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24/02/2021 Irrigar desertos com a imaginação moral | seminário de filosofia

seminário de filosofia

grupo de estudos de filosofia grega, clássicos da literatura greco-romana e religião cristã

Irrigar desertos com a imaginação moral

fevereiro 25, 2009

por Peter Schakel

Publicado em 13 de junho de 2006

Exceto pela salvação, a imaginação é o assunto mais importante no pensamento e na vida de C. S. Lewis (1898-
1963). Ele acreditava na imaginação como um fator contributivo crucial para a vida moral, bem como uma
importante fonte de prazer na vida e uma ferramenta de evangelização vital (muito da efetividade de Lewis como
apologista repousa na sua capacidade de iluminar conceitos difíceis por meio de analogias adequadas). Sem a
imaginação, a moralidade permanece ética – reflexões abstratas sobre princípios que podem nunca ser colocados
em prática. A imaginação nos permite conectar princípios abstratos com a vida quotidiana, e relacioná-los às
injustiças enfrentadas por outros ao imaginamos como as sentem e experimentam. Apesar de Lewis não ter usado
o termo “imaginação moral” e os recentes autores que tratam da imaginação moral raramente o citarem ou o
utilizarem como fonte, ele apresenta um delineamento claro, acessível e potente do conceito, antes mesmo deste ser
popularizado nas décadas de oitenta e noventa do século XX.

O fino, mas importantíssimo livro de Lewis, “A abolição do Homem” contém as “Riddell Memorial Lectures”,
conferências dadas na Universidade de Durham em fevereiro de 1943. Apesar da palavra imaginação não aparecer
nas palestras, essa é a mais completa argumentação sobre a importância da imaginação moral. Endereçado aos
educadores (mas também aos pais, que são os primeiros educadores da criança), ele levanta o problema do
empobrecimento imaginativo. O sistema educacional dos anos quarenta do século XX, crê, interpretou mal a
necessidade do momento: temendo que os jovens fossem arrastados pela propaganda emocional, os educadores
decidiram que a melhor coisa que poderiam fazer pelas crianças era fortificar suas mentes contra a imaginação e a
emoção, ao ensiná-las a dissecar todas as coisas por uma rigorosa análise intelectual. Diz Lewis em resposta “A
minha própria experiência como professor me ensina justamente o contrário. Pois, para cada aluno que precisa ser
resguardado de um leve excesso de sensibilidade, existem três que precisam ser despertados do sono da fria
vulgaridade. O dever do educador moderno não é o de derrubar florestas, mas o de irrigar desertos” (p. 12)*. As
crianças e os adolescentes necessitam ser alimentados e não morrer de inanição.

O argumento central do livro propõe “a doutrina do valor objetivo, a convicção de que certas posturas são
realmente verdadeiras, e outras realmente falsas, a respeito do que é o universo e do que somos nós” (p. 17). A obra
“Cristianismo puro e simples” refere-se a essas posturas como “a Lei da natureza humana” e a obra “O leão, a

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feiticeira e o guarda-roupa” a retrata de modo imaginativo como “magia profunda na aurora do tempo”. A Lei da
natureza humana, Lewis acredita, é como a linguagem, ambas são inatas (como enfatizado em “Cristianismo puro
e simples”) e são algo que tenha de ser aprendido, absorvido dos pais e da sociedade, alimentado pelo exemplo e
pelo preceito.

Tal alimentação é o tema central de “A abolição do Homem”. O papel e a forma de abordar a educação são
totalmente diferentes para pais e educadores que aceitam as normas e valores objetivos dos daqueles que não as
aceitam. Para os que aceitam a objetividade “a tarefa é treinar os alunos para que desenvolvam as reações em si
mesmas apropriadas, quer eles as tenham, quer não, e construir aquilo que constitui a verdadeira natureza
humana” (p. 19). A criança deve ser guiada para “sentir prazer, agrado, repulsa e ódio em relação às coisas que
realmente são prazerosas, agradáveis, repulsivas e odiáveis” (p. 15). Aqueles que não aceitam a objetividade devem
“se empenhar em remover todos os sentimentos, tanto quanto possível da mente dos alunos, ou então encorajar
sentimentos por razões que nada têm a ver com sua ‘justiça’ ou ‘pertinência’ intrínsecas” (p. 19).

Fundamental à alimentação é a internalização feita pela criança de padrões e de respostas apropriadas. A


apreensão intelectual de princípios abstratos não é suficiente. Quando a criança é tentada a furtar um suéter que a
apeteça, o objetivo não é fazer a criança ponderar intelectualmente as implicações morais em questão. A criança
deve “sentir” que estar furtando não somente é algo errado, mas repugnante, e sentir isso através de emoções
treinadas: “sem o auxílio de emoções treinadas o intelecto é impotente contra o organismo animal”. Uma pessoa
que possua emoções treinadas – o equivalente à razão prática – confia não nas reflexões abstratas da mente, mas
nos julgamentos do coração apropriadamente nutridos: “o peito, a magnanimidade, o sentimento – esses são os
indispensáveis dignatários de ligação entre o homem cerebral e o homem visceral” (p. 22).

Lewis vai mais adiante e chama a isso de qualidade definidora da espécie humana; “Pode-se dizer mesmo que é
por esse elemento intermediário que o homem é homem, pois pelo seu intelecto ele é apenas espírito, e pelo seu
apetite ele é apenas animal” (p. 23). A educação, seja em casa ou na escola, que só tem como propósito desenvolver
o conhecimento e o intelecto produz crianças que são empobrecidas emocional e imaginativamente e que crescerão
para se tornarem “homens sem peito” (o título da primeira palestra). A perda da crença na lei moral e na sua
adoção pela razão prática irá por fim, inevitavelmente, crê Lewis, levar à abolição do Homem, à perda das
qualidades que definem a espécie humana.

A razão prática precisa ser nutrida, primeiramente, pela orientação direta dos pais, dos professores e da sociedade,
por intermédio da instrução nas atitudes e costumes aceitos. É essa alimentação prática, e não um estudo ético
abstrato, que constrói o fundamento para toda a vida de um sólido comportamento moral. A faculdade da razão é
importante em perceber e articular os princípios da moralidade, mas num certo sentido permanece subserviente à
imaginação porque até aqueles princípios internalizados por uma pessoa e conectados a situações da vida não se
tornam significantes e não afetam o comportamento. Como expressa Lewis (utilizando sua imaginação para criar
imagens e inventar uma memorável analogia), “Eu preferiria jogar cartas com um homem que fosse inteiramente
cético em relação à ética, mas que tivesse sido criado para acreditar que ‘um cavalheiro não trapaceia’, do que
contra um irrepreensível filósofo moral que tenha crescido entre os vigaristas” (p. 22).

A motivação inicial da razão prática pode ser alimentada tanto pela leitura quanto pela reação à literatura. A
imaginatividade das histórias permite às crianças formar e internalizar “sentimentos”, aquelas combinações
complexas de sentimentos e opiniões que dão a base para a ação ou para o julgamento. Elas são ajudadas a
aprender e a viver no resto de seus dias a “magnanimidade”, a nobreza de mente e a generosidade que permitem
que sobreleve a injúria e fique acima da maldade. Em “Sobre três formas de escrever para crianças” Lewis diz que
um escritor não deve impor uma lição moral à história: “Deixe que as imagens [isto é, as imagens verbais] falem a
ti da própria moral intrínseca”. Aqui, em suma, Lewis está falando sobre imaginação moral: a moral da história
deve estar incorporada nas imagens e as imagens só podem ser percebidas pela imaginação.

Lewis tirou enormes prazeres, provavelmente prazeres diários, da imaginação. Sem ela, sua vida teria sido
diminuída de muitas formas – reduzida de sua luz, mais contraída, menos rica e recompensadora. Mas ele também
reconheceu sua importância para a fé e para a moral. Seus próprios comportamentos morais foram moldados por
suas primeiras leituras, e seus posteriores escritos imaginativos pretendiam – como os medievais e os primeiros
escritores modernos que ele tanto admirava: Dante, Sidney, Spenser, Shakespeare e Milton, por exemplo – não só
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entreter, mas nutrir. Ele não queria que os valores civilizados do passado fossem perdidos ou descartados como
não mais relevantes. Apesar do uso da imaginação moral em seus escritos, Lewis estava tentando preservar e
passar os valores tradicionais para o mundo moderno.

* NOTA DO TRADUTOR
Os números de páginas entre parênteses correspondem à seguinte edição da obra de C. S. Lewis: “A abolição do
Homem”. Tradução de Remo Mannarino Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Tradução de Márcia Xavier de Brito

Publicado em:h p://www.cieep.org.br/index.php?page=artigossemana&codigo=421.


(h p://www.cieep.org.br/index.php?page=artigossemana&codigo=421)

Posted by davijd
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