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Relatório de Visita à obra Douradores, de José Adrião Arquitectos
um interior de grande harmonia, onde o recurso a uma ilusão ótica, produzida pela
colocação de espelhos, sugere uma aparente continuidade visual com o projeto original.”
criando assim este paralelismo e vivência de dois mundos num só. Podemos ver também o
contraste das zonas comuns para as zonas privadas no tom da madeira - as zonas
comuns, como a escadaria, mantiveram o seu piso original de madeira escura, usada, com
todos os seus lados tortos e barrigas - imperfeições -, enquanto as zonas privadas, como
os corredores para os apartamentos e os próprios receberam um piso em pinho, mais
claro, mas mantendo um certo nível de intemporalidade.
Levantei a questão ao Pedro sobre a logística dos frescos: picavam até não haver
mais nada e o restante era tapado e nalizado com estuque? Para minha surpresa, o Pedro
disse-me que seria exatamente ao contrário. Picavam até sentirem que era o necessário.
Assim que estivessem felizes, paravam. E expus uma outra problemática de alguém que
dorme a pensar em tudo e mais alguma coisa: “mas não ca acordado à noite a pensar o
que estaria por baixo deste fresco? Se haveriam mais? Poderá haver, então!”. Ao que o
dono de obra, prestável e paciente, me disse “quem sabe, poderá haver! Fica para os
próximos que virão de decidir o que fazer”. Remeteu-me um pouco para o imaginário do
comprimido azul de Matrix, em que neste caso vi o Pedro como alguém que prefere a
ilusão do não-saber. Um Gato de Schrödinger em forma de edifício! Ao mesmo tempo, e
criando um paralelismo, aceitando o destino como é, com as suas imperfeições,
imprevistos, desilusões, felicidades. É neste aspecto que descrevo Douradores como um
projecto efémero, não no sentido de ter pouca duração, mas no sentido de ser passageiro,
transitório. Quem sabe o que fará quem virá a seguir.
Em conversa com o Pedro Ramos, foi possível notar a preparação por parte dos
donos de obra (Maria Eugenia e Pedro), assim como da equipa de arquitectura. Na altura
em que foi feita a reabilitação, o estado económico do país era outro. O país ultrapassava
uma crise de extrema amplitude e de prolongada duração. Tendo isto em conta, e de forma
a aumentar a economia circular, o Governo liberou e facilitou algumas regulamentações
quanto a reabilitações, o que facilitou a obra dos Douradores. Contudo, tiveram em conta
que, mais adiante, poderia ser necessário considerar as mudanças das legislações e,
assim, o espaço está preparado para ser convertido num hotel, quando e se for necessário,
tendo todos os roços criados, tapados com bolachas de momento, para a eventual
necessidade de iluminação de emergência.
Este parece ser um detalhe minucioso e sem muita importância, mas mostrou-me o
nível de brio que foi empregado neste projecto. É um detalhe que faz ou poderá fazer a
diferença para os donos de obra. E, caso assim seja, foi uma árvore plantada pela equipa
de arquitectura, e que não será a mesma a provar os frutos. Pensando nos outros que vêm
a seguir e pensando à posteriori, também é uma forma de projectar com a sustentabilidade
em mente.
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entre outras razões, não tem estrutura para ar condicionado, por exemplo - uma opção
tomada para manter os frescos intactos - teria uma pontuação bastante baixa, a nível de
estrelas. Concordo plenamente que deva ser tido em conta as comodidades disponíveis no
espaço, assim como acessibilidades, entre outras variantes, para esta classi cação.
Apenas acredito que deveria haver situações de excepção. Esta necessidade de enquadrar
cada projecto e obra em pequenas caixinhas e check-lists pode ser bastante redutora e
acredito que este é um ponto a ser tido em conta na portaria regulamentar do RJET, assim
como a necessidade de uma classi cação inteiramente separada das restantes para
património cultural e arquitectónico, como a baixa pombalina.
É também imperativo que se perceba a diferença e o peso que tal acarreta entre
construção e reabilitação. O Pedro Ramos disse, e muito bem, “é preciso desprover-nos de
qualquer pré-concepção que tenhamos feito do projecto na nossa cabeça e aceitar que
irão nascer imprevistos e custos que não estamos à espera numa reabilitação”. Mais isto
faz sentido quando falamos de uma reabilitação de um edifício histórico, com 200 anos, na
baixa pombalina, pós-terramoto de 1755.
Nestes casos, o ego que tem de falar mais alto será sempre o do edifício e não
deverá ser dos donos de obra, investidores ou clientes. O conforto não pode vir antes da
história do edifício, mas como complemento e adição. Espero não ser mal entendida, o
conforto é uma das prioridades quando projectamos interiores e deverá ser assim.
Contudo, numa reabilitação, a velhinha que é o edifício, como o Pedro Ramos descreve
encarecidamente, não pode ser jogada fora e ser trazida uma velhinha mais fácil de gerir,
apenas porque dá menos trabalho. Há trabalho sim, e mais ainda com uma reabilitação,
mas o conforto tem de andar de mão em mão com a história do espaço.
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ser uma relação. Todos temos história, todos temos cicatrizes. É graças a estas cicatrizes
que hoje somos quem somos e isto deverá ser um motivo de orgulho e não de vergonha e
de querer reconstruir tudo, sem qualquer indício do que outrora fomos. Os edifícios são tal
e qual e deveriam ser levados como tal; sem querer demolir tudo e encaixar a imagem
mental que temos do projecto numa caixa redutora e convencional do que esperamos de
um projecto hoteleiro, onde há capital e investimento e lucro à mistura.
Apertamos tanto o pré-existente nesta caixa que perde a essência, não tem espaço
para orir e crescer, quem sabe mais forte do que os seus tempos áureos, até. Ao invés
disso, deveremos dar espaço para o projecto desenvolver-se, sem impor ideias pré-
concebidas - que funcionariam tal como uma parede nesta analogia da caixa e o seu
rótulo-, que acabam por esmagar e esmagar cada vez mais e de todos os lados o projecto,
até não restar nada de único.
Surge a pergunta: então e como fez a equipa de arquitectura, que até aqui tinha
solucionado um problema - o desejo de ter instalações elétricas fora das paredes - mas
arranjou outro no último piso, visto este ter toda a estrutura da cobertura exposta? Onde
poderíamos esconder neste piso? Mais um passo de dança para lá, outro para cá, e
incluíram algumas peças soltas de madeira recuperada antiga, para que não se sinta a
diferença de aging ou “patine” - chamemos-lhe assim - entre as madeiras originais e estas,
posteriormente incluídas. E foi nestes pedaços, perdidos, de madeira recuperada e
reabilitada, que foram incluídas as cablagens para toda a instalação elétrica. São estes
tipos de detalhes que fazem um projecto único: a inovação de técnicas e soluções,
convencionais ou não-convencionais, para resolver o espaço de forma pragmática,
funcional e estética.
Se Deus está nos detalhes, de acordo com Mies Van Der Rohe, então José Adrião e
a sua equipa deverão ser os apóstolos - clubismos à parte.
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