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Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior

Prof. do Depto. de Geografia - UFPa.

RESUMO:
O presente trabalho analisa a reestruturação atual do espaço metropolitano de Belém (Pará), tendo em vista os assentam entos
residenciais populares existentes na cham ada Área de Expansão Metropolitana. Considerando o espaço como produto,
condição e meio de reprodução das relações sociais, trabalha-se com a noção de desconcentraçáo, para se mostrar que a
forma urbana com pacta, característica do primeiro m om ento do processo de metropolizaçáo considerado, cede lugar a
uma forma m etropolitana dispersa, que reafirma a primazia da metrópole belenense no contexto da Amazônia Oriental e
que é fruto de processos sócio-espaciais que combinam elem entos da ação (coligações de agentes locais) e da estrutura
(determ inações gerais). Destacam-se, então, os papéis dos agentes produtores do urbano e suas redes de articulação
política como elem entos definidores da atual conform ação do espaço, bem como as territorialidades urbanas, vistas como
condição e meio para a realização das estratégias sócio-espaciais que definem a tensão e a trama de relações sociais que
têm lugar no espaço metropolitano.
PALAVRAS-CHAVE:
assentam entos urbanos, forma m etropolitana, reestruturação, territorialidades, Belém.
RÈSUMÉ:
Ce travaille analise la restructuration actuel de 1'espace métropolitaine de Belém (Pará), en vue des établissem ents residentiels
populaires qui existent dans 1'Aire d' Expantion métropolitaine. En considerant 1'espace com me producto, condition et
moyen de reproduction des rapports sociaux, on travaille avec la notion de déconcentration pour dem ontrer que la forme
urbaine com pacte, caracteristique du prem ier m om ent dans le processus de métropolisation consideré, donne place a une
forme m étropolitaine disperse, que ratifique la primatie de la métropole belenense dans le contexte de la Amazonie Orien­
tal et qui resulte des processus socio-espatiaux qui com binent elem ents de Paction (coligations d' agents locaux) et de la
structure (determ inations generales). A partir de cette com préhension on enfatize les rõles des agents qui produisent 1'
urbain et leurs réseaux d'articulations politiques comme elements qui definent l'actuel conformation espatiale, et egallement,
des territorialités urbaines, vues com m e condition et moyen pour la realisation des estrategies socio-espatiales qui definent
la tension e la tram e de rapports sociaux qui ont lieu dans 1'espace metropolitain.
MOTS CLEF:
établissem ents urbains, forme metropolitain, restructuration, territorialités, Belém.
40 Revista G eousp, n9 4, p.39-52 Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior

Introdução esse padrão de organização do espaço. Evidentemente


que não se trata de uma mera alteração nas formas
Um primeiro contato com a paisagem metro­ de circulação no espaço regional. Quer-se indicar com
politana de Belém já denuncia a existência de um isso um novo momento da dinâmica econômica regi­
outro tempo e de um outro espaço que contrasta com onal, cujo marco são as vias rodoviárias, que passa­
o ritmo da natureza amazônica e com o modo de vida ram a redefinir não só o espaço regional como um
dos povos que habitam a floresta. A cidade parece todo, mas, e principalmente, os espaços urbanos da
olhar para a modernidade, deixando para trás um rit­ Amazônia. No caso de Belém, essa dinâmica marca
mo, um tempo, que mesmo próximo, lhe parece também o seu processo de metropolização.
remoto. Instalam-se ritmos, tempos, relações, movi­ Em princípio, a cidade se expandiu acompa­
mentos, símbolos, representações, enfim, uma nova nhando a orla fluvial, para, em seguida, se interiorizar e
dinâmica que altera não só uma estrutura espacial se continentalizar, definindo as três primeiras fases de
anterior, mas, e principalmente, uma forma de viver seu crescimento: a ribeirinha (da fundação da cidade em
e de se relacionar, dos homens entre si e dos homens 1616 até meados do século XVIII); a de penetração ou
com a natureza, tornada esta residual. interiorização (de meados do século XVIII a meados do
Dede a sua fundação, Belém voltou-se para século XIX); e a de continentalização (de meados do
as águas, como cidade primaz, dinamizada pelo capi­ século XIX em diante) (MOREIRA, 1989, p. 52).
tal comercial, comandando uma extensa rede urba­ Acrescentaríamos a essa periodização de
na dendrítica1 espraiada ao longo dos rios que com­ Moreira, uma outra fase, a de metropolização, que
põem a bacia fluvial amazônica. Historicamente, se inicia ainda na década de sessenta e se consolida
portanto, a cidade sempre apresentou um vínculo nas décadas seguintes, pressupondo a incorporação
muito próximo com o elem ento hídrico, levando de cidades e vilas próximas à Belém, definindo uma
MOREIRA (1989) a denominar de "ribeirinha" sua malha urbana única, ainda que fragmentada. Ela faz
primeira fase de crescimento, a exemplo de várias parte de um momento em que a região amazônica
outras cidades amazônicas surgidas antes do perío­ passa a vivenciar as transformações decorrentes de
do das rodovias. sua efetiva integração econômica ao Nordeste e ao
Essa tendência inicial possibilitou mesmo uma Centro-Sul do País - tendo como um dos marcos des­
organização espacial interna definida pelo papel eco­ se processo a inauguração da Rodovia Belém-Brasília
nômico da cidade, tendo as vias flúvio-marítimas como - e cujas repercussões se traduziram de maneira de­
principais meios de circulação, até a abertura das ro­ cisiva no plano de sua configuração espacial.
dovias na Amazônia, que modificou, sobremaneira, Essa atual fase é marcada por ambigüidades.
De um lado, temos, mais do que nunca, a consolida­
ção de um modo de vida extremamente moderno,
sofisticado e artificializado. De outro, temos o cres­
1 Estamos nos referindo aqui à rede urbana que se estruturou
cimento do baixo terciário, o déficit habitacional, a
ao longo do vale do Amazonas e de seus afluentes, tomando favelização acentuada, a insuficiência dos serviços
a configuração de uma rede urbana simples, de caráter e dos equipamentos urbanos, etc.
dendrítico, à maneira como a define CORRÊA (1989a). Suas É dessa cidade de contrastes que se quer
características principais são: a existência de uma cidade
primaz, que concentra a maior parte dos fluxos comerciais; falar. A forma, aqui mencionada, é a forma espacial
excessivo número de pequenos centros urbanos indife- metropolitana, que se consolidou nas últimas déca­
renciados entre si; ausência de centros intermediários das. E, à maneira de MARX (1983), não é considera­
intersticialmente localizados; drenagem de recursos que da a partir de sua pretensa autonomia, desvinculada
privilegia a cidade primaz.
A ssentam entos urbanos e reestruturação metropolitana: o caso de Belém 41

de seu conteúdo, senão como uma manifestação fe­ só a gradativa alteração de uma outra forma espacial
noménica deste último, com o qual se apresenta urbana - a da cidade ribeirinha - há muito relaciona­
dialeticamente articulada. Ela pressupõe a existên­ da às formas naturais dominantes, a exemplo da
cia de outras formas2, que lhe integram e que estão grandiosidade das vias fluviais. Significa também a
estreitamente relacionadas à natureza da urbaniza­ concomitante desestruturação de relações, de modos
ção brasileira, mas que resguardam suas devidas par­ de vida, de hábitos e de valores, enfim, de conteúdos
ticularidades. sociais marcados por temporalidades específicas.
É im portante assinalar, entretanto, que o Mas como compreender esse processo à luz
processo que conforma a metrópole não é linear. Ele de uma interpretação da realidade que nos permita
é marcado por rupturas, (des)continuidades, (recons­ pensar a metrópole em sua dinâmica interna e em suas
truções e (re)estruturações. Nesse sentido, a atual for­ relações, sendo, concomitantemente, espaço relativo
ma urbana belenense, produto do processo de e relacionai no sentido conceituai que HARVEY (1982)
metropolização, mostra-se prenhe de dinamismo, atribuiu a esses termos3?
posto que acompanha o movimento histórico de seu No caso específico de Belém, a forma com­
conteúdo, que lhe dá vida e sentido e, por isso, está pacta do espaço metropolitano vem sendo substituí­
sujeita a um marcante processo de reestruturação. da por uma forma dispersa de novos assentamentos
Assim, ao analisarmos o processo de metro­ urbanos4, indicando um processo de reestruturação
polização de Belém, tomando como ponto de parti­
da a sua forma espacial - a metrópole -, podemos
definir pelos menos dois momentos distintos que
marcam sua conformação: um relacionado à forma
metropolitana compacta ou confinada e outro, dizen­
do respeito à form a m etropolitana dispersa ou
desconcentrada. 3 O conceito de espaço relacionai e relativo, nos term os
colocados por HARVEY (1982), pressupõe a com preensão
A produção do urbano em Belém e a forma do espaço como elem ento que contém e está contido
num conjunto de relações e que só pode ser entendido a
metropolitana partir da relação que estabelece com os dem ais espaços.
São noções que se contrapõem àquela de espaço abso­
A configuração da forma metropolitana, em luto, que prioriza a geometria espacial.
4 Práticas regularizadas, ou não, do ponto de vista jurídico,
uma cidade amazônica como Belém, representa não explicita ou implicitamente orientadas, que viabilizam o
acesso da população de baixa renda à terra urbana para
fins residenciais. Incluem-se aqui as ocupações urbanas,
freqüentem ente cham adas de "invasões", os conjuntos
habitacionais produzidos sob iniciativa direta do Estado
2 Podemos dizer que existem diversas form as espaciais ou da iniciativa privada e os condom ínios residenciais
urbanas, como a metrópole, os tecnopólos, as com pany populares, de iniciativa de em presas imobiliárias. Muitos
tow ns (cidades das em presas), vilas e povoados; estas desses assentam entos incluem não só as classes popula­
últimas bastante com uns no processo de urbanização res no sentido estrito do term o, com o tam bém frações
am azônico. São elas constituídas por outras form as da classe média em pobrecida, que são obrigadas a morar
espaciais, de que são exemplos os prédios de apartamentos, em habitações de qualidade inferior e/ou em espaços de
os conjuntos residenciais, as unidades industriais, as favelas, localização relativam ente desfavorável. A expressão as­
os distritos industriais, os centros administrativos, os centros sentam entos busca m ostrar que essas práticas m encio­
em presariais e os condom ínios exclusivos. As formas nadas não se colocam de m aneira espontánea, mas indu­
espaciais correspondem, assim, a um objeto ou a um arranjo zidas pela lógica capitalista que preside a localização das
ordenado de objetos num determinado território, conforme classes sociais e de suas frações no espaço metropolitano.
nos mostra SANTOS (1985 e 1988).
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espacial. Em conseqüência, as baixadas5, diferente­ gem, que, nos termos colocados por SOUZA (1994);
mente do que ocorreu num primeiro momento do pro­ acaba por ser uma identidade expressiva do proces­
cesso de metropolizaçâo, perdem a condição de es­ so de metropolizaçâo: a paisagem dos arranha-céus,
paços de assentamentos da população de baixo poder simbolicamente uma barreira física e social no con­
aquisitivo e sofrem um intenso processo de valorização junto do espaço urbano de Belém.
do solo, que, muitas vezes, se reflete na verticalidade Das baixadas, centralmente localizadas, os
do ambiente construído. Nesse sentido, a verticalização espaços de assentamentos de baixa renda passam,
constitui-se em outro elemento da metropolizaçâo, mar­ então, a ser direcionados para novos vetores de expan­
cado por uma complexidade de relações, signos e re­ são, caracterizando um segundo momento do processo
presentações, sendo apenas uma face desse proces­ de metropolizaçâo, que, por sua vez, redesenha a for­
so que configura a forma metropolitana. ma espacial metropolitana belenense.
De fato, a outra face da metropolizaçâo de Os novos espaços de assentamentos urbanos
Belém, que é o crescimento horizontal, pressupõe o pro­ em Belém, configurados principalmente a partir de
cesso de verticalização e tem uma direção bem definida, meados da década de oitenta, passam a estar situados,
oposta ao caminho das águas: os eixos das rodovias, em sua maioria, nos eixos da Rodovia BR-316 (que liga
consolidados a partir da década de sessenta. Belém aos Municípios de Ananindeua, Marituba e
Dessa época para cá foram, aproximadamen­ Benevides, tam bém integrantes da Atual Região
te, um milhão de pessoas que passaram a incremen­ Metropolitana)6e da Rodovia Augusto Montenegro (que
tar a dinámica do espaço urbano de Belém. Num pri­ liga Belém a Icoaraci e a Outeiro, distritos administrati­
meiro momento do processo de metropolizaçâo, vos integrantes do Município de Belém).
grande parte desse contingente se concentrou nas Mais que uma simples expressão espacial do
áreas centrais da metrópole, em espaços sem infra- processo de metropolizaçâo, esse fenômeno de dis­
estrutura e de péssima qualidade ambiental, as cha­ persão reflete também articulações e contradições
madas áreas de baixadas. Mais recentemente, esse estabelecidas no plano local, ainda que delineadas
segmento da população urbana passou a ocupar efe­ por determinações de ordem estrutural que presidem
tivamente a periferia distante, anexando de maneira o processo de urbanização brasileiro. Há uma dialé­
definitiva à malha urbana espaços de outros municí­ tica da relação estrutura (determinações gerais) e
pios até então considerados rurais. Em contraponto, ação (atuação de coligações e redes diretamente rela­
as áreas centrais passaram a definir uma outra paisa­ cionadas a agentes que estabelecem práticas em
nível local), que não pode ser desconsiderada.

6 A Região Metropolitana de Belém (RMB) ou Grande Belém,


segundo a Lei Com plem entar Federal n° 14 de 08/07/73,
5 Essa denom inação decorre das condições topográficas que a instituiu, era constituída pelos Municípios de Belém
originais de certas frações da área urbana de Belém, e Ananindeua. Recentem ente, através da Lei Complemen­
correspondentes ao nível da planície de inundação, cons­ tar Estadual n° 027 de 19/10/95, foram incluídos mais
tantem ente alagadas ou sujeitas a inundações durante três Municípios, o de Benevides, o de Santa Bárbara (Mu­
determ inadas épocas do ano e que chegavam a com por nicípio criado a partir do território de Benevides pela Lei
cerca de 40% do sítio urbano original, correspondente n° 5.693 de 13/12/91) e Marituba. Este último, inicial­
hoje à área mais adensada do espaço urbano (TRINDADE m ente constituído de um núcleo urbano que integrava os
JR., 1997). Um atributo desses espaços é que eles passa­ Municípios de Ananindeua e Benevides, em 1995, foi trans­
ram a desfrutar, no contexto metropolitano, de uma loca­ form ado em Município (Lei n° 5.857 de 22/09/94), ofi­
lização privilegiada, relativam ente próxima ao núcleo cen­ cialmente constituído com a posse de seu primeiro Pre­
tral da metrópole. feito, em janeiro de 1997.
A ssentam entos urbanos e reestruturação m etropolitana: o caso de Belém 43

Messa perspectiva, configuram-se estratégi­ b) configuração de novas unidades político-adminis­


as diferenciadas de apropriação em relação à terra trativas nos vetores recentes de expansão, a partir
urbana e às redes de articulação locais de agentes da emergência de movimentos políticos setorizados,
produtores do urbano, que passam a revelar relações a exemplo do que aconteceu com Marituba, que
de poder mediadas pelo espaço, definindo o que constitui hoje o mais novo Município da ARMB;
estamos chamando aqui de territorialidades urbanas. c) conflitos políticos e econômicos que giram em tor­
No plano metropolitano, a reestruturação ur­ no da apropriação da terra urbana nesses espaços;
bana é marcante. As áreas mais centrais, inclusive d) enfraquecim ento das ações políticas e/ou
as baixadas, que já foram espaços de assentamen­ descenso de setores dos Movimentos Populares Ur­
tos para a população de baixa renda, são redefinidas banos (MPU's) face às estratégias político-espaciais
em função dos interesses de agentes privados (em­ do poder público local.
presas imobiliárias) que passam a produzir habita­ O elemento explicativo fundamental face a
ção para uma dem anda solvável da população de essa questão diz respeito às implicações espaciais
Belém. Por outro lado, definem-se novos espaços de desse processo, ou seja, ao redirecionamento dos
assentamentos, culminando com o processo de des- assentamentos urbanos no espaço metropolitano e
concentração7 responsável pela relocalização no ur­ o novo design espacial dele decorrente, como tam­
bano das camadas sociais de baixa renda. bém à sua importância, enquanto meio e condição,
A análise aqui apresentada, entretanto, não para a conformação das novas estratégias de apro­
se resume à simples demonstração dessa nova mor­ priação diferenciada do espaço metropolitano pelos
fología espacial. Sustentamos a idéia de que o pa­ agentes urbanos com atuação local.
drão disperso dos assentam entos, existente atual­
mente, não só resulta da trama estabelecida entre A metropolização de Belém face ao processo de
os agentes produtores do urbano em Belém e das urbanização da Amazônia
redes de articulações por eles configuradas, como
também ratifica a correlação de forças que se estabe­ O processo de metropolização de Belém só
lece entre os mesmos; correlação de forças esta que pode ser compreendido a partir do entendimento da
se expressa de diversas maneiras: produção do espaço regional amazônico como fron­
a) definição de novas escalas de atuação e de teira econômica do capital no espaço brasileiro. O
operação8do capital imobiliário e de suas frações; destaque e a importância do urbano para a estrutu­
ração do espaço regional nos levam a considerar, con­
forme faz Becker (1990), a existência de uma fron­
teira urbana como parte dessa dinámica imposta à
Amazônia nas últimas décadas.
7 Estamos considerando como desconcentração o cresci­ Nesse contexto, particular importância assu­
m ento da população e das atividades econôm icas rela­ me a urbanização concentrada, definindo, igualmen­
tivamente superior em áreas situadas fora dos tradicionais te, o processo de metropolização de Belém, na Ama­
centros de concentração populacional. A população é tida
aqui com o ponto de partida para se entender esse pro­ zônia Oriental. Ao contrário do que se poderia pen­
cesso, não se constituindo, entretanto, o único elem ento sar a priori, a urbanização concentrada não perde
definidor da desconcentração.
8 Como escala espacial de atuação estam os considerando importância no momento atual, face à expansão da
as áreas onde se localizam as obras e estoques de terrenos fronteira econômica verificada no interior da região.
das imobiliárias e, com o escala espacial de operação, o Isto acontece a despeito do maior dinamismo, con­
núm ero de construções sim ultáneas que uma em presa
imobiliária é capaz de gerir (ALMEIDA, 1982). ferido por essa expansão a determinados espaços
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fora da órbita metropolitana, que foram estimulados Por outro lado, essa mesma dispersão é condição que
a crescer económica e demográficamente. ratifica a concentração populacional na região urbana
Destarte, o processo de desmetropolização - de Belém. Nesse sentido, dispersão e concentração são
decorrente de m enores taxas de crescimento dos pares dialéticos dos processos sócio-espaciais que con­
centros metropolitanos em relação a outros núcleos formam a desconcentração metropolitana. Ademais,
urbanos da mesma região -, tão discutido atualmen­ concentração não é necessariamente sinônimo de
te para o espaço brasileiro, não se aplica para a re­ mancha urbana única, mas é também intensidade de
gião na qual se insere o espaço metropolitano de fluxos entre espaços relativamente próximos. Tais atri­
Belém. Trata-se muito mais de um desdobramento butos parecem expressar muito bem o papel do espa­
do processo de metropolização - marcado por (rees­ ço metropolitano de Belém no contexto regional, ain­
truturações, rupturas, alterações -, e que não convi­ da como primado metropolitano.
ve, pelo m enos por enquanto, com aquele outro Entretanto, não é só no plano regional que
processo mencionado. Assim sendo, o espaço metro­ se verificam os atributos da desconcentração. Um
politano de Belém desem penha papel que não dei­ outro ângulo desse processo pode ser captado na
xa de ser importante para a atual dinâmica do espa­ estruturação intra-urbana ou na análise da economia
ço regional, ainda que esse papel tenha tudo a ver política da cidade, nos termos colocados por SAN­
com o processo de empobrecimento e de expropria- TOS (1994b). Nesse caso, o primado metropolitano
ção da força de trabalho regional, culminando com pressupõe igualmente a primazia das áreas centrais
aquilo que poderíamos chamar de uma verdadeira no processo de apropriação do espaço urbano. Para
"metropolização da pobreza" a concentração do capital - e nesse caso estamos
Essa economia política da urbanização (SAN­ falando principalmente do capital imobiliário - a exis­
TOS, 1994) presente no espaço regional amazônico tência da forma dispersa e da metrópole desconcen­
vai caracterizar, por conseguinte, a forma metropoli­ trada é uma condição e um meio necessário.
tana belenense. Esta última se define pela existên­ Para esse tipo de capital, a produção de loca­
cia ainda do primado metropolitano no contexto re­ lizações diversificadas é um fator decisivo para a fixa­
gional e pela primazia do núcleo metropolitano, res­ ção dos preços e para condições diferenciadas de co­
ponsável por conformar a dispersão metropolitana. mercialização da moradia. Por ser a construção habi­
Na interpretação desse fenômeno, chamamos de tacional uma produção de bens im óveis, a terra tem
desconcentração o processo responsável pela con­ um papel particular no decorrer do processo, posto
formação atual da metrópole, fruto de uma dinâmi­ que a cada novo ciclo produtivo é necessário novo
ca que considera o espaço como uma força neces­ solo. A existência de demandas diferentes definidas,
sária à sua realização. por um lado, pelas condições específicas de valoriza­
A desconcentração pode ser analisada, assim, ção dos capitais e, por outro, pela importância dife­
sob dois ângulos. Um deles se coloca no plano regio­ rente da localização para cada um deles, proporcio­
nal. A dinâmica amazônica não prescinde da urba­ na uma tendência a se constituir uma hierarquia de
nização concentrada e do processo de metropolização. mercados fundiários em função dos produtos finais
Isso pressupõe considerar, portanto, que o espaço e, em conseqüência, uma hierarquização do uso do
metropolitano se desenvolve não só através de um solo urbano (RIBEIRO, 1997, p.72-3). Esse processo
maior adensamento e verticalização, mas também se é responsável pela reestruturação do espaço e por
estendendo e se expandido, configurando, portanto, fazer deste uma força produtiva face às relações que
a forma dispersa. Aqui os limites administrativos têm dinamizam o urbano.
pouco a ver com a dinâmica sócio-espacial verificada.
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No caso belenense, a apropriação das áreas As áreas de baixadas, nas décadas de ses­
centrais no processo de produção de imóveis para a senta, setenta e início da década de oitenta, foram
dem anda solvável pressupõe um "alisamento" ou importantes focos políticos e de tensões em relação
"arrasamento" dos espaços da Área Central, inclusi­ à apropriação da terra urbana. Isso acontecia porque
ve das áreas de baixadas, conhecidas por serem es­ a fronteira urbano-imobiliária era interna, e não ex­
paços de reprodução de camadas de baixa renda. terna aos limites da malha urbana. Nesse momento,
Pressupõe, também, a criação de uma fronteira urba- as baixadas eram espaços de uso não tão intensivo,
no-imobiliária - de expansão do capital imobiliário - ainda que devidamente apropriadas razão pela qual
na chamada Área de Expansão, que tem possibilita­ foram ocupadas essas áreas por camadas sociais de
do a dispersão metropolitana e o rearranjo interno do baixa renda, tornando-se, em decorrência disso,
espaço, tendo em vista a apropriação diferenciada por verdadeiros focos de tensões e de conflitos. A inten­
agentes hierarquicamente diferentes. Neste plano, a sidade desse processo foi responsável também por
dispersão e a concentração formam também um par definir um primeiro momento da metropolização de
dialético para a realização dos processos sócio-espa- Belém, cuja característica principal foi o adensamen­
ciais no ámbito metropolitano. Na busca dessa com­ to das áreas centrais, responsável, igualmente, por
preensão adentramos na discussão da dinâmica me­ constituir a forma compacta ou confinada da metró­
tropolitana belenense, tomando como ponto de par­ pole belenense.
tida sua forma espacial: a cidade dispersa. Não é essa hoje a característica marcante
desse mesmo espaço metropolitano. A metrópole
A reestruturação metropolitana e a configuração hoje toma uma forma dispersa, e o foco político das
de novas territorrialidades áreas de baixadas se relativiza. Se antes estas áreas
tinham o papel principal de serem espaços de repro­
O que parece estar no centro dessa questão dução das camadas sociais de menor poder aquisiti­
- que é o processo de (re)estruturação da metrópole vo, hoje, o que se vê é uma gradativa alteração das
- é principalmente a questão da expropriação, pois mesmas no contexto da divisão social do espaço
reestruturação significa estruturar de novo, levándo­ urbano. As baixadas continuam evidentemente, e em
nos a considerar a instabilidade, as alterações, en­ grande parte, a desempenhar esse papel. Mas este
fim, a dinâmica sócio-espacial. Essa dinámica não perde importância, em term os relativos, para os
deve ser vista sem contradições, sem tensões e novos espaços que vão aparecendo como fronteira
descompassos, pois são estes elementos que impri­ urbano-imobiliária, daí o foco político e as tensões
mem o movimento em suas múltiplas temporalidades também parecem se deslocar para esses novos es­
(LENCIONI, 1997). paços de assentamentos.
É um processo, portanto, que sugere a com­ As estratégias em torno das apropriações
preensão da relação todo-parte como unidade diferenciadas do espaço urbano, pressupõem, por­
dialética, que concebe a existência de uma totalida­ tanto, considerar essas alterações intra-urbanas. Na
de aberta e em movimento, na qual as partes não correlação de forças estabelecida entre os agentes,
são meras composições do todo, mas sim totalida­ o que está em jogo parece ser o controle dessas lo­
des parciais, igualmente abertas, que se relacionam calizações socialmente produzidas. Em determinadas
entre si (LEFEBVRE, 1955). A reestruturação metro­ circunstâncias algumas ações não se mostram pers­
politana de Belém guarda esse movimento dialético, picazes quanto à importância dessa estratégia sócio-
senão vejamos. espacial, ou mesmo se colocam impotentes face a
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outras ações estrategicamente mais eficazes e me­ Essa tendência não parece tão forte. Após a
lhor organizadas em redes de articulação política. corrida das empresas na produção de condomínios
Convém salientar que essa forma dispersa fechados, começam a surgir os primeiros resultados
da metrópole não é definida simplesmente pela ação negativos desse tipo de empreendimento. E isso se
de agentes locais. Sua gênese tem um significado dá por fatores diversos, que incluem as condições
mais amplo, que tem a ver com o esquema de repro­ de urbanização da fronteira urbano-imobiliária em
dução social capitalista, que por sua vez pressupõe Belém, como também as condições de empobreci­
a existência da metrópole como condição à realiza­ mento da população metropolitana, que apresenta
ção do padrão urbano-industrial, responsável por uma qualidade de vida dificilmente Oomparada a da­
fazer do espaço uma força produtiva importante para quelas metrópoles que vêm desenvolvendo esse
o processo de reprodução do capital no território bra­ padrão de segregação sócio-espacial contemporâneo.
sileiro. As ações locais são responsáveis por ratificar, A produção desses condom ínios surgiu
redefinir ou, quem sabe, por recriar e subverter esse como uma alternativa de superação da crise do se­
espaço concebido. tor imobiliário expressa em nível nacional e local.
Conforme pudemos verificar para o caso be- Buscou-se então produzir, ao invés da moradia pro­
lenense, mais que criar setores seletivos fora da Área priamente dita, principalmente as condições de infra-
Central - setores esses que definem em muito a ge­ estrutura em espaços segregados, os condomínios
ografia de determinadas metrópoles brasileiras - , há exclusivos, onde a mercadoria comercializada são os
um reforço ao padrão de auto-segregação das clas­ lotes devidamente equipados e sua administração
ses de melhor poder aquisitivo, que não prescinde condominial fica muitas vezes a cargo da própria fir­
das localizações existentes na Área Central da metró­ ma empreendedora. O difícil, entretanto, tem sido
pole, ainda que a afirmação de setores seletivos na convencer, mesmo diante dos apelos para a "fuga da
fronteira urbano-imobiliário, a exemplo de outras cidade" e da paradoxal "busca da natureza" a op­
áreas metropolitanas, já se faça presente. ção por esse tipo de moradia, quando o ritmo de pro­
A implicação clara desse arranjo interno da dução da infra-estrutura nesses vetores de expansão
metrópole é, mais do que nunca, direcionar os assen­ urbana é ainda muito lento e de cunho bastante pre­
tamentos residenciais populares das áreas de baixa­ cário, e quando o fator segregação é apenas aparen­
das para o subúrbio. Num primeiro momento, foi mar­ te. Se, na Área Central, as baixadas chegavam a con­
cante a relocalização de populações das baixadas em tornar os setores residenciais mais seletos próximos
direção a esses vetores da expansão urbana; hoje ao núcleo central, na Área de Expansão esses seto­
esses novos espaços de assentamentos já se colocam res sociais de status diferentes chegam mesmo a con­
mesmo como verdadeiros anteparos às migrações viver lado a lado, levando a acreditar que esse tipo
populacionais em direção às áreas de baixadas. de segregação não passa de simples retórica.
Uma questão que surge hoje é a de saber se, riesse sentido, o que parece ser a tendência
a partir do que está colocado para a estrutura do es­ mais provável é o reforço do padrão já manifesto,
paço metropolitano, a tendência seria então a me­ que prioriza a Área Central, acompanhando projetos
trópole tomar os mesmos rumos de setorização das de macro e microdrenagem nas áreas de baixadas,
classes de melhor poder aquisitivo em condomínios que tendem a valorizar gradativamente os seus ter­
fechados horizontais, assimilando uma vida cotidia­ renos, a exemplo do que se verificou em relação a
na de espaços de moradia muito similar a de outras outras experiências anteriores.
metrópoles brasileiras e de outros países e, com isso, Acompanhando esse processo, a tendência
impulsionando um novo arranjo intra-urbano. é a de consolidação da cidade dispersa, sendo esta
A ssentam entos urbanos e reestruturação metropolitana: o caso de Belém 47

a dimensão espacial do processo de reprodução do rentes. A existência dessas territorialidades definem


capital com reafirmação das divisões de mercados o espaço como condição e meio de reprodução das
e com escalas de atuação diferenciadas, sendo que relações sociais.
as empresas de menor força de ação tendem a con­ No caso de Belém, constatamos dois tipos
tinuar na dependência direta dos programas de finan­ de territorialidades: as chamadas territorialidades não
ciamento do Sistema Financeiro de Habitação na Área formais ou subjetivas e as territorialidades formal­
de Expansão, em especial na direção do Município mente constituídas. Tais territorialidades não só con­
de Ananindeua e do distrito de Icoaraci, sob pena formam a cidade dispersa como também a ela se
de não confirmarem sua permanência no mercado. ajustam e a assimilam, confundindo-se com o seu
Contrariamente, através do programa de lotes urba­ conteúdo. A dialética forma - conteúdo aí se faz pre­
nizados, ação prioritária da COHAB-PA (Companhia sente. Não há, por isso, uma separação mecânica
de Habitação do Pará) hoje, e do processo ainda cres­ entre essas duas dimensões da metrópole. Esta se­
cente de ocupações urbanas, confirme-se a tendên­ paração só existe no sentido de facilitar a sua apre­
cia de maior adensamento urbano dos Municípios de ensão; ainda que a visibilidade da primeira seja muito
Marituba, Benevides e também do distrito de Icoaraci, mais flagrante que a da segunda, isso não nos auto­
como de fato já vem acontecendo. riza, entretanto, a tratar aquela como simples aparên­
cia. A forma nos dá acesso ao conteúdo, sendo con-
Como então se garante a manutenção dessa comitantemente sua exteriorização e sua manifesta­
forma metropolitana e de seu conteúdo? ção fenoménica. Esse tipo de interpretação da for­
ma espacial nos permite considerar as territoriali­
As diretrizes do processo de (re)estruturação dades como condição e meio de sua existência.
metropolitana são definidas pelos agentes hegemô­ Dentre as territorialidades não formais pode­
nicos da produção social do espaço, também con­ mos destacar, inicialmente, aquelas das empresas
correm para essa conformação os demais agentes imobiliárias, que não podem ser analisadas apenas
locais, que estabelecem correlações de forças e re­ do ponto de vista da divisão de mercados. O espaço
des de ação com vistas à apropriação e ao controle entra como condição necessária a essa divisão; daí
do espaço. Isto é facilitado pela transformação do falarmos da existência de territorialidades diferentes
espaço social em espaço abstrato, ou seja, do espa­ de acordo com o porte das empresas. O incremento
ço precipuamente valor de uso em espaço mercado­ da produção imobiliária na Área de Expansão, confor­
ria. Para isso, a cidade é vendida em pedaços, como mando uma territorialidade residual para empresas
fragmentos de um imenso mosaico; sendo esta frag­ de menor porte, é, assim, uma condição à realiza­
mentação uma forma de viabilizar a sua transforma­ ção do capital imobiliário na Área Central, definin­
ção em mercadoria. Numa palavra, o valor de troca do, em conseqüência, a territorialidade das empre­
se sobrepõe historicamente ao valor de uso; sendo sas mais bem estruturadas no mercado imobiliário
que, para usufruir de determinados atributos do lu­ de Belém. Esta é uma condição para a concentração
gar, necessário se faz que o mesmo se realize, antes do capital imobiliário no espaço metropolitano.
de tudo, como valor de troca. É nesse sentido que As redes de relações políticas configuradas
os processos de valorização do espaço pressupõem pelos agentes produtores dessa forma metropolita­
a mercantilização dos lugares (SEABRA, 1987, p.278) na redefinem também as territorialidades das orga­
Isso facilita imensamente a configuração de nizações populares que fazem parte das articulações
territorialidades diversas, através das quais a merca­ políticas em jogo. Não se trata evidentemente do
doria espaço e o uso político do território são recor­ mesmo tipo de territorialidade observado para as
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empresas do mercado imobiliário, ainda que, como do indivíduo com relação ao lugar e à sua inserção
aquelas, também sejam não formais ou subjetivas. no processo de metropolização, em detrimento da
Todavia, suas espacialidades pressupõem raios de ação consciência territorial; esta entendida como consciên­
e de controle, em que está presente o potencial políti­ cia em relação ao lugar e à sociabilidade do indivíduo,
co do espaço, como viabllizador de ações que mani­ de modo a permitir uma percepção mais nítida possí­
festam interesses na correlação de forças entre os agen­ vel a respeito das vivências individuais e coletivas
tes, tal como acontece com as principais entidades (MESQUITA, 1995, p. 89) no contexto metropolitano.
representativas dos movimentos de bairro. Se a forma Com isso, as territorialidades deixam de ser
metropolitana compacta definia uma ação mais expres­ simples aderências à forma metropolitana dispersa, para
siva de uma dada organização nas áreas de baixadas, tomarem-se, principalmente, condições essenciais à sua
a forma dispersa não só provoca o surgimento de no­ existência, sejam elas formalmente constituídas ou não.
vas organizações com definições políticas diferencia­
das, como também estabelece outras territorialidades, Considerações Finais
principalmente na Área de Expansão.
Por fim, cabe mencionar o uso político do As alterações verificadas no interior do es­
território e sua sintonia com o padrão metropolitano paço metropolitano acompanham o movimento da
disperso em relação às territorialidades formais. Es­ metrópole que internamente redefine espacialidades
tas são expressivas principalmente no que diz res­ e territorialidades. Tais alterações pressupõem uma
peito á institucionalização da instância municipal. A série de expropriações e perdas para o homem ama­
gênese de movimentos de emancipação existentes zônico que habita a metrópole. Primeiramente, tra-
no espaço metropolitano está diretamente relaciona­ ta-se de uma expropriação em relação aos meios e
da com a idéia de abandono e de exclusão da popu­ recursos de sua subsistência, no interior da Amazô­
lação suburbana que tem incrementado os novos nia ou mesmo do nordeste, de onde procede uma
espaços de assentamentos residenciais na Área de parte considerável da população urbana amazônica.
Expansão. A identidade criada por essa condição de Tem-se, também, a expropriação do lugar em
abandono e exclusão, que dá origem aos movimen­ que vive esse homem no interior da metrópole, já
tos, é também capturada por interesses políticos que as baixadas constituíram-se em locais de repro­
locais que propagam, a partir da institucionalização dução social dessa população que incrementou o
da instância municipal ou de sua redefinição, possí­ espaço metropolitano belenense nas últimas déca­
veis ganhos, que seriam, no discurso político, gan­ das. Quando ainda morador destas, sente uma de
hos coletivos. É um tipo de prática que conduz ações suas principais perdas que é exatamente a do rio que
ratificadoras da existência da metrópole dispersa, no muitas vezes "comandou sua vida", já que nas mar­
momento em que dependem da existência e das gens dos igarapés que cortam a cidade ele não pode
condições infra-estruturais dos assentam entos mais usufruir desse recurso hídrico, seja para a sua
residenciais que conformam a desconcentração. alimentação, seja como via de circulação, ou mes­
fiesse processo, desloca-se a questão prin­ mo como espaço de lazer.
cipal, qual seja a da gestão democrática do espaço Das baixadas ao subúrbio, os "banidos da
urbano, para um nível de discussão em que está em cidade" como muito bem os definiu RODRIGUES
jogo a definição de territorialidades formais que (1988), sofrem outras subtrações: das identidades
possam garantir, em primeiro plano, a realização de criadas como moradores das baixadas, das represen­
interesses particulares. Priorizam-se, assim, o simples tações que fazem de seu espaço e de sua cultura,
uso político do território e a conseqüente alienação de sua organização política e também de sua socia­
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bilidade conquistada nas práticas cotidianas de seu da possibilidade de construir na sua consciência a
espaço vivido. cidade, objeto de sua experiência cotidiana, como
O deslocar no interior da metrópole em es­ totalidade. Isso acontece porque não são poucas as
paços diferentes, mas com ambiências similares, manifestações que estimulam a alienação do indiví­
expressa, na maioria das vezes, a busca de cidada­ duo como sujeito político, face ao processo de
nia, que, por sua vez, tem uma antítese: a exclusão reestruturação metropolitana. Essas manifestações
e a expropriação. No subúrbio, acrescenta-se mais têm no uso político do território um importante recurso
uma perda, que nos parece mais contundente, jus­ de convencimento eleitoral e de "desconstrução da
tamente por reunir um conjunto delas: a perda da cidade" no sentido de que o trabalho social aparece
própria cidade. Esta é estrategicamente vendida em como desrealização do trabalhador, sua objetivação
pedaços, num ato deliberado de sujeição à proprie­ como perda e servidão do objeto, e sua apropriação,
dade privada da terra; ato este que tem como pres­ como alienação (MARX, 1993, p. 159). A cidade, que
supostos a desterritorialização e a reterritorialização se fragmenta através das práticas espaciais e das re­
do morador. Num outro plano, representa mesmo a presentações que são feitas em relação a ela, não mais
negação do "direito à cidade" à maneira como o existe, senão como resíduo que o morador-usador-
definiu LEFEBVRE (1991). cidadão busca recuperar, quando rejeita os rótulos de
Se as baixadas se constituem, em grande simples habitante-usuário-consumidor.
parte, como espaços "sem cidadãos" as novas ocu­ É essa forma urbana que se impõe, trazen­
pações "espontâneas" por exemplo, surgidas em do consigo um modo de vida e uma nova urbanida­
vetores recentes da expansão metropolitana, são de, que pressupõem a existência da cidade disper­
espaços verdadeiramente vazios de cidadania, uma sa, repleta de contradições e que comportam práti­
vez que, além das questões infra-estruturais, que se cas e representações necessárias à sua existência.
assemelham bastante às baixadas centralmente lo­ Há como que uma tendência à supremacia do mun­
calizadas, possuem o agravante da distância em re­ do das formas enquanto representações traduzindo-
lação ao centro metropolitano e aos serviços e equi­ se na abertura de novos horizontes, que cria possi­
pamentos que este oferece, principalmente por ser bilidades para a existência de espaços abstratos,
alvo principal de alocação dos recursos e dos inves­ espaços mercadorias (CAMPOS JR, 1993, p. 200). A
timentos públicos (TRINDADE Jr, 1994). metropolização de Belém assume esse caráter.
Isso acontece porque cada indivíduo tem sua A emergência de um padrão de assentamen­
condição de cidadania também relacionada ao lugar tos, disperso e relativamente extenso, revela duas
onde está situado. A sua importância como produ­ faces de um mesmo processo, que envolve a produ­
tor, consumidor, cidadão depende, também, de sua ção imobiliária: uma ocupação urbana rarefeita e
localização no contexto espacial: "a possibilidade de areolar de espaços novos e a ocupação urbana
ser mais ou menos cidadão depende, em larga pro­ adensada, resultado da constituição tanto de espaço
porção, do ponto do território onde se está. Enquanto novos em áreas já urbanas, como também da recria­
um lugar vem a ser condição de sua pobreza um ção adicional de espaços, expressos na verticalização
outro lugar poderia, no mesmo momento histórico, (PEREIRA, 1987, p. 01). A necessidade de instaurar a
facilitar o acesso àqueles bens e serviços que lhes verticalidade das habitações permitindo, assim, a re­
são teoricamente devidos, mas que, de fato, lhe fal­ produção do capital imobiliário, cria também a neces­
tam" (SANTOS, 1987, p.81). sidade de expandir a fronteira urbano-imobiliária.
A essa perda, que é a da própria cidade, Para isso, os agentes imobiliários privados
acrescenta-se uma outra, representada pela negação fazem da verticalidade não só um elemento definidor
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de um estilo de morar e de viver na cidade. Nesse de simulações. Isso acontece quando a forma me­
propósito, as formas arquitetônicas arrojadas e a tropolitana faz a vida urbana "virar as costas para o
suntuosidade dos edifícios se encarregam de simu­ rio" "engolir os cursos naturais" abundantes no inte­
lar ambientes deslocados da Belém empobrecida - rior da cidade, "aniquilar o verde" e outras amenida­
que apresenta, em termos relativos, não só o maior des, para depois recriá-los. Belém, na imensidão de
número de ocupações urbanas, como também de sua malha metropolitana, vem perdendo, em termos
mutuários inadimplentes em relação ao financiamen­ relativos, seu verde para o concreto e para a valoriza­
to habitacional - sinônimo de urbanização concen­ ção do metro quadrado de cada fração de seu espa­
trada verificada na região amazônica nas últimas ço, por onde se proliferam os simulacros da "cidade
décadas como também conseguem criar nela uma ribeirinha" e da "cidade das mangueiras" num jogo
identidade da própria metrópole, que cresce e se de forma-conteúdo, significante-significado.
moderniza. São signos que se instalam e que se A representação da metrópole comporta idéi­
mostram estreitamente ajustados e vinculados à for­ as paradoxais como a de abertura de "janelas para
ma espacial metropolitana. É a importância das ima­ os rios", a de "recuperação do verde" em condomí­
gens como mercadorias, conforme sustenta Harvey, nios fechados ou mesmo a de fazer da orla de uma
imagens estas que podem ou não ter relação com o vala - que antes era um igarapé, onde os barcos
produto a ser vendido (HARVEY, 1992, p. 259). ancoravam trazendo produtos do interior da região
Sob o argumento da segurança, por exemplo, - um dos lugares privilegiados e um dos principais
cria-se a necessidade suprema de se habitar aparta­ pontos de encontro e de entretenimento no contex­
mentos, registro de um modo de vida de camadas to da metrópole.
médias da sociedade e que passa a ser extensivo às Nesse conjunto de práticas e representa­
classes populares. Programadas por esse novo estilo ções, está o sentido que buscamos dar à reestrutu­
de vida, e resguardadas pela "segurança" de morar em ração. Não se trata simplesmente de uma transfor­
condomínios, estas últimas não se objetam a viver em mação da forma, mas do urbano nas suas múltiplas
apartamentos exíguos, com prestações exorbitantes dimensões e na pluralidade de relações que o indi­
para o seu nível de vida, situados em bairros dormi­ víduo estabelece na e com a cidade. Ainda que tenha­
tórios, que reforçam sobremaneira o padrão disper­ mos privilegiado nas nossa discussão algumas des­
so dos novos assentamentos residenciais. sas dimensões e relações, outras, entretanto, preci­
Essa nova disposição da estrutura urbana só sam ser devidamente interpretadas, seja no plano das
contribui para a redefinição das territorialidades do coações, seja no plano dos resíduos que a vida me­
morar e de seus agentes promotores, uma vez que tropolitana proporciona. Isso porque, conforme nos
as baixadas, antes espaços da pobreza, vêm, grada- fala CERTEAU, "escapando às totalizações imaginá­
tivamente, sofrendo uma metamorfose na sua paisa­ rias do olhar, existe uma estranheza do cotidiano que
gem, onde os projetos de saneam ento arrasam a não vem à superfície, ou cuja superfície é somente
paisagem anterior para que sejam satisfeitos interes­ um limite avançado, um limite que se destaca sobre
ses de valorização do capital imobiliário. o visível" (1994, p. 172).
Num outro plano, a metropolização signifi­ Na urbanização contemporânea, essas prá­
ca também expropriação e perdas em relação ao ticas, mais do que nunca, devem ser visualizadas e
próprio urbano, concebido na sua multiplicidade de analisadas, nos possibilitando, com isso, outras lei­
temporalidades. É a hegemonia de uma temporali- turas geográficas da cidade, pois o urbano além de
dade que implica em subtrações diversas, ao mes­ simultaneidade é também encontro. E nos dias atu­
mo tempo em que são recriadas as perdas através ais essa premissa ganha muito mais importância.
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Obs.: Este artigo sintetiza os principais pontos de discussão em B elém e a reestruturação m e tro p o lita n a ", defendida
da tese de doutoram ento em Geografia Humana intitulada em fevereiro de 1998 na FFLCH/USP -, sob orientação da
"A cidad e dispersa: o s n ov os espaços de assentam entos Profa Dr3 Sandra Lencioni.

Endereço do Autor: TV. Antônio Baena, n° 915, apto. 303 - Marco - Belém-Pará - CEP 66.090-040 - Tel/Fax:
(091)246-4401 - E-mail: stclair@ufpa.br

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