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REFLEXÃO DO POETA – Canto VII, 84 – 87

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Nem creiais, Ninfas, não, que a fama desse Nem creiais, ninfas, não, que eu dê fama
A quem ao bem comum e do seu Rei A quem, sendo inimigo da lei divina e humana,
Antepuser seu próprio interesse, Antepusesse o seu próprio interesse
Imigo da divina e humana Lei. Ao bem comum, e ao do seu rei (1).
Nenhum ambicioso, que quisesse Não cantarei nenhum ambicioso, que quisesse
Subir a grandes cargos, cantarei, Subir a grandes cargos
Só por poder com torpes exercícios Só por [para] poder, com torpes exercícios (2),
Usar mais largamente de seus vícios; Usar mais largamente dos seus vícios.
(1) «Não creiais, etc.»; não julgueis que eu seja capaz de louvar quem o não mereça.
(2) Ações feias.
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Nenhum que use de seu pode bastante Não louvarei nenhum homem, que use do seu poder bastante
Pera servir a seu desejo feio, [demasiadamente], para servir aos seus feios desejos,
E que, por comprazer ao vulgo errante, E que, por comprazer ao vulgo errante,
Se muda em mais figuras que Proteio (1). Se mude [transforme] em mais figuras do que Próteo;
Nem, Camenas, também cuideis que cante Nem cuideis também, ó Camenas (2) [Musas], que eu cante [louve]
Quem, com hábito honesto e grave, veio, Quem, com hábito [aparência], honesto e grave (3) venha
Por contentar o Rei, no ofício novo, A despir e roubar o pobre povo,
A despir e roubar o pobre povo! Para contentar ao rei, novo no ofício (4).
(1) Proteu recebera de Neptuno o dom de adivinhar; mas (2) Epíteto das Musas, aplicado aqui às ninfas do Tejo, a quem o Poeta está invocando.
quando não queria responder às perguntas transformava- (3) «Hábito, etc.»; literalmente vestuário [hábito externo] sério, de pessoa honesta;
se; com ele se comparam os cortesãos, que, para aparência de gravidade e austeridade.
agradarem aos príncipes, modificam a expressão do rosto (4) «Despir o povo, etc.»; alusão aos validos dos reis novos e inexperientes, mostrando-
ou ocultam o pensamento sob fingida máscara. se muito zelosos pelo poder real, aconselhando-o a exercer tirania sobre o povo.
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Nem quem acha que é justo e que é direito Nem louvarei quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do Rei severamente, O guardar-se a lei do rei severamente,
E não acha que é justo e bom respeito E não acha que é justo e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente; Que se pague o suor da gente servil (1),
Nem quem sempre, com pouco experto peito, Nem cantarei quem, sempre com pouco experto peito (2),
Razões aprende, e cuida que é prudente, Aprende razões,— e cuida que isso é prudente — ,
Pera taxar, com mão rapace e escassa, Para, com mão rapace (3) e escassa (4), taxar (5)
Os trabalhos alheios que não passa. Os trabalhos alheios, que não pass [não sofre] (6).
(1) «Gente servil», os servos, os trabalhadores assalariados.
(2) «Pouco experto peito», fig., espírito pouco experiente.
(3) Rapinante, próprio das aves da rapina.
(4) Mesquinha, avara.
(5) Avaliar.
(6) «Trabalhos alheios»: cfr. a expressão usual « passar trabalhos »; quem não sabe
exercer um ofício, não é competente para avaliar o trabalho desse oficio; quem não
«passou» pelos trabalhos duma viagem tormentosa, não sabe avaliar a aflição que
atormentou quem «passou» por ela.
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Aqueles sós direi, que aventuraram Direi [cantarei, exaltarei] somente (1) aqueles varões que,
Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida, Pelo seu Deus e pelo seu rei, aventuraram [arriscaram] a amada vida (2)
Onde, perdendo-a, em fama a dilataram, Em sítio onde, perdendo-a, a dilataram em fama
Tão bem de suas obras merecida. Tão bem merecida de [pelas] suas obras.
Apolo e as Musas, que me acompanharam, Apolo e as Musas que me acompanharem
Me dobrarão a fúria concedida, Me dobrarão a fúria (3) concedida,
Enquanto eu tomo alento, descansado, Enquanto eu, descansadamente, tomo alento
Por tornar ao trabalho, mais folgado. Por [para] tornar mais folgado ao trabalho (4).
(1) «Sós » no texto ; o adjetivo com função de advérbio: (unicamente)
(2) «Amada vida»; todos amam a vida; os heróis não a arriscam por motivos frívolos, mas
expõem-na para justificada glória, e nesse caso, perdendo-a, ficam vivas as suas
imagens e as suas ações na memória dos homens
(3) Inspiração de entusiasmo.
(4) «Tomo alento, etc.»; adquiro forças para [no canto imediato] continuar o trabalho de
imortalizar os heróis portugueses.

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