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2 COLONIAL QUINHENTISMO

O admirável CORRESPONDÊNCIA
As figuras do enunciador

mundo novo Carta a El Rei D. Manuel


(autor) e do enunciatário
(a quem se dirige a
carta) ficam explícitas no
Pero Vaz de Caminha
Relatos de viajantes e autos de gênero correspondência.
catequização compõem a literatura Senhor: A intenção da mensagem
é revelada no início:
do Quinhentismo (1500-1601) Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, informar sobre as terras
e assim os outros capitães escrevam a Vossa descobertas. Note a

A
s manifestações literárias sobre o Brasil Alteza a nova do achamento desta vossa ter- estrutura convencional,
têm início em 1500, com a carta redigida ra nova, que ora nesta navegação se achou, com vocativo indicando o
destinatário (“Senhor”),
por Pero Vaz de Caminha ao rei português não deixarei também de dar disso minha
o corpo do texto (com as
dom Manuel I, logo após os primeiros contatos conta a Vossa Alteza (...) notícias sobre o Brasil), a
dos portugueses com os índios da Bahia e com a A feição deles é serem pardos, maneira de averme- despedida e a assinatura
natureza exuberante do território desconhecido. lhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. do autor.
A literatura em língua portuguesa dos viajantes Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem esti-
compreende a produção informativa dos cro- mam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e DESCRIÇÃO
nistas, que descreviam as riquezas naturais e os nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.  O autor faz uma
habitantes do Novo Mundo, e os textos dos mis- Ambos traziam os beiços de baixo furados e meti- descrição física dos
sionários jesuítas, voltados para a conversão e dos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de com- nativos, destacando as
diferenças entre eles e os
a catequese dos povos indígenas. primento duma mão travessa, da grossura dum portugueses. A descrição
fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. não é pejorativa, como
Relatos de viajantes (...) se vê no emprego dos
O documento considerado “certidão de nasci- Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é adjetivos “bons”, usado
mento do país”, a carta de Pero Vaz de Caminha graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á para caracterizar os
substantivos “rostos” e
(1500), conserva o primeiro testemunho sobre nela tudo, por bem das águas que tem.
“narizes”, e “bem-feitos”.
o encontro entre índios e portugueses. O relato Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me pa-
procura ser objetivo, mas os comentários sobre rece que será salvar esta gente. E esta deve ser a prin-
os costumes indígenas e a apreciação das rique- cipal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.  SALVAÇÃO
zas naturais revelam a admiração e as emoções (...) Em seguida, Caminha
descreve fisicamente
do autor da carta.  E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza
a paisagem brasileira.
O escrivão português deixa transparecer, do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me No entanto, o destaque
além disso, uma visão de mundo cristã, crente alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de da carta recai sobre
na existência do paraíso terrestre e na neces- Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo. os habitantes nativos:
sidade de conversão dos povos nativos. Dessa (...) o autor mostra-se
preocupado com a
forma, sob a aparência de imparcialidade, Cami- Beijo as mãos de Vossa Alteza.
salvação das almas
nha insere seu ponto de vista sobre os fatos Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, indígenas por meio
observados. hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500. da conversão ao
cristianismo.
Textos de evangelização
José de Anchieta destacou-se na literatura
TEXTO INFORMATIVO
quinhentista por suas poesias e autos evange- Após a recomendação sobre o destino dos índios, Caminha
lizadores cujo foco era impor a moral religiosa conclui a carta explicitando a intenção informativa do
católica aos costumes dos indígenas. texto: a extensão do relato está ligada à necessidade de
O padre também elaborou poemas que apenas prestar contas detalhadas e minuciosas ao rei.
revelavam sua necessidade de expressão, como
um poeta pagão.
Os poemas mais conhecidos de José de Anchie-
ta são Do Santíssimo Sacramento e A Santa Inês.

34 GE PORTUGUÊS 2018
A Santa Inês  CATEQUESE
José de Anchieta Os poemas didáticos de
Anchieta, como A Santa
Inês, têm finalidade
Cordeirinha linda, catequética e são
Como folga o povo, inspirados nas trovas e
Porque vossa vinda redondilhas melodiosas
Lhe dá lume novo! medievais. Eles se
assemelham a parábolas
bíblicas escritas em
Cordeirinha santa, versos.
De Jesus querida, DIÁLOGO ENTRE OBRAS
Vossa santa vida  DIFUSÃO DA FÉ
O Diabo espanta. O texto trata, com O MODERNISMO E A REFLEXÃO SOBRE O BRASIL
simplicidade, do Os autores modernistas lançaram um olhar agu-
confronto entre o bem
Por isso vos canta çado sobre a realidade nacional. O poema Erro de
e o mal: a chegada de
Com prazer o povo, Santa Inês espanta o Português tem um título ambíguo que, em vez de
Porque vossa vinda diabo e, graças a ela, designar um desvio à norma culta da língua, se refere
Lhe dá lume novo. o povo revigora sua aos problemas da colonização. Oswald de Andrade
fé. O poema funciona questiona a intervenção europeia na cultura indíge-
Nossa culpa escura como instrumento na. Além de aspectos formais inovadores – o verso
evangelizador.
Fugirá depressa, livre (não metrificado), a ausência de pontuação e o
Pois vossa cabeça efeito de humor –, o autor estabelece uma contrapo-
CULPA E PERDÃO
Vem com luz tão pura. A noção de culpa e de
sição entre o português, que veste o índio com seus
perdão imposta ao índio valores repressivos, e o índio, que poderia ter despido
Vossa formosura revela a intervenção o português desses mesmos valores.
Honra é do povo, portuguesa, uma vez METÁFORA
que a ideia de pecado “Chuva” e “sol” são
Porque vossa vinda elementos metafóricos.
e de necessidade de
Lhe dá lume novo. Os tempos difíceis
purificação não fazia
parte dos valores Erro de Português
iniciados a partir
Virginal cabeça, indígenas. O tema do contato entre Oswald de Andrade
Pela fé cortada, dessa intervenção índios e europeus são
será retomado pelos comparados ao ambiente
Com vossa chegada cinzento de um dia de
Quando o português chegou
modernistas de forma
Já ninguém pereça; crítica e paródica como chuva. Se os indígenas Debaixo de uma bruta chuva
no poema Erro de estivessem em vantagem Vestiu o índio
Vinde mui depressa Português, de Oswald em relação ao poderio Que pena!
Ajudar o povo, de Andrade. português, a situação  Fosse uma manhã de sol
poderia ser diferente e,
Pois com vossa vinda tal como uma manhã
O índio tinha despido
Lhe dais lume novo.  PARALELISMO de sol, eles teriam O português
E MUSICALIDADE
subjugado os invasores.
A repetição do verso
Vós sois cordeirinha “Lhe dá lume novo” e a
De Jesus Formoso; retomada em “Lhe dais
Mas o vosso Esposo trigo novo” reforça o
já vos fez Rainha. processo catequético e PARA IR ALÉM
confere musicalidade ao
texto. A linguagem clara
Também padeirinha contribui para que as
O filme Caramuru – A Invenção do Brasil (2001), de
Sois do vosso Povo, ideias sejam facilmente Guel Arraes, conta a história do pintor português
pois com vossa vinda, assimiladas. Diogo Álvares, que, após um naufrágio, chega ao
Lhe dais trigo novo. A musicalidade e a Brasil. A exuberância da paisagem e os adornos dos
linguagem simples nativos que ele encontra correspondem à descrição
envolvem o interlocutor
feita pelo escrivão Pero Vaz de Caminha em sua carta.
e o sensibiliza para
a mensagem religiosa. Diogo apaixona-se pela índia Paraguaçu, com quem
vive um triângulo amoroso formado por sua irmã,
a índia Moema. O filme, que tem no elenco Selton
VOCABULÁRIO
folga: se alegra Mello, Camila Pitanga e Deborah Secco, é baseado no
lume: luz poema épico Caramuru, do árcade Santa Rita Durão.

© TEREZA BETTINARDI GE PORTUGUÊS 2018 35


Literatura I Português

CAPÍTULO 04 BARROCO
1. Contexto histórico No Brasil, o panorama histórico do período foi mar-
cado pelo incremento da política de colonização,
O Barroco é a expressão artística de uma épo-
com o estabelecimento dos engenhos de cana-de-
ca marcada por contradições e dúvidas exis-
açúcar na Bahia. Salvador, capital do Brasil, consti-
tenciais: o século XVII . Este estilo de época é
tuiu-se em um núcleo populacional importante e
também nomeado de Seiscentismo.
em centro cultural que, embora tímido, produziu
Os valores antropocêntricos renascentistas ti- um poeta do porte de Gregório de Matos. As da-
nham passado por extraordinário desenvolvi- tas referenciais do Barroco brasileiro são 1601, com
mento no período anterior, o que preocupava a publicação de Prosopopeia, de Bento Teixeira, e
a Igreja de Roma, que ainda controlava a vida 1768, com a publicação de Obras, de Cláudio Ma-
educacional europeia. Além disso, a Reforma nuel da Costa, que representa a introdução ao Ne-
Protestante vinha abalar ainda mais as estru- oclassicismo ou Arcadismo.
turas católicas. Os reformistas pretendiam,
basicamente, a diminuição do poder do Papa, 2. Traços característicos
pregando a livre leitura da Bíblia e o retorno à
simplicidade dos apóstolos. O Barroco é a arte das contradições. Isso
acontece pelo fato de o estilo ter resultado do
A reação a essas ameaças se concretizou na choque entre duas concepções culturais dife-
chamada Contrarreforma Católica, conjun- rentes: o antropocentrismo que ele herdou do
to de medidas tomadas pela Igreja Católica, Renascimento, e o teocentrismo que a Igreja
para tentar diminuir o crescimento do refor- tentava reafirmar através da Contrarreforma.
mismo protestante no continente europeu. A Essa contradição vai desdobrar-se, na temática
Santa Inquisição passou a ser utilizada como barroca, impressa na oposição entre a mate-
instrumento de perseguição dos reformistas, rialidade e a espiritualidade.
tratados como hereges. A Companhia de Jesus
recebeu a missão de conquistar novas almas Para o homem do Barroco, as certezas abso-
para o cristianismo, participando ativamente lutas alimentadas com tanto otimismo pelo
das tarefas de colonização das terras recém- período anterior, o Renascimento, perdem o
-descobertas em todo o mundo. sentido. Ao equilíbrio clássico sucede, então,
uma situação de desequilíbrio e instabilidade.
Em Portugal, esse quadro crítico foi agravado As artes plásticas do Barroco representarão
pelo desaparecimento do rei D. Sebastião, em esse tópico com muita propriedade. A literatu-
1578. O rei Felipe da Espanha, aproveitando-se ra enfocará essa situação instável, por meio de
do fato de o rei desaparecido não ter deixa- temas como o do mundo em transformação.
do herdeiros, utilizou-se da supremacia mi-
litar para dominar Portugal, estabelecendo
a União Ibérica, que durou de 1580 a 1640.
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Nesse período, enquanto o resto da Europa vi-


via o desenvolvimento científico com as idéias
e as descobertas de Kepler, Giordano Bruno,
Galileu Galilei, Francis Bacon e outros, a penín-
sula Ibérica ia-se constituindo no mais obscu-
rantista reduto de ideias medievais. Em 1640,
por meio da Restauração, Portugal libertou-se
do jugo espanhol, e o trono português foi en-
tregue a uma nova dinastia, a de Bragança.
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O Barroco português possui como marcos histó-


ricos os anos de 1580 (morte de Camões e início
da União Ibérica) e 1756 (fundação da Arcádia
Lusitana, que inaugura o Neoclassicismo).
Santa Teresa Benini

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Português Literatura I

A linguagem barroca é rebuscada, difícil na


estruturação, correspondendo à ideia de um
mundo instável e contraditório. As figuras de
linguagem são usadas com fartura, destacan-
do-se: a metáfora, a antítese, o paradoxo, a
hipérbole e o hipérbato. Essa linguagem or-
namental exige do leitor capacidade de con-
centração, para poder acompanhar as associa-
ções feitas pelos artistas barrocos.
A dicotomia barroca
A expressão das contradições barrocas se
dá de duas maneiras diferentes: pode-se fa-
lar em duas correntes barrocas: o cultismo
(também chamado de gongorismo, por ser
inspirado no espanhol Gôngora, partidário de
©©©Wikimedia

uma arte mais técnica e expressiva) e o con-


ceptismo ou quevedismo, por causa da influ-
ência de um outro espanhol, Quevedo, cuja
Martírio de São Pedro — Caravaggio concepção da obra poética era mais guindada
ao raciocínio e menos aos aspectos formais e
Fortemente influenciado pela ideologia da ao culto à beleza.
Contrarreforma, o Barroco alimentou-se da
religiosidade medieval que a Igreja tentava O cultismo se caracteriza pela utilização de
ressuscitar, como estratégia de recupera- linguagem mais metafórica e rebuscada, re-
ção do poder e da influência, perdidos para pleta de figuras de linguagem, apresentando
o protestantismo. Nesse terreno, o espírito tendência à descrição e preferência pelo jogo
barroco estará marcado por mais uma con- com as palavras e as imagens. O conceptismo,
tradição: de um lado, a ideia da punição divi- por sua vez, caracteriza-se pela exposição sutil
na era muito presente; de outro, a concepção de raciocínios, privilegiando o conteúdo e ma-
do pecado como inevitável, porque inerente nifestando preferência pelos jogos argumen-
à natureza humana, também existia. Assim, tativos. Para simplificar, pode-se dizer que o
deixar de pecar era impossível para o ser hu- cultismo se preocupa com aspectos exteriores
mano, que tinha que se resignar à aceitação (descrições, imagens, aparências) dos objetos
do castigo de Deus; o máximo a fazer seria artísticos, enquanto o conceptismo enfoca os
obter o perdão, por meio do arrependimento. aspectos interiores (concepções, definições,
A angústia existencial toma conta do ser hu- essências).
mano e aparecerá como fonte inesgotável do Exemplos:
pessimismo que o Barroco tematiza.
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Cultismo (Gongorismo)
Não se pode imaginar, contudo, que o artista
barroco, por muitas vezes estar ligado à ide- O todo sem a parte não é todo
ologia católica, seja conformista ou homem A parte sem o todo não é parte,
incapaz de originalidade de pensamento. Ao Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
contrário, os maiores artistas do estilo, na lín- Não se diga que é parte, sendo todo.
gua portuguesa, foram homens que lutaram Gregório de Matos
contra as concepções mais fechadas de sua
época. De fato, Antônio Vieira e Gregório de Conceptismo (Quevedismo)
Matos dirigiram suas produções artísticas para
a crítica da sociedade e dos desmandos das Se uma ovelha perdida e já cobrada
autoridades, sem jamais demonstrar temor Glória tal e prazer tão repentino
diante dos poderosos. Vos deu, como afirmais na Sacra
[História.

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Literatura I Português

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada Vieira recusava utilizar-se, em seus sermões,


Cobrai-a e não queirais, Pastor de linguagem excessivamente rebuscada.
[Divino, Longe de parecer uma contradição, tendo
Perder na vossa ovelha a vossa glória. em vista o seu próprio estilo, tratava-se do
Gregório de Matos estabelecimento de uma regra estética: a
linguagem devia estar sempre a serviço
3. Padre Antônio Vieira de uma ideia e nunca perder-se no vazio,
como muitos oradores faziam. Essa postura
A. Biografia foi condenada por ele no Sermão da Sexagé-
sima, onde afirma:
O Padre Vieira nasceu em 1608 e morreu em
1697, tendo sido um dos maiores escritores da A definição do Pregador é a vida,
língua portuguesa e um dos maiores oradores e o exemplo... Ter nome de Pregador ou
da história europeia. Não foi apenas homem ser Pregador de nome não importa nada:
de púlpito, pois teve, também, grande envol- as ações, a vida, o exemplo, as obras, são
vimento com a política. Sua estreia como pre- as que convertem o mundo. O melhor
gador se deu em 1633, depois de dez anos de conceito que o Pregador leva ao púlpito,
noviciado na Companhia de Jesus. qual cuidais que é? É o conceito que de
Vieira foi pregador régio, conselheiro de sua vida têm os ouvintes. Antigamente
D. João IV, embaixador na França, Holanda e convertia-se o mundo: hoje por que não se
Roma. Perseguido pelo Santo Ofício, manteve-se converte ninguém? Porque hoje pregam-
fiel às suas convicções. Os últimos tempos de -se palavras e pensamentos, antigamente
vida, ele os passou organizando seus sermões, pregavam-se palavras e obras. Palavras
que preenchem cerca de 15 volumes. sem obras são tiros sem bala, atiram mas
não ferem...
B. Obra
Ao contrário de Gregório de Matos, que colhia a Entre os mais famosos sermões de Vieira, pode
substância de seus temas na vida baiana, o Padre ser destacado o Sermão pelo bom sucesso das
Vieira falava aos fiéis da Bahia como se estives- armas de Portugal contra as de Holanda (1640),
se falando com o mundo, mesmo que o assunto em que o autor se apresenta diante de Deus,
fosse de interesse local. Há nele o arrebatamen- contrapondo a excelência da religião católica
to dos grandes profetas e principalmente sabe- sobre as religiões modernas de fundo protes-
doria concreta, capaz de associar um fato trivial tante. Seu ponto alto está na ironia com que vai
a uma interpretação grandiosa, ecumênica, hu- discorrendo e, ao mesmo tempo, descrevendo
manística, sem a falsa justaposição dos oradores a posição de Deus como árbitro da futura con-
e pensadores menores do Barroco, que faziam tenda entre portugueses e holandeses. O Ser-
analogia e comparação de tudo. mão de Santo Antônio aos peixes (1653) satiriza
O ponto de partida de seus sermões era sem- os vícios dos colonos, por meio de alegorias e
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pre um texto da Bíblia, que ele buscava com- comparações com os hábitos dos peixes. O Ser-
provar e ligar ao mundo à sua volta. Defendia as mão da Sexagésima ridiculariza os exageros da
ideias contrarreformistas, atacando os protes- escola gongórica ( = imitação exagerada e pou-
tantes com fervor irado. Apesar disso, assumiu co criativa dos esquemas retóricos de Luís de
posições que o indispuseram com a ortodoxia Gôngora, poeta barroco espanhol).
católica, que o combateu e perseguiu. Os pon- Seguem-se nomes de mais alguns sermões
tos mais polêmicos dessas posições eram: a de Vieira: Sermão da Quarta-Feira de Cinzas
defesa do índio, escravizado pelos fazendeiros (1653), Sermão do Mandato (1643), Sermão
ou colonos; o profetismo sebastianista, que o da Primeira Dominga da Quaresma (1653).
fazia vaticinar o surgimento de um novo rei- Deixou um total de aproximadamente 200
no católico encabeçado por Portugal, o Quinto sermões e 500 cartas de sua correspondên-
Império; e a defesa do direito adquirido pelos cia pessoal, além de livros, como História do
cristãos-novos (isto é, judeus supostamente futuro.
convertidos ao cristianismo).

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Português Literatura I

A seguir, um texto do Padre Antônio Vieira furtos, e em os fazer. Isto não era zelo
para observação. Nele, podemos perceber a de justiça, senão inveja. Queria tirar os
linguagem irônica do pregador e seu discurso ladrões do mundo, para roubar ele só.
alegórico, referindo-se indiretamente à socie- VIEIRA, Antônio. Sermão do bom ladrão.
dade de seu tempo. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1971.

Supondo, finalmente, que os ladrões 4. Outros autores (Portugal)


de que falo não são aqueles miseráveis, Padre Manuel Bernardes (1644-1710): obra
a quem a pobreza e vileza da sua fortuna composta por prosa doutrinal e religiosa,
condenou a este gênero de vida, porque como Nova floresta.
a mesma sua miséria ou escusa ou alivia
o seu pecado, como diz Salomão... O la- Francisco Rodrigues Lobo (1580-1622): obra
drão que furta para comer não vai nem de caráter moral, como Corte na aldeia.
leva ao inferno: os que não só vão, mas Antônio José da Silva (o Judeu) (1705-1739):
levam, de que eu trato, são os ladrões dramaturgo, autor de Guerras do alecrim e da
de maior calibre e de mais alta esfera, manjerona (1737), entre outras.
os quais, debaixo do mesmo nome e do Quanto à poesia, merece destaque a Fênix
mesmo procedimento, distingue muito renascida, coletânea de poemas seiscentistas
bem S. Basílio Magno... Não são só la- portugueses.
drões, diz o santo, os que cortam bolsas,
ou espreitam os que vão banhar, para 5. Gregório de Matos
lhes colher a roupa; os ladrões que mais
própria e dignamente merecem este títu- A. Biografia
lo são aqueles a quem os reis encomen-
dam os exércitos e legiões, ou o governo Gregório de Matos e Guerra nasceu na Bahia,
das províncias, ou a administração das em 1636, de família abastada. Estudou primei-
cidades, os quais já com manha, já com ro com os jesuítas na cidade natal e, a partir
força, roubam e despojam os povos. Os de 1650, na metrópole, formando-se em Di-
outros ladrões roubam um homem, es- reito, em Coimbra, no ano de 1681. Em Por-
tes roubam cidades e reinos: os outros tugal, casou, exerceu a profissão de advogado,
furtam debaixo do seu risco, estes sem tendo sido também magistrado. Algum tempo
temor, nem perigo, os outros, se furtam, depois de ter enviuvado, retornou à pátria. Na
são enforcados, estes furtam e enfor- Bahia, levou uma vida boêmia e indisciplinada
cam. Diógenes, que tudo via com mais de “advogado de poucas causas e menores re-
aguda vista que os outros homens, viu cursos”, improvisando versos, cantando à vio-
que uma grande tropa de varas e minis- la, caçoando de toda gente, tendo construído
tros de justiça levavam a enforcar uns uma reputação, no mínimo, polêmica, mas de
ladrões, e começou a bradar: Lá vão os muita popularidade. Casou de novo, teve filhos
e a proteção de alguns bispos e governadores.
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ladrões grandes enforcar os pequenos.


Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E Foi exilado para Angola, de onde voltou em
mais ditosas as outras nações, se nelas 1695, indo viver no Recife, onde morreu no
não padecera a justiça as mesmas afron- ano seguinte.
tas. Quantas vezes se viu em Roma ir a
enforcar um ladrão por ter furtado um B. Obra
carneiro, e no mesmo dia ser levado, A obra poética de Gregório de Matos dificulta
em triunfo um cônsul, ou ditador por o trabalho de quem pretenda lhe dar um per-
ter roubado uma província! E quantos fil definitivo. Isso porque é muito difícil dizer
ladrões teriam enforcado estes mesmos exatamente o que ele escreveu, uma vez que
ladrões triunfantes? De um chamado Se- houve perdas, sem que se possa dizer se esses
ronato disse com discreta contraposição extravios foram mais ou menos numerosos. O
Sidónio Apolinar... Seronato, está sem- próprio poeta, em grande medida, teve culpa
pre ocupado em duas coisas: em castigar por isso, pois, segundo consta, não se preocu-

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Literatura I Português

pava em organizar e guardar o que escrevia, Vejamos alguns exemplos da produção satírica
a ponto de ter morrido sem ter publicado sua de Gregório de Matos: o texto a seguir é uma
obra na forma de livro. amostra da crítica generalista do poeta, além
Para alguns, Gregório teria plagiado Gôngora, de indicar os fundamentos preconceituosos
Quevedo, Petrarca e Camões, dadas as seme- de suas sátiras.
lhanças de poemas seus com os desses auto-
res. É preciso, no entanto, não esquecer que o Neste mundo é mais rico o que mais
Barroco faz parte de uma época histórica em [rapa:
que a imitação não tinha o caráter negativo Quem mais limpo se faz tem mais
que tem hoje. Em todo o período anterior ao [carepa;
Romantismo, imitar, muitas vezes, era home- Com sua língua, ao nobre o vil
nagear o “plagiado”, além de que a intertex- [decepa:
tualidade (diálogo entre textos) era prática O velhaco maior sempre tem capa.
comum e vista positivamente.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Gregório, espírito inquieto, mais via pontos
Quem tem mão de agarrar, ligeiro
negativos do que positivos na sociedade e nas
[trepa;
pessoas, tanto que criticou quase tudo e qua-
Quem menos falar pode, mais increpa:
se todos: a incapacidade administrativa dos
Quem dinheiro tiver, pode ser papa.
portugueses; a atitude de bajulação dos brasi-
leiros; o clero; a corrupção e o relaxamento de
A flor baixa se inculca por tulipa;
costumes. O conjunto de sua obra fornece, por
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
isso, vasto painel da sociedade de seu tempo,
Mais isento se mostra o que mais
graças, sobretudo, a um tino especial para ob-
[chupa.
servar usos e tradições típicas da cultura em
que vivia.
Para a tropa do trapo vazo a tripa,
Apesar de ter ficado conhecido por sua produ- E mais não digo, porque a musa topa
ção satírica, Gregório foi também grande poe- Em apa, epa, ipa, opa, upa.
ta lírico, expressando em sua obra as contra- MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos.
dições vividas pelo homem do Barroco, tanto São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
que sua obra poética tem várias vertentes,
conforme veremos a seguir. A parte mais significativa da poesia satírica de
Gregório, contudo, concentra-se nas mazelas e
B.1. Poesia satírica nos problemas da cidade da Bahia, que ele te-
Por meio da sátira – parte mais vasta de sua matizou com irritação digna de um apaixonado.
poesia –, o poeta registra o cotidiano sob inú-
meros ângulos e com riqueza de detalhes. Vai A cada canto um grande conselheiro
da brincadeira inconsequente à denúncia viru- Que nos quer governar cabana e vinha;
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lenta, até com alguma dose de agressividade. Não sabem governar sua cozinha,
Pela contundência e constância de suas críticas, E podem governar o mundo inteiro.
ficou conhecido como “Boca do Inferno”.
Em cada porta um bem frequente
Na linha satírica, Gregório critica principal-
[olheiro
mente a ambição desmedida dos colonos,
Que a vida do vizinho e da vizinha
bem como as transgressões morais em que
Pesquisa, escuta, espreita e
todos incorrem. Não se trata, portanto, de
[esquadrinha,
crítica dirigida apenas aos poderosos. Seus
Para o levar à praça e ao terreiro.
alvos prediletos, todavia, eram, de fato, go-
vernadores, administradores, religiosos (ou
Muitos mulatos desavergonhados,
religiosas) e comerciantes. Mas a arraia-mi-
Trazidos sob os pés de homens nobres,
úda também mereceu do poeta sua dose de
Posta nas palmas toda a picardia,
agressão e virulência.

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Português Literatura I

Estupendas usuras nos mercados, ta faz uso do carpe diem – aproveitamento do


Todos os que não furtam muito pobres: tempo presente –, levado pela ânsia de agilizar a
E eis aqui a cidade da Bahia. realização carnal do amor, com a mulher a quem
MATOS, Gregório de. Satírica I. Rio de Janeiro: dirigia sua atenção e seu desejo, sempre físico.
edição da Academia Brasileira de Letras, 1931.
No texto a seguir, a beleza da amada seduz o
O próximo texto mostra um exemplo da poe- poeta e o faz propor a ela o aproveitamento
sia brincalhona do “Boca do Inferno”: satiriza do presente:
um livreiro “guloso” e o faz com criatividade e
originalidade. Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer
Levou um livreiro a dente [hora,
de alface todo um canteiro, Em tuas faces a rosada Aurora,
e comeu, sendo livreiro, Em teus olhos e boca, o sol e o dia:
desencadernadamente.
Porém, eu digo que mente Enquanto, com gentil descortesia,
a quem disso o quer taxar; O ar, que fresco Adônis te namora,
antes é para notar Te espalha a rica trança brilhadora,
que trabalhou como um mouro, Quando vem passear-te pela fria:
pois meter folhas no couro
também é encadernar. Goza, goza da flor da mocidade,
MATOS, Gregório de. Satírica I. Rio de Janeiro: edição Que o tempo trota a toda ligeireza,
da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1931. E imprime a cada flor uma pisada.
Dentro da sátira, ainda se pode destacar a Ó não aguardes que a madura idade
poesia fescenina – poesia mais “pesada”, Te converta essa flor, essa beleza,
com o emprego de termos chulos e expo- Em terra, e cinza, em pó, e sombra,
sição mais explícita de imagens eróticas. O [em nada.
poema a seguir, por exemplo, é dedicado a MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos.
uma freira que chamara o poeta de “Pica- São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
-Flor” (beija-flor, colibri):
Se Pica-flor me chamais, B.3. Poesia lírico-religiosa
Pica-Flor aceito ser, Os temas básicos da poesia religiosa barroca
mas resta agora saber, aparecem em Gregório de Matos: a inevitabi-
se o nome que me dais, lidade do pecado, o medo da punição divina,
meteis a flor que guardais a busca incessante e desesperada do perdão.
no passarinho melhor! O soneto a seguir manifesta todos esses ele-
Se me dais este favor, mentos, associando-os ao arrependimento da
sendo só de mim o Pica, hora da morte, evidenciando atitude bastante
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e o mais vosso, claro fica, típica dos tormentos vividos pelos místicos da
que fico então Pica-flor. época barroca.
B.2. Poesia lírico-amorosa Meu Deus, que estais pendente em um
Os poemas enquadrados neste gênero são, mui- [madeiro,
tas vezes, descritivos, focalizando preferencial- Em cuja lei protesto de viver,
mente a beleza da mulher amada. As confissões Em cuja santa lei hei de morrer
amorosas são expressas sempre com a angústia Animoso, constante, firme, e inteiro.
que caracterizava o estilo barroco, e se baseavam
na oposição entre o amor espiritual, direcionado Neste lance, por ser o derradeiro,
a, ou recebido de Cristo, portanto, purificador, Pois vejo a minha vida anoitecer,
redentor, e o amor carnal – pecaminoso, mas, É, meu Jesus, a hora de se ver
inevitável, segundo se percebe implicitamente, A brandura de um Pai manso
nos versos do poeta. Em vários poemas, o poe- [Cordeiro.

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Literatura I Português

Mui grande é vosso amor, e meu B.5. Poesia encomiástica


[delito,
Gregório produziu ainda alguns poemas enco-
Porém pode ter fim todo o pecar,
miásticos em que presta homenagem ou tece
E não o vosso amor, que é infinito.
elogios a algo ou a alguém. O texto, a seguir,
Esta razão me obriga a confiar, é uma homenagem ao capitão João Roiz dos
Que por mais que pequei, neste Reis, grande amigo do poeta:
[conflito
Espero em vosso amor de me salvar. Meu Capitão dos Infantes,
que por vossas boas artes
B.4. Poesia lírico-reflexiva sois homem de muitas partes
Esta vertente da poesia de Gregório de Ma- nascendo só em Abrantes:
tos é a menos importante, em função dos por vossos ditos galantes,
raros poemas que permitem esse enquadra- discretos, e cortesãos,
mento. Esses poucos poemas são represen- e por largueza de mãos
tativos de sua visão angustiada diante da a todos nos pareceis
decadência de valores morais a que assis- não somente João dos Reis,
tia. No soneto a seguir, é possível captar-lhe senão o Rei dos Joãos.
atitude de combate à vaidade humana e ao
culto da aparência. Note-se a utilização de As obras completas de Gregório de Matos, ou
vocabulário culto e a exploração de metáfo- seja, o acervo que sobreviveu além da vida do
ras imaginativas. autor, são fruto de um trabalho de pesquisa
da Academia Brasileira de Letras que, entre os
É a vaidade, Fábio, nesta vida, anos de 1923 e 1933, fez publicar seis volumes
Rosa, que da manhã lisonjeada, de poemas do autor, separando-os de acordo
Púrpuras mil, com ambição dourada, com a divisão abordada neste estudo sobre
Airosa rompe, arrasta presumida. esse poeta, o qual, sob alguns pontos de vista,
é figura ímpar da literatura brasileira.
É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada, 6. Outros autores (Brasil)
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, arrasta destemida. Bento Teixeira – Foi o primeiro poeta do Brasil
a publicar. Trata-se de um poema épico cha-
É nau, enfim, que em breve ligeireza, mado Prosopopeia. Seu mérito é este: iniciou
Com presunção de Fênix generosa, o Barroco no Brasil.
Galhardias apresta, alentos preza: Manuel Botelho de Oliveira – Autor de Música
do Parnaso e do poemeto A Ilha da Maré.
Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa,
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De que importa, se aguarda sem Frei Manuel de Santa Maria Itaparica – Autor
[defesa de Eustáquides e Descrição da Ilha de Itaparica.
Penha a nau, ferro a planta, tarde a
[rosa?

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Português Literatura I

EXERCÍCIOS RESOLVIDOS
Leia o soneto para responder às duas questões Resolução
que se seguem. O poeta cita Deus como solução do problema
abordado no texto, mas não há relevância, no
Triste Bahia! Ó quão dessemelhante soneto, desse foco.
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Resposta
Rica te vi eu já, tu a mi abundante. A
02.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua barra tem entrado, Assinale a alternativa que define corretamen-
A mim foi-me trocando, e tem trocado, te o modelo de texto do soneto lido, tendo em
Tanto negócio e tanto negociante. vista os vários temas desenvolvidos por Gregó-
rio de Matos Guerra.
Deste em dar tanto açúcar excelente a. Lírico-amoroso, apesar de o eu lírico não
Pelas drogas inúteis, que abelhuda focalizar alguma mulher amada, pois a
Simples aceitas do sagaz Brichote. cidade é a musa inspiradora, no caso.
b. Satírico, ainda que não se façam pre-
Oh se quisera Deus que de repente, sentes o humor e a ironia, próprios
Um dia amanheceras tão sisuda desse tipo de obra.
Que fora de algodão o seu capote!
c. Lírico-reflexivo, versando sobre a ex-
MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. ploração portuguesa levada a efeito no
São Paulo: Círculo do Livro, s/d. Brasil e o empobrecimento da colônia e
01. de seu povo.
d. Encomiástico, expressado no elogio à
Todas as premissas a seguir são características do
capacidade de reação – última estrofe
Barroco brasileiro, presentes no texto, exceto:
– da Bahia (Salvador), contra a explora-
a. relevância da religiosidade, que depo- ção lusitana.
sita em Deus a expectativa de solução
e. Fescenino, percebido mesmo com o po-
para os problemas humanos.
eta disfarçando alusões eróticas, como
b. linguagem sinuosa, inclusive com a in- fez na 3ª estrofe.
versão de termos sintáticos.
Resolução
c. conceptismo: privilégio do raciocínio e
da lógica sobre preocupações formais, A crítica é feita de maneira séria e amarga, mas
técnicas. há alguns traços típicos da sátira, como jogos de
palavras e insinuações, principalmente na 2ª e
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d. antíteses como expressão do conflito


3ª estrofes.
do homem da época barroca.
e. crítica social e registro histórico da Resposta
época. B

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