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Brasil
Resumo: Como fenômeno social, econômico, cultural e espacial, o turismo no Brasil vem
produzindo geografias particulares relacionadas a equipamentos e serviços tais como operação
e agenciamento de viagens, à infraestrutura hoteleira, às residências secundárias, a cruzeiros
marítimos e, consequentemente a fluxos turísticos pelo território nacional. Essas geografias
do turismo no país são compreendidas, nesta análise, como causa e conseqüência do chamado
desenvolvimento desigual, tal como discutido contemporaneamente por Smith (2008). Neste
sentido, buscamos para alem de supostas determinações culturais, apreender, através de uma
economia política do território, lógicas engendradoras das espacialidades assumidas pelo
turismo enquanto atividade econômica no Brasil. No que tange à metodologia da análise,
buscamos no materialismo histórico e dialético as bases para a interpretação deste fenômeno
complexo e de importância social e econômica crescente, que é o turismo. A noção de
desenvolvimento desigual enquanto “expressão geográfica sistemática das contradições
inerentes à própria construção e estrutura do capital” (SMITH, 2008: 4) constitui pilar
conceitual sobre o qual assentamos nossa análise. Além disso, consideramos que a noção de
desenvolvimento desigual constitui chave interpretativa central para a compreensão do lugar
do turismo no processo conflituoso e contraditório de produção do espaço. Como resultados
desta análise, destacamos a expressiva concentração espacial de equipamentos e de fluxos
turísticos no Brasil enquanto produtos históricos de processos de concentração e centralização
do capital na sua relação com distintas Divisões Sociais e Territoriais do Trabalho distribuídas
ao longo do tempo e materializadas no espaço.
▪ 1 Segundo Smith (1988: 145), Lênin, na obra “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, de 1899, já (...)
▪ 2 Segundo Michael Lowy (1995), a expressão “desenvolvimento desigual e combinado” não aparece na
obra (...)
▪ 3 "O fator mais importante do progresso humano é a seu domínio sobre as forças produtivas. Qualquer a (...)
▪ 4 Publicado originalmente nos Estados Unidos, com o título “Unven Development – nature, capital and p (...)
2Trazendo este debate para a contemporaneidade e para a Geografia, David Harvey e seu
discípulo Neil Smith destacam-se entre geógrafos que discutiram a noção marxiana de
desenvolvimento desigual, encontrando-se no livro de Neil Smith (20084) intitulado
“Desenvolvimento desigual – natureza, capital e produção do espaço” a referencia teórica
fundante da análise que empreenderemos aqui.
4Além disso, conforme o autor, salvo o fato de que determinadas condições naturais favorecem
o desenvolvimento de determinadas atividades ou usos dos recursos da natureza, é, em
verdade, a divisão do trabalho na sociedade a base histórica da diferenciação espacial de níveis
e condições de desenvolvimento (SMITH: 1988: 152). E é sob o modo de produção capitalista,
com suas imanências e contradições, entre as quais a tendência contraditória à diferenciação
e à igualização, que o processo histórico de diferenciação espacial adquire características
jamais antes presentes em outros modos de produção. Assim, segundo Smith, o
desenvolvimento desigual é, no mínimo, a expressão geográfica das contradições do capital.
5Para Harvey:
6Outros conceitos-chave para a discussão que pretendemos fazer aqui são os conceitos de
concentração e centralização, relacionados à acumulação capitalista. Como lembra
Smith (1988, p. 175), “a necessidade de acumulação do capital leva a uma franca expansão
geográfica da sociedade capitalista, conduzida pelo capital produtivo”. A concentração social
do capital, por sua vez, constitui necessidade da acumulação (Ibidem, p. 177), enquanto “a
centralização completa o trabalho de acumulação” (Ibidem, p. 179). Necessário, ainda,
pontuar, que, conforme Smith, “a concentração espacial e o processo de centralização
referem-se à localização física do capital e é, desse modo, diferente da concentração e
centralização sociais” (Ibidem, p. 176).
O impulso em direção à universalidade, sob o capitalismo, traz somente uma limitada igualização
dos níveis e das condições de desenvolvimento. O capital produz escalas espaciais distintas
(espaços absolutos) dentro dos quais o impulso para igualização está concentrado. Mas só pode
ser realizado por aguda diferenciação e por contínua diferenciação do espaço relativo, tanto entre
as escalas quanto dentro delas. As escalas por si mesmas não são fixas, mas se desenvolvem (...)
dentro do desenvolvimento do próprio capital. E não são impermeáveis; as escalas urbanas e
nacionais são produtos do capital internacional e continuam a ser moldadas por ele. Mas a
necessidade de escalas separadas e de sua diferenciação interna é fixa. Isto oferece o último
elemento básico para a teoria do desenvolvimento desigual (SMITH, 1988: 211).
Under capitalism the relationship between developed and underdeveloped areas is the most
obvious and most central manifestation of uneven development and occurs not just at the
international scale but also at regional and urban scales. (1982: 142)
9No que diz respeito à noção de produção do espaço, buscamos apoio em Henri Lefebvre.
Como afirma Smith (1988, 139), Lefebvre teria sido “o mais coerente, o mais criativo e o
defensor mais explícito” dessa noção. Segundo Lefebvre, a produção do espaço não pode ser
comparada à produção deste ou daquele objeto particular, desta ou daquela mercadoria,
mesmo em se considerando que existam relações entre a produção das coisas e a produção
do espaço. Ainda conforme o autor, o espaço é um produto da história, com algo outro e algo
mais que a história no sentido clássico do termo (Ibidem, 2008, 62). Smith reforça esta ideia
ao dizer que “nós não vivemos, atuamos ou trabalhamos ‘no’ espaço, mas sim produzimos o
espaço, vivendo, atuando e trabalhando”(Ibidem, 1988: 132).
10Feitas tais ponderações iniciais, definimos como hipótese norteadora de nossa análise o
entendimento de que o turismo de massa se desenvolve numa relação dialética com o
desenvolvimento desigual em território brasileiro, ou seja, ele é ao mesmo tempo produto e
produtor deste.
▪ 5 Segundo Perrota (2009), é a partir da década de 1910 que a cidade do Rio de Janeiro vai se constitu (...)
14Todavia, por outro lado, centramos nossa análise em décadas recentes, a partir dos anos
1990, momento em que, reconhecidamente, ocorrem mudanças qualitativas importantes no
desenvolvimento do turismo no pais, tais como o avanço de redes hoteleiras internacionais
(PROSERPIO, 2003; SPOLLÓN, 2005), a recuperação “internacionalizada” do setor de cruzeiros
marítimos (CRUZ, 2015), a reestruturação do setor de agenciamento de viagens (CRUZ, 2016)
e, mais recentemente, a realização de dois megaeventos esportivos, Copa do Mundo 2014 e
Olimpíadas 2016, ambos com forte apelo turístico, tanto no que tange à requalificação da base
material voltada ao uso turístico, como também à produção de uma imagem positiva do pais
para o mundo.
15Segundo nosso entendimento, tais mudanças não podem ser compreendidas senão sob o
recurso metodológico às diferentes escalas geográficas envolvidas, as quais, segundo os
objetivos desta análise, são as escalas global e da nação-Estado.
17Sejam quais forem os indicadores utilizados – demográficos, de renda, IDH, rede urbana
etc. – a desigualdade tanto social quanto espacial constitui característica definidora da
realidade brasileira, como afirma Pochmann (2007).
18Entretanto, necessário ponderar que, no Brasil, como em qualquer outro lugar do planeta,
a desigualdade não resulta das características naturais do País ou mesmo simplificadamente
de sua história colonial, mas sim do “desenvolvimento desigual das forças produtivas” no seu
território. Como assevera Smith:
19Se necessário se faz reconhecer que o Brasil já surge como nação independente, em 1822,
abrigando profundas desigualdades sócio-econômicas e sócio-espaciais, igualmente
importante se faz admitir que tais desigualdades são reelaboradas nos dois últimos séculos e,
especialmente, ao longo do século XX, sob o comando do processo de industrialização, no anos
pós-1930, e de uma urbanização a ele fortemente relacionada.
20De acordo com Oliveira, destacando a passagem, no Brasil, de uma economia basicamente
agroexportadora para uma economia em que ocorre um alargamento da base industrial, a
expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo
relações arcaicas no novo, sendo este:
▪ 6 Grifos do autor.
21Nas condições acima descritas, Oliveira (2003) conclui que o sistema caminhou
inexoravelmente, para uma concentração da renda, da propriedade e do poder e afirma,
citando Trotsky, que a desigualdade historicamente produzida no país não é somente desigual,
mas combinada.
Figura 1- Proporção de domicílios por classes de rendimento domiciliar per capita (%),
por Macro-Região*
* Salário mínimo em 2010 igual a cerca de 290 dólares. Baseado em Dados do Censo Demográfico
IBGE, 2010.
27O que pretendemos iluminar com tais ponderações é o fato de que quando o turismo, como
atividade organizada, começa a se desenvolver no Brasil, principalmente a partir do século XX,
é sobre um território já marcado por profundas desigualdades socioespaciais que isto se dará.
Mais além, como anteriormente colocado, entendemos que a atividade não apenas será
condicionada por esse legado histórico, mas ela mesma se constituirá, no tempo e no espaço,
como condicionante de sua reprodução.
▪ 7 Por opções políticas assumidas ao longo do tempo, o Estado brasileiro privilegiou, historicamente, (...)
28No caso do transporte comercial – considerando apenas os modais rodoviário e aéreo, que
são predominantes - entre 2010 e 2016, 48,3% dos passageiros se deslocaram por via
rodoviária, enquanto 51,7% o fizeram por via aérea7. No que tange, por exemplo, à circulação
de pessoas, todavia, é fundamental destacar que parte importante dos deslocamentos
rodoviários é feita em veículo particular. Isto posto, ressalte-se a nítida concentração da malha
rodoviária na porção oriental do país, o que, somado à forte concentração demográfica e de
renda e à proximidade geográfica com o litoral, termina por amalgamar fatores
econômicos, culturais (como a valorização da praia pelo turismo) e infraestruturais, que
influenciam diretamente na concentração da atividade turística nesta porção do território
nacional, reforçando, consequentemente, a desigualdade territorial historicamente produzida
e resultante de um complexo feixe de fatores históricos, sociais e econômicos para muito além
da atividade turística.
29Levando em conta as contradições envolvidas com este processo, passamos, então, a refletir
sobre as geografias produzidas pelo turismo no território brasileiro.
Geografias do turismo no território
brasileiro
30Ainda que reconheçamos que o turismo não constitui apenas uma atividade econômica, mas
sim e também uma prática social, sendo eivada, consequentemente, de um conteúdo cultural,
é um equívoco teórico e de método não reconhecer a concreta subordinação das lógicas
espaciais que orientam o desenvolvimento da atividade a lógicas econômicas que definiram e
definem o desenvolvimento desigual brasileiro.
31Podemos começar tomando como exemplo a chegada de turistas estrangeiros ao país, entre
2011 e 2013 (antes da realização da Copa do Mundo 2014, portanto), por unidade da
federação. Segundo dados oficiais, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro responderam,
juntos, no período, por 58,95% do total de chegadas de turistas ao País (entre 2009-2011
foram 57,78%). Conforme Cruz (2013, 284):
32Já entre 2011 e 2015, estudo realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas-
FIPE8 para o Ministério do Turismo aponta que entre as dez cidades mais visitadas por turistas
estrangeiros no Brasil, a lazer, oito são litorâneas, o que nos permite concluir que os atrativos
“sol-praia” desempenham um papel importante na definição das geografias do turismo
internacional no Brasil (Figura 5). Importante ressaltar, também, que sete entre essas oito
cidades distribuem-se por um relativamente pequeno trecho da costa brasileira, abarcando os
estados do Rio de Janeiro e de Santa Catarina, respectivamente o segundo e o sexto estado
brasileiro com maior PIB per capita, segundo dados de 20139. Vale destacar, ainda, que a
cidade do Rio de Janeiro é o principal “destino de lazer” dos estrangeiros no Brasil.
33Figura 5 – Fluxos do turismo doméstico entre estados e cidades mais visitadas por turistas
estrangeiros entre 2011 e 2015
Agrandir Original (jpeg, 1,6M)
34Outro indicador de que podemos lançar mão neste momento diz respeito à concentração
espacial de serviços de agenciamento e operação de viagens no País. Nesse caso, os estados
de São Paulo e Rio de Janeiro abrigam, sozinhos, excluindo-se, portanto, os outros 24 estados
da federação e o Distrito Federal, 41,49% de todas as agências de viagens e turismo do Brasil,
o que exemplifica, objetivamente, a centralidade econômica desses estados10 (Tabela 1;
Figura 6).
BRASIL 19.451
▪ 11 Conforme informação disponível no sítio da Braztoa – Associação Brasileira das Operadoras de Turism (...)
35Por outro lado, apenas cerca de 0,3% dessas empresas desempenham o papel de
operadoras turísticas no Brasil e respondem, juntas, por cerca de 90% do mercado nacional
de viagens11, o que expressa uma incrível centralização social de capital nesse ramo de
atividade no País (Cruz, 2016). Ressalte-se o fato de que esta não é uma característica
exclusiva da realidade brasileira. Como apontara Sinclair, no final dos anos 1990:
One of the most striking features of tour operations is the considerable market share which is held
by a small number of operators. In the USA, for example, 40 operators (three per cent of the
total) controlled approximately one-third of the market for package holidays in the early 1990s
(Sheldon, 1994). The degree of concentration was even higher in the UK in the same period, when
62,5 per cent of package holidays were sold by only five companies, approximating 0.05 per cent
of the total (1998: 17-18).
BRASIL 70 100
São Paulo 42 60
Paraná 4 5,7
Alagoas 1 1,4
Bahia 1 1,4
37Como se pode notar tanto na Figura 6 (distribuição geográfica das agencias de viagem e
turismo) como na Figura 7 (distribuição geográfica das principais operadoras turísticas), a
distribuição espacial dessas prestadoras de serviços turísticos no Brasil é bastante irregular,
sobretudo no caso das operadoras, que são produtoras de viagens. Em ambos os casos se
destaca sua concentração espacial na porção oriental do país assim como o protagonismo dos
estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
40Figura 8 – Destinos turísticos operados pelas empresas Nascimento, CVC e Flytour (2015)
Agrandir Original (jpeg, 1,5M)
46Ao abordar a força das operadoras turísticas na definição da geografia do turismo de massa
no mundo, afirma Ionnadis (1995, p. 52):
Tour operators possess significant power as coordinators centrally placed between consumers,
suppliers, and destinations. These agents derive their enormous strength from their ability to
command large volumes of airline seats and hotel rooms. Moreover, tour operators normally
possess excellent information regarding their destinations and market segments.
47Mas as operadoras turísticas não atuam sozinhas. Pelo contrario, os processos de integração
vertical entre empresas com relação direta com o setor turístico são uma marca do século XX.
Em sua análise sobre o Caribe, passível de ser extrapolada para uma reflexão sobre a escala
global, Patullo (2005, p. 21) afirma que:
Airlines, tour operators, travel agents and hoteliers are the key players in the tourist industry
jigsaw. These three institutions, in particular the airlines and tour operators, are largely owned,
controlled and run from outside the region. Sometimes, through vertical integration, they are
corporately linked, controlling every stage of the tourist’s Holiday. The bigger companies continue
to buy up smaller ones, but weakening competition and choice.
48O setor hoteleiro, citado por Patullo, pode ser tomado como outro indicador relevante dos
processos de concentração e centralização social e de concentração espacial/centralização no
setor turismo no Brasil.
Companhia No de No de
Hotéis Quartos
50As maiores redes hoteleiras do mundo possuem ou administram, juntas, cerca de 49.000
hotéis, distribuídos por lugares estrategicamente escolhidos por elas, nos “quatro cantos do
planeta”. Entre essas redes, apenas Jin Jiang International Hotels Group e Home Inns & Hotel
Management não possuem ou administram hotéis no Brasil. Por outro lado, a rede
francesa Accor domina o mercado brasileiro entre as redes estrangeiras aqui presentes, com
288 unidades (de sua propriedade ou sob sua administração), 62,1% delas localizadas em
cidades da região Sudeste e cerca de 20% (57 hotéis) na Região Metropolitana de São Paulo.
A Rede Accor vem, inclusive, comandando uma tendência à interiorização da hotelaria de rede
internacional no País, segundo um processo de desconcentração concentrada, dado seu
explícito interesse por cidades localizadas nas regiões Sudeste e Sul que, juntas, abrigam mais
de 80% dos hotéis dessa rede no Brasil.
Amapá 1
Amazonas 6
Pará 3
Bahia 10
Ceará 3
Maranhão 3
Paraiba 1
Pernambuco 5
Piauí 1
Rio Grande do 1
Norte
Sergipe 2
Goiás 5 4,9%
Mato Grosso 1
Distrito Federal 3
Minas Gerais 25
Rio de Janeiro 35
Santa Catarina 19
Rio Grande do 15
Sul
52O interesse de empresas estrangeiras pelo território brasileiro pode ser compreendido
também com base nas afirmativas de Harvey. Segundo o autor, a tentação por parte dos
capitalistas de se engajarem no comércio inter-regional para alavancar os lucros derivados de
trocas desiguais e colocar capitais excedentes onde a taxa de lucro é mais alta é, em longo
prazo, irresistível. Além disso, continua Harvey, a tendência para a superacumulação e a
ameaça de desvalorização obriga os capitalistas que estão dentro de uma região a estender
suas fronteiras ou simplesmente mover seu capital para pastos mais verdes (HARVEY, 2013,
p. 528).
53Em artigo publicado em 1995, Ionnadis alertava para o fato de que in recent years, the
tourist accommodation sector has demonstrated increased market concentration by a few large
corporations (IONNADIS, 1995, p. 52). Passadas três décadas da afirmação do autor, a
concentração e a centralização social de capital no setor é fato consumado.
54Tal concentração foi alcançada, segundo Agarwal et al (2000) por meio de diferentes
estratégias, entre as quais: alianças, fusões, aquisições, acordos de franquia e formação de
consórcios.
55Sinclair (1991) citado por Ionnadis (1995: 55) chama a atenção, por sua vez, para a
expansão geográfica das cadeias hoteleiras pelo mundo, afirmando que hotel chains seek to
expand their operations in as many countries as possible to reduce their overall risk while
maximizing their profits.
57Naturalmente, enquanto prática social, o turismo interno no Brasil desenha sua própria
geografia. Envolvendo deslocamentos rodoviários principalmente e hospedagem em casas de
parentes e amigos, em propriedades próprias ou aluguel de residências secundárias, colônias
de férias, na pequena hotelaria nacional, campings e congêneres, enfim, o chamado “turismo
doméstico” tem uma topologia mais ampla e, aparentemente, mais espontânea e liberta do
comando dos oligopólios aqui citados. Esta é, entretanto, apenas a aparência dos fatos.
60Como amplamente sabido, a ‘economia das viagens e do turismo’ diz respeito, em verdade,
a um conjunto de atividades econômicas que abarcam diferentes atividades industriais (como
a indústria dos transportes e da construção civil), comerciais e de serviços, o que implica
reconhecer que o capital produtivo no turismo encontra-se, paradoxalmente, em grande parte,
fora dele, em setores com os quais o turismo mantém relações mais ou menos diretas, mas
certamente relações dialéticas de dependência e influência.
61Portanto, os lugares onde o turismo se manifesta são apenas parte da geografia desenhada,
em escala planetária, por um conjunto extenso de empresas que mantêm relações mais ou
menos diretas com aquelas que se encontram na ponta da cadeia produtiva do turismo, como
as empresas hoteleiras e de produção e agenciamento de viagens. O que é fundamental
reconhecer é que por trás das paisagens materiais criadas pelo e para o turismo encontram-
se divisões do trabalho historicamente sobrepostas assim como processos imanentes ao modo
de produção capitalista como a tendência contraditória à expansão e à concentração espaciais.
Como afirmara Smith, em relação ao movimento de vaivém do capital entre regiões
economicamente mais desenvolvidas e outras menos desenvolvidas:
O capital busca não um equilíbrio construído na paisagem, mas um equilíbrio que seja viável
precisamente em sua capacidade de se deslocar nas paisagens de maneira sistemática. Este é o
movimento em vaivém do capital, que está subjacente ao processo mais amplo de
desenvolvimento desigual (SMITH, 1988, p. 213).
62Uma discussão centrada apenas nas empresas poderia, todavia, mesmo sem desejar,
ocultar o papel do Estado como ente mediador dos processos de produção do espaço pelo e
para o turismo.
63Pelo contrario, no caso brasileiro, o Estado foi e continua sendo o mais importante
fomentador do desenvolvimento do turismo em escala nacional, por um lado como grande
provedor das infraestruturas demandadas pela atividade, em especial aquelas relacionadas à
circulação territorial, e por outro pela formulação de políticas de concessão de incentivos fiscais
e financeiros, ações estas manifestadamente convergentes com os interesses privados e
privatistas dessas empresas. Os cerca de US$ 870 milhões empregados pelo Estado13, com a
co-participação do BID, no Nordeste do Brasil, é exemplo cabal de sua importância no
desenvolvimento do turismo em território nacional.
64Há quase cinco décadas, Mandel (1970) já afirmara que o Estado é the major instrument of
defense of the capitalist class interests today (against their class enemies, against foreign
competitors, and against the menacingly explosive nature of the inner contradictions of the
system). Para Smith, o Estado moderno capitalista desenvolve-se para realizar tarefas como
produzir as bases infraestruturais, as leis comerciais, a regulamentação da reprodução da força
de trabalho e o apoio para o dinheiro local, os quais são, segundo o autor, todos necessários
no nível do capitalista coletivo mais que no do individual (1988: 205).
65Outro exemplo recente da pró-atividade do Estado brasileiro no que diz respeito à criação
de condições favoráveis à reprodução do capital em território nacional é o acolhimento aos
megaeventos Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016 no Pais, os quais, além de envolverem
um gigantesco conjunto de obras de toda natureza (muitas delas inacabadas, inclusive),
pulverizadas pelas cidades diretamente atingidas, trazem, no seu bojo, o explícito objetivo
estatal de promover o pais como ‘destino’ do turismo internacional em escala planetária.
66O desenvolvimento desigual das forças produtivas, que legou ao Brasil uma forte
concentração espacial da atividade produtiva e da força de trabalho, à qual se amalgama às
concentrações urbana, demográfica, das infraestruturas e da renda é o principal motor que
move o desenvolvimento do turismo de massa no pais, tanto associado à hotelaria de rede
internacional e à geografia dos pacotes turísticos construída pelas operadoras turísticas, objeto
de nossa análise, quanto no que tange a outras formas de turismo aparentemente libertas
dessas influências.
67O que queremos dizer com isso é que o “conjunto de formas geograficamente imobilizadas
de capital fixo”, “tão fundamentais ao progresso da acumulação” (Smith, 1988: 176) é ao
mesmo tempo produto e produtor de novas diferenciações espaciais, seja qual for a escala da
análise.
68Assim, o turismo de massa no Brasil, na sua parte que é controlada pelas operadoras
turísticas e, cada vez mais, pela hotelaria de rede internacional, reproduz a desigualdade que
caracteriza o País, da mesma forma que contribui, dialeticamente, para sua reprodução.
Considerações Finais
69Concluímos nossa análise com base em cinco pontos distintos embora interdependentes.
701. A circulação, uma condição essencial para a realização do turismo de massa, é comandada
pelos interesses dos capitais produtivos que atuam no País e, consequentemente, influenciam,
diretamente, a espacialidade dos fluxos turísticos no território. Com isso queremos ressaltar o
fato de que a malha rodoviária brasileira, por exemplo, foi e continua sendo pensada,
prioritariamente, em função da atividade industrial e da atividade agrícola, visando ao
escoamento de mercadorias provindas de ambas. O ‘turismo rodoviário’, que responde por
grande parte dos deslocamentos turísticos no Brasil, desenvolveu-se, assim, no que tange à
circulação, subordinado às lógicas emanadas dessas outras atividades.
712. A hotelaria de rede internacional, que avança pelo território brasileiro, tem sua
espacialidade definida, como não poderia deixar de ser, por fatores econômicos norteados pela
busca incessante de lucratividade. Estar à beira-mar, por exemplo, contém,
consequentemente, apenas indiretamente uma vinculação com a dimensão cultural ocidental
de valorização do mar e da praia. Em verdade, uma conjunção de fatores econômicos
(existência de demanda potencial ou efetiva, mão-de-obra barata, expectativa de lucro, etc.)
é o que define a geografia dessas empresas no Brasil e em qualquer outro lugar do planeta.
723. Os lugares que habituamos chamar de turísticos são aqueles, portanto, em que tais
lógicas, sob o comando de empresas globais ou de pequenos capitalistas que atuam nas
escalas regional e local, se realizam espacialmente. Por isso, revelam em suas paisagens a
presença do turismo como vetor produtor de seus espaços, com maior ou menor veemência.
734. O Estado brasileiro foi e continua sendo protagonista na produção do espaço nacional
com vistas à sua adequação aos interesses do capital. Em se tratando da criação de
infraestruturas para o desenvolvimento do turismo, o grande conjunto de obras viabilizadas
pelo Prodetur-NE, ao longo dos anos 1990 e primeiros anos do século XXI, e, mais
recentemente, o PAC Turismo (Programa de Aceleração do Crescimento do Turismo) são
exemplos desse protagonismo. Embora o discurso do Estado seja o da ‘descentralização do
mercado’ do turismo, o PAC Turismo previu empenhar cerca de 82% do total de R$ 661 milhões
alocados no Programa em cidades já consagradas como destinos do turismo nacional e
internacional, localizadas na porção oriental do território brasileiro, historicamente
concentradora de riqueza e de renda. À cidade de São Paulo, sozinha, foram destinados 39%
desses recursos.
745. Diante do exposto até aqui e no que diz respeito ao direcionamento espacial dos fluxos
de turistas pelo território brasileiro, pode-se afirmar que os turistas ‘domésticos”, mas também
e principalmente, estrangeiros, têm pequeno ou quase nulo protagonismo na definição das
geografias produzidas pelo turismo no País. Tal interpretação da realidade posta não nega os
fatores culturais (como a valorização do sol e da praia) envolvidos com o turismo, mas entende
haver uma subordinação destes às lógicas de reprodução do capital e, ao fim e ao cabo, à
constituição da sociedade burocrática do consumo dirigido, nos termos colocados por Lefebvre
(2008). Portanto, parte expressiva dos indivíduos-turistas não viaja simplesmente para lugares
escolhidos por tocarem suas almas e corações, mas, de forma bem menos romântica que isso,
para onde o capital os deseja levar.
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DOI : 10.1080/09669580308667200
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Marcondes de Moura. São Paulo/SESC/Studio Nobel, 231 p., 1996.
YAMAMOTO, J. « A. Análise dos eventos determinantes no canais de distribuição no turismo:
uma abordagem a partir das agencias de viagem ». Saber Científico, Porto Velho, 1(11), 132-
157, jan/jun 2008.
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Notes
2 Segundo Michael Lowy (1995), a expressão “desenvolvimento desigual e combinado” não aparece
na obra de Trotsky, mas os temas centrais da teoria estavam já esboçados, por exemplo, no seu
livro de 1906, Balanço e perspectivas. Ainda conforme Lowy, a idéia de desenvolvimento desigual e
combinado apenas esboçada no seu livro de 1906, será “sustentada por um estudo mais detalhado
e sistemático do desenvolvimento do capitalismo russo”, no livro intitulado 1905.
3 "O fator mais importante do progresso humano é a seu domínio sobre as forças produtivas.
Qualquer avanço histórico é produzido por um crescimento mais rápido ou lento das forças
produtivas nesse ou naquele segmento da sociedade, devido às diferenças nas condições naturais e
nas conexões históricas. Essas disparidades dão um caráter de expansão ou compressão a toda uma
época histórica e transmitem diferentes proporções de crescimento para diferentes lugares, para
diferentes ramos da economia, para diferentes classes sociais, instituições sociais e campos de
cultura. Esta é a essência da lei do desenvolvimento desigual". Tradução livre. (NOVACK, George.
2005. La ley del desarrollo desigual y combinado en la sociedad. Disponível em
http://es.geocities.com/ciencia_popular/Desarrollo.htm).
4 Publicado originalmente nos Estados Unidos, com o título “Unven Development – nature, capital
and production of space”, por University of Georgia Press, 1984.
5 Segundo Perrota (2009), é a partir da década de 1910 que a cidade do Rio de Janeiro vai se
constituindo em um “destino oficial” de turismo. As primeiras agências de viagem e turismo a atuar
no país, por sua vez, teriam começado a atuar em 1919 em Porto Alegre e em 1936 em São Paulo,
conforme Rejowski (2008).
6 Grifos do autor.
7 Por opções políticas assumidas ao longo do tempo, o Estado brasileiro privilegiou, historicamente,
o investimento no modal rodoviário em detrimento de todos os outros. Apenas nas últimas décadas,
o empenho do Estado no sentido de ampliar e modernizar o transporte aéreo de passageiros fez
reverter as estatísticas relativas ao transporte comercial de passageiros (excluídos os deslocamentos
por automóvel particular), destacando-se o crescimento do modal aeroviário.
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