Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
acrescentei.
A explicação não o convenceu. Exigiu-me que revelasse
minhas reais intenções:
Três coisas me são difíceis de entender, e uma quar-. Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho?
ignoro completamente: o caminho da águia
-
ta eu a
Não esperou pela resposta:
no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho
Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é
caminho do homem
-
A noiteprosseguiu
-
Não lhe
importará a companhia de alguém tão instável?
-
Moço, me dá um
cigarro? Respondi-lhe que não e fomos morar juntos.
A voz era sumida; quase um sussurro. Permaneci na mesma
Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro? de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo
Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei: de agradar ao próximo. Gostava de ser gentil com crianças e
Vá embora, moleque, senão chamo a polícia. velhos, divertindo-os hábeis malabarismos
com ou
prestan-
-
minha frente, que eu também gosto de ver o mar. a gurizada, à tardinha, em lento caminhar, conduzia anciãos ou
virei -me, disposto escorraçá-lo pontapé. Fui desar- Não simpatizava com alguns vizinhos, entre eles o agiota
a com um
Você não dá é porque não tem, não é, moço? As vítimas assim não entendiam e se queixavam à polícia, que
O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe perdia o tempo ouvindo as denúncias. Jamais encontraram em
o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor
ele nossa residência, vasculhada de cima a baixo, outro animal além
visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas do coelhinho. Os investigadores irritavam-se com os queixosos
Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter Teleco, movido por imprudente malícia, transformou-se repen-
morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse momen- tinamente em porco-do-mato. A mudança e o retorno ao pri-
nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me mitivo estado foram bastante rápidos para que o homem tivesse
to que reparei
53
52
tempo de gritar.
Mal abrira a boca, horrorizado, novamente O que deseja a senhora com esse horrendo animal? per- -
diante de si um pacífico coelho: aborrecido por ver minha casa invadida por estranhos.
tinha guntei,
-
O senhor viu o que eu vi? -
Respondi, forçando uma cara inocente, que nada vira de Mirei desprezo aquele bicho
com
mesquinho, de pelos
anormal. ralos, denunciar subserviência
a e
torpeza. Nada nele me fazia
O homem olhou-me desconfiado, alisou a barba e, sem se
lembrar o travesso coelhinho.
despedir, ganhou a porta da rua.
Neguei-me a aceitar como verdadeira a afirmação, pois Te -
ao ridículo da
rigia-me palavras afetuosas e logo fazíamos as pazes. situação e dei uma
gargalhada:
No mais, era o amigo dócil, que nos encantava com ines- -
E isso? -
E uma
lagartixa ou
Amava muitas vezes surgia trans-
peradas mágicas. as cores e um filhote de salamandra?
mudado em ave
que possuía
as todas e de espécie inteiramente Ela me olhou com raiva. Quis retrucar, porém ele atalhou:
desconhecida ou de raça
já extinta. -
sono, meus
pensamentos giravam em torno dela e da cretinice
de Teleco em afirmar-se homem.
O primeiro atrito grave que tive com Teleco ocorreu um ano Levantei-me de madrugada e me dirigi à sala, na expectati-
após nos conhecermos. Eu regressava da casa da minha cunhada va de que os fatos do dia anterior não passassem de mais um dos
Emi, com
quem discutira asperamente sobre negócios de famí- gracejos do meu companheiro.
lia. Vinha mal-humorado e a cena que deparei, ao abrir a porta Enganava-me. Deitado ao lado da moça, no tapete do assoa-
da entrada, agravou minha irritação. De mãos dadas, sentados no lho, o canguru ressonava alto. Acordei-o, puxando-o pelos
sofá da sala de visitas, encontravam-se uma jovem mulher e um braços:
mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos se -
54
55
-
o meu sua
Tereza? confundindo a minha tolerância como possível fraqueza, tor-
e,
Ela, que acabara de despertar, assentiu, movendo
a cabeça.
nou-se atrevido e zombava de mim quando o recriminava por
Explodi, encolerizado:
vestir minhas roupas, fumar dos meus cigarros ou subtrair di-
-
Se é Barbosa, rua! E não me
ponha mais os pés aqui, nheiro do meu bolso.
filho de um rato!
Em diversas ocasiões, apelei para a sua frouxa sensibilidade,
Desceram-lhe as lágrimas pelo rosto e, ajoelhado, na mi-
pedindo-lhe que voltasse a ser coelho.
nha frente, acariciava minhas pernas, pedindo-me que não o -
é que aceitava,
Logo ao abrir a porta, senti o sangue afluir-me à cabeça: Tereza
para não desagradá-la, o certo sem protesto, a
e
Barbosa, os rostos colados, dançavam um samba indecente.
presença incômoda de Barbosa.
Indignado, separei -os. Agarrei o canguru pela gola e, sacu-
Se afirmava ser tolice de Teleco querer nos impor sua falsa
dindo-o com violência, apontava-lhe o espelho da sala:
condição humana, ela me respondia com uma convicção des
-
E ou não é um animal?
concertante:
57
56
homem! E soluçava, esperneando, ela avultava com as mutações dele em bichos maio-
Não, sou um tran- a princípio,
-
sido de medo pela fúria que via nos meus olhos. res, enquanto eu lhe suplicava que se aquietasse. Contudo ele
À Tereza, que acudira, ouvindo seus gritos, pedia: não conseguia controlar-se.
-
Não sou um homem, querida? Fala com ele. Debalde tentava exprimir-se. Os períodos saltavam curtos
-
Não Posso -
tartamudeava, sob a
pele de um
lagarto.
Ainda da rua, muito excitada, ela me advertiu:
-
Farei de Barbosa um homem importante, seu porcaria!
falta de maiores esclarecimentos, acreditei ser mera coincidên- forme obicho que encarnava na hora, nem sempre combinava
cia de nomes. coin o tamanho (lo alimento. Dos seus olhos, então, escorriam
A minha paixão por Tereza se esfumara no tempo e volta- lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam
ra-me o interesse pelos selos. As horas disponíveis eu as ocupa- face
enormes na de um
hipopótamo.
va com a coleção. Ante minha
a
impotência
em diminuir lhe o
sofrimento,
Estava, uma noite, precisamente colando exemplares raros, abraçava-me aele, chorando. O seu
corpo, porém, crescia nos
recebidos na véspera, quando saltou, janela adentro, um ca- meus braços, atirando-me de encontro à parede.
chorro. Refeito do susto, fiz menção de animal. Toda- Não mais falava:
correr o
mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bra-
via não cheguei a enxotá-lo. mia, trissava.
-
afirmou, com uma voz Por fim, já menos intranquilo, limitava as suas transfor -
E ela? -
Tereza... -
sem que concluísse a frase, adquiriu as for- Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos,
de pavão.
mas um se
aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e ador-
-
Havia muitas cores... o circo... ela estava linda... foi hor- meci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos
58
59
O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA
sou desvalido e
pobre.
(Salmos, Lxxxv, 1)
21
ideia de distribuir ingressos graciosos Situação cruciante.
nharia se me ocorresse a
Quase Sempre, ao tirar o lenço para assoar o
nariz, provo-
para os espetáculos. assombro dos que estavam próximos, sacando um
primeiro patrão, lençol
cava o
do
Contrariando previsões pessimistas
as
do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu.
o meu comportamento foi exemplar.
As minhas apresentações
Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do
em público não só empolgaram
multidões como deram fabulo- sapato, das
minhas calças deslizavam cobras. Mulheres e crianças
sos lucros aos donos da companhia.
gritavam.
Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos, um escândalo. Tinha
A plateia, em geral, me recebia com frieza, talvez por
não me
de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente da autoridade
exibir de casaca e cartola. Mas quando, querer, começava
sem a
extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibra- policia] ser proibido soltar serpentes nas vias públicas.
em que eu fazia surgir, por
vam. Sobretudo no último número,
o animal
entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo
E Não protestava. Tímido humilde mencionava minha
sanfona. encerrava e
pelas extremidades, transformava-o
numa a
-se insuportável. Urgia encontrar solução para o meu desespero. Pensando hem,
algum café, a olhar cismativamente
o
As vezes, sentado em
concluí que poria termo ao meu desconsolo.
calçada, arrancava do bolso pombos, gaivo-
somente a morte
povo desfilando
na
se encontravam nas imediações, Firme propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e,
no
tas, maritacas. As pessoas que cruzando os braços, aguardei o momento em
estridentes que seria devorado
julgando intencional gesto, rompiam em
o meu
urn
por
23
22
todos
consegui refrear a raiva. Matei-os Quando
a
Não pus e me
era
mágico, pouco lidava com homens
os o
pal
-
-
devorá-los. Esperav morrer, vítima de fatal indigestão. Co me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato
de barriga
Sofrimento dos sofrimentos! Tive imensa dor
e coin meus
semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar
continuei a viver. a náusea que me causavam.
O fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afas- O pior é que, sendo diminuto meu
serviço, via-me na con-
tei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar seu ponto tingência de permanecer à toa horas a fio. E o ócio levou-me à
mais alto, que dominava escuro abismo, abandonei o corpo ao revolta falta de um passado. Por
contra a
que somente eu, entre
todos os
que viviam sob os meus olhos, não tinha
espaço. alguma coisa
Senti apenas uma leve sensação da vizinhança da morte: para recordar? Os meus dias flutuavam confusos, mesclados
Com dificulda-
logo me vi amparado por um paraquedas. com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida.
de, machucando-me pedras, sujo estropiado, consegui
nas e O amor veio por urna funcionária, vizinha de mesa
que inc
nos
mundo mágico.
criado todo continuamente. Não os naretive todos
memória, preocupado
arrependimento de não ter um
verdes. Encher a noite medida que se ampliava sua ambição. Se ao menos ela desviasse
brancos,
corpo lenços vermelhos, azuis,
o rosto para o céu e deixar que para mim parte do carinho dispensado às coisas que eu lhe dava,
com fogos de artifício. Erguer
arco-íris. Um arco-íris que cobrisse ou não
engordasse tanto, pouco me teriam importado os sacriff
pelos meus lábios saísse o -
dos homens de cios que fiz para lhe contentar mórbida mania.
a Terra de a outro. E os
um extremo aplausos a
27
26
tário! Não teria adquirido
MEMÓRIAS DO CONTABILISTA
viver vasculhando árvores
essa obsessão de consultar alfarrábios
INÁCIO
e
genealógicas.
PEDRO Deste-me, inefável Dora, o oficio mais cansativo do mundo.
quarenta de correspondência, setenta de aspirina e dois anos de Couto, morreu de desgosto ao descobrir que dois de seus bisavós
cento de
completo alhamento ao mundo. Fora cinquenta por tinham falecido em consequência de cirrose hepática. Não resis-
meus cabelos e as despesas com os clínicos que, erroneamente, tiu à derrocada de suas teorias e criou, assim, uma lamentável
concluíram minha calvície.
hereditária exceção da minha honrada foi
ser a entre os
estirpe: seu único membro
Mas os médicos que procurei nada entendiam de alma e que não desapareceu vitimado pelo amor.
nholinha cor de lírio, que gostava de dança clássica e mascar 4 Quem chegar a ler estas páginas poderá pensar que estou
chicletes, me revelou a origem de meu mal. exagerando. Todavia, incorrerá em erro. Os desatinos amoro
quem
-
orquídeas e
apenas dois envelopes de aspirina. Tudo por oitenta chineses, que levaram a tripulação e passageiros para a China.
mil-réis. Nesse país, o virtuoso bispo, por uma dessas enigmáticas cir-
his-
Em troca dessa ridícula quantia, fiquei conhecendo a cunstâncias que só o diabo pode explicar, veio a se apaixonar por
tória de meus ancestrais, o motivo da minha irresistível atração uma chinesa
excepcional. Excepcional porque comia arroz com
as mãos, em vez de com os clássicos
pelo pela contabilidade.
amor e pauzinhos.
Antes não soubesse que o meu sentimentalismo era heredi -
118 119
que a anticonvencioflal chinesinha lhe dedicasse uma
parcela Em determinada
época, passou pela cidade
oriental. de operas, cuja prima -dona
uma
companhia
sequer de seu meigo coração distingma -se pelo
E numa tãrde brumosa a descrição vai por conta da minha beleza. E lá se foi o tio Acácio,
encanto e
invulgar
companhia e tudo.
-
imaginação -, entre juncos, papoulas e flores de lótus, faleceu Percorreu vários países, assistiu a mil e tantas
representa-
murmurando da paganíssima Lu -chu-tzé. (Que em paz
o nome ções, aplaudindo comentusiasmo crescente a sua bela amante.
a sua alma, que a do meu tio padre por certo está.) Mas lhe acabasse o dinheiro e
esteja como
já se tornassem raros
seus
presentes em moeda e joias, a mulher abandonou-o em
Roma. Lá morreu, não se sabe se de fome ou
paixão. Os da
5 Mas de todos os Bulhões o mais notável foi o meu tataravô minha família preferem
que em razão desta última, pois Acácio
Pedro Inácio, cujo herdei. é para eles um belo
nome
exemplo de fidelidade sentimental. Além de
Umlírico, o meu tataravô Pedro' Inácio! Usava fraque, belo, o único que conheceram entre seus componentes.
monóculo, e todas as tardes reunia os escravos da fazenda para
ouvi-lo recitar os clássicos franceses. E tamanha era sua estima
deu nomes de pintores, músicos
pelas artes que a seus escravos 7 TioPaulo, o mais moço dos irmãos do avô Pedro Inácio,
e
poetas. preferia jogar damas, contar anedotas picantes e dar beliscões
Quando moço, foi maior conquistador de
o nossa terra. nas
nádegas das escravas. Por limitar suas conquistas ao elemen-
Casado, cedeu o lugar a seu irmão Acácio. to africano e a sua cultura a histórias
frascárias, foi sumariamente
Amorte da esposa, porém, fez renascer nele a chama amo- banido da crônica de nossa família.
rosa da mocidade. Sem atentar para a velhice já se aproximando, Todavia, não se envergonharam os seus irmãos, quando da
vivia a peregrinar pelas fazendas de seus filhos e sobrinhos, ten- partilha da herança paterna, de o lesarem, dando-lhe, em vez das
tando em vão conquistar noras e sobrinhas. melhores terras, as melhores negras.
Certa ocasião, pernoitando em uma fazenda de parentes, Nem por isso sentiu-se
espoliado e
repetia sempre aos
que
onde moças bonitas e alegres passavam as férias, coincidiu que lhe insinuavam o contrário:
o quarto dado ao meu avô Pedro Inácio ficasse junto de um dos Sou grato a meu pai pelo gosto apurado em escolher as
-
aguçado instinto de
viajante que o levava a perseguir as mulhe- sem ser
negras as onze mil virgens de Maomé.
res aonde quer que elas fossem.
120
1 121
8 Deus meu! Não terminarei minhas memórias. O ho- Conversamos pouco, o bastante para saber que retornava
de
antepassados dispõ.em. Acabo de fazer uma
sanatório, onde deixara encerrado todo
mem põe e seus um
o sonho de
levar a
descoberta espantosa: não sou filho de meu
pai, nem de mi- existência bailando para os homens.
nha mãe!
Tomei conhecimento dessa incômoda revelação por acaso,
dias atrás,quando discutia as minhas teorias sobre a hereditarie- 10 Ao chegar a casa, senti remorsos de não ter consolado
dade com o médico que assistiu o parto da minha suposta mãe. Dora, de não lhe ter falado ternamente que também soudema -
Disse -me, num momento em que ele não conseguia contestar siado infeliz.
meus eu apenas substituIra um aborto.
argumentos, que I Mas durante Os
poucos minutos que conversamos, nada
Como minha mãe verdadeira não tivesse sobrevivido ao disso pude dizer-lhe, porque o esforço de conter, a todo custo,
a
e fosse dificil
meu nascimento explicou-me o médico uma
pergunta que desejava fazer-lhe não me permitiu. Foi uma
-
-
saber, entre tantos homens que frequentavam a sua casa, qual tarefa dura a de refrear minha curiosidade em
saber quanto lhe
seria meu
pai, trocaram-me pelo feto da minha mãe adotiva, custara a estada no
sanatório, talvez bem mais do que meus estu -
Maldita revelação! Agora não posso mais saber a causa da dos de genealogia.
minha vocação para o amor e a razão da minha calvície. E só
de pensar que nos meus estudos genealógicos gastei seis contos,
duzentos e trinta e cinco mil e quinhentos réis, sinto vontade de
destruir o mundo.
Resta-me somente um consolo: a queda das minhas teo-
rias não beneficiará meus clínicos. Entre os dez indivíduos
sequer. I
122
123