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A família romana

O termo familia está etimologicamente relacionado com famulus, que significa ‘escravo’, e
legalmente designava a parte do agregado familiar (mulher, filhos e escravos) que estavam
sob a patria potestas, ‘poder/ autoridade paternal’ do paterfamilias, que sobre eles tinha
ius uitae necisque, «direito de vida e de morte» e controlava todos os bens até à morte. O
termo família aplicava-se mais aos escravos e aos descendentes que partilhavam um
nomen.

Propósito do casamento e divórcio


O casamento romano celebrava-se liberorum quaerendorum gratia, «para obter filhos». O
primeiro romano que, segundo Aulo Gélio (séc. II d.C.), obteve divórcio foi Espúrio Carvílio
Ruga (séc. III a.C.), que alegou a esterilidade da mulher e a traição do juramento que fizera
diante do pretor. A tábua IV da Lei das XII Tábuas já previa o repúdio da mulher por parte
do marido.

Maior autonomia da mulher


Importa, contudo, ter presente que a mulher podia trazer dote para o casamento (uxor
dotata) e, por conseguinte, contrair um casamento sine manu, isto é, em que continuava
submetida à patria potestas ‘autoridade, poder paternal’ do pai, ou, pelo contrário, podia
casar sem dote e sujeitar-se a um casamento cum manu, isto é, ficar sob a autoridade do
marido.
Com as Guerras Púnicas (264-146 a.C.), com o que representaram em termos de perdas de
vidas humanas e, em particular, de homens e em quantidade de despojos trazidos para
Roma:

 Aumentou o número das dotatae que tinha maior acesso a:


o Casamentos sine manu;
o À educação;
o À riqueza;
o À facilitação do divórcio;

Decisão do nascimento e da exposição


Quando se tratava do nascimento de uma criança ou do aborto, a decisão dependia em
primeiro lugar da mulher que não estava sujeita a constrangimentos legais ou religiosos. O
paterfamilias decidia se o bebé devia viver, se era para criar, para vender ou para expor.
O latim não tinha termo para ‘bebé’, e o plural pueri, como o grego paides, tanto era usado
para designar os escravos como os rapazes livres. As principais fontes de escravos eram a
exposição de recém-nascidos, a pirataria, as dívidas e os filhos de mulheres escravas
(uernae).
Condicionantes da decisão do paterfamilias relativamente ao recém-nascido:

 A favor:
o Continuidade do clã (em contextos religiosos, políticos e sociais favoráveis);
o Segurança na velhice dos pais das famílias mais pobres;
 Contra:
o Riscos para as mulheres associados ao aborto;
o Risco elevado de morte prematura (25% a 30% no 1º ano de vida; 50% nos
primeiros 10 anos de vida; só metade chegava à idade adulta);
o Necessidade de dote para o casamento das filhas;
o Prática comum de adoções de jovens e adultos;
o Filhos como limitações à liberdade dos pais;
o Falta de meios das famílias pobres para cuidar dos filhos;

Fronteira entre liberdade e escravatura


A linha entre a liberdade e a escravatura é muito ténue, uma vez que era muito comum
expor filhos, mesmo que nascessem de pessoas de condição livre (sendo que expor filhos
era quase de certeza entrega-los à escravatura). No entanto:

 Com a exposição de um filho, não se livrava o pai dos seus deveres nem
automaticamente cessava a patria potestas, antes ficava suspensa, pois o pai podia,
por muito tempo e sem compensação, reclamar o filho;
 No caso das relações entre o paterfamilias e uma escrava, o filho herdava a
condição da mãe, enriquecendo o património do dono da escrava. Um escravo
podia ser meio-irmão de um homem livre;
 O filho nascido de um escravo e uma mulher livre herdava a condição da mãe, e a
sociedade partia do pressuposto de que ele era filho do paterfamilias;
 Crianças livres e escravas podiam ser companheiras de brincadeira de infância (cf.
Séneca e o seu escravo Felicião, filho de Filosito, em Cartas a Lucílio 12);
 O poeta Marcial (Séc. I-II d.C.) desenvolveu um grande afeto pela escravinha
Erócion e isso a todos causava surpresa (epigramas 5.34 e 37);
Esta linha ténue entre escravatura e liberdade também funciona para o outro lado:

 Exemplos:
o Horácio era filho de um pai liberto;
o Epicteto, grande filósofo estoico, tinha sido escravo;
 Estes casos revelam uma grande mobilidade social nas estruturas do Império;
 Um escravo liberto desenvolve uma relação com o antigo proprietário de cliente e
patrono:
o No caso de um escravo ser adotado este continuava a estar sob a pátria
potestas do antigo proprietário, se fosse só liberto esse não seria o caso;
Trabalho e Linhagem
Os filhos das famílias pobres começavam a trabalhar com menos de 10 anos e por volta
dos 12 ou 13 aprendiam um ofício. Neste ponto, talvez se assemelhassem às crianças
escravas.
Os filhos legítimos não eram a única forma de perpetuar o nome da família: os escravos,
uma vez manumitidos, passavam à condição de libertos e, como clientes, herdavam o
nomen do seu antigo senhor (agora patrono):

 Marco Lívio Salinator (senhor que passa a ser patrono) liberta Andronico (escravo
de guerra trazido de Tarento para Roma) que adota o nome Lívio Andronico;
O nome das famílias também se perpetuava através dos filhos adotivos:

 Um filho de Lúcio Aneu Séneca (conhecido como Séneca-o-Velho), chamado Aneu


Novato, foi adotado pelo orador e senador Lúcio Júnio Galião e passou a chamar-se
L. Júnio Galião Aniano;

Relação dos pais com os filhos


É muito discutida a natureza relação que os pais tinham com os filhos na civilização romana
sendo que ainda não existe concordância total em relação a este aspeto:

 Uns dizem que se mantinham distantes até estes atingirem uma idade não tão
crítica para reduzir o risco de amarem um filho e este não sobreviver;
 Outros defendem que estes amavam os filhos desde muito novos;
As crianças desenvolviam, desde cedo, a relação com as nutrices, ‘amas de leite’ (escravas
ou mulheres livres de baixa condição) e com os paedagogi, ‘acompanhantes’, que Séneca,
em Cartas a Lucílio 99.14, para consolar um pai pela morte prematura do filho, lhe diz que
a ama o conhecera melhor do que ele:

 «Não tenho dúvidas de que a filosofia te terá sido de grande utilidade no dia em que
conseguires recordar com tranquilidade um filho que ao morrer conhecia melhor a
ama do que o próprio pai!» Trad. de J. A Segurado e Campos (1991). Lúcio Aneu
Séneca. Cartas a Lucílio;
 Isto revela que, com ou sem desenvolvimento de afeto paterno, a relação da criança
com a sua ama é de muito maior proximidade na fase inicial da sua vida do que a
relação com os pais;
Com base na inexistência de quartos nas casas destinados aos filhos legítimos, alguns
investigadores admitem a possibilidade de eles dormirem nas cellae ou cellulae dos
serviçais que deles tomavam conta.
Importa, no entanto, ter presente que a esposa de Catão-o-Antigo, Licínia, para além do
próprio filho, amamentava escravos (fazia isto, não porque os amava, mas sim para os
controlar e os tornar mais obedientes).
Casamento
A mulher considerava-se pronta para casar a partir dos 12 anos, mas as das classes sociais
inferiores faziam-no entre o início e o meio da adolescência ao passo que as das superiores
o faziam no final. Não quer dizer que não houvesse exceções:

 Octávia, filha do imperador Cláudio, casou com o seu meio-irmão Nero com cerca
de 13 anos (Nero c. c. de 15);
A lei considerava os rapazes prontos para casar a partir dos 14 anos, mas os 30 anos eram
a idade ideal. Entre os 14 e os 16 anos, os jovens aristocratas trocavam a toga praetexta
pela toga uirilis. A diferença de idades entre esposa e marido, andaria nos 10 anos.
O jovem necessitava da autorização paternal para contrair matrimonium, ao passo que os
escravos podiam apenas viver em regime de concubinato com as suas parceiras, pois a lei
não lhes reconhecia o status familiae. Na condição de liberto, o escravo podia resgatar a
sua companheira.

Patria Potestas
Os investigadores dividem-se quanto à duração da sujeição dos filhos à patria potestas:

 Uns dizem que 20% das crianças teria o avô paterno vivo;
 Outros dizem que no início do Império Romano entre 37 e 50% da população com
25 anos de idade teria os pais vivos;
 Da população com com 30 anos, só ¼ estaria sob a patria potestas;
 A diferença de idades entre pais e filhos andaria pelos 40 anos;
Do mesmo modo que muitos jovens livres eram criados por agnados (parentes por linha
masculina), cognatos (parentes por linha feminina) e escravos, também muitos escravos
de guerra eram trazidos para Roma e criados por outras pessoas que não os pais
biológicos. Quanto à população escrava, pode ter oscilado entre os 15 e os 35% da
população da Itália romana entre o fim da República e o início do Império.

Pecúlio e Patria Potestas


Embora a lei romana não reconhecesse ao escravo capacidade patrimonial, este podia, a
titulo particular e mediante autorização do senhor, acumular peculium (relação com pecus,
-udis, ‘cabeça de gado’, e com pecus, -oris, ‘gado’) para comprar a alforria. O pecúlio podia
ser composto por cabeças de gado, outros bens, terrenos, dinheiro e outros escravos, de
que o senhor podia a qualquer momento dispor.
Há quem admita a possibilidade de a prática ter começado com os filhos, que também não
tinham capacidade patrimonial, e se ter estendido aos escravos. Os filhos privados muito
cedo de pai estavam sob um tutor até aos 14 anos e teriam plena autonomia financeira
por volta dos 25.
Escravatura por dívidas
A lei romana previa a possibilidade de emancipação do filho relativamente à patria
potestas. No processo, o jovem era vendido e ficava temporariamente in mancipio, o que
significa que filho e escravo podiam ser mancipia.
A venda de pessoas reduzidas à escravidão por dívidas (obaerati) trans tiberim (Lei das XII
Tábuas III.5) pode sugerir o desconforto do cidadão livre romano com algo que lhe poderia
suceder. Mas a escravidão por dívidas foi abolida em 326.

Manumissão
A manumissão em Roma, ao contrário do que sucedia em outras civilizações antigas, não
só era facilitada pela lei (Tábua 2.1) como atribuía a cidadania romana ao antigo escravo e
novo liberto (ciuis Romani liberti, «de um liberto cidadão romano», Tábua 5.8). Há quem
sustente que, para alcançarem a manumissão, os escravos tinham de ser escravos durante
30 anos. Há vários exemplos de manumissão na história romana:

 Rómulo acolheu em Roma escravos fugitivos;


 Numa das versões, Sérvio Túlio era um escravo de guerra;
 Lívio Andronico, Terêncio, Fedro e Epicteto foram escravos;
 O célebre poeta Horácio era filho de um liberto.

Semelhanças entre o filiusfamilias e o escravo:

 Elevada mortalidade infantil;


 Possibilidade de serem vendidos muito novos;
 Possibilidade de serem meios-irmãos;
 Ambos eram desprovidos de capacidade patrimonial;
 Ambos podiam ser usados pelo paterfamilias para o pagamento de uma dívida;
 Sobre ambos tinha o paterfamilias direito de vida e de morte;

Diferenças entre o filiusfamilias e o escravo:

 O verbo uapulare ‘ser açoitado’, a coerção e a violência eram marcas identitárias


do escravo (em Filípicas 2.113, Cícero considerava a escravatura o pior dos males,
que devia ser evitado com recurso até à guerra e à morte);
 A pietas, que o pai devia ao filho e que restringia a violência e a punição com a
morte, não fazia parte dos deveres do senhor para com o escravo;
 Os escravos eram vistos na sociedade romana como inclinados a muitos vícios (a
curiosidade, o roubo e a coscuvilhice eram alguns);
 O escravo era res ‘coisa’;
 O direito reconhecia ao jovem livre o status familiae e o status libertatis e não os
reconhecia ao escravo (que vivia com a companheira em regime de contubernium);
 O serviço militar era obrigatório para o filiusfamilias, já o escravo estava isento;

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