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“There’s a crack in everything.

That’s how the light gets in.”


-Leonard Cohen, músico, na obra ’Anthem’ (1992).
Relatório de Visita à obra Douradores, de José Adrião Arquitectos

Ana Filipa Lemos


Materiais e Sistemas Constructivos
PG de Arquitectura de Interiores
5 de novembro de 2023

Douradores 192: Antiga Casa Pessoa

O projecto Douradores, da autoria do atelier de arquitectura José Adrião


arquitectos, ganhou o estatuto de nalista na edição dos prémios ibéricos FAD (Foment de
les Arts Decoratives) na categoria Interiorismo. O júri “valorizou a dedicada e rigorosa
recuperação dos valores históricos do edifício, que preserva as diferentes camadas e
sobreposições de frescos nas paredes.

O equilíbrio entre a arquitetura original recuperada, a decoração das paredes antigas do


século XIX, o uso de materiais atuais e a inserção das novas infraestruturas técnicas, criam

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Relatório de Visita à obra Douradores, de José Adrião Arquitectos

um interior de grande harmonia, onde o recurso a uma ilusão ótica, produzida pela
colocação de espelhos, sugere uma aparente continuidade visual com o projeto original.”

No âmbito da visita à obra do projecto de reabilitação Douradores, ou Antiga Casa


Pessoa, da autoria de José Adrião Arquitectos. Situada na Rua dos Douradores 192,
Lisboa, e adquirida por Pedro Ramos e Maria Eugenia (Maru) em 2014, esta é uma
belíssima obra de reabilitação, com foco na preservação do histórico, “tirando-lhe o pó” e
dando uma nova vida a um espaço que, nas curvas da vida, foi posto de lado e
abandonado.O ex-libris do projecto rapidamente traduziu-se nos frescos e nas pinturas
revelados posteriormente, que durante tantos anos estiveram tapados, cada vez por mais
camadas, à medida que novos inquilinos apareciam. A ideia nunca foi restaurar, por falta de
verbas, mas hoje não fariam nada diferente. Optaram, por proposta do atelier, de deixar
estas peças de arte com mais de 200 anos expostas, tal como as iam encontrando. A
empresa Elvira Barbosa cou encarregue dar uma nova vida aos frescos e os únicos que
poderiam trabalhar nas paredes. Fizeram um trabalho espetacular, sendo possível ver a
atenção ao detalhe pelo pormenor à face milimétrico entre o fresco e o estuque aplicado
posteriormente.

Foi inspirado na técnica Kitsugi, tendo semelhanças à loso a japonesa wabi-sabi,


que trabalham a aceitação do defeituoso e a ver a beleza na imperfeição, na
impermanência e no inacabado. “O Kintsugi tem muitas relações com a nossa proposta. É
uma técnica que consiste na colagem das ssuras de uma cerâmica partida com uma
massa que contém ouro. Isto é, o que aconteceu à taça, e o tempo, tornam-se
protagonistas e parte da sua história. É algo precioso que não se procura anular.”, explica
José Adrião no seu livro com escrita em jeito de entrevista “Nem Princípio Nem Fim”.

A equipa de arquitectura teve uma incrível sensibilidade nos detalhes, no brio em


cada milímetro projectado, na perfeição dentro da imperfeição, do eterno na nitude. É
uma obra que é o que é, não tenta ser nem nge ser o que não é. Assumidamente
imperfeita, assumidamente idosa - porque velhos são os trapos - e assumidamente
efémera. É uma obra repleta de contrastes que geram equilíbrio; a riqueza e pobreza dos
materiais - uma única pedra mármore com bastante expressão, escolhida a dedo na
pedreira, versus a escolha por louças comuns e de baixo custo; o novo e o velho; a
ausência e a imensidão de cor. Até nas carpintarias vemos esta atenção ao detalhe: ao
invés de ngir ser algo que não é - quase plasti cando o projecto -, a equipa opta por
manter as carpintarias originais detalhadas - ainda que melhoradas funcionalmente, como
é o caso das portadas -, e tudo o que é carpintaria nova seria o mais simplista possível,

O Pedro Ramos disse que o sentia como se fosse


uma senhora velhinha a quem era preciso tratar
com carinho e respeito.
Como se precisássemos de levar esta senhora à
sioterapia para que recuperasse de novo agilidade
e destreza. Penso que ambos entenderam esta
reabilitação como um ato de cuidar.
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-José Adrião, ‘Nem Princípio nem Fim’, Douradores, p. 143
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criando assim este paralelismo e vivência de dois mundos num só. Podemos ver também o
contraste das zonas comuns para as zonas privadas no tom da madeira - as zonas
comuns, como a escadaria, mantiveram o seu piso original de madeira escura, usada, com
todos os seus lados tortos e barrigas - imperfeições -, enquanto as zonas privadas, como
os corredores para os apartamentos e os próprios receberam um piso em pinho, mais
claro, mas mantendo um certo nível de intemporalidade.

Levantei a questão ao Pedro sobre a logística dos frescos: picavam até não haver
mais nada e o restante era tapado e nalizado com estuque? Para minha surpresa, o Pedro
disse-me que seria exatamente ao contrário. Picavam até sentirem que era o necessário.
Assim que estivessem felizes, paravam. E expus uma outra problemática de alguém que
dorme a pensar em tudo e mais alguma coisa: “mas não ca acordado à noite a pensar o
que estaria por baixo deste fresco? Se haveriam mais? Poderá haver, então!”. Ao que o
dono de obra, prestável e paciente, me disse “quem sabe, poderá haver! Fica para os
próximos que virão de decidir o que fazer”. Remeteu-me um pouco para o imaginário do
comprimido azul de Matrix, em que neste caso vi o Pedro como alguém que prefere a
ilusão do não-saber. Um Gato de Schrödinger em forma de edifício! Ao mesmo tempo, e
criando um paralelismo, aceitando o destino como é, com as suas imperfeições,
imprevistos, desilusões, felicidades. É neste aspecto que descrevo Douradores como um
projecto efémero, não no sentido de ter pouca duração, mas no sentido de ser passageiro,
transitório. Quem sabe o que fará quem virá a seguir.

Em conversa com o Pedro Ramos, foi possível notar a preparação por parte dos
donos de obra (Maria Eugenia e Pedro), assim como da equipa de arquitectura. Na altura
em que foi feita a reabilitação, o estado económico do país era outro. O país ultrapassava
uma crise de extrema amplitude e de prolongada duração. Tendo isto em conta, e de forma
a aumentar a economia circular, o Governo liberou e facilitou algumas regulamentações
quanto a reabilitações, o que facilitou a obra dos Douradores. Contudo, tiveram em conta
que, mais adiante, poderia ser necessário considerar as mudanças das legislações e,
assim, o espaço está preparado para ser convertido num hotel, quando e se for necessário,
tendo todos os roços criados, tapados com bolachas de momento, para a eventual
necessidade de iluminação de emergência.

Este parece ser um detalhe minucioso e sem muita importância, mas mostrou-me o
nível de brio que foi empregado neste projecto. É um detalhe que faz ou poderá fazer a
diferença para os donos de obra. E, caso assim seja, foi uma árvore plantada pela equipa
de arquitectura, e que não será a mesma a provar os frutos. Pensando nos outros que vêm
a seguir e pensando à posteriori, também é uma forma de projectar com a sustentabilidade
em mente.

Também falamos de como é frustrante a visão de luxo generalizada e pré-


concebida pela sociedade e, muitas vezes, por quem a de ne na legislação, em que as
estrelas hoteleiras são dadas de acordo com as comodidades apenas, e não tendo em
conta os aspectos mais subjetivos e abstractos - únicos - do projecto. Na minha opinião,
este é um edifício muito mais luxuoso do que muitos hotéis de 5 estrelas, mas porque,

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entre outras razões, não tem estrutura para ar condicionado, por exemplo - uma opção
tomada para manter os frescos intactos - teria uma pontuação bastante baixa, a nível de
estrelas. Concordo plenamente que deva ser tido em conta as comodidades disponíveis no
espaço, assim como acessibilidades, entre outras variantes, para esta classi cação.
Apenas acredito que deveria haver situações de excepção. Esta necessidade de enquadrar
cada projecto e obra em pequenas caixinhas e check-lists pode ser bastante redutora e
acredito que este é um ponto a ser tido em conta na portaria regulamentar do RJET, assim
como a necessidade de uma classi cação inteiramente separada das restantes para
património cultural e arquitectónico, como a baixa pombalina.

É também imperativo que se perceba a diferença e o peso que tal acarreta entre
construção e reabilitação. O Pedro Ramos disse, e muito bem, “é preciso desprover-nos de
qualquer pré-concepção que tenhamos feito do projecto na nossa cabeça e aceitar que
irão nascer imprevistos e custos que não estamos à espera numa reabilitação”. Mais isto
faz sentido quando falamos de uma reabilitação de um edifício histórico, com 200 anos, na
baixa pombalina, pós-terramoto de 1755.

Nestes casos, o ego que tem de falar mais alto será sempre o do edifício e não
deverá ser dos donos de obra, investidores ou clientes. O conforto não pode vir antes da
história do edifício, mas como complemento e adição. Espero não ser mal entendida, o
conforto é uma das prioridades quando projectamos interiores e deverá ser assim.
Contudo, numa reabilitação, a velhinha que é o edifício, como o Pedro Ramos descreve
encarecidamente, não pode ser jogada fora e ser trazida uma velhinha mais fácil de gerir,
apenas porque dá menos trabalho. Há trabalho sim, e mais ainda com uma reabilitação,
mas o conforto tem de andar de mão em mão com a história do espaço.

“O equilíbrio entre a arquitetura original


recuperada, a decoração das paredes antigas
do século XIX, o uso de materiais atuais e a
inserção das novas infraestruturas técnicas,
criam um interior de grande harmonia, onde o
recurso a uma ilusão ótica, produzida pela
colocação de espelhos, sugere uma aparente
continuidade visual com o projeto original.”
-Júris dos Prémios FAD 2021

A comodidade a que estamos habituados no nosso cotidiano não é a mesma de há 200


anos e temos de ter estes aspectos em conta quando projectamos. O edifício deverá ditar
o rumo que o projecto levará. O cliente terá de estar mentalizado que numa reabilitação
haverão sempre patologias, cicatrizes, marcas de guerra chamemos-lhes, ou até bagagem,
como se usaria a terminologia numa relação amorosa. Ao m de contas, isto não deixa de

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ser uma relação. Todos temos história, todos temos cicatrizes. É graças a estas cicatrizes
que hoje somos quem somos e isto deverá ser um motivo de orgulho e não de vergonha e
de querer reconstruir tudo, sem qualquer indício do que outrora fomos. Os edifícios são tal
e qual e deveriam ser levados como tal; sem querer demolir tudo e encaixar a imagem
mental que temos do projecto numa caixa redutora e convencional do que esperamos de
um projecto hoteleiro, onde há capital e investimento e lucro à mistura.

Apertamos tanto o pré-existente nesta caixa que perde a essência, não tem espaço
para orir e crescer, quem sabe mais forte do que os seus tempos áureos, até. Ao invés
disso, deveremos dar espaço para o projecto desenvolver-se, sem impor ideias pré-
concebidas - que funcionariam tal como uma parede nesta analogia da caixa e o seu
rótulo-, que acabam por esmagar e esmagar cada vez mais e de todos os lados o projecto,
até não restar nada de único.

Esta obra demonstra este aspecto na sua perfeição imperfeita, e na necessidade de


solucionar problemas, tendo a qualidade do projecto como prioridade. Depois de ter sido
tomada a decisão de manter os frescos intactos, surgiram outras problemáticas, como a
eletricidade e iluminação. É tudo uma questão de movimentações e jogo de cintura -
dança-se para lá, dança-se para cá, mantém-se os frescos, muda-se o projecto de
instalações elétricas. Tendo em conta que os frescos não seriam tocados ou restaurados,
apenas expostos, a equipa de arquitectura teve de arranjar uma solução para as
instalações elétricas e respectivas cablagens. Ora, se o plano vertical não era opção,
teriam de passar para os planos horizontais - cobertura e piso. Assim foi. Aumentaram a
altura do piso, para poder esconder e incluir todas as eletricidades, e o mesmo se fez com
a cobertura, trazendo o pé direito um pouco abaixo.

Surge a pergunta: então e como fez a equipa de arquitectura, que até aqui tinha
solucionado um problema - o desejo de ter instalações elétricas fora das paredes - mas
arranjou outro no último piso, visto este ter toda a estrutura da cobertura exposta? Onde
poderíamos esconder neste piso? Mais um passo de dança para lá, outro para cá, e
incluíram algumas peças soltas de madeira recuperada antiga, para que não se sinta a
diferença de aging ou “patine” - chamemos-lhe assim - entre as madeiras originais e estas,
posteriormente incluídas. E foi nestes pedaços, perdidos, de madeira recuperada e
reabilitada, que foram incluídas as cablagens para toda a instalação elétrica. São estes
tipos de detalhes que fazem um projecto único: a inovação de técnicas e soluções,
convencionais ou não-convencionais, para resolver o espaço de forma pragmática,
funcional e estética.

Se Deus está nos detalhes, de acordo com Mies Van Der Rohe, então José Adrião e
a sua equipa deverão ser os apóstolos - clubismos à parte.

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