ama, diz o Senhor, guardará a minha
palavra.31 Acrescentemos que amar a Deus fielmente é cumprir toda
a lei divina. Observemos também que os preceitos da lei divina são
de duas sortes: uns são positivos e ordenam o bem; outros são
negativos e proíbem o mal. O amor divino desempenha uns e outros
igualmente, porque não pode fazer o mal, e sua plenitude consiste
em fazer o bem.32
8. O terceiro efeito do amor divino é oferecer-nos refúgio contra a
adversidade. Nada pode ofender, tudo serve àquele que ama a
Deus, tudo concorre em seu proveito.33As penas, as aflições lhe
parecem suaves. E poderia ser de outra sorte, quando aquele
mesmo, cujo coração só é animado de um amor terrestre sofre tudo
com alegria pelo objeto amado?

30 1Jo 3,14.
31 Jo 14,23.
32 1Cor 13.

9. O quarto e último efeito principal do amor divino é conduzir-nos à


suprema felicidade. A beatitude eterna só é prometida àqueles cujo
coração é penetrado desse amor divino; sem ele todas as virtudes
são insuficientes para nos merecerem as recompensas celestes.
Não me resta mais, diz São Paulo, do que receber a coroa que o
supremo Juiz me reserva. Essa coroa não me espera a mim só,
espera também a todos aqueles que como eu amam o Senhor.34
Acrescentemos que há diferentes graus na beatitude eterna,
segundo os diferentes graus do amor divino, e não segundo os de
outra qualquer virtude. Muitos homens foram mais abstinentes do
que os Apóstolos; entretanto estes ocupam o primeiro lugar no reino
do Céu, por que mais que todos os homens eram penetrados do
amor divino. Eles tinham recebido, como diz São Paulo, as primícias
do Espírito Santo35; eis aí porque são mais magnificamente
recompensados.

10. Mas, além desses quatro principais efeitos do amor divino, há


ainda outros que não devemos passar em silêncio. Primeiramente,
ele nos alcança de Deus a remissão dos pecados. Se um homem
ofende o próximo, e mais tarde lhe vota uma terna amizade, aquele
a quem ofendeu não esquece as suas ofensas de outrora por causa
de sua afeição? É assim que Deus perdoa aqueles que o amam, as
ofensas de que se tornaram criminosos para com Ele. O amor, diz o
Apóstolo, cobre uma multidão de culpas.36 E tanto as cobre que as
subtrai à vista de Deus. Posto que o Apóstolo diz que o amor cobre
uma multidão de culpas, Salomão assegura que as cobre todas;37 É
o que prova o exemplo da Madalena, dessa pecadora arrependida,
que o Senhor mostrava a seus discípulos, dizendo: Perdoados lhe
são seus muitos pecados, porque muito amou.38 Mas dirá alguém,
basta o amor por si só para apagar nossas culpas, e não é
necessário a penitência? A isso respondo que é impossível ter
alguém um amor sincero sem ter ao mesmo tempo sincero
arrependimento de suas culpas. Quanto mais amamos uma pessoa,
tanto mais pesar temos quando a ofendemos.
33 Rm 8,28.
34 2Tm 4,8.
35 Rm 8,23.
11. Outro efeito do amor divino é esclarecer o coração. Todos nós,
segundo a expressão de Jó, achamo-nos abismados nas trevas.39
Muitas vezes não sabemos o que fazer, o que desejar; mas o amor
divino ilumina nossa alma, ensina-nos tudo o que é necessário à
nossa salvação: é o que diz o Apóstolo: a sua unção vos ensina
todas as coisas.40 Onde reina pois o amor divino reina também o
Espírito Santo que tudo conhece, que nos guia no caminho da
justiça41, segundo a expressão do Rei profeta.Vós que temeis a
Deus,
36 1Pd 4,8.
37 Pr 10,12.
38 Lc 7,47.
39 Jó 37,19.
40 1Jo 2,27.
41 Sl 142.

diz o Eclesiástico, amai-o, e vossos corações serão esclarecidos;42


isto é, tereis tudo quanto é necessário à vossa salvação.

12. Outro efeito do amor divino é produzir no homem um


contentamento perfeito. Ninguém pode experimentar gozo real
senão no seio de Deus.Todo aquele que deseja alguma coisa só
pode achar satisfação e descanso na posse do objeto de seus
desejos. Entretanto acontece que o homem, quando agitado por
uma afeição terrena, deseja ardentemente o que não possui e
despreza e aborrece o que tem obtido. Mas não é assim quando o
coração é cheio do amor divino. Aquele que ama a Deus o possui
inteiramente, e acha nele seu descanso e felicidade. O que ama a
Deus, diz o Apóstolo, permanece em Deus, e Deus permanece
nele43.

13. O amor divino produz ainda em nós uma paz perfeita. Quando o
coração do homem é animado por um amor terreno, acontece
muitas vezes que depois de ter possuído o objeto de seus desejos,
ainda se acha inquieto, e ainda deseja outra coisa; porque o
coração do ímpio é como um mar agitado, que não pode acalmar.44
Não há paz para os ímpios45, diz o Senhor. Mas não acontece assim
com o que é animado pelo amor divino. Quando se ama a Deus,
goza-se de perfeita paz. Senhor, exclama o Salmista, gozam muita
paz os que amam a tua lei, e não há para eles tropeço.46 E qual a
razão? Não é porque Deus só pode preencher a multidão de nossos
desejos? A imensidade de Deus não é maior do que o vácuo de
nosso coração, como diz o Apóstolo? Meu Deus, exclama Santo
42 Eclo 2,10.
43 1Jo 4,16.
44 Is 57,20.
45 Ibid.
46 Sl 118,165.

Agostinho Vós nos fizestes para vós, e nosso coração está inquieto
enquanto não descansa em vós47. Ó minha alma! exclama também
o Rei profeta, bendize ao Senhor que enche de bens o teu desejo48.

14. Outro efeito do amor divino é enobrecer a natureza humana.


Todas as criaturas prestam homenagem à Majestade divina, todas
são submissas a Deus como ao seu Criador, como ao Soberano do
Universo; mas graças ao amor, nós deixamos de ser escravos; nós
nos tornamos livres e amigos de Deus. Já vos não chamarei servos,
mas chamar-vos-ei amigos49, disse o Senhor a seus discípulos.
Dirão porém: São Paulo e os outros Apóstolos não se deram a si
mesmos o título de servos de Deus? É verdade; mas notemos que
há duas sortes de escravidão; a primeira é uma escravidão de
temor; ela é punível e sem mérito. Digo sem mérito porque aquele
que só se abstém de fazer o mal pelo temor do castigo, não tem
direito a nenhuma recompensa, e sua submissão é ainda de um
escravo. A segunda é uma escravidão de amor. Quando alguém tem
por motivo de suas ações, não o temor do castigo, mas o amor
divino, não obra como escravo, mas obra como homem livre, porque
obedece voluntariamente a Deus. Eis aí porque o Senhor diz aos
seus discípulos: Já vos não chamarei servos. E por que razão? A
isto responde o Apóstolo São Paulo: vós não recebestes o espírito
de temor que torna o homem escravo, mas o espírito de amor que o
torna livre e filho de Deus.50 O temor é estranho ao amor51
acrescenta São João. O temor é penoso, e o amor herdeiro de
doçura.
47 Confissões, I, 1,1.
48 Sl 102,5.
49 Jo 15,15.
50 Rm 8,15.

15. O amor divino não torna somente o homem livre, mas também o
faz filho de Deus. Sim, graças ao amor, obtemos o título de filhos de
Deus, e o somos verdadeiramente, segundo o que diz ainda São
João52 adquirimos assim direito à herança de nosso Pai celeste, e
esta herança é a vida eterna. O Espírito Santo, diz o grande
Apóstolo, dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de
Deus, e se somos filhos de Deus somos também seus herdeiros,
herdeiros verdadeiramente de Deus, e coerdeiros de Cristo.53 Os
justos, diz também Salomão, têm sido contados entre os filhos de
Deus.54

16. Pelo que precede já bem se podem compreender as vantagens


do amor divino. É portanto do nosso dever empregar todos os
esforços para adquirir e conservar uma coisa tão vantajosa. Mas,
observemos primeiramente que ninguém pode ter por si mesmo o
amor divino, e que só Deus é quem o dá. Se Deus nos mostrou
tanta bondade, diz São João, não é por causa de nosso amor para
com ele, mas por causa de seu amor para conosco.55 Porquanto o
amor que Deus nos tem não é o efeito do amor que lhe temos, mas
o amor que temos a Deus é o efeito do amor que ele nos
tem.Acrescentemos que conquanto todos os dons venham do Pai
das luzes, o do amor divino é superior a todos os outros. Podem-se
possuir todos os outros dons sem possuir o amor divino e o Espírito
Santo; mas o Espírito Santo é inseparável do amor divino, e é
impossível possuir um sem possuir o outro. O amor divino, diz o
Apóstolo, foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo
que nos foi
52 1Jo 3,1.
53 Rm 8,16-17.
54 Sb 5,5.

dado.56 Não sucede o mesmo com os outros dons. Pode-se repito,


possuir o dom das línguas, o dom da ciência, o dom da profecia,
sem possuir o Espírito Santo, sem possuir o amor divino. Mas, bem
que o amor divino seja um dom de Deus, e o maior de todos,
devemos todavia para possuí-lo dispor nosso coração a recebê-lo e
guardá-lo.

17. Duas coisas são principalmente necessárias para obter o amor


divino. É preciso em primeiro lugar ouvir com assiduidade a palavra
de Deus. A maneira porque nascem as afeições terrenas é uma
prova desta verdade. Quando ouvimos dizer bem de uma pessoa,
não nos sentimos dispostos a amá-la? Assim é que ouvindo a
palavra de Deus, nosso coração arde de amor por Ele. Senhor,
exclama o Rei profeta, a vossa palavra é de fogo, e inflama em
amor este coração que vos é devotado.57A palavra do Senhor, diz
ele ainda, inflamou o coração de José.58 Por isso, os dois discípulos
de Jesus, que haviam encontrado seu Mestre depois da sua
ressurreição, diziam um ao outro, abrasados no amor divino: Não
nos ardia o coração no peito, enquanto ele nos falava no caminho, e
nos explicava as Escrituras?59 Por isso ainda lemos nos Atos dos
Apóstolos60 que pregando Simão Pedro o Evangelho em Cesareia,
o Espírito Santo desceu sobre todos que ouviam a palavra divina. E
não acontece muitas vezes que a prédica abranda os mais duros
corações, e lhes inspira inopinadamente o amor divino.
56 Rm 5,5.
57 Sl 118,140.
58 Sl 104,19.
59 Lc 24,32.
60 At 10,44.

18. Para obter o amor divino é preciso, em segundo lugar, entreter


continuamente o espírito com bons pensamentos. Meu coração
inflama-se no meio de suas meditações piedosas,61 diz o Salmista.
Bem insensível seria aquele que cuidando nos benefícios do
Senhor, nos perigos que evitou, na beatitude que lhe é prometida,
não se abrasasse de amor para com Deus. Daí vem dizer Santo
Agostinho: tem um coração bem duro aquele que não sendo o
primeiro a amar, não retribui ao menos o amor que se lhe tem. Em
geral, pode-se dizer que os maus pensamentos destroem o amor
divino, e que os bons o fazem nascer, nutrem-no, e velam na sua
conservação.Tirai, diz o Senhor, tirai de diante dos meus olhos os
vossos maus pensamentos.62 Os maus pensamentos, diz Salomão,
afastam de Deus.63 Duas condições principais são necessárias ao
crescimento do amor divino.

19. É preciso primeiramente afastar o coração dos objetos


terrestres. O coração não pode dar-se completamente a objetos
diversos; ninguém pode amar ao mesmo tempo o mundo e a Deus.
É por isso que nosso coração, quanto mais se afasta das afeições
terrenas, tanto mais se firma no amor divino. O que mata o amor
divino, diz Santo Agostinho, é o desejo de obter ou conservar os
bens temporais; o que o vivifica é o enfraquecimento da cobiça; o
que o torna perfeito é a ausência de toda a cobiça, porque a cobiça
é a fonte de todos os males.64Todo aquele pois que quer aumentar
em si o amor divino, deve trabalhar por destruir a cobiça. Entendo
por cobiça o amor dos bens temporais. Para destruí-lo é mister
primeiramente temer a Deus que é só quem não pode ser temido
sem ser amado. A instituição das ordens religiosas não têm outro
fim senão a realização desta obra. O estudo monástico nos afasta
das vaidades do mundo, e dos objetos terrestres, eleva nossa alma
para o Céu e para Deus. O sol brilha depois de ter sido coberto de
nuvens65, lê-se no livro dos Macabeus. O sol coberto de nuvens é o
espírito humano quando está obscurecido pelas afeições terrestres;
o sol que brilha, é o espírito humano quando se desprende dessas
afeições para elevar-se até o amor divino.
61 Sl 38,4.
62 Is 1,16.
63 Sb 1,3.
64 In. Lib. 83.

20. A segunda condição necessária ao crescimento do amor divino,


é uma paciência inabalável na adversidade. As penas que sofremos
por uma pessoa amada aumentam nossa ternura para com ela,
longe de a diminuir. Torrentes d’água não poderiam apagar o
amor,66 diz o Cântico dos cânticos. Essas torrentes d’água são as
tribulações da vida, estas tribulações sofridas por Deus firmam o
amor divino nas almas santas, em vez de o enfraquecer. O artista
contempla com mais amor a obra que lhe custou mais esforçose
fadigas. É assim que os corações fiéis amam tanto mais a Deus,
quanto mais sofrem por Ele. As águas se multiplicaram e a arca
elevou-se com elas.67
65 2Mc 1,22.
66 Ct 8,7.
67 Gn 7,17.

II DO AMOR DE DEUS

CAPÍTULO 2
DO AMOR DE DEUS
21. Quando os Doutores da lei mosaica perguntaram a Jesus qual
era o maior e o primeiro mandamento, ele lhes respondeu:Amarás o
Senhor, teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo
o teu entendimento; tal é o maior e o primeiro mandamento.68 É com
efeito este o mais importante, o mais sublime, o mais útil de todos
os mandamentos, e nele se contém todos os outros. Mas, quatro
condições são necessárias para o perfeito cumprimento deste
preceito.

22. A primeira é um reconhecimento profundo pelos benefícios de


Deus.Tudo quanto possuímos, ou em nós, ou fora de nós, dele
provém, é mister pois que de tudo lhe rendamos graças e que o
amemos com um amor sem limites. Não seria uma criminosa
ingratidão não amar alguém seu benfeitor? A lembrança dos
benefícios do Senhor nunca abandonou a Davi. Meu Deus, exclama
ele, tudo vos pertence, e nós não fazemos senão restituir vos o que
de vossas mãos recebemos.69 Por isso faz o Eclesiástico o elogio
do Rei profeta nestes termos: Ele glorificou de todo o seu coração o
nome do Senhor, amou com um amor sem limite o Deus que o tinha
criado.70
23. A segunda condição é profundo respeito para com a majestade
divina. Deus é maior que nosso coração.71Assim, ainda que o
servíssemos de todo o nosso coração, nossa submissão não seria
ainda assaz humilde. Por mais que glorifiqueis ao Senhor com todas
as vossas forças, diz o Eclesiástico, nunca lhe dareis a competente
glória, porque ainda ficará superior a toda ela. Bendizendo vós ao
Senhor, exaltai-o quanto podeis, porque Ele é maior que todo o
louvor.72
68 Mt 22,37.
69 1Cr 29,14.
70 Eclo 47,10.
24. A terceira condição é a renúncia às vaidades do mundo e
afeições terrestres. É fazer grande injúria a Deus o igualar-lhe
alguma coisa.A que condição me fizestes vós descer?73 Diz o
Senhor aos que o rebaixam ao nível das criaturas. Fazemos injúria a
Deus, degradamos sua Majestade, quando misturamos as afeições
terrestres com o amor divino; ou para melhor dizer, é impossível
amar ao mesmo tempo Deus e ao mundo. Uma cama muito estreita
não pode admitir duas pessoas, diz Isaías, e uma coberta mui curta
não pode cobri-las ao mesmo tempo.74 Essa coberta mui curta, essa
cama muito estreita é o coração do homem que apenas pode conter
a Deus só e que Deus abandona quando ele a quer repartir com o
mundo. Ele não sofre rival em nosso coração, do mesmo modo que
um esposo no coração de sua esposa. Não o disse Ele próprio Eu
sou o teu Deus zeloso75? Ele não quer que amemos coisa alguma
tanto como a Ele, nem ainda que amemos outra coisa fora dele.
71 1Jo 3,20.
72 Eclo 43,32s.
73 Is 40,18.
74 Is 28,20.
75 Ex 20,5.

25. A quarta condição é ódio ao pecado. Ninguém pode amar a


Deus vivendo no mal. Não podeis servir ao mesmo tempo a Deus e
às riquezas.76Assim, todo aquele que vive no pecado, não ama a
Deus.Amara-o porém esse piedoso Monarca que o invocava nestes
termos: Senhor, lembrai-vos que andei debaixo das vossas vistas no
caminho da verdade e na pureza de meu coração.77 Até quando,
exclamava o profeta Elias, vacilareis entre o bem e o mal?78 Tal é
com efeito a incerteza do pecador: ora se deixa arrastar pelas
pegadas do demônio, ora se esforça por procurar a Deus; mas esta
incerteza desagrada ao Senhor.Vinde a mim, diz Ele, de todo vosso
coração.79 Duas espécies de homens pecam contra este preceito:
uns evitando um vício, como por exemplo a luxúria, caem em outro
como a avareza. Eles não deixam por isso de ser criminosos como
os que caem nesses dois vícios ao mesmo tempo. Porquanto, diz o
Apóstolo São Tiago, aquele que viola um só preceito da lei divina
viola toda a lei.80 Outros há que confessam uma parte de seus
pecados e calam o resto, ou que repartem a confissão de suas
culpas entre dois confessores. Estes não merecem a absolvição,
antes cometem nova culpa procurando enganar a Deus e
profanando o sacramento. É uma impiedade, diz um sábio, esperar
de Deus um perdão incompleto. Derramai vossos corações em
presença do Eterno,81 diz também o Salmista. E com efeito tudo
devemos revelar na confissão.
76 Mt 6,24.
77 Is 38,3.
78 1Rs 18,21.
79 Jl 2,12.
80 Tg 2,10.

26. Temos mostrado que o homem é obrigado a entregar-se a Deus;


mas como entregar-se a Ele? O que há em nós que possamos e
devamos consagrar-lhe? Há no homem quatro coisas que ele pode
e deve consagrar a Deus; a saber: o coração, a alma, o
entendimento e a força.Amarás ao Senhor teu Deus, diz o
Evangelho, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu
entendimento, e de toda a tua virtude82, isto é, de todas as tuas
forças.

27. Observemos que a palavra coração significa aqui intenção. A


intenção é de tal importância em nossos atos que lhes imprime a
todos seu caráter próprio, de sorte que o bem, feito com uma
intenção má, torna-se mau. Se o teu olho for mau, diz o Evangelho,
todo o teu corpo ficará nas trevas83 Isto é, se tua intenção for má
toda a massa de tuas obras ficará sem mérito. Por isso em todas as
nossas obras deve a nossa intenção ter a Deus por fim. Ou vós
comais, diz o Apóstolo, ou bebais, ou façais outra qualquer coisa,
fazei tudo para glória de Deus.84

28. Não basta porém que a intenção seja boa para que a ação
também o seja. É necessário que essa boa intenção seja
acompanhada de vontade reta; e é o que nos quer dar a entender o
Evangelho quando nos manda que amemos a Deus de toda a nossa
alma, pois a alma é a vontade. Muitas vezes obra o homem com
boa intenção, mas sem mérito, porque, além dessa boa intenção
não tem uma vontade reta. Por exemplo, furtar para nutrir um pobre
que morre de fome é obrar com boa intenção, mas a bondade da
intenção não escusa o mal que se comete por falta de retidão na
vontade. São criminosos, diz São Paulo, os que querem fazer o mal
para que venha o bem.85 A retidão da vontade é unida à bondade
da intenção quando a vontade humana está também de acordo com
a vontade divina; e é o que pedimos todos os dias pedindo a nosso
Pai celeste; seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu.
É esse mesmo acordo que exprime o Rei profeta quando diz:
Senhor, quero fazer a tua santa vontade.86 Eis aí pois porque o
Evangelho nos ordena que amemos também a Deus de toda a
nossa alma, pois a alma, repito, é muitas vezes tomada na Sagrada
Escritura pela vontade; a desobediência, diz o Senhor, desagrada a
minha alma, isto é, está em desacordo com minha vontade.87
81 Sl 61,9.
82 Mt 22, 37; Lc 10, 27; Mc 12,30.
83 Lc 11,34.

29. Algumas vezes, enfim, a intenção é boa, a vontade é reta, mas o


pensamento é pecaminoso; e eis aí porque o Evangelho nos
recomenda que amemos a Deus de todo o nosso entendimento.
Devemos dar a Deus todos os nossos pensamentos a fim de que
sejam santos. Nossa missão, diz o Apóstolo, é submeter todo o
entendimento a lei de Cristo.88 Muitos homens, sem cometerem o
ato mesmo do pecado, guardam com gosto o pensamento dele em
seu espírito. A estes é que se deve aplicar as seguintes palavras do
Senhor: Tirai de diante dos meus olhos os vossos pensamentos
criminosos.89 Há outros ainda que cheios de confiança em sua
sabedoria orgulhosa, não querem submeter sua razão à fé, e estes
não dão a Deus o seu pensamento. A eles é que Salomão dirige
estas palavras: Não vos fieis na vossa prudência.90
85 Rm 3,8.
86 Sl 39,9.
87 Hb 10,38.

30. Mas não basta amar a Deus de todo o nosso coração; de toda a
nossa alma, de todo o nosso entendimento; devemos também amá-
lo de todo o nosso poder, de todas as nossas forças: Senhor, diz o
Rei profeta, é ao teu serviço que quero consagrar a minha força.91
Homens há que consagram sua força ao pecado, que não revelam
seu poder senão no vício; É a estes que se dirigem estas palavras
ameaçadoras de Isaías: Desgraçados de vós que só tendes força
para vos entregardes à devassidão, e coragem para vos
embriagardes.92 Outros há que desenvolvem em detrimento de seu
próximo o poder que deveriam empregar servindo seus interesses:
Arrancai à morte aquele que vai perecer93, diz Salomão. É assim
que convém mostrar-se forte e poderoso. Devemos portanto para
cumprir plenamente o preceito do amor divino, dar a Deus, nosso
coração, nossa alma, nosso entendimento, nossa força, isto é, ter a
Deus por alvo de nossa intenção, de nossa vontade, de nossos
pensamentos e de nossos esforços.
89 Is 1,16.
90 Pr 3,5.
91 Sl 58,10.
92 Is 5,22.
93 Pr 24,11.

III DO AMOR DO PRÓXIMO

CAPÍTULO 3
DO AMOR DO PRÓXIMO
31. Quando os doutores da lei perguntaram a Jesus Cristo qual era
o maior mandamento, duas respostas deu Ele a esta única
pergunta. Primeira: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu
coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento, e de todas
as tuas forças e desta primeira parte do preceito já temos tratado.
Amarás, acrescentou Ele, o teu próximo como a ti mesmo. Ora,
convém observar que o cumprimento desta segunda parte do
preceito encerra o cumprimento de todos os deveres do homem
para com o homem: no amor, diz o Apóstolo, está todo o
cumprimento da lei.94 Quatro motivos nos convidam ao amor do
próximo.

32. O primeiro é o amor divino: Mente aquele que disser que ama a
Deus detestando seu próximo.95 Não é porventura mentir o avançar
que se ama alguém detestando seus filhos e sua família? Ora, todos
os fiéis são filhos de Deus, e não formam mais que uma só família
de que Deus é o pai. Vós sois, diz São Paulo, o corpo e os membros
de Jesus Cristo96. Por consequência, aquele que aborrece seu
irmão, não pode amar a Deus, que é nosso pai comum.

33. O segundo motivo que nos convida ao amor do próximo é a


obediência que devemos à vontade divina. Entre outros preceitos
94 Rm 13,10.
95 1Jo 4,20.
96 1Cor 12,27.

que Jesus Cristo nos deu antes de deixar a terra, Ele principalmente
recomendou à nossa obediência o amor do próximo, dizendo aos
seus discípulos; Eis aqui o preceito que eu vos dou: amai-vos uns
aos outros como eu vos amei.97 Não se pode portanto cumprir a
vontade de Deus detestando o próximo, e o testemunho o mais
assinalado à lei divina é o amor que temos aos nossos irmãos. Por
isso Nosso Senhor mesmo disse: Nisto conhecerão todos que sois
meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.98 Ele não disse:
reconhecer-vos-ão pelo poder que vos foi dado de ressuscitar os
mortos, ou por algum outro sinal estrondoso, mas pelo amor que
tiverdes uns aos outros. São João apreciava devidamente toda a
importância do preceito de seu Divino Mestre; e por isso dizia:
Passamos da morte à vida; e porquê? Porque amamos os nossos
irmãos. Aquele que não ama permanece na morte.99

34. O terceiro motivo que nos convida ao amor do próximo é a


identidade da nossa natureza.Todo o ser vivo, diz o Eclesiástico,
ama o seu semelhante.100 E já que os homens se assemelham
todos por sua natureza, devem amar-se mutuamente. Assim pois o
ódio do homem contra o homem não é só uma violação da lei divina,
é também uma violação da lei natural.

35. Quarto motivo é a utilidade geral, Graças à caridade, o que é


vantajoso a um torna-se igualmente vantajoso a todos. É a caridade
que une os fiéis no seio da Igreja, e que estabelece entre eles uma
comunhão de sentimentos, de necessidades e de interesses.
97 Jo 15,12.
98 Jo 13,35.
99 1Jo 3,14.

Senhor, exclama o Rei profeta, eu me uno àqueles que te temem e


observam tua santa lei.101

36. Amarás o teu próximo como a ti mesmo; tal é o segundo preceito


da lei moral. Temos dito quanto devemos amar ao nosso próximo;
resta-nos dizer como o devemos amar. O Evangelho indica dizendo-
nos: como a ti mesmo. Há nesta expressão do Evangelho cinco
coisas a considerar, e que são os elementos essenciais do amor do
próximo.

37. Primeiramente, devemos amar nosso próximo com verdade, isto


é, amá-lo por amor dele mesmo, e não por amor de nós. Notemos a
este respeito que há três sortes de amor, dos quais um só é o amor
verdadeiro. O amor funda-se algumas vezes sobre o interesse:Tal
amigo há, diz o Eclesiástico, que só o é para a mesa, e que o não
será nos dias da tribulação.102 Não é este de certo o verdadeiro
amor, ele nasce do egoísmo e o egoísmo o mata. Enquanto reina
em nosso coração, não é a felicidade do próximo, mas a nossa que
desejamos. Outras vezes o amor tem por motivo o prazer; e não é
este ainda o verdadeiro amor, porque ele morre com o prazer que o
fez nascer. Enquanto reina em nosso coração, amamos ainda o
nosso próximo, não por amor dele mesmo, mas por amor de nós.
Outras vezes, enfim, o amor tem por base a virtude, e é este o
verdadeiro amor. Então não amamos nosso próximo por amor de
nós mesmos, mas por amor dele.

38. Em segundo lugar, devemos amar nosso próximo em termos;


isto é, não amá-lo mais do que a Deus, nem tanto como a Deus,
mas justamente tanto quanto devemos amar-nos a nós mesmos. Ele
ordenou em mim a caridade,103 diz-se no Cântico dos Cânticos.
Nosso Senhor tem o cuidado de nos indicar a medida da afeição
que devemos a nosso próximo, dizendo: O que ama seu pai ou sua
mãe mais do que a mim, não é digno de mim: o que ama seu filho
ou filha mais do que a mim, não é digno de mim.104
101 Sl 118,63.

39. Em terceiro lugar, devemos amar nosso próximo com eficácia. O


homem, quanto a si mesmo, não se limita a um amor estéril, antes
faz todos os esforços para obter o que lhe é vantajoso, para evitar o
que lhe é funesto. Assim pois é que deve amar seu próximo. Não
amemos de palavra nem de língua, diz São João, mas por obra e
em verdade.105 Os piores de nossos inimigos são aqueles cuja boca
anda cheia de palavras de amor, e o coração cheio de sentimentos
de ódio. Deles é que fala o profeta, quando diz: Sua boca tem
palavras de paz para o próximo, e seu coração oculta pensamentos
criminosos106. Que o vosso amor seja sem fingimento107, diz
também o Apóstolo.
40. Em quarto lugar devemos amar nosso próximo com
perseverança, como fazemos conosco. O verdadeiro amigo ama
sempre, e o poder de sua afeição manifesta-se nos dias da
angústia.108 Ele nos é fiel na desgraça como na prosperidade; e é
quando a fortuna nos abandona que mais se estreita e revela sua
amizade, como ob
103 Ct 2,4.
104 Mt 10,37s.
105 1Jo 3,18.
106 Sl 27,3.
107 Rm 12,9.
108 Pr 17,17.

serva Salomão. Cumpre porém saber que duas coisas contribuem


para a duração da amizade: primeiramente a paciência; porque um
homem irascível só procura rixas,109 depois a humildade que produz
a paciência, porque a discórdia é companheira do orgulho. 110
Aquele que presume muito de si, e despreza os outros, não pode
suportar seus defeitos.

41. Em quinto lugar, devemos amar nosso próximo com justiça e


santidade, isto é, não amá-lo até fazer o mal por amor dele; porque
não é assim que devemos amar a nós mesmos, e semelhante
amizade seria contrária ao amor divino, que deve ser a regra
principal de nossa conduta,111 e que Salomão chama fonte das
nobres afeições.112

42. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Os judeus e os fariseus


compreendiam mal este preceito, acreditando que Deus ordenara
aos homens que amassem seus amigos, e detestassem seus
inimigos. O termo – próximo – era para eles sinônimo de amigo.
Mas esta interpretação é falsa, e a prova acha-se nestas palavras
de Jesus Cristo: Amai vossos inimigos113. Não se deve esquecer
que todo aquele que detesta seu irmão não está em estado de
graça; o que aborrece seu irmão está nas trevas114, diz São João.
43. Há entretanto aqui uma distinção a fazer. Homens de uma
santidade eminente conheceram o ódio: Senhor, exclama o Rei
profeta, aborreço profundamente os que calcam aos pés tua santa
lei.115 Jesus Cristo mesmo declara que ninguém pode ser seu
discípulo sem odiar seu pai, sua mãe e toda a sua família.116 Ora,
nós devemos em todas as coisas seguir o exemplo do divino
Mestre, e saber amar e aborrecer a propósito, como Ele; por quanto
Deus também conhece o ódio e o amor. E porquê? Porque há no
homem duas coisas a considerar: a natureza humana e o vício. A
natureza humana em todo o homem, tem direito ao amor; em todo o
homem o vício merece ódio. Desejar a seu próximo a condenação
eterna é aborrecer nele a natureza humana, e amar o pecado, mas
fazer votos pela sua salvação, é aborrecer nele o pecado, e amar a
natureza humana. Senhor, diz o Salmista, tu aborreces todos
aqueles que fazem o mal.117 Senhor, diz Salomão, tu amas tudo que
existe, e não aborreces nada do que fizestes.118 Quais são pois os
objetos do amor e do ódio de Deus? O objeto de seu amor é a
natureza, o objeto de seu ódio é o mal.
109 Pr 26,21.
110 Pr 13,10.
111 Jo 15,12.
112 Eclo 24,24.
113 Mt 5,44.
114 1Jo 2,9.

44. Acrescentemos que o homem pode algumas vezes fazer mal ao


seu próximo sem pecado. É o que sucede quando lhe faz mal com
vontade de servir os seus verdadeiros interesses; e Deus mesmo
obra muitas vezes conosco desta sorte. Assim Ele aflige o pecador
com enfermidades a fim de o converter ao bem; assim ainda Ele
oprime o mau sob os golpes da adversidade, a fim de que essa dura
lição lhe faça, segundo a expressão de Isaías abrir os olhos sobre
seus desvarios119. Pode-se pois, sem pecado, desejar a queda de
um tirano que desola a Igreja; pode-se digo sem pecado, enquanto
se dirija o bem da Igreja pela queda do tirano. Bendito seja o
Senhor, que feriu os ímpios.120, lê-se no livro dos Macabeus.
115 Sl 138,21s.
116 Lc 14,26.
117 Sl 5,6.
118 Sb 11,24.

45. É um dever para todos não só desejar a ruína dos maus, mas
também concorrer para ela, por amor do interesse geral. De certo
não é pecado dar a morte aqueles que a mereceram por seus
crimes. Os príncipes, diz São Paulo, são os ministros de Deus, e
não é debalde que trazem a espada da justiça.121 Os que velam na
manutenção das leis, não violam o preceito da caridade ferindo o
criminoso; se o punem, é umas vezes para castigá-lo, outras vezes
para garantir a segurança pública, que é mais preciosa que a vida
de um homem. Entretanto não se estaria isento de pecado punindo
o criminoso só com a intenção de lhe fazer mal, se a esta intenção
se não reunir a de servir seus verdadeiros interesses, isto é, de
infligir-lhe um castigo salutar, e procurar-lhe a vida eterna.

46. Pode-se querer bem ao próximo de duas maneiras:


primeiramente, de uma maneira geral, enquanto criatura de Deus e
participante da promessa da vida eterna; em segundo lugar,
enquanto nosso amigo ou nosso companheiro. Ninguém se deve
recusar a afeição geral que se deve à humanidade; todo o homem é
obrigado a orar pelos outros, quaisquer que sejam, e a socorrê-los
em suas necessidades; mas não somos obrigados a conceder a
quem quer que seja sinais particulares de benevolência, a menos
que se nos peça o perdão das ofensas que nos houverem sido
feitas. Aquele que nos faz semelhante pedido, não é mais para nós
uma pessoa indiferente e não admiti-lo à nossa intimidade, seria
repelir um amigo, seria privar-nos de uma poderosa intercessão
junto de Deus. Não disse Jesus Cristo: Se perdoardes aos homens
as ofensas que tendes deles, vosso Pai celestial vos perdoará
também vossos pecados; se não perdoardes aos homens, tão
pouco vosso Pai vos perdoará vossos pecados?122 Não dizemos a
Deus na oração dominical, perdoai-nos as nossas dívidas, assim
como nós também perdoamos aos nossos devedores?123
119 Is 28,19.
120 2Mc 1,17.
121 Rm 13,4.

47. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Dissemos que é


pecado recusar o perdão que se nos pede: o mais alto grau de
virtude que possamos atingir é amar aqueles que nos fizeram mal;
não somos obrigados, mas numerosos motivos nos induzem a isto.

48. O primeiro é a conservação de nossa dignidade. Os diversos


graus de dignidade reconhecem-se por sinais diversos, e ninguém
deve perder o sinal de sua própria dignidade. Ora, entre todas as
dignidades a mais elevada é a que nos provém do título de filho de
Deus, e o sinal que o faz reconhecer é o amor de nossos inimigos.
Amai vossos inimigos, diz-se no Evangelho, a fim de que sejais
dignos filhos de vosso Pai que está no Céu.124 Com efeito, não
basta amar os que nos amam para sermos filhos de Deus. Os
publicanos e os gentios observam tanto como nós essa lei da
natureza.
122 Mt 6,14s.
123 Mt 6,12.
124 Mt 5,44.

49. O segundo motivo que nos induz a amar os que nos fazem mal
é o triunfo das paixões nobres sobre as paixões ruins. O desejo da
superioridade em todas as coisas é inato no homem. É mister pois,
ou que, a força de bondade, obriguemos o que nos ofende a amar-
nos e, então, somos vencedores: ou que nos deixemos arrastar ao
ódio por uma influência estranha, e então somos vencidos. Não
consintais que o mal triunfe de vós, diz São Paulo, mas triunfai do
mal pelo bem.125

50. O terceiro motivo que nos induz a amar os que nos fazem mal, é
o nosso próprio interesse. Nós os forçamos assim a tornar
-se nossos amigos. Se vosso inimigo tiver fome, diz ainda São
Paulo, dai-lhe de comer; se tiver sede dai-lhe de beber; assim
obrando amontoareis brasas vivas sobre sua cabeça.126 Não há
maior provocação ao amor, diz Santo Agostinho, do que amar
primeiro. Ninguém tem o coração tão duro que não pague ao menos
em compensação o amor que se lhe testemunha. Um amigo fiel é o
mais precioso de todos os tesouros127, segundo Salomão. E quando
o Senhor vê marchar um homem no bom caminho, muda o coração
de seus inimigos,128 diz ainda o Sábio coroado.

51. O quarto motivo que nos induz a amar os que nos fazem mal é
que, graças a este esforço generoso de virtude, nossas orações são
mais agradáveis a Deus. Ainda que Moisés e Samuel se
apresentassem perante mim, diz o Senhor, eu não perdoaria a este
povo.129 Se Deus, observa São Gregório, cita de preferência Moisés
e Samuel, e se por isso mesmo exprime o poder que eles têm sobre
Ele, é porque Moisés e Samuel tinham amado seus inimigos, e
tinham orado por eles. Jesus Cristo também orou pelos seus
carrascos.130 E as orações do bem-aventurado Santo Estêvão em
favor dos que o apedrejavam, foram de uma utilidade muito grande
à Igreja, obtendo a conversão de São Paulo.
125 Rm 12,21.
126 Rm 12,20. Aqui São Paulo repete os ensinamentos do livro dos Provérbios (Pr 25, 21).
127 Eclo 6,14.
128 Pr 16,7.

52. O quinto e último motivo que nos induz a amar os que nos fazem
mal, é o desejo de sair do pecado, desejo que deve ser o mais
poderoso de todos em nosso coração. Algumas vezes acontece-nos
pecar e não procurar a Deus, então Deus nos chama a si fazendo
-nos sentir rudemente a necessidade de seu apoio. Cobrirei vosso
caminho de espinhos131, nos diz Ele pela boca do profeta Oséias.
Foi assim que feriu a Paulo com a cegueira no caminho de
Damasco, a fim de o chamar a si. Senhor, exclama o Salmista,
andei errante como ovelha que se desgarrou, vinde procurar vosso
servo.132 Deus vem em nosso socorro, se perdoamos a nossos
inimigos, se os conduzimos ao bem pela indulgência e bondade.
Deus, diz-se na Escritura, usará para vós da mesma medida de que
usares para os outros. Perdoai e sereis perdoados.133 Bem-
aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão
misericórdia.134 Ora, não há maior testemunho de misericórdia, do
que perdoar aos que nos fazem mal.
129 Jr 15,1.
130 Lc 23,34.
131 Os 2,8.
132 118,176.
133 Lc 6,38.
134 Luc 6,36.

IV DO PRIMEIRO PRECEITO DA LEI

CAPÍTULO 4
DO PRIMEIRO PRECEITO DA LEI
53. Não terás deuses estranhos.135 Como já dissemos, a lei de
Cristo é uma lei de amor, toda ela descansa sobre a caridade. Os
deveres da caridade são formulados em dois preceitos, um dos
quais é relativo ao amor de Deus, e o outro relativo ao amor do
próximo. Já falamos destes dois preceitos. Agora convém saber que
a lei dada a Moisés no monte Sinai, continha dez preceitos gravados
sobre duas tábuas de pedra. Três eram gravados sobre a primeira
tábua, e se referem ao amor de Deus; sete eram gravados sobre a
segunda, e se referem ao amor do próximo. Assim, toda a lei moral
descansa sobre dois preceitos fundamentais.

54. O primeiro dos três preceitos relativos ao amor de Deus é este:


Não terás deuses estranhos. Para bem compreendermos este
preceito, convém saber que a maior parte dos povos antigos
tornavam-se culpados da sua violação. Uns adoravam os demônios,
como atestam estas palavras do Salmista:Todos os deuses das
nações são demônios.136 Um semelhante culto é o maior e mais
horrível de todos os pecados. Presentemente ainda este culto
abominável é mantido por todos os que se dedicam à adivinhação e
à feitiçaria; porquanto segundo Santo Agostinho, é impossível ser
iniciado nos segredos das ciências ocultas, sem fazer pacto com o
diabo. Não quero, diz São Paulo que vos torneis sócios do
demônio.137 Vós não podeis, acrescenta ele, sentar-vos
alternativamente à mesa do Senhor, e à mesa do demônio.138
135 Ex 20,3.

55. Outros adoravam os corpos celestes, tomando os astros por


divindades, como atestam estas palavras do sábio Salomão:
Reputavam por deuses, governadores do universo, o sol e a lua.139
E por isso proibiu Moisés severamente aos judeus que seguissem a
tal respeito o exemplo dos outros povos: Guardai cuidadosamente
as vossas almas, por não suceder que levantando os olhos ao Céu,
e contemplando o sol, e a lua, e todos os mais astros, caiais no erro
de adorar e prestar culto a essas coisas que o Senhor vosso Deus
criou para serviço de todas as gentes que vivem debaixo do Céu.140
Contra esta proibição pecam os astrólogos, que atribuem aos
corpos celestes criados para o homem, o poder de reger os destinos
humanos, poder que só a Deus pertence.

56. Outros porém adoravam os elementos derramados nas esferas


inferiores, como atestam ainda estas palavras de Salomão:
Reputavam por divindades o fogo, o ar141. Deste frívolo e
vergonhoso culto tornam-se culpados os que dão seu coração a
objetos indignos do seu amor. Saiba, diz São Paulo, que o
fornicário, o imundo, o avaro são idólatras.142 Outros adoravam
homens, e entre eles,
137 1Cor 10,20.
138 Ibid. 21.
139 Sb 13,2.
140 Dt 4,19.
141 Sb 13,2.
142 Ef 5,5.

fracos mortais faziam-se reputar por deuses.Três coisas deram


nascimento a este gênero de idolatria.

57. A primeira é a afeição. Penetrado um pai de sensível mágoa, fez


a imagem de seu filho, que cedo lhe fora arrebatado, e àquele, que
então havia falecido como homem, começa agora a adorar como a
Deus, e lhe estabelece entre seus servos cerimônias e
sacrifícios.143

58. A segunda é a adulação. Querendo os homens testemunhar sua


admiração a um príncipe, a um herói, que não podia receber em
pessoa suas homenagens, procuraram um meio de adorá-lo ainda
que ausente; levantaram-lhe pois· estátuas que adoraram em seu
lugar. Invocaremos ainda a autoridade de Salomão. Querendo os
homens adorar um rei ausente, prestarão culto a sua imagem, a fim
de lhe testemunhar sua veneração como se estivesse
presente.144Tais são ainda hoje os que têm mais respeito ao mundo
do que a Deus. Aquele que ama seu pai ou sua mãe mais do que a
mim, não é digno de mim,145 diz o Senhor. Não vos fieis nos
príncipes, nem nos filhos dos homens, diz o Salmista, porque neles
não há salvação.146

59. A terceira causa deste gênero de idolatria, é a presunção. Certos


reis, na embriaguez de seu orgulho, deram-se a si mesmos os
títulos de deuses. Tal foi Nabucodonosor, monarca ímpio,
143 Sb 14,15.
144 Ibid. 17.
145 Mt 10,37.

a quem o profeta Ezequiel dirige estas palavras: O teu coração se


elevou, e tu dissestes: Sou deus.147 Imitam sua impiedade os que
dão mais crédito aos seus sentidos, do que aos preceitos de Deus!
Também estes se adoram como deuses; por quanto procurando os
deleites carnais prestam culto ao seu corpo, fazem um deus de sua
barriga.148 Devemos portanto evitar com cuidado todas estas
coisas, como contrárias ao culto do verdadeiro Deus.

60. Não terás deuses estranhos. Como dissemos, o primeiro


preceito da lei é o que nos proíbe outro qualquer culto que não seja
o do verdadeiro Deus. Cinco razões principais nos convidam ao
cumprimento deste preceito.

61. A primeira é a dignidade de Deus: recusar nossas homenagens


à essa dignidade soberana, é ultrajar o Rei dos Céus. Toda a
dignidade tem direito aos respeitos, e o vassalo que se revolta
contra seu soberano é criminoso de lesa majestade e traidor ao seu
rei. Tais são alguns homens a respeito de Deus. Ultrajaram, diz São
Paulo, a glória do Deus eterno, prestando homenagem à vã
semelhança da criatura mortal.149 Ora, nada desagrada tanto ao
Senhor como uma tal injúria. Não cederei, diz Ele pela boca do
profeta Isaías, não cederei minha glória a outro, nem o meu culto
aos ídolos.150 E notemos que o que faz a dignidade de Deus, é a
sua onisciência: o seu nome exprime a ideia de um olhar a que nada
escapa. Com efeito um sinal característico da divindade é o
conhecimento de todas as coisas. Anunciai-nos os acontecimentos
futuros, e acreditaremos que sois deuses.151Todas as coisas estão
nuas e descobertas aos olhos do Eterno.152 Ultrajam pois a sua
dignidade os que recorrem às adivinhações para conhecerem o
futuro. Contra estes, diz o profeta: Acaso não consultará o povo ao
seu Deus, há de ir falar com os mortos acerca dos vivos?153
147 Ez 28,2.
148 Fl 3,19.
149 Rm 1,23ss.
150 Is 42,8.

62. A segunda razão que nos induz a ficarmos fiéis ao culto do


verdadeiro Deus, é sua liberalidade para conosco. Todos os bens
nos vem dele como de fonte fecunda e inexaurível. Abrindo vós a
vossa mão, Senhor, todos se encherão de bens.154 Esta bondade
infinita não é um atributo menos essencial à Divindade do que a
onisciência, e mesmo a palavra – Deus – traz consigo a ideia de um
poder benfazejo. Não seria pois o cúmulo da ingratidão esquecer
tudo que Deus fez por nós, abandonar seu culto, e adorar em seu
lugar vãos ídolos, como os filhos de Israel depois da saída do Egito?
Nós abandonamos o culto do verdadeiro Deus quando pomos a
nossa esperança em outra parte que não nele, quando pedimos a
outros os socorros de que temos necessidade. Feliz daquele, diz o
profeta, que põe a sua esperança no nome do Senhor.155 E o
Apóstolo: Agora que conheceis a Deus, como poderíeis voltar ao
culto vergonhoso e frívolo dos elementos?156

63. A terceira razão que nos leva a não adorar, senão a Deus, é a
obrigação em que estamos de permanecermos fiéis a nossas
promessas. Nós renunciamos a Satanás e prometemos o nosso
coração a Deus só. Esta obrigação é sagrada, e seria um crime
violá-la. Se o que infringia a lei de Moisés, era punido com a morte
em presença de duas ou três testemunhas, que suplício não
merecerá o que tiver calcado aos pés a lei do Filho de Deus, o que
tiver em conta de profano o sangue da nova aliança, sangue
precioso derramado sobre a terra para purificar o mundo, o que tiver
ultrajado o Espírito Santo, dispensador das graças do Altíssimo?
157A mulher que, em vida de seu esposo, passa para os braços de

outro, é adúltera158 e merece ser queimada. Desgraçada pois da


alma infiel, que se separa do Deus vivo para oferecer ao mundo um
amor criminoso!
151 Is 41,23.
152 Hb 4,13.
153 Is 8,19.
154 Sl 103,28.
155 Sl 39,5.
156 Gl 4,9.

64. A quarta razão que nos convida a adorar somente a Deus é a


escravidão opressora que o demônio faz pesar sobre seus
adoradores. Ouve o que diz o Senhor aos judeus rebeldes, pela
boca de Jeremias: Servíveis de noite e de dia os deuses estranhos,
que não vos deixaram um só instante de repouso.159 O demônio
não se contenta com fazer-nos cometer um só pecado; ele nos
conduz de culpas em culpas. Ora, o pecador é escravo do pecado, e
não é sem dificuldade que se recobra a liberdade, uma vez que se
tem sofrido o jugo das más paixões; é o que fazia dizer a São
Gregório: A culpa que não é apagada pela penitência, arrasta-nos
cada vez mais para o abismo do vício. Pelo contrário, a submissão
que Deus exige de nós, nada tem de penosa, porque a sua lei nada
tem de pesada.Vinde a mim, diz Ele, porque meu jugo é suave, e o
meu peso leve.160 E com efeito, tudo que Ele exige de nós é que
façamos por Ele o que fazemos pelo pecado. O que diz São Paulo?
Desenvolvei agora na prática da virtude a força que tendes
desenvolvido na prática do mal.161 Há pois uma lei mais branda que
a de Deus? Quereis julgar porém do peso do jugo de Satanás?
Meditai nestas palavras que Salomão põe na boca dos maus: Nós
nos cansamos no caminho da iniquidade e da perdição, e andamos
por caminhos ásperos.162 Meditai ainda nestas palavras de
Jeremias: Os maus fazem laboriosamente o mal.163
157 Hb 10, 28s.
158 Rm 7,3.
159 Jr 16,13.
160 Mt 11,30.

65. Enfim, a quinta razão que nos convida a não adorar, senão o
verdadeiro Deus, é a imensidade da recompensa que reserva a
seus servos. Em nenhuma lei se prometem prêmios tais como na lei
de Jesus Cristo. Os maometanos esperam rios de leite e de mel, os
judeus a terra prometida, mas os Cristãos esperam a glória dos
Anjos. Eles serão, disse Jesus Cristo, semelhantes aos Anjos de
Deus no Céu.164 Eis aí porque Pedro dizia a seu Divino Mestre:
Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras da vida
eterna.165
161 Rm 6,19.
162 Sb 5,7.
163 Jr 9,4.
164 Mt 22,30.
165 Jo 6,68.

V DO SEGUNDO PRECEITO DA LEI

CAPÍTULO 5
DO SEGUNDO PRECEITO DA LEI
66. Não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus.166 Tal é
o segundo preceito da lei moral.Assim como não há mais que um só
Deus, a quem devemos adorar, assim também, não há mais que um
só Deus a quem devemos respeitar sobre todas as coisas, e
primeiramente quanto ao seu nome.

67. Cumpre porém notar que a palavra – vão – toma-se em três


sentidos diferentes; algumas vezes ela quer dizer falso, e é neste
sentido que a emprega o Rei profeta quando diz: Falavam coisas
vãs ao seu próximo.167 É, portanto, pronunciar em vão o nome de
Deus, invocar este nome sagrado para servir de apoio à mentira.
Guardai-vos de prestar falso juramento,168 diz o Senhor pela boca
do profeta Zacarias. Tu não viverás, porque dissestes mentira em
nome do Eterno,169 diz Ele ainda pela boca do mesmo profeta. É,
com efeito, um crime invocar esse nome augusto para confirmar a
mentira; é fazer injúria a Deus, mal a si mesmo, e aos outros
homens. É fazer injúria a Deus, porque dar ao juramento a
autoridade do seu nome, é invocar o seu testemunho por
consequência quando se invoca este. Testemunho em apoio de uma
mentira, ou imagina-se que Deus não conhece a verdade, e então
faz-se injúria à sua sabedoria, e a sua onisciência; ou supõe-se que
Ele ama a mentira, e então faz-se injúria a sua bondade; ou julga-se
que Ele não pode manifestar a verdade ou punir a mentira, e então
faz-se injúria ao seu poder. É além disto fazer mal a si mesmo,
porque é submeter-se ao juízo de Deus. Dizer: “Por Deus em como
isto é assim”, é dizer: “Deus me puna se isto não é assim.” Enfim, é
fazer mal a todos os homens, porque é destruir quanto em si cabe, o
laço social que só existe pela confiança. O fim do juramento é tornar
certo o que é duvidoso. O juramento, diz São Paulo, é a maior
segurança para terminar todas as contendas.170Assim pois, aquele
que dá um falso juramento, insulta a glória de Deus, ofende a si
mesmo, e ofende aos outros.
166 Ex 20,7.
167 Sl 11,3.
168 Zc 8,17.
169 Zc 13,3.

68. Não é algumas vezes sinônimo de frívolo, e é neste sentido que


o emprega o Rei profeta quando diz: O Senhor conhece os
pensamentos dos homens, e sabe que eles são vãos.171 É pois
pronunciar o nome de Deus em vão, o invocar sua autoridade para
apoiar uma coisa frívola. A lei mosaica só proibia o falso juramento;
mas a lei evangélica não permite jurar, mesmo para certificar uma
coisa verdadeira, senão nos casos de extrema necessidade; é o que
vemos nestas palavras de Jesus Cristo: Ouvistes que foi dito aos
antigos: não jurarás falso. Eu porém vos digo que absolutamente
não jureis.172A razão desta severa proibição está na leviandade de
nossa língua, leviandade tal que nenhum de nós pode pôr-lhe um
freio e que nos expõe a perjurar pela menor coisa. É necessário
pois, segundo o preceito do Evangelho, não afirmar nada senão
170 Hb 6,16.
171 Sl 93,11.
172 Mt 5,33s.

por estas duas simples palavras – sim e não. Notai bem que sucede
com o juramento como com a medicina; É um recurso de que só se
deve lançar mão nos casos de necessidade. Eis aí porque Jesus
Cristo nos diz: Tudo que disserdes de mais, além do sim e do não
procede do mal.173 Eis aí porque o Eclesiástico nos diz também:
Não se acostume vossa boca ao juramento, porque é este um
hábito mui perigoso. Não esteja pois sempre o nome de Deus e de
seus Santos na vossa boca, porque é isto uma profanação que não
ficará impune.174

69. Algumas vezes a palavra vão exprime a ideia do pecado ou de


injustiça, e é neste sentido que a emprega o Salmista: Filhos dos
homens até quando sereis de pesado coração? Porque amais a
vaidade.175 É pois pronunciar o nome de Deus em vão, o obrigar-se
por juramento a fazer o mal. O caráter da justiça é a prática da
virtude e o horror do crime. Se alguém jura cometer um furto ou
qualquer outra ação criminosa, pronuncia um juramento contrário à
justiça, é ao mesmo tempo um crime realizá-lo e um perjúrio
pronunciá-lo.Tal foi o juramento pronunciado por Herodes, e que
custou a vida de São João Batista. Pronuncia-se também um
juramento contrário à justiça quando se jura não fazer o que é bom,
como por exemplo, não entrar na Igreja, ou em uma ordem religiosa;
e ainda que ninguém seja obrigado a cumprir semelhante juramento,
é todavia um perjúrio pronunciá-lo. Assim pois, todo
173 Ibid. 37.
174 Eclo 23,9s.
175 Sl 4,3.

o juramento falso, frívolo, ou injusto é um pecado. Por isto nos diz o


profeta: E jurarás; vive o Senhor em verdade, em juízo, e em
justiça.176

70. Enfim, vão é, algumas vezes, sinônimo de insensato; e é neste


sentido que o emprega Salomão quando diz: São vãos todos os
homens, nos quais se não acha a ciência de Deus.177 É portanto
pronunciar em vão o nome de Deus blasfemar esse Nome augusto,
e a lei mosaica punia com a morte semelhante crime.178

71. Não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus. Bom é


saber que o nome de Deus pode ser pronunciado para seus fins
diferentes. Primeiramente pode-se pronunciá-lo para confirmar uma
coisa verdadeira: confessa-se então que Deus é a verdade mesma,
e uma tal confissão glorifica aquele cujo testemunho se invoca. Por
isso ordena-se no Êxodo que ninguém jure senão pelo nome do
verdadeiro Deus, é violar este preceito jurar por outro qualquer
nome: Não jurarás pelo nome dos deuses estranhos.179 Jura-se
algumas vezes pelo nome das criaturas, mas notemos que é jurar
ainda pelo nome de Deus. Jurar alguém pela sua alma, ou pela sua
cabeça, é pôr sua vida nas mãos de Deus que pune a mentira. Eu
chamo a Deus por testemunha sobre a minha alma,180 diz São
Paulo aos Coríntios. Jurar pelo Evangelho é também jurar por Deus,
que deu o Evangelho ao mundo, e é um pecado invocar por coisa
fútil o testemunho de Deus ou do Evangelho.
176 Jr 4,2.
177 Sb 13,1.
178 Lv 24,16.
179 Dt 6,13; Ex 23,13.
180 2Cor 1,23.

72. Em segundo lugar, pode-se pronunciar o nome de Deus para a


santificação da alma. É assim que o batismo santifica. Vós fostes
lavados, diz São Paulo, fostes santificados, fostes justificados em
nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.181 Ora, o que dá ao batismo
sua virtude santificante é a invocação da Santíssima Trindade:
Senhor, diz Jeremias, vós estais entre nós, e o vosso nome tem sido
invocado sobre nós.182

73. Em terceiro lugar, pode-se pronunciar o nome de Deus para


repelir o espírito maligno, e é assim, que antes de recebermos o
batismo, renunciamos a Satanás pela boca de nosso padrinho:
Senhor, diz Isaías, seja o vosso nome invocado sobre nós, e vós
nos livrareis da escravidão do pecado.183 Por consequência, é ter
pronunciado em vão o nome de Deus voltar ao pecado depois de ter
renunciado a Satanás, suas pompas e obras.

74. Em quarto lugar, pode-se pronunciar o nome de Deus, para


confessar a fé que se tem neste nome sagrado e para glorificá-lo:
Como, diz São Paulo, invocariam o Senhor os que não acreditam
nele?184Todo aquele, diz o mesmo Apóstolo, que invocar o nome do
Senhor, e acreditar nele será salvo.185 Ora, há duas maneiras de
confessar o nome de Deus. Confessamo-lo pela palavra, afim de
manifestarmos a grandeza divina: A todo aquele que invoca meu
Nome, diz o Senhor, eu para minha glória o criei.186 É portanto
181 1Cor 6,11.
182 Jr 14,9.
183 Is 4,1.
184 Rm 10,14.
185 Ibid. 13.
186 Is 43,7.

pronunciar o nome de Deus em vão falar do Altíssimo com


irreverência. Confessamos o nome de Deus pelas obras, quando
estas servem para manifestar também a grandeza divina. Vejam os
homens as vossas boas obras, diz Jesus Cristo, e aprendam a
glorificar vosso Pai que está nos Céus.187 Quantas pessoas há, pelo
contrário, cujas obras servem aos homens de ocasião para
insultarem a majestade divina! A elas é que se dirigem estas
palavras do Senhor: O meu nome é blasfemado por vossa causa
entre as nações.188

75. Em quinto lugar, podemos pronunciar o nome de Deus para


defender-nos contra as tentações do espírito maligno: O nome do
Senhor é um baluarte fortíssimo, atrás dele o justo está em
segurança e afronta os seus inimigos.189 É em meu nome, diz Jesus
Cristo, que os demônios serão expelidos.190 E esse nome, segundo
está escrito nos Atos dos Apóstolos, é o único sobre a terra que
pode salvar-nos.191

76. Em sexto lugar, podemos pronunciar o nome de Deus para


darmos cumprimento às nossas obras;Tudo quanto fizerdes, diz o
Apóstolo, seja de palavra ou de obra, fazei tudo isto em nome de
Nosso Senhor Jesus Cristo.192 O nosso apoio, diz o Salmista, está
no nome do Senhor.193 Mas todas as vezes que se não acaba uma
obra começada em nome de Deus, como por exemplo, quando se
não cumpre um voto feito livremente, pronuncia-se também em vão
o nome de Deus. Se fizerdes, diz o Eclesiastes, algum voto ao
Senhor, não tardeis em cumpri-lo,194 porque uma promessa infiel e
leviana lhe desagrada.
187 Mt 5,16.
188 Rm 2,24.
189 Pr 18,10.
190 Mc 16,17.
191 At 4,12.
192 Cl 3,17.
193 Sl 123,8.
194 Ecl 5,3s.

VI DO TERCEIRO PRECEITO DA LEI

CAPÍTULO VI
DO TERCEIRO PRECEITO DA LEI
77. Lembra-te de santificar o dia de sábado.195Tal é o terceiro
preceito da lei moral, e com razão é ele o terceiro. Primeiramente
devemos honrar a Deus do íntimo do coração, e é o que se nos
ordena neste preceito: Não terás deuses estranhos. Em segundo
lugar devemos honrá-lo pela palavra, e é o que se nos ordena neste
preceito: Não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus. Em
terceiro lugar devemos honrá-lo pelas obras, e é o que se nos
ordena neste preceito: Santificai o dia de sábado. Deus quis que
houvesse um dia especialmente consagrado ao seu culto, e o quis
por cinco razões principais.

78. A primeira é a destruição do erro. Bem previa Ele em sua


sabedoria que viria uma época em que certos homens ousariam
afirmar a eternidade do mundo, em que, segundo as expressões do
Apóstolo São Pedro, espíritos desvairados pelas luzes enganadoras
da razão diriam: O que é feito da promessa da ressurreição? Desde
que nossos pais dormiam o sono da morte, nada tem mudado, tudo
permanece eternamente o mesmo. Insensatos! como se a origem
do universo não tivesse podido preceder o nascimento de seus pais;
como se o Céu e a terra não pudessem ser destruídos depois deles
para dar lugar a nova terra e novo Céu!196 Era necessário pois
195 Ex, 20,8.
196 2Pd 2,3-13.

que houvesse um dia especialmente consagrado ao culto divino, a


fim de que essa solenidade recordasse continuamente aos homens
que Deus criou o mundo em seis dias, e que descansou no sétimo.
Os judeus observavam o sábado em memória da primeira criação;
mas Jesus Cristo fez sair uma nova criação do seio da primeira, o
homem celeste foi criado depois do homem terrestre. Depois da
vinda de Jesus Cristo, diz São Paulo, a circuncisão não tem mais
valor moral: a humanidade foi renovada pela graça e criada uma
segunda vez pela ressurreição do Filho de Deus.197 Da mesma
maneira que Jesus Cristo ressuscitou dentre os mortos para sentar-
se à direita de seu Pai, assim também nós recebemos segundo
nascimento que nos dá direito à herança celeste; e se o Filho de
Deus morreu como um mortal, os mortais devem, como Ele,
renascer para nova vida.198 Ora, a ressurreição de Jesus Cristo
tendo acontecido no Domingo, é este o dia que nós observamos em
memória da nova criação da humanidade, do mesmo modo que os
judeus observam o sábado em memória da criação primitiva do
mundo.

79. Em segundo lugar, Deus pôs este preceito para ensinar aos
homens a crer no Redentor. A corrupção não atingiu o corpo de
Jesus Cristo; Ele mesmo disse pela boca do profeta: Minha carne
descansará na esperança da vida, e Deus não permitirá à corrupção
aproximar-se de meu corpo sagrado.199 Quis Deus tanto porque se
santificasse o dia de sábado, a fim de que o descanso dos homens
nesse dia solene fosse símbolo do descanso da carne do
197 Gl 6,12ss.
198 Rm 6,1ss.
199 Sl 15,9s.

Redentor no sepulcro, assim como os sacrifícios sanguinolentos


eram o símbolo da sua morte. Nós não conservamos os sacrifícios
sanguinolentos da antiga lei, porque as imagens e os símbolos
devem cessar quando a realidade se mostra, do mesmo modo que a
sombra desaparece quando o sol brilha no horizonte. Entretanto, o
sábado ainda é honrado entre nós, sendo especialmente
consagrado à gloriosa Virgem Maria, a qual no dia em que seu
divino Filho descansava no túmulo, nada perdeu do ardor de sua fé.

80. Em terceiro lugar, pôs Deus este preceito para confirmar a


verdade de sua promessa. O que nos é prometido é o descanso:
naquele dia, diz Isaías, Deus vos fará descansar dos vossos
trabalhos, e de vossa antiga escravidão.200 Meu povo, diz o Senhor,
sentar-se-á na formosura da paz, nos tabernáculos da segurança, e
na abundância de todos os bens.201 Observai que nossa esperança
é descansar de três coisas: dos trabalhos da vida presente, da
perseguição da carne, e da escravidão do demônio. Esta promessa
do descanso Jesus Cristo no-la renovou, dizendo:Vinde a mim todos
que estais em trabalho, e vos achais carregados, eu vos
aliviarei.Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim que sou
manso e humilde de coração, e achareis descanso para vossas
almas. Porque meu jugo é suave e meu peso leve.202 Se Deus
trabalhou durante seis dias, e só descansou no sétimo, foi para nos
mostrar que devemos pôr a última demão em nossas obras antes de
procurar o descanso: Trabalhei pouco e achei muito descanso,203
diz o Eclesiástico. O
200 Is 14,3.
201 Is 32,18.
202 Mt 11,28ss.
203 Eclo 51,35.

que são porém as penas desta vida em proporção da tranquila


beatitude de que gozaremos na vida futura? O tempo da eternidade
excede incomparavelmente mais a todo o tempo presente, do que
mil anos a um dia.

81. Em quarto lugar, Deus pôs este preceito para entreter nos
homens o amor divino. O corpo que se corrompe, faz pesada a
alma.204 E por isso tem o homem necessidade de fazer muitos
esforços para erguer-se debaixo do peso que o oprime, para não
estar sempre curvado sobre a terra. Convém, pois, que haja época
determinada em que ele possa desprender-se do seio da terra, e
arrojar-se ao mundo espiritual. Para alguns esta época não é fixada,
antes volta a cada instante. Bendirei ao Senhor em todo o tempo,
diz o Salmista, e o seu louvor estará continuamente em minha
boca.205 Orai sem interrupção,206 dizSão Paulo aos fiéis. Para essas
almas escolhidas a vida inteira é um sábado continuo. Para outros,
esta época volta com pequenos intervalos de tempo: Senhor, diz
ainda o Salmista, eu cantei os vossos louvores sete vezes por
dia.207 Enfim, para as almas ordinárias volta esta época uma vez
por semana, e o dia em que elas devem ocupar-se exclusivamente
das coisas do Céu, foi determinado com receio de que, entregues a
sua própria discrição, não perdessem inteiramente o amor divino. Se
chamares o sábado delicado, diz Isaías, tu te deleitarás no
Senhor.208 Então, diz Jó, abundarás em delícias no Todo-Poderoso,
levantarás teu rosto para Deus.209 Com efeito não foi este dia
destinado para frívolos divertimentos, mas para a súplica e o serviço
divino. Por isso diz Santo Agostinho, que será pecado menor lavrar
a terra em tal dia, do que entregar-se a regozijos mundanos.
204 Sb 9,15.
205 Sl 33,2.
206 1Ts 5,17.
207 Sl 118,164.
208 Is 58,13.

82. Em quinto lugar, Deus pôs este preceito para obrigar


os Senhores a deixar algum descanso a seus escravos.
Sem esta ordem emanada do Céu, os ricos não
cessariam, desapiedados como são para si mesmos e
para os seus domésticos, de trabalhar no aumento de
suas riquezas perecedouras; o que se aplica
principalmente aos judeus, pois que são de uma sórdida
e excessiva avareza. E eis aí porque Moisés lhes
recomenda tão instantemente que interrompam toda a
espécie de trabalho no dia de sábado: Não farás, diz Ele,
trabalho algum neste dia, nem tu, nem teu filho, nem tua
filha, nem teu escravo, nem teu boi, nem o teu jumento,
nem animal algum teu para que descanse o teu escravo
e a tua escrava, como tu também descansas.210 Tais
são pois as principais razões pelas quais Deus quis que
houvesse um dia especialmente destinado a seu culto.

83. Lembra-te de santificar o dia de sábado. Os judeus, segundo


dissemos, celebram o sábado, e nós os cristãos os Domingos e as
outras festas principais. Vejamos pois como devemos celebrar estes
dias solenes. Observemos primeiramente que Deus não disse:
Observa o dia de sábado, mas sim: lembra-te de santificar o dia de
sábado. Ora, a palavra – santo – tem duas acepções diferentes:
209 Jó 22,26.
210 Dt 5,14.

algumas vezes ela é sinônimo de puro, como nesta passagem das


Epístolas de São Paulo: Vós haveis sido lavados, haveis sido
santificados.211 Outras vezes é sinônimo de sagrado, assim uma
coisa é santa quando é consagrada ao culto de Deus, como uma
Igreja, um cálice. Devemos portanto celebrar os dias de festa de
duas maneiras, a saber, purificando nossos corações e consagrando
nosso descanso ao serviço divino. Por consequência, há duas
coisas a examinar no preceito que nos ocupa: primeiramente o que
devemos evitar, depois o que devemos fazer em um dia de festa.

84. Nós devemos evitar três coisas: a primeira é o trabalho corporal:


Santificarás o dia de sábado, e não farás nele nenhuma obra
servil,212 diz-se em Jeremias e o mesmo preceito se encontra no
Levítico.213 Ora, o trabalho corporal é uma obra servil, ao passo que
o trabalho do espírito é uma obra livre, uma obra a que nenhum
homem pode ser coagido. Notemos porém que o trabalho corporal
pode ser permitido em um dia de festa por quatro motivos principais.
Primeiramente, por causa da necessidade. Assim, Jesus Cristo não
censurou os seus discípulos por arrancarem espigas em um campo
no dia de sábado. Em segundo lugar, por amor do interesse da
Igreja. Assim lemos no Evangelho que os Sacerdotes faziam nesse
dia tudo que era necessário no templo. Em terceiro lugar, por amor
da utilidade do próximo. Assim Nosso Senhor Jesus Cristo curou em
dia de sábado um homem que tinha a mão seca e confundiu os
fariseus que lhe censuravam sua ação, citando-lhes o exemplo da
ovelha perdida. Em quarto lugar, por amor da autoridade superior.
Assim Deus ordenou aos judeus que se circuncidassem em dia de
sábado.
211 1Cor 6,11.
212 Jr 17,21.
213 Lv 23,25.

85. A segunda coisa que devemos evitar em dia de festa é o


pecado. Guardai as vossas almas, diz-se em Jeremias, e não
queirais trazer cargas no dia de sábado.214 Ora, a carga das almas
é o pecado. O peso de minhas iniquidades, diz o Salmista, me
oprime como um pesado fardo.215 O pecado também é uma obra
servil, porque segundo a expressão de São João: Aquele que faz o
pecado é o servo do pecado.216 Por conseguinte, o preceito que nos
foi dado de não praticarmos nenhuma obra servil durante o dia
consagrado ao Senhor, pode estender-se a toda a ação má, e é
violar esse preceito pecar então, pois que o pecado é obra servil,
empreendida em tal dia, é uma ofensa feita a Deus. Não posso, diz
Ele aos Judeus, suportar por mais tempo os vossos sábados e as
vossas festas. E por que razão? Porque a injustiça reina em vossas
assembleias.A minha alma detesta vossas calendas e as vossas
solenidades; elas têm-se
-me tornado molestas.217

86. Em terceiro lugar, devemos evitar a negligência:A ociosidade é a


maior de todos os vícios,218 diz o Eclesiástico.Trabalhai sempre em
alguma boa obra, escreve São Jerônimo à Rustico, a fim de que o
demônio vos ache ocupado. Convém pois não celebrar senão as
festas principais, se nas outras deve o homem ficar ocioso. A honra
do Rei está em amar o juízo,219 isto é, a discrição. Lemos no livro
dos Macabeus, que os judeus tendo sido surpreendidos por seus
inimigos em um dia de sábado, deixaram-se vencer e matar, porque
julgaram que lhes era proibido combater e defender-se em
semelhante dia. É assim que se deixam surpreender e vencer pelo
demônio aqueles que ficam ociosos durante os dias de festa. Mas
os judeus reconheceram o seu engano e resolveram combater daí
em diante todo aquele que viesse atacá-los em dia de sábado.220
Assim também devem os fiéis resistir em todo o tempo às tentações
do espírito maligno, e não temer pôr em prática nenhuma obra boa
durante os dias consagrados ao Senhor.
214 Jr 17,21.
215 Sl 37,5.
216 Jo 8,34.
217 Is 1,13.
218 Eclo 33,29.
219 Sl 98,4.

87. Lembra-te de santificar o dia de sábado. Como já dissemos, o


homem deve santificar os dias de festa. E fizemos notar também
que a palavra santo tem duas significações diferentes; que ora se
toma no sentido de “puro”, ora no sentido de “consagrado a Deus”.
Enfim, mostramos o que se deve evitar nos dias especialmente
consagrados ao serviço divino. Resta-nos mostrar o que se deve
fazer durante estes mesmos dias. Ora, três são as coisas de que
devemos ocupar-nos então.

88. Primeiramente, devemos oferecer ao Senhor um sacrifício


agradável. Lemos na lei mosaica que Deus ordenara aos judeus que
lhe sacrificassem todos os dias dois cordeiros, um de manhã, e
outro à tarde, e que dobrassem o número das vítimas no dia de
sábado. Este preceito nos ensina que devemos redobrar de zelo e
de piedade durante os dias especialmente consagrados ao culto
divino, fazer então tudo que depende de nós para testemunharmos
ao Senhor o reconhecimento que Ele tem direito a esperar de suas
criaturas; porquanto segundo a expressão do Rei profeta o: Tudo
lhe pertence, e nós não fazemos mais que restituir-lhe o que dele
recebemos.221 Não podemos, é verdade, imolar-lhe muitas vítimas
sobre seus altares, porque a lei evangélica veio abolir os sacrifícios
sanguinolentos da antiga lei; mas podemos oferecer-lhe nossas
almas em holocausto, isto é, chorar nossos pecados e dirigir-lhe
fervorosas súplicas: O sacrifício adorável ao Senhor, diz o Salmista,
é um coração contrito e penetrado de arrependimento.222 Senhor,
diz Ele ainda, suba direito a minha oração como incenso em tua
presença.223 Os dias de festa são consagrados às alegrias graves e
sérias, às alegrias que experimenta o espírito, e que a oração faz
nascer. Podemos também afligir nossa carne com jejuns. Eu vos
rogo pela misericórdia de Deus, diz São Paulo aos fiéis, que
ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a
Deus.224 Podemos ainda oferecer a Deus um sacrifício de louvores:
Sacrifício de louvor me honrará225, diz o mesmo Senhor pela boca
do Salmista. E eis aí porque as Igrejas retumbam em tais dias com
piedosos cânticos em honra do Eterno. Enfim, podemos oferecer a
Deus o sacrifício de nossos bens caducos fazendo abundantes
esmolas: Não esqueçais, diz o Apóstolo, os deveres da caridade, e
o laço fraternal que vos une.226 É esse um sacrifício que agrada ao
Senhor, e que deve ser mais abundante nos dias de festa, que são
consagrados à alegria geral: Mandai aos indigentes o seu quinhão,
dizia Neemias aos judeus livres do cativeiro, porque é hoje a festa
dos tabernáculos, e todos devem regozijar-se no Senhor.227
220 1Mc 2,41.
221 1Cr 29,14.
222 Sl 50,19.
223 Sl 140,2.
224 Rm 12,1.
225 Sl 49,14.
226 Hb 13,1.16.

89. Em segundo lugar, devemos nutrir-nos com a palavra de Deus.


Assim o fazem os judeus que no dia de Sábado leem e meditam o
antigo Testamento.228 Os cristãos cuja piedade deve ser mais
perfeita que a dos judeus, são pois obrigados a assistir, nos
Domingos e dias de festa, aos ofícios divinos, e a ir recolher nas
Igrejas o alimento celeste que os ministros do Senhor distribuem do
alto da cadeira evangélica. Aquele que é de Deus, ouve as palavras
de Deus.229 Devem igualmente não ter senão conversações
piedosas: Não saia da vossa boca uma só palavra má, diz o
Apóstolo, se tendes alguma coisa boa a dizer, dizei-a para
edificação de vosso próximo.230 Ouvir o que é bom de ouvir-se,
dizer o que é bom dizer-se, eis aí duas coisas eminentemente úteis
ao pecador; porque mudam seu coração, e lhe inspiram o amor da
virtude. As minhas palavras, diz o Senhor, são como fogo que
queima, e como martelo que quebra a pedra.231 Pelo contrário, os
mesmos justos deixam-se arrastar ao mal, ouvindo o que não
devem ouvir, dizendo o que não devem dizer: As más conversações
corrompem os bons costumes, diz o Apóstolo, velai pois na vossa
salvação, vós que andais no caminho da justiça, e guardai-vos do
pecado.232 Senhor, exclama o Salmista, eu conservo a vossa
palavra no fundo de meu coração.233 A palavra divina esclarece o
ignorante, é uma luz que guia seus passos,234 segundo a expressão
do Rei profeta. Ela inflama também os corações tíbios, e os enche
de ardor.235
227 Ne 8,9s.
228 At 13,14s.27.
229 Jo 8,47.
230 Ef 4,29.
231 Jr 23,29.
232 1Cor 15,33.

90. Em terceiro lugar devemos entregar-nos à contemplação de


Deus; mas este dever é só para os homens perfeitos. Descansai, e
vede quanto o Senhor é suave.236A contemplação é o repouso da
alma; a alma fatiga-se como o corpo e como ele tem necessidade
de descansar. Ora, o asilo onde pode achar descanso é Deus.
Senhor, sede meu abrigo e meu refúgio,237 diz o Salmista. Entrarei
em minha morada, e descansarei no seio da sabedoria,238 diz
Salomão.

91. Mas antes que a alma possa chegar a esse grau último de
descanso, é mister que ela passe por três outros graus sucessivos
de repouso. Primeiramente é mister que esteja ao abrigo das
agitações que nascem do pecado: O coração do ímpio é como um
mar agitado, que nada pode acalmar.239 Depois deve pôr-se fora do
alcance das paixões carnais, porque a carne conspira contra o
espírito, do mesmo modo que o espírito conspira contra a carne.
Enfim deve abandonar toda a ocupação mundana. Marta, Marta tu
andas muito inquieta, e te embaraças cuidando em muitas coisas;
entretanto uma só coisa é necessária.240 É depois de ter passado,
digo, por estes três graus sucessivos de repouso, que a alma chega
ao mais alto grau de sossego e descanso no seio de Deus. Se
chamares o sábado delicado, então te deleitarás no Senhor,241 diz o
profeta. É para chegarem a esse termo que os santos tudo
abandonaram sobre a terra. O descanso é a pérola inestimável de
que fala o Evangelho, e que aquele que a encontra, compra mesmo
à custa de todos os seus bens. O descanso é a vida eterna, é a
eterna felicidade. Assim possamos nós obtê-la! Assim possa cada
um de nós repetir, falando da celestial Jerusalém, estas palavras do
Rei profeta: Este é o meu descanso para sempre: aqui habitarei
porque o escolhi.242
233 Sl 118,11.
234 Sl 118,105.
235 Sl 104,1.
236 Sl 33,9.
237 Sl 30,3.
238 Sb 8,16.
239 Is 57,20.
240 Lc 10,41s.
241 Is 58,13.
242 Sl 131,14.

VII DO QUARTO PRECEITO DA LEI

CAPÍTULO 7
DO QUARTO PRECEITO DA LEI DE DEUS
92. Honrarás a teu pai e a tua mãe. A perfeição do homem consiste
no amor de Deus e do próximo. Ao amor de Deus se referem os três
preceitos gravados sobre a primeira tábua que Deus deu a Moisés;
ao amor do próximo se referem os outros sete preceitos gravados
sobre a segunda tábua da lei, mas como diz São João: nós
devemos amar não de palavra, nem de língua, mas por obra e em
verdade.243 O homem, cujo coração é penetrado de um amor
verdadeiro, deve evitar o mal, e fazer o bem; e é por isso que os
preceitos da lei moral ora são negativos e proíbem o mal, ora
positivos e ordenam o bem. Está sempre em nosso poder evitar o
mal, mas não está sempre em nosso poder fazer o bem; e é o que
fez dizer Santo Agostinho que nós somos obrigados a amar a todos
os homens, mas não somos obrigados a beneficiar a todos, mas
somente aos que nos são conjuntos, por quanto aquele que não
cuida dos seus, principalmente dos domésticos, é infiel e não
cristão.244 Ora, entre todos os viventes os que nos são mais
intimamente ligados são nosso pai e nossa mãe; e por isso diz
Santo Ambrósio que em primeiro lugar devemos amar a Deus, em
segundo a nosso pai e a nossa mãe. E é o que diz o preceito divino,
quando nos manda honrá-los.
243 1Jo 3,18. 244 1Tm 5,8.

93. Porque devemos honrá-los? Um filósofo respondeu a esta


questão dizendo que a grandeza dos benefícios que deles
recebemos não nos permite tratá-los como nossos iguais. Assim um
pai ofendido por seu filho pode mui bem lançá-lo fora de sua casa,
mas o inverso disso não pode ter lugar. Quais são pois os benefícios
que recebemos de nossos pais? Três. Primeiramente recebemos a
vida. Honra a teu pai, diz o Eclesiástico, e não te esqueças das
dores que custastes a tua mãe; lembra-te que não terias nascido
sem sua intervenção.245 Em segundo lugar o alimento, o arrimo a
nossa fraqueza, e tudo quanto é necessário à vida. O homem entra
nu e fraco neste mundo, mas os que lhe deram a vida não o
abandonam em sua fraqueza e miséria, antes o sustentam. Em
terceiro lugar devemos a educação e a instrução. Nossos pais
carnais, diz o Apóstolo, foram nossos primeiros mestres.246 Se tens
filhos, diz o Eclesiástico, ensina-os bem.247 Ora, duas coisas
principais devem os pais ensinar a seus filhos; o temor de Deus, e o
horror do pecado. E mui cedo lhes devem dar este ensino salutar;
porquanto segundo as Santas Escrituras, o homem que anda no
bom caminho desde sua infância, não se desviará dele em sua
velhice.248 E feliz aquele que desde a mocidade foi submetido ao
jugo da virtude.249 Tal foi o ensino saudável que o piedoso Tobias
deu a seu filho e todos os pais devem imitar, o exemplo deste santo
varão. Quão criminosos não são pois aqueles que se deleitam com
a malícia de seus filhos! Mas como diz Salomão:Todos os filhos que
nascem do pecado, são testemunhas da maldade contra seus
pais.250 E Deus pune os pais nos filhos.
245 Eclo 7, 29s.
246 Hb 12,10.
247 Eclo 7,25.
248 Pr 22,6.
249 Lm 3,27.

94. Nossos pais portanto nos deram a vida, o alimento, e a


educação. E já que temos deles a vida, devemos respeitá-los mais
do que os servos a seus senhores, ainda que menos que as
criaturas a seu Criador. O que teme ao Senhor, diz o Eclesiástico,
honra a seus pais, e servirá quase como a seus senhores, aos que
o geraram, em ações, em palavras, e em toda a sorte de paciência.
Honra pois a teu pai e tua mãe para que venha sobre ti a benção de
Deus.251 Não é, além disto, honrar-nos a nós mesmos honrarmos os
autores dos nossos dias? Não diz o mesmo Eclesiástico que a glória
do homem provém da honra de seu pai, e o desdouro do filho de um
pai sem honra?252 Do mesmo modo, já que eles nos alimentarão em
nossa infância, nós devemos por nossa vez alimentá-los em sua
velhice: Filho, diz ainda o Eclesiástico, ampara a velhice de teu pai,
e não lhe dês pesares em sua vida; e se lhe forem faltando as
forças, suporta-o, e não o desprezes por poderes mais do que ele.
Quão infame é o que desampara seu pai, e quão amaldiçoado o que
exaspera sua mãe!253

95. Para confusão e vergonha dos maus filhos basta que olhem
para a piedade filial da cegonha. Quando a velhice, diz Cassiodoro,
enfraquecendo as asas de seus progenitores, torna-os incapazes
para procurarem por si mesmos o alimento, a ternura da ave supre
seu vigor extinto: ela aquece com suas penas seus membros
entorpecidos, traz-lhes os alimentos que achou, reanima suas forças
abatidas, e por um piedoso reconhecimento presta sendo moça, aos
que lhe deram a vida, os cuidados que deles recebera em seus dias
de fraqueza. Enfim, já que nossos Pais foram nossos primeiros
mestres, nós devemos obedecer-lhes: Filhos, diz o Apóstolo,
obedecei a vossos pais,254 exceto no que é contrário à Religião;
porquanto segundo se exprime São Jerônimo, é o único caso em
que a desobediência é um dever e a revolta uma piedade. Aquele
que não abandona a seu pai e a sua mãe para me seguir, diz Cristo,
não pode ser meu discípulo.255Acaso não é teu Pai aquele que te
protege, que te fez e te criou?256
250 Sb 4,6.
251 Eclo 3,9s.
252 Eclo 3,13.
253 Eclo 3,14ss.

96. Honra a teu pai e a tua mãe. Entre todos os preceitos, só a este
ajuntou o Legislador a promessa de uma recompensa e esta
recompensa é a de longa vida sobre a terra. A razão disto é que Ele
não queria deixar acreditar que o respeito filial fosse uma virtude
sem mérito, porque é uma virtude natural. Mas convém saber que
há cinco coisas desejáveis, que são prometidas aos que honrarem
seus pais.

97. A primeira recompensa prometida ao respeito filial, é a graça no


presente, e sobretudo a glória no futuro. Honra teu pai e tua mãe,
diz o Eclesiástico, a fim de que a bênção divina venha sobre ti.257 O
contrário é devido aos que os ofendem, e estes são amaldiçoados
de Deus na lei antiga, por quanto diz se no Evangelho: O que é
iníquo nas pequenas coisas, também o é nas grandes.258 Mas a
vida natural nada é por assim dizer, quando a comparamos à vida
da graça. Se portanto deixas de reconhecer o benefício desta vida
natural que recebestes de vossos pais, tornais-vos indigno da vida
da graça que lhe é superior, e por consequência da vida da glória,
que é ainda superior à vida da graça.
254 Cl 3,20.
255 Lc 14,26.
256 Dt 32,6.

98. A segunda recompensa prometida ao respeito filial, é uma longa


carreira. Deus nos ordena que honremos nossos pais, a fim de
vivermos muito tempo sobre a terra. Aquele que honra seu pai, diz o
Eclesiástico, gozará de mais longa vida. Notai porém que a vida é
longa quando é plena e que tem por medida não o número dos
anos, mas o das ações, como disse um filósofo. Ora, a vida é plena
quando é virtuosa, e por consequência o homem virtuoso e santo
vive muito tempo, ainda mesmo quando sua morte é prematura em
relação aos anos. O justo, diz Salomão, tendo vivido pouco, encheu
a carreira de longa vida porque a sua alma era agradável a Deus,
por isso se apressou a tirá-lo do meio das iniquidades
humanas.259Tem de certo grande lucro, aquele que ganha em um
dia o que outrem ganha apenas em um ano. E notai que algumas
vezes uma vida mui longa, é a causa de uma morte funesta quer
para o corpo, quer para a alma, bem como aconteceu a Judas.
Assim repito, uma das recompensas prometidas ao respeito filial é
longa vida sobre a terra; daí pois se segue que a morte é a justa
punição dos que injuriam a seus pais; porquanto nós recebemos a
vida de nossos pais, assim como os guerreiros recebem um feudo
de seu rei; e da mesma maneira que os vassalos infiéis merecem
perder o feudo que receberam de seu soberano, assim os maus
filhos merecem perder a vida que receberam de seus pais.Aquele
que escarnia de seu pai, e despreza sua mãe, merece ter os olhos
arrancados pelos corvos que andam a borda das torrentes, e
devorados pelos filhos da águia.260 Os filhos das águias são os reis
e os príncipes; os corvos são os oficiais de justiça. Se alguma vez
os maus filhos escapam ao castigo corporal, não podem contudo
escapar à morte espiritual. Por isso não devem os pais deixar muito
poder aos filhos. Enquanto viveres e respirares, diz o Eclesiástico,
nenhuma pessoa te faça mudar sobre este ponto; Não dês em tua
vida poder sobre ti nem a teu filho, nem a tua mulher, nem a teu
irmão, nem ao teu amigo; e não diz a outrem os bens que possuis,
para que não suceda arrependeres-te disso, e ficares reduzido a
pedir-lhes com deprecações.261
257 Eclo 3,10.
258 Lc 16,10.
259 Sb 4,7ss.

99. A terceira recompensa prometida ao respeito filial é a felicidade


de ter filhos agradecidos e afetuosos. Naturalmente o pai entesoura
para seus filhos, mas o inverso não se realiza: Aquele que honra
seu pai, diz o Eclesiástico, achará sua alegria nos seus filhos.262
Com a medida com que medirdes vos medirão também a vós.263
100. A quarta recompensa prometida ao respeito filial é uma
reputação honrosa, porque um filho se honra honrando seu pai e
cobre-se de vergonha abandonando-o. A glória do homem provém
da honra de seu pai. Quão infame é o que o desampara!264
260 Pr 30,17.
261 Eclo 33,20s.
262 Eclo 3,6.
263 Mt 7,2.

101. A quinta recompensa enfim é a propriedade, porque, segundo o


Eclesiástico, a benção dos pais fortifica a casa dos filhos, e a
maldição da mãe as destrói pelos alicerces.265

102. Honra a teu pai, etc. Convém notar que o nome de pai não se
aplica somente àquele que nos deu a vida, mas a toda a pessoa que
merece nosso respeito e nossa veneração por qualquer título que
seja. Assim chamamos pais aos Apóstolos e outros santos
personagens, que são para nós modelos de doutrina e de fé.
Podeis, diz São Paulo aos Coríntios, ter mil pedagogos, que vos
ensinem a doutrina de Cristo, mas não tendes muitos pais
espirituais; pois só eu vos gerei em Jesus Cristo pelo Evangelho.266
Louvemos, diz o Eclesiástico, aos varões gloriosos de outro tempo,
que também são vossos pais.267 Sim, louvemos esses homens
ilustres, e seja nossa veneração comprovada não por vãs palavras,
mas pela imitação de sua vida. Ora, se quisermos imitar
verdadeiramente a vida dos grandes personagens que admiramos,
é necessário que as suas virtudes revivam em nós: Lembrai-vos diz
São Paulo, lembrai-vos dos vossos prelados que vos ensinam a
palavra de Deus, e cuja fé haveis de imitar.268 Os prelados merecem
igualmente o nome de pais, e também tem direito ao respeito e à
veneração, pois são os ministros de Deus. Não disse Jesus Cristo a
seus Apóstolos: Quem vos ouve, ouve-me a mim, e quem vos
despreza, me despreza?269 Devemos portanto honrar aos prelados,
e ser-lhes submissos; e pagar-lhes o dízimo. Obedecei aos vossos
superiores, diz o Apóstolo, e sede-lhes sujeitos.270 Honra o Senhor
com a tua fazenda, diz Salomão, e dá-lhe das primícias de todos os
teus frutos.271 Os reis e os príncipes também merecem o nome de
pais e na Escritura Santa vemos que este nome lhes era outrora
concedido. É o título mais glorioso que se lhes pode dar, e serve de
os advertir que se acham colocados sobre o trono para velarem na
felicidade dos povos, e que devem considerar seus súditos como
seus filhos. Tal é o dever dos reis para com os povos; e o dos povos
para com os reis é ter-lhe respeito filial, e testemunhar-lhes esse
respeito por uma inteira submissão.Todo o homem, diz o Apóstolo,
seja sujeito às potestades que o governam.272 Ora, essa submissão
não deve vir somente do temor, mas também do amor; ela é
recomendada não só pela razão, mas ainda pela consciência. Com
efeito, segundo o Apóstolo, todo o poder vem de Deus, e por
consequência devemos render homenagem a quem é de direito.273
Meu filho, diz Salomão, teme a Deus, e ao rei.274 Nossos
benfeitores são também nossos pais: Sê piedoso para com os
órfãos como pai,275 diz o Eclesiástico. Com efeito a beneficência é
um atributo da paternidade: Não te esqueças nunca, diz ainda o
Eclesiástico, da graça que te fez o que ficou por teu fiador.276 O
esquecimento dos serviços recebidos é ingratidão odiosa, por isso
lemos no livro da Sabedoria que a esperança do ingrato se derreterá
como o gelo do inverno, e se perderá como uma água inútil.277
Finalmente, o título de pai é ainda devido ao velho. Pergunta a teu
pai, diz a Escritura Santa, e ele te informará; pergunta aos teus
maiores, e eles te dirão.278 Levanta-te diante dos que tem a cabeça
cheia de fios brancos, e honra a pessoa do velho.279 No meio dos
magnatas não te iguales com eles, e onde estão os velhos não fales
muito.280 Ouvi em silêncio e a proporção da tua modéstia ser-te-á
conciliada a boa graça.281 Assim pois, o preceito que nos dá o
Senhor de honrarmos a nossos pais, aplica-se igualmente aos
velhos, aos nossos benfeitores, aos nossos chefes tanto espirituais
como temporais, porque todos estes representam de certo modo
nosso Pai que está no Céu, e desprezá-los é desprezar a Deus.
264 Eclo 3,13.18.
265 Eclo 3,11.
266 1Cor 4,15.
268 Hb 13,7.
269 Lc 10,16.
270 Hb 13,7.
271 Pr 3,9.
272 Rm 13,1.
273 Rm 13,7.
274 Pr 24,21.
275 Eclo 4,10.
276 Eclo 29,20.
277 Sb 16,29.
278 Dt 32,7.
279 Lv 19,32.
280 Eclo 32,13.

VIII DO QUINTO PRECEITO DA LEI

CAPÍTULO 8
DO QUINTO PRECEITO DA LEI
103. Não matarás. A lei divina ordenando-nos que amemos a Deus
e a nosso próximo, manda-nos não só que façamos o bem, mas
ainda que evitemos o mal. Ora, o maior mal que podemos fazer a
nosso próximo é tirar-lhe a vida. Não matarás, tal é o preceito que
proíbe o homicídio. Este preceito porém tem dado lugar a três
interpretações igualmente falsas.

104. Certos filósofos pretenderam que não é mesmo permitido


matar os animais. Mas esta opinião é evidentemente errônea;
porque não pode ser um crime usar o homem daquelas coisas que
estão sujeitas ao seu poder. É da ordem natural que as plantas
sirvam de pasto aos animais, que certos animais a seu turno sejam
presa dos outros, e que os reinos animal e vegetal forneçam ao
homem os alimentos que lhe são necessários: Eu vos entreguei
todas as criaturas vivas, assim como todos os vegetais.282 São
estes os termos em que o próprio Deus confirmou aquela ordem
natural tão antiga como o mundo. Um filósofo tinha dito que a caça
assemelha-se a guerra legítima e São Paulo declara expressamente
que se pode comer de tudo que se vende na praça, etc.283
105. Outros pensaram que era proibido tirar a vida ao homem de
qualquer maneira, e seja porque motivo for. Assim os juízes
seculares que condenam os criminosos à pena de morte, fazendo
aplicação da lei, são para eles homicidas. Mas esta doutrina é
infundada e Santo Agostinho faz uma observação que a destrói: é
que Deus não podia tirar a si mesmo o direito de vida e de morte,
dando àquele preceito direito que Ele reconheceu em si, dizendo:
Eu matarei e eu farei viver.284 Daí se segue que os juízes seculares
também tem o direito de condenar a morte os criminosos, porque
não são mais que os executores da vontade de Deus, e é Ele que
pronuncia a sentença dos culpados.Toda a lei é um decreto divino.
Por mim reinam os reis, e por mim decretam os legisladores o que é
justo.285 Se obrares mal, diz São Paulo, teme; porque não é debalde
que os magistrados estão armados com a espada da justiça; eles
são os ministros do Todo-Poderoso.286 Sabe-se que a lei mosaica
punia com a morte os menores delitos. O que é permitido a Deus, é
permitido aos seus ministros em virtude do mandato que dele
receberam e de certo Deus não é culpado quando pune o crime com
a morte, pois é Ele o legislador supremo.A morte é o prêmio do
crime287, segundo a expressão do Apóstolo; por consequência os
ministros de Deus também não são culpados executando seus
decretos soberanos. O verdadeiro sentido do preceito é pois este;
Não matarás de tua própria autoridade.
282 Gn 9,3.
283 1Cor 10,25.
106. Enfim tem-se pretendido que esse preceito só é relativo ao
homicídio cometido na pessoa de outrem; e porque ele nos proí
284 Dt 32,39.
285 Pr 8,15.
286 Rm 13,4.
287 Rm 6,23.

be matar nosso próximo, concluiu-se que nos permite matar-nos a


nós mesmos. A história nos refere mais de um exemplo dessas
mortes voluntárias. Assim é que pereceu Sansão debaixo das ruínas
do palácio cujas colunas abalara com seu braço, que Catão se
trespassou com sua espada e que essas virgens de que fala Santo
Agostinho288 se arrojaram no meio das chamas. Mas o mesmo
escritor sagrado, contando este último rasgo, tem o cuidado de
acrescentar: Aquele que se mata, tira a vida a um homem. Se pois é
um crime matar um homem, a não ser pela autoridade de Deus, é
igualmente crime matar-se a si próprio, a não ser por autoridade de
Deus, ou inspiração do Espírito Santo, como sucedeu a Sansão.
Logo, Não matarás. Mas convém saber que há muitas maneiras de
ser-se homicida.

107. Em primeiro lugar, mata-se com as mãos. Nossas mãos estão


cheias de sangue,289 diz o Senhor aos judeus criminosos. Este ato
de horrível ferocidade não é somente um atentado contra a lei divina
da caridade, pela qual nos é ordenado que amemos a nosso
próximo como a nós mesmos: nenhum homicida tem a vida eterna
permanente em si mesmo;290 mas é também um atentado contra a
natureza, por quanto todo o animal ama naturalmente seu
semelhante.291 Por isso diz-se no Êxodo: O que ferir a um homem
com intenção de o matar, será punido com a morte.292 Esta punição
é de certo legítima. O homicida é um monstro mais cruel do que o
lobo das florestas, que recua ao aspecto do sangue de outro lobo.
288 De Civitate Dei, I.
289 Is 1,15.
290 1Jo 3,15.
291 Eclo 13,19.
292 Ex 21,12.

108. Mata-se ainda com a boca, e isto incitando o ódio contra


alguém, acusando-o, caluniando-o.Temei os filhos dos homens, diz
o Salmista, os dentes deles são armas e setas, e a sua língua
espada aguçada.293

109. Mata-se concorrendo para o homicídio: Filho meu não vás com
ele, guarda-te de andar pelas suas veredas. Porque seus pés
correm para o mal, e se dão pressa a derramar o sangue. 294

110. Mata-se consentindo no homicídio. São dignos de morte, diz o


Apóstolo, não só os que praticam o crime, senão também os que
consentem que ele se realize.295 Ora, é consentir de certo modo no
crime, deixá-lo cometer quando se pode impedir a sua
execução:Tira do perigo aqueles que são levados à morte,296 diz o
autor dos Provérbios. É ser enfim homicida o não salvar um
desgraçado quando se pode, e abandoná-lo ou por negligência ou
por egoísmo: Nutri o pobre que morre de fome, diz Santo Ambrósio,
se não tendes piedade dele, sois vós que o matais. E cumpre saber
que se pode matar o corpo sem matar a alma, ou matar a alma sem
matar o corpo, e que há casos em que se pode matar o corpo e a
alma ao mesmo tempo. Mata-se o corpo derramando o sangue, e
mata-se a alma arrastando-a ao pecado mortal: O demônio, diz-se
na Escritura, foi homicida desde o começo do mundo.297 Foi
homicida por isso que arrastou o homem ao pecado. Há dois casos
em que se mata ao mesmo tempo a alma e o corpo: o primeiro é
quando se tira a vida a uma mulher grávida, porque então o golpe
que a fere mata igualmente o corpo e a alma da criança que ela traz
em seu ventre e o segundo é quando alguém se mata a si mesmo.
293 Sl 56,5.
294 Pr 1,15s.
295 Rm 1,32.
296 Pr 24,11.

111. Não matarás, Jesus Cristo nos ensina no Evangelho, que


nossa justiça deve ser mais perfeita que a dos escribas e fariseus
querendo nos dar a entender por este modo que devemos ser mais
zelosos no cumprimento da lei nova do que o eram os judeus da lei
antiga. E a razão disto é que, quanto maior é a recompensa, tanto
mais esforços se deve fazer para alcançá-la: O que semeia pouco,
diz o Apóstolo, também colherá pouco.298 Ora, a lei mosaica
prometia à virtude recompensas temporais e terrestres: Se
obedecerdes à minha voz, diz o Senhor pela boca do profeta Isaías,
gozareis de todos os bens da terra.299 Mas a lei evangélica promete
aos fiéis recompensas eternas: por conseguinte, a justiça, que não é
outra coisa mais do que a observância dos mandamentos divinos,
deve ser mais zelosamente praticada pelos cristãos do que pelos
judeus, pois também é maior a recompensa que lhes é reservada.
Entre outros preceitos que Jesus Cristo nos deu a este respeito,
mencionaremos o seguinte: Ouvistes que foi dito aos antigos “Não
matarás.” Eu porém vos digo, que todo que se ira contra seu irmão,
será réu no juízo.300 Isto é, merece ser condenado à pena que a lei
mosaica inflige aos assassinos, quando diz: Se alguém matar a seu
próximo de caso pensado e à traição, tu o arrancarás do meu altar
para que morra.301 Devemos porém evitar a ira de cinco maneiras.
297 Jo 8,44.
298 2Cor 9,6.
299 Is 1,19.

112. Primeiramente, devemos ter cuidado em não encolerizar


-nos sem reflexão: Cada um de vós, diz o Apóstolo São Tiago, seja
pronto para ouvir, porém tardo para falar, e tardo para se irar.302 A
razão disto é que a ira é um pecado que não pode ficar impune. Mas
toda a ira é contrária à virtude? Esta questão tem sido resolvida
diversamente. Os estoicos pretenderam que os sábios não
experimentam paixão alguma; ainda mais, faziam consistir a
verdadeira virtude na tranquilidade da alma. Os peripatéticos de sua
parte, disseram que os sábios podem experimentar um movimento
de ira moderada; e esta opinião é a mais verosímil, pois é fundada
ao mesmo tempo sobre a autoridade e o raciocínio. É fundada sobre
a autoridade, por que vemos no Evangelho certas paixões atribuídas
a Jesus Cristo, esse modelo divino da perfeita sabedoria. É fundada
sobre o raciocínio, por quanto se todas as paixões fossem contrárias
à virtude, haveria certas potências da alma que seriam inúteis, ou
antes funestas, pois só se revelariam por uma ação desordenada.
Assim, Deus teria dado ao homem para sua desgraça a faculdade
que chamamos irascível, e a que produz o desejo. É mister pois
convir que a ira umas vezes é criminosa, e outras não; porquanto a
palavra ira exprime três coisas diferentes. Primeiramente, ela aplica-
se a um simples juízo que a razão pronúncia sem a menor emoção
da alma: esse juízo da razão não é a ira propriamente dita; é uma
sentença reta, pois quando Deus pune os maus não ouve os
conselhos do furor, mas da justiça. A Escritura Santa fala muitas
vezes da ira do Senhor, mas dando a esta expressão o sentido de
equidade. É neste sentido que se deve interpretá-la quando o
profeta diz: A ira do Senhor cairá sobre mim, porque pequei contra
Ele.303A palavra ira exprime também uma paixão; neste sentido a ira
não pertence mais à razão, porém à sensibilidade; como paixão é
umas vezes criminosa, e outras legítima. Com efeito, ainda que não
pertence à razão, a ira deixa-se algumas vezes governar por esta
faculdade superior, que a contém em justos limites; como, por
exemplo, quando alguém se irrita a propósito, com medida e por
uma causa que o merece. Então longe de ser pecado, a ira é um ato
de virtude, um zelo generoso: o que fez dizer a um filósofo que a
verdadeira mansidão não consiste em nunca irar-se. Outras vezes a
ira recusa obedecer aos conselhos da razão, e permanece toda
debaixo do império da sensibilidade: neste caso somente é que ela
se torna um pecado; mas esse pecado ora é venial, ora mortal,
segundo o grau de força do movimento apaixonado que o produz. O
pecado é mortal ou por sua natureza, ou pelas circunstâncias. O
homicídio parece ser um pecado mortal por sua natureza, porque é
diretamente oposto ao preceito divino e, por conseguinte, o
consentimento que a razão presta a execução de semelhante crime
é também um pecado mortal por sua natureza, porque se o ato é
mortal, a intenção que precede o ato deve sê-la igualmente. Mas,
pode acontecer que um ato criminoso seja pecado mortal por sua
natureza, e que todavia o movimento apaixonado que excita-a
cometê-lo, não seja pecado mortal; e é o que sucede quando esse
movimento apaixonado não obtém o consentimento da razão.
Assim, quando um movimento de concupiscência nos impele a
buscar prazeres criminosos, e a razão lhes recusa sua aprovação,
esse movimento apaixonado não é mais um pecado mortal. O que
dizemos da concupiscência, podemos dizê-lo da ira. A ira é com
efeito o movimento apaixonado que impele o homem a vingar-se de
uma injúria recebida, é esta sua verdadeira definição. Se, pois, este
movimento apaixonado tem um tal caráter de violência, que a razão
não pode resistir a seu arrastamento, e vê-se forçado a obedecer
-lhe, então ele toma o caráter de pecado mortal. Se, pelo contrário,
não é suficiente violento e tirânico para arrancar à razão seu
consentimento e a sua aprovação, em tal caso fica-lhe o caráter de
pecado venial. Acrescentemos que se um movimento apaixonado
excita alguém a um ato que não é pecado mortal por sua natureza,
ele conserva sempre o caráter de pecado venial, ainda que obtenha
o consentimento da razão. Por consequência, a ira que Jesus Cristo
qualificou de crime dizendo Todo o que se irrita contra seu irmão
será réu no juízo, deve entender-se de um movimento apaixonado
em que consentia a razão, e tendente a ofender o próximo, o que
lhe dá o caráter de pecado mortal. Devemos pois evitar a ira porque
é um pecado: De tudo quanto se comete fará Deus dar conta em
seu juízo em atenção de todo o erro, seja boa ou má essa coisa,
qualquer que for.304 Devemos ainda evitar a ira para conservarmos
300 Mt 5,21s.
301 Ex 21,14.
302 Tg 1,19.
303 Mq 7,9.

304 Ecl 12,13s.

essa independência cujo amor é inato ao coração do homem, assim


como o é o ódio da escravidão. Ora, o que se abandona à sua ira
não é senhor de si, não é livre: Quem poderá, diz o autor dos
Provérbios, resistir ao ímpeto de um homem concitado? 305A pedra
é pesada, e a areia é carregada, mas a ira do insensato pesa mais
que uma e outra.306

113. Dissemos que o homem deve primeiro que tudo ter cuidado em
não encolerizar-se sem reflexão. Em segundo lugar, ele deve
acautelar-se para não conservar longo ressentimento: Se vos
irardes, diz o salmista, seja sem pecar.307 Não se ponha o sol sobre
a vossa ira,308 acrescenta o Apóstolo. E por que razão? Nosso
Senhor nos explica no Evangelho, Concerta-te sem demora com o
teu adversário, enquanto estás posto a caminho com ele; para que
não suceda, que ele te entregue ao Juiz, e que o Juiz te entregue ao
seu ministro; e sejas mandado para a cadeia. Em verdade te digo,
que não sairás de lá enquanto não pagares o último centavo.309

114. Em terceiro lugar, deve o homem acautelar-se a fim de que sua


ira não degenere em um sentimento mais criminoso ainda, isto é,
em ódio. Por quanto, há esta diferença entre a ira e o ódio, que a ira
é uma paixão repentina e pouco duradoura, ao passo que o ódio é
uma paixão perseverante e vivaz, sendo isto o que lhe dá o caráter
de pecado mortal: Todo aquele que odeia seu irmão, diz São João, é
homicida.310 E a razão é que despojando-se da caridade, mata o
seu próximo, e mata-se a si mesmo. Não tenhais demandas, diz
também Santo Agostinho, ou se as tiverdes terminai-as o mais
prontamente possível, para que a ira que nos anima não degenere
em ódio; nem faça de uma patinha uma trave, e não torne vossa
alma homicida. O homem iracundo, diz o autor dos provérbios,
provoca rixas.311 Maldito seja o seu furor, diz-se no Gênesis, porque
é obstinado, e maldita sua indignação porque é inflexível.312
305 Pr 27,4.
306 Pr 27,3.
307 Sl 4,5.
308 Ef 4,26.
309 Mt 5,24ss.

115. Em quarto lugar, deve o homem acautelar-se para que a sua ira
não se manifeste por palavras amargas e violentas: O fátuo, diz o
autor dos Provérbios, mostra logo a sua ira;313 e pode mostrá-la de
dois modos por injúrias, e por uma linguagem cheia de orgulho e
arrogância. Quanto ao primeiro, diz Nosso Senhor: O que tratar seu
irmão de tolo será réu do fogo do inferno. Quanto ao segundo diz
Ele: O que disser a seu irmão: racá, será réu no conselho.314A
resposta branda, diz o autor dos provérbios, quebra a ira; a palavra
dura suscita o furor.315

116. Em quinto lugar, o homem deve acautelar-se para que sua ira
não se manifeste por ações. Todas as nossas obras devem ser
inspiradas pela justiça e pela misericórdia; ora, a ira acaba com a
misericórdia e com a justiça. A ira do homem, segundo expressão
de São Thiago, não realiza as obras de Deus.316Ainda que um ho
310 1Jo 3,15.
311 Pr 15,18.
312 Gn 49,7.
313 Pr 12,16.
314 Mt 5,22.
315 Pr 15,1.
316 Tg 1,20.

mem irritado quisesse fazer o bem, não o poderia: e eis aí porque


um filósofo dizia ao seu escravo que tinha cometido uma falta: Eu te
puniria se não estivesse irritado. A ira não tem misericórdia, diz o
autor dos provérbios, nem o furor que rompe.317 Cometeram o
homicídio em seu furor,318 diz-se no Gênesis. Jesus Cristo pois teve
razão quando nos proibiu não só o homicídio, mas também a ira,
porque esta é a origem daquele. Um bom médico não se contenta
de fazer desaparecer os sintomas exteriores do mal, mas o destrói
ainda em sua raiz, a fim de que não apareça mais. Jesus Cristo que
é o grande médico das almas, quis por isso destruir em nós os
princípios do pecado, e sobretudo a ira, que é o princípio do
homicídio.
317 Pr 27,4. 318 Gn 49,6.

IX DO SEXTO PRECEITO DA LEI

CAPITULO 9
DO SEXTO PRECEITO DA LEI
117. Não cometerás adultério,319 etc. Depois de ter proibido o
homicídio, o legislador supremo nos proíbe o adultério, e
consequentemente, pois que o homem e a mulher, graças ao
casamento, tornam-se um só e mesmo corpo: Serão dois, diz o
Senhor, em uma só carne.320 Por conseguinte, depois do assassino
que ataca o próximo em sua pessoa e vida, o inimigo mais perigoso
para o homem é o libertino que o ataca na pessoa e na hora
daquela que é sua metade. O adultério é igualmente proibido ao
marido e à mulher. Entretanto, convém considerá-lo primeiramente
em relação à mulher, porque esse crime parece maior quando é ela
que o comete. A esposa adúltera comete três pecados gravíssimos,
que são indicados nestes termos:Toda a mulher que deixa seu
marido, torna-se primeiramente desobediente à lei do Altíssimo; em
segundo lugar peca contra seu marido; enfim viola a castidade
conjugal.321

118. Ela peca antes de tudo por incredulidade, isto de muitas


maneiras. Porquanto, não acreditou na palavra do Senhor que
proibiu o adultério; obra contra a ordem de Deus, que quer que a
união do homem e da mulher seja indissolúvel. Não separe o
homem o que Deus ajuntou,322 diz Ele em São Mateus; obra contra
os estatutos da Igreja, que abençoou seu casamento; viola o
juramento que pronunciou à face do Céu tomando a Deus por
testemunha e garante da fé jurada. O Senhor, diz o profeta, foi
testemunha entre ti e a esposa da tua mocidade, que depois
desprezastes.323 Assim a mulher peca por incredulidade obrando
contra a lei divina, contra os estatutos da Igreja, e contra a
santidade do sacramento estabelecido pelo próprio Deus.
319 Ex 20,14.
320 Gn, 2,24.
321 Eclo 23,32s.
322 Mt 19,6.
119. Em segundo lugar peca por traição, porque abandonou seu
esposo. A mulher, diz o Apóstolo, não tem poder no seu corpo, mas
tem-no o marido.324 Por isso não lhe é permitido guardar a
continência sem o consentimento daquele que tem todo o poder
sobre sua pessoa. Se ela comete portanto o adultério, torna-se
criminosa de traição, entregando-se a outrem, bem como o servo
infiel entregando-se a novo senhor Deixa o guia de sua puberdade,
e se tem esquecido do pacto do seu Deus.325
120. Em terceiro lugar, peca pela comissão de um furto, porque
introduz na casa conjugal os filhos de um estranho, e lhes entrega a
herança paterna, o que é um grande furto que faz a seus filhos
legítimos. A mulher adúltera deveria, pelo menos, diminuir a
enormidade da sua culpa, dedicar ao estado religioso os frutos de
seu amor criminoso, ou tomar outro qualquer expediente lícito, a fim
de que eles nunca tivessem parte na sucessão de seu marido.
Assim pois a mulher adúltera é criminosa de sacrilégio, de traição e
de furto.
323 Ml 2,14.
324 1Cor 7,4.
325 Pr 2,17.

121. O marido adúltero não é menos criminoso, bem que muitas


vezes seja indulgente para com suas próprias fraquezas e digo que
não é menos criminoso por três razões.

122. Primeira razão.A mulher tem sobre ele os mesmos direitos que
ele sobre a mulher. O marido, diz São Paulo, não tem poder sobre o
seu corpo, mas tem-no a mulher.326Assim como esposos, o homem
e a mulher acham-se em mútua dependência um do outro, e os
deveres do casamento são os mesmos para ambos. Para significar
essa dependência mútua dos esposos, é que Deus formou a mulher
de uma das costelas do homem, e não de outra qualquer parte do
corpo humano. O casamento nunca foi o que deve ser senão depois
da promulgação da lei cristã. Entre os judeus era permitido a um
homem ter muitas mulheres, mas não o era a uma mulher ter muitos
maridos. Não havia portanto igualdade de direitos e de deveres
entre o esposo e a esposa.

123. Segunda razão: a força é o atributo do homem, e a fraqueza o


da mulher. A paixão, por assim dizer, própria da mulher, é o amor; a
fragilidade deste sexo é pois uma espécie de escusa a suas
faltas.327 E o marido que exige de sua mulher uma fidelidade que
ele mesmo não quer guardar, é um tirano injusto.

124. Terceira razão. O homem tem autoridade sobre a mulher, e é o


seu chefe. Por isso devem as mulheres, segundo o preceito do
Apóstolo, guardar respeitoso silêncio na Igreja, e contentarem-se
326 1Cor 7,4.
327 1Pd 3,7.

com interrogar seus maridos na casa conjugal.328 O homem tem


pois a missão de guiar a mulher, de esclarecê-la com suas luzes; e
eis aí porque foi a ele que Deus deu seus preceitos e suas leis. Ora,
o desprezo das leis e dos preceitos de Deus é mais criminoso em
um sacerdote do que em um leigo, mais em um bispo do que em um
simples sacerdote. Por quanto os ministros da Religião tem a
missão de instruir os outros homens, e esta missão é um dever mais
rigoroso para aqueles que estão mais elevados na hierarquia
eclesiástica. Da mesma maneira o esposo sendo o guia e o chefe
da esposa, é mais criminoso do que ela em calcar aos pés a
santidade do casamento cometendo um adultério. Entretanto,
atendam bem às mulheres, e não esqueçam o preceito que Jesus
Cristo lhes deu: Mulheres obedecei aos vossos maridos, fazei tudo
que eles vos ordenarem, porém guardai-vos de seguir os maus
exemplos que vos derem.329

125. Não cometerás adultério. Dissemos que este preceito refere-se


tanto ao marido como à mulher. Acrescentemos que certas pessoas,
não obstante reconhecerem que o adultério é um crime, com tudo
não acreditam que a simples fornicação seja um pecado mortal. Mas
esta opinião é destruída por estas palavras de São Paulo: Deus
julgará os fornicários e os adúlteros;330 e por esta outra passagem
do mesmo Apóstolo: Não vos enganeis, nem os fornicários, nem os
adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas hão de possuir o
reino de Deus.331 Ora, a única coisa que pode fechar ao homem a
entrada do reino celeste é um pecado mortal; por consequência a
simples fornicação é um pecado mortal. Mas, direis vós, como a
simples fornicação pode ser pecado mortal, pois que ela não
mancha como o adultério o corpo de uma esposa? A isto respondo
que, se não mancha o corpo de uma esposa, mancha o corpo de
Jesus Cristo, que de nós se apossa no momento do batismo. Se
pois é um crime desonrar a pessoa do próximo, muito maior crime é
ainda ultrajar a Cristo mesmo. Não sabeis, diz São Paulo aos fiéis,
que os vossos corpos são membros de Cristo? E como haveis de
fazer dos membros de Cristo os membros de uma vil prostituta,
manchando-os pela fornicação? Longe de vós semelhante
pecado.332
328 1Cor 14,35.
329 Mt 23,3.
330 Hb 13,4.
331 1Cor 6,9.

126. É portanto heresia dizer que a simples fornicação não é pecado


mortal. Digamos ainda que o preceito que nos ocupa, se o
interpretarmos em seu sentido verdadeiro e completo, não proíbe
somente o adultério, mas também todos os prazeres carnais, exceto
os que o casamento tem legitimado. Acrescentemos além disto que
segundo certas pessoas, a união dos sexos no casamento não é
isenta de pecado, mas esta doutrina é ainda uma heresia. Seja por
todos tratado com honra o matrimônio, diz o Apóstolo, e o leito sem
mácula.333 Algumas vezes a união dos sexos no casamento, longe
de ser pecado, é mesmo uma obra meritória; é o que sucede
quando os esposos têm a caridade. Com efeito quando ela é
acompanhada da intenção de aumentar as criaturas de Deus
procriando filhos, toma o caráter de um ato de virtude; quando
332 1Cor 6,15.
333 Hb 13,4.

é acompanhada da intenção de cumprir um dever, conserva ainda o


caráter de um ato de justiça. Entretanto, ela pode tornar-se
conforme as circunstâncias, pecado venial ou mortal. Quando não
tem outro fim senão satisfazer os apetites grosseiros da carne, mas
sem degenerar em libertinagem, tem o caráter de pecado venial;
quando excede as necessidades da natureza e os limites severos
do casamento, toma caráter de pecado mortal. Digamos agora
porque o adultério e a fornicação são proibidos. Há muitos motivos
para esta proibição.

127. Primeiro motivo. A libertinagem perde a alma: O esposo


adúltero, diz o autor dos provérbios, perde sua alma por causa da
fraqueza de seu coração.334 Esta expressão – fraqueza de seu
coração – significa a covarde complacência que o espírito tem para
com a carne.

128. Segundo motivo. A libertinagem merece a morte. O esposo


adúltero deve morrer, segundo o preceito da lei mosaica. Ele pode
escapar ao castigo nesta vida; mas esta impunidade é uma
desgraça para ele; por quanto os castigos sofridos com resignação
sobre a terra alcançam ao criminoso a remissão de suas culpas.
Esta impunidade, além disto, não será de longa duração; e se ele
pode subtrair-se à justiça humana, não evitará de certo a justiça
divina.

129. Terceiro motivo. A libertinagem é causa de ruína. Assim o filho


pródigo de que se fala no Evangelho dissipou todo o seu patrimônio,
vivendo na desordem e na devassidão. Não te entregues às
voluptuosidades dos sentidos, diz o Eclesiástico, para que te não
deites a perder a ti e a tua herança.335
334 Pr 6,32.
130. Quarto motivo. A libertinagem avilta até as inocentes vítimas
que tiraram a vida desta fonte impura. Os filhos dos adúlteros, diz
Salomão, não prosperarão, e a linhagem do tálamo iníquo será
exterminada. E, ainda quando forem de larga vida, serão reputados
como coisa de nenhuma entidade, e a sua última velhice será sem
honra.336 Nunca um bastardo é promovido às dignidades
eclesiásticas, e quando muito pode-se, sem desonra para a Igreja,
deixá-los no último grau da clericatura.

131. Quinto motivo. A libertinagem é uma desonra para os que se


entregam a ela, e especialmente para as mulheres. Toda a mulher
que é prostituta, diz o Eclesiástico, será pisada como o esterco em o
caminho.337 E quanto ao homem, diz Salomão, que ele ajunta para
si a infâmia e a ignomínia, e não se apagará o seu opróbrio.338 São
Gregório também diz que os pecados da carne são mais infames e
menos condenáveis do que os do espírito. E a razão é porque eles
nos rebaixam até a ordem dos brutos, de sorte que o homem, neste
estado de abjeção, merece mais desprezo do que censura. O
homem, quando estava na honra não o entendeu: foi comparado
aos brutos irracionais, e se fez semelhante a eles.339
335 Eclo 9,6.
336 Sb 3,16s.
337 Eclo 9,10.
338 Pr 6,33.
339 Sl 48,21.

X DO SÉTIMO PRECEITO DA LEI

CAPÍTULO 10
DO SÉTIMO PRECEITO DA LEI
132. Não furtarás.340 O legislador supremo nos impôs sobre todas
as coisas a lei de não ofendermos ao nosso próximo. Ele nos proibiu
primeiramente que o atacássemos em sua pessoa, Não matarás, tal
é o primeiro artigo da lei. Proibiu-nos depois que o atacássemos na
pessoa que mais de perto lhe toca, e que é a sua metade: Não
cometerás adultério.Tal é o segundo artigo da lei. Depois nos proibiu
que o atacássemos em seus bens: Não furtarás, tal é o terceiro
artigo da lei. Digamos que este último artigo diz respeito a todo o
modo injusto de aquisição. Há muitas maneiras de furtar.

133. Primeiramente, furta-se quando se apossa às escondidas do


que pertence a outro: Se o pai de família soubesse a que hora tem
que vir o ladrão, etc.341 Este modo de furtar é tão vil quanto
criminoso; é uma espécie de traição; Sobre o ladrão está a
confusão.342

134. Em segundo lugar, furta-se tirando abertamente e pela força o


que se quer possuir. Este gênero de furto é ainda mais criminoso
pela audácia que revela, e o nome de salteadores infama aqueles
que o cometem: Fizeram violência, diz Jó, roubando aos pupilos.343
Entre esses tais se devem contar os maus príncipes e os maus reis.
Um profeta os comparou a leões que procuram a presa rugindo.344
E de certo merecem mais o nome de salteadores e de tigres que o
de príncipes e de reis; pois fazem sentar consigo o crime sobre esse
trono em que Deus lhes manda que façam sentar a justiça;
revoltam-se contra o Soberano dos Céus pelo poder do qual reinam
e governam.345 Umas vezes eles empregam a astúcia, outras vezes
a força, outras a autoridade das leis para despojarem; Ai dos que
estabelecem leis iníquas,346 diz Isaías. E Santo Agostinho também
diz que todo o imposto que não é ordenado pela justiça é um furto
feito aos pobres, e acrescenta: O que é a realeza senão um
latrocínio?
340 Ex 20,15.
341 Mt 24,43.
342 Eclo 5,17.

135. Em terceiro lugar, furta-se não pagando a cada um o que lhe é


devido. Assim é cometer um furto não pagar o trabalho do jornaleiro,
não dar a um príncipe, a um prelado, a um simples clérigo o que se
é obrigado a dar-lhe: Dai a cada um o que lhe é devido, diz São
Paulo, a quem tributo, tributo, a quem imposto, imposto.347 Não
devemos uma recompensa aos reis que velam pela nossa
segurança e tranquilidade?

136. Em quarto lugar, furta-se cometendo uma fraude no comércio;


e é por isto que se diz no Deuteronômio: Não te servirás de pesos
diferentes.348 E no Levítico: Não façais coisa injusta no juízo, na
vara, no peso, na medida. Seja justa a balança, e iguais os pesos;
justo o alqueire, e justo o sextário.349Ter um peso e outro peso, diz o
autor dos provérbios, é abominação diante de Deus; a balança
enganosa não é boa.350 O preceito que proíbe o homem furtar o
bem de outro é a condenação desses taberneiros que ávidos de
ganho, falsificam as bebidas que vendem; e é também a
condenação dos usurários; Senhor, diz o Salmista, quem habitará
no teu tabernáculo? O que não deu à usura o seu dinheiro.351 É,
enfim, a condenação de todos que se entregam a um tráfico injusto
e fraudulento. Mas, dirão, porque não se há de vender o uso do
dinheiro, como se vende o de um cavalo ou de uma casa?
Responde-se a isto que não é permitido vender duas vezes o
mesmo objeto. Ora, em uma casa há duas coisas a considerar, o
uso e a propriedade. Estas duas coisas são diferentes, e eu posso
vender o uso sem vender a propriedade; o mesmo sucede com
todos os objetos do comércio que dão lugar a semelhante distinção;
mas há objetos cujo valor consiste inteiramente no uso que se faz
deles. Não se pode pois vender o seu uso separadamente da
propriedade, como se pode fazê-lo com uma casa. Assim o dinheiro
não tem valor senão enquanto serve para as nossas despesas e
circula no comércio; o trigo não tem valor senão em quanto serve
para o nosso alimento; por conseguinte vender separadamente o
uso e a propriedade desses objetos é vender duas vezes a mesma
coisa, pois que eles não tem outro preço senão o que é inerente a
seu gozo.
343 Jó 24,9.
344 Sf 3,3.
345 Pr 8,15.
346 Is 10,1.
347 Rm 13,7.
348 Dt 25,13.
349 Lv 19,35s.
350 Pr 20,23.
351 Sl 14,5.

137. Em quinto lugar, furta-se comprando as dignidades ou


temporais, ou espirituais. Quanto às primeiras, diz Jó: O ambicioso
vomitará as riquezas que devorou, e Deus as arrancará do
ventre.352 Toda a usurpação pois, quer de um reino, quer de uma
província, quer de um feudo, é um furto, e os usurpadores são
obrigados a restituir a quem for de direito o que adquiriram pela
violência e a injustiça. Quanto às segundas, lemos no Evangelho:
Em verdade, em verdade vos digo; que o que não entra pela porta
no aprisco das ovelhas, mas sobe por outra parte, esse é ladrão e
roubador.353 Por consequência, a simonia é um furto.

138. Não furtarás, etc. Este preceito, como dissemos, proíbe toda a
espécie de aquisição injusta; e muitas razões nos induzem a
observá-la.

139. A primeira é a gravidade da culpa que ele condena, a qual é


assemelhada ao homicídio:A vida dos pobres é o pão de que
necessitam; aquele que lhe defrauda é um homem de sangue.354
Aquele que derrama sangue e defrauda o jornaleiro são irmãos.355

140. A segunda é a grandeza do perigo que acompanha semelhante


culpa. Não há pecado tão perigoso como o furto. Com efeito,
nenhum pecado é perdoado antes que o criminoso tenha feito a
reparação, e se ache arrependido.
Ora, qualquer arrepende-se bem depressa de todos os outros
pecados, por exemplo, do homicídio quando a ira tem cessado, da
352 Jó 20,15.
353 Jo 10,1.
354 Eclo 34,25.

fornicação quando o fogo da concupiscência tem-se extinguido. Mas


quanto ao furto, bem que se possa arrepender dele algumas vezes,
todavia não se efetua facilmente a reparação, sobretudo sendo-se
obrigado a restituir não só o que se furtou, mas ainda a repor o dano
que pode resultar do furto, além do mesmo furto. Eis aí porque se
diz na Escritura Santa: Ai daquele que acrescenta o que não é seu!
Até quando amontoa ele também contra si o denso lodo?356 Este
denso lodo exprime os embaraços que o cercam, e que serão
obstáculo à reparação de sua culpa.

141. A terceira razão que deve afastar o homem do furto, é a


inutilidade dos bens mal adquiridos; eles de nada servem debaixo
do ponto de vista espiritual: Os tesouros da impiedade de nada
servem.357 Com efeito, as riquezas, debaixo do ponto de vista
espiritual devem ser empregadas no alívio dos desgraçados e em
obras piedosas: O resgate da vida do homem são as suas
riquezas.358 Mas essas obras piedosas são sem mérito quando
provém de uma fonte corrompida: Amo a justiça, diz o Senhor, e
aborreço os holocaustos que vem de rapinas.359Aquele que oferece
sacrifício da substância dos pobres, é como o que degola um filho
na presença de seu pai.360 Esses bens não são mais proveitosos
debaixo do ponto de vista temporal, pois que eles duram pouco:Ai
daquele que ajunta bens por uma avareza criminosa e que julga
livrar-se da mão do mal.361Aquele que amontoa riquezas por meio
de usuras e interesses injustos, ajunta-as para o que há de ser
liberal com os pobres.362 Os bens do pecador estão reservados
para o justo.363
356 Hab 2,6.
357 Pr 10,2.
358 Pr 13,8.
359 Is 61,8.

142. A quarta razão, que deve afastar o homem de todo o meio de


aquisição injusta, é o mal que daí resulta para si; porquanto os bens
mal adquiridos fazem perder até os que se possuem legitimamente.
Uma ruína completa aguarda aquele que quer aumentar sua fortuna
por meios criminosos; A chama devorará a casa dos que
enriquecem pela rapina.364Acrescentemos que eles não se perdem
a si só, mas perdem também aos seus filhos, porque estes são
obrigados a restituir o que seus pais injustamente adquiriram.
361 Hab 2,9.
362 Pr 28,8.
363 Pr 13,22.
364 Jó 15,34.

XI DO OITAVO PRECEITO DA LEI

CAPÍTULO 11
DO OITAVO PRECEITO DA LEI
143. Não dirás falso testemunho contra teu próximo.365 Até aqui
proibiu-nos que ofendêssemos nosso próximo por ações; agora
proíbe-nos que o ofendamos por palavras. Tal é o sentido deste
preceito: Não dirás falso testemunho contra teu próximo. A violação
dele pode ter lagar ou em juízo, ou no comércio ordinário da vida.

144. Em juízo pode este preceito ser violado de três maneiras, visto
que pode sê-lo por três pessoas; a saber, o acusador, a testemunha,
e o juiz. É violado pelo acusador quando a acusação intentada
perante os tribunais é falsa; Não serás delator de crimes, nem
mexeriqueiro entre o povo.366 Mas, note-se que assim como se não
deve acusar falsamente o próximo, assim também não se deve calar
a verdade a seu respeito: Se teu irmão pecar contra ti, vai, e corrige-
o,367 diz-se no Evangelho. É violado o preceito pela testemunha,
quando o depoimento dado em apoio da acusação ou da defesa,
não exprime a verdade: A testemunha falsa não ficará impune,368
diz o autor dos Provérbios. E com efeito, é este um crime que
encerra em si todos os outros de que precedentemente temos
falado, por quanto, os que o cometem, merecem umas vezes o
nome de homicidas, outras vezes o de ladrões, etc. Eles devem
sofrer a pena a que os condena a lei mosaica: Quando depois de
exatíssima averiguação tiveram conhecido que a testemunha falsa
se arrojou a dizer uma mentira contra seu irmão, tratá-lo-ão como
ele tinha intento de tratar a seu irmão. Não terás misericórdia com
ele: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé
por pé.369 O homem que diz falso testemunho contra teu próximo, é
um dardo, é uma espada, é uma flecha penetrante,370 diz o autor
dos Provérbios. O preceito é violado pelo juiz, quando a sentença
que ele pronuncia não é justa; Não julgarás injustamente, diz-se no
Levítico, não tenhas respeito à pessoa do pobre, nem atendas a
casa do poderoso. Julga teu próximo segundo a justiça.371
365 Ex 20,16.
366 Lv 19,16.
367 Mt 18,15.
368 Pr 19,9.

145. No comércio da vida pecam contra o preceito que nos ocupa,


cinco espécies de homens. Primeiramente, os que dilaceram a
reputação de outrem Os detratores são inimigos de Deus,372 diz
São Paulo. E se o Apóstolo assim se exprime, é porque nada é tão
caro ao homem como a sua fama: Melhor é o bom nome do que os
bálsamos preciosos.373 Mais vale o bom nome, do que muitas
riquezas.374 Ora, o veneno da calúnia mata a reputação. Aquele que
detrai ocultamente de outrem, não é menos do que uma serpente
que morde à calada.375 Não há pois esperança de
369 Dt 19,18ss.
370 Pr 25,18.
371 Lv 19,15.
372 Rm 1,30.
373 Ecl 7,2.
374 Pr 22,1.
375 Ecl 10,11.

salvação para os que cometem este infame pecado, a menos que


restituam a suas vítimas o tesouro da fama que lhes roubaram. Em
segundo lugar, pecam contra o preceito divino os que ouvem
complacentemente o mal que se diz do seu próximo: Cerca os teus
ouvidos com espinhos, diz o Eclesiástico, não queiras ouvir a língua
danada, e põe na tua boca portas e fechaduras.376 Não se deve dar
ouvidos complacentes à maledicência e à calúnia; deve-se pelo
contrário mostrar ao maldizente e ao caluniador um semblante onde
a severidade pinte a indignação. O vento do aquiIão dissipa as
chuvas, e o rosto triste a língua do maldizente.377 Em terceiro lugar
pecam contra o preceito os enredadores, que gostam de repetir o
que ouvem. Seis são as coisas que o Senhor aborrece, e a sua
alma detesta a sétima, isto é, o que semeia a discórdia entre os
seus irmãos.378 O mexeriqueiro e o homem de duas línguas é
maldito; porque porá em perturbação a muitos que tem paz.379 Em
quarto lugar, pecam contra o preceito os lisonjeiros ou aduladores;
O pecador é louvado nos seus desejos criminosos, diz o Salmista, e
o iníquo é abençoado.380 Povo meu, diz o Senhor, os que te
chamam feliz, esses mesmos te enganam.381 O justo, diz o Rei
profeta, me corrigirá, e me increpará com misericórdia; mas o azeite
do pecador não chegue a ungir a minha cabeça.382 Em quinto lugar,,
pecam contra o preceito divino os que murmuram continuamente; e
é esta uma falta que os pobres cometem muitas vezes contra o
poder que os governa. Não murmureis,383 diz São Paulo aos fiéis.
Guardai-vos da murmuração, diz Salomão, porque ela nada
aproveita.384 O príncipe mitigar-se-á pela paciência, e a língua
branda quebrantará a dureza.385
376 Eclo 28,28s.
377 Pr 25,23.
378 Pr 6,16.
379 Eclo 28,15.
380 Sl 9,24 ou Sl 10,3.
381 Is 3,12.
382 Sl 140,5.

146. Não dirás falso testemunho, etc. Neste preceito proíbe-se ao


homem toda a espécie de mentira. Guarda-te de toda a mentira, diz
o Eclesiástico, porque nada é mais funesto do que o hábito de
mentir.386 E isto por quatro razões. Primeiramente, o hábito de
mentir assemelha o homem ao demônio. O mentiroso é filho do
diabo. Pela linguagem do homem conhece-se sua religião e sua
pátria: A tua linguagem tornou-te conhecido,387 diz o Evangelho.
Assim, certos homens são da família do demônio, e são chamados
filhos do diabo porque falam uma linguagem mentirosa, e porque
Satanás é o espírito do erro e o pai da mentira. Ele mentiu aos
nossos primeiros pais, dizendo-lhes: não morrereis.388 Outros são
filhos de Deus porque falam uma linguagem verdadeira, e porque
Deus é a verdade mesma. Em segundo lugar o hábito da mentira
tende à dissolução da sociedade. O laço que une os homens, e os
faz viver juntos, é a confiança, e não poderia existir confiança se a
franqueza e a verdade fossem banidas da terra. Renunciando à
mentira, diz São Paulo, fale cada um a seu próximo a verdade, pois
somos membros uns dos outros.389 Em terceiro lugar, o hábito da
mentira faz perder ao homem a reputação. O que tem este funesto
hábito, não inspira mais confiança ainda que diga a verdade: Que
coisa será limpada por um imundo? E pelo mentiroso que verdade
será dita?390 Em quarto lugar, o hábito de mentir é a perdição da
alma. O mentiroso mata sua alma,391 diz Salomão. Senhor, diz o
salmista, tu perderás a todos que proferem a mentira.392 A mentira
portanto pode ser pecado mortal.
383 1Cor 10,10.
384 Sb 1,11.
385 Pr 25,15.
386 Eclo 7,14.
387 Mt 26,73.
388 Gn 3,4.

147. É um pecado mortal mentir nas coisas que são de fé, e é o que
sucede aos prelados, aos pregadores, e aos mestres que não
ensinam a verdade que tem por missão ensinar. Semelhante
mentira é a mais grave de todas. Tereis entre vós, diz o Apóstolo
São Pedro, mestres mentirosos, que introduziram na Igreja
doutrinas funestas, e criminosas heresias.393 Certos homens que
têm missão de ensinar a verdade ensinam algumas vezes a mentira
a fim de parecerem doutos.A eles é que se dirigem estas palavras
de Isaías: De quem fizestes vós escárnio? Contra quem abristes a
boca, e deitastes a língua fora? Por ventura não sois vós uns filhos
malvados, uma geração maldita?394 Mente-se também alguma vez
para ofender ao próximo. Não mintais uns aos outros,395 recomenda
o Apóstolo. E estas duas espécies de mentira também são pecados
mortais.
389 Ef 4,25.
390 Eclo 34,4.
391 Sb 1,11.
392 Sl 5,7.
393 2Pd 2,1.
394 Is 57,4.
395 Cl 3,9.
148. A mentira tem o caráter de pecado venial quando não tem por
fim ensinar o erro e ofender ao próximo. Este gênero de pecado
pode ser cometido de muitas maneiras. Mente-se algumas vezes
por excesso de humildade, e principalmente na confissão. A este
respeito, observa Santo Agostinho que se o homem deve guardar
-se de calar o que fez, deve igualmente guardar-se de dizer o que
não fez. A caso necessita Deus de vossas mentiras?396 Diz Jó. Há
pessoas, diz o Eclesiástico, que se humilham maliciosamente, e o
seu interior está cheio de dolo; e há justos que se submetem
excessivamente com uma profunda humilhação.397 Pode-se mentir
por uma falsa vergonha, e é o que acontece, quando, depois de ter-
se avançado alguma falsidade, adverte-se no erro, e tem-se
vergonha de o retratar. Não contradigas de modo algum a palavra
da verdade, diz o Eclesiástico, e confunde-te da mentira em que
tenhas cabido por ignorância.398 Pode-se mentir por interesse
pessoal; é o que acontece quando se recorre à mentira para obter o
que se deseja, ou para evitar o que se teme. Pusemos nossa
esperança na mentira, e lhe pedimos a nossa salvação399, diz o
profeta Isaías. Aquele que funda sua segurança na mentira, nutre-se
do vento,400 diz o autor dos Provérbios. Pode-se mentir em
vantagem de um terceiro, e é o que acontece quando se recorre à
mentira para livrar alguém da morte, de um perigo, de uma
desgraça. E ainda disto devemos nos guardar, segundo Santo
Agostinho. Não faças acepção de pessoas contra a tua salvação,
nem te deixes levar para a mentira à custa de tua alma.401 Enfim,
pode-se mentir por brincadeira; mas convém abster-se de
semelhante divertimento, porque o hábito de mentir brincando, pode
conduzir a mentiras sérias, e fazer cair em pecado mortal. O feitiço
das inépcias escurece o bem.402
396 Jó 13,7.
397 Eclo 19,23s.
398 Eclo 4,30.
399 Is 28,15.
400 Pr 11,29.
401 Eclo 4,24s.
402 Sb 4,12.
XII DO NONO PRECEITO DA LEI

CAPÍTULO 12
DO NONO PRECEITO DA LEI
149. Não cobiçarás as coisas do teu próximo.403 Há esta diferença
entre a lei divina e a lei humana, que a lei humana julga somente as
ações e as palavras, e a lei divina julga de mais os pensamentos, a
razão disto é que o homem só considera as aparências exteriores,
ao passo que Deus vê ao mesmo tempo o que está fora de nós e o
que se passa no íntimo de nossa alma. Deus de meu coração,404
diz o Salmista. O homem, diz o livro de Samuel, vê o que está
patente, mas o Senhor olha para o coração.405Temos falado até
aqui dos preceitos relativos às ações e palavras; resta-nos por tanto
falar dos que são relativos aos pensamentos. Aos olhos de Deus a
intenção é reputada como fato, e eis aí porque nos proíbe que
cobicemos as coisas alheias, depois de nos ter proibido que as
tiremos, e isto por muitas razões.

150. Primeira razão. A cobiça não conhece limites, seus desejos são
infinitos. Ora, todo o homem sábio deve saber moderar-se e conter-
se a propósito, ou antes ninguém deve internar-se em um caminho
sem fim e sem saída. O avarento, diz o Eclesiastes, nunca, jamais
se fartará de dinheiro.406 Ai de vós, diz também o profeta Isaías, que
ajuntais casa a casa, e ides acrescentando campo a capo.407 E
porque são infinitos os desejos dos homens? Porque seu coração é
destinado a receber a Deus. Senhor, diz Santo Agostinho, vós nos
fizestes para vós, e nosso coração é inquieto, enquanto não
descansa em vós.408 Por consequência tudo que não é Deus, é mui
pouca coisa para preencher a imensidade de nosso coração; só Ele
é o que enche de bens o nosso desejo,409 segundo a expressão do
Salmista.
403 Ex 20,17.
404 Sl 72,26.
405 1Sm 16,7.
406 Ecl 5,9.
151. Segunda razão.A cobiça priva-nos da felicidade, tirando-nos o
sossego. As pessoas cobiçosas são sempre atormentadas pela
ambição de adquirir o que não tem e pelo temor de perder o que
tem. A fartura do rico é a mesma que não o deixa dormir,410 diz o
Eclesiastes. Onde está o teu tesouro, aí está também o teu
coração,411 diz-se no Evangelho. E por isso comparou Jesus Cristo
aos espinhos os cuidados que nascem das riquezas, como diz São
Gregório.

152. Terceira razão. A cobiça tira toda a utilidade às riquezas; o


avarento priva-se a si mesmo e priva aos outros das vantagens da
fortuna; ele só goza dos seus tesouros contemplando-os. Ao homem
cobiçoso e tenaz de dinheiro, diz o Eclesiástico, de nada servem os
bens.412

153. Quarta razão. A cobiça aniquila a equidade. Não aceiteis


donativos, diz-se no Êxodo, porque eles fazem cegar ainda os
prudentes, e pervertem as palavras do justo.413Aquele que ama o
ouro, diz o Eclesiástico, não será justificado.414
407 Is 5,8.
408 Confissões I, 1, 1.
409 Sl 102,5.
410 Ecl 5,12.
411 Mt 6,21.
412 Eclo 14,3.

154. Quinta razão. A cobiça mata o amor de Deus e o amor do


próximo. Mata o amor do próximo, porque, segundo Santo
Agostinho, quanto mais cobiçoso é um indivíduo, tanto menos
caridade tem, e vice-versa; Não desprezes pelo ouro a teu irmão
muito amado,415 adverte o Eclesiástico. Mata o amor de Deus,
porque segundo o Evangelho, assim como não se pode servir a dois
senhores, assim também não se pode dar ao mesmo tempo o
coração a Deus e às riquezas.416
155. Sexta razão.A cobiça conduz às ações mais detestáveis;
porquanto, segundo o Apóstolo, ela é a fonte de todos os males. Se
a cobiça pois domina o homem, ela o arrasta ao homicídio, ao furto,
e a todos os crimes. E eis aí porque diz S. Paulo em uma de suas
epístolas a Timóteo: Os que querem fazer-se ricos caem na
tentação, e no laço do diabo, e em muitos desejos inúteis e
perniciosos, que submergem os homens no abismo da morte e da
perdição.417 E cumpre notar que a cobiça é um pecado mortal,
quando não é contido pela razão; mas é venial quando permanece
em limites razoáveis.
413 Ex 23,8.
414 Eclo 31,5.
415 Eclo 7,20.
416 Mt 6,24.
417 1Tm 6,9.

XIII DO DÉCIMO PRECEITO DA LEI

CAPÍTULO 13
DO DÉCIMO PRECEITO DA LEI
156. Não desejarás a mulher do teu próximo.418 São João nos diz
que todos os bens deste mundo não são mais do que objetos de
concupiscência para a carne, objetos de cobiça para os olhos, e
objetos de ambição para o espírito.419Assim, todos os objetos dos
nossos desejos estão compreendidos nestas três divisões. Duas
sortes de desejos são proibidos por este preceito; Não desejarás a
casa de teu próximo; a saber o desejo das riquezas e o desejo das
honras; o desejo de possuir a casa do próximo compreende ao
mesmo tempo estes dois desejos, estas duas paixões: a cobiça e a
ambição. A glória e a riqueza habitam em sua casa,420 diz o
Salmista. Assim a ideia da casa encerra na Escritura Santa a ideia
de riquezas e de honras, e o que deseja a casa de seu próximo é ao
mesmo tempo cúpido e ambicioso. Depois de ter proibido a cobiça e
a ambição, o Legislador supremo nos proíbe a concupiscência
carnal. Tal é o sentido deste preceito: Não desejarás a mulher de teu
próximo. Mas depois da culpa de Adão nenhum mortal está ao
abrigo da concupiscência. Só o nosso divino Salvador e a gloriosa
Virgem sua Mãe conservaram uma pureza sem mancha. A
concupiscência algumas vezes é acompanhada de um pecado
venial, outras vezes de um pecado mortal. É acompanhada de
pecado mortal quando domina o homem. Não reine o pecado em
vosso corpo mortal,421 diz o Apóstolo; e não diz – não exista o
pecado em vós; porquanto ele mesmo acrescenta. Sei que o bem
não habita em mim, isto é, em minha carne.422
418 Ex 20,17.
419 1Jo 2,16.
420 Sl 111,3.

157. Ora, o pecado reina na carne, primeiramente, quando a


concupiscência reina no coração e domina a razão. É por isso que o
Apóstolo, depois de ter dito: Não reine o pecado em vosso corpo,
acrescenta estas palavras: De maneira que obedeçam aos seus
apetites.Aquele que olhar para uma mulher cobiçando-a, já no seu
coração adulterou com ela,423 diz o Evangelho. Porquanto aos olhos
de Deus a intenção é reputada como fato.

158. Em segundo lugar, quando a concupiscência se revela por


palavras, Fala a boca do que está cheio o coração,424 diz ainda o
Evangelho. Não saia jamais da vossa boca uma só palavra má,425
diz São Paulo. Não poderiam portanto ser inocentes os que
compõem cantigas vãs; é o parecer dos próprios filósofos, segundo
os quais deviam ser expelidos das cidades os poetas que fazem
versos amatórios.

159. Em terceiro lugar, quando a concupiscência se revela por atos.


Oferecestes vossos membros, diz São Paulo, para que servissem à
imundície e à iniquidade.426Tais são os três graus da
concupiscência.Acrescentemos que se não evita este pecado sem
dificuldade, e que é preciso lutar com coragem para subtrair-se ao
seu império: É um inimigo doméstico que nos convém expelir da
nossa casa. Ora, pode-se triunfar da concupiscência de quatro
maneiras.
421 Rm 6,12.
422 Rm 7,18.
423 Mt 5,28.
424 Mt 12,34.
425 Ef 4,29.
426 Rm 6,19.

160. Primeiramente, devem-se evitar as ocasiões exteriores; por


exemplo, as más sociedades, as conversas criminosas, e em geral
todas as seduções. Não detenhas teus olhos em ver a donzela, diz
o Eclesiástico, porque não suceda que a sua beleza te seja ocasião
de queda.427 Não lances os olhos por toda a parte pelas ruas da
cidade, nem andes vagueando pelas ruas. Aparte os teus olhos da
mulher enfeitada, e não olhes criminosamente para a formosura
alheia. Por causa da formosura da mulher pereceram muitos;
porque daí é que se acende a concupiscência como fogo
devorador.428 Acaso pode o homem, diz o autor dos Provérbios,
esconder o fogo em seu seio, sem que ardam seus vestidos?429

161. Em segundo lugar, é preciso fechar o coração a todos os maus


pensamentos, porque eles produzem a concupiscência; e para
fechar o coração às imagens importunas das voluptuosidades, é
necessário recorrer às mortificações: Eu castigo meu corpo, e o
reduzo à escravidão,430 diz o Apóstolo.

162. Em terceiro lugar, devemos fortalecermos pela oração: Se o


Senhor não guardar a cidade, debalde vigiarão os que a
defendem.431 Eu sabia, diz Salomão, que de outra maneira não
podia ter continência, se Deus a não me desse.432 Esse gênero de
demônios, diz o Evangelho, não pode ser expelido senão pela
oração e o jejum.433 Com efeito, se dois adversários estiverem em
luta, e quiserdes tomar o partido de um contra o outro, ser-vos-á
necessário prestar socorro ao primeiro, e procurar enfraquecer o
segundo. Ora, entre o espírito e a carne há uma luta contínua; se
quereis portanto que o espírito triunfe é preciso que lhe presteis
socorro, e é da oração que esse socorro pode vir; é preciso ao
mesmo tempo que enfraqueçais a carne, e é pelo jejum que ela
pode ser enfraquecida.
427 Eclo 9,3.
428 Eclo 9,5ss.
429 Pr 6,27.
430 1Cor 19,17.

163. Em quarto lugar, devemos entregar-nos com ardor assíduo às


ocupações piedosas. A ociosidade é a mãe de todos os vícios,434
diz o Eclesiástico. Qual foi o crime de Sodoma? Pergunta Ezequiel,

foi a soberba, a fartura de pão, a abundância, e a


ociosidade.435 Fazei sempre alguma coisa boa, diz São
Jerônimo, a fim de que o demônio vos ache ocupado.
Ora, entre todas as ocupações a melhor, sem
contradição, é o estudo das Escrituras Sagradas.Amai o
estudo das Escrituras Sagradas, diz ainda São
Jerônimo, e não amareis os prazeres sensuais.

164. Tal é a explicação que tínhamos a dar destes dez preceitos da


lei divina, desses preceitos augustos, cuja sublimidade e
importância Nosso Senhor mesmo nos fez ver, dizendo: Se queres
entrar na vida eterna, observa os mandamentos.436 Dois preceitos
principais resumem toda a lei, a saber – o do amor de Deus e do
amor do próximo. O amor divino encerra três sortes de deveres
primeiramente ele impõe ao homem a obrigação de não adorar
senão a Deus, e é o que se nos ordena neste artigo da lei: Não
adorarás deuses estranhos. Em segundo lugar, impõe-lhe a
obrigação de honrar a Deus, e é o que se nos ordena neste artigo
da lei, Não invocarás o nome de teu Deus em vão. Em terceiro
lugar, impõe-lhe a obrigação de procurar o descanso em Deus, e é o
que se nos ordena neste artigo da lei, Lembra-te de santificar o dia
de Sábado. O amor do próximo encerra duas sortes de deveres;
primeiramente ele impõe ao homem a obrigação de prestar a cada
um a honra que lhe é devida: Honra a teu pai e a tua mãe. Em
segundo lugar impõe-lhe a obrigação de não fazer mal a outrem,
quer seja por ações, em sua pessoa, na pessoa que lhe é mais
estreitamente unida, e em seus bens: Não matarás, não cometerás
adultério, não furtarás, quer seja por palavras: Não dirás falso
testemunho contra teu próximo; quer seja enfim por pensamentos:
Não cobiçarás os bens de teu próximo; não desejarás a mulher de
teu próximo.
431 Sl 126,1.
432 Sb 8,21.
433 Mt 17,20.
434 Eclo 33,29.
435 Ez 16,49.
436 Mt 19,17.

CATEQUESE E EXAME DE CONSCIÊNCIA PARA


CONFISSÃO
ANEXO I
CATEQUESE E EXAME DE CONCIÊNCIA PARA
CONFISSÃO1
O QUE É O SACRAMENTO DA PENITÊNCIA? A Penitência,
chamada também Confissão, é o sacramento instituído por Jesus
Cristo para perdoar os pecados cometidos depois do Batismo.

QUANDO JESUS INSTITUIU A PENITÊNCIA? Jesus Cristo instituiu


o sacramento da penitência no dia da sua Ressurreição, quando,
depois de entrar no cenáculo, deu solenemente aos seus Apóstolos
o poder de perdoar os pecados, soprando sobre eles e dizendo:
“Recebei o Espírito Santo, àquele a quem perdoardes os pecados,
ser-lhes-ão perdoados, e àqueles a quem o retiverdes ser-lhes-ão
retidos”.2
Quantas coisas são necessárias para fazer uma confissão bem
feita? Para fazer uma boca confissão, são necessárias cinco coisas:
exame de consciência; dor de ter ofendido a Deus; propósito de não
mais pecar; confissão dos próprios pecados perante o sacerdote;
satisfação da penitência.
1 Retirado do folder para o sacramento confissão do Instituto do Verbo Encarnado (IVE).
2 Jo 20,22s.

O QUE É PECADO MORTAL? O pecado mortal é uma transgressão


voluntária e grave da lei divina. Por isso, ele priva a alma da graça
divina e da amizade de Deus; torna-a escrava do demônio: fá-la
perder o Céu e merecer o Inferno. Faz Jesus sofrer como se eu o
matasse pregando-o na cruz.

O QUE É PECADO VENIAL?


O pecado Venial é uma transgressão voluntária, mas leve da lei
divina. Por ser leve não nos priva da graça divina e da amizade de
Deus, nem nos faz perder o Céu. Faz Jesus sofrer como se eu o
coroasse de espinhos.
É BOM CONFESSAR-SE COM FREQUÊNCIA? Confessar-se com
frequência é coisa ótima, porque o Sacramento da Penitência, além
de perdoar os pecados, dá as graças necessárias para evita-los no
futuro.

1º PASSO – EXAME DE CONCIÊNCIA Se arrepender e lembrar


todos os pecados cometidos após a última confissão bem feita.
Lembrando quantas vezes cometeu cada pecado. Abaixo há um
auxílio para o exame de consciência.
1º MANDAMENTO
AMAR A DEUS SOBRE TODAS AS COISAS

• Deixei de fazer minhas orações?


• Descuidei do conhecimento da minha fé?
• Duvidei ou neguei deliberadamente algum ensinamento

da Igreja?
• Li, assisti ou escutei materiais que colocam em risco minha fé (tais
como livros, revistas, vídeos ou músicas contrários à religião)?

• Alguma vez fiquei revoltado contra Deus?


• Critiquei a minha religião?
• Tive vergonha da minha religião?
• Zombei das coisas santas (tais como Deus, os Santos, a

Igreja, os consagrados, etc)?


• Assisto a cultos de outras religiões, colocando em risco
minha fé?
• Pratiquei alguma superstição (tal como consulta a espíritos,
cartomantes, horóscopos, etc.)?
• Comportei-me mal na Igreja (como, por exemplo, conversando ou
distraindo-me da Missa, indo mal vestido)?
• Recebi a comunhão estando em pecado grave?
• Junto-me com amigos que me afastam de Deus?
2º MANDAMENTO
NÃO TOMAR SEU SANTO NOME EM VÃO
• Jurei pelo nome de Deus falsamente?
• Jurei pelo nome de Deus em coisas sem importância?
• Disse palavras injuriosas contra Deus, a Virgem Maria ou

os Santos?
• Queixei-me contra Deus (por algum problema ou dificul
dade)?
• Amaldiçoei-me a mim próprio, ou a outra pessoa ou coisa
(rogar praga)?
• Deixei de cumprir uma promessa feita a Deus?
3º MANDAMENTO
GUARDAR DOMINGOS E FESTAS

• Faltei, pro minha culpa, a Missa aos Domingos ou dias santos?


• Cheguei tarde, por minha culpa, a Missa aos domingos ou dias
santos não cumprindo com o que manda a Igreja?
• Trabalhei ou mandei trabalhar nos domingos ou dias santos sem
verdadeira necessidade?
4º MANDAMENTO
HONRAR PAI E MÃE

• Faltei o respeito a alguma membro de minha família (tais como


meus pais, irmãos, cônjuges, filhos avós, etc.)?
• Faltei o respeito para com meus superiores (tais como professores,
sacerdotes, pessoas mais velhas, etc.)?
• Cometi algum tipo de agressão contra algum membro da minha
família?
Filhos:
• Desobedeci meus pais ou superiores?
• Não ajudei meus pais em suas necessidades?
Pais:
• Não esforcei-me para cuidar do sustento dos meus filhos?
• Não preocupei-me em dar para os meus filhos uma boa educação
humana?

• Não instruí na fé (não os ensinei a rezar, não os levei à

Missa, não os mandei para catequese)?


• Tenho dado maus exemplos aos meus filhos com meu
comportamento?
• Não me preocupei de preservar a meus filhos das ocasiões
de pecado e das más amizades?
5º MANDAMENTO

NÃO MATARÁS
• Tenho inimizade, ódio ou raiva de alguém?
• Desejei o mal para alguém? Foi um mal grave?
• Procurei vingar-me de alguém?
• Briguei com alguém?
• Feri ou matei alguém?
• Tentei, fiz, ajudei ou aconselhei um aborto?
• Levei alguém ao pecado (induzindo-o ao pecado com palavras, ou
tentando-o em seu modo de vestir ou agir)? Que pecado foi?

• Arrisquei a minha vida sem necessidade?


• Desejei ou tentei suicidar-me?
• Deixei de cuidar de minha saúde (usando drogas, embria

gando-me, danificando meu corpo, etc.)?

NÃO PECAR CONTRA A CASTIDADE / NÃO


6º E 9º MANDAMENTO
DESEJAR A MULHER DO PRÓXIMO

• Participei de conversas impuras?


• Consenti em olhares impuros?
• Li, assisti, escutei materiais com conteúdos obscenos ou
pornográficos (tais como livros, revistas, vídeos ou músicas, páginas
na internet)?
• Ainda conservo algo desse material impuro?
• Consenti com pensamentos impuros?
• Toquei ou abracei outra pessoa de forma impura?
• Cometi atos impuros com outra pessoa (ter relações carnais antes
do matrimônio)?
• Pequei impuramente contra mim próprio (masturbação)?
• Consenti com desejos ou cometi atos impuros contra a natureza
(homossexualismo, lesbianismo, etc.)?
• Tive desejos impuros para com uma pessoa casada?
• Cometi atos impuros com uma pessoa casada?
7º E 10º MANDAMENTOS
NÃO ROUBAR /
NÃO COBIÇAR AS COISAS ALHEIAS

• Roubei alguma coisa? O quê, ou quanto? Devolvi ao dono?


• Aceitei ou comprei coisas roubadas?
• Fiquei com objetos achados sem procurar o dono?
• Danifiquei a propriedade dos outros? Reparei o dano?
• Recusei a pagar as minhas dívidas?
• Fui desonesto com o salário dos meus empregados?
• Fiz trapaça nas relações comerciais?
• Tive inveja de alguém por ter algo que eu não tenho?
8º MANDAMENTO

NÃO LEVANTAR FALSO TESTEMUNHO


• Menti?
• Prejudiquei a outros com minhas mentiras?
• Semeei discórdia entre as pessoas por maledicência (por

falar mal de alguém)?


• Revelei um pecado oculto de outra pessoa, sem necessi
dade (difamação)?
• Levantei falso testemunho contra o próximo (calúnia)?
• Fiz julgamentos temerários (julgar mal do próximo sem
provas suficientes)?
• Revelei segredos a mim confiados?

2º PASSO – CONFISSÃO
Diante do sacerdote diga:
Padre, minha última confissão foi... (dizer quanto tempo faz desde
a última confissão)
E meus pecados foram... (dizer os pecados que lembrou no
exame)

Depois de dizer seus pecados e escutar os conselhos e a penitência


do Padre, ele pedirá que você faça um ato de contrição. Abaixo
temos dois exemplos de atos de contrição.
Ato de contrição 1: Meu bom Jesus, que morrestes na cruz para
me salvar, perdoa os meus pecados, pois estou arrependido e já
não quero mais pecar. Amém.
Ato de contrição 2: Meu Deus, porque sois infinitamente bom e Vos
amos de todo meu coração, pesa-me de Vos ter ofendido e, com o
auxílio da Vossa divina graça, proponho firmemente emendar-me e
nunca mais Vos tornar a ofender. Peço e espero o perdão das
minhas culpas pel Vossa infinita misericórdia. Amém Logo receberá
humildemente o perdão de Deus, enquanto Cristo, através do Padre
diz: Eu te absolvo de teus pecados, em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo. Amém
O Padre fará a despedira. Teus pecados foram perdoados podes ir
em paz.
Você pode responder: Demos graças a Deus.

3º PASSO – PENITÊNCIA
Terminada a confissão, só faltará cumprir a penitência imposta pelo
sacerdote. Aconselha-se que ela seja cumprida logo após a
confissão.
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A CONFISSÃO, 1838 DE
GIUSEPPE MOLTENI

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