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Publicado em NOVA ESCOLA 23 de Agosto | 2023

Recomposição de aprendizagens

Alfabetização nos Anos


Finais: como promover
aprendizagens?
Consolidar a alfabetização do 6° ao 9° ano é necessário para
evitar evasão e garantir a continuidade do percurso
escolar; confira orientações práticas
Ingrid Yurie

Chegar aos Anos Finais do Fundamental sem a alfabetização anterior à


pandemia, porém ela agravou esse desafio. Confira os caminhos para lidar com
esse problema nas ações de recomposição de aprendizagem. Foto: Getty
Images
A taxa de analfabetismo entre estudantes do 2º ano do Ensino Fundamental
passou de 39% para 56% entre 2019 e 2021, segundo o Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Básica (Saeb). Ainda que essas crianças tenham um
longo percurso até os Anos Finais e possam avançar e consolidar as
aprendizagens nesse tempo, o cenário do analfabetismo nos Anos Finais
preocupa. Se antes da pandemia esta já era uma questão, a tendência é que
agora se agrave e demande atenção especial das escolas.
“Se nessa nova etapa de sua vida acadêmica não lhe forem oportunizadas
situações de recomposição de aprendizagem, o caminho escolar desse
estudante provavelmente será interrompido”, alerta Ilcilene Silva, professora de
Língua Portuguesa dos Anos Finais do Fundamental na rede pública de
Santarém (PA) e integrante do Time de Autores de NOVA ESCOLA.
A exclusão escolar pelas dificuldades de leitura e escrita, que limitam a
possibilidade de aquisição de novos conhecimentos, também costuma ser
acentuada por outro fator: problemas nas relações sociais. “É comum que esse
aluno se isole ou se torne irrequieto para camuflar as dificuldades sobre as
quais começa a tomar consciência”, observa a educadora.
Para lidar com essa situação, o primeiro passo é o acolhimento. Na prática, isso
significa não responsabilizar o estudante por sua situação e conduzir conversas
com ele e sua família para entender a singularidade de seu percurso escolar,
bem como as possíveis razões que possam tê-lo privado do seu direito à uma
Educação plena.
"É preciso trazer um olhar sociológico para isso e tentar compreender o
contexto social desse estudante e sua relação e de sua família com a escola. A
questão não é exclusivamente metodológica", ressalta Gilvan Elias Pereira,
autor do livro Insucesso escolar: a relação entre escola, aprendizagem e
linguagem (editora Appris) e professor no Centro Universitário UNIFAAT. "O que
não podemos fazer é culpar o aluno", reforça.
A alfabetização nos Anos Finais na prática
Durante uma aula no começo deste ano, a professora Michelli Marchi Oss-Emer,
que leciona Língua Portuguesa para os Anos Finais do Ensino Fundamental na
rede estadual de Santa Catarina e na rede municipal de Blumenau (SC), pediu
uma resposta dissertativa para sua turma de 6° ano. Enquanto circulava pela
sala, notou que um estudante tentava juntar diferentes letras aleatoriamente.
"Chamei esse aluno na minha mesa, e começamos a conversar. Perguntei se ele
sabia ler e escrever e como era sua escola anterior. Ele me contou que tinha 13
anos, que teve problemas de saúde e precisou ficar muito tempo fora da escola
e, por isso, tinha dificuldades", conta a educadora.
Ela encaminhou o caso para sua coordenadora pedagógica, que realizou uma
avaliação diagnóstica mais detalhada. "Eu não tenho essa formação, mas meu
papel é buscar ajuda. Se ninguém fizer nada, esse menino vai sair da escola na
mesma situação", diz Michelli.
Quando a educadora recebe estudantes com uma alfabetização muito precária,
a coordenação pedagógica entra para auxiliar com aulas de reforço. Se o aluno
já tem alguma base, ela adapta as atividades para que ele possa participar das
mesmas aulas que o restante da turma, mas sem a mesma cobrança. Se a
turma conta com um profissional de apoio, o estudante também recebe essa
ajuda.
"Uso muito a oralidade, valorizando o que ele sabe, para dar a oportunidade de
ele participar como os outros. Também aposto na monitoria, formando par com
um estudante que seja empático e goste de ajudar. Isso é benéfico para ambos,
tanto na formação acadêmica quanto na humana", considera Michelli.
Adaptar e promover a inclusão costuma dar certo na experiência da professora,
e os estudantes apresentam avanços. Até hoje, a única coisa que não
funcionou, segundo ela, foi ela mesma tentar alfabetizar. "Eu até tentei, mas é
um conhecimento muito específico. Não tive nenhum resultado", conta.
No ano passado, em função do alto número de analfabetismo nos Anos Finais,
sobretudo em decorrência da pandemia, a escola inteira se mobilizou para
ajudar as crianças. Após uma avaliação diagnóstica e a divisão dos estudantes
em grupos de acordo com o nível de conhecimento, psicopedagogas,
profissionais da biblioteca e do apoio pedagógico deram aulas de reforço. "Foi
uma grande força tarefa e, em nova avaliação diagnóstica, vimos que muitos
deles conseguiram avançar. Depois, as monitorias em sala deram conta", relata
Michelli.
Atividades dirigidas e recomposição de aprendizagens no
contraturno
A professora Ilcilene, de Santarém (PA), também já conseguiu promover a
alfabetização em turmas de 7º e 8º ano. Os casos que acompanhou tratavam de
dificuldades com a fluência leitora e a escrita ortográfica de textos, mesmo os
mais curtos.
Nessas situações, ela inicia o trabalho observando os estudantes durante as
atividades individuais e coletivas. Depois, convida os que têm mais dificuldades
para ajudá-la em algumas tarefas simples, que não tenham a ver com a leitura e
a escrita, como uma forma de aproximá-los e formar um diagnóstico mais
amplo.
Aos poucos, começa a envolvê-los em atividades que requerem leitura e escrita,
como organizar materiais, separar textos, procurar livros na biblioteca para uso
coletivo, registrar informações curtas e realizar a leitura de um texto e a escrita
de um diário coletivo.
“Sempre temos o cuidado de fazer essa abordagem de forma natural e
envolvendo outros alunos, até para que esses estudantes não se sintam
constrangidos e envergonhados”, destaca Ilcilene.
Em seguida, têm início atividades no contraturno para a recomposição de
aprendizagens desses estudantes, com o apoio da professora que atua na sala
de leitura. O cuidado aqui é para ajustar o dia e o horário conforme as
possibilidades da família. “Nem todos têm condições de pagar quatro viagens
de transporte público todos os dias”, lembra a educadora.
Ela diz que os estudantes que já passaram por esse processo consolidaram as
aprendizagens em relação ao código linguístico, desenvolveram a fluência
leitora, melhoraram a escrita e seguiram seu percurso acadêmico de modo
mais seguro.
“É claro que nem todos apresentaram evolução em um ano e tivemos que
acompanhá-los por mais tempo. Quando saíam das turmas com as quais eu
trabalhava e seguiam para o acompanhamento de outra professora, a
coordenação pedagógica conduzia o plano de ação em parceria com essa outra
educadora”, explica Ilcilene.
Cuidados para evitar estigmas em relação ao
analfabetismo nos Anos Finais
Chegar aos Anos Finais sem ter a alfabetização consolidada, enquanto a maior
parte da turma já está em outro nível, pode prejudicar a motivação desses
alunos e resultar em evasão escolar. Por isso, além do trabalho pedagógico, o
cuidado com a autoestima dos estudantes e a atenção ao clima escolar são
fundamentais para evitar a exclusão e garantir um espaço inclusivo e respeitoso
para todos.
“Em casos assim, é comum que o aluno não tenha motivação para ir à escola,
tampouco para participar das situações propostas em sala de aula. Às vezes, a
criança é rotulada como aquela que não sabe nada e, por isso, é excluída dos
grupos de trabalho”, constata a professora Ilcilene.
A reação a isso costuma vir na forma de isolamento ou rebeldia. A educadora
Michelli também nota que é comum os estudantes tentarem esconder suas
dificuldades, o que pode atrasar o diagnóstico.
“Diante desse quadro, a escola precisa trabalhar diversidade, inclusão e
respeito às diferenças para criar um ambiente favorável para que esse
estudante possa investir na sua capacidade de aprender e modificar sua relação
com o saber e a escola”, orienta Gilvan.
A postura das educadoras diante desse estudante também comunica para a
turma como ela deve se comportar. “O cuidado do professor é o primeiro
passo, tanto para construir um diagnóstico muito bem feito como para não
colocar o aluno em uma situação de exposição diante da turma”, indica Michelli.
Esse trabalho de aproximação com os estudantes que estavam com mais
dificuldades, por um lado, e o envolvimento dos outros alunos nesse processo
para criar uma rede de apoio, por outro, é uma estratégia que vem mostrando
resultados na experiência de Ilcilene. Ela conduz conversas frequentes sobre
diversidade e como a aprendizagem se dá no coletivo, não no individual, e
mostra que se um aluno não aprende, todos perdem.
“Essas ações ajudaram a combater as discriminações. Eu aprendi que, como
professora, preciso apoiar a construção de uma cultura na qual se olhe o
diferente com respeito”, salienta a educadora. “Tivemos uma rede de apoio
afetivo-acadêmico que iniciou no 7º ano e seguiu viva, recebendo novos alunos
e acolhendo também casos de racismo, bullying e depressão. Os estudantes já
concluíram o Ensino Médio, mas continuam conversando, se encontrando e
mantendo o espírito coletivo da rede.”

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