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Universidade do Algarve

Doutoramento em Estudos de Património

1.º Ano - 1.º Semestre

Disciplina: Património, Memória, História

Docente: Doutor Pedro Ferré

Discente: Patrícia Manuela Alexandre Fernandes, n.º 19545

Ano Letivo 2023/2024


Património, Memória, História – Doutoramento em Estudos de Património

Trabalho efetuado por Patrícia Manuela Alexandre Fernandes, para a disciplina de


Património, Memória, História, pertencente ao Doutoramento em Estudos de
Património.

Enquadramento e Objetivos do trabalho


O trabalho desenvolvido surge no âmbito do curso de Doutoramento em Estudos de
Património, nomeadamente da disciplina de Património, Memória, História, lecionada
entre outros docentes pelo Doutor Pedro Ferré.
Apresenta como objetivo enquadrar e demonstrar a importância do tema, que irá ser
objeto de estudo no desenvolvimento da Tese deste doutoramento, relativo às Salinas
existentes no concelho de Castro Marim localizadas numa Área Protegida, e inseridas na
Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António, na temática do
Património e nas suas várias dimensões, como a dimensão de património cultural,
industrial e social desta notável paisagem e a dimensão de património natural como
paisagem protegida no contexto do seu valor natural e de conservação da natureza e da
sua biodiversidade.
Este espaço representa um ecossistema peculiar que suporta diversas caraterísticas do
ponto de vista de habitats únicos para a conservação da fauna e da flora existentes, onde
existe uma verdadeira sintonia entre a paisagem natural e a paisagem antrópica do
Homem.
As salinas representam verdadeiras estruturas construídas pelas mãos do Homem para
seu proveito pessoal e económico, ao longo dos séculos, sem pôr em causa a
sensibilidade natural desta área, onde se criou uma verdadeira harmonia entre o uso
sustentável do território explorado e a coexistência de outros usos como a extração do
sal, produto valioso para a alimentação humana e fonte de rendimento económico local
e nacional em tempos mais distantes, integrando assim esta Reserva Natural um espaço
único, singular e carregado de Genius Loci, que contribui indiscutivelmente para o
enriquecimento patrimonial e paisagístico deste concelho, da região do Algarve e em
termos nacionais.

Introdução
Quando pensamos em Património, este termo surge como algo muito vasto,
possivelmente a primeira ideia que nos assola o pensamento será algo relacionado com
objetos materiais, com poder económico, no entanto, esta palavra sugere, também, algo
que podemos herdar ou adquirir, podendo não ser apenas bens materiais, mas sim
conhecimento, tradições, costumes ou até mesmo os nossos próprios traços genéticos
hereditários.

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Património reveste-se de bastante subjetividade, que pode ter diversas dimensões, não
necessariamente hierárquicas, mas apenas diferentes, na medida em que o património
constitui-se como um bem material ou imaterial, no entanto, creio que todos
concordamos que o património é algo a preservar no tempo e ao qual todos damos
determinado valor, podendo este definir um país, uma nação, pois uma sociedade sem
património, e refiro-me a este em todas as suas dimensões, é um povo sem alma, parco
de beleza, conhecimento, valores e pobre.
Como o próprio autor António Rosa Mendes sugere, o património é difícil de definir e
citando palavras suas: “Conhecer o património cultural tem consequências decisivas para
as nossas inquietas e sempre candentes interrogações acerca de quem somos (…) o nosso
interesse pelo património cultural (…) justifica-se plenamente pela necessidade de nos
entendermos melhor e ao nosso tempo.”
Ora então vejamos, e indo de encontro ao tema que irei abordar na minha tese, cabe
começar por elencar alguns conceitos que considero relevantes, surgindo estes ao longo
dos tempos como dádivas da natureza, e que possibilitaram a tomada de consciência de
que o património nas suas muitas perspetivas e dimensões pode e deve ser absorvido
como um bem de suprema importância para a humanidade e acalmar algumas das suas
interrogações derivadas do seu próprio inconsciente e que qualquer ser pensante já se
questionou alguma vez na vida como: O que somos? De onde viemos? E para onde
evoluímos?
Neste trabalho, em que o tema abarcará, inevitavelmente, o elemento sal, produto final
produzida nas salinas, parece-me importante fazer um pequeno enquadramento no que
se refere a esta dádiva, essencial na vida de muitos organismos vivos e não vivos.
É reconhecido hoje em dia, de entre outras fontes, que várias tribos primitivas
conseguem obter sal similarmente às primeiras experiências realizadas pelo Homem na
obtenção deste produto tão apreciado ao longo da história. Desde a Era do Neolítico,
quando o Homem iniciou o seu percurso como espécie animal omnívoro, que a obtenção
de sal resumia-se a um simples processo de recolha de água salgada em recipientes, que
eram expostos a uma fonte de calor, como o sol ou ao lume, de modo a evaporar o
elemento líquido que não interessava, ficando um resíduo no fundo do recipiente – o
precioso ouro branco – o sal.
Na Era do Neolítico os cereais e as carnes eram cozidos e deviam ser salgados, de modo
a compensar as perdas dos sais minerais do organismo, pelo que o sal foi provavelmente,
desde o início dos tempos, o primeiro mineral utilizado conscientemente pelo Homem
como suplemento alimentar. Com essa tomada de consciência e com a crescente
necessidade e preocupação em manter os alimentos em boas condições de consumo,
levou o ser humano a compreender que a salga era um dos métodos que permitiam
conservar os alimentos e evitar a sua decomposição prematura, podendo estes alimentos
ser consumidos num tempo mais alargado de tempo.

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Para compreender a importância histórica do sal, pode-se constatar a referência a este
produto tão apreciado em diversa literatura, alguma dela bem antiga, onde se podem
citar a Bíblia, histórias, fábulas, contos e até mesmo lendas populares, denotando assim
estes testemunhos escritos e orais a importância do sal na história do ser humano. O mais
antigo tratado de farmacologia, o Peng-Tzao-Kan-Um, publicado na China há cerca de
2700 a.C., faz referência à existência de mais de 40 tipos de sal, e descreve dois métodos
de extração e transformação de sal que são admiravelmente muito semelhantes aos que
se praticam hoje em dia.
No Antigo Egito, nas artes egípcias que datam de 1450 a.C., há registo de produção de
sal, neste caso, muito utilizado na preservação das múmias, e este bem atingia tal valor
que nas terras onde era escasso ele servia como moeda de troca por ouro, noivas ou
escravos. Também na Grécia antiga o sal era trocado por escravos, de onde derivou a
frase “não vale o seu sal”. A Via Salaria, maior avenida em Roma, era utilizava para o
transporte de sal desde as salinas de Ostia no Rio Tibre. O termo “salarium argentum”
traduz-se em rações que eram dadas aos soldados, e de onde derivou a palavra salário.

Conceitos relevantes
As comunidades primitivas foram criando, no nosso território e nas nossas paisagens,
marcas simbólicas derivadas das necessidades do homem, dando lugar, gradualmente, à
visibilidade das paisagens culturais, sendo no ano de 2018, através do Ano Europeu do
Património Cultural (AEPC 2018), que o património cultural foi lido como um testemunho
de identidade relevante na história da humanidade, onde o conceito de “paisagem
cultural” surge aliado ao património cultural, onde as paisagens salineiras não deixam de
ser paisagens culturais com a intervenção da mão humana, que operadas pelo homem
desde há milénios, impregnam a essência de uma cultura intimamente ligada ao mar.
Assim, estas paisagens têm que ser entendidas de uma forma global e transdisciplinar,
para que o futuro seja entendido como uma unidade equilibrada e dinâmica, que
possibilite as relações de dependência, que são consequência do meio físico e cultural
onde estas se integram, podendo portanto contribuir para a definição de “Unidades de
Paisagem”, que ao não serem estanques, constituem um todo geográfico e cultural
interdependente.
Como parte fundamental do nosso património natural, cultural e científico, surgem as
paisagens que cada vez mais são reconhecidas como peças indispensáveis da base da
identidade territorial, pelo que as Unidades de Paisagem permitem uma compreensão
global da paisagem. Estas unidades têm uma coerência interna, um caráter próprio que
permite identificá-las seja no seu interior ou no seu exterior, e que ao combinar diversas
dimensões, como a ecológica, a cultural, a sócio-económica e a sensorial, possibilitam
estabelecer áreas com caraterísticas relativamente homogéneas.

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Pode-se, então, afirmar que unidade de paisagem é uma área onde a paisagem apresenta
um determinado caráter associado a um padrão específico, cuja definição deve integrar
as componentes objetiva ou material e a subjetiva, de modo a identificar as caraterísticas
que a diferenciam de outras unidades de paisagem.

Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António – Paisagem
Cultural
A Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António está integrada
no estuário do Rio Guadiana, tendo sido a primeira reserva natural criada em Portugal,
denotando uma paisagem cultural e ecológica única. Esta zona húmida foi classificada
como área protegida no ano de 1975, proporcionando esta classificação um
reconhecimento acerca do seu elevado valor ecológico, e possibilitando a limitação de
algumas atividades que atentavam contra a sua biodiversidade.
Em 2008, em consonância com as novas políticas ambientais e na tentativa de reforçá-
las surgiu o instrumento de ordenamento do território através do Plano de Ordenamento
da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António, que
combinado com a Rede Natura 2000 possibilitou um reforço e complemento da
dimensão ecológica deste estuário.
Esta Reserva Natural representa uma das paisagens algarvias mais bem preservadas,
combinando um elevado valor estético do conjunto salinas-sapal, que possibilita a
contemplação de espécies animais, particularmente de aves, e valor estético e
paisagístico devido à sua particular envolvente, que reúne o castelo e a fortaleza da Vila
de Castro Marim, património construído pela mão do Homem. Esta riqueza cultural,
natural e paisagística apenas deriva das poucas alterações que se fizeram sentir nesta
zona, tais como a pressão humana e consequentemente urbanística, ao contrário do que
ocorreu ao longo de toda a costa do Algarve.
Enquanto paisagem cultural, a paisagem da Reserva está irrevogavelmente ligada à
evolução histórica e cultural da sua população, pois a economia local, desde tempos
imemoráveis esteve sempre muito ligada ao comércio, à exploração do sal e à agricultura,
assumindo-se Castro Marim, desde o início da Idade do Ferro como porto comercial,
onde se realizaram importantes trocas comerciais entre o litoral algarvio, as áreas
mineiras do Baixo Alentejo e da Andaluzia.
Após diversos eventos, Castro Marim, teve um importante papel de defesa do território
durante muitos séculos, tornando-se esta Vila, nos finais do século XVI, um importante
porto comercial devido à sua privilegiada localização na foz do Rio Guadiana, que na
época era largo e profundo, permitindo a navegação de embarcações de grande calado.
Registado em vários manuscritos, consta que a colheita de sal no estuário deste rio tem
ocorrido desde a época fenícia. No entanto, devido a fatores como o progressivo
assoreamento do rio e ao término das guerras com Castela, em conjugação com o edificar

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da cidade de Vila Real de Santo António, no ano de 1774, inibiram a importância
comercial e militar desta terra.
A partir do momento de fundação de Vila Real de Santo António, Castro Marim
centralizou fortemente a sua economia na salinicultura, que ainda hoje representa uma
das atividades que mais identifica este território imprimindo-lhe o seu caráter histórico,
cultural, natural e paisagístico, sem entrar em conflito com a preservação da vida
selvagem e de todo um ecossistema – sapal – um dos mais produtivos de todo o planeta,
uma vez que as Sali nas representam biótopos artificiais mas que permitem um uso
sustentável deste ambiente.

Dimensão espiritual do sal


O sal como já foi referido anteriormente, foi utilizado desde os tempos mais distantes
pelo Homem como produto diretamente utilizado para a conservação e preservação de
alimentos utilizados na alimentação e dieta humana e animal numa dimensão terrena,
mas ao mesmo tempo, também, foi utilizado no processo de mumificação realizada
pioneiramente pelos povos egípcios, tendo este processo o intuito de preservar ao
máximo o corpo humano, garantindo, assim, o seu retorno à vida e a identificação do
corpo pelo espírito. No entanto e olhando na direção deste último enunciado uso,
gostaria de fazer uma pequena referência ao sal visto numa perspetiva mais sobrenatural
e mística que acaricie levemente uma dimensão mais espiritual e religiosa do Homem
com o sagrado, através deste produto.
Desde a Antiguidade que o sal é tratado como um bem essencial quer na prática da vida
terrena do dia a dia quer na prática na vida religiosa, onde a religião é um dos pilares mais
importantes da sociedade, que apesar do seu objetivo primordial seja transcendente,
este anda muitas vezes aliado ao imanente económico e comercial.
Considerando as duas vertentes do sal enunciadas anteriormente, na vida terrena e na
vida religiosa, este serve ambiguamente tanto para equilibrar o organismo do Homem,
proporcionando sabor à comida, poia a falta deste torna esta insossa e causa fastio. Já na
vertente religiosa como o sal tem a qualidade intrínseca de conservar e dar sabor, ele é
considerado um produto preservador contra a corrupção e a podridão, por isso, segundo
textos bíblicos este é uma espécie de força vital com dimensão importante na vida dos
Homens.
Além de todas as perspetivas já relatadas do sal, este também é visto como sinónimo de
pão, do alimento vital para o Homem, pois não foi em vão que o ganha-pão dos homens
foi tido como salário do seu trabalho tal não era a sua importância. Se fizermos alusão
aos romanos, tudo se quer metaforicamente falando, com um grãosito de sal, “cum grano
salis”, onde até uma simples conversa tem que ter um pique de sal, ou seja, ser
engraçada, senão a conversa torna-se desinteressante.

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Grandes poetas no passado, fizeram referência ao sal, tais como, António Sardinha nos
versos “O Louvor do Sal” em a “Epopeia da Planície” e Fernando Pessoa com o poema do
“Mar Salgado” da “Mensagem”: “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de
Portugal”, evidenciando que o excesso de sal cria o amargor, fazendo com que o sal,
simbolicamente, exprima a amargura da vida, lágrimas, trabalhos, dificuldades e
sofrimentos.
Padre António Vieira utilizou habilmente a Bíblia conjugada com a linguagem portuguesa
servindo-se da expressão de Jesus Cristo; “Vos estis sal terrae” pregando sobre Santo
António, em 1654, aplicando-o aos pregadores: “Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando
com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra porque quer que façam
na terra, o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê
tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que Têm ofício de sal, qual será, ou
qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, e os ouvintes, (…), a
não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e
fazem outra; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o
que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se
pregam a si, e não a Cristo, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes em vez de
servir a Cristo, servem os seus apetites. (…)”, e seguidamente no sermão, tão conhecido,
de Santo António aos peixes, padre António Vieira, proclamou na sua admirável
prosopopeia, direcionou-se a pregar aos peixes.
Tomando consciência da incorruptibilidade do sal a visão cristã do sal usa-o como
elemento ritual de purificação, indicando simbolicamente a pureza moral concebida por
este, onde Padres da Igreja adjetivam Jesus Cristo como o “sal celeste” que nos dispensa
a vida de graça.

Considerações finais
Pensando na simples ideia de uma paisagem natural que antropicamente foi modificada
pelo Homem, surgem as paisagens culturais que representam não apenas uma unidade
física, mas simultaneamente unidades ideológicas que foram sendo esculpidas ao sabor
das vontades dos seus colonizadores.
A paisagem cultural das salinas de Castro Marim desvela-se como poemas geométricos
que foram imprimidos na paisagem pelos seus escultores e matemáticos da vida, que ao
deixarem fluir os seus instrumentos como um pintor naif pincela as suas telas, sem um
manifesto conhecimento científico, mas que com as suas mãos e experiência do seu fado
criam uma obra de tal magnitude que se carrega infinitamente com o seu Genius Loci,
improvável de encontrar e de se confundir em qualquer outro local do planeta.
Assim é a paisagem salineira de Castro Marim.

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Bibliografia
ALVES, A. A. Monteiro, ESPENICA, André, CALDAS, Eugénio Castro, CARY, Francisco
Caldeira, TELLES, Gonçalo Ribeiro, ARAÚJO, Ilídio Alves de & MAGALHÃES, Manuela
Raposo de. Paisagem. Lisboa: Edição da Direção Geral do Ordenamento do Território e
Desenvolvimento Urbano, 1994.
DIAS, Geraldo J. A. Coelho. I Seminário Internacional sobre o Sal Português. Instituto de
História Moderna da Universidade do Porto, Faculdade de Letras Porto, 2005.LASZLO,
Pierre. Pequeno Tratado do Sal. Lisboa: Terramar, 2006.
LAVINAS, Carlota. Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António,
uma contribuição para a sua gestão. Instituto de Conservação da Natureza / Centro de
Zonas Húmidas, 2004.
MENDES, Rosa António. O que é património cultural? Olhão. Gente Singular editora, Lda.,
2012.
MOURA, Delminda, GOMES, Ana, MENDES, Isabel, ANÍBAL, Jaime. À descoberta do
estuário do Rio Guadiana. Faro: Universidade do Algarve, 2022.
NAVALHO, João, PRÉVOT, Sarah. Guia de boas práticas em salinicultura. Olhão: Animação
local para o Desenvolvimento e Criação de Emprego na Ria Formosa, 2006.
RAU, Virgínia. Estudos sobre a história do sal português. Lisboa: Editorial Presença, 1984.

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