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POR SÉRGIO FERRO

O trabalhador
coletivo livre
Dodesenho ao canteiro: Arquitetura Nova e
a crítica marxista à construçãocivil.

qrA TEORIA DA ARQUITETURANOVA, Ou Dese-


nho/Canteiro,elaborada a partir de 1958-59,
foi apresentada integralmente pela primeira
vez no meu curso sobre a Estética do Projeto
na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAU-USP)
entre 1968
e 1970.Ela decorre de estudos e experiências
desenvolvidos por Rodrigo Brotero Lefàvre
e eu, logo associados a Flávio Império, todos
arquitetos diplomados em 1961pela mesma
universidade.

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SÉRGIO FERRO

O CANTEIRO

"Aocontrário de uma sociedade de apropriação da


força de trabalho e portanto de sua submissão ao
processo de produção e de valorização do capital,
seria uma sociedade no centro da qual se encontra-
ria o processo de trabalho ele mesmo, como porta-
dor direto e explícito do laço social."
FRANCKFISCHBACH, Depoisda produção: trabalho,
natureza e capital (2019).
salário e que é apropriado pela classe proprie-
O primeiro passo para a elaboração da teoria da Arqui-
tária na forma de lucro, a manufatura em geral,
tetura Nova foi sair do campo limitado da atividade
sempre de forma relativa, fornece ao capital
profissional para confrontá-la aos contextos mate-
riais mais amplos nos quais a arquitetura atua. Antes,
massa maior desse mais-valor. Considerada
"atrasada", a manufatura é mais rentável que
enfrentá-la com o canteiro de obras, complemento sem
o qual inexiste, apesar de constantemente ignorado. a indústria "avançada".
Em seguida, situá-la na estrutura global da sociedade Imaginemos, por exemplo, um capital de 100
da qual participa. Mas respeitando nos dois casos a
—em qualquer moeda. Na indústria, digamos,o
prioridade da análise da produção, como recomenda
Capital Constante representa 85%dessemon-
a crítica marxista. tante e o Capital Variável, 15%;na manufatura
O canteiro de obras de construção, sob o ponto de teríamos respectivamente 70% e 30%.Supon-
vista da técnica produtiva, é uma manufatura, dis- do uma mesma taxa de mais-valor de 100%,

tinguindo-se tanto do artesanato como da indústria. o mais-valor seria de 15no caso da indústria
Distingue-se do artesanato pela divisão avançada do e de no da manufatura. A manufatura,

trabalho. E da indústria pela não exteriorização em portanto, fornece uma quantidade maiorde
processos automáticos (maquinários) de suas opera- mais-valor para um mesmo capital do quea
ções essenciais. Pode-se recorrer a produtos industriais indústria. A diferença fundamental é pouco
(materiais, componentes, algumas máquinas secundá- notada entre nós, porque há a perequação
rias etc.), mas o que o caracteriza fundamentalmente das taxas de lucro: a taxa de lucro "normal'
é que para realizar a operação a função essencial é a utilizada nos cálculos de preço é uma média
força de trabalho. das diferentes taxas de lucro setoriais.Na
A força de trabalho na manufatura é, relativamente, verdade, são os setores ditos "atrasados"que
mais numerosa que na indústria. A composição orgânica sustentam os setores ditos "avançados"da
do capital caracteriza-se, também relativamente, por produção. (Os percentuais dos exemplossão
uma proporção maior do que na indústria de Capital hipotéticos, mas realistas.) Comoafirmou0
Variável (CV),isto é, o custo total da força de trabalho geógrafo David Harvey em seu livro Para
com relação ao Capital Constante (CC),ou seja, os custos entender o capital (2013):"setores com bai-
das instalações, dos materiais, dos instrumentos de xa composição de valor [alta quantidade de
trabalho etc. Como somente o Capital Variável gera trabalho] acabam subsidiando setorescom
mais-valor, ou seja, o valor produzido pela força de alta composição de valor [alta quantidade de
trabalho além do necessário para cobrir seu próprio
Capital Constante)."

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O TRABALHADOR COLETIVO LIVRE

Essa característica da manufatura tem con-


sequências importantes. Em particular, no
caso da construção em todas as suas for-
mas: edifícios, ruas, estradas, pontes etc. —se
pensarmos em seu peso enorme na compo-
sição do PIB.A massa extraordinária de mais-
-valor produzida nesse setor, além de susten-
tar a taxa média de lucro, serve ainda como
fonte generosa para a acumulação de capital.
É também um dos principais recursos, junto
com o monopólio, o colonialismo e o impe-
rialismo, para fazer frente ao pesadelo do
Capital: a inevitável queda tendencial da taxa
de lucros com o avanço ininterrupto das
forças produtivas. O Capital Constante cres-
ce com o custo maior do maquinário aper-
feiçoado.
Esse quadro macroeconômico (extrema-
mente simplificado) explica por que dificil-
mente assistiremos à industrialização total
da construção —que não deve ser confundi-
da com a pré-fabricação. Seria um desastre
económico.
A manufatura da construção tende, por-
tanto, a permanecer como manufatura com
alguns aperfeiçoamentos marginais, como os
da informática. Ora,esta técnica de produção
tem características que determinam inexora-
velmente a prática profissional dos arquitetos
e outros responsáveis pela prescrição, em
particular, a do projeto. Essas determinações

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O DESENHO

"A transformação do trabalho em capital


são estruturais e no nosso atual regime independem é, em si, o resultado do ato de troca entre
em larga medida da vontade ou da posição social e capital e trabalho. Essa transformaçãoé
política dos profissionais. posta apenas no processo de produção
Os diversos operários da manufatura são distribuídos mesmo."
em equipes diferentes (pedreiros, pintores, eletricistas, KARLMARX,Para a crítica da economia
etc), nitidamente separadas umas das outras, cada uma política (1859).
composta em geral por um operário qualificado, por
ajudantes semiqualificados e por vários outros ser-
ventes sem qualificação determinada. Essas equipes, Como dizíamos, a separação total entre traba-
contratadas isoladamente, não formam, por si mesmas, lhadores da construção e as condições "inor-
nenhuma totalidade orgânica. A totalização, isto é, sua gânicas", ou seja, as necessidades de materiais
integração como momentos na formação do produto e instrumentos para realizar o trabalho é pos-
comum (o edifício, a ponte etc) é função exclusiva do ta concretamente pela manufatura desdeo
Capital que comprou as várias forças de trabalho. fim da Idade Média. Essa separação é pres-
Uma observação distraída do canteiro faz pensar que suposta pela venda da força de trabalho ao
a função totalizadora do Capital é uma decorrência da capital —mas só se torna efetiva por ocasião
dispersão das equipes e dos trabalhadores. Mastal pres- da produção real. Antes deste momento,é
suposição é historicamente falsa: a mediação do projeto, somente uma possibilidade. Durante a pro-
por exemplo, torna-se "necessária" porque os meios dução real, faz-se o fundamento objetivo de
materiais de produção ferramentas, insumos, maté- relações de produção.
ria-prima —foram retirados e afastados dos operários, A separação entre o trabalho e as suas
e concentrados nas mãos do capital. Essa expropriação, condições materiais é renovada, fortalecida
a chamada acumulação primitiva do capital iniciada e assegurada pela reiteração constante das
ainda na Idade Média, permitiu a eclosão das forças mesmas relações de produção. É a evolução
produtivas. Desde então, a expropriação é reproduzi- dessas relações, determinada pela evolu-
da pelo próprio funcionamento do capital, que obriga ção global do capital produtivo, que traça
o trabalhador a vender constantemente sua força de a história da construção muito mais que
trabalho. O que foi condição para a emergência desse a evolução marginal das forças produtivas.
tipo de capital torna-se seu próprio resultado. Por essa Há, nessa história, quase uma inversão do
razão acreditamos cegamente que o projeto, tal como o credo simplista divulgado por um marxismo
conhecemos a partir do Renascimento, ou seja, desde duvidoso. Segundo tal credo, a evolução das
que o capital domina a construção, é indispensável. forças produtivas exige a modificaçãodas
No período da cooperação simples que precede o da relações de produção, evolução imanente que
manufatura moderna, como ocorre hoje com as raras não seria mais compatível com essas relações.
cooperativas operárias que sobrevivem à pressão do Entretanto, o próprio Marx fornece inúmeros
capital, a totalização não precisa recorrer a nenhum exemplos do contrário quando diz em Miséria
poder exterior. De algum modo, o coletivo dos traba- da filosofia (1847)que "as greves regularmente
lhadores (o trabalhador coletivo, o corpo produtivo) levaram à invenção e à aplicação de algumas
dá conta dessa função por si mesmo. máquinas novas. As máquinas eram, podemos

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dizer, a arma que empregavam os capitalistas para ângulo de consideração, o desenho pode ser qualquer
abater o trabalho especial (qualificado) em revolta." —desde que permita a re-união do que foi separado:
A primeira e fundamental função do desenho é re-u- uma forma de tipo-zero, no dizer de Lévi-Strauss em
nir no canteiro o trabalho anteriormente disperso pelo Antropologia estrutural (1958):"não é a primeira vez
próprio capital. Em diáspora por ter perdido seus que a pesquisa nos apresenta formas institucionais
meios materiais de produção, o trabalhador somente de tipo-zero. Essas instituições só teriam uma pro-
os reencontra concentrados sob o poder do capital — priedade intrínseca: introduzir as condições prévias
mas agora como arma de exploração que permite a à existência do sistema social do qual relevam e que
ele (ao capital) a apropriação de mais-valor. A unidade se impõe como totalidade por sua presença em si
do corpo produtivo é heterônoma, suas articulações mesma desprovida de significação."
produtivas dependem de uma força exterior e hostil. O O desenho do produto finalizado só afeta rela-
trabalhador coletivo, fruto dessa unificação artificial, tivamente —às etapas de circulação e de consumo.
segueordens exógenas; ele não tem em si mesmo as Antes do acabamento do produto, o desenho é o meio
razões do que faz. O desenho, o projeto, é o principal (mediação nada neutra, veremos) para canalizar para
instrumento para provocar a re-unificação. Elaborado o produto acabado, para o momento em que se torna
fora do canteiro, indiferente à massa dos trabalhado- possível sua mercantilização, o trabalho dos traba-
res, o desenho empresta ligadura e coesão artificial à lhadores parcelados. No nível do canteiro, o desenho
dispersão das competências dos operários. Sob esse é o molde onde o trabalho idiotizado - na expressão
SÉRGIO FERRO

seu saber-fazer e habilidade, eles podem ser


utilizados como armas de resistência em
sua luta contra o capital. Repito, sem esses
meios a manufatura não funciona, sobretudo
no caso dos métiers [ofícios] fundamentais
como os da madeira e da pedra até o século
XIX.A história da construção registra inúme-
ras greves pesadas que paralisam os canteiros
do filósofo André Gorz - é vertido. A configuração e o por longos períodos, dirigidas por operários
destino dessa cristalização não contam por enquanto; desses métiers. Os saberes, por serempro-
o que importa é a deposição (em todos os sentidos da priedade exclusiva dos trabalhadores, podem
palavra) dos trabalhos fragmentados no mesmo objeto servir como monopólios, potentes como os
em formação. Essa função pouco aparente do desenho do capital - mas obviamente orientados em
é, entretanto, hegemônica. sentido inverso. Tal estorvo da subordinação
Para desenvolver esta última afirmação, voltemos formal provocará em parte a emergênciado
por um momento à produção manufatureira. Nela,o modernismo em arquitetura: a substituição
saber-fazer operacional não passou ainda para o maqui- dos materiais básicos como a pedra e a madei-
nário —como acontece na indústria. São os operários ra pelo concreto e o ferro, materiais cujas
os depositários desse saber e os responsáveis pelo sapiências passam para o lado do coman-
andamento concreto das operações. Vendem ao capital do. Logo isso se generaliza e atinge todos os
sua força de trabalho, mas com o pressuposto de pôr métiers.Seria o corretivo encontrado pelo
à sua disposição o saber e o saber-fazer que incorpo- capital para o estorvo: o substituto equi-
ram —sem os quais a manufatura não funcionaria. Por valente da industrialização para obter uma
isso, sua subordinação ao capital é somente formal. subordinação quase real.
Sob o ponto de vista do trabalho concreto, fora graves Os recursos do capital contra a insubordi-
deformações devidas à divisão excessiva das tarefas, o nação inseparável da subordinação formal
operário atuaria (quase)do mesmo modo em produções são variados, numerosos, extravagantes e apa-
não subordinadas ao capital.
rentemente inexplicáveis se desconhecermos
Essa característica do trabalho manufatureiro tem os embaraços intrínsecos da manufatura do
inúmeras consequências essenciais. Para o capital, a
capital. Entre eles, os do desenho.
subordinação formal é precária. A dominação que exer-
ce por ter-se apropriado de todos os meios materiais de
O desenho separado de arquitetura é intrin-
produção tem uma falha: não inclui os meios subjetivos
de produção, o saber e o saber-fazer operacionais. Essa
secamente contraditório. Originalmente
feitos no canteiro enquanto auxiliares da
falha enfraquece a dominação —a qual recorre então,
para remediá-la, aos mais extravagantes recursos. Em O produção, em geral em escala onze (fora
capital (1867),Marx afirma que "a habilidade de métier esquemas sumários do conjunto ou maque-
[ofício] permanecendo a base da manufatura, enquan- tes), os desenhos não compõem ainda um
to seu mecanismo coletivo não possui um esqueleto todo orgânico. Separam-se dele como atri-
material independente dos trabalhadores, o capital buiçào do mestre de obras e em pouco tem-
deve lutar sem cessar contra sua insubordinação." po tornam-se um suporte indispensável
Se os meios subjetivos de produção na subordinação para a dominação do capital produtivo.
continuam incorporados no trabalhador, em seu saber, Adquirem então uma identidade ideal, aqui
chamada "o" desenho ou "o" projeto. Sua
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O TRABALHADOR COLETIVO LIVRE

Nosso desenho de
arquiteturaparticipa de
seu fundamento desde
que traiu sua origem ao
separar-se do canteiro
do qual era parte.
O modernismo e o pós-
modernismoagravam
a mesma irracionalidade.
finalidade imediata é fornecer a forma do objeto a
ser construído para assegurar seu posterior valor
de uso e, portanto, sua determinação mercantil. Sua
finalidade dinâmica, entretanto, passa a ser outra:
impor desde o exterior a constituição do trabalhador
coletivo, a re-união do trabalho disperso pela des-
truição da cooperaçãosimples entre trabalhadores.
Mas essa re-união tem que permanecer heterônoma
e de modo algum corresponder ao que seria a reu-
nião espontânea e racional da cooperação simples.
Se correspondesse, o trabalhador coletivo teria seu
fundamento em si mesmo, ou seja, seria autónomo
em princípio,o que entravaria ou impediria a sua
dominação pelo capital. Tal impasse conduz inevi-
tavelmenteà substituição do horizonte formal ou
plástico da cooperação simples por um outro qual-
quer, desde que se afaste de vez desse horizonte. Esta
tese vale desde o Gótico até hoje. Repito: o saber e o
saber-fazer dos trabalhadores são os que elaboraram
em condições de relativa autonomia —mesmo se hoje
estão quase irreconhecíveis.

O desenho conveniente para a exploração do can-


teiro pelo capital, portanto, será necessariamente
heterônomo e irracional sob o ângulo produtivo. Sua
conveniência económica para o capital pressupõe
sua inconveniência técnica. A análise miúda, cui-
dadosa, da construção mostra que na maioria dos
casos a tática de dominação mistura-se com técnica
construtiva, conduzindo a constantes aberrações —
mas não aberrantes do ponto de vista da dominação.
Mesmoassim, o desenho põe-se como máscara, como
ficção arquitetônica embaixo da qual a produção real
é escondida. O desenho desse modo tem que atender
a uma dupla injunção: ser a imagem de um valor de

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SÉRGIO FERRO

DESENHO PARA OUTRAS


RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

"O comunismo não é para nós nem um estado

que deve ser criado, nem um ideal sobre o qual


a realidade deverá regrar-se. Nós chamamos
comunismo o movimento real que abole o
estado atuai. As condições desse movimento
resultam das premissas atualmente existentes."
uso aceitável e relativamente sólido e a imagem de KARL MARX E FRIEDRICH ENGELs,
uma ficção construtiva que mente sobre sua forma- A ideologia alemã (1846).
ção. Viollet-le-Duc não cessou de criticar esta prática.
Gaudí, que construía com correção absoluta, parecia A sombria realidade produtiva nos canteiros
doido no meio da mascarada habitual. de obra que descrevemos rapidamente pode
e deve ser radicalmente superada. Em outras
+0 desenho da arquitetura dominante entra num beco condições sociais, os mesmos parâmetrosde
sem saída: ao abandonar a lógica de um canteiro nossa análise permitem outra modalidade pro-
autodeterminado, mas tendo que recorrer a ela e dutiva, oposta à atual. Ela está entranhada em
mascará-la, afasta de si, rejeita o que garantiria sua negativo em nossa crítica.
autonomia, sua verdade enquanto desenho para a Quando cheguei na França em 1972,fui
produção racional. Recorre a astúcias formais vazias encarregado de alinhar as premissas para o
para criar a ilusão de totalidade plástica, sendo de novo programa da École d'Architecture, de Gre-
fato gerador de incompatibilidades e incoerências. noble. Após o levante de Maio de 1968,nada
Como a subordinação só se põe na efetividade no havia sobrado dos programas anteriores.O
processo produtivo, ensaia pôr em prática a tara do documento que escrevi terminava assim:
capital, o desejo de transformar o trabalhador em
utopia, metade mecanismo (mecanismo: o que tem 1)O atual modo-de-produção arquitetural,
sua razão de ser fora de si), metade sujeito respon- deformado e deformador, não pode servir
sável por um saber e saber-fazer (que têm em si sua como base de uma nova consciência da arqui-
razão). O monstruoso concubinato entre heterono- tetura nem como guia para a elaboração de um
mia e autonomia; autonomia quanto ao meio, hete- programa para a formação de arquitetos.
ronomia quanto ao fim. Porque o objetivo final 2)A atual situação de crise e de transição
dessa embrulhada é somente, predominantemente, impõe uma conduta metodológica específi-
a extração de muito mais-valor. Queiramos ou não, ca e experimental, composta de três etapas
o objeto construído, seja qual for, é mercadoria cujo fundamentais:
valor-de-troca nasce na produção - e somente lá. E Preservar e aperfeiçoar os meios-de-produção
nosso desenho de arquitetura participa de seu fun- arquiteturais;
damento desde que traiu sua origem ao separar-se Aprofundar a crítica radical do atual modo-de-
do canteiro do qual era parte. O modernismo e o -produção;
pós-modernismo agravam a mesma irracionalidade C,Tentar, com critério
—mas montados na substituição da subordinação rígido, novos modos-de-
-produção arquitetural na expectativa de uma
real; ver o caso das grandes construtoras atuais,
determinação de um novo modo-de-produção
como apontou Lúcia Zanin Shimbo.
social.

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O TRABALHADOR COLETIVO LIVRE

3)As verdadeiras necessidades atuais, se examinadassem-terra e sem-teto), em São Paulo, tem feito apesar
racionalmente, estarão na origem dos modos-de-pro- de todos os entraves encontrados. Por exemplo, apro-
dução arquiteturais novos, próximos possivelmente xima nos seus canteiros a formação do que será então
daqueles requeridos por um outro tempo. o efetivo trabalhador coletivo livre —o fundamento de
outros tempos. Evidentemente esse início tem limites.
Essas premissas continuam válidas. E se a nossa hipó- Mas é o que podemos fazer se atuarmos nos bolsões nos
tese sobre a manutenção da manufatura da construção quais pelo menos alguns aspectos das relações sociais
pelo menos nos primeiros tempos após a transforma- dominantes estão sendo criticados e transformados.
ção social for verificada, o primeiro cuidado deverá Mas,mesmo limitadas, essas experiências já são parte
ser a crítica radical de sua atual conformação. Esse da trajetória transformadora.
empenho crítico pode começar até certo ponto desde
já. É o que a Arquitetura Nova propôs, na teoria e na A contribuição maior da manufatura ideal da cons-
prática. O passo mais importante e final dessa crítica trução para a futura transformação social talvez seja
prática implicará a eliminação de toda e qualquer for- a de possibilitar rapidamente a experiência de rela-
ma de subordinação do trabalho. O que pressupõe ções de produção livres e igualitárias. A simplicidade
evidentemente a morte do capital e da atual relação estrutural da manufatura serial ou heterogênea, se
salarial. Reutilizar a atual forma degradada da manu- descontarmos as mazelas da subordinação e contar-
fatura de produção sem eliminar radicalmente a subor- mos com o benefício da autogestão, permite ensaiar
dinação incrustada nela atualmente será cair no mes- relações livres de produção muito mais facilmente do
mo erro cometido por quase todas as experiências de que a complexidade da indústria. Michael Lôwy, na
"socialismo" feitas até hoje. De nada servirá a sociali- introdução de Luta de classes na Rússia (1894),de Marx
zação dos meios de produção se não houver modifica- e Engels, diz que "Rompendo com a ideologia liberal
ção profunda das relações de produção. burguesa do Progresso [...]seu interesse [o de Marx]
As carências sociais de hoje no campo da construção recai sobre uma forma "arcaica" [...]O socialismo do
civil são pelo menos semelhantes às de amanhã, se as futuro será uma manifestação superior do coletivis-
transformações sociais não demorarem demais. Muito mo arcaico, capaz de integrar as conquistas técnicas
provavelmente serão maiores. Portanto, tentar respon- e culturais da modernidade". Marx sugere, em seus
der a elas hoje, alterando tudo o que for possível alterar textos sobre as comunidades agrícolas tradicionais
no sentido de diminuir a subordinação e seus efeitos, russas, a possibilidade de recorrer a formas "arcai-
inicia o que se completará amanhã. É o que a Usina cas" de produção (convenientemente adaptadas) para
(cooperativa de assistência técnica a trabalhadores evitar passagens que o "etapismo" de alguns de seus

4?
SÉRGIO FERRO

racionais atuais desrespeitam frequentemente


a continuidade das intervenções das equipes
de cada especialidade. Tal separação refor-
mada deveria guiar o desenho, o qual articu-
laria numa constelação aberta os diferentes
seguidores considera inevitáveis. Podemostranspor componentes. Ou seja, proporia o inverso da
essas considerações para a produção manufatureira totalização habitual, o qual impõe uma figura
e seu "arcaísmo".Apesar de deterioradas e reduzidas espacial unitária como se ela fosse a projeção
ao mínimo indispensável para que a construção seja de uma produção extraordinariamente harmo-
viável, as sobras de autonomia produtiva provocam niosa - mascarando assim seu esfacelamento.
uma reação instintiva contra a subordinação formal. A real convergência do corpo produtivo
Trata-se, para o que nos importa agora, de favorecer autodeterminado, ao contrário da idolatria
essa insubordinação potencial como aríete contra o da unidade formal, privilegia a constelação
maior crime do capital: impor autonomia como esteio da diversidade enfaticamente afirmada. Essa
da heteronomia radical. O potencial libertário imanente afirmação é um corolário da autodeterminação:
à produção manufatureira pode permitir "saltar"a etapa para Hegel, a autonomia é a identidade da dife-
de heteronomia radical da subordinação real própria rença e da diversidade. Se cada corps-de-métier
à industrialização talvez desnecessária. puder afirmar sua especificidade propondo a
O desenho adequado à manufatura seria ideal, isto é, melhor solução com os melhores materiais e
sem vestígios de dominação, caracterizaria-se inicial- execução perfeita sabendo que seu trabalho
mente pelo que meus alunos de Grenoble chamaram de autodeterminado ficará aparente e que não
estética da separação. Ou seja, um desenho que separaria encontrará quase nenhuma nega-
interferência
rigorosa, evidente e logicamente os diferentes trabalhos tiva dos outros corps-de-métier, é evidente que
de cada corps-de-métier (pedreiros, carpinteiros, pintores o conjunto oferecerá uma plástica essencial-
etc). No limite, o arquiteto deveria ocupar-se sobretudo mente contrária à plástica da enganação atual.
das interfaces, dos nós em que se cruzam necessariamen- Em outros termos, a abolição da subordinação
te equipes de diferentes especialidades. Fora dos nós, a implica a revisão total dos critérios dominantes
autonomia produtiva das equipes poderia ser total. Esse no desenho arquitetural hoje.
gênero de desenho foi intensamente experimentado, Em nossas experimentações,apesardas
na medida do possível então, pela Arquitetura Nova: limitações impostas pelas condições hostis
talvez seja sua principal característica. a tais tipos de iniciativas, tínhamos somente
No caso mais simples e paradigmático, a cada com essa racionalidade produtiva radical cerca
componente arquitetural deveria corresponder um de 25 a 30% de economia. Nossos hábitos plás-
corps-de-métier. Uma das motivações que nos levou ticos, fundamentalmente opostos a qualquer
(os três da Arquitetura Nova)a adotar as abóbadas manifestação honesta da realidade produtiva,
foi precisamente a de unir num só componente estru- são altamente onerosos e contrários à razão
turalmente perfeito (fundação/"parede"/cobertura construtiva. Transformar as relações de pro-
formando uma catenária ultraeconômica) o trabalho dução no sentido de reconhecer essa razão e a
habitualmente disperso (fundação/paredes/cobertura) dignidade do trabalho sob todas suas formas
de pedreiros ou outros profissionais. Trata-se de uma será também atender de outro modo o que
crítica e modificação das divisões operacionais atuais é simplesmente esperado de uma eventual
que não respeitam a organicidade das competências industrialização da construção: a redução dos
específicas das equipes de trabalho. As divisões ope- custos.

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O TRABALHADORCOLETIVO LIVRE

Estamosainda no tempo da transformação de fun- arquitetura já existe, a única válida pois atende às
do: a revolução é um processo histórico, ora lento, necessidades mais fundamentais dos marginalizados,
ora acelerado, e não um acontecimento pontual. Nos os da beira negativa do sistema: a maioria. Seu lema:
bolsões em que o capital perde o pé e o real se afas- inverter o impossível em condição, a utopia no que
ta do habitual, abre-se espaço para outras práticas. deve ser feito agora.
Neles,já pode emergir o outro esperado. Quando nos Em La Plata, na Argentina, em 2018,reuniu-se um
referimos à arquitetura, em geral, pensamos somente coro imenso de participantes desse levante na Amé-
nas estrelas presentes na mídia. Mas já há, numerosa, rica Latina. No entardecer de um dia de inverno, junto
fértil e luminosa uma outra arquitetura, como a ela- ao monumento aos muitos estudantes de arquitetura
borada pela Usina no Brasil. Essa arquitetura não é mortos pela ditadura argentina, no calor da fraterni-
mais uma coleção de objetos mortos —mas de esboços dade, do engajamento e da generosidade, pude saudar
de assaltos ao céu. Como ela, centenas e centenas de com aprovação unânime o amanhã germinado através
iniciativas convergentes começam a ocupar bolsões e dessa outra arquitetura. E, com ele, a revolução conti-
flancos que o capital não tem como engolir. Uma outra nua seu caminho.

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