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O Amor e a Saudade (Sofrimento)

Mote antigo

Saudade minha,
quando vos veria?

Voltas

Este tempo vão,


esta vida escassa,
para todos passa,
só para mim não.
Os dias se vão
sem ver este dia
quando vos veria.

Vede esta mudança


se está bem perdida:
e em tão curta vida
tão longa esperança!
Se este bem se alcança,
tudo sofreria,
quando vos veria.

Saudosa dor,
eu bem vos entendo;
mas não me defendo,
porque ofendo Amor.
Se fôsseis maior,
em maior valia
vos estimaria.

Minha saudade,
caro penhor meu,
a quem direi eu
tamanha verdade?
Na minha vontade,
de noite e de dia
sempre vos teria.
Luís de Camões

O sujeito queixa-se do tempo que teima em passar até poder voltar a ver a sua amada. Queixa-
se que o tempo de solidão e sofrimento passa para os outros (e eles conseguem obter a
felicidade), mas para ele não! Está condenado a viver uma vida de infelicidade.
Embora não saiba quando a voltará a ver, ele mantém a esperança de um dia a voltar a ver.
Descreve a dor que sente por não poder estar com ela. Comunica-lhe que se o seu amor fosse
maior, ainda maior seria o sofrimento e ainda mais importante ela seria na sua vida.
A quem dirá ele que sente a sua falta senão à própria mulher amada? Se dependesse da
vontade dele, nunca mais se separariam.

Alma minha gentil, que te partiste


Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,


Memória desta sida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te


Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,


Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

Luís de Camões

O soneto é constituído por duas quadras e dois tercetos, em metro decassílabo com
um esquema rimático ABBA//ABBA//CDC//CDC verificando-se a existência de rima
interpolada em A, emparelhada em B e interpolada em CD.
O poeta, usando a apóstrofe, dirige o seu discurso à mulher amada, que, para sua
tristeza, morreu jovem: “Alma minha gentil, que te partiste/ Tão cedo desta vida,
descontente,”. Ao longo do soneto, o poeta vai-lhe fazendo alguns pedidos, utilizando
frases imperativas, tais como: “repousa lá no céu…”,”não te esqueças daquele amor
ardente…” e “roga a Deus…”. Afirma também que está em sofrimento e aponta as
razões desta tristeza, que se ligam, essencialmente, à ausência da amada, marcada
pela distância entre o céu - local de morada dela: ”repousa lá no Céu” - e a terra,
espaço de vida do poeta: “viva eu cá na terra”. Estas referências espaciais surgem
associadas aos termos com valor deítico “cá” e “lá”, que reforçam a relação de
afastamento entre os dois amantes.
Assim, a solução para o sofrimento do sujeito poético seria a aproximação entre os
dois e, por isso, ele pede-lhe que rogue a Deus para o levar rapidamente para junto
dela: “Roga a Deus, que teus anos encurtou,/ Que tão cedo de cá me leve a ver-te,/
Quão cedo de meus olhos te levou.”
De notar a utilização constante de eufemismos para a referência quer da morte da
amada, quer da do poeta: “partiste tão cedo desta vida”, “Deus, que teus anos
encurtou” e “que de cá me leve a ver-te”, o que é uma estratégia de poetização de um
afastamento irreversível.
Os sentimentos dominantes são a saudade e a dor da ausência causados pela morte.

Questionário
Interpretação/análise
1. Explica a situação trágica que funciona como ponto de partida deste soneto e o voto
formulado inicialmente pelo eu poético.
1.1 O que torna essa situação ainda mais trágica?
1.2 Identifica a figura de estilo presente na expressão inicial do poema e comenta o
seu valor expressivo.
2. Explicita o sentido dos versos da segunda estrofe.
3. Que apelo é feito no terceto final do soneto?
4. Identifica um recurso estilístico usado nos dois versos finais e comenta a sua
expressividade.
5. Transcreve dois eufemismos usados no poema e comenta a sua expressividade.
6. Interpreta a presença no poema de várias palavras relacionadas com o Céu (reino
espiritual).
7. Num discurso persuasivo, é normal a apresentação de um caso para se tentar
convencer o interlocutor. Por que razão se pode afirmar que este soneto recorre às
regras do discurso persuasivo?

Gramática

8. Reescreve a primeira estrofe do poema usando a ordem sintática sujeito-verbo-


-complementos.
9. Refere a função sintática das expressões destacadas nos versos que se seguem.

a) «repousa lá no Céu eternamente» (v. 3)

b) «não te esqueças daquele amor ardente» (v. 7)

10. Tendo em conta a coesão que deve presidir a todos os textos bem construídos,
identifica no poema palavras e expressões que garantem:

a) a coesão interfrásica;
b) a coesão lexical;
c) a coesão referencial.

Correção do questionário

1. A situação de que parte o poema é a morte da mulher amada pelo eu poético. Este
formula o voto de que ela descanse em paz no reino de Deus («Céu»).

1.1 A situação torna-se mais trágica porque a mulher é jovem e morre


prematuramente («que te partiste/ tão cedo desta vida, descontente») e, mais ainda,
porque é a amada do sujeito lírico.

1.2 A figura de estilo é a apóstrofe: o eu poético dirige-se à sua


amada, que está morta. Esta é uma forma de suavizar a dor da
perda, simulando que pode falar com ela, e de lhe dirigir um pedido.
2. Na segunda estrofe, o eu poético pede à sua amada que, se no Céu conservar a
recordação da sua vida na Terra, não se esqueça do intenso amor que ele por ela
sentia.

3. Na terceto final, o sujeito poético apela à amada que interceda junto de Deus para
que Ele reduza os seus anos de vida e assim proporcione o seu reencontro. Prevalece a
ideia de que o verdadeiro amor é espiritual e perdura para além da vida terrena. 4. Um
recurso estilístico é o paralelismo sintático, lexical e semântico: as duas orações
apresentam construções frásicas com sentidos equivalentes e palavras repetidas
(«cedo»/«cedo»,«te»/«te») de forma a veicular o desejo de que o destino da amada
seja em breve o seu destino — o paralelismo vem associar os dois percursos de vida.
Um eufemismo encontra-se no primeiro verso («partiste») e outro reside na expressão
«teus anos encurtou». Ambos os termos são formas de aludir de um modo mais suave
à dolorosa realidade da morte da amada.

6. As palavras »Céu» e «assento etéreo» aludem ao mundo em que a amada do eu


poético se encontra.

7. O eu poético recorre às regras do discurso persuasivo porque expõe o seu caso de


amor e sofrimento para procurar convencer a amada a suplicar a Deus que solucione
o seu problema.

8. Alma minha gentil, que te partiste/ tão cedo desta vida descontente,/ repousa lá, no
Céu, eternamente/ e eu viva sempre triste cá, na terra.

9. a) Modificador do grupo verbal.; b) Complemento oblíquo.

10. a) «Se», «e» e «quão»; b) «Céu», »assento etéreo»; »descontente», «triste»,


»dor», «mágoa»; c) «Alma minha», «te», «teus».

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