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para-todos

Publicado em NOVA ESCOLA Edição 319, 01 de Fevereiro | 2019

Inclusão

Inclusão: a escola é melhor


quando é para todos
Apesar dos entraves que persistem dentro e fora da sala de aula, apostar
numa escola aberta é o melhor caminho para incluir de verdade
Pedro Annunciato

JUNTOS: A turma da professora Marli, do 3º ano, da EMEF Paulo Nogueira Filho, em São
Paulo

Lá vem o pequeno Leonel. Mãozinha direita tentando alcançar o corrimão, mãozinha esquerda na
mão firme da professora Maria Lúcia Baptista Pereira Carramão. Descer a escada é tarefa
desafiadora, mas não impossível - especialmente para ele, que tem a sorte de ter um amiguinho
como Gustavo, que vai à frente, devagarinho, sem tirar os olhos dos pezinhos que avançam um
degrau de cada vez. “Esse é o Leonel. Ele tem mucopolissacaridose”, adianta-se a professora. “O
Leonel é muito bonzinho. Mas é daqueles que não vai…” E antes que a frase termina, a garganta de
Maria Lúcia fica presa em num nó cheio de angústias e dúvidas. O que Leonel “não vai”? Ler e
escrever? Fazer contas de divisão? Passar no vestibular?

Mas agora não há mais tempo para conversas. A turma do 1º ano precisa correr para a quadra, onde
a criançada vai participar de uma recreação sobre segurança no trânsito. Os outros coleguinhas já
foram. Leonel precisa chegar lá – e, pela pressa do passo, ele está ansioso para participar. Pelos
corredores da EMEF Paulo Nogueira Filho, nota-se que o garoto não é o único com deficiência na
escola da Zona Norte de São Paulo, considerada referência em inclusão na rede. O prédio de
corredores amplos conta com adaptações arquitetônicas, como o piso tátil para cegos, banheiros
para cadeirantes e um elevador que liga o térreo ao primeiro andar. São 33 alunos com diferentes
tipos de deficiência nos dois turnos, com salas do 1º ao 9º ano. Aqui, o combinado é todo mundo
brincar e aprender junto.

LEIA TAMBÉM: Juntos, todos aprendem mais

Naquele finzinho do ano letivo, os livros e carteiras já davam lugar às confraternizações, com bexigas
flutuando no ar e bolos preparados pelas mães. Numa sala do 3º ano, Juan corre sem parar com o
amigo Felipe, mostrando que o isolamento não é um traço presente em toda pessoa com síndrome
de Down, como já se chegou a pensar um dia. Logo em frente, outra turma do 3º ano canta músicas
ensaiadas com a professora Marli, no momento em que Nicolas, também com síndrome de Down,
se sente mais à vontade para sair do fundo da sala e interagir. Em outra sala, João Gabriel até se
esquece do andador quando senta em roda com os colegas para brincar com as bexigas.

Enquanto isso, a coordenadora Roberta Claussen anda de lá para cá, levando pastas, abrindo portas,
conversando com alunos e professores.

Entre uma pausa e outra, senta na sala da coordenação para falar um pouco do trabalho. “Temos
fichas de cada um dos alunos com deficiência, onde a gente anota tudo o que observa neles”, diz a
gestora, enquanto gira a cadeira e se estica para pegar, dentro de um armário atrás da mesa, a
grande pasta com os 33 relatórios pedagógicos produzidos à mão por cada professor. No alto,
aparece o nome do aluno, da turma, da professora regente, do diagnóstico clínico. “E aqui temos
também o professor Paulo Cesar dos Santos, da SMR (Sala de Recursos Multifuncionais). Você tem
que conhecê-lo.” Abaixo, uma tabela separa a descrição das características do estudante quanto aos
seguintes aspectos: afetividade, socialização, cognição, oralidade, motricidade e meio social/ familiar.
Por fim, aparecem as potencialidades observadas, as dificuldades observadas e os objetivos de
aprendizagem.
Roberta conta que, de 2016 para cá, a
escola tem ampliado os esforços para ser
inclusiva. Ao sair para mais um passeio
pelos corredores, a coordenadora cruza
com Paulo Cesar dos Santos, o professor da
sala de recursos multifuncionais – ou, como
se diz lá, “o especialista em inclusão”.
Sorridente e solícito, ele anda pela escola o
tempo todo. “Eu não vou ser muito preciso
quanto à questão do meu tempo de
docência, mas já tenho uma década e meia
oficialmente”, afirma Paulo. “O meu papel
na escola é fazer uma parceria com o
professor da sala regular. Por que uma parceria? Porque esse indivíduo, quando chega na escola,
não é meu aluno. Ele vai compor um grupo, e ele pertence a este grupo. Se a gente pensa na
inclusão, esse processo tem de acontecer no espaço que a criança frequenta, no espaço que é dela.
E esse espaço de pertencimento é a sala de aula.”

Na prática, o professor analisa, juntamente com os colegas, caso por caso, e propõe um plano de
desenvolvimento individual, que prevê ações focadas na sala de aula e, no contraturno, na sala de
recursos. Uma vez por semana, Paulo atua dentro de cada sala regular “para apoiar o professor, e
não o aluno”, como ele faz questão de ressaltar. No ano passado, cada um dos estudantes produziu,
com apoio dele, um portfólio de atividades. Trabalhos artísticos, de escrita e de outros gêneros
preenchem os envelopes construídos pelo próprio professor com folhas de papel-cartão e barbante.

Esse trabalho é um desafio para todos na escola. “A questão das relações é onde imbricam as coisas.
Aqui não seria diferente. Somos humanos, falhos, e existem diferentes concepções em torno da
Educação. A gente ainda esbarra em algumas concepções de descrença ante o aluno. Ainda tem.
Pouco, mas tem”, confidencia o educador.

A luta para tornar a escola inclusiva não é fácil, principalmente diante da necessidade de dar atenção
a cada aluno. “Tenho 25 crianças, não consigo sentar individualmente com o Nicolas, por exemplo. O
Paulo consegue que ele faça as coisas porque pode sentar com ele”, revela a professora Marli. O
menino passa a maior parte do tempo ocupado com letras móveis coloridas. Mas como ele não é
alfabetizado, Nicolas só consegue tirá-las do pote e colocá-las de volta nele. “Quando ele termina, um
coleguinha derrama de novo as letras e ele faz tudo de novo”, conta a docente.

Leia mais: Conheça também nosso outro especial sobre Inclusão


Maria Lúcia também não consegue sempre
desenvolver atividades pedagógicas com
Leonel. O plano de desenvolvimento do
garoto previa três objetivos de
aprendizagem: o primeiro era ensiná-lo a
sentar e ficar menos no chão; o segundo,
ajudá-lo a não colocar tudo na boca; o
terceiro: auxiliá-lo a não bater
constantemente os objetos nas superfícies
que encontra pela frente. “O Paulo afirma
que ele avançou, mas eu não consigo ver…
Só percebo que passei a ser um referencial
para ele, que não gosta de ser tocado, mas
que, para mim, olha e pega na mão”, relata Maria Lúcia.

A grande preocupação dela e dos colegas diz respeito ao segundo objetivo. Todo mundo está
sempre atento com pontas de lápis, brinquedos, papéis ou qualquer outra coisa que ele possa
colocar na boca. Para distraí-lo, a professora encontrou uma solução: abriu a porta do armário
próxima à carteira do aluno e pendurou um pedaço de arame nela. Na ponta do arame, prendeu
uma desgastada galinha de borracha, sempre pronta a ser mordida pelo Leonel.

Vale a pena?

Em 2008, o Brasil aprovou o que Maria Teresa Égler Mantoan, professora da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Diferença
(Leped), considera ser “a mais avançada legislação do mundo” em termos de inclusão. A lei garante o
direito dos alunos com deficiência de não apenas frequentar a escola regular, como também ter
acesso a todos os recursos necessários para superar as barreiras ao seu desenvolvimento. “A
legislação trouxe uma ideia nova e poderosa. Com ela, vem também a dificuldade de ser bem
assimilada”, afirma Maria Teresa, que participou da construção do marco legal atual.

A dificuldade em tornar a inclusão real tem provocado discussões sobre esse pilar central da política
brasileira. Parte das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAEs) e de outras entidades
reivindica alterações que permitam a recriação das salas especiais. Vale lembrar que as escolas
especiais continuam existindo e são legais, segundo a legislação atual. “É importante que, antes de
pensar em reforma do sistema, o MEC faça um balanço sobre o que deu certo e o que deu errado
na política atual. Precisamos saber quais são os pontos frágeis e fazer uma revisão que aponte para
o alargamento da política, e não por um retorno dela”, defende Liliane Garcez, gerente de
programas do Instituto Rodrigo Mendes.

A maioria dos especialistas ouvidos por NOVA ESCOLA defende que os ganhos que a socialização na
escola regular proporciona são enormes para todos. A psicanalista Cristina Abranches é diretora-
superintendente do Centro de Atendimento e Inclusão Social (Cais), a antiga Apae de Contagem
(MG). O centro funcionava como uma escola especial e hoje só faz atendimentos no contraturno.
“Desde então, nossos resultados melhoraram enormemente. O jogo social da escola regular ajuda
as crianças a desenvolver potencialidades que antes ficavam invisíveis na escola especial”, afirma
Cristina.

Essas são as evidências que sustentam a crença do professor Paulo no poder da inclusão.
Quando perguntado sobre esse tema, ele responde com uma história. “Nós temos uma aluna
cadeirante que tem os membros encurtados, interação tátil limitada, baixa visão, não oraliza, se
alimenta por sonda, usa uma traqueostomia.” Diante de tantas dificuldades, conta, a mãe
considerou tirá-la da escola. “Eu disse a ela: ‘Ainda que a sua filha venha só para ficar olhando para o
teto, o teto daqui é diferente do teto do quarto dela. E, no caminho da casa à escola, ela sente o
carro chacoalhar, o ventinho no rosto, ouve barulho de buzina. Isso a ajuda a se conectar com o
mundo’. Quando eu terminei, a mãe concordou e lembrou que a filha ficava agitada na hora de ir
para a escola e tinha dias melhores.”

O professor pausa e conclui: “Veja como é importante garantir para esse indivíduo estar junto de
todos. Ele tem direito”.

A INCLUSÃO EM DADOS

29% das escolas da rede pública têm dependências consideradas acessíveis, com recursos
como elevadores ou rampas, piso tátil, etc.

39% das escolas da rede pública têm sanitários acessíveis aos alunos com deficiência.
Fonte: MEC/Censo Escolar

Fontes: site Inclusão Já, de Maria Teresa Mantoan, Meire Cavalcante e Claudia Grabois/MEC/Censo Escolar
Consultoria: Maria da Paz Castro
Fotos: Tuane Fernandes

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