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O privilégio desses grandes não se equilibra com as carências desse povo, se trata
na verdade, de uma formação oligárquica, onde estes têm sempre mais, querem
sempre mais. No caso do Brasil, essa particularidade exigida sempre pelos grandes
torna-se universal e medeia as relações. Tudo piora quando se insere a matriz
teológica assumida pelo político. Mas o que significa efetivamente isso? Ora, assim
como os privilégios dos grandes, o Estado no Brasil sempre foi visto como
ANTERIOR A SOCIEDADE, pois a colônia dependia da metrópole para existir
enquanto tal. O Estado brasileiro surgiu como um produto externo à própria
sociedade brasileira.
A proclamação da república não mudou muito isso, pelo contrário, ela somente
reformou essa estrutura, o Estado continuava a aparecer ao lado da sociedade
como algo que a determina de fora para dentro, muito embora pudesse de fato
refletir certas lutas no interior da sociedade brasileira, principalmente na classe
dominante, de acordo com Chauí, mas isso não mudou essa concepção teológica
do Estado, muito pelo contrário, porque a formação social oligárquica seguia
existindo a todo vapor . Isso em termos práticos significa que a política no Brasil não
aparece como uma luta e o poder um lugar vazio, pelo contrário. No que diz respeito
ao Brasil, a política aparece, de acordo com a cultura brasileira, ainda carregando
desde sempre esse ranço teológico concebido desde os tempos do Brasil colônia,
relacionando-se diretamente com a exploração material do território brasileiro.
O país não é uma terra entre as terras, mas o oriente (no sentido teológico e
geográfico), é o lugar onde a vontade de Deus misteriosa se realiza, onde se tem
leite e mel vertendo, tudo é belo, não há contradições. Essa concepção também
afirma que o homem perdeu o direito de governar e tem o direito somente posto por
Deus cedido como um favor divino representado a partir do governante que distribui
favores e representa esse salvador, essa vontade divina que apazigua esse conflito
entre os grandes e os dominados, que desemboca a partir da vontade do
governante e do próprio estado, novamente na união do povo em um só.
Por isso, existe na formação social brasileira, dada sua desigualdade ou polarização
entre o privilégio dos grandes e as carências do povo, um terreno fértil para o
populismo. Chauí dá 6 momentos para mostrar essa adesão ao populismo que
encaixa tão bem com a formação social brasileira, que não é tão somente
assimilada a coronelismo e as formas clássicas, é possível também a imagem que
escapa disso, visto que o que está em jogo na adesão do populismo é algo bem
mais profundo do que a imagem passada.
1. O poder sem mediações políticas, uma relação direta com o governante que de
tudo sabe e é dono das virtudes pois é enviado diretamente por Deus à governar o
Éden terreno
Desde o início de sua história o Brasil é narrado de forma mítica e teológica, tudo se
aprofunda quando a noção de mito fundador está colocado. O Brasil não se tornou
um estado com suas mediações particulares, ele foi descoberto como uma terra
sacralizada, como já explicitado, oriente em que tudo de bom brota, a visão do
paraíso, como documentado nas correspondências por exemplo de Pero Vaz de
Caminha. O Brasil é um espaço onde expressa-se o paraíso terreno e sua política
reflete isso, somos um povo agraciado por Deus, por viver em um lugar onde
verte-se leite e mel dos rios e das montanhas saem pedras preciosas. Isso fica claro
quando se fala da bandeira nacional que ao invés de ser concebida como algo
ligado à sua história real, ela é ligada diretamente com essa simbologia teológica,
de paraíso, o verde das florestas, azul é o seu céu, o amarelo é seu ouro, suas o
branco é a ordem cravejada com suas estrelas, seus estados.
Esse mito nos forçaria a aceitar uma visão de uma indivisão originária no território
brasileiro, todos nós nascemos no seio da pátria mãe gentil que nos agracia de viver
diretamente nesse solo. O Brasil está fora do tempo, pois ele é o Éden, indiviso,
pois estamos livres de contradição e além de tudo, não está suscetível às mudanças
históricas que uma formação social democrática pode forçar dentro de uma
sociedade, dada sua natureza e este seria o primeiro elemento deste mito fundador.
A única história que existe a partir desse mito é a do cristianismo ortodoxo, com a
história tomada como providência divina para manter os privilégios dos grandes ou
como messianismo, no qual a história é somente uma possibilidade de redenção
final dos homens, o direito ao seu espaço no paraíso sem sofrimento, onde todo o
sofrimento até aqui, é justificado com o plano divino que nos faz desembocar na
situação aqui e agora. Esse momento lança o Brasil de novo na história, mas numa
história teológica, portanto.
O tempo aqui, só pode ser concebido como tempo divino, nos termos de Agostinho,
citado pela autora. Deus se revela como providência ao assegurar os privilégios dos
grandes, pois eles o são pela vontade de Deus ou como uma possibilidade
messiânica de redenção dos debaixo. Essa desigualdade, encarnada na figura do
governante que cede favores ou que cuida dos menos abastados, é o tecido pelo
qual o populismo pode ser traçado no Brasil como uma formação social
extremamente aderente à sua determinação.
O Brasil se recusa a ter instituições para mediar os conflitos sociais, tudo pode ser
concentrado na figura do líder, do Estado que provém e que apazigua. Em outras
palavras, não existe cidadania no Brasil.
Trata-se de uma relação privada com o governante a partir dos governados. Não é
por acaso que Chauí detecta o Brasil como um terreno fértil para o neoliberalismo
que se encaixa tão bem com essa formação social brasileira, pois o neoliberalismo
nada mais seria do que a diminuição do espaço público em favor do espaço privado.
Se as relações entre governante e governados se dão a partir da tutela e da
cedência de favores, se a figura do governante é uma figura personalista e se não
há mediações públicas para tal, o neoliberalismo cresce.
Em suma, no Brasil o grande obstáculo para uma democracia de acordo com Chauí
nesse segundo movimento do texto, está diretamente ligada à forma na qual o Brasil
se desenvolve, como uma terra fora do tempo, fora do espaço, fora dos conflitos,
terra mãe gentil, paraíso terrestre, o próprio Éden encarnado, onde suas
imperfeições não são contradições inerentes ao campo social, ao contrário, mas sim
ações de um inimigo que quer minar a boa vida por esses lados, acaba por dificultar
totalmente a adesão do país a algo parecido à uma democracia. Não há
desincorporação do poder fundamental para tal. O que não nos aponta para a forma
apontada por Lefort, mas sim o seu extremo OPOSTO, de acordo com o que fora
exposto por Chauí.
Não há caráter simbólico do poder que suscita um excesso que sempre é
encarnado na ação que sempre ultrapassa o símbolo. Os símbolos simplesmente
encerram essa realidade já dada de antemão, definidora do social por excelência. A
realidade no Brasil é necessária para justificar a política do jeito que ela é. A
democracia sempre nos é negada porque nos formamos e concretizamos a partir
dessa oligarquia de traços teológicos. O único sujeito político nesse caso é o
Estado, não é por acaso que governantes aparecem com slogans como pai dos
pobres de um lado, caçador de marajás do outro e mais ironicamente e
recentemente… Mito.
A relação de cima para baixo e da teologia, de fora para dentro, suscita sempre os
dois momentos da história aqui no Brasil como uma concepção claramente
ideológica desta, mas que sempre retorna de tempos em tempos, seja para
conservar os privilégios ou simplesmente para melhorar a situação dos menos
favorecidos. E por vezes, com os dois momentos conjugados ao mesmo tempo,
como é o caso do governo Bolsonaro ou então, puxando para os anos 90 a imagem
de Collor. Nesse caso, ambos já estão ligados ao neoliberalismo e não mais ao
desenvolvimentismo antigo ou algo parecido, que era possível ser rastreado nos
governos anteriores à ditadura militar.
Se mantém aquilo que é mais persuasivo à tradição populista, a relação do alto para
baixo e de elementos externos à política que a determinam a priori, não há sujeitos
históricos, há personalizações, encarnações do divino.
Isto posto, no entanto, Chauí ainda consegue no fim do texto, no seu movimento
final, vislumbrar a possibilidade de uma mudança que pode ser possível a se
articular na sociedade brasileira, sem no entanto esquecer esse caráter supracitado
que coloca reais obstáculos à democracia, mas que ao mesmo tempo nos dá um
vislumbre bastante assustador e que para nós aqui e agora, possui ares de previsão
e de profecia.