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O trabalhador
coletivo livre
Dodesenho ao canteiro: Arquitetura Nova e
a crítica marxista à construçãocivil.
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SÉRGIO FERRO
O CANTEIRO
tinguindo-se tanto do artesanato como da indústria. o mais-valor seria de 15no caso da indústria
Distingue-se do artesanato pela divisão avançada do e de no da manufatura. A manufatura,
trabalho. E da indústria pela não exteriorização em portanto, fornece uma quantidade maiorde
processos automáticos (maquinários) de suas opera- mais-valor para um mesmo capital do quea
ções essenciais. Pode-se recorrer a produtos industriais indústria. A diferença fundamental é pouco
(materiais, componentes, algumas máquinas secundá- notada entre nós, porque há a perequação
rias etc.), mas o que o caracteriza fundamentalmente das taxas de lucro: a taxa de lucro "normal'
é que para realizar a operação a função essencial é a utilizada nos cálculos de preço é uma média
força de trabalho. das diferentes taxas de lucro setoriais.Na
A força de trabalho na manufatura é, relativamente, verdade, são os setores ditos "atrasados"que
mais numerosa que na indústria. A composição orgânica sustentam os setores ditos "avançados"da
do capital caracteriza-se, também relativamente, por produção. (Os percentuais dos exemplossão
uma proporção maior do que na indústria de Capital hipotéticos, mas realistas.) Comoafirmou0
Variável (CV),isto é, o custo total da força de trabalho geógrafo David Harvey em seu livro Para
com relação ao Capital Constante (CC),ou seja, os custos entender o capital (2013):"setores com bai-
das instalações, dos materiais, dos instrumentos de xa composição de valor [alta quantidade de
trabalho etc. Como somente o Capital Variável gera trabalho] acabam subsidiando setorescom
mais-valor, ou seja, o valor produzido pela força de alta composição de valor [alta quantidade de
trabalho além do necessário para cobrir seu próprio
Capital Constante)."
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O DESENHO
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dizer, a arma que empregavam os capitalistas para ângulo de consideração, o desenho pode ser qualquer
abater o trabalho especial (qualificado) em revolta." —desde que permita a re-união do que foi separado:
A primeira e fundamental função do desenho é re-u- uma forma de tipo-zero, no dizer de Lévi-Strauss em
nir no canteiro o trabalho anteriormente disperso pelo Antropologia estrutural (1958):"não é a primeira vez
próprio capital. Em diáspora por ter perdido seus que a pesquisa nos apresenta formas institucionais
meios materiais de produção, o trabalhador somente de tipo-zero. Essas instituições só teriam uma pro-
os reencontra concentrados sob o poder do capital — priedade intrínseca: introduzir as condições prévias
mas agora como arma de exploração que permite a à existência do sistema social do qual relevam e que
ele (ao capital) a apropriação de mais-valor. A unidade se impõe como totalidade por sua presença em si
do corpo produtivo é heterônoma, suas articulações mesma desprovida de significação."
produtivas dependem de uma força exterior e hostil. O O desenho do produto finalizado só afeta rela-
trabalhador coletivo, fruto dessa unificação artificial, tivamente —às etapas de circulação e de consumo.
segueordens exógenas; ele não tem em si mesmo as Antes do acabamento do produto, o desenho é o meio
razões do que faz. O desenho, o projeto, é o principal (mediação nada neutra, veremos) para canalizar para
instrumento para provocar a re-unificação. Elaborado o produto acabado, para o momento em que se torna
fora do canteiro, indiferente à massa dos trabalhado- possível sua mercantilização, o trabalho dos traba-
res, o desenho empresta ligadura e coesão artificial à lhadores parcelados. No nível do canteiro, o desenho
dispersão das competências dos operários. Sob esse é o molde onde o trabalho idiotizado - na expressão
SÉRGIO FERRO
Nosso desenho de
arquiteturaparticipa de
seu fundamento desde
que traiu sua origem ao
separar-se do canteiro
do qual era parte.
O modernismo e o pós-
modernismoagravam
a mesma irracionalidade.
finalidade imediata é fornecer a forma do objeto a
ser construído para assegurar seu posterior valor
de uso e, portanto, sua determinação mercantil. Sua
finalidade dinâmica, entretanto, passa a ser outra:
impor desde o exterior a constituição do trabalhador
coletivo, a re-união do trabalho disperso pela des-
truição da cooperaçãosimples entre trabalhadores.
Mas essa re-união tem que permanecer heterônoma
e de modo algum corresponder ao que seria a reu-
nião espontânea e racional da cooperação simples.
Se correspondesse, o trabalhador coletivo teria seu
fundamento em si mesmo, ou seja, seria autónomo
em princípio,o que entravaria ou impediria a sua
dominação pelo capital. Tal impasse conduz inevi-
tavelmenteà substituição do horizonte formal ou
plástico da cooperação simples por um outro qual-
quer, desde que se afaste de vez desse horizonte. Esta
tese vale desde o Gótico até hoje. Repito: o saber e o
saber-fazer dos trabalhadores são os que elaboraram
em condições de relativa autonomia —mesmo se hoje
estão quase irreconhecíveis.
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3)As verdadeiras necessidades atuais, se examinadassem-terra e sem-teto), em São Paulo, tem feito apesar
racionalmente, estarão na origem dos modos-de-pro- de todos os entraves encontrados. Por exemplo, apro-
dução arquiteturais novos, próximos possivelmente xima nos seus canteiros a formação do que será então
daqueles requeridos por um outro tempo. o efetivo trabalhador coletivo livre —o fundamento de
outros tempos. Evidentemente esse início tem limites.
Essas premissas continuam válidas. E se a nossa hipó- Mas é o que podemos fazer se atuarmos nos bolsões nos
tese sobre a manutenção da manufatura da construção quais pelo menos alguns aspectos das relações sociais
pelo menos nos primeiros tempos após a transforma- dominantes estão sendo criticados e transformados.
ção social for verificada, o primeiro cuidado deverá Mas,mesmo limitadas, essas experiências já são parte
ser a crítica radical de sua atual conformação. Esse da trajetória transformadora.
empenho crítico pode começar até certo ponto desde
já. É o que a Arquitetura Nova propôs, na teoria e na A contribuição maior da manufatura ideal da cons-
prática. O passo mais importante e final dessa crítica trução para a futura transformação social talvez seja
prática implicará a eliminação de toda e qualquer for- a de possibilitar rapidamente a experiência de rela-
ma de subordinação do trabalho. O que pressupõe ções de produção livres e igualitárias. A simplicidade
evidentemente a morte do capital e da atual relação estrutural da manufatura serial ou heterogênea, se
salarial. Reutilizar a atual forma degradada da manu- descontarmos as mazelas da subordinação e contar-
fatura de produção sem eliminar radicalmente a subor- mos com o benefício da autogestão, permite ensaiar
dinação incrustada nela atualmente será cair no mes- relações livres de produção muito mais facilmente do
mo erro cometido por quase todas as experiências de que a complexidade da indústria. Michael Lôwy, na
"socialismo" feitas até hoje. De nada servirá a sociali- introdução de Luta de classes na Rússia (1894),de Marx
zação dos meios de produção se não houver modifica- e Engels, diz que "Rompendo com a ideologia liberal
ção profunda das relações de produção. burguesa do Progresso [...]seu interesse [o de Marx]
As carências sociais de hoje no campo da construção recai sobre uma forma "arcaica" [...]O socialismo do
civil são pelo menos semelhantes às de amanhã, se as futuro será uma manifestação superior do coletivis-
transformações sociais não demorarem demais. Muito mo arcaico, capaz de integrar as conquistas técnicas
provavelmente serão maiores. Portanto, tentar respon- e culturais da modernidade". Marx sugere, em seus
der a elas hoje, alterando tudo o que for possível alterar textos sobre as comunidades agrícolas tradicionais
no sentido de diminuir a subordinação e seus efeitos, russas, a possibilidade de recorrer a formas "arcai-
inicia o que se completará amanhã. É o que a Usina cas" de produção (convenientemente adaptadas) para
(cooperativa de assistência técnica a trabalhadores evitar passagens que o "etapismo" de alguns de seus
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Estamosainda no tempo da transformação de fun- arquitetura já existe, a única válida pois atende às
do: a revolução é um processo histórico, ora lento, necessidades mais fundamentais dos marginalizados,
ora acelerado, e não um acontecimento pontual. Nos os da beira negativa do sistema: a maioria. Seu lema:
bolsões em que o capital perde o pé e o real se afas- inverter o impossível em condição, a utopia no que
ta do habitual, abre-se espaço para outras práticas. deve ser feito agora.
Neles,já pode emergir o outro esperado. Quando nos Em La Plata, na Argentina, em 2018,reuniu-se um
referimos à arquitetura, em geral, pensamos somente coro imenso de participantes desse levante na Amé-
nas estrelas presentes na mídia. Mas já há, numerosa, rica Latina. No entardecer de um dia de inverno, junto
fértil e luminosa uma outra arquitetura, como a ela- ao monumento aos muitos estudantes de arquitetura
borada pela Usina no Brasil. Essa arquitetura não é mortos pela ditadura argentina, no calor da fraterni-
mais uma coleção de objetos mortos —mas de esboços dade, do engajamento e da generosidade, pude saudar
de assaltos ao céu. Como ela, centenas e centenas de com aprovação unânime o amanhã germinado através
iniciativas convergentes começam a ocupar bolsões e dessa outra arquitetura. E, com ele, a revolução conti-
flancos que o capital não tem como engolir. Uma outra nua seu caminho.
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