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TELECO, O COELHINHO apiedei e convidei-o a residir comigo.

A casa era grande e mora-


va sozinho -

acrescentei.
A explicação não o convenceu. Exigiu-me que revelasse
minhas reais intenções:
Três coisas me são difíceis de entender, e uma quar-. Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho?
ignoro completamente: o caminho da águia
-

ta eu a
Não esperou pela resposta:
no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho
Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é
caminho do homem
-

da nau no meio do mar, e o na


o meu fraco.
sua mocidade.
Dizendo isso, transformou-se
numa girafa.
(Provérbios, xxx, 18 e 19) -

A noiteprosseguiu
-

serei cobra ou pombo.


-

Não lhe
importará a companhia de alguém tão instável?
-

Moço, me dá um
cigarro? Respondi-lhe que não e fomos morar juntos.
A voz era sumida; quase um sussurro. Permaneci na mesma

encontrava, frente absorvido com


posição em que me ao mar,

ridículas lembranças. Chamava-se Teleco.


O importuno pedinte insistia: Depois de uma convivência maior, descobri que a mania
-

Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro? de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo
Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei: de agradar ao próximo. Gostava de ser gentil com crianças e
Vá embora, moleque, senão chamo a polícia. velhos, divertindo-os hábeis malabarismos
com ou
prestan-
-

Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da


do-lhes ajuda. O mesmo cavalo que, pela manhã, galopava com
-

minha frente, que eu também gosto de ver o mar. a gurizada, à tardinha, em lento caminhar, conduzia anciãos ou

Exasperou-me a insolência de quem assim me


tratava e
inválidos às suas casas.

virei -me, disposto escorraçá-lo pontapé. Fui desar- Não simpatizava com alguns vizinhos, entre eles o agiota
a com um

mado, entretanto. Diante de mim coelhinho cinzen-


estava um e suas irmãs, aos
quais costumava aparecer sob a pele de leão
to, a me interpelar delicadamente ou
tigre. Assustava-os mais para nos divertir que por maldade.
-

Você não dá é porque não tem, não é, moço? As vítimas assim não entendiam e se queixavam à polícia, que
O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe perdia o tempo ouvindo as denúncias. Jamais encontraram em
o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor
ele nossa residência, vasculhada de cima a baixo, outro animal além

visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas do coelhinho. Os investigadores irritavam-se com os queixosos

já então conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais e


ameaçavam prendê-los.
exato, coelhinho falava. Contava-me acontecimen-
somente o Apenas uma vez tive medo de que as travessuras do meu
tos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais irrequieto companheiro nos valessem sérias complicações. Es-
idade do que realmente aparentava. tava recebendo uma das costumeiras visitas do delegado quando

Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter Teleco, movido por imprudente malícia, transformou-se repen-
morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse momen- tinamente em porco-do-mato. A mudança e o retorno ao pri-
nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me mitivo estado foram bastante rápidos para que o homem tivesse
to que reparei
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tempo de gritar.
Mal abrira a boca, horrorizado, novamente O que deseja a senhora com esse horrendo animal? per- -

diante de si um pacífico coelho: aborrecido por ver minha casa invadida por estranhos.
tinha guntei,
-
O senhor viu o que eu vi? -

Eu sou o Teleco antecipou-se, dando uma risadinha.


-

Respondi, forçando uma cara inocente, que nada vira de Mirei desprezo aquele bicho
com
mesquinho, de pelos
anormal. ralos, denunciar subserviência
a e
torpeza. Nada nele me fazia
O homem olhou-me desconfiado, alisou a barba e, sem se
lembrar o travesso coelhinho.
despedir, ganhou a porta da rua.
Neguei-me a aceitar como verdadeira a afirmação, pois Te -

leco não sofria da vista e se quisesse apresentar-se vestido teria


o bom gosto de escolher outros trajes que não aqueles.
A mim também pregava-me peças. Se encontrava vazia a Ante a minha incredulidade, transformou-se numa
perere-
em algum canto, dissi-
casa, já sabia que ele andava escondido ca. Saltou por cima dos móveis,
pulou no meu colo. Lancei-a
mulado em algum pequeno animal. Ou mesmo no meu corpo longe, cheio de asco.
sob a pulga, fugindo-me dos dedos, correndo pelas
forma de Retomando a forma de canguru, inquiriu-me, com um ar
minhas Quando começava a me impacientar e pedia-lhe
costas. extremamente grave:
levava tremendo Susto.
que parasse com a brincadeira, não raro Basta essa
prova?
Debaixo das minhas pernas crescera um bode que, em dispara- -

Basta. E daí? O que você quer?


da, me transportava até o quintal. Eu me enraivecia, prome- -

De hoje em diante serei apenas homem.


tia-lhe uma boa surra. Simulando arrependimento, Teleco di- -

Homem? indaguei atônito. Não resisti


-

ao ridículo da
rigia-me palavras afetuosas e logo fazíamos as pazes. situação e dei uma
gargalhada:
No mais, era o amigo dócil, que nos encantava com ines- -

E isso? -

apontei para a mulher. -

E uma
lagartixa ou
Amava muitas vezes surgia trans-
peradas mágicas. as cores e um filhote de salamandra?
mudado em ave
que possuía
as todas e de espécie inteiramente Ela me olhou com raiva. Quis retrucar, porém ele atalhou:
desconhecida ou de raça
já extinta. -

E Tereza. Veio morar conosco. Não é linda?


-

Não existe pássaro assim!


-

Sei. Mas seria insípido disfarçar-me somente em ani-


mais conhecidos. Sem dúvida, linda. Durante a noite, na
qual me faltou o

sono, meus
pensamentos giravam em torno dela e da cretinice
de Teleco em afirmar-se homem.

O primeiro atrito grave que tive com Teleco ocorreu um ano Levantei-me de madrugada e me dirigi à sala, na expectati-
após nos conhecermos. Eu regressava da casa da minha cunhada va de que os fatos do dia anterior não passassem de mais um dos
Emi, com
quem discutira asperamente sobre negócios de famí- gracejos do meu companheiro.
lia. Vinha mal-humorado e a cena que deparei, ao abrir a porta Enganava-me. Deitado ao lado da moça, no tapete do assoa-
da entrada, agravou minha irritação. De mãos dadas, sentados no lho, o canguru ressonava alto. Acordei-o, puxando-o pelos
sofá da sala de visitas, encontravam-se uma jovem mulher e um braços:
mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos se -

Vamos, Teleco, chega de trapaça.


escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário. Abriu os olhos, assustado, mas, ao reconhecer-me, sorriu:

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-

Ele se chama Barbosa e é um homem.


Teleco?! Meu nome é Barbosa, Antônio Barbosa, não é,
O canguru percebeu interesse pela companheira
-

o meu sua
Tereza? confundindo a minha tolerância como possível fraqueza, tor-
e,
Ela, que acabara de despertar, assentiu, movendo
a cabeça.
nou-se atrevido e zombava de mim quando o recriminava por
Explodi, encolerizado:
vestir minhas roupas, fumar dos meus cigarros ou subtrair di-
-
Se é Barbosa, rua! E não me
ponha mais os pés aqui, nheiro do meu bolso.
filho de um rato!
Em diversas ocasiões, apelei para a sua frouxa sensibilidade,
Desceram-lhe as lágrimas pelo rosto e, ajoelhado, na mi-
pedindo-lhe que voltasse a ser coelho.
nha frente, acariciava minhas pernas, pedindo-me que não o -

Voltar a ser coelho? Nunca fui bicho. Nem sei de quem


expulsasse de casa, pelo menos enquanto procurava emprego. você fala.
Embora encarasse com ceticismo a possibilidade de em-
-
Falo de um coelhinho cinzento e meigo, que costumava
umcanguru, seu
pranto demoveu da decisão
me
pregar-se se transformar em outros animais.
anterior, ou, para dizer a verdade toda, fui persuadido pelo
olhar súplice de Tereza, que, apreensiva, acompanhava o nos-

so diálogo. Nesse meio -tempo, meu amor


por Tereza oscilava por entre
pensamentos sombrios, e tinha pouca esperança de ser corres-
pondido. Mesmo na incerteza, decidi propor-lhe casamento.
Barbosa tinha hábitos horríveis. Amiúde cuspia no chão e
Fria, sem rodeios, ela encerrou o assunto:
raramente tomava banho, não obstante a extrema vaidade que
o
-

A sua proposta é menos generosa do que você imagina.


ficar horas horas diante do espelho. Utilizava-se do
impeliaa e
Ele vale muito mais.
meu aparelho de barbear, da minha escova de
dentes e pouco
continuou
As palavras usadas para recusar-me convenceram-me de
serviu comprar-lhe esses objetos, pois a usar os meus
que ela pensava explorar de modo suspeito as habilidades de
e os dele. Se me queixava do abuso, desculpava-se, alegando Teleco.
distração. Frustrada a tentativa do noivado, não podia vê-los juntos e
Também a sua figura tosca me repugnava. A pele era gor-
íntimos, sem assumir uma atitudeagressiva.
durosa, os membros curtos, a alma dissimulada. Não media O canguru notou a mudança no meu comportamento e
esforços para me agradar, contando-me anedotas sem graça, evitava lugares onde
os me
pudesse encontrar.
exagerando nos elogios à minha pessoa.
Por outro lado, custava tolerar suas mentiras e, às refeições,
a sua maneira ruidosa de comer, enchendo a boca
de comida
Uma tarde, voltando do trabalho, minha atenção foi alertada
com auxílio das mãos.
de Tereza,
pelo somensurdecedor da eletrola, ligada com todo o volume.
Talvez por ter me abandonado aos encantos ou

é que aceitava,
Logo ao abrir a porta, senti o sangue afluir-me à cabeça: Tereza
para não desagradá-la, o certo sem protesto, a
e
Barbosa, os rostos colados, dançavam um samba indecente.
presença incômoda de Barbosa.
Indignado, separei -os. Agarrei o canguru pela gola e, sacu-
Se afirmava ser tolice de Teleco querer nos impor sua falsa
dindo-o com violência, apontava-lhe o espelho da sala:
condição humana, ela me respondia com uma convicção des
-

E ou não é um animal?
concertante:

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homem! E soluçava, esperneando, ela avultava com as mutações dele em bichos maio-
Não, sou um tran- a princípio,
-

sido de medo pela fúria que via nos meus olhos. res, enquanto eu lhe suplicava que se aquietasse. Contudo ele
À Tereza, que acudira, ouvindo seus gritos, pedia: não conseguia controlar-se.
-

Não sou um homem, querida? Fala com ele. Debalde tentava exprimir-se. Os períodos saltavam curtos
-

Sim, amor, você é um homem. e confusos.


Por mais absurdo que me parecesse, havia
trágica sin-uma -

Pare corn isso e fale mais calmo -

insistia eu, impaciente


ceridade na voz deles. Eu me decidira, porém. Joguei Barbosa corn as suas contínuas transformações.
ao chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida, enxotei-os. -

Não Posso -

tartamudeava, sob a
pele de um
lagarto.
Ainda da rua, muito excitada, ela me advertiu:
-
Farei de Barbosa um homem importante, seu porcaria!

Alguns dias transcorridos, perdurava


o mesmo caos. Pelos

cantos, a tremer, Teleco selamuriava, transformando-se segui -

Foi a última vi. Tive, mais tarde, vagas notícias


vez
que os darnente em animais os mais variados. Gaguejava muito e não
de um mágico chamado Barbosa a fazer sucesso na cidade. A podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, con-

falta de maiores esclarecimentos, acreditei ser mera coincidên- forme obicho que encarnava na hora, nem sempre combinava
cia de nomes. coin o tamanho (lo alimento. Dos seus olhos, então, escorriam
A minha paixão por Tereza se esfumara no tempo e volta- lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam
ra-me o interesse pelos selos. As horas disponíveis eu as ocupa- face
enormes na de um
hipopótamo.
va com a coleção. Ante minha
a
impotência
em diminuir lhe o
sofrimento,
Estava, uma noite, precisamente colando exemplares raros, abraçava-me aele, chorando. O seu
corpo, porém, crescia nos
recebidos na véspera, quando saltou, janela adentro, um ca- meus braços, atirando-me de encontro à parede.
chorro. Refeito do susto, fiz menção de animal. Toda- Não mais falava:
correr o
mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bra-
via não cheguei a enxotá-lo. mia, trissava.
-

Sou o Teleco, seu


amigo -

afirmou, com uma voz Por fim, já menos intranquilo, limitava as suas transfor -

excessivamente trêmula e triste, transformando-se em uma


Inações pequenos animais, até que se fixou na forma de um
a

cotia. carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que


-

E ela? -

perguntei com simulada displicência. seu


corpo ardia em febre, transpirava.
-

Tereza... -

sem que concluísse a frase, adquiriu as for- Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos,
de pavão.
mas um se
aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e ador-
-

Havia muitas cores... o circo... ela estava linda... foi hor- meci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos

rível... prosseguiu, chocalhando cascavel.


guizos de braços. No colo
os uma meus meu estava uma criança encardida, sem
-

Seguiu-se breve silêncio, antes que voltasse a falar: dentes. Morta.


-

O uniforme.., muito branco... cinco cordas... amanhã


serei homem... as
palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo,
-

à medida que Teleco se metamorfoseava em outros animais.


Por um momento, ficou a tossir. Uma tosse nervosa. Fraca,

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O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA

Inclina, Senho o teu ouvido, e ouve-me; porque eu

sou desvalido e
pobre.
(Salmos, Lxxxv, 1)

Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo


maior.
Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimen-
to. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente
enfrentar a avalanche do tédio da amargura,
e
pois desde a

meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um


processo
lento e
gradativo de dissabores.
Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem
pais,
infância ou juventude.
Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no

espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me


espantou e
tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restau-
rante. Ele sim, perplexo, me
perguntou como podia ter feito
aquilo.
O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa
que não encontrava a menor explicação para sua
presença
no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e
entediado.
Sem meditar na resposta, ou fazer outras perguntas, ofere-
ceu-me emprego e
passei daquele momento em diante a divertir
a
freguesia da passes mágicos.
casa com os meus

Ohomem, entretanto, não gostou da minha prática de


oferecer aos espectadores almoços gratuitos, que eu extraIa
misteriosamente de dentro do paletó. Considerando não ser
dos melhores negócios aumentar o número de fregueses sem
o
consequente acréscimo nos lucros, apresentou-me ao empre-
sário do Circo -Parque Andaluz, que, posto a par das minhas
habilidades, propôs contratar-me. Antes, porém, aconselhou-o
que se prevenisse contra os meus truques, pois ninguém estra -

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ideia de distribuir ingressos graciosos Situação cruciante.
nharia se me ocorresse a
Quase Sempre, ao tirar o lenço para assoar o
nariz, provo-
para os espetáculos. assombro dos que estavam próximos, sacando um
primeiro patrão, lençol
cava o
do
Contrariando previsões pessimistas
as
do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu.
o meu comportamento foi exemplar.
As minhas apresentações
Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do
em público não só empolgaram
multidões como deram fabulo- sapato, das
minhas calças deslizavam cobras. Mulheres e crianças
sos lucros aos donos da companhia.
gritavam.
Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos, um escândalo. Tinha
A plateia, em geral, me recebia com frieza, talvez por
não me
de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente da autoridade
exibir de casaca e cartola. Mas quando, querer, começava
sem a

extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibra- policia] ser proibido soltar serpentes nas vias públicas.
em que eu fazia surgir, por
vam. Sobretudo no último número,
o animal
entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo
E Não protestava. Tímido humilde mencionava minha
sanfona. encerrava e
pelas extremidades, transformava-o
numa a

Nacional da Cochinchina. Os condição de mágico, reafirmando o propósito de não molestar


o espetáculo tocando o Hino
sob o meu olhar distante. ninguém.
aplausos estrugiam de todos os lados, Também, à noite, em meio a um sono tranquilo, costumava
O do circo, a me de longe, danava-se com
espreitar
gerente acordar sobressaltado: era um pássaro ruidoso
a minha indiferença pelas palmas da assistência. Notadamente que batera as asas
sair do
meu ouvido.
me iam aplaudir nas matinês
ao
se elas partiam das criancinhas que
Numa dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer
de domingo. Por que me emocionar, se não me
causavam pena

sofrimentos mágicas, mutilei as mãos. Não adiantou. Ao primeiro movimen-


aqueles rostos inocentes, destinados passar pelosMuito menos
a
to que fiz, elas
o amadurecimento do homem? reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos
que acompanham tocos de braço. Arontecimento de
me ocorria odiá-las porterem tudo que ambicionei e não
tive: desesperar qualquer pessoa,
nascimento e um passado.
principalmente um mágico enfastiado do ofício.
um

Com o crescimento da popularidade a minha vida tornou-

-se insuportável. Urgia encontrar solução para o meu desespero. Pensando hem,
algum café, a olhar cismativamente
o
As vezes, sentado em
concluí que poria termo ao meu desconsolo.
calçada, arrancava do bolso pombos, gaivo-
somente a morte
povo desfilando
na

se encontravam nas imediações, Firme propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e,
no
tas, maritacas. As pessoas que cruzando os braços, aguardei o momento em
estridentes que seria devorado
julgando intencional gesto, rompiam em
o meu

chão por eles. Nenhum mal me fizeram. Rodearam-me, farejaram


gargalhadas. Eu olhava melancólico para resmungava
o e
minhas roupas, olharam a paisagem, e se foram.
contra o mundo e os pássaros.
Na manhã seguinte regressaram e se
distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos
Se, diante de mim.
puseram, acintosos,
da
objetos.A ponto de me surpreender, certa vez, puxando
O que desejam, estúpidos animais?!
uma figura, depois outra. Por estava gritei, indignado.
manga da camisa
-

dar Sacudiram com tristeza as


jubas e imploraram-me que os
rodeado de figuras estranhas, sem saber que destuioJhes fizesse desaparecer:
comosoihos
Nada fazia. Olliava paraoslados-eiinplorava Este mundo é tremendamente tedioso concluíram.
poderiavirdeparte alguma.
-

socorrQ que não


-

urn
por
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todos
consegui refrear a raiva. Matei-os Quando
a
Não pus e me
era
mágico, pouco lidava com homens
os o
pal
-
-

devorá-los. Esperav morrer, vítima de fatal indigestão. Co me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato
de barriga
Sofrimento dos sofrimentos! Tive imensa dor
e coin meus
semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar
continuei a viver. a náusea que me causavam.

O fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afas- O pior é que, sendo diminuto meu
serviço, via-me na con-
tei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar seu ponto tingência de permanecer à toa horas a fio. E o ócio levou-me à
mais alto, que dominava escuro abismo, abandonei o corpo ao revolta falta de um passado. Por
contra a
que somente eu, entre
todos os
que viviam sob os meus olhos, não tinha
espaço. alguma coisa
Senti apenas uma leve sensação da vizinhança da morte: para recordar? Os meus dias flutuavam confusos, mesclados
Com dificulda-
logo me vi amparado por um paraquedas. com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida.
de, machucando-me pedras, sujo estropiado, consegui
nas e O amor veio por urna funcionária, vizinha de mesa
que inc

à cidade, onde a minha primeira providência foi de trabalho, distraiu-me um


regressar pouco das minhas inquietações.
adquirir uma pistola. Distração momentânea. Cedo retornou o desassossego,
Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei debatia inc em incertezas. Corno me declarar à minha
colega?
gatilho, à espera do estampido, a dor da bala penetrando Se nunca fizera uma
na
o declaração de amor e não tivera sequer
minha cabeça. urna
experiência sentimental!
máuser transformara 1931 entrou triste, com
Não veio o disparo nem a morte: a se
ameaças de demissões coletivas na
lápis. Secretaria e a recusa da
num
datilógrafa em me aceitar. Ante o risco
Rolei até o chão, soluçando. Eu, qpodia criar outros de ser demitido,
procurei acautelar meus interesses. (Não me
seres, não encontrava meio importava o emprego. Somente temia ficar longe da mulher que
me
rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.)
Fui chefe da seção
ao e lhe declarei que não podia ser dis-
Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova
pensado, pois, tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade
definitivo com a vida. Ouvira de
esperança de romper em
um no
cargo.
homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos
Fitou-me por algum tempo em silêncio.
Depois, fechando a
cara,disse que estava atônito coin meu cinismo.
poucos. Jamais poderia
Não me encontrava em condições de determinar qual a esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia de
forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. afirmar que tinha dez.
Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado. Para lhe provar não ser leviana a minha
atitude, procu-
rei nos bolsos os documentos que comprovavam a lisura do
meu
procedimento. Estupefato, deles retirei apenas um
papel
os posteriores à
1930, amargo. Foi mais longo que
ano amarrotado fragmento de um
poema inspirado seios da
-

nos

manifestação que tive da minha existência, ante o


datilógrafa.
primeira
espelho da Taberna Minhota. Revolvi, ansioso, todos os bolsos e nada encontrei.
Não morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na
aflições, maior o meu desconsolo. faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada burocracia.
pela
24 25
dons de não BÁRBARA
Hoje, sem os antigos e miraculosos mago,
das humanas. Falta-me o
consigo abandonar a pior ocupações
amor da companheira de trabalho,
a presença de amigos, o que

Sou visto muitas vezes O homem que se extraviar do caminho da doutrina


me obriga a andar por lugares
solitários.
terd por morada a assembleia dos
do interior da qual- gigantes.
procurando retirar com os dedos,
roupa,
mais atente a vista. (Provérbios, xxi, 16)
que
quer coisa que ninguém enxerga, por
principalmente quando atiro
ar ao
Pensam que estou louco,
Bárbara gostava de pedir. Pedia
essas pequeninas coisas.
somente e
engordava.
desvenci- Por mais absurdo que pareça, encontrava-me
Tenho a impressão de que é uma andorinha sempre dispos-
a se
a lhe satisfazer os
lhar das minhas mãos. Suspiro alto
e fundo.
to caprichos. Em troca de tão constante dedi -

conforta ilusão. Serve somente para aumentar


o cação, dela recebi frouxa ternura e
pedidos que se renovavam
Não me a

mundo mágico.
criado todo continuamente. Não os naretive todos
memória, preocupado
arrependimento de não ter um

Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar


do em
acompanhar crescimento do seu corpo, se avolumando à
o

verdes. Encher a noite medida que se ampliava sua ambição. Se ao menos ela desviasse
brancos,
corpo lenços vermelhos, azuis,
o rosto para o céu e deixar que para mim parte do carinho dispensado às coisas que eu lhe dava,
com fogos de artifício. Erguer
arco-íris. Um arco-íris que cobrisse ou não
engordasse tanto, pouco me teriam importado os sacriff
pelos meus lábios saísse o -

dos homens de cios que fiz para lhe contentar mórbida mania.
a Terra de a outro. E os
um extremo aplausos a

Quase da mesma idade, fomos companheiros inseparáveis


cabelos brancos, das meigas criancinhas. na meninice, namorados, noivos e, um dia, nos casamos. Ou
melhor, agora posso confessar que não passamos de simples
companheiros.
Enquanto me
perdurou a natural inconsequência da infân-
cia, não sofri com
esquisitices. Bárbara era menina
as suas
franzina e não fazia mal
que adquirisse formas mais amplas.
Assim pensando, muito tombo levei subindo em
árvores, onde
os olhos ávidos da
minha companheira descobriam frutas sem
sabor ou ninhos de
passarinho. Apanhei também algumas sur-
ras de meninos
aos quais era
obrigado a agredir unicamente
para realizar um
desejo de Bárbara. E se retornava com o rosto
ferido, maior se lhe tornava o contentamento. Segurava-me a
cabeça entre as mãos e sentia-se feliz em acariciar-me a face
intumescida, como se as
equimoses fossem um presente que eu
lhe tivesse dado.
Às vezes relutava em
aquiescer às suas
exigências, vendo-a
engordar incessantemente
Entretanto, não durava muito a
minha indecisão. Vencia-me a
insistência do seu olhar, que

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26
tário! Não teria adquirido
MEMÓRIAS DO CONTABILISTA
viver vasculhando árvores
essa obsessão de consultar alfarrábios

INÁCIO
e
genealógicas.
PEDRO Deste-me, inefável Dora, o oficio mais cansativo do mundo.

Marcela amou-me durante quinze meses e onze


3 Porém a minha mania de
escrever não nasceu dos movi-
contos de réis.
mentos graciosos harmônicos
e do corpo de Dora Não Teve
(Machado de Assis,
origem no meu noivado com
Aspasia (Como e dispendioso um
Memórias Póstumas de Brás Cubas) noivadoT Ate hoje não sei em quanto me ficou esse meu desa-
fortunado romance.) Ou, melhor, a culpa também não coube a
Se tefaiigaste em seguir, correndo, os que iam ape, minha noiva, como por muito tempo me pareceu. Mas a certo
como poderás competir com os que vão a cavalo?
antepassado, um alentejano beberrão, que chegou a escrever dez
(Jeremias, xii, 5) volumes sobre utilidade das bebidas espirituosas e seis sobre a
a

não hereditariedade do vício alcoólico.


1 Ah! o amor. Para maior entendimento destas memórias, devo ainda escla-
O de Jandira me custou sessenta mil-réis de bonde,
amor recer que esse meu ancestral, José Antônio da Câmara Bulhões e

quarenta de correspondência, setenta de aspirina e dois anos de Couto, morreu de desgosto ao descobrir que dois de seus bisavós
cento de
completo alhamento ao mundo. Fora cinquenta por tinham falecido em consequência de cirrose hepática. Não resis-
meus cabelos e as despesas com os clínicos que, erroneamente, tiu à derrocada de suas teorias e criou, assim, uma lamentável
concluíram minha calvície.
hereditária exceção da minha honrada foi
ser a entre os
estirpe: seu único membro
Mas os médicos que procurei nada entendiam de alma e que não desapareceu vitimado pelo amor.

nem eu, tampouco, conhecia suficientemente a


minha família.
Só mais tarde descobri o erro deles. Foi Dora, uma espa-

nholinha cor de lírio, que gostava de dança clássica e mascar 4 Quem chegar a ler estas páginas poderá pensar que estou
chicletes, me revelou a origem de meu mal. exagerando. Todavia, incorrerá em erro. Os desatinos amoro
quem
-

SOS dos meus


antepassados chegaram a tal ponto que um deles,
BasIlio da Câmara Bulhões e Couto, piedoso bispo, cujos mila-
2 Como bons remédios, Dora me ficou barato. Algumas
os gres cronistas portugueses, os mais sérios, registram, faleceu em
dúzias de chicletes, cinco bilhetes de festivais de caridade, onde virtude de uma paixão. Isso se deu quando, vindo das Indias, de
-

devo confessar ela dançou divinamente; uma caixa de


-
volta a Portugal, o navio em que viajava foi assaltado por piratas

orquídeas e
apenas dois envelopes de aspirina. Tudo por oitenta chineses, que levaram a tripulação e passageiros para a China.
mil-réis. Nesse país, o virtuoso bispo, por uma dessas enigmáticas cir-
his-
Em troca dessa ridícula quantia, fiquei conhecendo a cunstâncias que só o diabo pode explicar, veio a se apaixonar por
tória de meus ancestrais, o motivo da minha irresistível atração uma chinesa
excepcional. Excepcional porque comia arroz com
as mãos, em vez de com os clássicos
pelo pela contabilidade.
amor e pauzinhos.
Antes não soubesse que o meu sentimentalismo era heredi -

Pobre bispo! Ele que tantos milagres fizera não conseguiu

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que a anticonvencioflal chinesinha lhe dedicasse uma
parcela Em determinada
época, passou pela cidade
oriental. de operas, cuja prima -dona
uma
companhia
sequer de seu meigo coração distingma -se pelo
E numa tãrde brumosa a descrição vai por conta da minha beleza. E lá se foi o tio Acácio,
encanto e
invulgar
companhia e tudo.
-

imaginação -, entre juncos, papoulas e flores de lótus, faleceu Percorreu vários países, assistiu a mil e tantas
representa-
murmurando da paganíssima Lu -chu-tzé. (Que em paz
o nome ções, aplaudindo comentusiasmo crescente a sua bela amante.
a sua alma, que a do meu tio padre por certo está.) Mas lhe acabasse o dinheiro e
esteja como
já se tornassem raros
seus
presentes em moeda e joias, a mulher abandonou-o em
Roma. Lá morreu, não se sabe se de fome ou
paixão. Os da
5 Mas de todos os Bulhões o mais notável foi o meu tataravô minha família preferem
que em razão desta última, pois Acácio
Pedro Inácio, cujo herdei. é para eles um belo
nome
exemplo de fidelidade sentimental. Além de
Umlírico, o meu tataravô Pedro' Inácio! Usava fraque, belo, o único que conheceram entre seus componentes.
monóculo, e todas as tardes reunia os escravos da fazenda para
ouvi-lo recitar os clássicos franceses. E tamanha era sua estima
deu nomes de pintores, músicos
pelas artes que a seus escravos 7 TioPaulo, o mais moço dos irmãos do avô Pedro Inácio,
e
poetas. preferia jogar damas, contar anedotas picantes e dar beliscões
Quando moço, foi maior conquistador de
o nossa terra. nas
nádegas das escravas. Por limitar suas conquistas ao elemen-
Casado, cedeu o lugar a seu irmão Acácio. to africano e a sua cultura a histórias
frascárias, foi sumariamente
Amorte da esposa, porém, fez renascer nele a chama amo- banido da crônica de nossa família.
rosa da mocidade. Sem atentar para a velhice já se aproximando, Todavia, não se envergonharam os seus irmãos, quando da
vivia a peregrinar pelas fazendas de seus filhos e sobrinhos, ten- partilha da herança paterna, de o lesarem, dando-lhe, em vez das
tando em vão conquistar noras e sobrinhas. melhores terras, as melhores negras.
Certa ocasião, pernoitando em uma fazenda de parentes, Nem por isso sentiu-se
espoliado e
repetia sempre aos
que
onde moças bonitas e alegres passavam as férias, coincidiu que lhe insinuavam o contrário:
o quarto dado ao meu avô Pedro Inácio ficasse junto de um dos Sou grato a meu pai pelo gosto apurado em escolher as
-

ocupados por aquelas. paredes dos aposentos não


E como as escravas e a meus irmãos por não lhe reconhecerem essa
qua-
o teto, alta noite, ele as escalou. Contudo, não lidade.
chegassem até
logrou sucesso em seu intento. Não contara com uma despensa Atacado por terrível moléstia
(por que não dizer lepra?),
estreita que separava seu quarto do das moças. que aos
poucos lhe arruinava físico
o e
já sem recursos
para
No dia seguinte, encontraram-no morto, vitimado por uma
tratar-se, preferiu alforriar as escravas a vendê-las. Estas, por
fratura na
espinha. Morrera gloriosamente, buscando o amor, seu turno, não o abandonaram e até a sua morte
proveram o
entre queijos e cebolas. sustento dele.
Próximo à agonia, assistido pelas devotadas mulheres, balbu-
ciava continuamente:
6 Seu irmão Acácio, entretanto, não se casou.Tinha um O outro mundo não me assustaria tanto se me
garantis-
-

aguçado instinto de
viajante que o levava a perseguir as mulhe- sem ser
negras as onze mil virgens de Maomé.
res aonde quer que elas fossem.

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8 Deus meu! Não terminarei minhas memórias. O ho- Conversamos pouco, o bastante para saber que retornava
de
antepassados dispõ.em. Acabo de fazer uma
sanatório, onde deixara encerrado todo
mem põe e seus um
o sonho de
levar a
descoberta espantosa: não sou filho de meu
pai, nem de mi- existência bailando para os homens.
nha mãe!
Tomei conhecimento dessa incômoda revelação por acaso,
dias atrás,quando discutia as minhas teorias sobre a hereditarie- 10 Ao chegar a casa, senti remorsos de não ter consolado
dade com o médico que assistiu o parto da minha suposta mãe. Dora, de não lhe ter falado ternamente que também soudema -

Disse -me, num momento em que ele não conseguia contestar siado infeliz.
meus eu apenas substituIra um aborto.
argumentos, que I Mas durante Os
poucos minutos que conversamos, nada
Como minha mãe verdadeira não tivesse sobrevivido ao disso pude dizer-lhe, porque o esforço de conter, a todo custo,
a

e fosse dificil
meu nascimento explicou-me o médico uma
pergunta que desejava fazer-lhe não me permitiu. Foi uma
-
-

saber, entre tantos homens que frequentavam a sua casa, qual tarefa dura a de refrear minha curiosidade em
saber quanto lhe
seria meu
pai, trocaram-me pelo feto da minha mãe adotiva, custara a estada no
sanatório, talvez bem mais do que meus estu -

Maldita revelação! Agora não posso mais saber a causa da dos de genealogia.
minha vocação para o amor e a razão da minha calvície. E só
de pensar que nos meus estudos genealógicos gastei seis contos,
duzentos e trinta e cinco mil e quinhentos réis, sinto vontade de
destruir o mundo.
Resta-me somente um consolo: a queda das minhas teo-
rias não beneficiará meus clínicos. Entre os dez indivíduos

que o doutor Damião afirma estar o meu pai, não há um calvo

sequer. I

9 Acabo de me reconciliar com o mundo. Dora, que no


início destas memórias, erradamente, julguei ter-me custado

apenas oitenta mil-réis (não sabia naquela época em quanto


ficariam as. pesquisas genealógicas), surgiu ontem, aos
minhas
meus olhos, numa esquina. Há dois anos não a via. E foi com

surpresa que a encarei, vendo-a na minha frente, a ostentar


uma
gordura exagerada naquele corpo que um dia pertencera
a um cisne.
Nãopude conter a piedade ao vê-la gorda e flácida, sem a
antiga harmonia de movimentos, sem a graciosidade de formas.
Nem mesmo no olhar trazia aquela ternura de lírios, que tanto
bem fazia aos que dela se aproximavam.

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