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CAPÍTULO 3

O LÍDER ALÉM DOS PARTIDOS

Como vimos na introdução, a pesquisa contemporânea sobre o populismo pode ser


dividida em dois grupos, dependendo se trata o populismo como uma ideologia e um estilo,
ou se o trata como um movimento estratégico para remodelar a autoridade política. A leitura
ideológica busca responder à questão ontológica: o que é o populismo? A leitura estratégica
busca responder a uma pergunta diferente: qual é a estratégia populista para conquistar o
poder, e o que o populismo faz às instituições democráticas? A abordagem que adotei neste
livro se inspira em ambas as leituras, embora minha preocupação central esteja voltada para a
última pergunta. Como argumentei no Capítulo 1, considero a democracia populista como
inconcebível fora do dualismo que opõe os muitos (que não detêm poder) e os poucos (que
não fazem parte verdadeiramente do povo, pois detêm poder político e social). Essa é a
condição ativadora para o antieconomicismo populista. Com base nisso, alguns estudiosos
entendem o populismo como um apelo ao governo direto. No entanto, considero essa
conclusão enganosa, pois a unificação ideológica da pluralidade social sob um líder (e uma
narrativa elaborada por esse líder e seus intelectuais) implica uma forma representativa de
política, interessada em depor uma classe política existente por uma nova, não permitindo
que “o povo” governe diretamente. O povo populista permanece como agente de consenso,
não de governo direto.

Em anos anteriores, Margaret Canovan delineou o problema de maneira bastante


clara. Ela explicou que quanto mais a democracia se enraíza e quanto mais as sociedades se
tornam inclusivas, mais os cidadãos precisam de uma ideologia capaz de orientar suas mentes
e criar uma imagem inteligível de uma realidade fragmentada, caótica, multifacetada e
intrincada (devido aos direitos que desfrutam e à abertura de sua sociedade). Inclusão e
diversificação caminham juntas na sociedade democrática; em alguns momentos, essas duas
coisas geram angústia para aqueles que veem a fragmentação e a abertura como sinais de
fraqueza. Vistos sob essa perspectiva, inclusão e diversificação parecem representar o
despojamento do poder do povo soberano (onde esse “povo” é concebido como coletivo, não
como a soma de milhões de cidadãos individuais). Por esse motivo, parece que a própria
democracia prepara o terreno para o populismo quando fragmenta reivindicações e
individualiza ideias e interesses (mesmo mantendo o critério geral do povo soberano).
Historicamente, a representação política tem sido o meio mais eficaz de resolver o problema
de combinar universalidade e particularidade, atendendo à necessidade de unidade e
pluralismo. A representação política, por meio de eleições, mostrou-se capaz de unificar
reivindicações sem fechar o jogo das reivindicações. Na prática, isso é feito gerenciando
exclusões temporárias (daí a dialética maioria-oposição), mas sem produzir maiorias
holísticas ou humilhar oposições. O fato de os representantes políticos serem obrigados a
compartilhar suas ideias apenas com seus eleitores - não com toda a nação como um corpo
homogêneo - significa que a representação política é em si uma refutação da democracia
populista. De fato, para adquirir a legitimidade moral e política necessária para fazer leis para
todos, a representação deve articular o pluralismo partidário sem impor uma unidade não
reflexiva sobre uma massa indistinta de indivíduos. A representação política por meio de
eleições é um processo de unidade e pluralidade, não apenas de unidade; é, portanto, um
processo de unificação parcial, não de maiorias holísticas. Pressupõe e fomenta o pluralismo,
mas seu pluralismo não envolve uma pluralidade socialmente dada de grupos e
pertencimentos atribuídos (como ocorria em governos antigos de composição mista). O
pluralismo partidário é uma construção política feita por cidadãos legalmente livres e iguais
(eleitores e eleitos) em suas divisões conflitantes ou alianças simpatizantes. A escolha de
tomar partido a favor ou contra é uma característica comum do partidarismo e do pluralismo.
Enquanto inibe a tendência monopolística e centralizadora do poder político, permanece
como indicação de respeito pelos outros, pois implica um “exercício político comparativo”
que presume a existência de outras alternativas. Ser um partidário solitário ou um partidário
absoluto é simplesmente sem sentido. No final, o partidarismo deseja o pluralismo e
estabiliza o pluralismo. Retira a absolutidade que qualquer lealdade tende a fomentar, ao
mesmo tempo em que reconhece a relativa praticidade de todas as realizações e certezas
políticas. Mesmo fazendo isso, consegue evitar tornar os cidadãos apáticos, cínicos ou
indiferentes. A democracia representativa é estruturalmente baseada em partidos e
partidarismo dessa forma; e ambos implicam pluralismo, que é intrínseco à representação.

A democracia populista é o oposto, e o cerne de sua oposição reside na proclamação


da representação como incorporação em detrimento da representação por mandato. Como
observa Hannah Fenichel Pitkin em seu estudo fundamental sobre representação, “Se o
principal objetivo a ser alcançado é a soldagem da nação em um todo unificado... então é
tentador concluir que um único símbolo dramático pode alcançar isso de maneira muito mais
eficaz do que todo um legislativo de representantes”. A questão não é se os líderes populistas
aceitam ou recusam a representação, porque não pode haver populismo sem que alguém faça
a alegação de representar o povo. A questão é o tipo de representação ativado pela
reivindicação populista. Neste capítulo, demonstro que a representação como incorporação é
o modelo populista e mostro que este é o locus de sua principal diferença em relação à
democracia representativa.

A visão do populismo sobre o povo como um coletivo unitário que absorve partidos e
partes corresponde a uma concepção da política que parece contraditória. Por um lado, exalta
o poder das emoções e símbolos, assim como fazem os partidos. Mas, por outro lado, não se
conforma a uma concepção partidária da política, pois rejeita a política pragmática
(compromisso e coalizão) e, assim, rejeita a ideia de uma limitação em sua posição partidária.
Vemos o retorno dessa contradição em todas as experiências populistas: seu partidarismo é
forte quando na oposição, mas seu destino uma vez no poder é muito incerto. A dualidade da
política democrática, como “redentora” e “pragmática”, pode ser usada para revelar o
problema da incapacidade dos governos populistas de entregar o que prometeram: representar
as queixas das pessoas sem replicar o comportamento corrompido do establishment que
criticam tão veementemente. Todos os governos populistas são atormentados pela seguinte
contradição: fazem proclamações fortes de antagonismo e antieconomicismo, mas, como não
instituem uma ditadura, precisam continuar a negociar com a oposição. Para reconciliar essas
duas posições, os líderes populistas precisam desempenhar o lado “pragmático” do trabalho
democrático disfarçadamente (sem dizer ao povo), ao mesmo tempo em que dizem
explicitamente ao povo que estão fazendo o oposto.

O paradoxo do populismo no poder é que ele não pode realizar seu trabalho
pragmático abertamente, como o sistema de partidos em uma democracia representativa faria.
Sua identidade pública e popular é adaptada ao lado redentor do trabalho democrático. Como
veremos, isso cria um cenário impossível, forçando o populismo a ser identificado com um
líder, cuja determinação cesarista é a única garantia de que a parte mais popular governará
sem fazer concessões. Ser pragmático, mas sem parecer ser, coloca os líderes em uma posição
delicada. Eles se tornam a única garantia de que a corrupção e o mau governo não são
responsabilidade de sua administração, mas sim a consequência fatal de ser pragmático:
como disse o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva a seus apoiadores, “Não pensem
que o erro de cada indivíduo [ou seja, corrupção] é culpa pessoal deles... O que está
acontecendo [ou seja, corrupção] é o resultado de uma acumulação de deformidades
enraizadas na estrutura política de nosso país”. Líderes populistas são, portanto, essenciais.
Eles impulsionam a retórica da redenção e asseguram ao povo que o poder não os tornará
semelhantes ao antigo establishment.

Minha tese, portanto, é que devemos buscar a fonte dessa contradição inevitável não
na ideologia maniqueísta do populismo, mas no tipo de representação que o populismo
pratica. A representação como incorporação se traduz em comportamentos governamentais
que podem ser (e geralmente são) tão defeituosos quanto os comportamentos gerados pela
representação partidária em uma democracia representativa. No entanto, a representação
incorporada carece da capacidade que torna a representação partidária suportável: a
capacidade de garantir que o pluralismo e a alternância no governo possam funcionar como
estratégias de controle. Como veremos neste capítulo, a ideia de representação como
incorporação cria um líder irresponsável e uma política que não pode ser controlada usando
os dois conjuntos de autoridade que a democracia tem à sua disposição, instituições e opinião.
Essa dinâmica explica a centralidade da retórica populista: é a habilidade do líder
representativo em comandar a fé. O populismo pertence à arte da persuasão, porque seus
líderes não querem simplesmente transmitir os testemunhos de massas desempoderadas, ou
representantes de um grito de descontentamento e oposição. A construção do povo
despossuído e a exaltação da contestação não são sem propósito; tampouco são um fim em si
mesmos.

Mas a representação como incorporação é totalmente inútil se alguém busca garantir


que a função redentora não seja apenas uma promessa vazia. Isso ocorre porque a
representação como incorporação é um tipo de representação que se refere ao chefe de
Estado. É uma função institucional que possui uma postura autoritária inevitável. Líderes
populistas ocupam o papel presidencial para transformar sua encarnação popular em uma
função legislativa. Isso cria o paradoxo de que eles são imóveis (para preservar a pureza de
seu papel) ou devem delegar o trabalho sujo de compromissos e negociações a um corpo de
legisladores (isso faz sentido com a proposta recente do presidente Maduro da Venezuela de
ter novas eleições parlamentares, mas não presidenciais).

A fonte do problema populista reside na identificação da representação e


incorporação. Isso compromete o pluralismo por princípio, que é apenas garantido pela
representação como mandato eleitoral. No final, a incapacidade do populismo de conciliar as
políticas “redentoras” e “pragmáticas” decorre do uso de um modelo de representação
incapaz de fazer as pazes com o pilar da democracia partidária - ou seja, o pluralismo
partidário, ou o sistema de partidos como paradigma. Isso explica por que um líder populista
no poder deve dar à luz a uma nova forma de democracia para sobreviver; e isso, por sua vez,
cria o risco de que o líder desfaça as instituições estatais e os procedimentos democráticos de
maneiras que podem ser fatais para todo o sistema político e administrativo.

A FIGURA, A VOZ E O PODER MONÁRQUICO

REDENÇÃO, CARISMA E UNIFICAÇÃO

Todos os regimes populistas tomam o nome de seu líder. “A construção de uma


subjetividade popular [...] atinge um ponto em que a função homogeneizadora é
desempenhada por um nome puro: o nome do líder”. “Um conjunto de elementos
heterogêneos” tem sucesso quando o rosto de um líder trabalha “uma superfície de inscrição”
que literalmente constitui o coletivo. Com o declínio do papel político das classes e da
política de classes, a desorganização e heterogeneidade da sociedade encontra seu princípio
de identificação no “nome do líder”. Este líder carrega (por fora) o povo e se torna sua voz e
figuração.

Então, que tipo de líderes representativos são os líderes populistas? Sua postura
monárquica inspirou Canovan e Ernesto Laclau a conectá-los ao unificador artificial de
Thomas Hobbes, que dissociava os indivíduos no Estado. Sua escolha reflete a ambiguidade
não resolvida do populismo. O líder populista não cria o Estado, como o agente
representativo de Hobbes faz - e Laclau afirma isso bastante claramente. Nem o líder pode se
contentar com a representação formalista e jurídica de autorização de Hobbes. O líder
populista é emocionalmente e propagandísticamente ativo em seu esforço diário para
reconquistar a autorização do povo; e esse esforço não é, e não pode ser, simplesmente
institucional. A analogia com Hobbes não funciona porque o agente representativo de Hobbes
é construído de tal forma que põe fim a toda mobilização e atividade política fora do Estado.
Ocorre como um una tantum, como um ato primário de renúncia pelos indivíduos que
compõem a multidão para recuperar seu poder de decidir sobre sua segurança. O
construtivismo populista não é o construtivismo hobbesiano.

O construtivismo populista também não é meramente ou simplesmente uma forma de


reivindicação de representação. Embora os líderes populistas certamente sejam os
construtores do sujeito coletivo porque sua narrativa é capaz de unificar várias reivindicações
e interesses, seu objetivo é trazer sua investidura dentro do estado e governar, não
simplesmente mobilizar cidadãos e criar condições de interrupção do status quo, como na
ideia althusseriana de interpelação, que inspirou o construtivismo populista. O líder não
apenas se apresenta diante da plateia; e sua representação não deve ser “meramente
simbólica” ou servir como um unificador para diversas reivindicações diferentes. Embora “a
irrupção simbólica de um marcador de exclusão na esfera pública” seja um modo de
identificação populista, não é o elemento que nos ajuda a entender o tipo de representação
que o populismo ativa.

O líder populista desempenha o papel do “reconstrutor da autoridade”, não apenas o


de contrapoder. Não por acaso, esse líder surge em tempos de angústia social, que veem a
decomposição da representação tradicional. Isso não significa que ele replique a
representação por mandato e a democracia partidária, no entanto: ele “absorve” o corpo
coletivo em sua pessoa e age “como” o povo, condição para agir “para” o povo. Isso o
distingue ainda mais de representantes partidários comuns, que nunca afirmaram ser “como”
e falar “como” seu povo para agir “para” eles. O representante como plenipotenciário não
suporta a limitação que um mandato eleitoral imporia a ele. Ela precisa de um mandato muito
mais amplo. O tipo de representação que se adequa melhor a essa tarefa é aquela que elimina
a distância entre o líder e o povo, mas sem retornar à democracia direta. De fato, como
explicarei mais tarde, o único aspecto de direção presente aqui consiste no fato de que a
representação ocorre sem intermediários organizados entre o líder e o povo.

Em resumo, os paradigmas de autorização, representação simbólica e mandatos


eleitorais não nos ajudam a entender a relação representativa dos líderes populistas com seu
povo.

De certa forma, o líder populista ecoa a figura carismática cujo surgimento Max
Weber anunciou em seu trabalho: a figura que funciona para revitalizar a política parlamentar
por meio de sua habilidade retórica para envolver as massas. É difícil dizer se o líder
populista é verdadeiramente carismático. Mas isso não é o ponto, porque o carisma não é um
fato objetivo e ninguém determina o carisma do líder além do povo. E a recepção do povo
não registra necessariamente as qualidades objetivas do ator: registra as imaginadas e
simbólicas, criadas pelas próprias palavras e narrativa do ator.

O líder populista também tem alguma semelhança com o príncipe de Maquiavel. O


secretário florentino escolheu estudar o caso mais difícil de fundação - o de um “outsider” ou
“o homem privado” capaz de criar um principado por suas forças ou virtudes sozinho. É
arriscado estabelecer muitos paralelos entre o líder heróico de Maquiavel, que cria um estado
do zero, e o líder populista, que sobe as escadas de um Estado existente. Mas é difícil pensar
no populismo sem tanto um líder quanto uma população insatisfeita. Como Maquiavel nos
ensina, sem os israelitas escravizados prontos para seguir o caminho da libertação, Moisés
não seria concebível. Os líderes populistas não surgem quando a economia cresce e os
cidadãos se sentem em comunicação com as instituições democráticas. Eles surgem em
tempos de dificuldades econômicas, quando os cidadãos testemunham violações grosseiras da
igualdade em meio à indiferença geral de seus representantes, e em tempos em que os mais
poderosos adquirem mais voz no estado. A reivindicação do líder populista de incorporar a
condição de exclusão é o que o torna atraente. Isso também torna o populismo um “grito”
contra a crise de legitimidade na democracia representativa. Portanto, estudiosos simpáticos
ao populismo veem o líder “redentor” como um sintoma e possível solução para uma crise de
legitimidade: “O conteúdo da promessa redentora da democracia é poder para o povo: nós, o
povo, devemos assumir o controle de nossas vidas e decidir nosso próprio futuro”.

Nos governos populares antigos, o capopopolo - composto pelo tribuno, pelo duque e
pelo demagogo - foi o precursor do líder carismático na moderna democracia de massa. A
descrição de Theodor Mommsen de Júlio César como chefe da “nova monarquia”, que pôs
fim à república conflituosa e corrupta e à miséria da guerra civil, inspirou tanto Weber quanto
Carl Schmitt (que são os teóricos que mais contribuíram para o avanço de uma interpretação
plebiscitária e populista da democracia). O capopopolo era um líder que transformava o apoio
do povo em uma fonte criativa de energia com a qual ele conseguia mudar o caráter do
Estado, tanto interna quanto internacionalmente. Este foi o modelo de Weber de um líder
carismático: um “verdadeiro estadista’, como Mommsen escreveu sobre César, que “não
serviu ao povo por recompensa - nem mesmo pela recompensa de seu amor - mas sacrificou o
favor de seus contemporâneos pela bênção da posteridade, e acima de tudo pela permissão de
salvar e renovar sua nação”.

O mesmo pode ser dito sobre a obra de Schmitt: sua concepção de representação
como uma forma de autorização antiliberal que reconstrói a autoridade do Estado contra
divisões partidárias é certamente inspiradora para um líder populista salvador. Um líder desse
tipo não busca legitimidade por meio da responsabilidade formal e defesa partidária, mas
utiliza as eleições como aclamações.
A redenção, o carisma e a unificação andam de mãos dadas, e nos levam ao cerne do
líder populista. Essas qualidades têm acompanhado o fenômeno populista ao longo de suas
diversas fases e países, mesmo que os meios e as linguagens tenham mudado, desde o modo
clássico da “paternidade” salvífica do peronismo até o modelo de um líder de audiência como
Donald Trump. Trump dedica parte de seu tempo todos os dias tuitando para os americanos e
comentando sobre os eventos relacionados à sua presidência. Isso serve para diminuir ou até
anular o papel inspetivo da mídia, que se baseia e comenta essencialmente o que ele diz
(assim como o povo faz). A internet é um fator poderoso que ajuda a reduzir a distância entre
o povo e o poder. No entanto, para líderes populistas passados e presentes, o ato formal de
votar serve apenas para revelar o que já existe. Sua legitimidade vem de sua popularidade
cotidiana entre a audiência.

Seja qual for a nossa interpretação, a liderança carismática pressupõe dois fatores
entrelaçados: uma espécie de fé religiosa que as massas têm em seu líder providencial e uma
identificação irracional das massas com o líder. Essas duas coisas tornam o populismo uma
forma de teologia política (como reconstrução de autoridade) e o afastam ainda mais da
democracia representativa. No primeiro capítulo de seu livro “Razão Populista”, Laclau
analisa as diferenças estruturais entre “públicos” e “multidões”. Ele argumenta que a primeira
é o terreno do publicista (e dos organizadores em política eleitoral tradicional), enquanto a
segunda é o terreno do líder incarnatus. O propósito comum e a unificação organizada das
multidões exigem um único líder: esse único líder cria uma identidade e pretende apenas
“servir à causa”, que vem antes de qualquer outra coisa, incluindo a limitação constitucional
de poderes, direitos básicos e procedimentos democráticos. Multidões desorganizadas não
podem ser organizadas em torno de deliberações racionais; nem podem ser organizadas em
torno de grupos partidários, que buscam fazer da arena parlamentar o local de seus
compromissos. Devemos, portanto, perguntar: quem é o ator soberano, a multidão ou os
cidadãos? Em outras palavras, a democracia se refere à unificação das massas, ou se refere à
dialética da oposição majoritária dentro de uma esfera política habitada por identificações e
grupos partidários? A especificidade do populismo gira inteiramente em torno dessa
distinção. Nesse sentido, como venho argumentando ao longo deste livro, uma análise do
populismo acaba sendo uma análise das interpretações da democracia.

A criação de um líder populista é uma empreitada estratégica que requer o trabalho de


“político-intelectuais”. Esses intelectuais “ajudam” o incarnatus a ampliar as categorias para
moldar a narrativa e o ajudam a criar símbolos eficazes. Cristina Kirchner, presidente da
República Argentina, criou um Secretariado do Pensamento Nacional em 2014, e Laclau foi
seu intelectual orgânico. Ele contribuiu para a construção do kirchnerismo mitologizando a
morte de seu marido, Néstor, e construindo um time de futebol “para o povo” com a estrela
do futebol Diego Maradona. Em um artigo acadêmico que ele escreveu em 2005, Laclau já
teorizava sobre o que faria para a presidente Kirchner. E nas “Conclusões” de sua obra
“Razão Populista”, ele sintetizou uma “série de decisões” teóricas e políticas que uma
construção populista exigiria, na forma de “sugestões” ao príncipe. A experiência política de
Laclau em seu próprio país, juntamente com sua teoria, torna suas intuições um guia útil para
o papel representativo do líder populista. Mas antes de examinarmos a fenomenologia da
representação como encarnação, devemos responder a duas objeções frequentemente
levantadas sobre a afirmação de que a liderança é um elemento essencial do populismo.

DUAS OBJEÇÕES PRELIMINARES

A primeira objeção refere-se à natureza do movimento populista, que muitos


defensores querem manter separado do desejo pelo poder. Este é um ponto crucial, e com o
qual concordo veementemente. No entanto, é importante precisamente porque nos permite
entender melhor o populismo em sua totalidade. Casos empíricos corroboram a distinção
entre o populismo como um movimento da sociedade civil, por um lado, e o populismo como
um movimento que deseja governar, por outro. Esses casos também demonstram que o
populismo pode assumir a forma de uma retórica de protesto sem projetar poder populista.
Recentemente, testemunhamos vários casos de reivindicações antirrepresentativas por
movimentos sociais que queriam ser independentes dos eleitos e evitar tornar-se entidades
eleitas. Um movimento populista não precisa ter - nem necessariamente deseja - líderes
representativos para desempenhar o papel de escrutinar e denunciar aqueles no poder. Isso foi
o caso dos movimentos populares e extrapartidários de protesto, como o Girotondi na Itália
em 2002, Occupy Wall Street nos Estados Unidos em 2011, Indignados na Espanha em 2011
e, mais recentemente, os Coletes Amarelos na França (um movimento horizontal de protesto
que recusa qualquer unificação representativa e resiste às tentativas de Jean-Luc Mélenchon
(populismo de esquerda) e Marine Le Pen (populismo de direita) de dar-lhe voz.

A revolta é popular, mas nem sempre é populista. Sem uma narrativa organizadora, a
aspiração de conquistar o poder institucional e um líder que afirme que seu povo é a
verdadeira expressão do verdadeiro povo, um movimento popular permanece “meramente”
um movimento democrático sacrossanto de protesto e contestação. Esse movimento se opõe
às tendências sociais que os cidadãos julgam ter traído os princípios básicos de igualdade que
a sociedade prometeu respeitar e cumprir. Isso significa que minha resposta a essa primeira
objeção importante é a seguinte: o populismo deve ser avaliado e julgado em relação à
própria diarquia democrática - como um movimento de opinião e um sistema de tomada de
decisões. É incorreto tratar o populismo como idêntico aos “movimentos populares”,
movimentos de protesto ou “o popular”, porque pode ser muito mais do que todas essas
coisas.

Como argumentei na introdução, não devemos equiparar todos os movimentos que


resistem a decisões com o populismo, como se a democracia estivesse apenas dentro do
Estado. Há uma relação essencial entre os movimentos externos e a tomada de decisões
internas. Democratas minimalistas e céticos buscam separá-los quando questionam a
qualidade das decisões democráticas relacionadas às opiniões e preocupações dos cidadãos.
Qualquer tentativa de isolar as instituições das ações públicas equivale a fazer da democracia
o nome de uma ordem política que é pouco diferente de um regime autoritário. Certamente
podemos ter retórica e mobilização populistas sem poder populista, ou antes que o poder
populista surja. Nesse caso, temos uma representação simbólica que unifica um coletivo sem
incorporação por meio de um marcador ou representante apical. “Somos os 99%” foi um
movimento representativo desse tipo. Andreas Kalyvas descreve o pensamento de Weber de
maneira bastante clara, e podemos usar a mesma descrição aqui: esse movimento de protesto,
como outros de sua espécie, pode ser tratado como um “movimento carismático” sem líderes.
“Aqui, engajamos na democracia horizontal [...] Isso significa que não temos líder - todos nós
lideramos”. Uma reivindicação que unifica diferentes cidadãos além das classes, mas carece
de um projeto de conquistar o poder, não é uma reivindicação para a construção de
autoridade. Isso requer outro tipo de dispositivo representativo, como veremos com mais
detalhes mais tarde. Sempre que o populismo busca o poder do Estado, o líder se torna tanto
inevitável quanto dominante, porque o populismo não quer ser identificado com formas
tradicionais de representação (como partidos).

Chegamos, assim, à segunda objeção. Essa segunda objeção é levantada por cientistas
sociopolíticos como Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser, que resistem em identificar o
populismo com o líder. Eles resistem a esse movimento porque os diversos casos que
estudam globalmente revelam um cenário diversificado que não se encaixa em um “líder
populista prototípico”. Certamente, o caráter, a linguagem, os clichês e o conteúdo das
mensagens que os líderes escolhem são contextuais e profundamente enraizados nas
qualidades éticas médias de seu país. Por exemplo, “a ligação entre populismo e líderes
fortes” nos remete a Juan Domingo Perón e à figura militar do caudilho, que tem sido um
ponto de partida frequente para líderes populistas na América Latina, mas dificilmente é uma
regra geral. O populismo europeu não produz caudilhos. Mudde e Rovira Kaltwasser também
argumentam que é problemático identificar o líder populista com um líder carismático
weberiano, porque a maioria dos líderes reais é verdadeiramente comum. Para essa objeção,
poderíamos responder que a transformação da pessoa comum (outsider) em um representante
extraordinário requer um tipo de momento emocional, religioso ou carismático: certamente
requer um líder cuja normalidade seja irresistivelmente atraente e vá além das vidas normais
daqueles que se identificam com ele ou ela. Como o carisma não é uma qualidade que pode
ser separada da fé das pessoas, não há uma perspectiva externa da qual possamos decidir se
um líder é carismático. “A aceitação da liderança carismática não depende apenas dos
verdadeiros crentes do carisma; pode ser induzida simplesmente pela percepção de que não
há alternativa. O líder carismático tem que definir a situação de tal forma que os não-crentes
serão induzidos a aceitar sua reivindicação”.

Retornando à ideia de que os líderes populistas têm muitas variações contextualmente


numerosas, Mudde e Rovira Kaltwasser listam algumas generalizações que nos fariam
reconhecer um líder populista, mas que não se encaixam em um “líder populista prototípico”.
Os registros que eles propõem são ricos e nuances. Um líder populista pode ser um outsider
em relação à maioria étnica ou à elite dominante, como foi o caso de Alberto Fujimori no
Chile e Evo Morales na Bolívia; um outsider em relação a uma elite política (mas não social),
como Silvio Berlusconi e Trump; um outsider-insider, como Jörg Haider da Áustria ou
Corneliu Vadim Tudor, fundador do Partido Grande Romênia, ou como um ator que deixa um
partido para criar o seu próprio, como Fernando Collor de Mello, presidente do Brasil, ou
Geert Wilders, o conservador holandês que estabeleceu seu próprio partido populista. As
categorizações sociológicas podem variar, e os estudiosos estão certos em nos alertar contra
generalizações rápidas. No final de sua classificação sociológica, Mudde e Rovira Kaltwasser
aventuram uma definição que soa como uma máxima: “O populismo pode ser pensado como
política para pessoas comuns por líderes extraordinários que constroem perfis comuns”.

Nos capítulos anteriores, dissecamos a “normalidade” como o oposto do


“establishment”, e argumentei que os líderes populistas não precisam ser específicos em seu
programa. É importante que eles usem uma linguagem de condenação, declarando os
inimigos do povo como corruptos ou imorais, e declarando que o líder populista está
determinado a levar o verdadeiro povo ao poder. Isso é o que todos os líderes populistas
fazem, embora suas características sociais sejam diferentes. Mas todos os líderes populistas
fazem uma reivindicação de autoridade - o que implica uma prática representativa - em
relação à qual as várias características sociológicas são indiferentes.

Todos os líderes populistas encenam uma performance representativa, o que os torna


capazes de serem vistos e aceitos por seu povo como a encarnação desse mesmo povo. Isso é
o que distingue sua liderança da representação por mandato. Uma vez que conquistar e
construir poder dentro do Estado é o objetivo, a pergunta a ser feita seria: como o líder
deveria se tornar parte do establishment sem ser uma figura “estabelecimentarista”? A
questão importante em relação aos líderes populistas é, portanto, não sociológica, mas sim
normativa e política. O dispositivo representativo é o processo no qual vou me concentrar
aqui, a fim de explicar como uma democracia populista é construída e explorar como ela se
parece quando comparada com a democracia representativa. Este é o ponto de comparação
que devemos usar se quisermos estudar e julgar o populismo como um fenômeno que se
desenvolve de dentro da democracia e a estende até suas fronteiras extremas. As perguntas
que esta seção pretende responder são as seguintes: que tipo de representação o populismo
promove para fazer com que o líder pareça permanentemente como um outsider, e que tipo de
líder representativo é o líder populista?

DUX CUM POPULO E O RISCO DE SE TORNAR UM


ESTABLISHMENTARIAN

Podemos agora voltar à dualidade inside-outside em que o paradigma do


antiestablishmentarianism se baseia. Permanecer próximo ao povo externo é o desafio que o
líder populista apresenta à política representativa na democracia partidária. É um desafio
radical que destaca a especificidade da política representativa do populismo. O líder populista
deseja incorporar a vontade e a voz do povo em sua totalidade parcial, não em sua
generalidade universal; e ele quer fazer isso sem mediação e sem fazer compromissos com
outros partidos existentes. Ao afirmar ser a personificação do povo, o líder populista precisa
convencer o povo de que não é um establishmentarian. Uma vez no poder, o líder populista
começará a invocar intenções populares incontestadas como seu testemunho constante para
sua audiência. Quão próxima está essa estratégia da democracia plebiscitária?
Estar sob os olhos do povo é um projeto plebiscitário que busca substituir a
responsabilidade por meio de procedimentos e instituições pela transparência por meio da
exposição popular. Ao mesmo tempo, procura dar à esfera pública um novo significado e
configuração: especificamente, conferindo à publicidade principalmente uma função estética
e emocional, e, portanto, teatral. Jeffrey Edward Green comparou sua visão de democracia
plebiscitária à ideia de democracia como seleção eleitoral de Joseph Schumpeter, baseada na
expressividade pública, nos seguintes termos: “A ocorrência de eventos é um valor a ser
apreciado, não apenas pelos atores políticos que realizam o evento, mas ainda mais pelos
espectadores que os contemplam”. É aqui que os projetos representativos do populismo e da
democracia plebiscitária se encontram, mesmo que se afastem em alguns aspectos.

Embora tanto o populismo quanto a democracia plebiscitária desconfiem do povo


como o nome de uma ficção que representa a generalidade da lei, e embora ambos dependam
do voluntarismo político, o populismo confere ao povo uma presença política que não é
meramente espectadora. Líderes populistas mobilizam o povo e são uno com o povo. Em
algumas ocasiões, acham útil criar formas de participação que envolvem os cidadãos
diretamente na elaboração de programas que o líder concebeu, como referendos ou
plebiscitos. De qualquer forma, a presença do povo não se limita ao momento de um
plebiscito - “em vez de se autoconstituírem, são mobilizados de cima para baixo”. Isso leva
os estudiosos a pensar que o populismo implica uma forma de inclusão e participação que
nenhum procedimento democrático pode reproduzir fielmente: nem mesmo o plebiscito, que
é o procedimento mais democrático de todos (junto com o referendo), embora seja um
procedimento de cima para baixo. “O governo precisa estar nas ruas, ouvindo a população,
ouvindo o povo”.

A linha de demarcação que separa e conecta a democracia populista e a democracia


plebiscitária é fina, mas clara. O líder populista que quer evitar o risco de se tornar parte de
um novo establishment utiliza dois registros. Primeiro, ele mobiliza o povo ao lado do ato
plebiscitário de aclamação; e segundo, ele busca evidências plebiscitárias recorrentes de sua
popularidade por meio de sua presença massiva na mídia e de seu frequente recurso a apelos
formais ao povo. Em ambos os casos, o papel do líder é fundamental. Ele sempre tem que
atuar dentro e fora das instituições, procedimentos e regras para tranquilizar todos que
possam estar preocupados de que ele permanece como a voz do povo. O populismo no poder
é reconhecível como uma campanha eleitoral permanente.
ENCARNAÇÃO VERSUS MANDATO

Que tipo de representação o líder ativa, de modo que não pode ser simplesmente
identificado com a representação de mandato? A imagem do profeta ventríloquo é o modelo
que pode nos ajudar a responder a essa pergunta. Essa mesma imagem também nos aproxima
do quebra-cabeça central do líder populista se tornando um establihmentarian sem parecer
ser. Perón queria ser “todas as coisas para todos os homens” e até buscava parecer divino, ou
parecido com um Papa, se necessário. “Eu sempre sigo a regra de cumprimentar todo mundo
porque, e você não deve esquecer disso, agora sou algo como o Papa”. Chávez empregava
símbolos salvíficos e apocalípticos para provar que o povo era o protagonista e o verdadeiro
agente da transformação, em vez dele. Ele pedia lealtad absoluta (lealdade absoluta),
declarando: “Eu não sou eu mesmo [...] Eu não sou um indivíduo, eu sou o povo”, e
afirmava: “Apenas o povo pode salvar o povo, e eu serei seu instrumento”. Em um dos
discursos que Trump fez na noite de sua vitória presidencial, ele disse que não foi ele quem
venceu e, na verdade, afirmou que nem era ele quem estava falando: o povo tinha
conquistado a Casa Branca e o povo estava falando através dele naquela noite. De onde vem
essa invocação do líder populista como apenas um meio?

Assim como um profeta em relação a Deus, o líder não tem vontade própria, mas é,
em vez disso, um recipiente da vontade soberana - a boca da qual a vox populi se manifesta.
Este é o simbolismo da representação como encarnação ou incorporação do povo soberano, e
é a alternativa mais radical à representação de mandato. Também é a questão na qual
devemos nos concentrar se quisermos entender como a ideologia antiestablishmentarian pode
permitir que o populismo crie uma elite, mesmo enquanto consegue evitar a armadilha de
parecer tão corrupta ou impura quanto qualquer outra elite. Este é o quebra-cabeça
complicado que o populismo tem que resolver se quiser ser mais do que um movimento de
contestação contra um establishment corrupto. Também é o elemento que nos mostra como o
populismo não é uma categoria de moralidade ideológica, mas sim uma forma de
representação que nos ajuda a explicar “o milagre” realizado pelo líder populista. A
incorporação do povo na pessoa do líder o isenta do risco de ser visto como um
establishmentarian ou como um “insider”. Uma vez que o populismo no poder não vai
revogar as eleições e arriscar a “fascistização”, enfrentar essa tarefa é vital. É o que
verdadeiramente caracteriza uma democracia populista.
Em um ensaio sobre os conceitos de representação, Yves Sintomer recupera uma
citação de um antigo livro sobre Napoleão III (“O Imperador não é um homem, ele é um
povo”), associa isso aos autorretratos de Chávez (“Eu não sou eu mesmo”; “Eu não sou um
indivíduo, eu sou o povo”) e relaciona ambos a um dos casos mais famosos de “incarnação”
absorvente e absoluta - o caso de Luís XIV, que declarou: “Eu sou o Estado”. A teoria e a
história da representação como encarnação remontam ao final do Império Romano, onde o
imperador funcionava como um chefe divinizado. Ela também se manifesta na igreja da Idade
Média, quando a tensão entre interpretações conciliares e absolutistas desse paradigma
surgiu. A incorporação dos fiéis na igreja, todos iguais como filhos de Deus, adquiriu um
caráter mais democrático de colegialidade no trabalho de Nicolau de Cusa. Cusa, elaborando
a partir das guildas medievais, fundiu a representação da incorporação e a representação do
mandato. Ele deu prioridade à primeira como a afirmação do “corpo” da igreja e declarou a
última como seu agente autorizado, o Papa. O próprio Papa e seus seguidores adotaram a
posição oposta: para restaurar sua autoridade, o Papa afirmou o papel de liderança que um
Papa deveria ter contra o concílio (representado como a parte versus o todo) e caracterizou o
todo como a encarnação de Cristo e seus fiéis sob o Papa. A Contrarreforma, que promoveu
uma estratégia abrangente de restauração da autoridade, contribuiu para o fortalecimento da
estratégia papal ao avançar um elo adicional entre a representação como incorporação (no
Papa) e a representação como construção de identidade do coletivo (a igreja). O papa se
tornaria, assim, o rosto da identidade coletiva. Esse paradigma seria posteriormente adotado
para defender o caráter representativo do soberano: a declaração de Luís XIV foi precedida
por um avanço na doutrina teológica e jurídica.

A representação como encarnação foi um argumento fundamental usado por alguns


juristas do início do século XX para criticar o parlamentarismo e reconstruir a autoridade do
Estado acima e contra seus partidos conflitantes. Aqui, precisamos apenas mencionar o
argumento de Schmitt a favor do presidencialismo contra o parlamentarismo. Este último,
explica Schmitt, é uma assembleia de delegados eleitos que representam interesses
econômicos, partidos políticos e classes sociais; o presidente, por outro lado, “é eleito por
todo o povo alemão”. As eleições seriam uma estratégia de unidade e sujeição (em vez de
divisão, como na representação por mandato) e representariam uma reprodução visual
verdadeira de toda a nação nos níveis simbólico e institucional, apenas no caso do presidente.
“O Presidente, ao contrário [da fragmentação dos agrupamentos parlamentares], tem a
confiança de todo o povo não mediada por meio de um parlamento dividido em partidos. Essa
confiança, pelo contrário, está diretamente unida em sua pessoa”.

As democracias parlamentares também se referem ao presidente como representante


da unidade da nação, mas elas não mesclam a representação simbólica e de encarnação com a
representação por mandato, que é dada exclusivamente ao parlamento. Alinhando-se à
interpretação de Schmitt, o populismo utiliza a representação como uma estratégia
hegemônica que repele os apelos liberais por advocacia, controle, monitoramento e diálogo
entre a sociedade e a política, e, em vez disso, reduz a distância entre o líder eleito e os
eleitores para incorporar a sociedade dentro do estado. Nas palavras de Canovan, “Uma visão
do ‘povo’ como um corpo unido implica impaciência com as disputas partidárias e pode
incentivar o apoio a uma liderança forte, onde um indivíduo carismático está disponível para
personificar os interesses da nação”

O populismo contemporâneo representa uma secularização da teologia política da


representação como identidade coletiva e encarnação. Federico Finchelstein documentou a
“ideia trinitária do líder” em alguns populismos latino-americanos, especialmente no caso de
Chávez: “Eu não sou Chávez, você é Chávez, todos nós somos Chávez”. Dux cum populo (ao
contrário de senatus populusque) não funciona para representar as necessidades do povo, mas
sim para realizar o “milagre” de se tornar parte do establishment sem parecer ser.

VENTRILOQUISMO, FRAQUEZA DA VONTADE E


IRRESPONSABILIDADE

A grandiosa “miragem” (ou truque) da representação populista é fazer com que o


povo seja o agente que desresponsabiliza o líder: “Eu não sou Chávez, você é Chávez, nós
todos somos Chávez”. O povo é o soberano, ou o primeiro ator; e o líder é seu agente
supremo e instrumento, que se acredita ter carta branca para seguir a política que o bom povo
escolheu que o líder atualizasse. Chávez declarou que podia “sentir” a si mesmo “encarnado
no povo”; mas Péron já havia falado a linguagem da teologia política antes disso, quando
declarou: “Se ha encarnado para siempre en el pueblo argentino” ([Eu fui] para sempre
encarnado no povo argentino). A condição de incarnatus significa que o líder nunca é
verdadeiramente responsável, para o bem e para o mal. Antigas disputas sobre os
“verdadeiros” profetas e os “impostores” vêm em nosso auxílio aqui. Eles são uma tropa
requintada na teologia política da representação como uma concepção institucional de
autoridade. O líder incorporador é um paradigma do trabalho quasi-divine de dar vida ao
sujeito coletivo, mas sem alterá-lo e sem ser responsável por ele, no estilo de um contrato. O
povo é tudo e sempre está certo, mas o líder populista não é responsável por ele; e a
irresponsabilidade do líder serve como evidência da primazia do povo, que o líder está
incorporando, mas não substituindo. Os populistas recebem com satisfação a superação da
representação por mandato como sinal de uma política mais inclusiva e como sinal de que o
“externo” e o “interno” se fundiram. No entanto, acaba sendo um esquema que permite ao
líder evitar responder à busca por responsabilidade. Na verdade, como veremos no final do
capítulo, a responsabilidade é uma moeda que não circula no populismo.

Baruch Spinoza, que vasculhou textos bíblicos em busca das fontes para uma
comunidade política baseada em um pacto, acabou estudando com cuidado a figura do
profeta. Contando com um rico corpo de trabalho sobre as faculdades humanas, que por sua
vez foi inspirado na filosofia natural renascentista, Spinoza retratou os profetas como
indivíduos dotados de “imaginação incomumente vívida, e não de mente incomumente
perfeita”. Ele os considerava “menos aptos para o raciocínio abstrato” e argumentava que não
eram deliberativos porque nunca afirmavam agir por livre arbítrio e escolha livre. Eles eram o
recipiente de uma vontade superior à deles, que preenchia o vazio deixado pela ausência de
sua vontade intencional pessoal. O povo não veria o profeta como verdadeiro se ele apenas
apelasse para a virtude e a piedade: era necessário que ele realizasse milagres com
naturalidade infalível, como se estivesse se comportando naturalmente ou realizando ações
naturais. Também era necessário que as palavras de Deus que o profeta pronunciava não
fossem compartilhadas com o povo por meio da interpolação de sua mente ou intenção, mas
sim lhes parecessem “diretamente”. Para a igreja, “falsos messias” e “profetas impostores”
“têm um mínimo de cultura e muito carisma, o que lhes permite seduzir as massas
ignorantes”.

O profeta era a boca direta: “o instrumento”, como em uma das citações anteriores de
Chávez. Ele era o instrumento mecânico por meio do qual as palavras de Deus podiam ser
pronunciadas em linguagem humana para a audiência ou os crentes. Essa instrumentalidade
sem vontade era a condição essencial para que o orador fosse reconhecido como profeta. A
diferença entre profetas “falsos” e “verdadeiros” (ou entre “truques” e “milagres”) ficou clara
no livro do Êxodo. Este livro da Bíblia narra o confronto que Deus organizou entre Moisés e
os magos do Faraó. Ambos realizaram feitos extraordinários diante de uma plateia, que os
julgou e testou em sua habilidade. A diferença entre os dois era a diferença entre
artificialidade e naturalidade (ou entre representantes de um partido e um líder populista). O
verdadeiro profeta não precisava aprender ou se aprimorar por meio de treinamento na arte da
magia. Ele era como um homem comum, fora da casta de magos e fora do estabelecimento.
Além disso, precisamente porque não tinha uma vontade e uma intenção próprias, estava
destinado a ser acreditado ao longo do tempo, e sua autoridade e pureza estavam destinadas a
permanecer intactas. Mesmo que não fosse necessariamente comum, certamente não era um
“insider”. Para evitar situações em que um profeta se tornasse um “impostor”, havia vários
requisitos objetivos que não dependiam apenas da recepção da audiência. Esses eram os
requisitos de que o profeta não fosse um especialista em magia e (como o líder populista) que
não pertencesse ao estabelecimento político, para que não pudesse estar familiarizado com os
truques da elite.

O povo parece ter a certeza de que seu líder não é um impostor a partir desse fato - de
ser um deles, ser como um homem comum. O líder não precisa usar uma linguagem tão
explícita ao promulgar sua santidade: isso é claro nos casos de Péron, Simón Bolívar, Chávez
e também o mais materialista de todos, Berlusconi. O líder também não precisa repetir rituais
pagãos, como fazia o líder da Lega Nord, Umberto Bossi, quando despejava a água do rio Pó
em uma ampulheta e fingia que isso provava a existência de um povo etnicamente
homogêneo e uma região chamada Padânia, que estava reivindicando sua independência.
Oferecer-se como a personificação do espírito da nação - como a personificação do
empreendedorismo e do sonho americano - é o que Trump se aventurou a fazer. Isso é uma
adaptação da mesma técnica, usando a representação como estratégia para afirmar que se
incorpora a um povo específico, ao mesmo tempo em que reduz sua própria responsabilidade.
Como o líder é apenas a boca do povo e não tem vontade própria, as coisas que ele faz devem
ser as coisas que o povo pediu para ele fazer. Se ele não cumprir, a responsabilidade deve
recair nas mãos dos inimigos do povo, que nunca desaparecem (e nunca dormem também).
Portanto, o líder irresponsável depende muito da teoria da conspiração como uma espécie de
“ideologia de desculpa”: “As mentalidades conspiratórias são em parte expressões de
impotência - a dolorosa incapacidade de entender, muito menos controlar, as forças opacas
que governam os sistemas políticos e econômicos que nos governam”.

De acordo com Spinoza, a fraqueza da vontade individual e da responsabilidade


individual distinguia o verdadeiro profeta do impostor. Sua fraqueza implicava que ele
deveria receber passivamente a verdade. Por não ser inspirado por sua própria intenção
pessoal, nenhuma desconfiança o cercava, e isso significava que ele seria visto como “bom” e
honesto pelo povo e seria capaz de ter sucesso em suas ações. Spinoza escreveu que todos os
profetas eram visitados por Deus em seus sonhos (com a única exceção de Moisés, a quem
Deus falava diretamente e enquanto ele estava acordado e consciente). Abimeleque é um
exemplo, e ele provou, na visão de Spinoza, que a vontade de Deus se manifesta ao profeta
“quando sua imaginação está mais ativa e descontrolada”. A inteligência adormecida do
profeta e a vivacidade de sua imaginação eram as coisas que garantiam a veracidade de sua
profecia e a pureza de sua mensagem. Eram as condições para que ele incorporasse as
palavras de Deus e se unisse completamente a Ele. O relacionamento dos líderes populistas
com seu povo imita essa fenomenologia profética de transmissão da verdade e do poder por
meio da imaginação e das emoções. Essas se tornam os únicos meios de comunicação
legítimos com o povo que preservam a originalidade da mensagem ao longo do tempo.
Representar é “auxiliar” a verdade, ou trazê-la à tona, sem adulteração.

Dessa forma, a “representação direta” que conecta o líder ao “seu” povo implica duas
coisas. Primeiro, significa que o líder faz uma reivindicação direta de representar o povo,
contra todas as mediações. Em segundo lugar, significa que o líder desempenha seu papel
representativo à parte da maioria eleitoral ou contagem “formal” - e especialmente acima dos
procedimentos usuais e prosaicos que candidatos comuns usam para se provar como
representantes. É a receptividade da audiência e a fraqueza da oposição que comprovam que
o líder está no caminho certo.

Isso nos ajuda a ver e entender a relevância da estratégia preventiva implícita neste
esquema. Se o povo é bom ou certo, o ator que age como o povo (o que envolve a ideia de
representação como identidade ou “agir como”, mais do que “agir por”) não pode ser ruim ou
errado. Ele não tem uma vontade e intenção próprias, mas é um puro instrumento do
soberano. É aqui que devemos olhar se quisermos ver a diferença entre populismo e fascismo.

O populismo não suspende completamente as limitações temporais do mandato do


líder, como mostram os casos empíricos. Da mesma forma, não suspende as eleições. No
entanto, as limitações institucionais ao mandato do líder populista podem ser neutralizadas
por meio de propaganda permanente. Se o efeito sobre o sentimento do povo for forte, o
poder do líder pode ser quase absoluto e livre de restrições, como o de um ditador. Pode durar
tanto quanto a identidade dele com o povo durar. O líder populista não precisa abolir a
constituição ou tornar-se um ditador para ser tão livre quanto seu povo permitir. O povo é o
soberano absoluto, e o líder está “meramente” alegando ser sua boca e aceitar as limitações
em suas ações. Nesse sentido, o líder populista é um modelo ideal para o ditador aspirante:
ele pode alcançar o objetivo almejado por todos os tiranos, mas que não conseguem porque
não conseguem assegurar o poder da opinião do povo e, assim, precisam recorrer à repressão.

Eu diria que o líder populista está, de fato, vinculado à vontade do povo por meio de
uma espécie de mandato imperativo, essencialmente o mandato da opinião. (Em algumas
ocasiões, foi tentado um “mandato legalmente revogável” em regimes populistas, com o
objetivo de criar “uma conexão direta entre o líder e o povo”). A crença de que o líder é e faz
o que o povo quer que ele seja e faça é uma questão de ficção e construção imaginária. Isso é
moldado pela criação de uma unidade simbólica, e a retórica e a propaganda do líder
alimentam essa unidade por meio de suas comunicações diárias com seu povo. A
legitimidade de seu governo repousa inteiramente na força dessa crença; ela é apoiada por
intervenções na constituição, mas nunca tão extremas a ponto de pôr fim à democracia e
instituir uma ditadura. Cultivar a audiência é, portanto, crucial. Como mencionei na
introdução, Chávez passou um número extraordinário de horas denunciando o capitalismo em
seu próprio programa de televisão; Berlusconi foi extremamente astuto em seu uso de suas
três estações de televisão privadas nacionais e das três estações de televisão estatais
(controladas pela maioria parlamentar por lei); Trump está obsessivamente em contato com o
povo americano por meio de tweets, atacando seus inimigos e comentando eventos
cotidianos; Beppe Grillo criou seu próprio blog, que se tornou a única organização partidária
do Movimento Cinco Estrelas; Pablo Iglesias Turrión já era uma estrela da mídia antes de se
tornar o fundador e líder do Podemos; e o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon,
usa a internet como “uma tribuna do povo da Roma antiga ou um Marat na revolução
francesa”. Se quisermos esboçar a resposta populista para o caráter diárquico da democracia,
poderíamos dizer que o populismo consiste em um governo do e pelo público - um no qual a
opinião do povo, em vez de instituições, desempenha o papel de estimular e conter o líder. A
implicação óbvia aqui é que é a propaganda do líder que o estimula e o contém enquanto
lidera a opinião do povo. A maleabilidade do partido é coerente com a maleabilidade das
instituições estatais. Isso é o que torna o partido do líder um concorrente natural com os
partidos tradicionais e com o sistema partidário: é um partido mais adequado para explorar a
democracia da audiência.

A centralidade da audiência sobre a instituição (que faz parte da vocação de


desinstitucionalização do populismo) é outra peça importante do mosaico. Ao contrário dos
líderes de partidos tradicionais, o líder populista desfruta de uma verdadeira delegação livre.
Enquanto os líderes de partidos tradicionais são limitados por seus partidos, o líder populista
é quase absolutamente livre em seu poder de tomada de decisões. Isso torna a elite populista
muito vulnerável à corrupção na prática, ainda mais vulnerável do que as elites partidárias
estabelecidas. Na verdade, a elite populista é mais difícil de ser fiscalizada do que qualquer
representante eleito comum; nesse sentido, está exposta ao clientelismo e à arbitrariedade. No
entanto, a relação especial e direta do líder com o povo permite-lhe adaptar continuamente
sua imagem e reavaliar sua unidade com a opinião de seu povo. A associação entre corrupção
e detenção de poder se dissolve e faz com que o líder populista execute o “milagre” que o
permite governar sem parecer que está governando: o milagre que permite que ele seja
corrupto, mas afirme que não é responsável pela corrupção. A representação populista
permite que o líder evite cair na armadilha do mandato livre (que expõe os políticos às
tentações de se tornarem parte do establishment, separados dos eleitores). E isso lhe permite
reivindicar o direito de seguir a política que ele considera adequada, sem a obrigação de
atender à opinião do povo, exceto no momento das eleições. A liberdade de decisão e a
vontade de decidir estão inscritas dentro de uma concepção de representação política como
um modelo de mandato livre. Mas a ficção da representação como encarnação e a ficção do
líder como a boca ou delegado de seu mestre (o povo) contornam o risco estrutural que
pertence apenas à representação de mandato - o risco de que o eleito pareça ser um grupo
separado ou um establishment, assim, torne-se um alvo natural de desconfiança (e vigilância).
Essas ficções proporcionam “o milagre” de uma liderança nunca separada - e, portanto,
perenemente imaculada; isso, é claro, também é uma ficção, mas é tão habilmente elaborada
retoricamente e tão persistentemente reforçada que parece real.

Em resumo: ao contrário dos líderes partidários eleitos, o líder populista se encaixa no


modelo do mero delegado do povo sem um mandato livre. Mas esse papel de “delegado” é
longe de ser impotente. Não tendo uma vontade própria e sendo a boca do povo, os líderes
podem contornar o risco de parecerem parte do establishment. Essa estratégia é projetada
para ter um impacto no desempenho dos líderes populistas, que sempre podem afirmar estar
no caminho certo (porque o povo é seu mestre) e sempre podem rejeitar pedidos de
responsabilidade (já que são verdadeiramente não responsáveis, não tendo uma vontade
própria). O resultado da representação como incorporação é que os líderes irresponsáveis
podem decidir garantir essa vantagem extraordinária: podem alterar a constituição ou libertar
gravemente a burocracia (civil e militar) para fazer com que as instituições reflitam
diretamente sua não responsabilidade.
Mudde argumentou que os líderes populistas tendem a usar a constituição
oportunisticamente nos casos em que alcançam a maioria no parlamento. Ele reconhece esse
oportunismo nas alegações que fazem ao falar em “nós, o povo”, mesmo enquanto operam
para cooptar a constituição em nome desse mesmo povo. Como antecipei no Capítulo 2, os
líderes populistas conseguem fundir a plataforma de seus partidos com a vontade do Estado,
alinhando suas preferências políticas com a constituição. Podemos, portanto, atribuir a essa
reivindicação oportunista um caráter mais estratégico e propor a seguinte tese: quando se
torna uma força no poder, o populismo visa criar uma constituição própria. Em última
análise, busca estabelecer um tipo de sistema democrático que reflita de perto as
características de sua representação do povo (que, na realidade, é uma maioria).

O caso húngaro é um exemplo do colapso da distinção entre o populismo como


movimento e o populismo como poder governante. Isso corresponde, como mencionei, ao
colapso da distinção entre política comum e política constitucional, assim como à
transformação de políticas ordinárias “mutáveis” em disposições constitucionais
relativamente imutáveis. As justificativas não são difíceis de elaborar quando se tem um líder
que é a boca do povo. A mudança constitucional é idealmente destinada a congelar a maioria
do líder em uma permanente. Ao contrário do fascismo, que revoga a limitação de mandato
de seu líder executivo e, assim, revoga o processo de freios e contrapesos, o populismo não
busca uma segurança de ferro. Nesse sentido, ele joga o jogo da democracia de audiência. Os
líderes populistas usam propaganda contra inimigos que nunca são totalmente reprimidos,
como um tônico para garantir seu apelo e construir a fé do povo. Líderes irresponsáveis
também podem proteger seus erros ou falhas com retórica conspiratória; tal retórica requer
que os inimigos estejam vivos e ativos. Embora o establishment tenha sido deposto, as
pessoas que o representam estão sempre lá - mesmo que, é claro, elas não façam parte do
verdadeiro povo.

No final do Capítulo 1, mencionei que a democracia difunde, em vez de concentrar, o


poder. O líder demiúrgico é baseado em um tipo de ação política que centraliza, verticaliza e
acumula poder. Mas seus esforços de concentração de poder dependem de uma propaganda
difusa, que a participação popular induzida está pronta para alimentar. (Esta é a fonte da
aparente contradição destacada por estudiosos de regimes populistas: de que tais regimes
combinam um forte poder executivo com ampla participação na sociedade). O objetivo não é
criar um regime ditatorial, mas realizar as promessas da democracia - efetivamente,
radicalizar a democracia. Também sugeri que a dicotomização entre inside-outside (que o
antissistêmico renderiza com precisão) facilita a aceleração do descontentamento popular,
acelera o rompimento de alianças existentes e serve como uma estratégia mais congenial para
a criação de uma nova ordem democrática. Símbolos e generalizações são os meios pelos
quais os líderes tentam unificar em sua pessoa as razões plurais e diversas para o
descontentamento. Laclau lembrou a familiaridade de Antonio Gramsci com partidos de
esquerda (especialmente o Partido Comunista Italiano) e o cuidado que os seguidores de
Gramsci dedicaram à construção de uma narrativa e dos símbolos que poderiam unir a classe
trabalhadora com outros setores da sociedade. Laclau sugeriu que essas seriam excelentes
diretrizes para seu líder populista. Mas a mudança de perspectiva entre um projeto baseado
em partido e um baseado em líder é enorme, como veremos mais tarde.

A emulação populista dos antigos partidos de massa de esquerda sustenta um projeto


completamente diferente. Esse projeto alternativo tem o líder no centro, em vez do Príncipe
coletivo de Gramsci. Metas estratégicas e normativas se separam nesses dois cenários. No
populismo, a estratégia se torna uma tática para consolidar a vitória da coalizão de
reivindicações que o líder nomeia e incorpora, que se torna “o principal guardião e definidor
de seus interesses [populismo no poder]”. Também, bastante previsivelmente, torna-se o
núcleo de uma rede de corrupção e clientelismo geralmente justificada em nome da salus rei
publicae. Na prática, o eixo tradicional esquerda-direita que distingue a social-democracia da
democracia liberal acaba sendo irrelevante para o populismo. Parafraseando Eduard
Bernstein, poderíamos dizer que táticas são tudo, o objetivo é nada. Além disso, um partido
organizado do tipo que Gramsci tinha em mente parece ser um obstáculo ao populismo. Ele
depende da organização e não é elástico, não é transversal e não é totalmente inclusivo das
diferentes exigências que tornam o povo oposto ao não-povo. É interessante notar que,
enquanto os teóricos explicam o surgimento do populismo usando o declínio das divisões
partidárias, o sucesso do populismo depende da habilidade de seu líder de explorar esse
"mainstreamism" e transformá-lo em um terreno propício para sua identidade pós-partidária.
A democracia populista não deve ficar insatisfeita com os cartéis partidários e o declínio dos
partidos organizados.

O PARTIDO DE UMA PARTE

Os partidos e líderes populistas “geralmente representam compreensões autoritárias da


democracia, mas, em última instância, não são contra ela, sendo equivocadamente
equiparados a formações ditatoriais”. Finchelstein escreve que o populismo após 1945 “se
transformou de uma ideologia e um estilo de movimento de protesto em um regime de
poder”: isso é o que aconteceu com Péron. Nesse ponto, suas semelhanças e diferenças em
relação ao fascismo se tornaram visíveis. Assim como o fascismo, o populismo se torna
verdadeiramente influente quando passa da ideologia para o poder. Mas, ao contrário do
fascismo, essa transição não consiste em mudança de regime ou ditadura, embora possa
consistir em uma mudança constitucional que diminui o poder legislativo do parlamento e
aumenta o poder executivo. Assim como o fascismo, o populismo está essencialmente
preocupado em reconstruir a unidade das massas. Ao contrário do fascismo, o líder que
incorpora essa preocupação nunca está completamente acima da lei. A borda borrada entre o
populismo e o fascismo é evidenciada não apenas pela compreensão carismática do líder, mas
também pela forma do partido. Essa forma é um aspecto verdadeiramente intrigante do
populismo: torna-o excêntrico em comparação com a democracia partidária de uma maneira
que é tanto similar quanto bastante distante do fascismo. O modo autoritário do populismo
permanece na forma de representação simbólica, e essa representação utiliza eleições e mídia
como dispositivos para manter sempre viva a aceitação popular. “O que importa sempre é o
alinhamento de vontades entre governante e governados”.

DILEMA DE MICHELS E UM HOLISMO PERMANENTEMENTE


CONSTRUÍDO

Em seu estudo de 1911 sobre os partidos socialistas, Robert Michels argumentou que
os democratas que atuam no sistema parlamentar precisam abandonar o ideal de democracia
direta e buscar a organização. No entanto, a organização só permitia a coordenação por meio
da divisão do trabalho e da liderança - sem essas coisas, qualquer programa político em um
estado moderno seria impossível. Michels deixou claro que os democratas não poderiam
escapar desse dilema. A organização “é a arma dos fracos em sua luta com os fortes”, e a
democracia não pode prescindir dela. Mas a organização também é a porta de entrada para a
burocracia, concentração de poder e verticalização - ou seja, para a oligarquia e a morte da
democracia. A democracia populista se posiciona no cerne desse dilema. Por um lado, ela se
encaixa mais na forma de movimento do que na forma de partido, porque a mobilização
permanente do povo precisa de uma ferramenta suficientemente elástica e maleável para se
adaptar às várias necessidades táticas dos líderes. Por outro lado, ela não pode evitar se tornar
um partido, pois os líderes precisam de uma ferramenta estruturada o suficiente para que
possam dominar, mas não tão estruturada a ponto de limitar seu poder. A trajetória do
Podemos, a forma mais democrática de todas as formas de movimento-não-partido populista,
ilustra esse ponto.

Inicialmente, o Podemos moldou-se de acordo com uma lógica “rizomática” -


horizontal e em rede. Fez isso para “equilibrar” a organização com a antiorganização, para
acomodar a exigência da audiência e para tranquilizar seus seguidores de que era uma
continuação, por outros meios (eleições), das formas e princípios dos Indignados -
autogestão, tomada de decisão baseada em consenso, ausência de líderes e abertura. A
estrutura antipartidária endossada pelo Podemos foi funcional para sua intensa prática
midiática, mas o expôs permanentemente a um líder que acabou produzindo o que os velhos
partidos organizados haviam produzido: um movimento vertical com um líder forte e
singular.

A ironia é que, enquanto os partidos no estilo antigo pelo menos davam aos seus
membros a ilusão de participar, decidir e influenciar as escolhas dos líderes, o partido não
partidário ou partido de movimento formado pelo populismo oferece aos seus membros quase
nenhum meio para responsabilizar o poder. Voltaremos a essas deficiências da representação
direta no próximo capítulo. Aqui, devemos examinar outra maneira pela qual o populismo
difere do fascismo e da democracia: a forma partidária. Meu modelo para esta seção segue a
perspicácia de Elmer Eric Schattschneider de que “a distinção entre democracia e ditadura
pode ser feita melhor em termos de política partidária”, que adaptarei à comparação entre
populismo e democracia.

No Capítulo 1, argumentei que o populismo, mesmo que seja antipartidário em


sentido radical, está pronto e disposto a formar um partido antiestablishment contra os
partidos existentes (que acusa de estar distante do povo). Um partido populista se parece com
uma aliança de movimentos sociais e busca criar uma base de massa - o “bom” povo é sua
base indivisa. Isso significa que o líder populista, embora possa não ser uma pessoa partidária
em si mesma (e, de fato, muitas vezes é crítica dos “homens de partido”), precisa de uma
estrutura partidária própria para conduzir sua campanha e eventualmente vencer. Populistas
também criticam partidos devido à sua natureza inevitavelmente partidária - aos olhos do
populista, esse partidarismo divide o povo em partes, o que apresenta sérios problemas para a
ambição do líder de unificar as massas (essa unificação, é claro, sendo a condição para o
resgate do povo do establishment). Mas as coisas rapidamente se complicam. Por um lado, a
relação do líder com o partido não é simplesmente estratégica e instrumental. Por outro lado,
os apelos persistentes do líder ao povo não impedem os populistas de injetar antagonismo na
sociedade - afinal, a sociedade não é um regime de um líder e um partido. Pode-se dizer que o
fracasso do populismo em cumprir seu plano é o que o salva (e ao seu país) de se tornar um
novo fascismo.

Na verdade, o populismo traz uma contradição que pertence à democracia


representativa desde sua criação no século XVIII. Essa contradição consiste na desconfiança
e suspeita dos partidos como exemplos de ignorância a ser curada ou de preconceito a ser
erradicado. Devido à suposição de um interesse geral unificando todo o demos, “a política
moderna gera novas e poderosas fontes de antipartidarismo, enraizadas na ideia de que toda a
sociedade pode escapar do partidarismo - ou, colocando de outra forma, pode ser iluminada”.
No entanto, o populismo resolve o problema da parcialidade de uma maneira que não é
interna nem consistente com a política de partido e o sistema partidário. Também não é uma
réplica do mito iluminista de superar a doxa. Na verdade, o populismo é o reconhecimento de
que a política é apenas doxa. Seu projeto é interno ao realismo político, não ao idealismo
político. A questão do partidarismo revela os problemas do pluralismo e as limitações de
poder que afligem o populismo.

Como escreve Nancy Rosenblum, todos os partidos estão sob “a sombra do holismo”:
de fato, o governo representativo em si nasceu em nome do fim de todas as facções e garantia
de que “apenas um partido representa a nação ou o povo”. Um partido populista é
caracterizado por algo que pertence a todos os partidos: a tendência de fortalecer seu apoio na
opinião com o objetivo de alcançar uma grande maioria, que idealmente será inquestionável e
durará o máximo possível. (Essa era a ambição do Partido Comunista Italiano no início da
década de 1970, quando propôs o “compromisso histórico” como uma ampla aliança entre
todas as forças populares, desde a esquerda até a democracia cristã, com o objetivo de
avançar para uma transformação socialista da sociedade liberal por meios democráticos e
com consentimento eleitoral.) Por último, mas não menos importante, a forma de partido
transforma seu povo leal em insiders e permite a um movimento antiestablishment estabilizar
o poder dentro de um novo establishment. No final, não é a vocação do holismo que torna um
partido populista diferente de outros partidos. O que torna o partido populista único é a
maneira como ele gerencia essa vocação.

Como veremos, o populismo trai a lógica pluralista da política partidária, mesmo que
não suspenda o direito à associação política uma vez no poder, e mesmo que conte com (e de
fato presumível) o pluralismo social. Enquanto o fascismo é o populismo tornando-se
ditadura, o populismo na democracia representativa parece ser capaz de consolidar um amplo
consenso, mesmo sem questionar as eleições e sem inaugurar um regime anticonstitucional.
Assim, o holismo é um projeto permanente, mas não está enraizado na lei. A natureza
diárquica da democracia nos faz reconhecer a singularidade do populismo em relação tanto
ao fascismo quanto à democracia.

A propensão do populismo ao holismo permanece dentro do terreno da opinião.

Manifesta-se como propaganda incessante que mantém o povo mobilizado em torno


das questões que o líder escolhe destacar, mantendo-os irritados com a vocação conspiratória
das elites anti-populistas. Coloca o líder e o partido do líder em uma campanha eleitoral
diária. O holismo nunca é estabilizado dentro ou por meio das instituições, e o partido
populista requer essa instabilidade para evitar a apatia do povo e a desmobilização que
adviria de sua indiferença. Esse holismo na opinião pode esticar a estabilidade e
independência das instituições estatais, mas não muda a ordem institucional de fato a ponto
de inaugurar regimes ditatoriais “monopartidários”. Portanto, o populismo não replica o
“partido da virtude”, que é total e totalizante, porque evoca a vontade geral, não
simplesmente a opinião do povo. Neste caso, para ser consistente com essa vontade (o
soberano), não basta que o partido fale “como” o povo - ele precisa garantir que seja a única
voz do povo. Isso é o que o populismo não faz, o que o diferencia do fascismo (ou qualquer
regime totalitário).

No entanto, um partido populista também é diferente de um partido ideológico


organizado em uma democracia partidária. Um partido populista no poder é diferente de uma
maioria partidária em uma democracia partidária porque é marcado, ao contrário de uma
maioria partidária, por um desejo ativo do holismo e uma organização partidária flexível. Em
uma democracia representativa, os partidos não consideram simplesmente o pluralismo
político como uma condição de fato: eles não veem a existência de dois ou mais partidos
como apenas um fato empírico, ou como segunda melhor opção. Em vez disso, eles criam e
funcionam dentro de um ambiente normativo que é estruturalmente pluralista porque presume
(e todos os seus atores partidários presumem) que todas as maiorias são limitadas no tempo e,
portanto, relativas. Eles são leais à política partidária, e as “fronteiras” do partido são uma
condição tanto do pluralismo quanto do partidarismo. A limitação e o pluralismo definem
tanto o caráter da forma partidária da política quanto a contenção do holismo do partido na
democracia partidária. Essa é a razão pela qual ela é estruturalmente partidária, ao contrário
de uma democracia populista. Essa especificação normativa é importante para entender o
populismo como um partido de movimento que visa alcançar o poder, não apenas mobilizar
oposição. Também é importante como um meio de decodificar a dialética interna (que é, na
verdade, uma tensão) dentro da teoria e prática populistas entre uma abordagem orgânica, não
liberal da política (holismo) e uma abordagem liberal, antagônica e instrumentalmente liberal
(competição por um resultado holista).

HOLISMO, ANTAGONISMO E HEGEMONIA

É o sistema partidário, não o partido em si, que define a natureza da democracia


partidária e, assim, milita a favor da liberdade política e da democracia representativa. Um
partido que se aceita como uma parte, que não deseja se livrar das outras partes (embora
almeje ter maioria) e que compartilha o mesmo espaço político com outros partidos, baseando
sua identidade na competição com eles - este é um partido que abandonou a ambição do
holismo. Ele abandonou a ideia de que é o único bom partido na cidade. Um partido assim
está na borda externa da sombra do holismo. Isso é o que confere valor positivo ao
partidarismo.

Como Jonathan White e Lea Ypi mostram, o partidarismo está na encruzilhada de


duas rotas opostas. A primeira rota leva a expandir e conquistar o máximo de terreno
possível; e a segunda rota leva a parar de expandir em algum lugar, porque (para manter o
partidarismo) precisa permanecer partidário ou parcial e nunca pode se tornar (ou mesmo
desejar se tornar) idêntico ao todo, à vontade geral ou ao interesse geral do povo ou do país.
A visão partidária interpreta a política de acordo com os princípios da vontade geral: ela não
ocupa, nem se torna idêntica a essa vontade geral. Consciente de sua parcialidade, a opinião
política do cidadão em uma democracia é uma celebração tanto do compromisso com um
partido (como militante ou eleitor) quanto da autocontenção. É uma celebração da
intransigência em manter alguns ideais básicos e da disposição para aceitar e discutir com
defensores de outras ideias. Isso não é uma imagem idílica, mas é uma imagem que retrata
um sacrifício. White e Ypi falam de amizade (amicitia) no sentido clássico, significando idem
sentire de republicā - porque nenhum partidário está realmente pronto para se tornar
partidário de uma visão oposta, e os partidários sabem que devem suportar tanto sua condição
limitada quanto a presença de uma visão adversária.
Isso significa que o partidarismo é estruturalmente feito para um hábito de mente
pluralista e um ambiente pluralista. Pode-se dizer que o espírito partidário é um tônico para a
política e um incentivo à reflexão crítica, ambos indispensáveis para o julgamento político e a
formação de opiniões. O partidarismo tem uma função normativa na política democrática, na
medida em que se posicionar a favor de alguns e não de outros é uma condição para tornar
possíveis as mudanças políticas e enriquecer nosso conhecimento. Assim, em vez de
obscurecer nossa proficiência epistêmica, o partidarismo ajuda a manter o foco, a manter um
propósito e a permanecer capaz de autocrítica. Finalmente, é um indicativo de liberdade
política e pluralismo, porque o partidarismo vive fora - e gera - o antagonismo. Esta é uma
condição propícia para conter a tendência ao monopólio que existe no poder político. No
final, o partidarismo estabiliza as sociedades democráticas, pois retira a absolutidade que
qualquer fé ou lealdade tende a criar; e o pluralismo de visões partidárias é o tônico que
contém tanto o partidarismo excessivo quanto evita o risco de monopólio, que são duas
trajetórias opostas que podem fazer com que os partidos “saiam do curso”. O partidarismo
injeta um senso de relatividade pragmática em nossas conquistas, credos e certezas; mas o faz
sem nos tornar apáticos, cínicos ou indiferentes. Como Johan Caspar Bluntschli escreveu, em
que pode ser considerada a primeira defesa coerente dos partidos políticos, eles “aparecem
em um estado onde a vida política é livre. Os partidos só deixam de aparecer em um país
onde predomina a indiferença aos assuntos públicos”.

É interessante refletir sobre o fato de que os termos “partido”, “partidarismo” e


“participação” não apenas têm a mesma raiz etimológica latina, mas, de certa forma, possuem
o mesmo significado. Os termos “tomar partido” e “participar” referem-se ambos a uma
forma de ação que implica entrar na arena pública e ocupar um espaço específico e limitado.
Política e conflito, política e virtudes performativas, política e limitação, e política e a
distribuição de poder definem todas o domínio da justiça e o horizonte da ordem institucional
na moderna democracia partidária. Nas repúblicas antigas, a política partidária era um fato e,
ao mesmo tempo, uma fonte de preocupação. Era principalmente identificada com alianças
faccionais e vista como pestilencial, porque nenhuma ordem institucional era
verdadeiramente capaz de domesticá-la e neutralizá-la completamente, nem mesmo uma
constituição mista. A política era uma arte grandiosa para conter e controlar facções, pois
grupos sociais estavam diretamente envolvidos na gestão das instituições. Os antigos não
faziam distinção entre facção e partido, presumivelmente porque não utilizavam eleições, que
teriam institucionalizado a competição política e exigido algumas regras escritas do jogo,
além de uma constituição que resultasse de um pacto entre os partidos, mas não estivesse
sujeita a grupos sociais.

É curioso notar, no entanto, que os significados de partidarismo e de participação


começaram a se divergir quando (graças às eleições) a sociedade pôde, pelo menos em teoria,
suportar o partidarismo como uma forma de participação sem grande perigo para sua
estabilidade. As democracias eleitorais modernas vivem da competição partidária, mas
buscam se representar como consensuais em vez de conflituosas; como epistêmicas e
imparciais em vez de julgadoras e partidárias. Levou tempo para que partidos e partidarismo
fossem aceitos dentro desse quadro iluminista da mente política. Mesmo hoje, as democracias
são atravessadas por fortes sentimentos de antipartidarismo, tanto quando tendem ao
populismo quanto quando abraçam ambições epistêmicas. Embora nenhum cidadão
democrático possa evitar o raciocínio partidário, os teóricos fazem a suposição normativa de
que uma boa política deve superar “preconceitos” (que também são identificados com o
raciocínio partidário) e se tornar uma forma de ação preocupada simplesmente com a
resolução técnica de problemas, que se supõe exigir diversidade cognitiva e opiniões
informativas (que, por sua vez, se supõe estarem disponíveis a todos os cidadãos).

A democracia representativa sofre da síndrome de aspirar a ser algo diferente. Ela


busca um status que foi identificado (anacronicamente) com a democracia direta e que
Jean-Jacques Rousseau chamou de “vontade geral” - uma voz que falaria com cada cidadão
ex ante na linguagem de ideias claras e simples, sem interesses e partes misturadas. Como
sugeri no Capítulo 1, o antipartidarismo é uma tentação permanente na democracia partidária.
Ele também é oxigênio para o populismo, que escala na medida em que a política partidária
declina e o mito de um povo indiviso atrai apoio tanto da esquerda quanto da direita. Os
partidos são responsáveis por essa revolta contra eles porque, ao longo do tempo, eles se
entregam a dois “vícios” que se tornam fatais: ou radicalizam suas lealdades parciais ou
suavizam suas diferenças na tentativa de conquistar votos. Com o tempo, parece difícil para
eles evitar “a Cila da desintegração (o todo se desfaz) e a Caríbdis do unanimismo (onde as
partes são engolidas pelo todo)”. Ambos os “vícios” são formas extremas de uma boa ação:
buscar convergência com outros partidos é, às vezes, um sinal de atenção ao interesse geral; e
fortalecer o partidarismo serve, às vezes, para conter o apetite dos líderes dos partidos por
alianças e governo. “Os partidos permanecem seguros no curso apenas quando conseguem
equilibrar o partidarismo e o governo imparcial, a lealdade ao partido e a lealdade ao estado,
o interesse do partido e o interesse geral.”
Em certo sentido, o populismo se beneficia do fracasso do sistema partidário em
praticar a virtude do equilíbrio. Ele representa a onda de antipartidarismo, como uma visão
que nunca está completamente satisfeita com a prática, perspectiva, mentalidade e hábito de
“um-entre-outros-partidos” que está por trás da democracia partidária. Ele compartilha com o
partido único (tecnicamente falando, o partido totalizador) a ambição de representar apenas a
“boa” parte do povo (os muitos, ou a plebe, ou os excluídos). E isso parece justificar sua
reivindicação de merecer uma duração mais longa no poder do que o ciclo eleitoral
permitiria. É verdade que os regimes populistas não revogam as eleições, que aceitam o risco
de serem depostos e que preferem concretizar seu holismo apenas no domínio da opinião, em
vez do domínio das instituições. Mas o hábito deles é mobilizar permanentemente a audiência
para consolidar seu apoio como se fossem um partido único. Para repetir, a diferença entre
um partido populista e um partido totalmente totalitário está em seu método de atingir o
objetivo que ambos desejam. O primeiro usa favores e corrupção para manter e
eventualmente ampliar seu apoio entre a audiência, enquanto o último, que não é menos
corrupto, recorre à repressão e usa coerção estatal direta para restringir a liberdade política e
destruir o pluralismo partidário. Esta é a razão pela qual a questão dos partidos é outro lugar
onde vemos as bordas turvas entre populismo e fascismo, por um lado, e entre populismo e
democracia partidária, por outro.

Laclau explicou que a movimentação para agregar grupos em torno da figura do líder
populista não coincide com a criação, ou mesmo busca, da generalidade do povo. Permanece
algo externo ao projeto hegemônico de tornar o partido o verdadeiro povo. Como Laclau
afirma, “Essa agregação pressupõe uma assimetria essencial entre a comunidade como um
todo (o populus) e o subalterno (o plebeu) [...] É nessa contaminação da universalidade do
populus pela parcialidade do plebeu que reside a peculiaridade de 'o povo' como ator
histórico”.

Os socialistas e os liberais também tentam criar suas “agregações de demandas


sociais”; no entanto, eles fingem que seus projetos correspondem à generalidade do povo.
Eles pretendem fazer da igualdade e da liberdade os paradigmas de uma política universalista
e inclusiva. E falam em nome de todos os cidadãos e do bem geral. No entanto, de acordo
com Laclau, na política nunca podemos superar o domínio da ideologia. Assim, mesmo
quando os partidos afirmam falar em nome de ideais universalistas, na verdade estão usando
essas ideias para agregar algumas demandas e rejeitar outras. Eles fazem isso de maneira
velada, enquanto o populismo o faz abertamente. O populismo representa a política em seu
melhor: consiste em reconhecer que toda política é ao mesmo tempo parcial e holística.
Liberais, socialistas e populistas fazem reivindicações à generalidade a partir de uma
perspectiva parcial. No entanto, apenas os populistas têm plena consciência disso e o buscam
conscientemente, ao distinguir entre o establishment e o povo do lado de fora - apenas os
populistas compreendem e praticam “a parcialidade do universal” ou fazem do povo uma
parte constitutiva que se recusa a falar em nome do todo, tornando-se “uma parte que é o
todo”.

Laclau argumenta que precisamos entender a política como um fenômeno relacionado


a partes ou parcialidade, não ao todo ou à generalidade (que sempre permanece uma ficção).
Os populistas não discordariam de Schumpeter, que propôs talvez o argumento mais forte
contra a metafísica da vontade geral e contra a ideologia da democracia, em nome de uma
liderança plebiscitária e cesarista coroada por eleições. Os populistas também concordariam
perfeitamente com a concepção de Schumpeter sobre a luta política como antagonismo entre
líderes opostos (e partidos como seus instrumentos) pelo controle do estado. O majoritarismo
é compartilhado tanto por democratas minimalistas quanto por populistas, pois ambos tornam
a democracia essencialmente uma questão de vitória da maioria. O proceduralismo seria o
esqueleto, e o populismo seria a carne.

Se o holismo é simplesmente uma estratégia para vencer uma competição, como


podemos dizer que o populismo pertence à tradição do mito do partido único e da oposição ao
sistema de partidos? Como pode ser a progênie de uma concepção de governo popular
baseada na ideia de um corpo corporativo unânime - o povo ou a vontade geral - que acredita
que não deve ser fragmentado em interesses organizados e divisões partidárias? Como é
possível atribuir um impulso holístico ao populismo, dado que ele cresce como um
movimento partidário radical, a ponto de alguns pensadores afirmarem que é geneticamente
interno ao paradigma amigo-inimigo de Schmitt e o enquadram como essencialmente
antagonista? Essas ideias - do populismo como antagonismo radical ou como expressão de
uma concepção radical de democracia - são o tema central da defesa de Chantal Mouffe do
populismo. Elas também são o cerne de uma espécie de populismo de esquerda, como nos
casos do Podemos e de Jean-Luc Mélenchon (o candidato presidencial francês de 2017).

Mouffe enxerga o dualismo entre o establishment e o povo como algo que revitaliza a
política dentro das sociedades democráticas. Ela propõe que os partidos tradicionais, da
esquerda à direita, gradualmente tenderam a buscar o centro e, assim, esvaziaram sua
diversidade. Sua leitura se alinha com a de Peter Mair e de outros críticos da cartelização da
política partidária. O populismo, de fato, poria fim à longa agonia da democracia partidária.
Esta começou a erodir bem antes do surgimento do populismo, no momento em que (na
análise de Otto Kircheimer) a competição eleitoral deixou de projetar a alternância como
objetivo, em favor do objetivo de alcançar a integração social de todos os partidos. Isso fez
com que os partidos perdessem o interesse em programas e passassem a se interessar em
expandir seu eleitorado, sacrificando seus militantes principais. Na prática, o tipo de partido
que Kircheimer definiu como partido “catch-all” é peculiar ao sistema partidário moderno,
seja manifestando-se como um partido fascista, um partido de massa ou, agora, um partido
populista.

Os partidos de cartel são partidos com uma filiação partidária reduzida e um


eleitorado variável e grande, que é volátil e foi ensinado a pensar que a política partidária é
prejudicial. A lógica das eleições parece conter uma tendência de destruição partidária em si
mesma, porque a vitória eleitoral induz todos os concorrentes a ampliar seu consentimento,
em vez de preservar sua especificidade. Assim como em um mercado livre, a democracia
eleitoral, se deixada sem regulamentação, acabaria promovendo o equivalente político ao
monopólio, a “cartelização”, que é o fim da política partidária. Mouffe pensa, de maneira
razoável, que os procedimentos democráticos só podem ser revitalizados se os utilizarmos
como deveriam ser usados, ou seja, como regras que permitem que grupos políticos colidam e
se comportem estrategicamente, visando a alcançar compromissos entre suas visões
irreconciliáveis e, por fim, vencer o jogo de votos. A lógica da política partidária, que os
partidos de cartel não querem mais aceitar, é a política do “nós” versus “eles”.

Mouffe entende a interpretação schumpeteriana da democracia como um método para


regular a competição. No entanto, ela não abraça a ideia de que os procedimentos são uma
condição normativa da democracia (premissa para a igualdade política e liberdade); em vez
disso, ela os vê como ferramentas para manter o antagonismo vivo. Pode-se dizer que, em sua
argumentação, o populismo desempenha um papel normativo - serve como um tônico que
revitaliza uma prática rotineira de oposição majoritária que se tornou pouco mais do que uma
alternância orientada para o consenso das mesmas ideias com diferenças publicizadas
limitadas. Escolher entre dois candidatos que se apresentam como de direita e de esquerda
efetivamente se tornou o mesmo que escolher entre Coca-Cola e Pepsi, escreve Mouffe. Mas
na leitura de Mouffe, assim como na de Schumpeter, parece que o antagonismo - não a
democracia - é o bem. O argumento de que os conflitos entre “nós” e “eles” são constitutivos
da política, “não importa como são processados, é de pernas curtas e perdeu todo o sentido da
engenharia política. Importa sim como o conflito é canalizado - de fato, o processamento faz
toda a diferença”.

A interpretação de Mouffe de ideias políticas divergentes como instrumentos para


adversários democráticos se oporem uns aos outros, ou como uma divisão entre “nós” e
“eles”, torna as regras do jogo meramente funcionais. Mas, dado seu pressuposto de que os
procedimentos são como formas vazias, é evidente que essa divisão depende de princípios
extraprocedimentais que nos ajudam a identificar o “nós” e o “eles”. Mais especificamente,
“nós” e “eles” não são produzidos pelas regras do jogo, mas apenas revelados por elas -
embora Mouffe, assim como Laclau, insista que o antagonismo implica uma concepção de
hegemonia como articulação precária. Se não há nada antes do dualismo, significa que ele é
essencialmente baseado na habilidade retórica dos líderes e de seus intelectuais. É um artefato
que depende essencialmente do voluntarismo e recebe legitimidade formal das eleições.
Embora Laclau e Mouffe se baseiem na concepção de hegemonia de Gramsci, Gramsci não
concordaria com eles que a vitória decreta o valor de um projeto hegemônico. Seu
relativismo, que se traduz em uma política sem princípios (embora emocional), foi na
verdade o principal alvo da crítica de Gramsci ao fascismo. Além disso, como Mario Tronti
escreve ao comentar o livro de Laclau sobre o populismo, Gramsci não substituiu, afinal, a
classe pelo nacional-popular, mas sim adaptou-a a uma forma de conflito político que se
tornou estruturalmente baseada no consentimento. O nacional-popular de Gramsci não era
populista e não estava além da divisão esquerda-direita, porque ainda estava baseado na
classe. (Seu povo “tinha um significado em um partido e para o Partido, que se descrevia
como sendo da classe trabalhadora”). Seguindo a perspectiva de Tronti, sugiro que o
populismo cresce quando os partidos social-democratas ou tradicionalmente de esquerda
declinam. O populismo é a marca de seu declínio - uma marca do espaço deixado vago pela
morte da esquerda baseada na classe.

De acordo com Gramsci, Benito Mussolini representava a versão populista da


degeneração do Príncipe coletivo (o partido) em dogmatismo despótico. O projeto de
Mussolini não era hegemônico, mas despótico. O movimento fascista foi uma criação pessoal
de Mussolini - ele elaborou uma ideologia totalmente construída e instrumental para seu
projeto de poder, sem filosofia, normas ou ideais que o justificassem. Na prática, não tinha
outro objetivo senão o poder. O projeto populista de Mussolini consistia em vincular as várias
reivindicações e formas de insatisfação do povo com o governo liberal. Ele teve sucesso em
polarizar opiniões e mobilizar um grande número de pessoas contra as instituições e normas
estabelecidas em nome de uma representação mais verdadeira do povo soberano - ou seja, sua
própria representação como a encarnação desse povo. (Gramsci não deixa de observar a
admiração de Mussolini por Gustave Le Bon.)

Com base nisso, concluo que o aspecto problemático de uma concepção de


democracia como puro antagonismo é o único papel que o consentimento desempenha em
provar a validade da hegemonia. Isso ocorre porque esse consentimento poderia implicar (ou
pelo menos não exclui a priori) a imposição dos princípios vencedores a grupos que não
concordam com eles. Vamos considerar, por exemplo, a seguinte possibilidade. Pode haver (e
frequentemente há) indivíduos e grupos que não concordam que a opção dualista seja a única
opção na política. Essas pessoas e grupos podem estar dispostos a se opor a um partido
político em alguns casos e apoiá-lo em outros. E podem ser motivados por ideologia e
interesses de classe, não apenas por comportamento estratégico. Mas na visão de Mouffe,
esses indivíduos e grupos poderiam ser permanentemente considerados “eles” porque não
concordam conosco em todos os problemas e, portanto, nunca podem se fundir
completamente em uma alternativa populista ao establishment. Essa implicação se torna
ainda mais problemática quando consideramos que, para Mouffe, o antagonismo não exige
que facções antagonistas tenham qualquer chance real de se tornar o “nós” dominante:
simplesmente requer que elas sejam capazes de expressar sua discordância para manter o
próprio antagonismo vivo. Em sua visão, parece que as minorias devem ser permanentes:
deve ser permanentemente possível que elas nunca se tornem a maioria. Isso vai contra a
ideia procedural de democracia, segundo a qual é uma parte crucial da democracia que as
minorias políticas tenham uma chance real de conquistar o poder, de modo que o partido no
poder mude. A oposição não está simplesmente presente para facilitar o antagonismo: ela
existe com a promessa de que um dia pode se tornar maioria. Esta é a dura condição
normativa do proceduralismo democrático, que sustenta não apenas partidos e antagonismos,
mas o sistema de partido ou democracia partidária em si. Na verdade, é o cerne da
democracia em si - democracia não consiste apenas na presença de antagonismo; na verdade,
seria mais apropriado falar de “dissidência” em vez de “antagonismo”, uma vez que as
divisões partidárias nunca são absolutas; nem cortam o corpo de cidadãos em duas partes
perfeitas, como “a direita” e “a esquerda”. Mesmo que pareça que Mouffe está menos atraída
por premissas antiliberais (como orgânicas) do que Laclau, sua adaptação do antagonismo
schmittiano dentro do jogo da política eleitoral faz com que a democracia pareça mais uma
luta livre do que um processo pelo qual oposições podem chegar ao poder. O antagonismo é
uma parte do movimento democrático; mas a mudança no governo deve ser a outra parte. Isso
significa que o antagonismo é um meio - é para algo - não um bem ou um fim em si mesmo.

O sistema partidário é a questão que o populismo contesta; e é a questão que torna a


política oposicionista do populismo insuficientemente segura para a democracia, mesmo que
não seja antidemocrática em si.

HIPERPARTIDO EM UMA VISÃO MONOPARTIDÁRIA DA POLÍTICA

A visão populista da política, que afirma unir e representar a maior parte da população
e busca alcançar uma maioria forte e duradoura, contém tanto concepções orgânicas e
holísticas quanto concepções antagonistas, mesmo que pareçam ser radicalmente diferentes
entre si. Há duas etapas na estratégia populista de busca por consentimento. Primeiro, ela
destrói e desagrega as agregações existentes (ou seja, rompe alianças políticas anteriores)
usando a retórica opositiva (especialmente o antiestablishmentarianism). Em seguida, ela
muda a direção da opinião das pessoas por meio da agregação de demandas por um novo
povo. Laclau descreveu esta etapa da seguinte forma:

Portanto, temos aqui a formação de uma fronteira interna, uma dicotomização do


espectro político local por meio do surgimento de uma cadeia equivalencial de
demandas insatisfeitas. As solicitações estão se transformando em reivindicações.
Chamaremos de demanda democrática aquela que, satisfeita ou não, permanece
isolada. Uma pluralidade de demandas que, por meio de sua articulação
equivalencial, constitui uma subjetividade social mais ampla, chamaremos de
demandas populares.

Para construir equivalência unificando várias reivindicações, é necessário criar uma


unidade corporativa que imite uma entidade popular mítica. Independentemente de os líderes
populistas terem seguido conscientemente as prescrições de Laclau, parece ser uma estratégia
populista convincente e realista. Como tal, estamos justificados em incluir a ideologia
populista dentro da ampla tradição do antipartidarismo. E também estamos justificados em
recorrer à metáfora da borda borrada (com o fascismo), lembrando que o fascismo é a
empreitada mais bem-sucedida de colocar em prática o projeto hegemônico de um “partido
único”.

O antipartidarismo foi uma das características mais específicas do movimento


fascista; isso tem sido verdadeiro desde o momento em que surgiu no período pós-primeira
Guerra Mundial. Mussolini atacou os partidos fracos e litigiosos do parlamentarismo liberal e
os acusou de se multiplicarem artificialmente em questões irrelevantes apenas para expandir a
elite oligárquica dentro das instituições. Mussolini também acusou o liberalismo de trair a
reivindicação democrática de avançar para um governo popular. Ele argumentou que
fragmentava a “unanimidade” das massas para selecionar as elites que poderiam melhor
servir aos interesses de poucos. Finalmente, Mussolini criticou o método da política
partidária, que consistia em discussões intermináveis, críticas e sofismos. Essas eram
estratégias que, segundo seu criador no início de sua carreira política, aumentavam as outras
para gerar confusão na nação e quebrar a unidade das massas. Assim, afirmava o criador do
fascismo, este deveria ser um movimento, não um partido. Mas após sua primeira vitória
eleitoral, quando o movimento conquistou assentos no Parlamento, a posição de Mussolini
mudou. Para mobilizar forças contra o sistema partidário, o fascismo precisava ir além de um
movimento e se tornar uma “organização”. Precisava se tornar uma ferramenta capaz de
gerenciar eleições para “pôr fim” ao “regime democrático-parlamentar” e conquistar o
governo. Como tal, o movimento antipartidário teve que se tornar (e se tornou) um partido.
Precisava estruturar sua organização e, uma vez no poder, moldar o estado para que pudesse
fundir todos os aspectos da política das massas em uma voz e máquina organizadas. O partido
de um único partido tornou-se cada vez mais um partido à medida que governava o estado do
ponto de vista de um partido e da ideologia fascista e de seu líder. O Partido Fascista
tornou-se uma facção no momento em que afirmou ser o partido de todos, porque, nesse
ponto, não havia espaço para outros partidos, já que o todo já havia sido ocupado.

Giuseppe Bottai, o mais brilhante dos intelectuais fascistas, escreveu em 1943 que o
antipartido deve ser capaz de se tornar uma hiperpartido porque, para resistir à tentação de se
tornar como um partido tradicional e, assim, abrir as portas para o multipartidarismo, o
partido antipartidário deve se tornar totalizante para poder aderir plenamente às várias
demandas que surgem de sua sociedade. Bottai concluiu que o pluralismo de demandas
sociais é necessário, mas a sua agregação política deve ser uma. Um partido que deseja ser a
única articulação política do pluralismo social deve se fundir com o estado. No momento em
que isso acontece, o antipartido de fato se torna um hiperpartido - não é mais um partido de
todo (o partido, novamente, presumindo uma pluralidade de partes). Portanto, Hannah Arendt
observou que o movimento fascista parecia mais sincero do que os partidos organizados, e
por isso parecia certo orquestrar uma campanha contra a máquina partidária: “No entanto,
isso foi apenas em aparência, pois o verdadeiro objetivo de todo 'partido acima dos partidos'
era promover um interesse específico até devorar todos os outros e fazer de um grupo
específico o mestre da máquina estatal”.

Uma vez que o fascismo se tornou um regime, o pluralismo social poderia ser
entendido como necessitando encontrar sua síntese política no partido-como-um. O
hiperpartido era o registro hegemônico das muitas demandas da sociedade, facilitando sua
transmissão para o Estado. O hiperpartido era o agente “organizador” e unificador entre as
massas e o Estado. Era a voz de uma sociedade sem partido (embora essa sociedade ainda
tivesse muitas demandas em seu domínio social). Nessa lógica antipartidária, a parte (ou o
partido) lidera a promoção da “articulação de necessidades”, mesmo enquanto enfrenta o
pluralismo holístico das exigências sociais, de uma maneira que contrasta completamente
com o pluralismo partidário. Isso pode parecer um oximoro, mas não é, porque a ideia de
política como encarnação e identidade (especialmente fascista) é que deve haver um partido
que unifique e represente as muitas demandas dentro da sociedade para evitar que o
pluralismo partidário se repita. Isso é o que os partidos de massa fazem na democracia, mas
sem adotar o modelo de hiperpartido; em vez disso, eles aceitam a competição pela
hegemonia e não afirmam ser o todo, mesmo quando governam e afirmam fazer isso pelo
bem de todos; mas a própria existência deles resulta do fato de que eles não se identificam
completamente com o público, mesmo quando (com sorte) agem pelo público. “Agir para”
(não substituir) é precisamente o significado da palavra “pro” na sinédoque parte pro todo,
como tenho dito ao longo deste livro. Esse significado desaparece na lógica antipartidária do
populismo, que é, nesse sentido, faccional.

O hiperpartidarismo não pertence apenas aos partidos totalitários em regimes


fascistas, e não tem o mesmo sabor desagradável quando opera dentro das democracias de
partido. O que faz de um partido de massa um partido impulsionado pela vocação de
hiperpartido, sem recorrer à repressão do pluralismo partidário, é sua tentativa de neutralizar
o pluralismo por meio da criação de um consenso entusiástico. Ele busca, como mencionei,
perseguir o holismo apenas dentro da audiência. Isso também faz com que um partido
populista seja semelhante a um partido de massa e diferente de um partido fascista. Este
último não apenas reprime o pluralismo político, mas não se preocupa com uma sociedade
apática, enquanto os dois primeiros temem a apatia e buscam apoio entusiasmado.

Além disso, um regime populista cultiva a ambição de governar uma sociedade na


qual apenas o partido do líder busca com sucesso uma política hegemônica, enquanto todos
os outros partidos são marginalizados quase até a inexistência, submersos pela propaganda
desenfreada do líder no governo. No entanto, marginalizar não é o mesmo que suprimir.
Chávez buscava desenvolver um tipo diferente de organização política que não se
assemelhasse aos partidos políticos: ele iniciou um plano para “mobilizar seu apoio popular
de base” por meio de movimentos sociais, estudantes, organizações comunitárias e afins.
Mas, em certo ponto, devido a exigências internas do governo, a Assembleia Nacional lançou
uma “ação parlamentar nas ruas”, e os chavistas perceberam que precisavam de algum
pluralismo político, bem como de “uma forma alternativa de deliberação, dada a falta de
oposição no Congresso”. Para ter certeza, nem todos os governos populistas são iguais, ou
seguem a tradição da América Latina, onde movimentos bottom-up e sociopolíticos estão
constantemente presentes. O caso da Hungria, por exemplo, é diferente. Lá, Viktor Orbán
sugeriu mais de uma vez que o governo é para resolver problemas, não debater sobre
problemas: “Quando uma árvore cai sobre uma estrada... não são teorias que são necessárias,
mas sim trinta rapazes robustos que começam a trabalhar para implementar o que todos
sabemos que precisa ser feito”.

Se deixarmos de lado a forma ditatorial do poder fascista por um momento, podemos


usar a lógica antipartidária/hiperpartidária que o movimento fascista usou para explorar o
comportamento dos regimes populistas contemporâneos.

Análises das numerosas experiências de populismo na América Latina, tanto radicais


quanto conservadoras, destacam o ataque contra os partidos em nome da “democracia da
maioria nacional”. Essa “maioria nacional” envolve um sistema abrangente de organizações
sociais, que são levadas a se fundir na força líder do partido populista e de seu líder. Em um
documento da Aliança Bolivariana na Venezuela, lê-se que “a sociedade” deve participar da
“democracia direta do povo, em vez da democracia burguesa delegada, representada pela
classe política e instrumentalizada por diferentes partidos. O povo participará naturalmente de
baixo para cima”.

O discurso político, enquadrado pela lógica schmittiana do amigo-inimigo, “tende a


ter pouco uso para as instituições de representação”, pois prioriza a mobilização e as
agregações sociais “como o instrumento político por excelência”. Isso é verdade mesmo
quando esse discurso ocorre dentro de uma ordem institucional que é, em termos gerais,
democrática. E significa que, na prática, não é político — porque não é articulado através da
competição política entre partidos, mas sim através de grupos sociais. O pluralismo social
que Bottai destacou em sua teoria do “Partido Fascista como hiperpartido” caracteriza um
regime que realmente gira em torno de uma visão monopartidária do público, mesmo que
nunca se torne completamente ditatorial e nunca ocupe a totalidade por decreto.

A dialética entre as partes e o todo está no cerne da interpretação da democracia. Isso


é verdade, quer se compreenda a democracia como um espaço político para um processo de
maioria/oposição (sistema de partidos) ou como uma política de massas que se baseia no mito
da unanimidade, mas que não é, a priori, oposta à pluralidade no domínio social. O
populismo é uma maneira democrática (não fascista) de lidar com a criação da unidade das
massas? E é uma expressão da afirmação de “o todo” contra “suas partes”?

DA FOBIA DE PARTIDOS À IDOLATRIA DE UMA PARTE

Críticos da democracia partidária têm sido “hipnotizados pela doutrina


predominante”, que começa com uma “distinção rígida” entre “direito público e privado” e
conclui com suspeita de pluralismo. Para eles, o Estado parece uma “marcha triunfal em
direção ao estado coletivo supra-individual, uniforme e unificado”. Eles consideraram a
democracia partidária como um objeto constante de ansiedade. A reclamação contra
interesses e particularismo imita a conotação negativa atribuída aos partidos - o argumento de
que promovem facções. O antipartidarismo é a consequência dessa visão da “superioridade
do interesse coletivo ou nacional”. Como antecipei no primeiro capítulo, o clamor contra a
merecracy ou a partidocracia ecoa o mito do povo coletivo, indiviso, conforme argumentado
por Bobbio. Claramente, Bobbio acrescentou, você não precisa que os partidos sejam
permitidos pela constituição para tê-los: é a prática da própria democracia que os produz.
Quando a ação política é livre, os partidos não precisam pedir “permissão”. A análise de
Claude Lefort segue a mesma linha. Ele caracteriza a “revolução democrática” como o
desaparecimento de um “marcador de certeza” - um representante que, por meio de sua
pessoa, incorpora o poder de um grupo específico para que o representante possa declará-lo
como o verdadeiro soberano. Para Lefort, o fato de o locus do poder na democracia se tornar
vazio significa que o poder é relacional. Isso também significa que se manifesta, em todos os
níveis da vida, “entre o eu e o outro”. Em resumo, a democracia se torna a exaltação das
instituições e procedimentos contra a encarnação do poder em um ator central ou em alguma
parte do povo.
Lefort considerava essa resistência totalizante ao processo de dissolver o centro da
representação como a postura mais radicalmente antidemocrática. Para ele, a doutrina e a
prática do poder implicavam a conquista de instituições e regras, a ocupação do mundo
relacional “entre o eu e o outro”. O populismo ressuscita algumas sombras desse desejo
arcaico, que busca identificar todo o mundo político de um país em alguma pessoa ou grupo
específico para liberar o poder de “interesses e apetites” especiais. A reação contra o
pluralismo de interesses envolve a “fantasia do Povo-como-Um, os primeiros passos para
uma busca de identidades substanciais; para um corpo social que está soldado à sua cabeça,
por um poder encarnado, por um estado livre de divisão”.

O paradoxo do populismo é que a fobia aos partidos (com seu espírito totalizador de
um coletivo “certo” indiviso, desconjuntado e não fragmentado) nos leva de volta à idolatria
dos partidos: a adoração de uma parte. Essa é a contradição dentro da política populista que
Laclau documenta de maneira tão magistral. A dele é a única tentativa consistente de
desenvolver uma teoria do populismo que torne essa contradição visível.

Podemos descrever o paradoxo que assombra o populismo da seguinte forma. Um


movimento populista não consiste apenas em dar a uma parte (a “vítima inocente”)
legitimidade ou voz. Nem consiste em afirmar que esta parte “boa” fala pelo todo, ou que esta
parte “boa” pode representar melhor os interesses gerais porque é a parte que sofreu mais
injustiça. O populismo não faz uma reivindicação de generalidade que parte do negativo,
como Karl Marx faz: “Quando os marxistas afirmam que a classe trabalhadora é a classe
universal, afirmam que ela é mais do que um grupo de interesses (de fato, mais do que
qualquer interesse nacional)”. Nesse sentido, o populismo não é pars pro toto, ou seja, a parte
que fala pelo todo. Tal enquadramento ainda presumiria a existência de um todo (o todo) ou
um horizonte universal de valor (como a liberdade da alienação, por exemplo), em relação ao
qual o populismo teria o direito de reivindicar seu poder. Mas a crítica militante ao sistema de
partidos e uma representação pluralista das reivindicações do povo nos levam para fora desse
terreno de generalidade, que a ficção de pars pro toto representa. Isso ocorre porque o
populismo dispensa também todos os critérios de generalidade, declarando-os como mera
ideologia. Assim, a ideia de poder como “submetido aos procedimentos de redistribuição
periódica” - parafraseando Lefort - desaparece completamente. É a representação como
incorporação e identidade - que não implica a substituição de um todo por uma de suas partes
- que nos impede de situar a política populista dentro do paradigma de pars pro toto. A
argumentação que proponho é que a fobia populista de multipartes (e, consequentemente, sua
fobia da política parlamentar) abre um cenário muito mais radical. Ela faz a política consistir
em uma parte que se declara, como tal (ou seja, como uma parte), no centro do poder do
Estado e reivindica que é a “parte boa” com direito a governar, não necessariamente para o
bem de todos, e certamente não para aqueles que são considerados “o establishment”.

Laclau observou que a universalidade não pode ser um objetivo político, porque toda
luta política pelo poder requer uma identificação com “alguns conteúdos particularistas”, não
com uma universalidade geral. “A passagem de uma formação hegemônica, ou configuração
popular, para outra sempre envolverá uma ruptura radical, uma criação ex nihilo [...] [que é]
um 'ato de liberdade', uma construção pura”.

Já exploramos como a raiz teórica do populismo não é o povo como um todo - não é a
vontade geral de Rousseau - porque a ideia do povo que contempla é assumida ex ante como
sendo idêntica ao todo, menos aos poucos. Assume-se que é apenas o povo não elite. Ao
superar Marx e ao abandonar o universalismo que ainda aparece no proletariado de Marx,
Laclau argumenta que a vontade é sempre a vontade de um grupo setorial. Nesse sentido, “o
representante precisa mostrar que [essa vontade] é compatível com o interesse da comunidade
como um todo”. A política populista é um domínio de puro voluntarismo e retórica,
semelhante ao descrito no primeiro livro da República de Platão. Lá, Trasímaco é enfático ao
afirmar que o poder é sempre o poder da parte vencedora e que a justiça é sempre a justiça da
parte mais forte. Para ele, o discurso de generalidade é apenas um artifício retórico para obter
consentimento. O voluntarismo extremo e o relativismo extremo convergem em uma
concepção de política baseada essencialmente na substituição de uma classe por outra, ou de
um ator representativo por outro.

O populismo revela e aceita o fracionamento estrutural do poder. Ele mostra como o


discurso é um mecanismo retórico-ideológico, que oculta as intenções de poder, fazendo
parecer que é a incorporação do verdadeiro interesse do povo. A ideologia é uma condição
total; ela retira todo resíduo de normatividade, conforme Vilfredo Pareto argumentaria. O
resultado é a fenomenologia da política como fracionamento. O populismo, que faz parte
dessa fenomenologia, consiste em uma série de incorporações. Um grupo parcial (composto
pelos antiestablishmentarian) declara-se a si mesmo como incorporando o todo por meio de
seu líder, que é sua encarnação. O “todo” é em si mesmo uma construção retórica, enquanto o
grupo parcial é a materialidade que toma a forma das palavras e ações do líder. Em última
análise, o único local de poder é o líder. Os “setores marginais” da sociedade tomam o centro
do palco, graças ao representante, cuja “tarefa consistiria menos em transmitir uma vontade
do que em fornecer um ponto de identificação”. Em outras palavras, o líder não restitui “a
vontade” aos grupos marginais; o líder oferece a eles seu “ponto de identificação”, por meio
do qual eles chegarão ao poder. Laclau assegura-nos que há uma relação de interesses mútuos
entre o representante e os representados. Ele está convencido de que a direção do poder não é
apenas do primeiro para o segundo, mas também vice-versa. No entanto, não há garantia
institucional ou procedural de que essa reciprocidade funcionará uma vez que o espaço de
“instituições e procedimentos” (o espaço vazio da política de Lefort) tenha sido totalmente
ocupado pelo incarnatus e pela parte que ele ou ela proclama representar. Assim,
reconstruímos a fenomenologia do fracionamento — no final da qual não temos pars pro
toto, mas pars pro parte. A parte (efetivamente seu líder) governa por si mesma. Méros toma
kratos.

O PARTIDO E A FACÇÃO

Agora estamos em posição de voltar ao debate entre Raymond Polin e Norberto


Bobbio sobre o significado de merecracy em relação à democracia partidária e ao pluralismo
político. Como vimos no Capítulo 1, Polin identifica o kratos de méros, ou o “poder das
partes”, diretamente com a política partidária e critica isso em nome de um povo indivisível.
Bobbio, por outro lado, argumenta que esse kratos é a condição estrutural do governo
representativo, que se baseia em partidos, não apenas em eleições. Como observei, esse mito
de uma unidade orgânica da soberania popular, que não deve ser fragmentada por partidos,
têm raízes na política popular. Não é exclusivo do populismo; na verdade, é a origem da
república constitucional moderna. A democracia constitucional contém procedimentos que
permitem a realização prática e a organização do interesse geral. Isso levou os atores políticos
e cidadãos a aceitar que a democracia se baseia em uma ficção: a “assimilação da maioria à
unanimidade”. É uma ficção no sentido de que qualquer maioria tenta realizar seu programa
político por meio de vias legais e compromissos, que se destinam a suavizar sua vontade de
poder, e depois concretizá-la com o imprimatur da generalidade fornecida pelas instituições.
(Tecnicamente falando, todos os representantes políticos que estão no parlamento
representam “o povo” - eles não representam apenas uma porção específica dele, nem
representam apenas suas circunscrições eleitorais.) Essa ficção adquire um significado
normativo quando os partidos aceitam, para fins práticos, que são mais de um, e quando
aceitam que a oposição é legítima: não é nem uma estratégia pura para acender o
antagonismo, nem uma segunda melhor opção na espera por uma política de partido único,
nem uma construção retórica para encobrir a natureza parcial do poder.

Richard Hofstadter explorou a trajetória complexa que ocorreu na política dos Estados
Unidos, desde o modo de partido único no início da república americana até o surgimento e
plena aceitação da “oposição legítima” - isto é, a oposição que está fora do governo e
contesta sua maioria na esperança de assumir o poder para si mesma. Havia dois obstáculos
para os partidos superarem antes que essa aceitação pudesse ocorrer. Primeiro, eles tinham
que adquirir legitimidade, provando que não eram uma ameaça à ordem constitucional.
Tinham que mostrar que não eram realmente facções disfarçadas, tentando assumir o poder e
minar o sistema, mas estavam realmente envolvidos em uma contestação aberta. Eles tinham
que mostrar que não estavam promovendo sedição, porque apelavam para o consentimento
das pessoas em algumas considerações críticas na polis comum. A distinção entre partidos e
facções (que, desde as repúblicas grega e romana até o século XVIII, eram consideradas
idênticas) foi uma conquista que apareceu primeiro em Maquiavel (com sua distinção entre
amigos partidários e inimigos partidários) e depois reapareceu de maneira muito mais
explícita em David Hume e Edmund Burke. Em segundo lugar, os partidos tinham que
persuadir políticos, magistrados e o povo de que poderia haver uma forma legítima de visão
partidária que criticasse uma política específica e buscasse redirecionar a maioria para metas
diferentes. Essa ideia do partido apareceu tão cedo quanto a discussão de Bolingbroke sobre
(ou seja, contra) partidos. Esses dois obstáculos estavam conectados. Uma vez que os
partidos eram capazes de provar que podiam ser uma “oposição responsável” - ou seja, uma
vez que provavam que estavam em oposição a uma maioria específica, em vez de à ordem
constitucional per se -, podiam convencer os outros da ideia de que diferentes perspectivas
são possíveis e até legítimas na interpretação da mesma constituição e do interesse geral. Isso,
por sua vez, permitiu-lhes promover a ideia de que o interesse geral não é único e não está em
busca de uma única incorporação. Essas coisas estabeleceram a condição para a
representação política. A heterogeneidade social e seu pluralismo de demandas não exigiam
nenhuma incorporação unitária na arena política; pelo contrário, exigiam uma contestação
aberta e dialética entre as várias reivindicações representativas.

Dentro do sistema de partidos, o interesse geral estava associado ao próprio processo:


o espírito de compromisso e as regras do jogo permitiam a coexistência de opiniões e sua
transmissão das instituições da sociedade para o estado. Comunicar-se com o Estado (sem ser
absorvido por ele) é um componente essencial do jogo político na diarquia da democracia.
Esse processo era considerado como uma forma de implicar a liberdade política, isto é, a
liberdade para desenvolver e contestar aberta e publicamente julgamentos políticos e ideias
sobre as interpretações do espírito geral da constituição. Em breve, os partidos não apenas
foram aceitos, mas provaram ser eficazes em uma série de atividades: definir programas
eleitorais, atrair participação, mobilizar seguidores e membros, selecionar candidatos, educar
candidatos eleitos e potenciais na cultura administrativa e legal do público, fornecer
linguagem e competência administrativa, aprimorar a cultura política dos cidadãos, e assim
por diante. Em vez de ser apenas uma “segunda opção” em relação ao primeiro bem da
unidade como unanimidade, o sistema de partidos tornou-se uma busca pelo interesse geral e
uma expressão política da liberdade de ideias em geral, e de ideias dissidentes em particular.
Para Kelsen, assim como Schattschneider, a democracia moderna passou a parecer
inconcebível sem partidos políticos. Na verdade, esses autores sugeriram que os partidos
políticos “criaram” a democracia moderna, mas não tanto a soberania popular.

Como era de se esperar, o argumento mais resistente contra os partidos (especialmente


as oposições) foi o argumento feito pelos fundadores americanos. Como observou Hofstadter,
esses fundadores afirmavam que a república americana coincidia com o bem básico da
república:

Os Federalistas e os Republicanos não se viam como partidos alternativos em um


sistema de dois partidos. Cada lado esperava, em vez disso, eliminar o conflito
partidário persuadindo e absorvendo os membros mais aceitáveis e “inocentes” do
outro; cada lado esperava associar o estigma de lealdade estrangeira e deslealdade
aos líderes intratáveis do outro, e afastá-los dos negócios como um partido.

Lendo isso, entendemos por que os fundadores usaram a palavra “facção” quando
queriam acusar uns aos outros de filiação partidária. A aceitação do “partido de oposição”
coincidiu com a distinção entre partido e facção (que foi aprimorada na segunda metade do
século XIX, quando o “sistema de partidos” tomou forma). O empreendimento teórico que
acompanhou esse esforço importante envolveu o trabalho de teóricos políticos e legais para
elaborar as condições normativas que poderiam ser usadas para distinguir um partido político
de uma facção. No nível político, era crucial que partidos e facções fossem definidos de
acordo com parâmetros claros e verificáveis, e normativos ou relacionados à tomada de
decisões dentro e fora deles - publicidade versus sigilo, organização por estatuto versus
métodos discricionários de decisões, a reivindicação de se apoiar em princípios que possam
promover os interesses gerais versus a parcialidade sectária dos objetivos (quando estes são
divulgados).

Os teóricos contemporâneos do partidarismo remontam ao ensaio de 1869 de


Bluntschli “O que é um partido político?” para sustentar seu argumento de que a aceitação
dos partidos coincidiu com o desenvolvimento de uma definição analítica de partido e com a
separação entre partidos e facções. Ao elaborar as condições essenciais dos partidos em
comparação com as facções, Bluntschli buscava um argumento capaz de justificar a exclusão
de partidos inimigos na era da política partidária. Ele demonstrou que isso poderia ser feito
desvalorizando grupos, classificando-os como “facções”. O partido confessional (católicos
envolvidos na política) e o movimento baseado em classe (o Partido Socialista) não eram
grupos “políticos”. Bluntschli, ecoando a política de Bismarck, considerava que eram
facções. Como tal, ele acreditava que deveriam ser excluídos das instituições representativas.
Ao negar a legitimidade a esses partidos, Bluntschli justificava sua repressão, com base na
ideia de que eram facções ou ameaçavam o princípio da supremacia do Estado (que
Bluntschli considerava a condição básica para uma autêntica política partidária). Portanto, a
referência à unanimidade não desapareceu com o governo partidário e a reabilitação dos
partidos; ela foi transferida da política para o pacto básico, ou a constituição, ou o Estado. A
oposição legítima significava, antes de tudo, lealdade constitucional, e a prova dessa lealdade
tinha que ser buscada na ideologia e na carta dos partidos. Em vez de simplesmente fornecer
uma justificativa para a política partidária como uma forma produtiva de partidarismo,
Bluntschli pretendia limitar o que era considerado político (ou seja, o que era considerado um
partido) e o que era considerado subversão da ordem constitucional (ou seja, o que era
considerado uma facção).

A distinção entre partidos e facções no governo parlamentar foi o primeiro passo para
aceitar e legitimar a política partidária na era da fundação republicana. Foi usada para sanear
o ambiente partidário daquelas associações que eram consideradas problemáticas para a
estabilidade do sistema. Um partido populista faz mais ou menos o mesmo trabalho de
saneamento quando acusa os partidos existentes de fragmentar as massas, ou o povo, para
facilitar alguns interesses parciais. Seu ataque à política partidária é feito como um ataque à
política facciosa. O curioso é que a política populista não é a afirmação do universalismo
versus a política parcial, como vimos; é a celebração da representação de uma parte, a
periférica ou marginal, que às vezes é também a mais numerosa. A política populista é
merecratic no sentido clássico — proclama os interesses de uma parte uma vez que o todo foi
declarado ser uma construção puramente retórica, e uma vez que as “instituições e
procedimentos” (o espaço vazio da política) foram declarados incapazes de serem
verdadeiramente vazios. Nas palavras de Lefort, “O eixo de nosso argumento sobre a
democracia tem sido que é necessário transferir a noção de vazio do lugar do poder em um
regime democrático para o sujeito que ocupa esse lugar”.

Para Laclau, a extensão desse vazio das instituições para o sujeito faria sentido apenas
“se estivéssemos lidando apenas com os aspectos jurídicos e formais da democracia”. No
entanto, a política sempre ocorre, e o sujeito político é sempre construído fora desse aspecto
“formal”. Na verdade, o vazio é improvável mesmo no nível institucional, já que a politeia —
a constituição — está dentro do corpo da cidade, dentro das relações sociais e relações de
poder. Notavelmente, para justificar a incorporação desse espaço vazio, Laclau esclarece o
significado da constituição ao recuperar seu significado aristotélico (ou hegeliano). Ele
propõe que a constituição seja “o modo de vida político inteiro de uma comunidade”: é um
arranjo que regula as relações de poder entre forças sociais que já existem. Além disso, eles
não são apenas partidos, mas “interesses sociais e reivindicações”. Eles incorporam um
pluralismo social que, como vimos com Bottai, precisa ser unificado no nível estatal por meio
de um líder.

Iniciei este livro afirmando que o aspecto “formal” da democracia representativa é a


substância da democracia. (Assumindo que, por “democracia”, queremos dizer um espaço
aberto no qual cidadãos e grupos competem para tomar e mudar decisões, resistindo e
opondo-se para propor seus próprios projetos por sua vez.) Agora esclareci que o populismo
se relaciona com a interpretação da democracia. Se, como Laclau parece sugerir, a
constituição da democracia é um “arranjo” que regula a relação de poder entre demandas
sociopolíticas opostas - a elite e o povo - então a política é claramente sempre uma política de
facções.

CONCLUSÃO

Neste capítulo, concluí o argumento sobre os antiestablishmentarianism que iniciei no


Capítulo 1. Mostrei que a conquista verdadeiramente importante de um líder populista - na
verdade, o “milagre” - consiste em anular o risco mais nefasto que ele enfrentaria assim que
alcançasse o poder. Esse risco é a possibilidade de parecer para o seu povo que ele
simplesmente instalou um novo establishment. O establishment deve pertencer ao passado. O
líder populista que busca o poder deve se tornar um insider sem nunca parecer ser um. Ele
não pode simplesmente liderar um movimento de protesto contra o establishment. E deve ser
capaz de abolir a diferença entre movimento e poder, e entre exterior e interior. Este é o
quebra-cabeça que explorei para examinar a tensão entre o populismo e a democracia
representativa, e para esboçar suas diferenças em relação ao fascismo. Quando examinamos o
papel do líder no populismo, vemos tanto sua distância da democracia quanto sua
proximidade com o fascismo. E vemos a diferença entre os caminhos populistas e ditatoriais
em direção ao antiestablishmentarianism. Demonstrei que entender a representação como
encarnação é fundamental para compreender o “milagre” de um líder que escapa da
armadilha do establishment ao se despojar de responsabilidade política. A figura do líder e do
partido são os dois componentes fundamentais de uma democracia populista. E são as
premissas que utilizo, no próximo capítulo, para argumentar que o populismo no poder é uma
forma de representação direta, em todos os aspectos.

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