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“Argumentar significa tecer

argumentos, aduzir os
raciocínios que constituem
uma argumentação. No sentido
jurídico, a palavra é usada
sobretudo transitivamente,
em termos de alegar, trazer
como argumento, e é um modo
específico de raciocinar que
procede por questionamentos
sucessivos.

(trecho extraído do Capítulo VII


do livro)
ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
Doutor em Filosofia pela Johannes Gutenberg-Universitat Mainz, Alemanha.
Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP
Professor Titular aposentado do Departamento de Filosofia e
Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP
Professor emérito pela Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto.
Professor da Faculdade de Direito da PUC-SP - pós-graduação.

ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

2º Edição

Manole
Copyright 02016 Editora Manole Ltda., por meio de contrato com o autor.

Editor-gestor: Walter Luiz Coutinho


Editora responsável: Karin Gutz Inglez
Produção editorial: Cristiana Gonzaga S. Corrêa, Juliana Morais e Janicéia Pereira
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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ferraz Jr., Tercio Sampaio


Argumentação jurídica / Tercio Sampaio Ferraz
Jr. -- 2. ed. -- Barueri, SP ;: Manole, 2016.
Bibliografia.
ISBN 978-85-204-4713-0
1. Argumentação forense 2. Estado de Direito
3. Estado Social 4. Legitimidade 5. Princípio da
proporcionalidade 6. Princípio da razoabilidade
7. Processo judicial I. Título.
15-10021 CDU-34:16

Índice para catálogo sistemático:


1. Argumentação jurídica 34:16

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1º Edição - 2014
2º Edição - 2016

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de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

São de responsabilidade do autor as informações contidas nesta obra.


Para Sonia,
... caminhando contra o vento,
sem lenço, sem argumento...
SUMÁRIO

NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO............ccciciccccccccc


cicero IX
FROLOGO . . ss sus sao mica oi Whoh saiam die Ade dA Ed XI

PARTE I - Aplicação do Direito .................... l


CAPÍTULO 1 — Aplicação do Direito como um jogo de poder....... 3
CAPÍTULO II — Aplicação do Direito: entre decidir e julgar ........ 7
CAPÍTULO III — Cultura do código: o juiz racional e a
aplicação como subsunção . .sssissuspassascsisesdtssdidasaido E!
CAPÍTULO IV — Aplicação e subsunção ...........cccccccc. 13
CAPÍTULO V — O juiz racional como endereçado
dE SUDSUNÇÃOS = squid ap ad a da S 17
CAPÍTULO VI — Argumentação racional e procedimento
argumentativo............ccccccises
sec ecc ccererrrrerrerer 21

PARTE II - Argumentação jurídica ................. 27


CAPÍTULO VII — Procedimento argumentativo dogmático ....... 29
CAPÍTULO VIII — À passagem: do interpretar na cultura
do código ao argumentar pela ponderação de princípios .......... 37
CAPÍTULO IX — Do Estado de Direito para o Estado Social ....... 45

f Esta obra possui uma videoaula complementar na Manole Educação. Para consultá-la,
acesse o site www.manoleeducacao.com.br/argumentacaojuridica.
VIII ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

CAPÍTULO X — Da interpretação de bloqueio à argumentação


de legitimação. .........ccciccic cesar err erre 47
CAPÍTULO XI — À argumentação como procedimento
GE EC ORAÇÃO o ques e SOS GEOT RS DEUS JES E LESS GEVEDTE ERA 51
CAPÍTULO XII — As limitações para uma argumentação
de legitimação. .........cccicccc cce erre 53
CAPÍTULO XIII — Do uso dos princípios: conflitos
recalcitrantes e a técuica de peneralizações us vas se corra versa 57
CAPÍTULO XIV — Argumentações mais ou menos justificadas ..... 69
CAPÍTULO XV — Do uso dos princípios e os problemas
do neoconstitucionalismo: como lidar com os princípios
CONSEAICIONAES su pos Eus CENTRE CEP Er ed rr css 73
CAPÍTULO XVI — Uso de princípios e tópica jurídica... .......... 91
CAPÍTULO XVII — Razoabilidade e proporcionalidade
como teguladioresda ponderação: ..s.sc seas sms ses sines mus secem mess» 7
caríruLo xviir = Razoabilidade JutÍDICA, q ques ces merge 105
CAPÍTULO XIE = Proporcionalidade, «sas sus cas gua cm ss us 115
CAPÍTULO XX — Argumentação, segurança jurídica e
Jusilça- razão Cemoção: o: IlgaR suaneess usam emos ora vao aerea se 121

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS .assgsssmssumsPEsçãE 135

ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO........cccccccccirircrrr 139


NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO

A rapidez com que se esgotou a primeira edição deste trabalho alerta-


-me para o interesse crescente que o tema da argumentação jurídica vem
ganhando entre nós.
Aliada à temática da ponderação de princípios, a argumentação ga-
nha uma nova chave, que, inclusive, tende a substituir a tradicional her-
menêutica jurídica.
Isso significa que a preocupação com o sentido normativo, elabora-
do pela dogmática jurídica do século XIX mediante diferentes técnicas,
também chamadas de métodos (gramatical, lógico, sistemático, históri-
co, axiológico, sociológico, etc.), dá lugar ao papel da persuasão na ela-
boração de sentidos adequados a uma decisão convincente.
Mais do que isso, a persuasão, como técnica usualmente ancilar da her-
menêutica, ganha uma nova tarefa, mais voltada para a justificação de con-
sequências futuras da decisão, o que confere ao fator tempo uma curiosa
inversão nas decisões judiciais: em vez de um vetor, que corre do passado
para o futuro (julga-se o que aconteceu), passa a ser um vetor que corre do
futuro para o passado (julga-se em vista do que poderá acontecer). Desse
modo, os direitos reclamados sofrem uma sutil inflexão: de uma posição
garantida desde o passado, eles adquirem um sentido promocional pros-
pectivo, colocando-se, antes, como exigência de implementação. É o que se
observa, mais intensamente, com os interesses difusos (meio ambiente,
concorrência, consumo, etc.). A tomada de decisão vê-se, assim, diante da
exigência de uma espécie de ação corretiva, em face de possíveis desvios na
consecução das finalidades a serem atingidas por uma política legislativa.
X ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Isso repercute, por exemplo, no novo Código de Processo Civil, cujo


art. 1.069 chega a estabelecer claramente que “O Conselho Nacional de
Justiça promoverá, periodicamente, pesquisas estatísticas para avaliação
da efetividade das normas previstas neste Código”.
Aliás, vale sublinhar o artigo 1º, que dispõe: “Art. 1º O processo civil
será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as nor-
mas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federa-
tiva do Brasil, observando-se as disposições deste Código.
Ora, quando se fala em valores e normas fundamentais pensa-se em
um procedimento não verificável rigorosamente, que permite abordar
a interpretação com caráter mais problemático do que assertivo, apon-
tando para um vasto espaço ocupado por formas de tensão política, a
exigir do intérprete uma função mais legitimadora do que propriamen-
te de reconhecimento validador (no sentido mais tradicional de contro-
le da constitucionalidade e da legalidade). Portanto, um exercício antes
da argumentação, o que se mostra sugestivo no art. 6º do novo Código:
“Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que
se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e equitativa”.
A função desse preceito, ao trabalhar com a codificação justo/injus-
to, equitativo/inequitativo, acaba por mostrar um papel menos voltado
para aumentar uma certeza (a normalidade) e mais para aumentar a va-
riedade de pontos de vista surgidos do caso a decidir, legitimando o ba-
lanço dos benefícios e interesses em vista de suas consequências e, assim,
de um exercício argumentativo ostensivo.
Esta segunda edição vem acrescida de um novo Capítulo XVI, renu-
merando-se os seguintes, no qual se lida com o tema do uso tópico dos
princípios em uma nova situação.

Tercio Sampaio Ferraz Jr.


PRÓLOGO

1. DIVISÃO DOS PODERES E POLITIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO

Para o senso comum jurídico, o Poder Judiciário é um dos três Poderes clás-
sicos reconhecidos pela doutrina. Em simples palavras, costuma-se atribuir-
-lhe a missão de aplicar contenciosamente a lei a particulares. Nas lições
mais antigas, repetidas ainda hoje, o Poder Judiciário é constituído para
determinar e assegurar a aplicação das leis que garantem a inviolabilidade
dos direitos individuais. No exercício desta missão, ele é, em face dos outros
Poderes, autônomo e independente. Distinguindo-se do Poder Executivo
por aplicar contenciosamente a lei, a doutrina usa esclarecer o sentido deste
modo de aplicação por meio de características inibidoras de sua autuação:
ele só age se houver litígio, só se pronuncia sobre casos individualizados
(nunca sobre hipóteses ou leis em tese, ressalvadas as arguições diretas de
inconstitucionalidade) e, para autuar, tem de ser provocado. Em princípio,
à diferença do Poder Legislativo, suas decisões são programadas e não pro-
gramantes, isto é, decidem com base na lei, na Constituição, nos princípios
gerais de direito, nos costumes e sua decisão vale para o caso para o qual
foi provocado, não podendo ser estendida para os demais casos.

2. DIVISÃO DOS PODERES E NEUTRALIZAÇÃO POLÍTICA DO PODER JUDICIÁRIO

A concepção do Poder Judiciário como um entre três Poderes resultou


da consolidação de grandes princípios de organização política, incorpo-
rados pelas necessidades jurídicas na solução de conflitos. De um lado,
XIl ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

a soberania nacional e a divisão dos Poderes; de outro, o caráter privile-


giado que a lei assume como fonte de direito. Até a Revolução Francesa,
toda a soberania residia no senhor territorial ou no rei. Esta forma mui-
to concreta e personalíssima de simbolizar o centro único de normativi-
dade colocava, no entanto, alguns problemas práticos de jurisdição. Nes-
se sentido, um jurista do século XVII, Loyseau' escrevia, à sua época, que
o rei, não podendo saber tudo nem estar presente em toda parte e, em
consequência, não lhe sendo possível prover a todos as mesmas situações
que ocorrem em todos os lugares de seu reino e que requerem ser regu-
lamentadas prontamente, permitia às cortes soberanas fazer os regula-
mentos. Estes, porém, eram provisórios e feitos sob sua condescendência.
Ora, foi a substituição do rei pela nação,” conceito mais abstrato e, por-
tanto, de maior maleabilidade, que permitiu a manutenção do caráter
uno, indivisível, inalienável e imprescindível da soberania” em perfeita
harmonia com um princípio de divisão dos Poderes, funcionalmente
apto a resolver o problema de um Poder Judiciário com características
próprias e autônomas e com a possibilidade de atuação restringida.
À teoria clássica da divisão dos Poderes, construída com um claro
acento anti-hierarquizante e com a finalidade de implodir a concepção
mono-hierárquica do sistema político, iria garantir, de certa forma, uma
progressiva separação entre política e direito, regulando a legitimidade

1 Des Seygneuries, HI, 12, mencionado por Gillissen: “Les problêmes des lacunes du droit
dans lévolution du droit mediéval et moderne”, in: PERELMAN (org.). Les problêmes des lacu-
nes en droit, 1968, p. 230.
2 “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação” - Declaração dos Di-
reitos do Homem e do Cidadão de 1789, art. 3º.
3 Constituição Francesa de 1791.
4 “O Poder Judiciário não pode em nenhum caso ser exercido pelo corpo legislativo, nem
pelo rei”, art. 1º, Cap. V.
5 “Os tribunais não podem se imiscuir no exercício do Poder Legislativo, nem suspender
a execução das leis”, art. 3º, Cap. V.
prÓLOGO XII

da influência política no governo, que se torna totalmente aceitável no


Legislativo, parcialmente no Executivo e fortemente neutralizada no Ju-
diciário, dentro dos quadros ideológicos do Estado de Direito. Ressalte-
-se, nesse sentido, o importante papel do princípio da divisão dos Pode-
res assinalado por Montesquieu na garantia da liberdade do cidadão:*

Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o Poder


Legislativo está reunido ao Poder Executivo, não existe liberdade, pois
pode temer-se que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabe-
leçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Montesquieu, na verdade, via na divisão dos Poderes muito mais um


preceito de arte política do que um preceito jurídico. Ou seja, não se
tratava de um princípio para a organização do sistema estatal e de dis-
tribuição de competências, mas um meio de se evitar o despotismo real.
Nesse sentido, o princípio não era de separação de Poderes, mas de ini-
bição de um pelo outro de forma recíproca: no exercício desta função,
dos três, o Judiciário era o que menos tinha a ver com força política; por
isso dizia Montesquieu: “dos três Poderes mencionados, o de julgar é em
certo modo nulo. Não restam senão dois”. Não obstante, o reconhecia
como a mais alta autoridade nos governos constitucionais.
De fato, a neutralização do Judiciário é uma das peças importantes
na caracterização do Estado de Direito burguês. Ela se torna, no correr
do século XIX, a pedra angular dos sistemas políticos desenvolvidos. Em
consonância com o princípio da tripartição dos Poderes, ela será o eixo
que permitirá a substituição da unidade hierárquica, concretamente
simbolizada pelo rex por uma estrutura complexa de comunicação e
controle de comunicação entre forças mutuamente interligadas. A neu-

6 Lésprit des lois, Livre XI, ch. VI.


7 Sed contra, Passerin d Entréves: La noción del estado, 1970, p. 133.
XIV ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

tralização assinalará a importância da imparcialidade do juiz e o caráter


necessariamente apartidário do desempenho de suas funções.

3. NEUTRALIZAÇÃO POLÍTICA DA JUSTIÇA E APLICAÇÃO DO DIREITO

À neutralização foi acompanhada de uma desvinculação progressiva que


iria sofrer o direito de suas bases sociais. Inicialmente, ela significaria
neutralização política, para depois exigir distanciamento ético. Assim,
com a canalização de todas as projeções normativas com pretensão de
validade para o endereço político do Legislativo e o consequente trata-
mento oportunístico dos valores máximos (cresce a força e a importân-
cia do positivismo jurídico), a neutralização do Judiciário se apoiará na
centralização organizada da legislação (só lei, votada e aprovada pelos
representantes do povo, obriga) e reforçará o lugar privilegiado da lei
como fonte do direito. Este reforço ocorre não só pela exaltação do prin-
cípio da legalidade e a consequente proibição da decisão contra legem,
mas também do ato jurisdicional como um processo de subsunção do
fato à norma. Ao sublinhar-se a subsunção como o método de aplicação
do direito, neutraliza-se para o juiz o jogo dos interesses concretos na
formação legislativa do direito (se esses interesses serão atendidos ou
decepcionados não é problema do juiz, que apenas aplica a lei). Por con-
seguinte, sua atividade jurisdicional guiada superiormente pela lei e pela
constituição, não se vincula a nenhum direito sagrado ou natural nem
exige um conteúdo ético ainda que teleologicamente fundado. Acima
de tudo, o importante é que a lei seja cumprida.
Esta concepção do Poder Judiciário como politicamente neutro nos
quadros do Estado de Direito burguês regido pelo princípio da triparti-
ção dos Poderes pressupõe uma congruência entre as funções instrumen-
tais e as funções expressivas do processo judicial.” Os efeitos imediatos

8 Cf LUHMANN, Niklas. Rechtssoziologie, p. 315 e segs.


PRÓLOGO XV

de um processo (uma condenação, uma absolvição, uma declaração de


um direito) só são atingidos por meio de uma ação expressiva: uma de-
cisão in casu. Contudo, a busca desta decisão depende de um cálculo
instrumental: a decisão deve satisfazer necessidades, decorrentes de fi-
nalidades distantes, ou seja, a realização da justiça, da paz social, o asse-
guramento dos direitos individuais reconhecidos constitucionalmente,
tudo manifestado em um valor supremo, a segurança jurídica. Por isso,
parte-se, de um lado, de normas preestabelecidas na lei abstratamente
(função instrumental); de outro, por meio de interpretação — subsunção
-, chega-se à satisfação das necessidades concretas (função expressiva).
A congruência entre as duas funções significa que a satisfação das neces-
sidades concretas muitas vezes provoca ou exige o diferimento, no tem-
po, da satisfação das necessidades finalísticas, na pressuposição de que
estas, embora distantes, estão sempre a caminho de serem atingidas. Esta
congruência é crucial para a legitimidade da atividade jurisdicional. Em
tese (liberal e burguesa), a combinatória das duas funções é garantida
pelo papel instrumental do juiz que, configurado pela neutralidade (dis-
tância das partes, imparcialidade, serenidade, posição dominante mas
apartidária), torna-se o instrumento capaz de realizar a divisão dos Po-
deres. Nesse sentido, o processo judicial deve ser funcional, enquanto um
sistema capaz de determinar o futuro na medida em que o mantém in-
certo, isto é, os procedimentos jurisdicionais permitem que os atingidos
por decisões vivenciem um futuro incerto (a realização abstrata da segu-
rança jurídica), mas sentindo-se seguros, desde o presente, por força dos
procedimentos nos quais se engajam. Como o juiz não legisla, mas cum-
pre a lei, a congruência exige uma aceitação da mutabilidade do direito
por força de processos legislativos autônomos e independentes: a diferen-
ça entre o velho e o novo direito não é percebida em termos diacrônicos
— ambos são direito, só que um é vigente e o outro, revogado. Admite-se,
em consequência, a manipulação contraditória das estruturas: o que vale
hoje deixa de valer amanhã e pode voltar a valer depois; em nome da se-
gurança abstrata, essa mutabilidade não perturba a impositividade: lex
XVI ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

prima facie valet. Com isso, o direito não depende do saber e do sentir
individuais e, ao mesmo tempo, continua sendo aceito por todos.
Nestes quadros, a neutralização do Poder Judiciário transforma o
sentido da aplicação do direito. Antes encarava-se o direito como uma
expectativa ética de padrão de comportamento, predeterminado por
valores-fins, entendendo-se o juízo como um ato da razão e a jurisdição
como uma atividade decorrente da virtude da justiça; agora, o direito é
visto como um programa funcional, hipotético e condicional (se... en-
tão), que aduz a uma certa automaticidade do julgamento, se libera de
complicados controles de finalidades de longo prazo e se reduz a con-
troles diretos, caso a caso.” Só assim é possível lidar-se, no Judiciário do
Estado de Direito burguês, com altos graus de insegurança concreta de
uma forma suportável: a segurança abstrata, como valor jurídico, isto é,
com certeza e isonomia, é diferida no tempo pela tipificação abstrata
dos conteúdos normativos (generalidade da lei) e pela universalização
dos destinatários (igualdade de todos perante a lei), aparecendo como
condição ideologicamente suficiente para a superação das decepções
concretas que as decisões judiciais trazem para as partes.

4. NEUTRALIZAÇÃO POLÍTICA E CONTROLE CONSTITUCIONAL

A neutralização política do Judiciário, consequência da divisão dos Po-


deres e espinha dorsal do Estado de Direito burguês, esclareça-se, não
é propriamente um tipo de indiferença genérica. Não significa, na con-
cepção liberal que se firmou durante o século passado, uma espécie de
alheamento político. Como disse Hughes (um ex-presidente da Supre-
ma Corte norte-americana, no início deste século): Estamos regidos
por uma Constituição, mas esta Constituição é o que os juízes decidem
o que é. Nos Estados Unidos, em um primeiro período, que vai de 1801

9 Cf, criticamente, MarCIC, René. Vom Gesetzesstaat zum Richterstaat, p. 250 e segs.
prRÓLOGO XVII

a 1835, sob influência de Marshall, o exercício de uma competência po-


liticamente neutralizada deu-se pela tese do controle judicial do federa-
lismo e depois da constitucionalidade das leis. Nessa época, a Suprema
Corte foi se firmando como o regulador da vida constitucional. Em um
segundo período, que alcança até o ano de 1937, com um interregno de
autolimitação no governo de Roosevelt, que dura até 1954, o controle
se expande, passando os juízes daquela corte a assumirem a função de
verdadeiros guardiões da própria legitimidade constitucional, exercen-
do o controle até de emendas à Constituição em nome de princípios ge-
rais superiores ínsitos ao próprio texto constitucional. Data dessa época
a expressão “governo dos juízes”. Isto não fazia do Judiciário um poder
político, mas lhe dava competência para atuar como um freio às aspira-
ções políticas dos outros Poderes, o que não destruía a concepção libe-
ral do Estado de Direito, pois a relação de independência e harmonia
que devia existir entre os Poderes exigia um princípio com força capaz
de controlar as paixões políticas. Aquela concepção supõe, afinal, que o
sistema político da sociedade determine sua essência como Estado cons-
titucional. Postulando, com isso, a vitória do direito sobre o poder po-
lítico.
Neutralizar, portanto, não significava tornar genericamente indife-
rente, mas gerar uma indiferença controlada, ou seja, estabelecer uma
relação em que a indiferença é garantida contra expectativa de influên-
cia. A neutralização, nesse sentido, não torna o Judiciário imune, de fato,
a pressões de ordem política. Sua neutralização não se dá em face dos
fatos, mas das expectativas institucionalizadas: ainda que de fato haja
pressões políticas, estas institucionalmente não contam. A independên-
cia do juiz, dirá o jurista consciente desta institucionalização, exige que
“a crença nela esteja enraizada profundamente na população”.!º Pois, só
deste modo, a pressão política como fato se descarta como versão ética.

10 Mánnlicher: Die richterliche Unabhângigkeit, citado por MARCIC, Op. cit., p. 265.
XVII ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Uma das mais importantes consequências da neutralização está, as-


sim, no tratamento da relação entre direito e força ou violência física no
sistema político. Ela permite que o Legislativo seja despido de seu uso
e que o Executivo dela faça uso sob controle do Judiciário, o que, enfim,
realiza o postulado da concentração da força nas mãos do Estado e da
proibição do uso privado da força. O Judiciário não concentra a força,
mas filtra o seu uso, ao decidir sobre ele. Essa importante consequência
faz da neutralização, na concepção do Estado de Direito liberal, uma
espécie de regulador do uso político da violência. A violência, concre-
tamente, por sua imponderabilidade, pela sua ilimitação de fato, é sem-
pre abstrata nas mãos do político, que oscila em usá-la demais ou de
menos. Ou seja, o político lida mal com o uso da violência ou das me-
didas de força na sua concretude, o que se faz ver nas dificuldades em
que se enredam os parlamentos no julgamento de seus membros ou nos
crimes de responsabilidade de autoridades políticas, ou que se percebe
na politização dos processos judiciais nos regimes autoritários e totali-
tários. Uma Justiça politizada, ao contrário, compartilha da responsabi-
lidade pelos resultados do uso da violência, fazendo do juiz um justicei-
ro e do processo um movimento na direção dos famigerados tribunais
de exceção. Ou seja, a Justiça politizada arrisca a render-se ao marketing
das opiniões, reduzindo o direito a elas, o que funciona bem no Legis-
lativo mas, no Judiciário, torna opaco o uso da força, conduzindo-a à
banalidade e à trivialidade do jogo dos interesses.

5. DIVISÃO DOS PODERES, NEUTRALIZAÇÃO POLÍTICA


DA JUSTIÇA E O ADVENTO DO ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL

As condições em que a divisão dos Poderes e a consequente neutraliza-


ção política do Poder Judiciário floresceram alteraram-se profundamen-
te no século XX. Sobretudo nos últimos cinquenta anos, o advento da
sociedade tecnológica tornou ainda mais complexa a vida humana. A
civilização tecnológica apenas cria mais possibilidades de ação, alimen-
prÓLOGO XIX

tando-se de si própria, aumentando e acelerando a possibilidade da pró-


pria criação tecnológica. Este movimento reflexo da tecnologia — a ma-
nipulação tecnológica da própria tecnologia — altera o sentido dos
controles sociais e políticos, repercutindo nos controles jurídicos. Na
complexa sociedade tecnológica de nossos dias, as atividades de vetor
deixam de voltar-se primordialmente para o passado, para ocupar-se
basicamente do futuro. A questão não está mais em controlar o desem-
penho comportamental como foi realizado, mas como ele se realizará.
A civilização tecnológica, nestes termos, joga sua capacidade criativa em
fórmulas de governo, cujos máximos valores são a eficiência dos resul-
tados e a alta probabilidade de sua consecução. No campo jurídico, o
tribunal, tradicionalmente uma instância de julgamento e responsabili-
zação do homem por seus atos, pelo que ele fez, passa a ser chamado
para uma avaliação prospectiva e um “julgamento” do que ele é e pode-
rá fazer. É nesse quadro de projeção do sentido do direito para o futuro,
para a sua realizabilidade mais do que para a sua consistência pré-cons-
tituída, que se há de entender o advento do chamado Estado do Bem-
-Estar Social.
O crescimento do Estado Social ou Estado do Bem-Estar Social re-
verteu alguns dos postulados básicos do Estado de Direito, a começar
da separação entre Estado e sociedade, que propiciava uma correspon-
dente liberação das estruturas jurídicas das estruturas sociais. Nessa
concepção, a proteção da liberdade era sempre da liberdade individual
enquanto liberdade negativa, de não impedimento, do que a neutraliza-
ção do Judiciário era uma exigência consequente. O Estado Social trou-
xe o problema da liberdade positiva, participativa, que não é um prin-
cípio a ser defendido, mas a ser realizado. Com a liberdade positiva, o
direito à igualdade se transforma em um direito a tornar-se igual nas
condições de acesso à plena cidadania. Correspondentemente, os Pode-
res Executivo e Legislativo sofrem uma enorme expansão, pois deles se
cobra a realização da cidadania social e não apenas a sustentação do seu
contorno jurídico-formal.
XX ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Os direitos sociais, produto típico do Estado do Bem-Estar Social,


não são, pois, conhecidamente, somente normativos, na forma de um a
priori formal, mas têm um sentido promocional prospectivo, colocando-
-se como exigência de implementação. Isso altera a função do Poder Ju-
diciário, ao qual, perante eles ou perante a sua violação, não cumpre
apenas julgar no sentido de estabelecer o certo e o errado com base na
lei (responsabilidade condicional do juiz politicamente neutralizado),
mas também e sobretudo examinar se o exercício discricionário do po-
der de legislar conduz à concretização dos resultados objetivados (res-
ponsabilidade finalística do juiz que, de certa forma, o repolitiza). Por
fim, a extensa massificação social transforma a sociedade em uma so-
ciedade de consumidores, fazendo da economia um processo de produ-
ção, comercialização e consumo massificados e reduzindo quase todas
as atividades humanas, da arte ao lazer, da ciência à cultura, a objetos
de consumo, isto é, a objetos descartáveis após o uso. Desse modo, trans-
forma-se a velha concepção dos direitos subjetivos como direitos indi-
viduais, ao exigirem-se proteções coletivas — direitos coletivos — e até
proteções impossíveis de ser individual ou coletivamente identificadas —
direitos difusos. Em consequência, os litígios judiciais passam a admitir
e a exigir novas formas de direito de ação (class action, ação pública).
Altera-se, do mesmo modo, a posição do juiz, cuja neutralidade é afeta-
da, ao ver-se ele posto diante de uma corresponsabilidade no sentido de
uma exigência de ação corretiva de desvios na consecução das finalida-
des a serem atingidas por uma política legislativa. Tal responsabilidade,
que, pela clássica divisão dos Poderes, cabia exclusivamente ao Legisla-
tivo e ao Executivo, passa a ser imputada também à Justiça.
Em suma, com base em condições sociopolíticas do século XIX, sus-
tentou-se por muito tempo a neutralização política do Judiciário como
consequência do princípio da divisão dos Poderes. A transformação des-
sas condições, com o advento da sociedade tecnológica e do Estado So-
cial, parece desenvolver exigências no sentido de uma desneutralização,
posto que o juiz é chamado a exercer uma função socioterapêutica, libe-
PRÓLOGO XXI

rando-se do apertado condicionamento da estrita legalidade e da res-


ponsabilidade exclusivamente retrospectiva que ela impõe, obrigando-se
a uma responsabilidade prospectiva, preocupada com a consecução de
finalidades políticas das quais ele não mais se exime em nome do prin-
cípio da legalidade (dura lex sed lex). Não se trata, nessa transformação,
de uma simples correção da literalidade da lei no caso concreto por meio
de equidade ou da obrigatoriedade de, na aplicação contenciosa da lei,
olhar os fins sociais a que ela se destina. A responsabilidade do juiz al-
cança agora a responsabilidade pelo sucesso político das finalidades im-
postas aos demais Poderes pelas exigências do Estado Social. Ou seja,
como o Legislativo e o Executivo, o Judiciário torna-se responsável pela
coerência de suas atitudes em conformidade com os projetos de mudan-
ça social, postulando-se que eventuais insucessos de suas decisões devam
ser corrigidos pelo próprio processo judicial.
A nova situação, na verdade, acaba por atingir profundamente dois
princípios tradicionais da cultura jurídica clássica: o princípio da imu-
nidade do Estado (the king can do no wrong) e o princípio da coisa jul-
gada (res judicata), ambos fundados, no Estado de Direito burguês, na
atividade jurisdicional. Quanto ao primeiro, a divisão dos Poderes sig-
nificou uma superação do Absolutismo que via na vontade do soberano
a fonte primordial do direito. À emanação do direito pelo soberano o
funcionário do Estado estava umbilicalmente preso. Nessa concepção,
o juiz era, entre outros, um funcionário. No Estado de Direito, o juiz
deixa de ser um funcionário, submetido às hierarquias da administra-
ção, para tornar-se, ele próprio, uma expressão originária do poder es-
tatal. Por definição, ele não exerce uma função, mas o poder de julgar
contenciosamente os litígios. Sua liberdade e sua independência nascem
conjuntamente com a instauração constitucional do Estado. Seu status
privilegiado em face dos demais Poderes permite, então, uma revisão da
velha tese absolutista da irresponsabilidade do Estado em uma versão
diferente. O Estado, como pessoa jurídica, seus funcionários e seus agen-
tes, passa a responder civil e administrativamente pelas violações dos
XXIL ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

direitos subjetivos do cidadão, cabendo ao Poder Judiciário o julgamen-


to final dos atos ilícitos. A condição básica de funcionamento desta es-
trutura de responsabilização é, no Estado de Direito, a imunidade do
juiz pelos seus atos jurisdicionais em face das partes. Esta imunidade,
por sua vez, tem por correlato o princípio da coisa julgada. Res judicata
facit jus torna-se uma exigência da própria atividade jurisdicional. Ela
é uma decorrência da imparcialidade do juiz como um terceiro em face
de litígios concretos (tertius super partes). Sem ela, a segurança jurídica
estaria ameaçada, posto que a exigência de que litígios tenham um fim,
pela impossibilidade da sua permanente retomada (ne lites aeternae
fiant), não se realizaria.
A desneutralização política do juiz, ao expor o Judiciário à crítica
pública, sobretudo e especialmente por intermédio dos meios de comu-
nicação de massa, cria uma série de tensões entre sua responsabilidade
e sua independência, cuja expressão mais contundente está na tese do
controle externo do Judiciário. Esta tese põe a descoberto o fato de que
tanto a imunidade da judicatura como o princípio da coisa julgada, em
vez de decorrências “lógicas” da divisão dos Poderes, estão na verdade
a serviço de valores, finalidades socialmente relativas que o sistema le-
gal, de vários modos, procura realizar." Como se, de repente, por exem-
plo, ganhasse relevo suspeito o fato de que o processo de nomeação dos
juízes de tribunais superiores está em estreita dependência da vontade
política do Executivo e do Legislativo (caso, no Brasil, dos ministros do
Supremo Tribunal Federal ou dos juízes nomeados por força do chama-
do quinto constitucional). Mais do que isso, torna-se perceptível que a
vinculação do juiz à lei, base da sua neutralização, acaba por gerar, para
o homem comum, um tipo de insegurança até então insuspeitada: a in-
segurança gerada pelo próprio direito! Compara-se, nesse sentido, a se-
gurança propiciada pela Justiça contra o ato ilícito de um cidadão contra

11 Cf. CAPPELLETTI, Mauro: “Who watches the watchmen?”, 1982.


PRÓLOGO XXIII

o outro com a insegurança social do homem comum em face da con-


cordata de uma instituição financeira rigorosamente processada no tri-
bunal conforme os ditames da lei, ou a despedida (legal) do trabalhador,
ou a greve (legal) em serviços essenciais, ou a desapropriação (legal) in-
diferençada de bens imóveis de pessoas economicamente em condições
extremamente desiguais, etc. Deste modo, a crença na neutralidade ins-
titucional do Judiciário fica afetada em nome de padrões políticos (va-
lores, objetivos, finalidades), pondo-se a complicada questão dos possí-
veis limites da sua imunidade.
A repolitização do Judiciário, tese colocada abertamente pelos adep-
tos do chamado “uso alternativo do direito”, coloca, no entanto, um pro-
blema de não fácil solução. A expansão tecnológica e as possibilidades
de ação por ela propiciadas, ao multiplicarem-se as possibilidades de
consumo na sociedade de massas, fazem da política, ela própria, um
bem de consumo. Não há mais atos políticos apenas, interesses políticos,
objetivos políticos, mas um verdadeiro marketing de manipulação polí-
tica da própria política. Este marketing serve-se dos meios de comuni-
cação e provoca uma hipertrofia do poder que acaba por atingir o pró-
prio Judiciário de forma paradoxal: sua neutralização torna-se, ela
mesma, política, isto é, ela é politicamente contaminada, passando a
sustentar-se por meios políticos, como a busca de apoio da opinião pú-
blica, a geração de consenso popular, a manutenção da imagem (o juiz
“progressista, a decisão conforme a vontade do povo), a busca do pres-
tígio (a decisão de repercussão nacional, a entrevista na TV), etc. O ris-
co, nisso tudo, fica, no entanto, por conta de uma rendição da Justiça à
tecnologia do sucesso, com a transformação do direito em simples e
corriqueiro objeto de consumo.
A politização da Justiça, nesse sentido, é diferente da politização do
Legislativo ou do Executivo. Diante de um Judiciário neutralizado, aque-
les dois Poderes produzem normas, mas não criam o direito. O poder
político valoriza e desvaloriza direitos, ao alterar-lhes a força de obriga-
toriedade. Pode até usar e abusar deles. Os produtos normativos ofere-
XXIV ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

cidos pela atividade política do Legislativo e do Executivo não passam,


porém, de mercadorias: têm valor de uso e valor de troca, mas não têm
valia, isto é, não têm valor em si. A neutralização política do Judiciário
é que institucionaliza a prudência como uma espécie de guardião ético
dos objetos jurídicos. Ora, com a politização da Justiça tudo passa a ser
regido por relações de meio e fim. O direito não perde sua condição de
bem público, mas perde o seu sentido de prudência, pois sua legitimi-
dade deixa de repousar na concórdia potencial dos homens, para fundar-
-se em uma espécie de coerção: a coerção da eficácia funcional. Ou seja,
politizada, a experiência jurisdicional torna-se presa de um jogo de es-
tímulos e respostas que exige mais cálculo do que sabedoria. Segue-se
daí uma relação tornada meramente pragmática do juiz com o mundo.
Pois, vendo ele o mundo como um problema político, sente e transfor-
ma sua ação decisória em pura opção técnica, que deve modificar-se de
acordo com os resultados e cuja validade repousa no bom funciona-
mento.
Sabemos ser impossível fazer voltar a roda do tempo. Em um livro
publicado em 1982, de título bastante sugestivo - Despedindo-se de Mon-
tesquieu (Abschied von Montesquieu) - Hans Girardi assinala que o prin-
cípio da divisão dos Poderes não tem hoje a mesma relevância de outras
épocas. Embora persistam as questões tradicionais referentes às funções
de controle na relação entre os Poderes, o eixo da discussão torna-se
agora a dicotomia tipicamente tecnológica macro-poder/micro-poder.”
Os riscos de uma desneutralização política do Judiciário não serão evi-
tados pela volta ao passado, mas por serem encarados, no contexto so-
cial de nossos dias, como desafios. Não se trata, pois, de preservar anti-
gos equilíbrios, mas de evitar a manipulação do homem pela tecnologia
e por todas as formas de poder que ela alimenta. Não certamente pelo

I2 Heidelberg, 1982, p. 46.


PRÓLOGO XXV

desejo — utópico — de eliminá-la, mas valendo-se, talvez, da sua própria


reflexividade, descobrindo na sua prática o seu limite e extensão. A ques-
tão é, afinal, como construir, com esse objetivo, uma — nova — tecnolo-
gia jurídica da aplicação do direito.
PARTE |
APLICAÇÃO DO DIREITO
|. APLICAÇÃO DO DIREITO COMO UM
J0GO DE PODER

Simplificadamente e em alusão a Max Weber, podemos dizer que em


uma relação de poder há três elementos: o agente de dominação, o pa-
ciente e as organizações estatuídas. Quando um agente emite uma nor-
ma, esta pode ser captada pelo paciente de diversos modos. A rela-
ção não é, pois, direta, mas mediada pelas organizações estatuídas que
constituem um código explícito. Por exemplo, nas organizações buro-
cráticas, as emissões de normas obedecem a uma disposição (impes-
soal) das competências. Esse código explícito tem de ser decodificado
para que a norma se cumpra. Entendemos por código uma estrutura
capaz de coordenar, para um item qualquer, dentro de um campo li-
mitado, outro que lhe seja complementar. Os códigos tornam comuns
as orientações de agentes comunicativos. Por meio do código ganha-se
relativa liberdade da situação concreta. Todavia, a generalização das
significações pode fazer com que as situações concretas se percam. Por
isso, o código tem de ser decodificado. Como se dá a decodificação?
Em geral, as prescrições burocráticas são emitidas por definição
(Weber) conforme um código dotado de rigor denotativo e conotati-
vo. Trata-se de um código forte que procura dar um sentido unívoco à
prescrição. Por exemplo: “as obrigações pecuniárias constituídas antes
deste Decreto-lei e sem cláusulas de correção monetária serão conver-
4 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

tidas na data de seu vencimento conforme o índice de deflação X” O


código forte confere à prescrição um sentido estrito, quando atribui ri-
gor às expressões obrigação pecuniária, constituição da obrigação, data
da constituição, fator deflacionário, etc. O rigor, porém, estreita o espa-
ço de manobra do destinatário, pois dele se exige um comportamento
estrito. Assim, a tendência do receptor é ganhar espaço, ampliar sua
possibilidade de comportamento. Por isso, ele decodifica a prescrição
conforme um código fraco, isto é, pouco rigoroso e flexível, discutindo
se todas as obrigações pecuniárias estão subsumidas na prescrição, se
uma obrigação apenas delineada provisoriamente, mas sujeita a inci-
dentes futuros, já foi constituída, etc.
Pode ocorrer, porém, que o emissor decodifique sua prescrição con-
forme um código fraco, procurando cercar o comportamento do recep-
tor de todos os lados pela flexibilidade de sentido. Nesse caso, o receptor
val, em contraposição, exigir uma decodificação precisa, conforme um
código forte, pois este é que lhe conferirá espaço de manobra.
Percebe-se, aqui, o jogo de poder presente na aplicação do direito,
que dela faz um jogo peculiar. Nesse jogo, a aplicação conhece sua pe-
culiaridade e constitui um desafio.
Em geral, as prescrições com força de lei são editadas conforme um
código de sentido de rigor denotativo e conotativo. Trata-se de um có-
digo forte que procura conferir um sentido unívoco à prescrição, visan-
do à obediência estrita de parte do receptor. Isto é, estreita o espaço de
manobras do destinatário. Os instrumentos são conhecidos em sede
tributária: legalidade estrita, reserva de lei, tipificação.
Veja-se, por exemplo, o tema do limite de 30% para a compensação
de prejuízos fiscais do Imposto de Renda de Pessoa Júridica — IRPJ e
de bases de cálculo negativas da Contribuição Social sobre o Lucro Lí-
quido — CSLL, previstos nos arts. 15 e 16 da Lei n. 9.065, de 20.06.1995,
no sentido de se saber sobre sua aplicabilidade ou não quando da ocor-
rência do encerramento da pessoa jurídica, seja por sua extinção pura
e simples, seja por incorporação, fusão ou por cisão (total ou parcial).
APLICAÇÃO DO DIREITO COMO UM JOGO DE PODER 5

Argumenta-se que, em face do comando legal do art. 111 do Códi-


go Tributário Nacional - CTN, que imporia restrição de interpretação
ampliativa das normas que concedem benefícios fiscais, como seria o
caso, descaberia o mencionado elastério interpretativo.
Invoca-se também o argumento da exigência de interpretação res-
tritiva (exceptiones strictissimae interpretationes sunt), na suposição de
tratar-se de um comando apenas para os casos que menciona e na for-
ma como menciona. O que, igualmente, desautorizaria a interpretação
extensiva, pois se o legislador dispôs sobre certos fatos para certas pes-
soas seria porque não quis estendê-los a outros fatos e pessoas.
Por fim, não se deixa de invocar, de certo modo, até um argumen-
to teleológico, ao mostrar-se que, em face do Decreto-lei n. 2.341/87,
não podendo a pessoa jurídica compensar seus próprios prejuízos fis-
cais se, entre a data de apuração e de compensação, houver ocorrido,
cumulativamente, modificação de seu controle societário e do ramo de
atividade (art. 32), sendo que a pessoa sucessora por incorporação, fu-
são ou cisão não pode compensar prejuízos fiscais da sucedida (art. 33,
com uma ressalva, no parágrafo único, para os casos de cisão parcial),
a interpretação extensiva dos arts. 15 e 16 da Lei n. 9.065/95 acaba-
ria por agasalhar uma forma disfarçada de violação daqueles preceitos,
contrariando um telos legislativo neles expressos.
O jogo código forte/código fraco pode também ser invertido: o
emissor normativo codifica sua norma de modo débil, abrindo o es-
paço de aplicação, enquanto o destinatário tenta decodificar mediante
um código forte, delimitando o espaço de aplicação do direito. É o que
sucede, por exemplo, quando o legislador se vale de conceitos indeter-
minados, valorativos e discricionários e o destinatário tenta recorrer a
julgados anteriores para estreitar as possibilidades decisórias pela de-
limitação jurisprudencial de um caso presente pelo decidido em casos
anteriores.
Il. APLICAÇÃO DO DIREITO:
ENTRE DECIDIR E JULGAR

O conceito de aplicação do direito é, sem dúvida, uma das categorias


mais problemáticas da teoria jurídica. A dificuldade está em certa con-
fusão do conceito com a noção de juízo e da aproximação entre decidir
e julgar. Na linha da era moderna, de influência marcante na construção
da teoria jurídica do século XIX, o juízo teria a ver com a faculdade de
pensar o particular como o sentido contido no geral. Por consequência,
a aplicação da lei — por presunção, conjunto de normas gerais — seria um
caso de exercício da faculdade de julgar, em que o caso particular seria o
dado a ser subsumido ao geral (a regra legal): tendo-se a aplicação como
a busca da regra geral adequada para um dado particular. Ou, em con-
trapartida, a regra geral (norma legal) é que seria o dado, tendo-se a
aplicação como a concretização do geral no particular.
Como se sabe, muitas dificuldades teóricas e práticas surgiram com
a necessidade de definir a natureza dessa operação, ora vista como mera-
mente lógica (subsunção como dedução), ora como verdadeira constru-
ção decisória in casu da norma adequada (subsunção como produção da
norma para o caso concreto, isto é, subsunção como concretização).
De um modo ou de outro, essa relação do geral com o concreto
acaba por supor um processo em que intervém uma pluralidade de su-
jeitos e que culmina na produção de uma sentença, isto é, de um enun-
8 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

ciado cuja referência operativa à realidade termina por ser garantida


institucionalmente. Se essa garantia tem um estatuto racional (isto é,
lógico) ou axiológico (isto é, principiológico) ou normativo formal (de
onde surge a criação desse imponente edifício do direito processual),
isso não oculta a presença do fenômeno do poder e do risco de um
puro arbítrio (voluntarismo).
Não é possível isolar inteiramente a aplicação do direito de sua in-
terpretação. No entanto, o problema que aqui se percebe está justa-
mente nesse salto teórico da busca pelo sentido correto, verdadeiro
(seja com base na voluntas legis, seja com base na voluntas legislatoris),
para a decisão vinculante. É conhecida, nesses termos, a radicalização
operada por Kelsen, em sua obra póstuma Allgemeine Theorie der Nor-
men (1979), quando aceita que a sentença, norma individual produzi-
da pelo juiz, não se prende a nenhum vínculo racional, mas é um puro
momento de escolha que, inclusive, pode contrariar um procedimen-
to de subsunção lógica para estabelecer-se como ato de vontade válido.
No direito da common law encontramos algo parecido naquilo que
a doutrina chama de ratio decidendi, isto é, no ato de aplicação do di-
reito a presença da escolha dos aspectos relevantes, em detrimento de
outros aspectos, desprezados ou ignorados, por serem considerados ir-
relevantes (obiter dictum).
Como se sabe, a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum não é
fácil de ser traçada." Até porque, por força das diferentes possibilidades
interpretativas, não é possível falar de uma única, mas de várias rationes
decidendi. Afinal, a práxis jurídica nos ensina que toda decisão jurídica
(norma individual) pode ser subsumida a um indefinido número de di-
ferentes regras gerais, identificadas mediante interpretação. Não obstan-
te, a ratio decidendi de uma decisão deve representar uma escolha me-
todicamente trabalhada, na qual se identificam premissas e conclusões.

1 Cf.srTONE, Julius. Legal system and lawyers reasonings, p. 268 e segs.


APLICAÇÃO DO DIREITO: ENTRE DECIDIR E JULGAR 9

Enquanto limitação da interpretação possível, a ratio decidendi aca-


ba por exigir, reflexivamente, outra interpretação. Ou seja, as limitações
legais expressam vinculações normativas, sujeitas às novas interpreta-
ções. O que nos recoloca no campo da escalada de critérios interpretati-
vos por força do apelo à ponderação do que é mais e do que é menos re-
levante. E, nessa determinação da relevância, vê-se a presença do que já
se chamou de poder de violência simbólica, isto é, o poder de impor sig-
nificações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão
no fundamento da própria imposição significativa.
Percebe-se, assim, o jogo de poder presente na aplicação do direito,
que dela faz um jogo peculiar. Nesse jogo, a aplicação conhece sua pe-
culiaridade e constitui um desafio.
Interessante, nesse sentido, o alerta contido em um depoimento de
Eros Grau,” professor de direito econômico e ex-ministro do Supremo
Tribunal Federal - STE:

Juízes, especialmente os chamados juízes constitucionais, lançam mão


intensamente da técnica da ponderação entre princípios quando dian-
te do que a doutrina qualifica como conflito entre direitos fundamentais.
Como, contudo, inexiste, no sistema jurídico, qualquer regra ou princí-
pio a orientá-los a propósito de qual dos princípios, no conflito entre eles,
deve ser privilegiado, essa técnica é praticada à margem do sistema, sub-
jetivamente, de modo discricionário, perigosamente. A opção por um ou
outro é determinada subjetivamente, porém a partir das pré-compreen-
sões de cada juiz, no quadro de determinadas ideologias. Ou adotam
conscientemente certa posição jurídico-teórica, ou atuam à mercê dos
que detêm o poder e do espírito do seu tempo, inconscientes dos efeitos
de suas decisões, em uma espécie de “voo cego”, na expressão de Riithers

2 Cf. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. La reproduction (há tradução para o


português).
3 Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do direito, p. 286.
10 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

[2005:233]. Em ambos os casos essas escolhas são perigosas. No primei-


ro porque a posição jurídico-teórica pode não ser a nossa; no segundo
porque se transformam, esses juízes, em instrumentos dos detentores do
poder. São sempre, não obstante, escolhas submetidas a reflexões dramá-
ticas. Eu o sei porque não gozo mais do benefício de ser somente um teó-
rico do direito, de não estar vinculado pelo dever de tomar decisões que
serão, em qualquer situação, trágicas para os alcançados por elas. Por
que eu? — tenho me perguntado tantas vezes, diante de problemas jurí-
dicos concretos. Quem me outorgou legitimidade para decidir? Toda de-
cisão jurídica é dramática se o juiz não se limitar ao exercício de práti-
cas meramente burocráticas, como um amanuense mediocremente bem
comportado.
HH. CULTURA DO CÓDIGO: O JUIZ
RACIONAL E A APLICAÇÃO COMO
SUBSUNÇÃO

A doutrina costuma, tradicionalmente, encarar a decisão jurídica so-


bretudo como problema da construção do juízo deliberativo pelo juiz,
mas também pelo administrador, pelo legislador, pela autoridade em
geral.' A análise formal desse juízo faz-nos pensar, inicialmente, em
uma construção silogística. Sendo toda decisão jurídica correlata de
um conflito que a desencadeia e de uma norma que a institucionali-
za, a primeira imagem que nos vem à mente é a de uma operação de-
dutiva em que: a) a norma (geral) funciona como premissa maior; b)
a descrição do caso conflitivo, como premissa menor; e c) a conclusão,
como o ato decisório stricto sensu. Essa operação valeria não apenas
para a obtenção de sentenças judiciais, mas também para decisões ad-
ministrativas e, no sentido de que o legislador, ao emanar leis, aplica a
Constituição também para as decisões legislativas. Entretanto, reduzir
o processo decisório a uma construção silogística o empobrece e não o
revela em sua maior complexidade.
A própria doutrina, se um dia insistiu na ideia da dedução, hoje está
ciente dessa complexidade. Já Aristóteles, afinal, notara que, se era fácil

1 Cf. RODRÍGUEZ-ARIAS BUSTAMANTE, Lino. Abogacia y derecho, p. 60.


12 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

relativamente identificar a premissa maior — o princípio ético vinculante


para o comportamento: a justiça deve ser respeitada —, era extremamen-
te difícil justificar e aceitar que o conflito descrito na premissa menor (a
ação X é injusta) constituísse um caso particular contido na generali-
dade da premissa maior. Ou seja, a aceitação geral de que a justiça deve
ser feita não leva, por si, à premissa de que a ação X é injusta e, portanto,
deve ser rejeitada. É preciso dizer o que é a justiça e provar que a ação X é
um caso de ação injusta. Eis o problema da subsunção.
IV. APLICAÇÃO E SUBSUNÇÃO

A questão que se coloca é: como submeter o caso à regra? O processo


de subsunção relaciona-se com o problema da aplicação do direito. A
aplicação não se confunde com a interpretação, embora a exija. De-
monstrado, por via hermenêutica, o sentido da norma, é preciso de-
monstrar que o caso a ser decidido nele se enquadra.
O processo de subsunção, que não se confunde com o automatismo
lógico da dedução, exige alguns passos importantes, que já se mostram
na própria elaboração da premissa maior.' Há quem diga, nesse sentido,
que, embora formalmente primeiro apareça a regra geral, depois a des-
crição do caso e por fim a conclusão, na verdade, o decididor tenderia
a construir a decisão por um procedimento inverso, intuindo, primei-
ro, a conclusão a que deve chegar para então buscar, regressivamente,
suas premissas.” Na verdade, essa observação mostra-nos que a subsun-
ção exige uma verdadeira construção da premissa maior, que não é um
dado (determinada norma da lei em vigor), como se poderia imaginar

1 Cf. ENGISCH, Karl. Einfiihrung in das juristische Denken (há tradução para o portu-
guês).

2 Cf, RECASÉNS SICHES, Luis. Tratado general de filosofia del derecho, p. 632.
14 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

a princípio. Engischº lembra-nos que o Código de Processo Penal ale-


mão exige, por exemplo, que a denúncia aponte com rigor as caracteris-
ticas do tipo legal no ato delituoso atribuído ao réu, o que significa sua
punibilidade. No entanto, aí se localiza uma grande dificuldade. Quanto
mais ampla e sutil é a tipificação legal do delito, tanto mais complicada
é aquela exigência, que obriga aquele que decide a percorrer um verda-
deiro labirinto de normas que se coligam, se completam, se excluem. Por
isso, houve mesmo quem dissesse (Stammler) que quem aplica artigo de
um código, na verdade, está aplicando o código inteiro.
Se isso, de um lado, é exagero, de outro mostra-nos que a construção
da premissa maior é extremamente complicada no ato de decisão. A dou-
trina estuda esse problema em termos de qualificação jurídica do caso.
Lembremo-nos da concepção da estrutura da norma como imperativo
(despsicologizado) - cometimento —- que impõe um comportamento na
medida em que o qualifica e lhe atribui consequências — relato. Ou seja, a
norma estabelece uma hipótese de incidência — a facti species — cuja ocor-
rência desencadeia uma consequência jurídica — por exemplo, uma sanção.
A hipótese normativa não é uma simples descrição abstrata e gené-
rica de uma situação concretamente possível, mas traz em si elementos
prescritivos. Assim, uma norma, ao configurar uma facti species, não
está apenas descrevendo-a, mas tipificando-a. Por exemplo, uma nor-
ma penal que impute pena à conduta de abandonar pessoa que está
sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade e, por qualquer mo-
tivo, seja incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono,
não descreve abandono, mas qualifica-o ao delimitar-lhe os caracteres
do ponto de vista do direito. E o que se diz para a hipótese de inci-
dência vale também para a consequência prevista, que não é também
mera descrição (por exemplo, de um ato coercitivo - a sanção), mas
traz também algo de prescritivo.

3 Ibidem, p. 65.
APLICAÇÃO E SUBSUNÇÃO 15

Essa tipificação, porém, não é evidente. Por isso, a qualificação jurí-


dica, para efeito de decisão, tem de ser construída. Nessa construção, é
preciso identificar no caso concreto o que na palavra da lei aparece ex-
presso por conceitos indeterminados e valorativos. Entendemos por con-
ceitos indeterminados os que manifestam vagueza, isto é, não é possível,
de antemão, determinar-lhes a extensão denotativa. Assim, por exem-
plo, as expressões: repouso noturno, ruído excessivo, perigo iminente, etc.
Conceitos valorativos (ou normativos) são os que manifestam ambigui-
dade, isto é, não é possível, de antemão, determinar-lhes a intenção co-
notativa. Por exemplo: mulher honesta, ofensa à dignidade e decoro, etc.
Além disso, por vezes, a própria norma se reporta, explicitamente, à ne-
cessidade de concreção pelo aplicador, quando, por exemplo, lhe abre
uma margem de discricionariedade: “pena de 6 a 10 anos”. A concreção
dos conteúdos normativos, conceituados, eventualmente, de forma vaga
e ambígua, porém, não é arbitrária, mas vem balizada pelo próprio siste-
ma. Assim, o controle do processo decisório encontra princípios de ba-
lizamento da aplicação. No direito moderno, o mais importante é o da
legalidade, que vincula o decididor à lei e se expressa pela proibição da
decisão contra legem. Tomado estritamente, porém, o princípio confe-
riria insuportável inflexibilidade à aplicação do direito, apesar de todas
as nuanças interpretativas que possam existir. Para evitar a extremada
rigidez, aparecem, então, outros princípios, como o da discricionarieda-
de, que obriga o decididor ao telos geral do sistema, mas abre a possibi-
lidade de escolha de meios, conforme um juízo valorativo de oportuni-
dade. O princípio da discricionariedade, cujo conceito estamos usando
em sentido amplo, mais extenso do que a noção de ato discricionário no
direito administrativo, baliza o ato decididor quando este tem de aplicar
cláusulas gerais do tipo “no cumprimento das obrigações ou no exerci-
cio dos direitos correspondentes, deve-se proceder de boa-fé. A boa-fé é
um standard que exige um juízo de oportunidade balizado. Podemos fa-
lar ainda em um princípio de aplicação corretiva da norma como baliza-
mento da concreção que flexibiliza a proibição contra legem e que vemos
16 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

expresso no art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Bra-


sileiro - LINDB: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a
que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Não se trata de uma re-
gra de interpretação, como se fosse dado ao intérprete “corrigir”, por um
juízo de valor, o sentido da lei, mas sim um princípio de aplicação, que
autoriza o decididor a aproveitar as nuanças do caso concreto em con-
fronto com o texto legal: é a decisão que deve atender aos fins sociais e às
exigências do bem comum. Que o sentido da lei satisfaça a ambos é um
pressuposto interpretativo do legislador racional.
Os princípios da proibição da decisão contra legem, da discriciona-
riedade e da aplicação corretiva balizam a concreção normativa quanto
a seu sentido válido. Há outros ainda que se reportam à sua eficácia. É o
caso do princípio da irrelevância do desconhecimento da lei. Ele aparece
expressamente no art. 3º da mencionada LINDB: “Ninguém se escusa de
cumprir a lei, alegando que não a conhece. O princípio baliza a aplica-
ção a fim de evitar o travamento das decisões por resistência dos sujei-
tos, mesmo de boa-fé. Não se trata de um princípio absoluto e, mesmo
em setores altamente dominados pelo princípio da legalidade, como é
o direito penal, reconhece-se, para contrabalançá-lo, a possibilidade da
ignorância do caráter ilícito do ato como atenuante e até de exclusão de
penalidade. Ainda no que diz respeito ao âmbito de eficiência, há de se
lembrar o princípio da cláusula rebus sic stantibus, que permite ao aplica-
dor conformar o direito à realidade quando a celeridade social e econô-
mica altera as circunstâncias, tornando, por exemplo, as cláusulas de um
contrato incompatíveis com o sentido da obrigação. Por exemplo, o fe-
nômeno da inflação, em casos de dívidas cuja expressão monetária se vê
corroida e para as quais não há previsão de correção, pode levar o cum-
primento da obrigação, de um lado, a uma vantagem iníqua e, de outro, a
manifesto prejuízo. Conquanto se suponha que, ao elaborar um contrato,
as partes sejam previdentes, o futuro pode trazer situações fora de qual-
quer previsibilidade. O decididor pode invocar essa alteração imprevisi-
vel das condições de fato, fazendo menção à cláusula rebus sic stantibus.
V. O JUIZ RACIONAL COMO ENDEREÇADO
DA SUBSUNÇÃO

Para que a subsunção funcione, é preciso que os agentes do processo


de aplicação (advogados, juízes, promotores, procuradores, etc.) traba-
lhem o raciocínio argumentativo tendo uma base comum.
Essa base comum é aquilo que a doutrina alemã, no século XIX,
elaborou como a figura do legislador racional que contagia por razões
de segurança o juiz como um terceiro imparcial, objetivo, neutro, etc.
Nessa conceituação da vontade racional, ressaltem-se, entre seus
atributos, alguns postulados de competência, desenvolvidos pela dog-
mática alemã do século XIX, entre os quais: a) o legislador não cria
normas impossíveis de serem executadas, daí por que não se pode de-
sejar que alguém realize e deixe de realizar o mesmo ato; b) o legislador
não cria normas sem algum propósito, do que decorre a razoabilidade
de seus comandos; c) as condutas exigidas ou permitidas nas normas
são aptas a levar os sujeitos normativos à consecução dos propósitos
da regulação (coerência entre meios e fins); d) a vontade do legislador
é unitária, de forma que as regras estão sistematicamente relacionadas;
e) a vontade do legislador é completa, no sentido de que soluciona to-
18 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

dos os casos por ele reputados como relevantes; f) o legislador é rigo-


rosamente preciso e não cria normas inócuas ou redundantes.
Os traços da figura racional são:

1. Trata-se de uma figura singular, isto é, apesar da multiplicidade con-


creta (colegiados, parlamentos, juiz natural, juiz substituto, decisão
colegiada), deve ser pressuposta sua identidade: o legislador/o juiz.
2. É uma figura permanente, isto é, não desaparece com a passagem
do tempo e com a morte das vontades concretas.
3. É único, isto é, é o mesmo para todas as normas do ordenamento,
não obstante as diferenças no tempo e no espaço e as diversas com-
petências normativas, como se todo o ordenamento obedecesse a
uma única vontade.
4. É consciente, ou seja, conhece todas as normas que emana, passa-
das e presentes, tendo ciência global do ordenamento.
5. E finalista, isto é, ao sancionar uma norma, sempre tem alguma in-
tenção.
6. É onisciente, pois conhece todos os fatos e condutas, nada lhe esca-
pando, sejam eventos passados, sejam presentes ou futuros (tudo o
que está nos autos está no mundo).
7. É onipotente, pois suas normas vigem até que ele próprio ou, em
grau de recurso, o tribunal as substitua soberanamente.
8. É justo, pois jamais deseja uma injustiça, tudo se resumindo em
uma questão de compreendê-lo bem.
9. É coerente, ainda quando, aparentemente, se contradiz (ver a resis-
tência à aceitação de embargos de declaração).

1 Cf. WIEACKER, Franz. Privatrechisgeschichte der Neuzeit. Góttingen, Vandenhoeck &


Ruprecht, 1967.
2 Cf. SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho.
O JUIZ RACIONAL COMO ENDEREÇADO DA SUBSUNÇÃO 19

10. É onicompreensivo, pois, como o ordenamento tudo regula, explíci-


ta ou implicitamente, na aplicação do direito é todo o ordenamento
que se aplica.
11. É econômico, isto é, nunca é redundante, nunca usa palavras supér-
fluas, e cada norma, ainda que aparentemente esteja a regular a mes-
ma facti species, tem na verdade uma função própria e específica.
12. É operativo, pois todas as suas normas têm aplicabilidade, não ha-
vendo normas nem palavras inúteis.
13. É preciso, pois, apesar de se valer de palavras da língua natural, vagas
e ambíguas, sempre lhes confere um sentido rigorosamente técnico.

A base dessa racionalidade encontra-se no princípio kantiano “dever


implica poder”, no sentido de que ninguém, em sá consciência, pode-
ria desejar o impossível ou o incoerente ou obrigar-se a ele, o que ecoa
o antigo brocardo: ad impossibilia nemo tenetur (ninguém se obriga a
coisas impossíveis). Assim, na comunicação que se estabelece, inter-
mediada pelo jogo das decodificações, entre o legislador empírico e os
destinatários normativos, assume-se que os agentes (autoridade e su-
jeitos) compartilham esse mínimo de padrões de racionalidade.
Tal exigência de compartilhamento de padrões mínimos de racio-
nalidade é, por hipótese, condição necessária de todo e qualquer ato
argumentativo (o que vale não só para os que peticionam, mas tam-
bém para quem decide: motivação). Atribuir intenções desarrazoadas
simplesmente mina a possibilidade de argumentar dentro da cultura
do código.
Na verdade, a hipótese não é isenta de uma tomada de posição
ideológica, que se baseia no modo como se atribui relevância aos va-
lores principais do sistema normativo. Essa ideologia, implícita na
atividade argumentativa, pode ser estática ou dinâmica. Ela é estáti-

3 Cf. von WRIGHT, Georg Henrik. Norma y acción. Madrid, Tecnos, p. 111.
20 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

ca quando a hipótese favorece valores como a certeza, a segurança, a


previsibilidade e a estabilidade do conjunto normativo. Ela é dinâmi-
ca quando favorece a adaptação das normas, a operacionalidade das
prescrições normativas, em suma, o valor justiça, menos em termos
de justeza das prescrições (igualdade proporcional), mais em termos de
senso do justo, de onde vem a importância da equidade e de valores
universais, como a dignidade da pessoa, capazes de dar ao significado
das normas um sentido que alcance situações presentes e repercussões
futuras.* No primeiro caso, a consistência do sistema normativo privi-
legia aspectos mais formais. No segundo, a razoabilidade prática das
prescrições.
Ainda na mesma linha de eficácia, podemos lembrar o conceito de
força maior ou caso fortuito, como evento imprevisível e irresistível no
curso dos fenômenos - uma guerra, uma catástrofe natural que alte-
ra subitamente a situação e deve ser levada em conta -, ou de factum
principis, como a súbita alteração das condições jurídicas pela inter-
venção soberana do Estado, ao editar novas normas. De modo geral, a
teoria da imprevisibilidade nos contratos é rica em princípios baliza-
dores deste gênero.

4 Cf DASCAL, Marcelo. Interpretação e compreensão, p. 375.


VI. ARGUMENTAÇÃO RACIONAL E
PROCEDIMENTO ARGUMENTATIVO

Na cultura do código, o controle da decisão por meio de procedimen-


tos institucionalizados (a burocratização das decisões nas sociedades
modernas é um exemplo típico do que estamos falando) neutraliza,
assim, a pressão dos fenômenos sociais sobre o sistema jurídico. Nos
procedimentos, todos agimos de acordo com papéis sociais institucio-
nalizados. No processo judicial, somos partes ou agentes judiciais ou
advogados ou juízes; em um procedimento privado, somos credores e
devedores ou partes contratuais, ou funcionários da burocracia empre-
sarial. Os papéis sociais garantem a interação contínua, pois, configu-
rados socialmente de antemão, por meio deles nos identificamos sem a
necessidade de nos conhecermos, primariamente, como pessoas (con-
cretas, isto é, como um feixe unitário de papéis que se comunicam). O
próprio sistema, assim, encarrega-se de constituir símbolos que con-
figuram os papéis e lhes impõe uma espécie de dever de consistência
(quem assume um papel não pode trocá-lo arbitrariamente, sob pena
de configurar má-fé ou de conduzir a uma incompetência, etc. — por
exemplo, quem se apresente como devedor não pode, injustificada-
mente, aparecer como credor). Embora, nos procedimentos decisórios,
não se possam ignorar os chamados “contatos pessoais”, as boas rela-
ções (plano dos fatos que sociologicamente influem na decisão), o que
22 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

conta, em última instância, é o papel assumido, e todo o resto pode


aparecer como forma velada de corrupção. Segue-se também a exigên-
cia de que as decisões ocorram conforme uma linguagem técnica, que
mesmo as declarações na língua natural sejam protocoladas, para que
a distância entre o procedimento e a relação social fique marcada e a
decisão possa ocorrer conforme o direito. O que se decide é o conflito
institucionalizado, o qual não admite escaladas e deve ser tratado den-
tro do sistema.
Essas considerações nos fazem entender como se distribui a car-
ga da responsabilidade pela decisão. Decisões, de modo geral, podem
ser programadas procedimentalmente: a) fixando-se previamente os
meios, deixando em aberto as consequências; ou b) fixando-se as con-
sequências a serem atingidas, deixando-se em aberto os meios utili-
záveis. No primeiro caso, temos uma programação condicional; no se-
gundo, uma programação finalística.' Na programação condicional, a
responsabilidade do decididor é pelo correto uso e aproveitamento
dos meios: se a consequência é atingida ou não, se há a ocorrência de
desvio, porque se objetivou uma finalidade e se obteve outra, o decidi-
dor não suporta a carga da consequência. Já na programação finalísti-
ca, o decididor é responsável pelo atingimento da finalidade. Por isso,
suporta toda a carga de uma correta busca dos meios, havendo entre
meios e fins uma solidariedade não ignorável.
Pois bem, nos sistemas jurídicos positivados e burocratizados, há
forte predomínio de programações condicionais, posto que o sistema
normativo aparece, primordialmente, como conjunto de normas que
estabelecem os procedimentos dentro dos quais as decisões são reco-
nhecidas como vinculantes. Não obstante, aspectos finalísticos não po-
dem ser desprezados, pois, como vimos, as considerações sobre o te-
los nunca desaparecem, nem podem ser ignoradas totalmente, mesmo

1 Cf. LUHMANN, Niklas. Rechtssoziologie, v. 2, p. 227 (há tradução para o português).


ARGUMENTAÇÃO RACIONAL E PROCEDIMENTO ARGUMENTATIVO 23

quando apontam para valores difusos como a justiça, o bem comum, o


interesse social, etc. No entanto, a prevalência da programação condi-
cional faz da decisão jurídica um procedimento em que o cuidado com
as práticas burocráticas acabe por ter uma enorme relevância.
As situações, porém, variam um pouco quando pensamos, por
exemplo, na diferença entre as decisões prolatadas por juízes (mar-
cadamente condicionais: o juiz é responsável pelo correto emprego
dos preceitos normativos de direito substantivo e processual — proi-
bição da decisão contra legem) e as decisões que ocorrem em juízos
arbitrais, em que os árbitros se sentem dominados pela finalidade e
são responsáveis na medida em que os fins colimados sejam atingi-
dos com o mínimo possível de perturbação, ou o máximo possível de
acordo. Por isso mesmo, a argumentação jurídica, no caso da deci-
são pelo magistrado (ou no caso de decisões administrativas), reforça
as considerações formais, insiste no respeito ao direito posto mesmo
em detrimento do aproveitamento das condicionantes de fato, en-
quanto nos juízos arbitrais prevalece o apelo a argumentos teleológi-
cos e valorativos, à justiça do caso concreto, mesmo que isso ocorra
em detrimento das condições legais. Daí, em muitos contratos, a ex-
pressa proibição de que, em caso de arbitragem, os árbitros recorram
à equidade.
Na decisão jurídica temos, pois, um procedimento racional. Quem
decide ou quem colabora para a tomada de decisão apela ao atendi-
mento de outrem. O decidir juridicamente exige fundamentação. Não
deve apenas ser provado, mas comprovado. Essa comprovação não sig-
nifica necessariamente consenso ou acordo, mas sim que são obedeci-
das regras sobre a obtenção do consenso que aliás nem precisa ocor-
rer. Por isso, uma decisão que não conquiste a adesão dos destinatários
pode ser, apesar do desacordo, um discurso fundamentante (racional).
Da argumentação para a obtenção das decisões segue um procedi-
mento que obedece a um padrão argumentativo tradicional.
24 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Veja-se o que se passa com o discurso judiciário. Propomos que


se distinga aí uma tópica material de uma tópica formal” A primeira
constitui um conjunto de regras referentes à argumentação dos parti-
cipantes, que têm em vista seus interesses subjetivos. Postula-se que há,
nesse tipo de discurso, uma espécie de obrigação de manifestação da
própria imagem. Daí decorre que, ao se manifestarem, os participantes
podem fazê-lo de modo pessoal ou impessoal. Pessoais são as manifes-
tações que, em tese, cabem a quem se manifesta na sua integralidade.
Impessoais são aquelas que cabem apenas no papel exercido pela pes-
soa na circunstância. Assim, por exemplo, as partes (não profissionais,
no processo jurídico) tendem a manifestar-se pessoalmente e, para isso,
valem-se de uma tópica material que permite conduzir a argumenta-
ção de modo a antecipar-se a decisão e seus fundamentos materiais.
Assim, elas podem apresentar-se como indefesas, ingênuas, honestas,
injustiçadas, pessoas comuns, tipos diferentes, de boa-fé, com interes-
ses conforme o bem comum, etc. Já os participantes profissionais (juiz,
advogado, etc.) tendem a manifestar-se impessoalmente, valendo-se de
uma tópica material em que se privilegiam lugares-comuns, como se-
renidade, imparcialidade, interesse da justiça, responsabilidade, profis-
sionalidade, etc. Ao mesmo tempo, o discurso é guiado por uma tó-
pica formal, que constitui um conjunto de regras capazes de conduzir
a argumentação, tendo em vista o processo objetivamente considera-
do. Desenvolvem-se, assim, topoi de argumentação que dizem respeito
ao ônus da prova, à ordem dos recursos, à forma dos arrazoados e das
sentenças, como a exigência de pertinência, de clareza, de consequen-
cialidade, que permitem à argumentação uma antecipação do que irá
suceder e que orientam a ordem dos argumentos, dando o senso de
oportunidade, a possibilidade de avaliar a força persuasiva, etc.

2 Cf. FERRAZJR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito, p. 298 e segs.


ARGUMENTAÇÃO RACIONAL E PROCEDIMENTO ARGUMENTATIVO 25

Como técnica de pensamento, a tópica (material e formal) leva a


argumentação judicial a um jogo em que ocorre o uso abundante das
distinções, das redefinições de velhos conceitos, das analogias, das in-
terpretações extensivas, das retorsões, das ironias, da exploração téc-
nica das ambiguidades, das vaguezas, das presunções, tudo conforme
uma técnica argumentativa tradicional.
PARTE ||
ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
VII. PROCEDIMENTO ARGUMENTATIVO
DOGMÁTICO

Argumentar significa tecer argumentos, aduzir os raciocínios que


constituem uma argumentação. No sentido jurídico, a palavra é usa-
da sobretudo transitivamente, em termos de alegar, trazer como argu-
mento, e é um modo específico de raciocinar que procede por questio-
namentos sucessivos, razão pela qual alguns autores da Antiguidade
também denominaram a parte do discurso retórico à argumentação
de questiones.
Admitindo-se que todo problema trazido à deliberação jurídica
tem o caráter de um conflito, isto é, alternativas incompatíveis que pe-
dem decisão, o procedimento argumentativo começa, em geral, por
questionar a consistência do conflito enquanto jurídico. Trata-se de
um questionamento prévio, condicionante mesmo da argumentação
subsequente, que lhe determina o caráter. Tem a finalidade de verificar
se há mesmo um conflito e, sobretudo, se ele é jurídico. A retórica an-
tiga chamava essa primeira etapa de translatio, pois ela permite às par-
tes litigantes uma transferência do objeto da discussão para outro que
mantém com o primeiro uma relação condicionante de que um não
possa ser discutido sem que antes se discuta o outro (lembre-se, por
exemplo, da possibilidade de se discutir a validade de um documento —
em uma ação declaratória - que serve de base a uma ação executiva).
30 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Após a translatio, segue-se um procedimento denominado conjectu-


ral, que se refere às consistências fáticas das alegações. Articula-se um
fato que se liga a um autor. O ato de argumentar procede, então, pelo
questionamento: há o fato? quem é o autor? Esta última interrogação,
por sua vez, sugere uma conjectura do ânimo do autor (vontade livre,
coagida, intencional, etc.), de suas condições de possibilidade, de seu
relacionamento com o fato. O questionamento estrutura as posições de
ataque e defesa. O ataque mais forte afirma o fato e relaciona-o ao autor.
A defesa mais forte nega ambos. A defesa mais fraca admite o fato, mas
nega a autoria, objetando o ânimo, ou as condições de possibilidade, ou
o relacionamento causal. Ela introduz, em seu argumentar, uma limita-
ção: “admite-se, mas..., que nos conduz a um terceiro momento.
O novo lance do procedimento argumentativo consiste na proposi-
ção de outro objeto direto que modifica o conteúdo do fato: “admite-se,
mas outra coisa”. Essa fase chama-se definitio, discutindo-se aqui a rela-
ção entre o fato e seu sentido tipificado pela norma. Nessa etapa, o ata-
que mais forte afirma a relação, a defesa forte nega-a, ou então, à medi-
da que uma designação legal é muito desfavorável, a substitui por outra.
Por exemplo, substitui-se a designação roubo por furto, procurando-se
mostrar que se trata de furto, cuja gravidade é menor. A pura negação
constitui uma defesa mais forte, pois isenta o acusado; a substituição é
defesa mais fraca, pois apenas diminui a intensidade do alegado.
A definitio, no questionamento argumentativo, é sempre partidária,
isto é, ela é usada no interesse das partes. Ela estabelece uma relação
entre a questão onomasiológica (designação do fato) e a questão sema-
siológica da palavra normativa (significação do texto normativo), em
função da produção de convicção. A definitio corresponde, na argu-
mentação jurídica, a uma normativização jurídica da semântica natural.
Aqui, entra a habilidade hermenêutica. Do ponto de vista da decisão,
seu fim último é subsumir a designação do fato à significação da pala-
vra legal querida pelo legislador (voluntas legislatoris) ou querida pela
lei (voluntas legis) - a opção manifestada pela disjunção ou dependen-
PROCEDIMENTO ARGUMENTATIVO DOGMÁTICO 3]

te do interesse das partes —, ou negar essa subsunção, tendo em vista as


possibilidades de ataque e defesa. No questionamento, a existência de
uma voluntas legislatoris ou voluntas legis, à qual a palavra da norma
deve corresponder, constitui uma presunção que limita, até certo pon-
to, a liberdade das partes em usar a definitio de acordo com seus inte-
resses. Por isso, cada parte procura demonstrar convincentemente sua
definição, recorrendo a argumentos referentes à intenção da lei ou do
legislador, ao uso linguístico geral, à etimologia, a critérios axiológicos
dominantes em uma cultura e mesmo aos efeitos patéticos que ela (a
definição) possa sugerir. Esses recursos arrefecem a força da presunção,
tornando difícil uma qualificação - sempre no sentido partidário - da
definição em termos de verdadeira ou falsa. As definições, no discurso
decisório, sempre têm caráter persuasivo. O caráter persuasivo da de-
terminação significativa da palavra da norma obriga-nos a uma distin-
ção elástica e gradativa, que oscila, com diferentes intensidades, entre
um plenum (a definição que, no sentido partidário, abrange um núme-
ro de fatos-tipos proporcionalmente limitado, não pecando por excesso)
e um parum plenum (a definição que abarca fatos-tipos em demasia ou
de menos). Em virtude disso, resta sempre uma dúvida referente à re-
lação da norma à designação do fato em tela, relação esta que tem sem-
pre um sentido analógico, isto é, procura-se uma espécie de semelhan-
ça entre o tipo normativo e o fato. Essa dúvida pode ter graus diversos
de complexidade, distinguindo-se questões simples, em que se discute
a subsunção analógica de uma designação supostamente natural à ter-
minologia legal, e questões comparativas, caso em que encontramos, na
terminologia legal, mais de um termo para a designação natural de um
fato, com todos os problemas hermenêuticos que daí decorrem.
Dissemos anteriormente que a defesa mais fraca — “admite-se,
mas... — introduz o questionamento da relação entre fato e norma —
definição - em termos de “admite-se, mas outra coisa”. Existe, contu-
do, outra possibilidade, o que nos permite introduzir um quarto mo-
mento do questionamento que se manifesta na expressão: “admite-se,
32 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

mas de jure”. Trata-se, nesse caso, da questão da qualificação adverbial


do fato, conforme a alternativa jure/non jure. A estratégia é aí uma de-
fesa de qualidade jurídica do fato alegado. Essa defesa envolve tam-
bém a questão da quantidade, no sentido da amplitude (quantitativa)
do fato (quantos fatos concretos estão abrangidos pelo tipo norma-
tivo). Aqui, igualmente, podemos distinguir uma defesa mais forte e
uma mais fraca. À força da defesa repousa na força atribuída ao ad-
vérbio jure. Procura-se demonstrar, então, que o fato revela uma qua-
lidade de jure imanente, por meio da sua conformidade evidente com a
norma. Essa demonstração, por sua vez, coloca o problema dos graus
da relação de validade das normas e, consequentemente, de uma hie-
rarquização dos diversos âmbitos normativos: direito positivo, direito
suprapositivo, princípios axiológicos, etc., em que se discute, então, a
prevalência destes sobre aquele. Essa discussão tem um estatuto técni-
co-dogmático (hierarquia das normas) que, dada a oportunidade da
defesa e do ataque, aponta para uma forma suprapositiva de questiona-
mento (fundamento das normas para além do direito posto). Quando,
porém, a conformidade não pode ser demonstrada, a defesa é mais fra-
ca e dá-se pela introdução de outros fatos e condições que modificam,
em um sentido favorável, a qualidade jurídica. Assim, por exemplo, re-
laciona-se um comportamento, admitido como ilícito, a uma reação
natural e espontânea ao comportamento ilícito da outra parte (p.ex.,
agrediu, mas isso era uma resposta a uma forte ameaça de agressão do
outro). Ou procura-se trazer para a avaliação do fato admitido como
ilícito um critério modificador, como o bem comum, a utilidade ge-
ral, o dever “superior” de servir ao interesse público, etc., tentando-se,
pela comparação, uma espécie de compensação (por exemplo: agrediu,
mas estava evitando que o agredido, por estar fora de si, atingisse ou-
tras pessoas). Pode-se ainda remover a força do ataque da tese contrá-
ria, reconhecendo-se a ilicitude do comportamento, mas transferindo
a carga da intencionalidade: “disse, mas não queria dizer, “fez, mas
não queria fazer”. Aqui, introduz-se, por exemplo, a problemática da li-
PROCEDIMENTO ARGUMENTATIVO DOGMÁTICO 33

berdade, a questão do ato sob coação, da boa-fé, do erro, da ignorância,


etc. Por fim, a forma mais fraca da defesa, dentro do questionamento
da qualidade, é uma espécie de vênia deprecativa, em que a ilicitude
do comportamento e da intenção é reconhecida, mas há um apelo de
clemência, dadas circunstâncias especiais, como a situação econômica,
condições sociais, etc. Aqui, aparecem, entre outros, argumentos como
o da cláusula rebus sic stantibus, o apelo à equidade, etc.
A esses momentos do questionamento argumentativo vincula-se o
questionamento do próprio dogma do qual se parte — a lei, o direito
consuetudinário, a norma administrativa, etc. —, o que permite ao pro-
cesso decisório discutir seus pontos de partida sem negá-los. Trata-se
de uma astúcia da razão dogmática para extrair de sua vinculação ao
dogma sua própria liberdade.
Tomada a própria norma como questão, o questionamento apre-
senta um decurso próprio, mas que pode ser construído analogamente
ao precedente. Podemos distinguir aí três níveis gerais, que chamaria-
mos de análise, crítica e metacrítica. No primeiro nível, a norma é to-
mada como uma ação linguística (norma-comunicação). Como tal, ela
envolve questões relativas a seu autor (emissor), a seu destinatário (re-
ceptor), a ela própria como mensagem prescritiva (objeto). No segun-
do nível, ela é articulada dentro de uma situação e examinada em sua
estrutura, em seu repertório e em seus objetivos, isto é, ela é interro-
gada em seu próprio fundamento (dever de prova). No terceiro nível,
esse fundamento é posto à prova, pedindo-se sua justificação.
No primeiro nível, isto é, no nível da análise, a norma é presumi-
da como scriptum ou vox que possui uma intentio que lhe é própria,
ou que lhe foi dada pelo autor - voluntas legis ou voluntas legislato-
ris. O questionamento analítico separa o scriptum ou vox (por exem-
plo: é proibido pisar na grama) da voluntas (por exemplo: está incluí-
do na proibição “pisar no canteiro”?), captando-os como alternativas,
de onde surge a possibilidade de uma incompatibilidade entre ambos.
O sentido desse questionamento é determinar a voluntas, sobre o que
34 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

paira, aliás, uma disputa teórica, que já examinamos na hermenêuti-


ca: voluntas legis ou voluntas legislatoris? Como, mesmo no questio-
namento do dogma, ao menos o scriptum deve ser pressuposto, uma
dúvida conjectural (conjectura) volta-se aí sobre a existência ou não de
uma voluntas determinada. Pode ocorrer, entretanto, uma conjectura
sobre o próprio scriptum, no caso, por exemplo, de um direito costu-
meiro que tenha de ser demonstrado positivamente, isto é, não bas-
ta o simples juízo negativo de que um costume não contradiz o direi-
to vigente para reconhecê-lo como imanente ao ordenamento jurídico.
Da incompatibilidade conjectural (o legislador quer/não quer) — o ata-
que mais forte corresponde à afirmação de uma voluntas específica; a
defesa mais forte, por sua vez, é constituída por sua negação — passa-
se para uma questão de definição (definitio) que introduz um objeto
à dicotomia inicial: o legislador “quer (ou não quer), mas... outra coi-
sa. Expomos aqui o problema de determinação (histórica, sociológica,
psicológica, econômica, etc.) da voluntas normativa e da possibilidade
de sua aplicação analógica. A definitio revela, como vemos, o problema
semântico que nos coloca entre a presunção da clareza da lei em con-
traste com sua obscuridade semiológica.
A ampliação analógica da voluntas conduz-nos ao segundo nível
do questionamento. Isso porque a ampliação faz da definitio uma ten-
tativa de normatização da própria norma, aparecendo aí uma questão
de qualidade. Propõe-se aí o problema do conflito das normas, que é,
de início, um desdobramento do nível analítico, pois se levanta a pos-
sibilidade de incompatibilidade não só entre scriptum e voluntas, mas
entre dois scripti e voluntates (por exemplo: é proibido pisar na grama;
é obrigatório entrar pelo jardim). Contudo, para além disso, o confli-
to das normas constitui, na verdade, um conflito de validade: no nível
crítico, o problema da validade é posto em termos de avaliação de uma
norma por outra norma. Colocamos aqui a questão de hierarquia e ex-
tensão (estrutura) em relação ao âmbito de incidência (repertório) do
sistema do ordenamento. A questão qualitativa, no nível crítico — vá-
PROCEDIMENTO ARGUMENTATIVO DOGMÁTICO 35

lido/não válido - conduz-nos finalmente a um nível metacrítico em


que a norma é questionada em seu sentido metanormativo, isto é, para
além de sua vigência, em sua eficácia (social) e em seu fundamento
axiológico (questão da legitimidade).
Essas são, em linhas gerais, as etapas do ato de argumentar na cul-
tura do código. O argumentar, em oposição ao descrever, ao relatar, etc.,
caracteriza-se pela pretensão de validade persuasiva de suas asserções.
Essa pretensão implica sempre um dever de prova (onus probandi) que
se explicita, particularmente no saber dogmático, na forma entrecru-
zada de seu decurso, em termos de afirmações e contra-afirmações, ar-
gumentos e contra-argumentos.
É esse estilo de argumentar que vem sendo posto a prova e sofren-
do transformações nos dias de hoje.
VIH. À PASSAGEM: DO INTERPRETAR NA
CULTURA DO CODIGO AO ARGUMENTAR
PELA PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS

Para tornar clara a passagem que nos conduz de uma hermenêutica


moldada nos quadros da cultura do código para uma teoria da argu-
mentação mais voltada para a aplicação direta de princípios, vale-se
aqui do exemplo daquilo que ocorre em sede constitucional. Até por-
que, essa mudança recebe a chamada ponderação de princípios sob a
expressão em sentido abrangente de neoconstitucionalismo.
É conhecida uma questão que se põe em nossos dias, para saber
como deve ser tratada a decisão de garantir a proteção à saúde em face,
de um lado, de uma restrição à livre-iniciativa com o sentido de um pla-
nejamento compulsório para uma atividade empresarial privada e, de
outro, de exercício de uma competência que, expressa na própria Cons-
tituição Federal, atribui ao Estado o direito de intervir, em nome do di-
reito à saúde, no livre mercado, quer no aspecto da livre-iniciativa, quer
no da liberdade de informação. O problema interpretativo está em como
conciliar os eventuais conflitos entre os direitos (liberdade/saúde).
Para a análise do problema, dois princípios fundamentais merecem
menção: a previsão constitucional de inviolabilidade da dignidade da
pessoa do que decorre, de um lado, a instauração da liberdade como
valor moral a ser perseguido e concretizado na ordem jurídica, aí pre-
sente a liberdade e o caráter social e livre da atividade econômica, que,
38 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

por sua vez, dá o padrão da intervenção do Estado nesse âmbito; de


outro, o direito à vida, do que decorre o direito social à saúde e que faz
dessa um dever do Estado, donde a exigência de políticas que visam à
sua garantia (CF, art. 196).
Na competência do Estado com respeito à saúde, o correspondente
direito da pessoa deve ser garantido “mediante políticas sociais e eco-
nômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos”
(CF, art. 196 — grifo nosso), no sentido de cuidar da saúde e assistência
social, competência comum a todos os entes federativos (CF art. 23, II),
aí incluídas as políticas de educação por meio de orientação pedagógi-
ca e campanhas publicitárias do próprio ente público.
Na verdade, a expressão políticas sociais e econômicas refere-se ao
dever do Estado (todos os entes federados) - e dos agentes privados? -
de realizar prestações de saúde, que se efetivam pelas mencionadas
políticas, isto é, pela execução de ações e serviços de saúde, inclusive
preventivos. Tais ações, entre elas incluída a ação educativa mediante
propaganda (políticas sanitárias de natureza pedagógica), constituem
dever do próprio Estado, tanto que sua omissão dá cabimento à ação
de inconstitucionalidade por omissão (CF, arts. 102, 1, a, e 103, S 2º) e,
no caso concreto, ao mandado de injunção (CF, art. 5º, LXXI).' Sendo
dever do Estado, não poderia ser transferido ao agente privado (blo-
queio), sob a forma de planejamento compulsório de sua atividade eco-
nômica (CE art. 174, caput). No entanto, de outro ângulo, o direito à
saúde parece exigir do Estado regulador (CF, art. 174) uma interven-
ção normativa capaz de dar-lhe a efetividade devida como garantia do
direito fundamental à vida (dever de políticas públicas).
O que se observa é que, entre a proclamação formal dos direitos e
o real estatuto político dos indivíduos e dos grupos, com suas diferen-
ças, estende-se aí um vasto espaço ocupado por formas antigas e no-

1 CÍ. siLVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição, p. 768.


A PASSAGEM: DO INTERPRETAR NA CULTURA DO CÓDIGO AO ARGUMENTAR 39

vas de tensão política. Por extensão, pode-se dizer que os mecanismos


jurídicos de ação nas sociedades políticas contemporâneas não alcan-
çam mais inteiramente aquela legitimação social que seria propiciada
apenas pela real efetivação dos direitos do homem ou pelo reconheci-
mento do cidadão como portador efetivo dos direitos de sua peculiar
condição, mas exigem outras formas de efetivação. Efetivação possi-
vel, em um primeiro momento, graças à institucionalização dos me-
canismos em termos de lei e de direito (às prestações positivas), mas,
em um segundo momento, ao reconhecimento social, em termos de
uma transformação aceita culturalmente na concepção do ser humano
como igual e diferente, parece enfrentar um novo desafio.
Se, no passado, foi assim que apareceram os direitos fundamentais
sociais, chamados de segunda geração, que requerem não uma absten-
ção, mas uma intervenção não na forma de uma prestação garantidora
(prestação jurisdicional: direito de ação judicial e tutela judicial), e sim
em forma positiva que começa com uma prestação de garantia (direi-
to de greve, direito à previdência) e avança para direitos a prestações
capazes de não apenas proteger os desiguais em face dos iguais, mas
de promover entre ambos uma igualdade (CF, art. 5º: todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, mas também, todos
têm direito à igualdade, garantia a todos de se tornarem iguais), hoje
o problema está em como institucionalizar socialmente no ambiente
extraoficial, na escola, no hospital, na fábrica, na empresa, não um di-
reito de ser tratado igualmente apesar das desigualdades, mas de pro-
mover uma igualdade em que existam despersonalizações que se so-
brepõem à personalização dos sujeitos.
Para se compreender essas transformações em sede de argumenta-
ção jurídica, é interessante observar o que aconteceu a partir das cons-
tituições modernas e sua positivação em normas escritas.
Essa positivação foi uma das ideias que corporificaram o movimen-
to constitucionalista a partir do século XIX. Um dos traços centrais do
Estado de Direito foi, assim, a fixação de uma ordem estatal livre, na
40 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

forma de normas positivas, sujeitas às formalidades garantidoras da


certeza e da segurança. Dessa forma protegia-se a liberdade conforme
a lei. Isso exigiu, portanto, uma formalidade constitucional. Essa for-
malidade conferia à constituição uma transparência e uma estabilida-
de indispensáveis. Graças a ela, as constituições puderam submeter-se
às regras usuais de interpretação. Por seu intermédio chegava-se ao seu
sentido e se controlava a sua eficácia. Sua estabilidade decorria igual-
mente, não obstante as mudanças na realidade, das limitações postas
por essas regras.
Na tradição do século XIX, essas regras correspondiam à fixação do
sentido vocabular (método gramatical), proposicional (método lógico),
genético (método histórico) e global (método sistemático), conforme
as lições de Savigny e outros autores clássicos. Para efeito de uma her-
menêutica constitucional voltada para o Estado de Direito concebido
como um estado mínimo, reduzido em suas funções, a interpretação
tinha uma orientação de bloqueio — interpretação de bloqueio — con-
forme princípios de legalidade e estrita legalidade como peças fundan-
tes da constitucionalidade. Não se pode desconhecer, contudo, nesse
passo, que a norma constitucional contém elementos jurídicos que a
diferenciam das demais normas, características da qual um normati-
vismo rigorosamente positivista, supostamente neutro e acrítico, não
chega a dar conta. Aqui entra em cena a ordem política global do Esta-
do constitucional, que obriga a certas correções e especificações.
Partimos do princípio hermenêutico da unidade da Constituição.
Esse princípio nos obriga a vê-la como um articulado de sentido. Tal
articulado, na sua dimensão analítica, é dominado por uma lógica in-
terna que se projeta na forma de uma organização hierárquica. Ou seja,
uma Constituição, da mesma forma que o ordenamento jurídico de
modo geral, também conhece a estrutura da ordem escalonada, não
estando todas as suas normas postas horizontalmente uma ao lado da
outra mas, verticalmente, uma sobre a outra. Concebê-la sem escalo-
namento é implodir aquele articulado, tornando-a destituída de unida-
A PASSAGEM: DO INTERPRETAR NA CULTURA DO CÓDIGO AO ARGUMENTAR 4]

de. Perdendo-se a unidade, perde-se a dimensão da certeza, o que faria


a Constituição um instrumento de arbítrio.
A noção de hierarquia, que conduz à aplicação de esquemas inter-
pretativos como a regra da superioridade e da especialidade, donde a
possibilidade de interpretação restritiva, já teve menos alcance na her-
menêutica constitucional” Na medida, porém, em que constituições
passam a ser concebidas não como um complexo compacto e indife-
rençado de normas, mas, justamente pela complexidade quantitativa
e qualitativamente crescente de suas disposições, passam a ser vistas
como um sistema de normas coordenadas e inter-relacionadas que se
condicionam reciprocamente,” torna-se inevitável o recurso ao escalo-
namento e suas consequências analíticas.”
Afinal, não é possível deixar de reconhecer, no seu complexo nor-
mativo, a presença do cerne fixo material representado pelos direitos
fundamentais e sua prevalência sobre as demais normas, bem como a
diferença entre normas que agasalham princípios, normas que insti-
tuem princípios, normas que têm um sentido técnico de organização,
normas que visam à própria aplicabilidade da constituição, etc., e a sua
consequente imbricação formal conforme esquemas lógicos de identi-
dade e não contradição.
A concepção formal da hierarquia, porém, não é suficiente para
compreender o sistema. Existem aí aspectos econômicos, sociológicos,
jurídicos e filosóficos que não podem ser reduzidos à mera forma. Nes-
se sentido nos diz Pinto Ferreira” que o “edifício” constitucional possui
vários andares:

2 Cf. siLvEIRA, Alípio. Hermenêutica no direito brasileiro, v. I, p. 222.


3 Cf. siLVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 37.
4 Cf. ENGISCH, Karl. Einfiihrung in das juristische Denken, p. 157 (há tradução em portu-
guês: Introdução ao pensamento jurídico).
5 Princípios constitucionais de direito constitucional moderno, p. 64.
42 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

embaixo a infraestrutura das relações econômicas, a técnica de produção


e de trabalho, como simbolos de uma economia individualista ou coleti-
vista; logo em seguida as representações coletivas da sociedade, os senti-
mentos e instituição dominantes da comunidade humana, como reflexo
da consciência comunal; depois, o sistema de normas jurídicas que, se
inspirando nos antecedentes econômicos e histórico-sociais, transluzem
essa consciência social, corporificando-a em uma carta política; e, aci-
ma de tudo, os princípios de justiça, direito natural e segurança coletiva,
como o ideal do regime constitucional perfeito.

Isso, obviamente, torna a unidade de sentido, peça imprescindível da


interpretação constitucional, um dado irredutível à mera forma lógica.
Essa unidade de sentido não se obtém se consideramos a Consti-
tuição sem conexão com a própria realidade constitucional, enquan-
to uma experiência normativa, vivida e concreta da comunidade. Por
isso, sua unidade de sentido não tem apenas uma dimensão teológica
própria do sistema de valores que lhe é ínsito. Quando se fala de siste-
ma de valores, é preciso precaver-se contra uma interpretação abstrata
e por isso mesmo incontrolável. Uma interpretação abstrata busca, por
exemplo, no reconhecimento de direitos fundamentais uma avaliação
valorativa do seu conteúdo (direito à vida e superioridade dos valores
de preservação da vida sobre os de preservação da liberdade). Hierar-
quizar direitos fundamentais em nome de uma hierarquia — abstrata —
de valores pode levar a privilegiar meio ambiente, concorrência e ou-
tros interesses difusos em face de garantias básicas como o respeito à
legalidade. A experiência alemã a esse propósito, no entendimento da
famosa Constituição de Weimar, e que conduziu aquele país às arbitra-
riedades do nazismo, deve-nos servir de exemplo. A forma abstrata e
difusa como foi entendida e valorada a expressão povo (Volk) como su-
jeito do poder constituinte (o povo não se deixa representar pois está
sempre presente, sendo sua forma básica de manifestação a aclamação)
A PASSAGEM: DO INTERPRETAR NA CULTURA DO CÓDIGO AO ARGUMENTAR 43

foi uma fórmula que acabou favorecendo a ascensão de Hitler. Assim,


o reconhecimento de um sistema de valores não deve conduzir à justi-
ficação de quaisquer hipostasias, na medida em que a superação de um
método positivista não deva significar uma perda do sentido da positi-
vidade do direito.

6 —FORSTHOFE, Ernst. Rechtsstaat im Wandel, p. 134. Sobre Volk, ver Carl Schmitt, Verfas-
sungslehre, Duncker & Hublot, Berlin, 1928/reprodução de 1970, p. 243.
IX. DO ESTADO DE DIREITO PARA O
ESTADO SOCIAL

É preciso, pois, para entender o modo argumentativo na interpreta-


ção constitucional, ter-se em conta a forma típica da constituição e suas
transformações.!
No limiar dessas transformações que caracterizam a passagem, ou
melhor, a complicada convivência do Estado de Direito com o chama-
do Estado do Bem-Estar Social ou Estado Social, Ruy Barbosa” fazia
observar que:

a concepção individualista dos direitos humanos tem evoluído rapida-


mente, com os tremendos sucessos deste século, para uma noção inco-
mensurável nas noções jurídicas do individualismo, restringidas agora
por uma extensão, cada vez maior, dos direitos sociais. Já não se vê na
sociedade um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais
acasteladas cada qual no seu direito intratável, mas uma unidade orgâni-
ca, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os

1 | FoRSTHOFE, Ernst. Rechisstaat im Wandel: Verfassungsrechtliche Abhandlungen 1950-


-1964, p. 160.

2 Apud sILVEIRA, Alípio. Hermenêutica no direito brasileiro, v. 2, p. 3.


46 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à asso-


ciação, o egoísmo à solidariedade humana.

Essas palavras de Ruy Barbosa apontam já para uma espécie de “desfor-


malização” da Constituição, que ele certamente não encampava, mas
que iria agudizar-se posteriormente. Mais ou menos à mesma época,
Max Weber,” um dos mais brilhantes sociólogos da formalização do di-
reito como expressão da racionalidade, já apontava para as tendências
que iriam “favorecer uma dissolução do formalismo jurídico”. Ele pre-
via não só certa disparidade entre legalidades lógicas próprias do pen-
samento formal jurídico e os efeitos econômicos visados como tam-
bém a respectiva “expectativa”. Surgiam, dizia ele, exigências materiais
dos modernos problemas de classe, de um lado, acompanhadas, de ou-
tro, de propostas de ideologias jurídicas que se guiavam por critérios
valorativos contidos na expressão social do direito.
Atente-se, assim, para essa passagem, na vida constitucional brasi-
leira, de um Estado liberal burguês e sua expressão tradicional em um
Estado de Direito abstrato, para o chamado Estado Social. Tal passa-
gem, porém, não deve significar a exclusão do primeiro pelo segundo,
mas a sua transformação naquilo que a Constituição brasileira de 1988
chama de Estado Democrático de Direito. Com essa noção, não se ex-
prime obviamente apenas a sujeição do Estado a procedimentos jurídi-
cos e à realização de alguma ideia de direito, não importa qual, mas a
sua subordinação a critérios materiais próprios.

3 Wirtschaft und Gesellschaft, p. 503 e segs.


4 Cf. Preâmbulo e art. 1º da Constituição Federal.
X. DA INTERPRETAÇÃO DE BLOQUEIO À
ARGUMENTAÇÃO DE LEGITIMAÇÃO

O que Weber tinha em mente talvez possa ser esclarecido em termos


de uma distinção entre procedimentos interpretativos de bloqueio —
hermenêutica tradicional - e procedimentos argumentativos de legiti-
mação de aspirações sociais à luz da Constituição. Essa argumentação
de legitimação significa que certas aspirações se tornariam metas pri-
vilegiadas até mesmo acima ou para além de uma conformidade cons-
titucional estritamente formal. Elas fariam parte, por assim dizer, da
pretensão de realização inerente à própria Constituição.
A ideia subjacente a esse procedimento de legitimação de que cons-
tituições instauram uma pretensão de se verem atendidas expectativas
de realização e concreção só pode ser atendida, juridicamente, na me-
dida em que se introduziu na hermenêutica constitucional uma consi-
deração de ordem axiológica. Ou seja, pressupondo-se que uma cons-
tituição apresenta, no seu corpo normativo, um sistema de concreção
de valores, a aplicação das suas normas, por via interpretativa, torna-
-se uma realização de valores. Com isso, o procedimento argumentati-
vo de captação do sentido do conteúdo das normas torna-se realização
valorativa conforme procedimentos próprios da análise e da pondera-
ção de valores.
48 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Note-se que não estamos falando aqui da oposição entre um mé-


todo formalista e um método culturalista, nem ignorando que mesmo
a hermenêutica tradicional — de bloqueio —- sempre fez uso de regras
valorativas que obrigam. O procedimento argumentativo legitimador
obriga-se a não se ater à letra da norma, mas a buscar-lhe a ratio ima-
nente, primeiro por meio de métodos teleológicos, sociológicos e mes-
mo axiológicos, para depois visar a um procedimento interpretativo
transformador das realidades sociais: procedimento argumentativo de
legitimação.
Aqui não está em jogo nem a crítica do positivismo de que a norma
posta se reduz ao texto prescritivo, nem a defesa de uma visão de que
o direito é um fenômeno cultural, estando suas normas imersas em
uma atmosfera social, política e econômica que constituem seu meio
vital. Na verdade, o problema é outro. Quando se opõem procedimen-
tos interpretativos de bloqueio e procedimentos de legitimação, o que
entra em pauta é um problema de como captar o sentido das constitui-
ções no momento em que, concebidas estas como sistemas de valores,
a aplicação do direito se transforma em um instrumento de realização
política, com base na qual a legislação procurara concretizar princípios
e programas implicitamente agasalhados pelo texto constitucional. Ou
seja, a questão deixa de ser um problema de correta subsunção do fato
à norma - com sua carga lógica, histórica, sistemática, teleológica e va-
lorativa — para tornar-se um problema de conformação política dos fatos,
isto é, de sua transformação conforme um projeto ideológico.
Essa mudança corresponde a uma transformação de forma típica
do Estado constitucional enquanto o Estado de Direito burguês, que as
constituições abandonam ou alteram. A expressão burguês (bourgeois)
é uma forma econômica, derivativa do citoyen, enquanto forma polí-
tica, e aponta para as chamadas constituições liberais do século XIX.
Essa forma típica pressupunha uma distinção entre Estado e socieda-
de como entidades autônomas, o que obrigava as constituições a se res-
tringirem a regras gerais limitativas da atividade do Estado. Nele, as-
DA INTERPRETAÇÃO DE BLOQUEIO À ARGUMENTAÇÃO DE LEGITIMAÇÃO 49

sinale-se a postura individualista, o primado da liberdade no sentido


negativo, da segurança formal e da propriedade privada, de um Esta-
do concebido como um “servo estritamente controlado da sociedade”!
Agora, as tarefas postas ao Estado não só se multiplicaram, mas
também se modificaram. Exige-se do Estado a responsabilidade pela
conformação social adequada da sociedade, ou seja, colocam-se para
ele outras funções que não se coadunam plenamente com os tradicio-
nais limites do Estado de Direito.
Quando o aplicador do direito atua dentro desses limites, a inter-
pretação de bloqueio pressupõe que os preceitos constitucionais es-
tatuem princípios e finalidades fundamentais, em relação aos quais o
intérprete não pode articular sentidos e objetivos senão aqueles que
já estejam reconhecidos ex tunc na própria Constituição. O regulador
dogmático da interpretação de bloqueio é, pois, uma espécie de prin-
cípio de proibição de excessos, isto é, proibição de articulações de inte-
resses protegidos “para além” da Constituição sob a alegação de favore-
cer-lhes o exercício.
A questão muda de figura quando pensamos nas exigências postas
ao Estado social. Neste, perceba-se a extensão do catálogo dos direitos
fundamentais na direção dos direitos econômicos, sociais e culturais,
a consideração do homem concretamente situado, o reconhecimento
de um conteúdo positivo da liberdade, a complexidade dos processos
e técnicas de atuação do poder público, a transformação consequente
dos sistemas de controle da constitucionalidade.

1 scHMITT, Carl. Verfassungslehre, p. 125, 253.


XI. À ARGUMENTAÇÃO COMO l
PROCEDIMENTO DE LEGITIMAÇÃO

Os procedimentos argumentativos de legitimação, que pressupõem


que o aplicador esteja autorizado a articular e qualificar o interes-
se público posto como um objetivo pelo preceito constitucional, par-
tem da imprecisão denotativa e conotativa de expressões de forte ape-
lo existencial (interesse público, saúde pública, o mínimo vital) para
um dever de formulação de sentido, o que implica uma certa discri-
cionariedade significativa. O procedimento argumentativo deve pres-
supor, nesse caso, que os preceitos constitucionais estão submetidos a
certos pressupostos. Alguns são de ordem normativa condicional. As-
sim, os preceitos dirigidos à participação e à prestação positiva do Es-
tado social são leges imperfectae, isto é, não são imediatamente realizá-
veis sem uma atuação do próprio hermeneuta que deve, então, prover
uma identificação dos meios possíveis para a consecução de finalida-
des, quer sejam eles meios sociais ou técnicos, a fim de que a norma
possa ser efetiva. Outros são de ordem jurídico-funcional. Como se
supõe que a fixação constitucional de objetivos traduz valores que, no
entanto, por si sós não permitem a percepção de diretrizes vinculantes,
cabe ao intérprete direcionar a configuração da ordem social desejada,
a partir da qual se dará o controle da constitucionalidade.
52 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Os reguladores dogmáticos de uma interpretação de legitimação são,


por isso, abertos, flexíveis, como é o caso, por exemplo, da regra de pro-
porcionalidade: os fins articulados e qualificados devem estar na depen-
dência dos meios disponíveis e identificáveis, ou, da regra de exigibilida-
de: o Estado social está vinculado à realização de seus objetivos, cabendo
ao intérprete considerá-los sob o ponto de vista da sua viabilidade.
A título de exemplo do que estamos dizendo, veja-se o disposto no
art. 182, S 2º, da Constituição Federal. Depois de, nos arts. 5º, XXIII, e
170, III, estabelecer a “função social da propriedade” conceito obvia-
mente valorativo, determina no mencionado art. 182, S 2º, que “a pro-
priedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigên-
cias fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
A coparticipação politicamente legitimadora do intérprete, nesse caso,
resulta evidente.
KIT. AS LIMITAÇÕES PARA UMA
ARGUMENTAÇÃO DE LEGITIMAÇÃO

As garantias proporcionadas pelo contorno constitucional do Estado


de Direito são, acima de tudo, delimitações, com sentido eminente-
mente técnico e normativo. Já os objetivos exigidos pelo Estado social
pressupõem um Estado ativo, que desempenha funções e exige meios
para realizá-las. Em consequência — e este é um ponto fundamental
para a hermenêutica constitucional - enquanto para o Estado de Direi-
to o fenômeno do poder é, por definição, circunscrito e delimitado na
Lei Magna, o perfil do Estado social corre o risco de tornar o poder in-
controlável, pois nele as possibilidades de extensão das formas de do-
minação são imensas, podendo atingir intensidades sutis, nos limites
da arbitrariedade.
É dever do aplicador, ao analisar a unidade de sentido própria da
Constituição, evitar que o reconhecimento constitucional do Estado
Democrático de Direito venha a significar a utilização desvirtuada das
necessárias funções sociais do Estado e meios correspondentes como
um instrumento de poder. Acautela-se, desse modo, o poder público
contra o risco de perverterem-se suas legítimas funções pelo excesso
de poder escondido sob a capa de formalismos obtusos ou de valora-
ções abstratas.
54 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Nesse sentido, uma argumentação por legitimação exige uma per-


cepção das competências constitucionais conferidas ao legislador. Por
meio delas é possível nortear a argumentação por legitimação, dando-
-lhe os limites da confirmação legitimadora.
Sobre a competência legislativa constitucionalmente conferida de-
ve-se distinguir, como o faz em sentido ligeiramente diverso E. Gra-
bitz,' entre competência de qualificação legislativa plenamente vincu-
lada, vinculada positivamente e vinculada negativamente. No primeiro
caso, o constituinte já fornece, de antemão, completa e abrangentemen-
te, o sentido dos direitos e das obrigações constituídos, não podendo o
legislador ordinário (e, por conseguinte, o intérprete) ampliar-lhes ou
restringir-lhes aquele sentido ainda que sob o argumento de favore-
cê-los. No segundo, o constituinte conforma o sentido dos direitos e
obrigações, mas atribui ao legislador ordinário (e também ao proce-
dimento argumentativo) a tarefa de explicitá-lo. No terceiro, o consti-
tuinte dá uma linha de direção que não pode ser contrariada, conferin-
do ao legislador ordinário (e ao aplicador), a contrario sensu, amplas
possibilidades.
A título de exemplo, digamos que a norma expressa no art. 5º, XV,
da CF (Art. 5º [...] XV — é livre a locomoção no território nacional em
tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele en-
trar, permanecer ou dele sair com seus bens”) corresponde a uma com-
petência de qualificação legislativa plenamente vinculada; já a norma
contida no art. 153, $ 2º, 1, da CF (CArt. 153. [...] $2º O imposto previs-
to no inciso II: I — será informado pelos critérios da generalidade, da
universalidade e da progressividade, na forma da lei”) corresponde a
uma competência de qualificação legislativa positivamente vinculada;
e a norma expressa no art. 182 da CF (“Art. 182. A política de desen-
volvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, confor-

1 Freiheit und Verfassungsrecht, p. 68.


AS LIMITAÇÕES PARA UMA ARGUMENTAÇÃO DE LEGITIMAÇÃO 55

me diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno


desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar
de seus habitantes”) corresponde a uma competência de qualificação
legislativa negativamente vinculada.
Essas regras parecem apontar para uma exigência de limites estru-
turais em face de dificuldades que surgem quando somos obrigados a
valorar a própria possibilidade de decidir entre uma interpretação de
bloqueio e uma argumentação legitimadora e, neste caso, entre uma
qualificação positivamente ou negativamente vinculada, o que signifi-
ca valorar os limites aos direitos expressos em princípios reguladores
da argumentação. Esse problema, que pode ser denominado de limites
dos limites, dirige-se ao problema de saber como os conflitos argumen-
tativos são solucionados com base em princípios e se essa forma de
usar princípios possui regras capazes de lidar com a discricionariedade
no limite da arbitrariedade daquele que tem poder de decidir.
À questão que se põe é, então, como funcionam os princípios cons-
titucionais em um procedimento argumentativo.
XI. DO USO DOS PRINCÍPIOS:
CONFLITOS RECALCITRANTES E À
TÉCNICA DE GENERALIZAÇÕES

A argumentação jurídica, como tarefa dogmática, ocorre em um am-


plo espectro de possibilidades. Envolve o direito como um fenômeno
complexo de comunicação, na perspectiva da decidibilidade de confli-
tos.' Para isso, ela tem por objetivo determinar o sentido vinculante da
normatividade, que está no ato, na omissão, no comportamento, nas
prescrições, nas recomendações, nas políticas, na organização, etc. Por
simplificação e abstração, costuma-se dizer que aplicamos normas ju-
rídicas. Ora o sentido do seu dever-ser, ora o sentido daquilo que por
elas deve ser, ora o sentido do seu dever-ser para os destinatários, ora
o sentido do seu dever-ser para quem dita normas. Na prática, ora nos
referimos a todos conjuntamente, ora nos fixamos em um desses pon-
tos: levamos em conta ou sua validade ou seu significado ou sua eficá-
cia ou sua função. Fixar em um desses pontos significa atribuir-lhe re-
levância em vista de um objetivo.

1 FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito, p. 64 e segs. Decidibilida-


de no sentido de um conhecimento que visa a criar condições para que uma determinada
problemática social seja solucionada sem exceções perturbadoras. Cf. também vIEHWEG,
Theodor. “Ideologie und Rechtsdogmatik”. In: Ideologie und Recht, p. 86.
58 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

O jurista pressupõe, para isso, que, no discurso normativo, são for-


necidas razôes/motivos para agir de certo modo e não de outro, razões
que se destinam a uma tomada de posição diante de diferentes possi-
bilidades nem sempre congruentes. Pressupõe, assim, que o legislador
age motivadamente; e assim atribui significação ao seu discurso. O que
induz a uma necessária referência à premissa hermenêutica da não re-
dução da norma ao seu texto.
Normas em sentido da sua aplicação não se confundem com o tex-
to dos dispositivos que compõem o documento escrito. Enquanto um
comando significativo (uma ordem, um comando, um imperativo),
elas resultam de um processo, que parte do texto normativo e finda
com a formulação do preceito regulador, que começa com a interpreta-
ção e culmina com a decisão. Esse processo é que se diz argumentativo.
Pode-se, assim, entender a adequada percepção de Eros Grau,
quando observa:

À interpretação do direito tem caráter construtivo - não meramente de-


claratório, pois — e consiste na produção pelo intérprete, a partir de tex-
tos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, mediante a
definição de uma norma de decisão.”

Nesses termos, “a clareza de uma lei não é uma premissa, mas o resul-
tado da interpretação, na medida em que apenas se pode afirmar que a
lei é clara após ter sido ela interpretada”
Do ângulo hermenêutico, a interpretação começa com o texto, com
os vocábulos e a forma como são usados. Parte-se do pressuposto de
que a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas são im-
portantes para obter-se o correto significado da norma. Na verdade, a

2 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 55.


3 Ibidem, p. 74-5.
DO USO DOS PRINCÍPIOS: CONFLITOS RECALCITRANTES E A TÉCNICA DE GENERALIZAÇÕES 59

chamada interpretação gramatical, também denominada filológica, re-


porta-se ao uso das palavras pelo legislador ou pelas partes contratuais,
em suma, pela opção vocabular efetuada. Com esse propósito, a pri-
meira presunção hermenêutica está em que o intérprete deve ater-se
ao vocábulo utilizado como ponto de partida.
Contudo, o recurso à interpretação gramatical ou filológica, à
vista das diferentes possibilidades de conceituação, é sabidamente
insuficiente para alcançar o sentido normativo contido no discurso
normativo.
O teor literal da norma não é ainda a norma, pois também perten-
cem à norma o programa e o âmbito normativo. A análise da norma
exige a percepção de que ela expressa um programa normativo (come-
timento), ou seja, a ordenação jurídica estabelecida. Por exemplo, no
caso em tela (Lei federal n. 8.541/92): “Art. 12. Os prejuízos fiscais apu-
rados a partir de 1º de janeiro de 1993 poderão ser compensados, corri-
gidos, monetariamente, com o lucro real apurado em até quatro anos-
-calendários, subsequentes ao ano da apuração” (grifei).
E expressa também um âmbito normativo (relato), ou seja, “o recor-
te da realidade social na sua estrutura básica, que o programa da nor-
ma escolheu” para si ou em parte criou para si como seu âmbito de
regulamentação.* A demarcação do âmbito normativo deve, portanto,
considerar os fatos afetados pela regulação, o universo material” para o
qual o significado do texto aponta, dependendo, portanto, da compreen-
são da realidade. No exemplo, “prejuízo fiscal com o lucro líquido, obser-
vado o limite máximo de.... E aqui entra a questão da extensão denotati-

4 | MÚLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional, p. 42. Para os termos


cometimento e relato, FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica, p. 47 e segs.
5 —CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1.219.
60 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

va (para quais destinatários e em quais casos) e da “intensão”* conotativa


(com que sentido objetivo, para qual finalidade, etc.).
A conotação de um conceito é determinada pelas propriedades que
o definem (definição conotativa do conceito); a denotação, pelos ob-
jetos por ele abrangidos (definição denotativa do conceito). Definida
uma palavra por sua denotação (por exemplo: brasileiro nato é todo
aquele que nasceu no País), não se podem incluir nela objetos que estão
fora do conjunto. E, definida por sua conotação (por exemplo: empre-
gado é: toda pessoa física que presta serviços de natureza não eventual
a empregador, sob dependência deste e mediante salário), proprieda-
des que não lhe pertencem. Sabidamente, no entanto, nenhuma deno-
tação ou nenhuma conotação esgotam seus campos de inteligibilidade
(todo aquele que nasce no Brasil é brasileiro nato? como tratar a tercei-
rização de empregados?).
Nessa linha de raciocínio, Friedrich Miller mostra, então, que a
atividade interpretativa exige construção da norma jurídica,” no senti-
do de sua apreensão não no eixo norma-caso (tema da aplicação do di-
reito), mas no eixo norma-realidade:
Na prática jurídica, o aforismo não há lei sem interpretação mos-
tra a relevância dessa exigência, na qual a referência a um contexto é
decisiva. E aqui entra o procedimento argumentativo.
Em linha com a tomada de decisão, o contexto desempenha não
o papel de instrumento da interpretação (por exemplo, recurso à base
sociológica: suprir o sentido mediante levantamento de suas circuns-
tâncias), mas de busca do chamado significado indireto (ilocução), isto
é, do modo abrangente como ele ocorre na comunicação normativa
efetivada (relação legislador/intérprete/destinatário). Por meio de uma
locução (asserção) constatamos ou asseveramos algo. Contudo, me-

6 Aexpressão intensão, com “s; é uma construção da semântica, em contraposição à extensão.


7 MÚLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional, p. 129.
8 Ibidem.
DO USO DOS PRINCÍPIOS: CONFLITOS RECALCITRANTES E A TÉCNICA DE GENERALIZAÇÕES 6]

diante uma asserção também realizamos uma ação que não chegamos
a asseverar.” Veja-se, por exemplo, o caso de sentenças em que a elocu-
ção (“meu filho, está chovendo”) implica, em um determinado contex-
to, uma ilocução não expressa ( leve o guarda-chuva”).
No universo normativo, isso não é diferente.
Assim, em face do teor literal de uma norma, o aplicador deve pôr-
-se a possibilidade de argumentar nos seguintes termos: deve-se per-
guntar se existem razões para não aceitar o significado de uma elo-
cução em seu valor de face: se a resposta é negativa, a elocução é
transparente (clara). Se positiva, deve-se buscar interpretações alterna-
tivas, até chegar a uma resposta negativa. Nesse contexto, clareza signi-
fica transparência, isto é, endosso de uma interpretação direta, sem ne-
cessidade de busca de alternativas no plano ilocutivo.”

9 AUSTIN, JL. How to do things with words. Tradução brasileira: Quando dizer é fazer, pa-
lavras e ação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.

10 Essa mudança de foco, passando do que foi dito numa sentença para o que o agente quis
dizer na comunicação é o ponto de partida para a análise pragmática de Grice sobre o que
seria uma lógica da conversação (GRICE, H.P “Logic and conversation”, in: Studies in the way
of words, e FURTHER, Notes on logic and conversation”, in: Studies in the way of words, p. 41-
57). Para Grice, o acesso ao que se quis dizer a partir do que se disse consiste em um processo
de inferência, não dedutiva, que é chamada de implicatura. Para exemplificar a diferença en-
tre inferência dedutiva e implicatura, suponha que alguém afirme “Sou um doutor”. A partir
dessa premissa pode-se deduzir que o emissor tem um título de pós-graduação. Contudo, em
um contexto no qual um indivíduo se acidenta, a afirmação feita em resposta à pergunta “há
um doutor nesta sala?” nos leva a conclusões adicionais ou mesmo diversas. Nesse caso, assu-

mimos normalmente que o emissor não quis afirmar que tem um título de doutorado em di-
reito, ou em engenharia, ou em qualquer outra área, mas sim, que é médico (com doutorado

ou não) e que pode atender a vítima do acidente. Isso é assim, pois no contexto daquela con-
versação, a mera afirmação de um título de pós-graduação não é relevante e se supõe que o
emissor esteja nela engajado, contribuindo para o propósito daquela relação comunicativa.
11 DASCAL, Marcelo. Interpretação e compreensão, p. 353 e segs.
62 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Essa recuperação do argumento da clareza em sede argumentativa


merece ser realçada. Observe-se nessa linha que a argumentação jurí-
dica está a pôr-se diante de duas possíveis opções interpretativas.
Primeira: existe uma situação de isomorfia, em que o texto (locu-
ção) harmoniza-se com o caso, sem necessidade de busca da ilocução.
Por exemplo, o art. 226 da CF: “Art. 226. A família, base da sociedade,
tem especial proteção do Estado”. No $ 1º, fala-se do casamento (Art.
226. |...) $ 1º O casamento é civil e gratuita a sua celebração”). Alude-
-se, claramente, à família constituída mediante casamento. Temos aí a
possibilidade de uma interpretação transparente.
Segunda: uma situação em que o texto exige a busca da ilocução.
Por exemplo, para atender a uma necessidade social, o $ 3º do mesmo
art. 226 contém uma estipulação: “Art. 226. [...] S 3º Para efeito de prote-
ção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher
como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casa-
mento”. Essa exigência de a lei facilitar sua conversão em casamento mos-
tra que o núcleo do conceito de família é definido pelo casamento, que
a união estável, para a lei, não é casamento, mas que, para efeito de pro-
teção da família, é considerada como se casamento fosse. Daí a possibi-
lidade da interpretação extensiva para as uniões homoafetivas. Não se
preenche nenhuma lacuna, mas busca-se o sentido indireto (ilocutivo)
da própria norma.
Nesses termos, entende-se que a clareza não é um dado absoluto
(ou é claro ou é obscuro), mas dependente da existência de dúvidas ra-
zoáveis quanto ao significado.
Em sede de preceitos argumentativos, isso nos faz compreender
por que, afinal, uma norma não se reduz à sua literalidade expressa,
não se podendo ignorar que toda forma elocutiva (“é vedado compen-
sar mais de 30%) aponta sempre para uma dimensão ilocutiva (por
exemplo, “desde que seja factível”), cuja relevância tem de ser levada
em consideração. A dimensão ilocutiva não está fora do âmbito nor-
DO USO DOS PRINCÍPIOS: CONFLITOS RECALCITRANTES E A TÉCNICA DE GENERALIZAÇÕES 63

mativo (como se fosse uma falta, um defeito, uma lacuna), mas o inte-
gra compreensivelmente.
Compreensivelmente quer significar uma exigência de justificação.
No plano do direito, isso aponta para o tema tradicional da intenção do
legislador.
Com relação à busca da intenção, na atividade de interpretação que
se instaura na relação comunicativa-normativa (significado indireto),
o aplicador enfrenta também uma tensão, presente no sempre latente
conflito entre o sentido elocutivo da norma (texto normativo) e o sen-
tido ilocutivo (propósito do legislador).
Frederick Schauer'? traz uma abordagem esclarecedora desse tipo
de tensão. As prescrições teriam por base generalizações acerca de um
efeito positivo (um bem) ou um efeito negativo (um mal) que a ação
regulada, categoricamente ou em determinada condição, pode causar.
Por exemplo, a Seção 2 do Sherman Act proíbe qualquer ato que
constitua uma “tentativa de monopolização” (elocução). Um estatuto
posterior, o Clayton Act, proíbe, na Seção 7, qualquer aquisição de em-
presa que possa “reduzir substancialmente a competição” ou “tender a
criar um monopólio” (elocução).º
As normas, por sua locução expressa, proíbem aquisições que criem
(ou até tendam a criar) um monopólio. Elas não excluem, expressamen-
te, o caso em que exista um mercado com apenas dois agentes que pre-
tendem se fundir e que a firma a ser adquirida está em processo de falên-
cia, de forma que encerrará suas atividades se não for adquirida.

2 Playing by the rules: a philosophical examination of rule based decision-making in law


and in life.
13 O exemplo é tratado com mais detalhe como aplicação da lógica de refinamento de sis-
temas normativos para solução de conflitos entre regra e justificação da regra em um modelo
de inteligência artificial para o direito em MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. “Some
operators for refinement of normative systems”. In: Legal knowledge and information systems,
frontiers in artificial intelligence and applications, IOS, 2001, 280 U.S. 291, 302-303, 1930.
64 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Nos termos elocutivos da regra, se a aquisição leva ao monopólio en-


tão é proibida, não importando estar a firma adquirida em falência ou
não. Todavia, em termos ilocutivos, o bom senso jurídico (princípio da
razoabilidade, inerente ao due process of law) entende (e a teoria econô-
mica o confirma) que a literalidade da expressão (tender a criar um mo-
nopólio) quer dizer, ainda que sem asseverar, que se a firma está falindo,
sua aquisição não altera a situação: ao cabo restará uma única empresa.
O aplicador percebe, então, que a ação necessária para satisfazer
explicitamente o estatuto (omitir a aquisição vedada) não se aplica à
ação (adquirir a firma falida). Quem diz “são proibidas aquisições que
tendam a criar um monopólio”, está a dizer também “salvo quando o
monopólio é inevitável e a proibição um contrassenso. Pelo procedi-
mento argumentativo, não se trata o tema como uma falha do legisla-
dor (lacuna, falta de especificação), mas como um significado indireto
(ilocução), um significado que se diz subentendido, implícito, exigido
pela percepção do modo como programa/âmbito, cometimento/relato
normativos realizam uma prescrição.
Esse exemplo de fato ocorreu e foi solucionado pelas cortes norte-
-americanas pelo que ficou conhecido como a doutrina da firma em
falência (failing firm doctrine), quando a Suprema Corte norte-ameri-
cana sustentou que a aquisição de uma firma em falência não viola a
Seção 7 do Clayton Act,'* sob o argumento de que “se a firma adquiri-
da está em falência, uma aquisição que tenda a criar monopólio é per-
mitida”.
Esse argumento nada tem a ver com técnicas de preenchimento de
lacunas, na suposição de falta de lei e necessidade de buscar a norma
em outra lei, aplicando esta por analogia. Lida-se com uma única e
mesma norma legal, buscando-lhe a abrangência de seu âmbito signifi-
cativo. O que, aliás, exige uma técnica específica e que tem a ver com o
uso argumentativo da mencionada clareza do preceito.

I4 394U.S. 131, 138-139, 1969.


DO USO DOS PRINCÍPIOS: CONFLITOS RECALCITRANTES E A TÉCNICA DE GENERALIZAÇÕES 65

Tomando o caso da norma “são proibidas aquisições que tendam a


criar um monopólio, assim procede a argumentação: surgem logo al-
guns significados indiretos, ali presentes em forma ilocutiva, inferin-
do-se que a restrição denotativa (salvo para a sociedade em falência)
não implica perda da competência de vedar, exercício de competência;
segue o argumento de que a ausência de restrição expressamente pre-
vendo a hipótese de empresas em processo de falência significa possi-
bilidade de proibir o que a lei expressamente veda, mas deve permitir.
Aqui, o procedimento argumentativo sustenta que a opção do le-
gislador seria garantir/autorizar a aquisição de firmas em falência, ma-
nifestando um direito de sobrevida indireta que beneficia o mercado.
Promover esse bem (proteger a competição no mercado, que, por sua
vez, serve propósitos ulteriores como eficiência produtiva e o bem-es-
tar dos consumidores) constitui o objetivo e, portanto, o fundamento
da norma, que Schauer chama de justificação da regra.
Justificação da regra é um procedimento argumentativo que nos faz
ver como são invocados e usados os princípios.
Conflitos entre a regra (são proibidas aquisições que tendam a criar
um monopólio) e sua justificação (proteção da competição e da efi-
ciência no mercado), que possuem sentidos distintos, aparecem. E isso
por ser uma regra necessariamente sobre- ou subinclusiva com relação
a sua justificação. Isto é, a generalização que a fundamenta (seu telos,
seu objetivo) pode incluir casos nos quais a ação em questão impediria
o objetivo desejado (sobreinclusão) ou pode deixar de incluir casos re-
levantes, nos quais a ação promove aquele objetivo (subinclusão). No
caso em que se pretenda adquirir firma em falência, mas o monopólio
será inevitável e, vedada a aquisição, o mercado perderá uma empre
sa, há razões para entender que a vedação não se aplica (vai contra o
próprio propósito do legislador): há uma subinclusão. No entanto, a re
gra pode ser sobreinclusiva, por exemplo, quando a aquisição de uma
empresa qualquer (não em processo de falência) não tende a criar um
monopólio (ainda restarão muitas empresas), mas cria para a adqui-
66 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

rente uma posição dominante capaz de diminuir a eficiência do merca-


do, prejudicando os consumidores, casos que, pela justificação da re-
gra, serão incluídos na vedação.
Esses conflitos entre regra e sua justificação, chamados por Schauer
de “experiências recalcitrantes”, costumam ser resolvidos, em sede ju-
rídica, por meio de interpretação teleológica, mediante a qual vêm à
luz generalizações que especificam melhor as condições de aplicação
das regras. Por exemplo, “uma ordem é justa na medida em que con-
segue delimitar os conteúdos normativos, conforme um princípio ma-
terial abrangente de inclusão ou exclusão”. Não se trata de criação de
regra nova, mas de explicitação da própria regra: a aquisição de uma
firma em falência não viola a Seção 7 do Clayton Act. A interpreta-
ção revela-se como um processo de generalizações progressivas e con-
gruentes mediante qualificações subsequentes. Tais qualificações, por
sua vez, não significam um subjetivismo discricionário do intérprete,
mas têm limites exigidos por considerações principiológicas (justifica-
ções com base em princípios), como o recurso ao princípio de razoa-
bilidade. Nesses termos, diz-se que a condição introduzida mediante
procedimento teleológico deve ser relevante com relação à justificação
da regra, o que envolve valorações e tomadas de posição que vão de-
pender do contexto sistemático a que se referem.
Percebe-se aí a força argumentativa da interpretação teleológica. O
método teleológico ativa o uso de princípios na configuração do senti-
do das regras (normas). Seu movimento argumentativo parte das con-
sequências avaliadas das regras na direção de princípios e retorna para
o interior do sistema das normas. É como se o intérprete tentasse fa-
zer com que o legislador fosse capaz de mover suas próprias previsões,
pois as decisões dos conflitos o levam a basear-se nas previsões de suas
próprias consequências. Assim, entende-se que a norma há de ter, para
efeitos de alcançar-lhe o sentido adequado, sempre um objetivo que ser-
ve para controlar até as consequências da previsão legal (a lei sempre
DO USO DOS PRINCÍPIOS: CONFLITOS RECALCITRANTES E A TÉCNICA DE GENERALIZAÇÕES 67

visa aos fins sociais do direito e às exigências do bem comum, dispõe o


art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - LINDB).
Contudo, nota-se, nesses casos de conflito entre regra e sua justi-
ficação, que não há propriamente uma dificuldade com relação à lin-
guagem na qual a regra foi formulada. O caso de falência está clara-
mente solucionado, pois o legislador não o considerou relevante para
a proibição do monopólio. A questão é que a regra é vista como injus-
ta, para uma determinada atribuição de intenção ao legislador e para
uma determinada análise econômica das consequências da aquisição.
Em seguida, a própria generalização que reforma a regra na emenda
Celler-Kefauver sofre exceções, porque também é vista como inade-
quada para determinados casos. Tais hipóteses não podem ser elimina-
das, independentemente da precisão em que a linguagem é formulada
ou do grau de determinação da solução normativa oferecida, ainda que
se faça um elenco com dezenas de condições consideradas relevantes.
Ou seja, as experiências recalcitrantes não podem ser superadas.
A indeterminação surge em função de uma apreciação da justiça da
norma jurídica. Exatamente porque a intenção do legislador não é um
estado mental particular que possa ser investigado objetivamente, mas
é, antes, uma criação ou reconstrução do intérprete a partir de regras
de uso e pautas morais ou de políticas públicas compartilhadas na co-
munidade, que lhe permite realizar inferências (não dedutivas) sobre o
que seria mais coerente admitir como propósito da lei, a indetermina-
ção tem a ver, antes, com uma avaliação do procedimento argumenta-
tivo sobre a justiça da solução normativa oferecida pela regra.
Por essa razão, Zitelmann chamava de lacunas espúrias os casos em
que o intérprete aponta uma condição supostamente relevante que não
teria sido prevista expressamente pelo legislador. Da mesma forma, Al-
chourrón e Bulygin chamam tais lacunas de axiológicas, pois o caso
está, de fato, solucionado normativamente e a lacuna somente aparece-
ria em uma descrição de qual deveria ser a solução mais justa e não em
uma descrição de qual foi, de fato, a solução estipulada pelo legislador.
68 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

A distinção entre lacuna autêntica (echte), isto é, a situação de ausência


de uma solução a partir do conjunto de normas vigentes e lacuna espú-
ria (unechte), isto é, a presença de uma solução normativa considera-
da falsa ou insatisfatória foi introduzida por Zitelmann.” Alchourrón e
Bulygin refinaram essa noção.'º

15 ZITELMANN, Ernst. Liicken im Recht.


l6 ALCHOURRÓN, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Normative systems. As referências são da ver-
são em espanhol: Introducción a la metodologia de las ciencias jurídicas y sociales.
XIV. ARGUMENTAÇÕES MAIS OU MENOS
JUSTIFICADAS

Os exemplos analisados nos capítulos anteriores trazem casos de


complexidade, vagueza e adequação à intenção com relação à comu-
nicação normativa. Exemplos semelhantes de indeterminação lin-
guística também são encontrados na comunicação ordinária e são sa-
tisfatoriamente resolvidos (quando alguém pede um copo de água e
a água está contaminada, pode haver uma dúvida: deixar o que pede
morrer de sede ou dar-lhe água?). No entanto, o que significa uma
solução satisfatória para uma questão de justiça? O problema não diz
respeito ao conteúdo do ato de fala, mas ao propósito da comunica-
ção. Ou seja, mesmo que se empreguem recursos linguísticos para re-
duzir a indeterminação, como se vê no caso de definição estipulativa
para eliminar vagueza (“para os efeitos desta lei, entende-se por...) e
no caso de conflito entre sentença e intenção, aquilo que no discurso
ordinário poderia ser considerado uma comunicação objetiva (o se-
dento morrerá mesmo de sede?), é potencialmente indeterminada em
uma comunicação normativa.
Isso porque a fonte de indeterminação não é propriamente uma in-
suficiência da linguagem na qual a regra é articulada, mas o dissenso
(insolúvel do ponto de vista zetético - do observador externo -, mas
tratável do ponto de vista dogmático - daquele que argumenta) sobre o
10 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

que é certo ou errado, justo ou injusto que o ato de argumentar busca


resolver, mas que pode vir novamente à tona em determinados casos.
Por exemplo: censurar a propaganda é, paradoxalmente, impedir
que o cidadão tenha condições de avaliar a nocividade e de tomar posi-
ção para dela defender-se. E, neste sentido, violar o direito à liberdade
de expressão. Pois dele faz parte, no dizer de Eric Barendt,' “the right
to know”, o direito de saber, por parte do destinatário ou, ainda, no di-
zer de José Afonso da Silva, a liberdade de informação “compreende a
liberdade de informar e a liberdade de ser informado”? É, aliás, o que ex-
pressa o art. 19 da Declaração dos Direitos do Homem da ONU:

Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que


implica o direito de não ser perturbado pelas suas opiniões, bem como de
procurar receber e distribuir, sem considerações de fronteiras, as informa-
ções e ideias por todo e qualquer meio de expressão.

Não se deve olvidar ainda o disposto no art. 6º, III, da Lei n. 8.078/90
(Código de Defesa do Consumidor), no qual o direito à informação
figura entre os direitos básicos do consumidor. Afinal, propaganda é
também informação sobre malefícios a evitar (no caso de tabaco, por
exemplo, a quantidade de alcatrão contida no produto elaborado). So-
negar ao cidadão o acesso a tais informações, a que se obrigam os pró-
prios produtores, é reduzir-lhe a capacidade de percepção e de julga-
mento: assim ele se defende menos, não mais.
Entende-se, destarte, o disposto no parágrafo subsequente (art. 220,
S$ 4º, da CF) que, no que se refere a certos produtos, o tabaco entre eles,
sujeita sua propaganda comercial a “restrições legais, nos termos do
inciso II do parágrafo anterior”, mencionando-se, em especial, quando

1 Freedom of speech, p. 82.


2 Curso de direito constitucional positivo, p. 248 — grifos do autor.
3 Grifos do autor.
ARGUMENTAÇÕES MAIS OU MENOS JUSTIFICADAS 7]

necessária, a advertência sobre os malefícios decorrentes do seu con-


sumo.
A competência constitucional para impor restrições legais nos ter-
mos do mencionado inciso pressupõe:

1. Que a produção e comercialização do produto não estejam proibi-


das: não é possível logicamente restringir a propaganda de produto
cuja fabricação seja ilícita.
2. Que a própria propaganda comercial seja atividade lícita, isto é,
que ela ocorra licitamente: se a Constituição fala em restringir é
porque, por princípio, é atividade protegida pela liberdade de cria-
ção, expressão e informação sob qualquer forma, processo ou veí-
culo: liberdade se restringe, não se elimina.
3. Que a restrição à liberdade, portanto, não signifique censura (tute-
la do Estado no lugar da liberdade do cidadão).
4. Que as restrições representem meios para o cidadão defender-se e
não a defesa do cidadão em seu lugar.

Parece claro, nessas condições, que restringir não significa excluir, banir,
proibir. A proteção da família e da pessoa não se faz pela sua alienação,
mas pela disciplina de sua correta e adequada informação.
É difícil dizer que haja uma resposta única para esse problema.
Por essa razão, percebe-se que a argumentação jurídica não pode
ser considerada objetiva, a não ser que se resolvesse com objetividade
a questão sobre a ponderação de princípios.
Trata-se de tema nuclear para uma teoria da argumentação jurídica.
XV. DO USO DOS PRINCÍPIOS
E OS PROBLEMAS DO
NEOCONSTITUCIONALISMO: COMO LIDAR
COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS?

Existe hoje uma vasta literatura (Ronald Dworkin, Robert Alexy, Car-
los Nino Santiago, Gustavo Zagrebelsky, Manuel Atienza, Michel Troper,
entre outros) que, a partir de uma crítica ao positivismo analítico e sua
exclusão das justificações morais da argumentação jurídica, propõe, ao
contrário, que os saberes e as técnicas jurídicas, por óbvio, não conse-
guem conviver com essa exclusão, sobretudo no terreno constitucional.
Surge daí um constitucionalismo principialista e argumentativo, de
clara matriz anglo-saxônica, que não só parte para um ataque à argu-
mentação positivista (que separa direito e moral e despe os argumen-
tos de sua carga moral para lhes dar uma carga de mera eficiência téc-
nica), mas se endereça também para uma concepção da argumentação
jurídica que vem sendo chamada de neoconstitucionalista.
Para essa concepção, os direitos constitucionalmente estabelecidos
não são regras (normas), mas princípios em eventual conflito e, por
isso, objeto de ponderação, e não de subsunção. Do que resulta uma
concepção de direito como uma prática social confiada aos juízes, uma
prática de interpretação e argumentação de que se devem dar conta to-
dos os operadores do direito e que põe em questão a distinção entre ser
e dever ser, o direito como fato e como norma.
14 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Para essa concepção, são os fatos que contam; não é a validade que
domina, mas a efetividade enquanto fato de modo adequado aos inte-
resses econômicos e conforme os interesses dos seus operadores que
estes acabam por repeti-los e segui-los por sua força persuasiva como
uma alternativa à crise da lei e da legalidade, à desconfiança de que
mediante a lei (legolatria) problemas sociais possam ser resolvidos, etc.
A distinção entre princípio e norma é crucial para essa concepção.
Ela, na sua fórmula mais conhecida, remonta a Dworkin:

l. Os princípios não exigem um comportamento específico, isto é, es-


tabelecem ou pontos de partida ou metas genéricas; as regras, ao
contrário, são específicas em suas pautas.
2. Os princípios não são aplicáveis à maneira de um “tudo ou nada”
pois enunciam uma ou algumas razões para decidir em determinado
sentido sem obrigar a uma decisão particular; já as regras enunciam
pautas dicotômicas, isto é, estabelecem condições que tornam neces-
sária sua aplicação (consequências que se seguem automaticamente).
3. Os princípios têm um peso ou importância relativa, ao passo que
as regras têm uma imponibilidade mais estrita; assim, princípios
comportam avaliação sem que a substituição de um por outro de
maior peso signifique exclusão do primeiro; já as regras, embora
admitam exceções, quando contraditadas provocam a exclusão do
dispositivo colidente.
4. O conceito de validade cabe bem para as regras (que são válidas ou
não o são), mas não para os princípios, que, por serem submetidos
à avaliação de importância, melhor se encaixam no conceito de le-
gitimidade.

Em síntese, para essa visão, as regras descrevem os casos aos quais se apli-
cam em forma cerrada e são razões peremptórias para a ação; os princí-
pios se concebem de forma aberta e são razões para a ação, não peremp-
tórias, mas ponderáveis com outras razões, isto é, com outros princípios.
DO USO DOS PRINCÍPIOS E OS PROBLEMAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO 75

Essa distinção não é autoevidente e merece considerações. Por


exemplo, não é realístico afirmar que só princípios são ponderáveis,
pois também ponderamos regras. Por exemplo, entre a) a regra sobre a
garantia por vícios da coisa vendida, b) a regra sobre a derrogabilida-
de dessa garantia por um pacto em contrário, c) a regra de sua inder-
rogabilidade, ainda que diante de tal pacto, se os vícios foram oculta-
dos pelo vendedor de má-fé. Por sua vez, os princípios não constituem
uma classe homogênea. Alguns, por exemplo, são diretivos (os que re-
gem a vida política, social e econômica), outros meramente regulati-
vos (podem ser cumpridos, mas sem obrigação positiva, só negativa:
os princípios programáticos da Constituição).
Por exemplo: o art. 155, S 2º, XII, g, da Constituição de 1988 outorgou
competência à lei complementar para “[...] g) regular a forma como, me-
diante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos
e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”, em matéria de ICMS.
Como não foi editada lei complementar posterior à Constituição
em vigor, o Supremo Tribunal Federal tem entendido que a matéria
continua regulada pela Lei Complementar n. 24/75, cuja recepção foi
reconhecida pelo art. 34, S 8º, do ADCT.»
Entretanto, a tentativa de compatibilização da Lei Complementar n.
24/75 com a Constituição atual envolve dificuldades jurídicas e práti-

1 Art 34, O sistema tributário nacional entrará em vigor a partir do primeiro dia do
quinto mês seguinte ao da promulgação da Constituição, mantido, até então, o da Consti-
tuição de 1967, com a redação dada pela Emenda n. 1, de 1969, e pelas posteriores. |...) S 8º
Se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a
lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o art. 155, I, b, os Estados
e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar n. 24,
de 7 de janeiro de 1975, fixarão normas para regular provisoriamente a matéria”
2 Confiram-se, entre outras, as seguintes decisões: ADIn n. 2.549/DF, rel. Min. Ricar-
do Lewandowski, j. 01.06.2011; ADIn n. 2.157/BA, rel. Min. Moreira Alves, j. 10.04.2003;
ADIn n. 1.247-MC/PA, rel. Min. Celso de Mello, j. 17.08.1995; ADIn n. 1.179-MC/SB,
rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.02.1996; ADIn n. 2.155-9/PR, rel. Min. Sydney Sanches, j.
15.02.2001.
16 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

cas que comprometem a eficácia de princípios constitucionais e inter-


ferem no equilíbrio federativo. São três as principais dificuldades.
À primeira diz respeito à deliberação dos Estados e do Distrito Fe-
deral, que, nos termos da Lei Complementar n. 24/75, se perfaz me-
diante manifestação dos respectivos Poderes Executivos, o que fere o
princípio da reserva legal (CF, art. 150, S 6º).
A segunda consiste na exigência de deliberação unânime para a con-
cessão de isenções, incentivos e benefícios de ICMS, o que implica po-
der de veto cujo exercício, muitas vezes por razões interesseiras, vem
impedindo a utilização de mecanismos desonerativos do ICMS com a
finalidade extrafiscal de implementar programas de desenvolvimento
estadual e regional essenciais para concretizar o objetivo fundamen-
tal da República de reduzir as desigualdades regionais e sociais, que é
também princípio da ordem econômica (CF arts. 3º, III, e 170, VII).
À terceira decorre das sanções cumulativas previstas para o des-
cumprimento da sistemática de convênios, entre as quais a cobrança
do imposto indevidamente dispensado na operação tributada e a glosa
do crédito atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria, que
permitem a cobrança do ICMS em duplicidade, contrariando o princí-
pio da não cumulatividade do imposto (CF art. 155, $ 2º, 1).
Como o sistema vigente acaba por inviabilizar, na prática, a con-
cessão de incentivos visando o desenvolvimento econômico e social de
regiões que necessitam de investimentos privados e não há sanções efi-
cazes para o poder público, o que se tem, na atualidade, é semelhan-
te a um estado de anomia. Praticamente todos agem sem obediência
a qualquer regramento, fomentando a chamada “guerra fiscal”. A in-
segurança jurídica é grande, pois os contribuintes que observam a le-
gislação estadual ficam sujeitos à cobrança dos valores dispensados no
passado pelo Estado de origem. Além disso, os adquirentes das merca-
dorias podem ter glosados os respectivos créditos de ICMS.
Procurando alterar esse quadro, tramitam no Congresso Nacional
projetos de alteração da Lei Complementar n. 24/75, com a finalidade
DO USO DOS PRINCÍPIOS E OS PROBLEMAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO 77

de ajustá-la à nova ordem constitucional. São três os principais pontos a


serem reformulados com vistas a conferir aos Estados e ao Distrito Fede-
ral condições mínimas para debater, de forma democrática e sem espaço
para ações egoísticas, a conveniência da edição e revogação de normas
de desoneração do ICMS: a) alteração do quórum de deliberação dos
Estados e do Distrito Federal, de unanimidade para maioria absoluta ou
qualificada; b) exigência de lei para a instituição e revogação, no âmbito
de cada Estado e do Distrito Federal, das isenções, dos incentivos e dos
benefícios autorizados pelo colegiado; c) imposição de sanções eficazes
para coibir infrações às disposições da lei complementar.
Contudo, objeções têm sido levantadas, especialmente em relação à
possibilidade de alteração do quórum de deliberação do colegiado. Ale-
ga-se, principalmente, que a unanimidade seria exigência do sistema
constitucional para evitar que um Estado fosse obrigado a desonerar cer-
tas mercadorias e serviços do ICMS, por decisão da maioria. Além dis-
so, tratando-se de imposto com abrangência nacional e perfil não cumu-
lativo, seria necessário assegurar a uniformidade da carga tributária, de
modo a evitar tratamento desigual de contribuintes, disputas entre Esta-
dos e ineficiências econômicas que afetassem a neutralidade do tributo
nas sucessivas etapas do ciclo de circulação de mercadorias e serviços.
As questões suscitadas merecem uma consideração dentro de um
contexto sistemático capaz de lhes dar o devido relevo.
Do ponto de vista institucional, a primeira questão diz respeito à
exigência de deliberação unânime para a concessão de isenções, incen-

3 —Tramitam no Senado Federal o PLS-C n. 240/2006, de autoria do Senador Flexa Ribei-


ro, o PLS-C n. 85/2010, de autoria do Senador Marconi Perillo e o PLS-C n. 170/2012, de
autoria do Senador Ricardo Ferraço. Além disso, tramita na Câmara dos Deputados o PLP
n. 85/2011, de autoria dos Deputados Federais Eduardo da Fonte e Sandes Junior.
4 — Vide, por exemplo, a posição de Roque Carrazza (ICMS, p. 558, 565-7). Confiram-se,
ainda, as manifestações apresentadas pelo Estado de São Paulo, pela Advocacia-Geral da
União, pelo Ministério Público Federal e pelo Senado Federal, nos autos da ADPF n. 198, em
que o Distrito Federal questiona a legitimidade constitucional da Lei Complementar n. 24/75.
18 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

tivos e benefícios de ICMS, o que implica poder de veto à deliberação


dos estados e do Distrito Federal nos termos da Lei Complementar n.
24/75 (correlação unanimidade/veto como exercício de poder). A segun-
da questão resulta de que a deliberação se perfaz mediante manifes-
tação dos respectivos Poderes Executivos, o que levanta o problema
do respeito ao princípio da reserva legal nos termos da CF, art. 150, S
6º (correlação deliberação/legalidade). A terceira decorre das sanções
cumulativas previstas para o descumprimento da sistemática de con-
vênios (correlação incidência de sanção/cumulatividade). Do ponto de
vista factual, temos a guerra fiscal e sua circunstância histórica, de onde
surge o problema de como tratar o passado, isto é, concessões de in-
centivos e benefícios sem autorização mediante convênio (correlação
unanimidade/ efeitos pregressos).
A primeira correlação conduz ao exame da federação no contexto
do Estado Democrático de Direito. A segunda pede a análise do cha-
mado Estado Executivo em face do Estado Legislativo como um pro-
blema de hegemonia da lei em face da sua executividade. A terceira diz
respeito à instrumentalidade da lei e sua eficácia sancionadora. Por fim,
a guerra fiscal é um ponto de convergência dos problemas gerados por
um federalismo tributário cooperativo em face de uma exigência de
solidariedade e o consequente tratamento.
É preciso, portanto, determinar o que significa, para a ponderação
de princípios, lidar com eles. Afinal, a Constituição brasileira fala ex-
pressamente de princípios (por exemplo, art. 25 — Constituições esta-
duais, art. 37 — administração, art. 170 - ordem econômica, art. 4º — re-
lações internacionais, etc.).
Uma das regras fundamentais da hermenêutica constitucional exige
que o intérprete postule a unidade da Constituição. Esta regra da uni-
dade nos obriga a vê-la como um articulado de sentido. Tal articulado,
na sua dimensão analítica, é doutrinado por uma lógica interna que se
projeta na forma de uma organização hierárquica. Ou seja, uma consti-
tuição, da mesma forma que o ordenamento em geral também conhe-
DO USO DOS PRINCÍPIOS E OS PROBLEMAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO 79

ce, do ângulo hermenêutico, a estrutura da ordem escalonada. O esca-


lonamento é para a dogmática jurídica condição da unidade, que, por
sua vez, garante ao ato interpretativo o respeito aos valores da seguran-
ça e da certeza conforme a tradição constitucionalista e, sem esta uni-
dade, a constituição corre o risco de se tornar instrumento de arbítrio.
A noção de hierarquia, sobretudo em uma época em que as constitui-
ções perdem o caráter de conjunto de normas genéricas, para adqui-
rir o caráter e complexidade quantitativa e qualitativa de disposições
de toda ordem, passa a ser um importante pressuposto hermenêutico.”
Hierarquia significa que as disposições constitucionais não estão todas
postas horizontalmente umas ao lado das outras, mas também vertical-
mente. Falamos, assim, em sistema escalonado, isto é, disposições co-
ordenadas e inter-relacionadas que se condicionam reciprocamente em
escalões sucessivos. Assim, por exemplo, é de se reconhecer, no comple-
xo constitucional, a presença do cerne fixo material representado pelos
direitos fundamentais e sua prevalência sobre as demais normas, bem
como a diferença entre normas que agasalham princípios, normas que
instituem princípios, normas que pressupõem princípios, normas que
têm mero sentido técnico de organização, que instauram vedações, es-
tatuem objetivos, estabelecem condições, etc. Distinções formais, con-
tudo, não são suficientes para compreender o sistema constitucional.
Existem aí aspectos econômicos, sociológicos, jurídicos e filosóficos
que não podem ser reduzidos a mera forma. Nesse sentido, recorde-se
o anteriormente citado texto de Pinto Ferreira, segundo o qual o “edifi-
cio” constitucional possui vários andares;

embaixo, a infraestrutura das relações econômicas, a técnica de produ-


ção e de trabalho, como símbolo de uma economia individualista ou ca-

5 ENGISCH, Karl. Einfiihrung in das juristische Denken, p. 137 (há tradução em portu-
guês).
6 Princípios constitucionais de direito constitucional moderno, p. 64.
80 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

pitalista; logo em seguida as representações coletivas da sociedade, os


sentimentos e instituições dominantes da comunidade humana, como
reflexo da consciência comunal; depois, o sistema de normas jurídi-
cas que, se inspirando nos antecedentes econômicos e histórico-sociais,
corporificam-no em uma carta política; e, acima de tudo, os princípios
de justiça, direito natural e segurança coletiva, como o ideal do regime
constitucional perfeito.

Esta dimensão material, exemplificada neste texto de Pinto Ferreira,


mostra que o sistema e sua unidade comportam complicações maiores
que a simples ordem analítica e formal.
Tendo em vista, portanto, a complexidade formal e material do sis-
tema constitucional e, simultaneamente, a exigência hermenêutica da
unidade do sistema, deve concluir, numa primeira aproximação do
problema, que:

toda constituição contém, necessariamente, princípios;


o

b. no contexto infrassistemático da Constituição, os próprios princi-


pios, em face da estrutura hierárquica, não têm o mesmo peso nem
a mesma função. De onde se segue que a expressão “observados os
seus princípios comporta análise e discriminação.

Otto Bachof (1951), ao discorrer sobre a tese doutrinária da existên-


cia de normas constitucionais inconstitucionais, distingue entre princí-
pios de caráter puramente positivo e princípios de caráter extrapositivo.
A distinção não significa, porém, uma discriminação entre princípios
inscritos e não inscritos em um texto constitucional, mas aponta para
a diferença entre princípios estatuídos e princípios reconhecidos pelo
constituinte. Não é o caso de aprofundar essa distinção. Não obstan-
te, ela assinala a existência de princípios - os reconhecidos — cuja uni-
versalidade, em tese, ultrapassa os limites das constituições estatuídas.
Nesses termos, é conhecido o disposto no art. 16 da Declaração Fran-
DO USO DOS PRINCÍPIOS E OS PROBLEMAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO 8]

cesa de 1789: “Toda sociedade na qual não está assegurada a garantia


dos direitos nem determinada a separação dos Poderes, não tem Cons

I
tituição. Sem entrar no mérito se tais princípios - o da proteção da
autonomia individual em face do poder, decorrente da declaração dos
direitos individuais e garantias constitucionais, e o da separação dos
Poderes - são mesmo universais, é importante mostrar que a distin-
ção de Bachof nos permite encontrar um primeiro significado para a
expressão princípio constitucional. Trata-se, pelos exemplos, de pau-
tas primárias de uma Constituição que, por pressuposto, dão sentido
à principialidade do ato constituinte. Assim, se o ato constituinte é um
ato inaugural, a liberdade há de ser, necessariamente, um de seus atri
butos fundamentais. Em consequência, princípio constitucional não é
apenas uma pauta inicial, não se confunde com um mero começo, mas
é o que dá sentido ao que se segue. Princípios fundamentais de uma
Constituição são aqueles que lhe dão sentido de primeira norma. É o
caso, por exemplo, do princípio da supremacia das normas constitu-
cionais. Sem eles não há Constituição, sem eles a principialidade do
ato constituinte não ocorre.
A Constituição brasileira de 1988 declara estes princípios, a nosso
ver, no seu Título I: “Dos Princípios Fundamentais”. Este título contém,
por assim dizer, o traçado do ato principal do poder constituinte ori-
ginário. É assim que ele se instaura, e alterar o que consta dos arts. 1º,
2º, 3º e 4º seria principiar outra Constituição. Aqueles princípios, que
ali se chamam “fundamentais”, “objetivos fundamentais” e “princípios”,
são a base da principialidade constituinte originária: neles está a supre-
macia de uma ordem nova. Isto é, os Estados-membros não podem al-
terar, pois seu poder constituinte decorrente ali se principia como ali
se principia o próprio poder constituinte originário. Por este seu ca-
ráter de fundamentos da própria principialidade, estes princípios de-
vem ser chamados de fundamentais. Tais princípios estão ali com o ato
constituinte. Por seu caráter originário destaca-se, inicialmente, no art.
1º o que se poderia chamar de princípio congênito do exercício do po-
82 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

der: só o povo é suporte de qualquer poder, inclusive o constituinte.


Este princípio do ato constituinte se desdobra, analiticamente, no prin-
cípio da soberania popular, da cidadania como o direito de ter direitos,
da dignidade da pessoa humana (base para os direitos fundamentais),
do caráter social e livre da atividade econômica (trabalho e livre-ini-
ciativa), do pluralismo político e da tripartição dos Poderes. Com base
nesses princípios originários, o Brasil se constitui em Estado Demo-
crático de Direito que é sua fórmula-síntese. A partir desses princípios
originários, o poder constituinte instaura a República Federativa. O
princípio republicano e o princípio federativo já têm caráter estatuído.
Também eles são fundamentais, mas não são originários no sentido de
imanentes à própria principialidade do exercício do poder constituinte.
São uma opção fundamental do poder constituinte. Por seu caráter po-
demos chamá-los de fundamentais instituídos.
Há princípios, também fundamentais, que são, em seguida, reco-
nhecidos pelo poder constituinte no momento em que este se exerce
e, com isso, se delineia em face de outros poderes igualmente cons-
tituintes. São os princípios que regem as relações internacionais. Es-
tes, por seu caráter internacional, são princípios fundamentais de re-
conhecimento mútuo. Por fim, o art. 3º traça objetivos fundamentais
da República. A palavra princípio cabe aqui no sentido de finalidade,
meta.º Tais princípios dão o sentido de orientação da República, regu-
lando-lhe a atividade, impondo-lhe um telos do qual não deve desviar-
-se. Por seu caráter, são princípios fundamentais teleológicos.
Os princípios fundamentais originários, instituídos, de reconheci-
mento e teleológicos constituem o núcleo sensível da Constituição Fe-
deral de modo que a constituinte estadual neles encontra a condição

7 LAFER, Celso. À reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de


Hannah Arendt. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 146.
8 Cf. cAaRRIÓ, Genaro. Principios jurídicos y positivismo jurídico. Buenos Aires, A. Perrot,
1970, p. 23.
DO USO DOS PRINCÍPIOS E OS PROBLEMAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO 83

fundamental de sua principialidade decorrente. Nesse sentido, eles


são intocáveis, pois alterá-los é colocar-se como constituinte originá-
rio. Do ângulo da hermenêutica constitucional, diria que tais princí-
pios não admitem interpretação restritiva, desdobrando-se em uma sé-
rie de direitos, garantias e deveres que deles decorrem. Com base nesse
fundamento, ademais, o constituinte originário procede, assim, à posi-
tivação de certas normas que impõem limites ao poder constituinte de-
rivado (art. 60, $ 4º) e outras que disciplinam a intervenção da União
nos estados (art. 34), bem como de estados em municípios (art. 35) ou
da União em municípios do Distrito Federal (art. 35). As normas do
art. 60, S 4º, não estatuem princípios, mas reportam-se a eles para limi-
tar o poder constituinte derivado. Já as do art. 34, com base em prin-
cípios, estatuem regras, normas dotadas de sanção (intervenção) em
caso de certos conteúdos que também se reportam a princípios.
A Constituição, porém, ao instituir o princípio federativo, já deli-
neia a Federação estabelecendo-lhe certos princípios comuns de or-
ganização. Se uma Federação é uma repartição de competência, a
Constituição Federal distingue entre União, estados, Distrito Federal
e municípios (art. 18) conforme um princípio de autonomia política,
que faz parte do princípio federativo. A instauração de quatro ordens
jurídicas coexistentes é uma opção do constituinte que exige, no en-
tanto, compatibilidade e conformidade de suas regras. Para efeito des-
ta exigência é que se estabelecem os princípios de organização. Entre
eles mencionem-se os constantes do art. 37, referentes à Administra-
ção Pública dos quatro entes políticos da Federação e comuns a eles.
São eles o princípio da legalidade, impessoalidade, moralidade e publi-
cidade (que são, aliás, seguidos de regras comuns a todos eles). Aqui se
incluem também o princípio da unidade do regime jurídico e do plano
de carreira para os servidores, bem como o da isonomia de vencimen-
tos para cargos e atribuições iguais ou assemelhados, o princípio da
proporcionalidade eleitoral (art. 45 c/c arts. 27 e 29, IV), os do art. 93
referentes à magistratura, os do art. 145, $ 1º (pessoalidade e graduali-
84 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

dade, conforme a capacidade contributiva, dos tributos), os do art. 150


(anterioridade na estatuição de tributos, etc.) e, ainda, os do art. 170
(ordem econômica).
Os princípios comuns de organização são, em geral, específicos a
certa classe ou assunto especial. Ora se referem à administração, ora à
magistratura, ora aos servidores, ora à ordem econômica. Já por essa
razão têm um peso menor que os princípios fundamentais, que afetam
a estrutura global da Constituição. Ao seu lado, porém, estão outros,
que estão implícitos na Constituição, a qual os agasalha sem nomear,
como seria caso do princípio da prevalência hierárquica das normas
referentes aos direitos fundamentais sobre as demais normas consti-
tucionais, o princípio da unicidade das normas constitucionais, o pró-
prio princípio da supremacia constitucional, etc.
Por fim, há de se lembrar que a Constituição contém também os
chamados princípios estabelecidos, que, na verdade, são vedações ex-
pressas ao poder constituinte estadual, o que nos levaria a falar antes
em regras. Ora, a aceitarem-se estes comentários (devemos fazer no-
tar, que, quando a Constituição Federal fala em “observados os princi-
pios desta Constituição, referindo-se ao constituinte estadual, reporta-
-se genericamente a princípios e regras, sem maiores distinções). Ou
seja, pela própria indecisão terminológica do constituinte federal a que
nos referimos anteriormente, ao falar do art. 37, devemos assinalar que
sob a rubrica princípios estão aí incluídos também os princípios esta-
belecidos que, teoricamente, são vedações contidas em regras. Com res-
peito às regras devemos reconhecer, ademais, que nem todos contém
vedações expressas. Assim, por exemplo, o art. 19 contém regras que
vedam a União, estados, Distrito Federal e municípios, expressamente,
certos comportamentos normativos (por exemplo, recusar fé a docu-
mentos públicos, criar distinções entre brasileiros ou preferências en-
tre si, etc.). Outras disciplinam a competência legislativa comum, con-
corrente e suplementar (arts. 22, parágrafo único, 23 e 24). Os $$ 1º ao
4º do art. 24 contêm regras para a disciplina das competências suple-
DO USO DOS PRINCÍPIOS E OS PROBLEMAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO 85

mentar e concorrente. A distribuição de competências, por meio de


regras, contém, porém a contrario sensu, vedações para o constituinte
estadual. Em outros casos ainda, a Constituição Federal estende, com-
pulsoriamente, aos estados certas regras, como é o caso do art. 27, S 1º,
em que se manda aplicar as regras desta Constituição sobre sistema
eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato,
licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas.
Isso posto, resta ainda falar do sentido da expressão constitucio-
nal “observados os princípios” (“Os Estados organizam-se e regem-
-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios
desta Constituição” — art. 25, caput, da CF). O que significa, para o
constituinte estadual, observar os princípios, aí incluídas as regras
ou princípios estabelecidos? Em primeiro lugar, devemos reconhecer
que para observar princípios, o constituinte não precisa repeti-los na
constituição estadual, embora nada impeça de fazê-lo. Observar um
princípio significa assim abster-se de emitir regras incompatíveis ou,
positivamente, emitir regras constitucionais compatíveis. Não se cum-
pre um princípio repetindo o seu teor, mas emitindo regras que com-
põem um conjunto hierarquicamente harmônico. Como os princípios
não exigem um comportamento específico nem são aplicáveis à ma-
neira de um tudo ou nada, observá-los significa seguir-lhes a orienta-
ção ao estabelecerem-se regras constitucionais estaduais. Isso fere ao
constituinte decorrente uma certa flexibilidade legitimante que faz de
sua competência um poder condicionado, mas não limitado. Por ou-
tro lado, a inobservância dos princípios gera uma ilegitimidade das
regras constituídas, cuja consequência é a desconsideração do poder
constituinte decorrente.
Admitindo-se, como o fizemos, que os princípios fundamentais
constituem primariamente o ato constituinte, deixar de observá-los
é negar-se como poder constituinte. Ou seja, atos de inobservância
dos princípios stricto sensu, em graus diferentes de ilegitimidade, são
atos normativos inexistentes quanto à sua eficácia e anticonstitucio-
86 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

nais quanto à normatividade. Não são propriamente inconstitucionais,


mas contra a constituição, isto é emanados fora do âmbito de legiti-
midade constituído originariamente. A força de alguns desses prin-
cípios é tanta que o próprio constituinte federal estabelece, para sua
violação, regras sancionadoras que autorizam a intervenção da União
nos estados. Aliás, só assim se explica, no seio de uma Federação, esta
fórmula esdrúxula da intervenção que, aparentemente, fere a ideia de
Federação, como faz ver, entre outros, Hans Kelsen.? As regras de in-
tervenção, de certa maneira, suspendem, momentaneamente, as prer-
rogativas federativas dos poderes federados em favor da União em re-
lação aos estados e destes em relação aos municípios, porque ali estão
ocorrendo atos à margem da constituição instauradora de um regi-
me, por princípio, federativo. Os casos de intervenção, previstos em
regras, são atos anticonstitucionais (art. 34, a, b, c, d). No que se re-
fere à observância daqueles princípios de organização que, em gran-
de parte, são princípios estabelecidos, mais próximos de regras, a sua
inobservância acarreta a inconstitucionalidade da norma constituinte
estadual, isto é, seus efeitos devem ser considerados nulos (mas não
inexistentes), cabendo ao constituinte estadual a sua revogação. Isso
vale tanto para os princípios da organização como para as regras pro-
priamente ditas. Esta questão nos parece importante para o tema. Ela
tem a ver diretamente com o sentido da vinculação das constituintes
estaduais ao princípios da Constituição Federal. Por isso, vamos reto-
mar o que foi dito:

l. O poder constituinte estadual é um poder decorrente, isto é um


poder condicionado mas cuja competência, no seu âmbito, goza do
atributo da principialidade.

9 Lagiustizia constituzionale: lexecuzione federale. Milão, Giuffrê, 1981, p. 76 e segs.


DO USO DOS PRINCÍPIOS E OS PROBLEMAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO 87

2; A condicionalidade do poder decorrente está nos princípios da


Constituição Federal.
É A Constituição Federal, ao configurar-se como federativa, adianta-
-se, em alguns pontos, ao constituinte estadual, antecipando traços
fundamentais da Federação. Para isso se vale de princípios de orga-
nização estabelecidos e de regras.
Quando, portanto, a Constituição Federal exige, do constituinte es-
tadual, a observância de princípios, engloba nesta expressão tanto
princípios fundamentais (originários, instituídos, teleológicos e de
reconhecimento) como princípios de organização, princípios esta-
belecidos e regras.
A expressão observância (dos princípios) tem sentido distinto, po-
rém, quando pensamos na diferença entre princípio e regra é quan-
do admitimos que a exegese dos princípios admite peso e impor-
tância diferente quanto ao seu grau de legitimidade.
Tratando-se de princípios fundamentais, sua observância é abso-
luta. Observá-los significa compatibilizar estritamente as regras
constitucionais estaduais ao sentido de orientação que eles impri-
miram ao ato constituinte originário. Agir fora do seu parâmetro é
agir a despeito do poder originário; e, portanto, um verdadeiro ato
revolucionário. Nesse caso, falamos em anticonstitucionalidade da
constituinte estadual que, assim, se nega como poder decorrente.
Quanto aos princípios de organização, distinguimos aqueles que
são princípios, no sentido teórico proposto, e aqueles que têm mais
o caráter de regras, os chamados princípios estabelecidos. E há, por
último, normas que instituem regras.
A inobservância de princípios de organização tout court (por exem-
plo, legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade) tem um
caráter de ilegitimidade maior que a inobservância dos princípios
de organização estabelecidos. Em graus diferentes de ilegitimidade,
porém, a inobservância de ambos gera inconstitucionalidade. Tam-
bém gera inconstitucionalidade a inobservância de regras.
88 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

9. A distinção entre anticonstitucionalidade e inconstitucionalidade


tem uma repercussão importante. A anticonstitucionalidade gera
um fato político novo, isto é, gera uma situação de desagregação
política cuja consequência extrema é a situação revolucionária. En-
tre esta situação extrema e situações intermediárias, configuram-se
casos que permitem o acionamento dos instrumentos de defesa do
Estado e das instituições democráticas (Título V), até o limite das
ações cabíveis em um processo revolucionário. Tenha-se em conta,
porém, que para muitos casos de inobservância de princípios fun-
damentais estão também previstas regras, cuja desobediência ge-
rara declaração de inconstitucionalidade. Em outras palavras, se a
inobservância de princípios fundamentais estiver também regula-
da por regras, a anticonstitucionalidade gera uma ação política que,
no caso da inobservância das regras, permite também acionar os
dispositivos de declaração de inconstitucionalidade. Assim, uma
coisa é ferir, por exemplo, os princípios fundamentais que regem as
relações internacionais (art. 4º, 1 e X), outra é ferir a regra de dis-
tribuição de competência que atribui a União manter relação com
Estados estrangeiros (art. 21, 1). No primeiro caso, temos anticons-
titucionalidade, no segundo, inconstitucionalidade.
10. Atente-se para o fato de que a declaração de inconstitucionalida-
de visa a tornar a norma, assim inquinada, nula. Isto é, sua aptidão
para produzir efeitos é negada ex tunc. Contudo, a declaração não
revoga a norma, que continua vigente e eficaz até que o Senado sus-
penda sua executoriedade (art. 52, X). Ou seja, se não se declara a
inconstitucionalidade por processo próprio, o sistema recepciona a
norma que, então, regula a exigência de seu cumprimento pela se-
guinte regra dogmática de calibração: “não se pode deixar de cum-
prir ou obedecer comando do poder público, alegando sua invalida-
de”. Com isso, o sistema prestigia a autoridade jurídica, devendo-se
entender, como Kelsen, que as chamadas normas inconstitucionais
são normas conforme a Constituição, que, todavia, são anuláveis ex
DO USO DOS PRINCÍPIOS E OS PROBLEMAS DO NEOCONSTITUCIONALISMO 89

tunc por um processo especial. É diferente a situação de anticonsti-


tucionalidade, que desencadeia um fato político novo, com preten-
são de legitimar a partir de si mesmo a desobediência, posto que o
poder que a provoca está negado como poder jurídico-constitucio-
nal decorrente e se estrutura, em graus diferentes de legitimidade,
como originário.

Essas considerações mostram, por fim, que o sistema constitucio-


nal é um sistema jurídico sensível aos aspectos políticos, econômicos
e sociais muito mais do que os outros. Afinal, o aspecto político que
mostramos na distinção entre inconstitucionalidade e anticonstitu-
cionalidade na inobservância de princípios atesta que a configuração
constitucional da Federação não se reduz a bases meramente analíti-
cas, mas aponta para os múltiplos sentidos da convivência básica do
ser humano no espaço da cidadania.
Lembrando um exemplo anterior: a unanimidade nas decisões do
Conselho Nacional de Política Fazendária - Confaz é um princípio que
deve ser observado por todos os estados federados?
XVI. USO DE PRINCÍPIOS E TÓPICA
JURÍDICA

Na verdade, a argumentação principiológica, como tarefa dogmáti-


ca, ocorre em um amplo espectro de possibilidades. Envolve o direito
como um fenômeno complexo de comunicação, na perspectiva da de-
cidibilidade de conflitos'!. Para isso, ela tem por objetivo determinar o
sentido vinculante da normatividade, que está no ato, na omissão, no
comportamento, nas prescrições, nas recomendações, nas políticas, na
organização, que, no recurso à ponderação de princípios, adquire o seu
sentido de dever-ser, ora em termos do sentido daquilo que por eles
deve ser, ora do sentido do seu dever-ser para os destinatários, ora do
sentido do seu dever-ser para quem dita normas.
Na prática, ora nos referimos a todos conjuntamente, ora nos fixa-
mos em um desses pontos: levamos em conta ou sua validade ou seu
significado ou sua eficácia ou sua função. Fixar em um desses pontos
significa atribuir-lhe relevância em vista de um objetivo.

1 Decidibilidade no sentido de um conhecimento que visa a criar condições para que


uma determinada problemática social seja solucionada sem exceções perturbadoras (FER-
RAZ JR., Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo, 2008, p. 64 ss.). Ver
também: VIEHWEG, Theodor, Ideologie und Rechtsdogmatik, em Ideologie und Recht,
Frankfurt/M, 1969, p. 86.
92 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

O intérprete constitucional pressupõe, para isso, que, em uma


constituição, são fornecidas razôes/motivos para agir de certo modo, e
não de outro; razões que se destinam a uma tomada de posição diante
de diferentes possibilidades nem sempre congruentes. Pressupõe, des-
sa forma, que o constituinte age motivadamente; e assim atribui signi-
ficação ao seu discurso. O que induz a uma necessária referência à pre-
missa hermenêutica da não redução do preceito ao seu texto.
Preceitos constitucionais, no sentido de sua aplicação com base em
princípios, não se confundem com o texto dos dispositivos que com-
põem o documento escrito. Enquanto um comando significativo, eles
resultam de um processo, que parte do texto preceptivo e finda com a
formulação do preceito regulador, ou seja, começa com a interpreta-
ção e culmina com a decisão. É esse processo, que se diz argumentativo,
que recorre à ponderação de princípios.
De modo geral, pode-se dizer que a ponderação de princípios tem
uma vinculação a procedimentos tópicos, menos enquanto um méto-
do e mais como um estilo de pensar, que diz respeito propriamente
a uma atitude cultural de alto grau de confiabilidade no desempenho
de tarefas práticas. Pode-se dizer, nesse sentido, que a ponderação de
princípios tem muito a ver com uma teoria dos lugares comuns e com
uma teoria da argumentação e de raciocínio, vale dizer, uma acepção
estrita e uma acepção ampla de argumentação. Na primeira, princípios
aparecem como um conjunto mais ou menos organizado de catego-
rias gerais, nas quais se agrupam argumentos básicos para as técnicas
de persuasão. Trata-se, então, de um ou mais repertórios (princípios
constitucionais de diversas ordens), que facilitam a ars inveniendi do
intérprete e do aplicador. No segundo caso, revela-se como uma técni-
ca de raciocínio, que trabalha como um modo de pensar não apodítico.
No entanto, quando se fala, assim, em uma tópica de princípios,
pensa-se não como no passado, em um conjunto de cânones para jul-
gar a adequação de explicações propostas, nem em critérios para sele-
cionar hipóteses normativas, mas em um procedimento não verificável
USO DE PRINCÍPIOS E TÓPICA JURÍDICA 93

rigorosamente que nos permite abordar questões jurídicas com cará-


ter problemático, visto que jamais perdem sua qualidade de tentativa,
pois não fecham nem concluem — embora criem a possibilidade de to-
mar decisões em uma amplitude muito maior que decisões com base
em regras.
Os princípios adquirem, assim, a condição de loci, topoi, lugares-
-comuns, instrumentos organizadores de séries argumentativas, em
que a razoabilidade das decisões parece fortalecida a despeito da enor-
me contingência gerada. Contudo, como se trata de séries argumenta-
tivas, os princípios assim utilizados não pressupõem nem objetivam
uma totalidade sistematizada, isto é, não pressupõem uma hierarquia
principiológica dotada de unidade sistemática. Partem de conhecimen-
tos fragmentários ou de conjuntos preceptivos regionalizados, entendi-
dos como alternativas para problemas para os quais se buscam solu-
ções sem compromissos holísticos. Princípios são assumidos como um
dado, como algo que dirige e orienta a argumentação, que culmina em
uma decisão legitimadora de possíveis consequências futuras (uma de-
cisão possível entre outras).
Com isso, o uso tópico de princípios (ao contrário de seu uso con-
forme a tópica jurídica no universo da subsunção) exerce uma função
menos validadora (recurso à regra válida) e mais legitimadora de deci-
sões jurídicas, controlando a contingência dos resultados (consequên-
cias futuras) não por sua adequação àquilo que ocorreu (relação norma
preestabelecida e fato), mas por àquilo que poderá ocorrer (prognósti-
co do que poderá vir a suceder).
Desenvolvem-se, assim, topoi principiológicos de argumentação,
que dizem respeito menos ao ônus da prova, à exigência de pertinência
e de clareza, e muito mais à consequencialidade das decisões, que per-
mitem à argumentação uma antecipação da legitimidade do que irá su-
ceder e cuja força persuasiva está não em uma validade pregressa, mas
em um prognóstico legitimado.
04 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Veja-se, por exemplo, a seguinte argumentação em caso de acusa-


ção de trabalho escravo contra uma empresa que comercializa produ-
tos adquiridos de outra (empresa atacadista), que, por sua vez, contra-
ta com uma terceira empresa a produção, cujos empregados executam
o serviço, tratando-se de pessoas jurídicas inteiramente autônomas e
sem qualquer relação de dependência societária. Mediante o entendi-
mento de trabalho escravo como o trabalho executado em condições de-
gradantes, invoca-se o instituto da responsabilidade solidária da empre-
sa adquirente dos produtos com a empresa que contrata os serviços e
com a empresa que executa os serviços, cuja base estaria no conceito
de responsabilidade objetiva (responsabilidade pelo risco, independen-
te de culpa subjetiva). Como essa responsabilidade é afirmada no direi-
to ambiental, mas não, propriamente, no direito trabalhista, a constru-
ção argumentativa se vale de princípios constitucionais, a começar do
“princípio da dignidade humana” (Constituição Federal do Brasil, art. 1º
— JJ), do “valor social do trabalho” (art. 170, II, VI e VII), da “saúde”
(art. 6º e 196), do “meio ambiente equilibrado” (art. 225), estendido en-
tão para o princípio do “meio ambiente de trabalho saudável e seguro”
(com menção ao art. 7º — XXIII, que, na verdade, garante ao trabalha-
dor salário adicional de insalubridade quando o trabalho é realizado
em condições insalubres). A argumentação, afinal, pretende criar uma
nova responsabilidade empresarial, que obriga as empresas em uma
cadeia de produção e comercialização a exercerem uma função fisca-
lizadora e reparadora dos efeitos sociais, sem dúvida, moralmente per-
versos do regime econômico. Ou seja, contra a legalidade, e mesmo
contra o sentido expresso das regras constitucionais, invocam-se prin-
cípios capazes de legitimar uma decisão que corrige prospectivamente
as insuficiências do sistema de lege lata.
Se, no passado (quando apareceram os direitos fundamentais so-
ciais, chamados de segunda geração), a argumentação jurídica dirigia-
-se a postular uma intervenção na forma de uma prestação garantidora
(prestação jurisdicional: direito de ação judicial e tutela judicial), agora
USO DE PRINCÍPIOS E TÓPICA JURÍDICA 95

uma argumentação legitimadora mediante princípios até começa com


uma prestação de garantia (direito à previdência e à saúde), mas avan-
ça para direitos a prestações capazes de não apenas proteger os desi-
guais em face dos iguais, mas de promover entre ambos uma igualdade,
não apenas com olhos para um antecedente: todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza, mas voltados para uma di-
mensão futura: todos têm direito à igualdade, isto é, à garantia de se
tornarem iguais. É perante esse problema de como institucionalizar so-
cialmente no ambiente extraoficial (na escola, no hospital, na fábrica e
na empresa) não um direito, desde o passado, de ser tratado igualmen-
te apesar das desigualdades, mas de promover uma igualdade na qual
existam desigualdades, que a tópica, ao tratar princípios como lugares
comuns, exerce uma função legitimadora prospectiva (em vista do fu-
turo). Ao permitir sua ponderação (como topoi, eles possuem peso —
pondus —, legitimante equivalente), as decisões adquirem um compro-
misso com a efetivação real de suas consequências.
Em suma, como “razões para a ação, princípios passam a ser apli-
cados diretamente (e não, como no passado, apenas para preenchi-
mento de lacunas ou em casos de antinomia e obscuridade normati-
va). Com isso, a questão, para a dogmática constitucional deixa de ser,
propriamente, a possibilidade de uma interpretação correta ou objeti-
vamente válida, mas, sim, qual aquela que está mais bem ou suficiente-
mente justificada, diante das exigências de legitimação de consequên-
cias futuras dos casos a decidir.
Esse problema, a ser decidido pelo intérprete, traduz-se, afinal, de
um lado, em uma escolha nem sempre manifesta, dentro de um con-
flito fundamental entre fazer aquilo que é correto e aquilo que é bom, o
que, dentro da filosofia moral, se expressa, por exemplo, na divisão en-
tre teorias deontológicas e teleológicas. As teorias deontológicas cor-
respondem ao ideal de vida humana consistente em agir corretamente
segundo as regras e os princípios morais, nas quais as ideias de dever e
correção (justiça formal) são os temas centrais. As teorias teleológicas
96 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

correspondem ao ideal de vida humana, consistente na tentativa de sa-


tistação de determinados fins considerados bons, sendo a ideia de jus-
to o tema central.
No entanto, como essas são escolhas nas quais o código justo/injus-
to falha como guia, válvulas de escape têm, afinal, de ser encontradas.
E esse é o papel da tópica principiológica, que, ao ponderar princípios
como topoi, não os usa para aumentar uma certeza (a normalidade
do lugar comum na antiga tópica), mas para aumentar a variedade de
pontos de vista surgidos do caso a decidir, legitimando um balancea-
mento de benefícios e interesse e tendo em vista suas consequências.
XVII. RAZOABILIDADE E
PROPORCIONALIDADE COMO -
REGULADORES DA PONDERAÇÃO

Voltemos ao problema das deliberações do Conselho Nacional da Polí-


tica Fazendária — Confaz e a exigência de unanimidade ou de maioria,
que levanta dois temas fundamentais: a Federação e o Estado Democrá-
tico de Direito.
A ideia de que a exigência de unanimidade (na aprovação dos con-
vênios) seria uma decorrência lógica da imponibilidade da deliberação
conjunta a todos os que deliberam é tema de antiga reflexão que vale a
pena ser revisitada para melhor entender o problema em sua extensão
como fundamento dos estados democráticos.
Trata-se do tema da relação entre maioria e minoria e a eventual
exigência de unanimidade como instrumento de garantia das posições
minoritárias em face da força impositiva das maiorias, tema que re-
monta às discussões travadas, na era moderna, em torno da soberania
nacional (e, particularmente, da soberania popular).
Assim, conquanto Hobbes, nos quadros do estado absolutista, visse
na justiça uma virtude ligada à ciência dos contratos, o seu exercício
pressupunha a instituição da sociedade civil. Sem a lei não haveria es-
98 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

paço para o justo e o injusto, cuja possibilidade de distinção dela de-


corre. Por isso, o tema da soberania absoluta como base para resolver
as dissensões privadas (maioria contra minoria) parecia fundamental.
No Leviathan, o fundamento da justiça enquanto equilíbrio de inte-
resses estaria naquela lei da natureza que obriga a cumprir o pactua-
do.” Como o ser humano constitui seus interesses com base em egoís-
mo e medo uns dos outros,” só depois que um pacto social é celebrado
é que há lugar para distinguir o justo do injusto. Por consequência, o
acordo civil, depois de pactuado, não poderia ser modificado. Assim,
a natureza da justiça consistiria em manter o pactuado. Pois, em uma
concepção absolutista, a validade dos pactos só começa com a cons-
tituição de um poder civil suficiente para compelir os homens a res-
peitá-los. Na verdade, aquilo que é próprio de cada um nasce com o
pacto, e onde não se erigiu um poder coercivo na medida em que é
pactuado, não há critério para lidar com dissensões. Por isso e nes-
sa medida, no seio do Estado, uma deliberação conjunta não poderia,
propriamente, ser posta em discussão depois de tomada, pois o pacto
soberano tem a força de uma unanimidade (pela entrega de todos os
direitos ao soberano que, então, os distribui), sendo a partir dela que
se resolvem os interesses conflitivos das minorias contra os das maio-
rias. Ou seja, nos quadros do estado absolutista, pode-se dizer que a
unanimidade seria uma espécie de pré-condição para a acomodação
de interesses ditados por medos e egoismos, que só ressurgem na for-
ma de rebelião e contestação.
No entanto, a figura da unanimidade ligada a uma soberania por
definição absoluta cria, por óbvio, problemas sérios para um regime

1 Cap. XV.
2 Istoé, that men perform their convenants made”.
3 Nesse sentido, Hobbes reconhece que “Covenants entered into by fear in the condition
of meer Nature, are obligatory”.
RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE COMO REGULADORES DA PONDERAÇÃO 99

democrático em que o equilíbrio entre posições majoritárias e mino-


ritárias exige outro tipo de mecanismo. Afinal, o sentido da democra-
cia torna-se racionalmente ambíguo quando reduzido a um respeito
ao pactuado por medo e egoísmo e quando fundado em unanimidade.
Mesmo em Rousseau, essa ambiguidade não é menos patente.
Para ele, se a sociedade civil nasce com a propriedade (quando, pela
primeira vez, alguém diz: isto é meu) e com isso sobrevêm as desi
gualdades, sua organização exige um reequilíbrio, cuja possibilidade
repousa no contrato social que encarna a vontade geral. Esta — que
não se confunde com a vontade de todos (vontade censitária, de onde
surge vontade majoritária) - deveria estar, racionalmente, acima das
vontades individuais, mesmo quando agrupadas em maiorias. Ou
seja, na sociedade civil (Estado) não haveria outro meio de impedir a
supremacia da vontade da maioria sobre a vontade da minoria senão
pelo reconhecimento de uma vontade geral, que teria por objeto o in-
teresse comum, cujo princípio máximo de racionalidade seria: depois
de estabelecido o pacto contratual não faz sentido modificá-lo sal-
vo pela unanimidade das vontades individuais que o constituem. Por
isso a vontade geral, expressão da soberania, apontaria para um sen-
tido de unanimidade da razão soberana, em que o mais e o menos se
cancelam mutuamente.
A explicação dada por Rousseau para a prevalência da unanimi-
dade sobre um princípio de maioria é simples. Uma vontade majori-
tária que resulte da acomodação de interesses positivos acaba sempre
por fazer com que interesses majoritários se sobreponham a interes-
ses minoritários; para legitimar essa situação seria necessária a von-
tade geral, que é uma fórmula sutil de eliminação das diferenças en-
tre os interesses, do que resulta um consenso compacto, sem brechas,
unânime, portanto sem maiorias e minorias. Ou seja, a unanimidade
é um instrumento para harmonizar as diferenças entre os interesses
em jogo, não as congruências. Assim, como a soma das diferenças en-
100 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

tre os interesses individuais constitui a vontade geral,“ a vontade ge-


ral (unânime) coloca as vontades individuais, quer majoritárias, quer
minoritárias, sob sua suprema direção. Daí o direito de veto, que é
antes uma garantia de não ser prejudicado, mais do que uma garantia
de que o interesse comum seja atendido.
Entre maiorias e minorias se introduz, porém, um elemento qua-
se místico (absoluto), que anuncia a hierarquia da razão suprema (não
divergente: unânime), que, portanto, não pode ser contestada por nin-
guém nem admite resistência (Rousseau não aceita o direito de rebe-
lião, pois a vontade geral nunca erra).
O constitucionalismo contemporâneo” não deixou de apontar o
efeito tirânico da soberania fundada nessa vontade geral e, por conse-
quência, das resultantes antidemocráticas de uma exigência de unani-
midade. Afinal, afirmar um poder dessa vontade coletiva (geral: vonta-
de do Estado constituído) significa afirmar a autonomia sem restrição
de cada vontade individual (poder de veto) com a estranha consequên-
cia de que nenhuma vontade particular pode ter interesses contrários
ao todo posto que o todo jamais quereria algo de prejudicial a cada um.
Daí decorre, em termos procedimentais, a exigência de unanimida-
de para qualquer tomada de decisão. Isso tem repercussões para uma
concepção de Estado: a unanimidade só é compatível com um Esta-
do administrativo próximo a um regime totalitário, daquele Estado que
não se submete às intermináveis discussões legislativo-parlamentares”

4 Constituir uma sociedade com base em vontade majoritária não funciona: é preciso
supor um tipo de unanimidade compacta, uma espécie de razão soberana acima das indivi-
dualidades: a vontade geral. É o pensar de Rousseau em O contrato social, II, Cap. 3.
5 Kant expressou essa “lógica” do afastamento da possibilidade de divergir com a seguinte
questão: “Pergunte-se o povo, antes do estabelecimento do pacto civil, se ele se atreveria a tor-
nar pública a máxima do desígnio de uma eventual insurreição” (A paz perpétua, p. 165).
6 Por exemplo, DuGuUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel, t. 1, p. 634 e segs.
RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE COMO REGULADORES DA PONDERAÇÃO 10]

e reconhece “um valor jurídico positivo ao decisionismo do mandato


imediatamente executivo” no qual rege o aforismo “o melhor no mun-
do é uma ordem”. Nesse quadro, só há lugar uma (utópica) homoge-
neidade substancial do todo (o povo, a nação, a Federação), quando,
então, uma eventual discordância minoritária apenas por veto e não
por concordância positiva.
Ora, essa discussão, que ocorreu no nascimento do Estado moder-
no, tem, para o entendimento do Estado federativo, importantes reper-
cussões, podendo-se dizer que na sua origem está o debate em torno
da chamada Federação cooperativa.
Interessante assinalar que, ao analisar, de plano, o pacto federativo,
Kelsen nele percebeu, à primeira vista, uma exigência lógica de una-
nimidade como sua condição de possibilidade, fundada no reconheci-
mento do direito de veto como fórmula capaz de evitar qualquer tenta-
tiva de rompimento da Federação constituída. A Federação se instituiria
com base nessa unanimidade ou não constituiria um Estado soberano.
Por isso, disse ele em uma primeira abordagem que o Estado federal
não se conciliaria bem com o estado democrático, pois deste faz parte o
conflito de interesses e a formação de vontades majoritárias capazes de
obter o reconhecimento das minoritárias (princípio da maioria). Dizia
ele a propósito da Constituição Federal austríaca e da previsão de um
órgão no qual estariam presentes todos os Estados-membros:

Justamente nessa paridade de todos os Estados-membros no órgão inte


restadual repousa a tendência radicalmente antidemocrática do Estado
federal. Na Áustria, esta efetivação do princípio puro do Estado federal
[...] teria tido por consequência, além disso, a completa submissão do

7 SCHMITT, Carl. Legalidad y legitimidad, p. 13.


8 Cf. para uma visão histórica, FALCÃO, Alcino Pinto. “Aspectos da cooperação horizon-
tal no federalismo”, in: Revista de Direito Público (RDP), n. 33/23, jan.-mar./1975.
102 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

segmento populacional industrial, proletário e cidadão à completa do-


minação pela população clerical e camponesa.”

Posteriormente, porém, Kelsen, percebendo o caráter tirânico dessa


concepção de Federação (o que, de fato, se manifestara na dieta tirolesa,
quando um único veto fora capaz de derrubar uma proposta majoritá-
ria'?) e sua incompatibilidade com a hipótese de um Estado federativo
também democrático, acabou por reconhecer que o tema da Federa-
ção não deveria ser contaminado por algumas de suas origens ideoló-
gicas (Hobbes, Rousseau) e evitar as consequências políticas de perver-
são democrática, merecendo, assim, os procedimentos decisórios do
pacto federativo um tratamento jurídico dentro da própria constitui-
ção, capaz de enfrentar o tema da autonomia no todo da soberania com
base em um princípio da maioria. Assim disse ele:

Que os Estados-membros sejam “designados” como autônomos é uma su-


gestão modesta da ideia de soberania, como se manifesta na constituição
suíça, onde os Estados-membros (cantões) são, expressamente, designa-
dos como “soberanos”. Esta terminologia deixa-se explicar, certamente, a
partir das tendências políticas que resultaram na Constituição Federal, as
quais, porém, não têm nenhum conteúdo juridicamente relevante. Se e em
que medida os Estados-membros são “autônomos” é algo que decorre das
disposições da constituição. Com o estabelecimento como membro den-
tro de um estado, uma autonomia absoluta é incompatível.

9 Cf. KELSEN, Hans. “Zum Bundesverfassungsentwurf des Tiroler Landtages” In: Neue
Freie Presse, 13. Januar 1920, p. 3 — grifo do autor.

1I0 Comentava Kelsen: “Nos projetos havia, na verdade, este princípio [o direito federal
prevalece sobre o direito estadual], mas ele não conseguiu impor-se contra as tendências fe-
deralistas” (KELSEN, Hans. Die Verfassungsgesetze der Republik Osterreich, p. 78).
11 Ibidem, p. 67 - grifo do autor.
RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE COMO REGULADORES DA PONDERAÇÃO 103

Daí a negação do poder de veto e o afastamento da unanimidade como


exigência procedimental de decisões federais e a negação do conse-
quente poder de veto.
Na verdade, um pacto federativo com base em unanimidade/direito
de veto lida mal com o equilíbrio entre maioria e minoria e transporta —
mal -, para o plano público, uma concepção contratualista privada (na
qual existe, por exemplo, o direito de retirada), mas que não se coaduna
com uma concepção federalista do Estado democrático, pois subordina
a vontade de todos à vontade de um (mediante o poder hegemônico do
veto), em nome de uma racionalidade superior e incontestável.!?
Pode-se dizer, nessa linha, que a instauração de mecanismos de
procedimento com base em unanimidade em qualquer organismo de-
cisório de um estado federal só faz sentido ali onde o pacto federativo
conhece um viés autoritário e centralizador, sendo incompatível com
uma concepção democrática do Estado.
Nesse sentido, é, em sede federativa, nos quadros de uma concepção
de Estado que o tema do fomento e do incentivo fiscal se coloca e deve
ser explicitado. Pois é nesse quadro teórico que deve ser entendida a pas-
sagem, no constitucionalismo brasileiro, do regime autoritário da Cons-
tituição de 1967 conforme a Emenda n. 1/69 para o regime do Estado
Democrático de Direito da Constituição de 1988. E, nesse quadro, o papel
da razoabilidade e da proporcionalidade como princípios de princípios.

12 Sobre esse paradoxo, cf. DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel, p. 620. Kant, em

outro contexto, chamou isso de “insociável sociabilidade”.


XVII. RAZOABILIDADE JURÍDICA

Na discussão do conceito, a garantia constitucional do devido processo


legal substantivo é um ponto de partida importante.
Dispõe o inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal: “LIV - nin-
guém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido proces-
so legal”.
A Constituição faz, nesse dispositivo, uma menção inovadora ao
devido processo legal. A inovação está em torná-lo explícito, posto que
os comentaristas e a jurisprudência são acordes em já tê-lo presente no
direito anterior.
Nessa explicitação, é importante assinalar a referência expressa à
privação de bens. Conquanto, na tradição, o due process of law tenha
por cerne a liberdade, é inegável, desde o século XIX, a conexão entre
liberdade e propriedade, mormente pela repercussão do patrimônio
na vida pessoal e familiar e, extensivamente, no âmbito da esfera pri-
vada. A destituição do domínio de determinado bem, por isso mesmo,
é medida de extrema gravidade, conhecendo, nas constituições demo-

1 Cf. Bastos, Celso. Comentários à Constituição do Brasil, v. 2, p. 265 e segs.


106 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

cráticas, garantias próprias (como a proibição de confisco, a exigência


de cautelas na desapropriação, etc.).
Aquela privação pode ocorrer pela prática de ilícitos administrati-
vos, mas também por meio de atos administrativos com base em lei. A
garantia subjetiva abrange as duas hipóteses, sendo possível que o ato
administrativo lícito venha, por exemplo, provocar um efeito não pre-
visto e não desejado pela lei, o que significará perda patrimonial sem
as garantias próprias do devido processo legal.
Como se fala em processo e não em procedimento, alude-se a for-
mas instrumentais adequadas? Nesse sentido, a perda patrimonial,
ainda que por força de procedimentos legais efetuados pela adminis-
tração, acaba por manifestar uma inadequação instrumental, como em
caso de desapropriação.
O fato de haver, no texto constitucional, uma série de direitos fun-
damentais com tratamento autônomo, não impede que a garantia do
devido processo legal admita esses e outras inferências, o que dá ao
due process of law um sentido extensivo, cuja fórmula se identifica com
o próprio Estado de Direito.
Nesse sentido, como mencionado, sob o influxo de interpretação
construtiva, a jurisprudência da Suprema Corte norte-americana vis-
lumbrara, já há tempo, para o due process of law, além de seu sentido
processual e adjetivo, também um sentido substantivo (substantive due
process of law), o que deu à garantia o caráter de um instrumento me-
diante o qual o Judiciário pode controlar a adequação da própria lei
aos fins a que se destina.
Trata-se de um controle finalístico da lei e da adequação entre
meios e fins por ela estabelecidos, com o que a legalidade (rule of law)
é, de certo modo, amalgamada com a razoabilidade (rule of reasonable-
ness). A partir desse amálgama surge esta nova acepção de devido pro-

2 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 433.


RAZOABILIDADE JURÍDICA 107

cesso legal, capaz de instrumentalizar a validade constitucional de atos


normativos e de decisões do Estado.
O Supremo Tribunal Federal - STF tem reconhecido esse impor-
tante sentido do due process of law. Em um pronunciamento paradig-
mático, o ex-Ministro Moreira Alves assim se pronunciou sobre ele:

A Constituição no seu art. 5º, LIV - e aqui trata-se de direitos não


apenas individuais, mas também coletivos e aplica-se, inclusive, às pes-
soas jurídicas -, estabelece que “ninguém será privado da liberdade ou
de seus bens sem o devido processo legal”.
Processo legal, aqui, evidentemente, não é o processo da lei, senão a
Constituição não precisaria dizer aquilo que é Óbvio, tendo em vista in-
clusive o inciso II do art. 5º que diz: “ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Esse princípio constitucional que tem a sua origem histórica nos Es-
tados Unidos, lá é interpretado no sentido de abarcar os casos em que
há falta de razoabilidade de uma norma. Por isso mesmo já houve quem
dissesse que é um modo de a Suprema Corte americana ter a possibilidade
de certa largueza de medidas para declarar a inconstitucionalidade de leis
que atentem contra a razoabilidade.

A razoabilidade, por sua vez, aparece como um corretor da violação de


equivalências, em termos de proporção adequada. O mesmo Moreira
Alves” afirma a propósito de norma instituidora de taxa judiciária:

3 Cf casrtRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das


leis na nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro, Forense, 1989, p. 77; cf. também GRINO-
vER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do direito de ação. São Paulo, Revista dos
Tribunais, 1973, p. 35.
4 ADlIn n. 855 (RTJ 152/455). Cf. também ADIn n. 958, rel. Min. Marco Aurélio, DJ
25.08.1995.
5 Rp.n.1.077 (RTJ112/34, p. 58-9).
108 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

O que é certo, porém, é que não pode taxa dessa natureza ultrapassar a
equivalência razoável entre o custo real dos serviços e o montante a que
pode ser compelido o contribuinte a pagar, tendo em vista a base de cál-
culo estabelecida pela Lei estadual e o quantum da alíquota por esta fixado.

Essa equivalência razoável tem a ver, contudo, não só com o balancea-


mento de medidas objetivamente dadas, mas também com o equilíbrio
na relação meio/fim, sendo o seu funcionamento como um corretor
dos desvios de poder. Veja-se a ementa “Concurso público”:

O princípio da razoabilidade é conducente a presumir-se, como objeto


de concurso, o preenchimento de vagas existentes. Exsurge configura-
dor de desvio de poder, ato da Administração Pública que implique a no-
meação parcial de candidatos, indeferimento da prorrogação de prazo
do concurso sem justificativa socialmente aceitável e publicação de novo
edital com idêntica finalidade.

Entende-se, nesse passo, que o objetivo do inciso IV do art. 37 da


CF tem o objetivo manifesto (fim) de resguardar precedências na se-
quência dos concursos, donde ser inadequado o procedimento admi-
nistrativo (meio) de deixar escoar deliberadamente o período de va-
lidade de concurso anterior para nomear os aprovados em certames
subsequentes.
É possível, por todos esses motivos, sustentar-se a violação do devi-
do processo legal substantivo em termos de irrazoabilidade da relação
meio/fim, ao arrepio do disposto no inciso LIV do art. 5º da Constitui-
ção Federal. E, para essa sustentação, valer-se do amálgama entre o due
process of law e o princípio da razoabilidade. O que se afirma, em sínte-
se, é que o princípio da razoabilidade (necessidade, adequação, propor-

6 STF RE nn. 192.568/PI, 2º T. rel. Min. Marco Aurélio, j. 23.04.1996, DJ 13.09.1996.


RAZOABILIDADE JURÍDICA 109

cionalidade), como postulado constitucional autônomo, teria sua sede


material no dispositivo constitucional sobre o devido processo legal.”
Assentado que a garantia do devido processo legal substantivo se
traduz em uma exigência de razoabilidade dos atos estatais (leis, atos
administrativos, sentenças judiciais), faz mister encarar a questão da
própria razoabilidade.
Razoabilidade é termo que admite várias acepções.

l. No âmbito da técnica (enunciados técnicos: se quer A, faz B) fala-


-se de meios razoáveis para obter certo fim (razoabilidade técnica).
2. Na axiologia jurídica (enunciados valorativos: a situação A é justa),
diz-se que são razoáveis certas situações elas próprias com carga va-
lorativa (cooperação, ordem, paz, segurança, etc.) quando se fundam
na justiça, enquanto valor fundante e abarcante dos demais (razoabi-
lidade axiológica).
3. Na ciência do direito (enunciados dogmáticos de busca de razão su-
ficiente para uma conduta: a conduta A tem por fundamento a lei
Y), a razoabilidade significa uma adequada subsunção: adequada
essencialmente quando se dá em face de uma norma jurídica, ade-
quada existencialmente, quando se dá em face de um standard com-
portamental jurídico, adequada verdadeiramente, quando se dá em
face de critério de justiça acolhido pelo ordenamento (razoabili-
dade jurídica).

Quando se fala da razoabilidade, em um sentido lato, de um ato admi-


nistrativo, de uma lei, de uma sentença, pensa-se, em geral, na razoabi-
lidade jurídica nas suas três formas de adequação. Em um sentido es-
trito, pensa-se na adequação verdadeira ou de justiça.

7 Cf, para essa interpretação: MENDES, Gilmar Ferreira. “O princípio da proporcionali-


dade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. Repertório IOB de Ju-
risprudência, n. 14/2000, Caderno 1.
TIO ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

A razoabilidade jurídica admite duas espécies:* a de ponderação e


a de seleção.
Admitindo-se que normas jurídicas (gerais - norma legal - ou in-
dividuais - norma administrativa, sentença judicial, norma contratual)
são constituídas de um antecedente e um consequente (se ocorrer o fato,
segue o tributo, se ocorrer inadimplência, segue a sanção, dada a entre-
ga do bem, segue o pagamento do preço, etc.), fala-se em razoabilidade
de ponderação que, nos EUA, é conhecida como balance of convenience
rule. Trata-se da razoabilidade da imputação. Em termos de justiça, está
em questão o equilíbrio comutativo entre o fato e a consequência.
Já a razoabilidade de seleção tem a ver com o princípio da igualda-
de perante a lei. Trata-se, no estabelecimento da norma (legal, judicial,
administrativa), da determinação de quais os conteúdos dogmáticos
que integram o fato antecedente, que ou compõem ou ficam de fora
da sua extensão. Aqui, a razoabilidade se refere não à imputação, mas
ao imputado. Por exemplo, na imputação subjetiva do cometimento de
um ato criminoso, se os imputados de 16 anos devem ter o mesmo tra-
tamento dos de idade superior. Ou seja, cada vez que o emissor de uma
norma a estabelece, deve efetuar uma valoração de razoabilidade ao se-
lecionar o alcance do fato antecedente.
A valoração da razoabilidade em termos ponderativos se dá pela
comparação, em uma dada norma, do fato antecedente e a prestação
da consequência. Já a valoração da razoabilidade eletiva exige a com-
paração de pelo menos duas normas distintas e do modo como nelas a
certos fatos são imputadas certas consequências e a outros não.
Para apreciar a razoabilidade ponderativa, é preciso entender como
nela atua uma valoração técnico-social ou política, que dá suporte à
valoração jurídica. Trata-se da apreciação da norma enquanto técnica
social, na qual se utilizam certos meios para obter certos fins (veja-se,

8 Cf. LINARES, Juan Francisco. Razonabilidad de las leyes, p. 114 segs.


RAZOABILIDADE JURÍDICA 11]

no caso da decisão judicial, a interpretação da lei conforme os fins so-


ciais a que se destina).
Como regra, para o juiz, o mero acerto técnico-social não interessa.
Interessa ao sociólogo ou ao político. Ao juiz incumbe, para além do
acerto técnico, o acerto jurídico de justiça, buscando determinar o pri-
meiro para alcançar o seu fundado juízo sobre o segundo.
Isso posto, é possível entender algumas regras que conciliam a va-
loração técnico-social ou política com a jurídica.
Em sede de direito civil, o pagamento de perdas e danos é efeito da
obrigação de indenizar, que nasce com um inadimplemento imputá-
vel. Para recorrer a um aforismo clássico, trata-se de recolocar a vítima
na situação em que se encontraria se o prejuízo não tivesse sido produzi-
do. Essa recolocação da vítima tem a ver com a razoabilidade da medi-
da correspondente. Assim, na fixação de perdas e danos (CC/2002, art.
402), o juiz se encontra diante da tarefa delicada: não recair nem em
uma reparação insuficiente que não indeniza totalmente a vítima, nem
em uma reparação excessiva que atribuirá, para além do dano sofrido,
um verdadeiro benefício. “Por isso, a matéria é regida pelo “princípio
da reparação integral (art. 944) [CC/2002], que indica: em linha de
princípio, o dano deve ser integralmente indenizado, isto é — não deve
ser indenizado a mais nem a menos”?
O princípio da reparação integral tem a ver com a razoabilidade
ponderativa. O art. 402 (CC/2002) determina que as perdas e os danos
abranjam, além do que o credor perdeu, o que ele razoavelmente dei-
xou de ganhar. Daí, o dano emergente e os lucros cessantes. Como di-
zia Agostinho Alvim:

9 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.). Comentários ao novo Código Civil, v. V, t. IL p.


324,
TZ ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Se, como dizem os civilistas, para a verificação do dano, devemos ter em


vista o patrimônio daquele que sofreu, tal como estaria se não existira o
dano, bem se vê, desde logo, a necessidade de levar em conta não somen-
te o desfalque, mas aquilo que não entrou ou não entrará para este pa-
trimônio, em virtude de certo fato danoso. Assim que o dano, em toda a
sua extensão, há de abranger aquilo que efetivamente se perdeu e aquilo
que se deixou de lucrar."

O que efetivamente se perdeu caracteriza o dano emergente. Mas não só,


pois não se trata apenas de diminuição do ativo, mas também de au-
mento do passivo, ausência de ganhos da qual se ressente o lesado, in-
tegrando a diminuição do ativo e o aumento do passivo o dano emer-
gente. Tratando-se de dano patrimonial, a razoabilidade ponderativa
resulta de um montante a ser evidenciado. E, no caso de lucro cessante,
a razoabilidade — expressa na lei — exige ponderação com base em cri-
térios fáticos (análise do mercado) e normativos (conduta das partes,
por exemplo, conforme a boa-fé).
O problema de um eventual valor quantitativo que, supostamen-
te, venha a ser considerado excessivo (irrazoável), para além de um
montante evidenciado em provas, aponta para a questão da avaliação
técnico-social. Quando o intérprete de uma norma (uma sentença) se
propõe determinar se ela é razoável porque o valor quantitativo é ex-
cessivo não em face do valor apurado, mas pelo montante alcançado
pura e simplesmente (valor “estratosférico”) o aspecto qualitativo se
torna preponderante. Na verdade, não é a quantidade, mas o sentido
qualitativo da quantidade que entra em jogo.
A avaliação técnico-social, que daria suporte ao exame da avaliação
jurídica, tem de levar em conta os meios para obter certos fins. A técni-

10 Da inexecução das obrigações e suas consequências, p. 173.


11 Ibidem, p. 174.
RAZOABILIDADE JURÍDICA 113

ca exige que se principie pela razoabilidade dos fins perseguidos, para


depois avaliar a razoabilidade do meio. A relação meio/fim tem, contu-
do, certas condições formais. A primeira e mais óbvia é que fim e meio
não se confundam, isto é, que o fim não se reduza ao meio, caso con-
trário a razoabilidade é formalmente elidida, pois estaríamos diante de
um fim em si. No caso, por exemplo, de um prejuízo ao erário, o que se
diz é que o erário sofreria um prejuízo em montante exagerado (fim),
tendo em vista que o montante da indenização é exagerado (meio). Em
termos de uma relação, o montante é considerado exagerado porque o
é exagerado. Ou seja, o que resta da argumentação é a simples alegação
de um exagero. Não há como apreciar a razoabilidade que, sendo ter-
mo relacional, exige o confronto de um padrão com outro padrão.
Ademais, o alegado prejuízo ao erário decorre de ato do próprio
poder público em face de um valor de indenização apurado, o que fa-
ria da técnica social um contrassenso. Se a sentença devesse estabele-
cer a menor (modicamente) um montante, teria de impor uma restri-
ção patrimonial por conta de ato que, ele próprio, deu causa à restrição.
Haveria uma petitio principii ostensiva. Ora, se a razoabilidade tem a
ver com o devido processo legal substantivo, há de se considerar que a
proteção constitucional é para a pessoa em face do poder público e não
ao contrário.
A alegação, no que respeita à ponderação jurídica (com base na téc-
nica social), faria a indenização redundar em pena. Ou seja, admitido
que o montante da indenização é irrazoável, a relação comutativa pre-
juízo/indenização estaria transformada em prejuízo/pena.
No dano patrimonial, indeniza-se o patrimônio que foi injusta-
mente lesado. Um dano ao patrimônio é, pois, suscetível de avaliação
em dinheiro, sendo mais fortemente sujeito à restituição pelo equiva-
lente e plenamente sujeito à avaliação pecuniária. A razoabilidade pon-
derativa, nesse caso, tem a ver com uma comutatividade quantitativa
(princípio da reparação integral). A comutatividade quantitativa está
demonstrada ou não está. A possibilidade de extrapolação da indeni-
TI4 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

zação em pena tem a ver com os danos extrapatrimoniais, que tornam


indenizáveis prejuízos que violam a esfera existencial da pessoa huma-
na ou a honra objetiva das pessoas jurídicas. É nesse terreno que o va-
lor excessivo da indenização pode ter a ver com a sua transformação
em pena. Por isso, afora os parâmetros oferecidos pelo Código Civil,
em certos casos, faz sentido aqui a exigência da modicidade, deixando-
-se ao arbítrio do juiz a avaliação do dano.” Aliás, a jurisprudência ci-
tada e alegada!? fala, justamente, de dano moral e de arbitramento da
indenização, sendo nesse contexto que aparece a exigência de modera-
ção. Ou como diz Judith Martins-Costa, “A rigor, não é possível falar
em “indenização do dano não patrimonial. Nestes casos, a entrega de
uma soma em dinheiro tem uma função ao mesmo tempo satisfativa à
vítima e punitiva do autor do dano”, de onde vem “a denominação do
Direito anglo-saxão, 'punitive dammages, que vem sendo aceita pela
jurisprudência brasileira”!

12 Cf. assis, Araken. “Liquidação do dano”. In: Revista dos Tribunais, v. 759, p. 11 e segs.
13 ST), REsp n. 216.904/DF, 4º T., rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 19.08.1999, DJ
20.09.1999,
14 Cf. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.). Comentários ao novo Código Civil, v. V, t.
II, p. 350.
XIX. PROPORCIONALIDADE

No Brasil, vieram a ser conotadas, na fórmula do due process of law,


em especial no substantive due process of law, as noções de razoabi-
lidade com o princípio germânico da proporcionalidade (Verhiltnis-
miissigkeit).
Leia-se, a propósito, como Richter e Schuppert! fundamentam o
sentido da proporcionalidade na noção de justiça. Segundo eles, jus-
tiça é um topos das exigências postas aos três Poderes estatais. “Justo”,
como “proporcional” (verháiltnismássig, literalmente, mensurável numa
relação), exige que a justiça seja realizada por meio de um proceder
(Verfahren) da ação estatal, seja um proceder legislativo, administra-
tivo ou judicial, enquanto um derivativo do princípio do Estado de Di-
reito. Segue daí que os ideais de justiça (justiça dos procedimentos) te-
nham a ver também com “segurança jurídica”: um procedimento de
Estado de Direito deve não só assegurar um resultado justo, em um
processo de decisão, mas também e ao mesmo tempo (por meio de
determinadas normas e de modo suficiente) um decorrer previsível
desse procedimento decisório. Essa conjugação do aspecto formal e

1 Casebook Verfassungsrecht, p. 362.


T6 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

material justifica, assim, a classificação da justiça de um procedimento


como um caso independente, ao lado da justiça material e da seguran-
ça jurídica, que se qualifica, então, como proporcionalidade. Esta, afinal,
em termos de seus conhecidos atributos (necessidade, adequação, pro-
porcionalidade stricto sensu), conquanto não possua nenhuma cone-
xão com o due process of law nem com a rule of reasonableness, pode-
ria sugerir uma certa afinidade com a equal protection contra injustiças,
própria do due process of law, permitindo e explicando, assim, o amál-
gama, no Brasil, entre proporcionalidade e razoabilidade e, por conse-
quência, da utilização da proporcionalidade no entendimento do devi-
do processo legal substantivo.
A compreensão desse amálgama, no Brasil, entre razoabilidade e
proporcionalidade, reporta-se, afinal, ainda que não de modo explícito,
aquela noção de justiça dos procedimentos, em termos de Estado de
Direito, e da obediência à legalidade.
A garantia do devido processo legal em sua acepção substantiva
passa a ter relação, pois, com a percepção, na lei, de uma estrutura fi-
nalista (relação meio/fim), cujo vínculo é dado pela proporcionalidade.
Nesse sentido, pode-se falar, por um lado, em sua violação quer quan-
do ocorra o que a doutrina norte-americana, em nome da rule of rea-
sonableness, denomina under-inclusiveness, caso em que no tipo legal
está incluído menos do que deveria, quer quando ocorra uma over-in-
clusiveness, caso em que no tipo legal está incluído mais do que deve-
ria.” Veja-se, por exemplo, a decisão do STF:

A norma legal, que concede ao servidor inativo gratificação de férias cor-


respondente a um terço (1/3) do valor da remuneração mensal, ofende o
critério da razoabilidade que atua, enquanto projeção concretizadora da

2 CAsTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis
na nova Constituição do Brasil, p. 164 e segs.
PROPORCIONALIDADE 117

cláusula do substantive process of law, como insuperável limitação ao po-


der normativo do Estado.”

Por outro lado, também se falará em violação do devido processo le-


gal substantivo quando ocorram excessos do poder público, em ter-
mos do “princípio da proporcionalidade, especial à racionalidade do
Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das li-
berdades fundamentais”.
Esses conceitos terminam por propiciar uma aproximação da ra-
zoabilidade com a proporcionalidade enquanto relação justa.
O que entra em jogo é, então, a aferição da compatibilidade justa
entre meios e fins. É essa justa compatibilidade que evoca padrões de
proporcionalidade (lógica interna da estrutura meio/fim) e a razoabi-
lidade (bom senso, sentido criterioso do ato normativo) da lei. Pressu-
põe-se, nesse sentido, que uma providência instituída pela lei seja, ini-
cialmente, necessária, isto é, que é exigida para que uma finalidade seja
obtida. A necessidade é o primeiro critério de justeza proporcional,
pois se contrapõe ao supérfluo, termo que conota o sentido de hybris.
Atendido esse requisito, deve-se verificar se ele é funcionalmente ade-
quado para a obtenção do fim e, ademais, substancialmente adequa-
do por não agredir outro valor protegido constitucionalmente. A juste-
za proporcional implica aqui harmonia. Por fim, deve-se averiguar se,
ainda que necessário e adequado, o dispositivo é proporcional stricto
sensu à finalidade a que se destina, não contendo excessos, pelo mais
ou pelo menos. E o terceiro requisito traz, por fim, à justeza proporcio-
nal da relação um sentido de prudência, pois nem tudo que é necessá-
rio e adequado é, por consequência, justo: a proporcionalidade exige o
sopesamento próprio do julgamento virtuoso e, nesse sentido, razoável.

3 STE MCna ADlnn. 1.158/AM, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, j. 19.12.1994,
DJ 26.05.1995.
4 Diário de Justiça, seção I, 14.04.1999, p. 24.
118 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Nesse sentido, é a afirmação de Gilmar Ferreira Mendes, de que


“um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resul-
tar de rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o
fim atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionali-
dade ou razoabilidade em sentido estrito)”
Como lidar, no entanto, com situações em que a proporcionalidade
razoável gera mais problemas do que soluções?
Tomamos como mote a observação de Alcides Jorge Costa:

A título de esclarecimento, acrescentamos que a aprovação de todos os


Estados, implícita ou explicitamente dada, é decorrência lógica da ine-
vitável aplicação a todos eles dos convênios. Se as decisões fossem toma-
das por maioria, qualquer dos Estados poder-se-ia ver gravemente preju-
dicado pela concessão de isenções. Pode-se imaginar o resultado, para a
Bahia, de uma isenção total para o cacau, para o Paraná, do café e assim
por diante.

Incentivo e fomento têm a ver, porém, com problemas de marginaliza-


ção regional que constituem, na verdade, um só tema voltado para a or-
ganização político-administrativa do País como um todo — daí a União
federal —, mas, ao mesmo tempo, de reconhecimento de desigualdades
no espaço geoeconômico de seu território, o que requer a deliberação
conjunta das unidades federadas e a federação de cooperação. Assim,
de um lado, a unidade do desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, IN) é
objetivo correlato de uma das vedações federativas previstas no inciso
HI do art. 19 (“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Fe-

5 MENDES, Gilmar Ferreira. “O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Su-


premo Tribunal Federal: novas leituras”. Repertório IOB de Jurisprudência, n. 14/2000, Ca-
derno 1, p. 473 — grifos do autor.
6 Cf.atese de livre-docência do autor (1977): costa, Alcides Jorge. ICM na Constituição
e na lei complementar, p. 130.
PROPORCIONALIDADE 119

deral e aos Municípios: [...] II — criar distinções entre brasileiros ou


preferências entre si”). De outro, a erradicação da pobreza e da margi-
nalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, II)
são, por sua vez, correlatos da possibilidade de articulação de ação da
União voltada para o desenvolvimento, na direção de complexos regio-
nais menos favorecidos.
Entre esses dois objetivos da República, a gravidade de pondera-
ção em termos da equação desenvolvimento nacional/marginalização
regional expressa, afinal, e exige o equacionamento da temática da ar-
gumentação em sede da equação segurança jurídica/justiça.
XX. ARGUMENTAÇÃO, SEGURANÇA -
JURÍDICA E JUSTIÇA: RAZAO E EMOÇÃO
NO JULGAR

1. VINCULAÇÃO DO JUIZÀ LEI E À SUA CONVICÇÃO


Toda aplicação do direito traz alguma insegurança, pois, para aplicar
uma norma, é necessário um mínimo de indeterminação: conceitual-
mente, se norma e realidade coincidissem, a aplicação seria desneces-
sária. Como um grau mínimo de indeterminação é, por assim dizer,
condição da aplicação — sem a indeterminação, a relação entre norma
e realidade seria biunívoca e os juízes poderiam ser substituídos por
computadores -, a aplicação do direito marca um patamar em que ra-
zão e práxis abrem espaço para algum arbítrio. E, à sua vez, é essa pos-
sibilidade de arbítrio que exige o direito à segurança.
Nessa perspectiva pragmática, revela-se o caráter eminentemen-
te prescritivo da aplicação do direito mediante produção de uma sen-
tença. Assim, no lugar de uma pretensa (e interminável) busca pela
apreensão do justo e do verdadeiro, como conceitos isolados e por
isso de difícil controle intersubjetivo, a sentença revelar-se-ia como
resultado de um procedimento de aplicação regrado, necessário à
formulação de uma vontade individual com base em lei. Isso, porém,
equivaleria a dizer que a decisão jurídica “limita-se a afirmar que a
122 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

vontade da lei no caso concreto é aquilo que o juiz afirma ser a von-
tade da lei”.
Com efeito, um juiz não conhece vínculos hierárquicos quando
exerce sua função jurisdicional. Isto é manifestação de um conheci-
do princípio jurídico: todo juiz é independente e está vinculado ape-
nas à Constituição e à lei. Atua segundo as regras do direito e inspi-
rado em sua convicção. Assim, os tribunais podem modificar, anular,
revogar ou substituir os atos que ele praticar, mas não têm poderes
para lhe impor a priori a orientação a seguir e, tampouco, estabelecer
sanções para forçá-lo a adotar determinada diretriz ou entendimento.
Contudo, para além de manifestação de um princípio doutrinário, é
na convicção, nesse ponto convergente das regras, dos métodos e dos
casos, que se mostra, mais do que tudo, a justeza do seu juízo, como
algo que lhe é próprio.

2. ATO DE JULGAR: TÉCNICA ARGUMENTATIVA VERSUS DISCERNIMENTO JUSTO


O fato de que a vida política moderna, obedecendo à inspiração ma-
quiavélica que está em sua origem, formula o juízo/julgamento jurí-
dico cada vez mais como problema de técnica procedimental e argu-
mentativa, e cada vez menos como discernimento sapiencial do mais
justo, não impede que a busca de novas e adequadas formas de racio-
nalização da decisão jurídica, na sequência das profundas transforma-
ções que acompanham o fim da modernidade e o advento da chamada
pós-modernidade, persista como um desafio para o mundo que estaria
surgindo dessas transformações.

3. TECHNÉ VERSUS TÉCNICA: MUNDO ANTIGO E MUNDO MODERNO


O saber jurídico tinha relação com ars, techné. Reconhecia-se que um
evento qualquer podia ocorrer por natureza (por exemplo, o brotar e o

1 Cf. cHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 182.


ARGUMENTAÇÃO, SEGURANÇA JURÍDICA E JUSTIÇA: RAZÃO E EMOÇÃO NO JULGAR 123

crescer de uma árvore), por acaso (o encontro inesperado, pelo pastor,


de uma ovelha há muito perdida), por acidente (tipo de acaso, que ocor-
re quando o pastor procura, a esmo, a ovelha e, de repente, a encontra),
caso em que há a interferência do homem em vista de uma ação plane-
jada. A natureza era um pressuposto da ação humana. Desse modo, a
chamada ciência prática, técnica ou arte, aparecia como um conjunto de
regras, obtidas pela experiência, mas pensadas a posteriori, que visava à
condução da ação a um aperfeiçoamento. O homem prostrava-se peran-
te a natureza, sendo a sabedoria uma combinação de epistéme/scientia
com o estimar e o avaliar, que exigia rete/virtus. Daí a prudência, uma
sabedoria que não estava apartada do verdadeiro, visto que era a produ-
ção da verdade no belo, no útil, no justo.
Em contraposição à sabedoria prática dos antigos, há na técnica
(techné) hodierna uma radical mudança, que afeta, afinal, o modo como
se manifesta o senso de justiça no ato de julgar, visto que ela deixa de
nascer do conhecimento verdadeiro, surgindo de uma espécie de “exi-
gência” que o homem faz à natureza para que esta lhe entregue sua ener-
gia acumulada. O homem hodierno interpela a natureza pela técnica,
isto é, provoca-a. Ao invés de prostrar-se com humildade, força a natu-
reza, ocultando-a ao manipulá-la. Com isso, aparta-se da virtude, tra-
zendo, para o campo jurídico, um problema peculiar de fundamentação.
O direito, como instrumento, faz do julgamento uma prática voltada
para algo, posto no futuro. A distância faz do sentido ético do juízo uma
justificação, e a erosão de tradições culturais, em nome da prioridade da
eficiência técnica, gera, assim, uma necessidade crônica de legitimação:
a busca de uma ordem justa que ou não se alcança e se pôe como um
horizonte inatingível ou o abandono dessa busca, em que justiça cede à
utilidade, daquela apartada ou com ela meramente confundida.
A questão, porém, está em perder-se em um emaranhado técnico
no sentido hodierno ou haver a possibilidade de, dentro dele, recupe-
rar o sentido do juízo como senso do justo.
124 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Senso do justo e sentença: momento da motivação (racionalidade das razões)


e momento do pensar (justo/injusto)
A palavra sentença, pela qual se pronuncia o juízo, tem relação com
sentir. Ou, como assinala Couture, o sentimento é o conteúdo da sen-
tença, “originariamente é algo que foi sentido, daí seu nome sentença”,
que não se confunde com aquele documento que temos em mãos, pro-
latado pelo juiz, quando lemos a sentença.
Interessante notar aqui, como o faz Tarufto; que o iter da formação
do juízo, pelo juiz, conhece uma estrutura conforme “um sistema or-
gânico de escolhas, ligado segundo uma certa ordem, e finalizadas [as
escolhas] por uma escolha última que coincide com a verdadeira e pró-
pria decisão.
Há uma racionalidade nesse procedimento, em dois momentos:
um, que se refere não ao que “o juiz pensou”, mas à racionalidade “das
razões que ele aduz para justificar o que decidiu”, sendo este o momen-
to da motivação; outro, é o da racionalidade do que ele pensa, ao pro-
ceder à escolha entre o justo e o injusto: momento do pensamento. Não
há, necessariamente, uma identidade evidente desses dois momentos e
é isso que faz mister ressaltar.
Talvez, a principal diferença entre o momento do pensar e o mo-
mento da justificação metódica (métodos interpretativos, argumentati-
vos) esteja em que naquele sente-se a necessidade de cultura, da valori-
zação e desvalorização da cultura dos outros para então transformá-la
em citações, em esquemas de raciocínio, usando-os como um fator em
proveito do próprio pensamento. No entanto, não se consomem aí au-
tores, ideias, esquemas.
Na justificação, ao contrário, não se precisa da cultura dos ou-
tros, apenas do seu nome, não se exige, em primeira linha, o sentido

2 —CcouTURE, Eduardo J. Introdução ao estudo do processo civil, p. 75.


3 | TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile, p. 209 e segs.
4 Ibidem, p. 218.
ARGUMENTAÇÃO, SEGURANÇA JURÍDICA E JUSTIÇA: RAZÃO E EMOÇÃO NO JULGAR 125

justo dos métodos, apenas sua eficácia argumentativa. Esses servem


para compor-lhe o discurso, como um arranjo eficiente, mas utili-
tário. Daí o risco da burocracia decisória. Pois um mero aplicador
de métodos não pensa. Expõe. É o fenômeno do juiz burocratizado,
quase máquina, ou a sentença reduzida a modelos computadorizados
que se repetem.
Daí o pressentimento, no mundo contemporâneo, de que senten-
ças são produtos submetidos à avaliação por sua utilidade econômica,
isto é, pelas vantagens ou desvantagens que proporciona. E, ao mes-
mo tempo, a sensação de perda do sentido de justiça que as acom-
panha. Isso porque nem sempre a demonstração do melhor senti-
do prático de uma sentença (realização de uma utilidade econômica
equilibrada, em que ocorra, em termos utilitaristas, a maximização
da riqueza e a minimização da pobreza) coincide com os requisitos
formais da sentença.

Utilidade x justiça: o tema da verdade/verdade suficiente no processo


A percepção hodierna do julgamento não pode prescindir de uma re-
flexão sobre a posição peculiar da verdade no domínio do julgamen-
to em um tribunal. Afinal, não há direito sem ficção. E, em sentido
mais amplo, pode-se observar, por exemplo, que a persecução penal,
como a civil, está sujeita a imposições de ordem formal, com o sacri-
fício da verdade real, por se realizar processualmente. Tendo em vista
que a função jurisdicional pressupõe um órgão imparcial — o juiz, o
contraditório e o instituto da coisa julgada -, é inevitável que a verda-
de não possa surgir, no processo judicial, a todo custo: nem sempre
a verdade das coisas corresponde à justiça dos julgamentos. O juris-
ta hodierno percebe haver um descompasso entre a realidade daqui-
lo que ocorreu fora do processo e a realidade das provas, sendo que,
assim, “a essência verdadeira do fato é inatingível” e “a reconstrução
126 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

precisa dos fatos é impossível”, apelando-se, muitas vezes, para a no-


ção de verdade suficiente.
Isso coloca uma importante questão referente à relação entre argu-
mentação, justiça e segurança.

4. A QUESTÃO DA JUSTIÇA: JUSTIÇA PROCESSUAL E GARANTIA DE EFEITOS


Principiaremos a questão com uma concepção tradicional. Trata-se da
definição de Eduardo Couture:

Tratando, pues, de definir el concepto jurídico de cosa juzgada, luego de


tantas advertencias preliminares, podemos decir que es la autoridad y efi-
cacia de una sentencia judicial cuando no existen contra ella medios de
impugnación que permitan modificarla.º

Há quem sustente que a observância da coisa julgada em face de novas


decisões que modificassem seus fundamentos seria uma submissão ab-
soluta ao legalismo em detrimento da justiça, distinguindo entre sen-
tenças justas e injustas. Ocorre, porém, como salienta Botelho de Mes-
quita que:

ao arrogar-se o nobilíssimo intento de dar combate à subserviência cega


e irrestrita aos rígidos cânones “legalistas, esse acórdão repete, quase ip-
sis litteris, a dedicatória com que Emilio Betti, em pleno 1936 e no me-
lhor estilo fascista, abre a sua obra mais importante, o conhecidíssimo

5 Cf. DIAS, Luciana Drimel. “A verdade e a prova judicial - uma análise filosófico-pro-
cessual da verdade voltada à Teoria Geral da Prova”. Curitiba. Dissertação (Mestrado em

Direito), Universidade Federal do Paraná - UFPR, p. 355.

6 Fundamentos del derecho procesal civil, p. 401.


ARGUMENTAÇÃO, SEGURANÇA JURÍDICA E JUSTIÇA: RAZÃO E EMOÇÃO NO JULGAR 127

Diritto Processuale Civile Italiano. Dedicou-o “à Itália imortal” contra “o

cego farisaísmo legalitário, conjurado para a conservação da injustiça”.

Ou seja, existe no instituto da coisa julgada um fator de poder e con-


trole do poder que não pode ser ignorado.
O que não se pode perder de vista ao analisar essa questão, pon-
to destacado também na análise de Botelho de Mesquita é, por conse-
guinte, que não se deve opor radicalmente a segurança da coisa julgada
e a justiça das decisões ou mesmo isonomia entre os diferentes sujeitos
que possuem decisões distintas a regrar seu comportamento.
O tema discutido nesta obra tem, pois, a ver com a chamada flexi-
bilização da coisa julgada.
Bem a propósito assinala Souto Maior Borges, em trabalho no
qual defendia a flexibilização da coisa julgada,* ao sustentar que a se-
gurança jurídica visa a preservar a irretroatividade, a legalidade, a
isonomia, a efetividade da jurisdição tributária, administrativa ou ju-
dicial, que, sendo o art. 5º da CF um “outro nome da segurança ju-
rídica”, dever-se-ia concluir que: “a segurança jurídica é, também ela,
um instrumento da justiça”.
Existe, contudo, na doutrina e na jurisprudência, a mencionada
tendência de flexibilização do instituto da coisa julgada, baseada na
afirmação de que o direito moderno não poderia contentar-se ape-
nas com a verdade formal, em nome da tutela da segurança jurídica,
justificando-se que, na CF (Preâmbulo), “a justiça é também um va-

7 BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. “Conflito entre a intangibilidade da coi-

sa julgada e outro princípio constitucional. Um falso problema”. In: A coisa julgada, p. 92.
8 “O princípio da segurança jurídica na criação e aplicação do tributo”. In: Revista Dialé-
tica de Direito Tributário, v. 22, jul. 1997, p. 24.
128 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

lor perseguido”? Com isso, seria plausível sustentar, como faz Cân-
dido Dinamarco, que:

o valor da segurança das relações jurídicas não é absoluto no sistema,


nem o é, portanto, a garantia da coisa julgada, porque ambos devem con-
viver com outro valor de primeiríssima grandeza, que é o da “justiça das
decisões judiciárias”, constitucionalmente prometido mediante a garan-
tia do acesso à justiça (CE, art. 5º, XXXV).

Nessa linha, “a ordem constitucional não tolera que se eternizem injus-


tiças a pretexto de não eternizar litígios”.
Há de se mencionar, de outra parte, na doutrina, a importância
atribuída à segurança. Esse fundamento vem sustentado com ênfase.
José Afonso da Silva"! mostra que a tutela da coisa julgada tem a ver
com a estabilidade dos casos julgados, que, em certo sentido, seria um
caso de ato jurídico perfeito, mas que o constituinte “destacou como
um instituto de enorme relevância na teoria da segurança jurídica”. Do
mesmo modo, Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Este dispositivo
tem por objetivo dar segurança e certeza às relações jurídicas, conse-
quentemente aos direitos assumidos pelos indivíduos na vida social”.
Também nessa linha, os processualistas enxergam na coisa julgada
uma garantia do princípio de segurança jurídica. A doutrina processua-
lista contemporânea reconhece a importância da coisa julgada, ao lado

9 THEODORO JUNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. “A coisa julgada inconsti-
tucional e os instrumentos processuais para o seu controle” In: NASCIMENTO, Carlos Valder
do (org.). Coisa julgada inconstitucional, p. 33.
10 “Relativizar a coisa julgada material”. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (org.). Coisa
julgada inconstitucional, p. 14 e segs.
11 Curso de direito constitucional positivo, p. 381.
12 Comentários à Constituição brasileira de 1988, p. 54.
ARGUMENTAÇÃO, SEGURANÇA JURÍDICA E JUSTIÇA: RAZÃO E EMOÇÃO NO JULGAR 129

do princípio da irretroatividade das leis e das cláusulas pétreas da Cons-


tituição, como instrumentos necessários para se “assegurar a estabilidade
das relações jurídicas e, por conseguinte, a própria segurança jurídica”.
Essas posições, à primeira vista, cometem duas radicalizações:
primeiro, radicalizam uma oposição entre segurança e justiça; segun-
do, a própria justiça contra a segurança ou a própria segurança contra
a justiça.
A aproximação entre segurança, justiça e coisa julgada admite, po-
rém, diferentes perspectivas de discussão.

5. PERSPECTIVAS
A oposição entre justiça e segurança remonta a Radbruch, ao afirmar
que, diante da impossibilidade de se certificar o que é justo, cabia a
quem de direito competente estabelecer o que é jurídico.'* Não é o caso
de entrar nessa discussão. No entanto, é importante assinalar que o di-
reito é um sistema que sempre se apresenta como sistema justo e, por
consequência, razoável (adequado a seus fins), o que exige uma cer-
teza na sua positivação. Na verdade, falar da justiça como um valor
eminente, ao qual a segurança se opõe como um outro valor, é entrar
em um jogo de contraposições de entidades diferentes. Afinal, justiça
pode ser entendida como um valor, mas segurança é um direito funda-
mental, como o é a liberdade, a vida, a propriedade, a igualdade. Nesse
sentido, é um engano supor a justiça como uma entidade absoluta, em
oposição a direitos fundamentais.
Entende-se, assim, que a justiça não seja, nem mesmo na CF, à
luz do seu Preâmbulo, uma entidade à parte, eminente no sentido de
externamente superior aos direitos. Com efeito, falar da justiça como
uma aspiração constitucional não pode significar outra coisa que sua

13 Cf. ciNTRA, Antônio Carlos Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil, v. IV, p.
292.
I4 Rechtsphilosophie, p. 169.
130 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

realização enquanto realização dos direitos fundamentais. Realização


processual, no sentido de que a justiça ocorre na concretização dos
direitos.
A justiça como realização processual merece ser sublinhada. Lê-se
em Richter/Schuppert” que justiça é um topos das exigências postas
aos três Poderes estatais. Justo como proporcional (aquilo que é ade-
quado à relação: verhiltnismássig) exige que a justiça seja realizada por
meio de um proceder (Verfahren) da ação estatal, trate-se de um pro-
ceder legislativo, administrativo ou judicial, enquanto um derivativo
do princípio do Estado de Direito. Segue daí que os ideais de justiça
(justiça dos procedimentos) tenham a ver também com segurança jurí-
dica: um procedimento de Estado de Direito deve não só assegurar um
resultado justo, em um processo de decisão, mas também e ao mesmo
tempo (por meio de determinadas normas e de modo suficiente) um
decorrer previsível desse proceder decisório. Essa conjugação do aspec-
to formal e material justifica, assim, a classificação da justiça do proce-
dimento como um caso particular, ao lado da justiça material e da se-
gurança jurídica.
Falar, nesse sentido, de coisa julgada inconstitucional, resultante
da oposição desequilibrada entre as exigências de segurança e certeza,
que conferem a autoridade da coisa julgada, e as exigências de justiça
e legitimidade das decisões judiciais, é admitir uma hierarquia de di-
reitos fundamentais, que, no limite, conduzem a uma perda do sentido
funcional da ordem constitucional.
De fato, como têm reconhecido a doutrina e a jurisprudência, ao
referir-se à ação rescisória, esta é ação e não recurso. Ela reporta-se a
sentenças, rescindível é a sentença existente, não a sentença nula ipso
jure. Ela ataca, assim, a coisa julgada formal, sentença de que não cabe
mais recurso. Nesse sentido, pela ação rescisória, a relação processual,

15 Casebook Verfassungsrecht, p. 362.


ARGUMENTAÇÃO, SEGURANÇA JURÍDICA E JUSTIÇA: RAZÃO E EMOÇÃO NO JULGAR 13]

preclusa, jamais é reaberta. Não se trata de reinstalação, mas da mesma


relação que surge de novo.
No entanto, não sendo recurso, o que está em questão na ação
rescisória não é o objeto do julgamento anterior e sim um error in ju-
dicandum. Em disputa está o próprio ato de julgar. Os incisos do art.
485 do CPC apontam todos para um defeito no ato de julgar. Mesmo
incisos que tratam mais diretamente do objeto da ação rescindenda,
como o VI (prova falsa), o VII (documento novo), o IX (erro de fato),
o que se questiona não é o mérito da sentença, por exemplo, o fato
comprovado que, na verdade, não foi provado, mas o modo pelo qual
se alcançou o juízo sobre o fato e sobre o direito. É na formação do
juízo que está o problema.
O juízo questionado ter-se-ia formado mal ou por razões que bei-
ram os limites da moralidade (peita, conluio ou qualquer outra frau-
de), por razões técnicas (incompetência, impedimento do juiz), por
alguma forma de ignorância prévia do que não poderia ser ignorado
(disposição literal de lei, coisa julgada material, erro de fato) ou por
ignorância desculpável posto que revelada a posteriori, mas não me-
nos deformadora do juízo. Ou seja, a ideia é de que o juízo seria ou
poderia ser outro, caso não houvesse o concurso de uma das ocor-
rências elencadas nos incisos do art. 485 e não que o mérito não foi
apreciado devidamente, suficientemente ou satisfatoriamente. Quem
não se conforma com o mérito da sentença recorre (recurso). Quem não
se conforma com o juízo que levou à sentença pede que ele se forme
de novo (ação).
Tratando-se de ação e não de recurso, não é a sentença o que a res-
cisória ataca, esta é imutável e indiscutível pelas partes, mas, sim, os
seus efeitos: é uma ação para obstar que os efeitos daquela sentença
continuem a ser produzidos. Como destaca Araújo Cintra, “falando
132 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

apenas em imutabilidade e indiscutibilidade da sentença a Lei afastou


a ideia de imutabilidade dos efeitos da sentença”.
A partir da distinção entre a sentença e os efeitos da sentença o sis-
tema se fecha. Terceiros afetados pelos efeitos (mutáveis) da sentença
podem reagir rediscutindo a matéria controvertida, pois que o efeito
de imutabilidade da sentença não lhes alcança. Já as partes envolvidas
não podem alterar ou rediscutir a sentença, mas podem buscar impe-
dir que seus efeitos continuem a se produzir. Aqui se localiza o objeti-
vo e, portanto, o interesse de agir da rescisória: “impedir que os seus
efeitos [da sentença] continuem a produzir-se”.”
Vê-se, assim, que a sentença rescisória distancia-se daquela con-
cepção que nela vê o reconhecimento de um direito que deve se colo-
car no lugar do reconhecimento anteriormente proclamado. Não se
substitui um equívoco pela verdade. Não se elimina a sentença ante-
rior, como se o equivoco não tivesse existido. A sentença é protegida
pela imutabilidade. O que ocorre nada mais é do que a sucessão de
normas individuais no tempo: o comando individual contido na sen-
tença rescindente interrompe os efeitos da sentença rescindida e pas-
sa a produzir seus efeitos, assim como a norma geral posterior revoga
a anterior no momento em que entra em vigor. Ilustra essa concep-
ção a situação na qual uma sentença transita em julgado, apesar de já
haver coisa julgada.
Dinamarco sustenta que, nesse caso, a segunda sentença compor-
tará impugnação por via da ação rescisória, mas enquanto esta não for
acolhida, prevalecerá a segunda, “porque é inerente a todo ato esta-
tal a revogação do antigo pelo novo, como acontece com as leis e atos

l6 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada, p. 139, apud CINTRA,
Antônio Carlos de Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil, v. IV.
17 BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. “Conflito entre a intangibilidade da coisa julgada
e outro princípio constitucional. Um falso problema”. In: A coisa julgada, p. 52, grifo nosso.
ARGUMENTAÇÃO, SEGURANÇA JURÍDICA E JUSTIÇA: RAZÃO E EMOÇÃO NO JULGAR 133

administrativos”.!'* Transitada a sentença rescindente em julgado, revoga-


-se a segunda sentença, mas não se repristina a primeira, ou seja, a res-
cindente tem efeito ex nunc, a não ser, destaca Dinamarco, em casos ex-
cepcionalíssimos de fraude ou transgressão a valores constitucionais. ”
A partir do entendimento da relação entre sentença rescindi-
da e rescindente como sucessão de normas individuais no tempo,
compreende-se o conteúdo do art. 468 do CPC quando afirma que a
sentença transitada em julgado “tem força de lei nos limites da lide”.
Esse dispositivo, importado do projeto de Reforma do Processo Civil
Italiano de autoria de Carnelutti teve a expressão “força de lei” escla-
recida pelo autor, afirmando que “não desejava exprimir seu pensa-
mento com uma metáfora, mas queria deixar bem claro que, no insti-
tuto da coisa julgada, sentença e lei se tocam”?
A norma individual que, com o trânsito em julgado, tem força de
lei entre as partes, somente pode ter seus efeitos interrompidos por
uma outra norma individual, desde que com o mesmo objeto e refe-
rente às mesmas partes e que adquira essa mesma força de lei, ou seja,

18 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, v. HI, p. 328-9.


I9 A analogia com a relação de revogação chega a ser criticada por Pontes de Miranda,
sem ser convincente, nem mesmo conclusivo. Pontes afirma que rescindir não é o mesmo
que revogar, pois que enquanto o primeiro termo significa “cindir” o segundo significa “re-
tirar a voz”. Contudo, se há alguma pretensão de levar a análise etimológica à conclusão de
que “cindir” ou “rescindir” implica “estabelecer a situação jurídica que seria a existente se
não tivesse ocorrido a sentença” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da
ação rescisória, p. 455), então fica para o seu proponente o ônus de explicar porque na ter-
minologia jurídica corrente a “rescisão do contrato” não traz como consequência estabele-
cer a situação jurídica que existia antes do ajuste.
20 INTRA, Antônio Carlos Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil, v. IV, p. 299,

citando CARNELUTTI, Francesco. Studi di diritto processuale, v. 4, p. 427.


134 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

que tenha percorrido todo o processo de promulgação, isto é, o trân-


sito em julgado da sentença rescindente.
Em síntese, reitero que falar da justiça como um valor eminen-
te, ao qual a segurança se opõe como um outro valor, é entrar em um
jogo de contraposições de entidades diferentes. Afinal, justiça pode
ser entendida como um valor, mas segurança é um direito funda-
mental, como o é a liberdade, a vida, a propriedade, a igualdade. Nes-
se sentido, é um engano supor a justiça como uma entidade absoluta,
em oposição a direitos fundamentais. A justiça não é, nem mesmo na
CF à luz do seu Preâmbulo, uma entidade à parte, eminente no sen-
tido de externamente superior aos direitos. Com efeito, falar da justi-
ça como uma aspiração constitucional não pode significar outra coi-
sa que sua realização enquanto realização dos direitos fundamentais.
Realização processual, no sentido de que a justiça ocorre na concreti-
zação dos direitos.
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ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO

À cometimento/relato 64 dogmático 69
âmbito normativo common law 8 due process of law 105, 106,
(relato) 59 conceitos 107, 108, 116
análise 33 indeterminados 15
antinomia 95 valorativos 15 E
aplicação 16 concretização 7 elocução 61,63
como subsunção 11 conflito 29,67 error in judicandum 131
dalei 7 institucionalizado 22 especialidade 41
do direito 3,4,7,8,13, conjectural 30 experiências
15 conotação 60 recalcitrantes 66,67
esubsunção 13 construção silogística 11
árbitros 23 crítica 33 F
argumentação 23,92 cultura do código 35,37 filológica 59
jurídica 23,39,57,71, força da presunção 31
94 forma
legitimadora 55,95 decisão(ões) 22 elocutiva 62
por legitimação 54 jurídica 11 ilocutiva 65
principiológica 91 dedução 7,11,13
argume ntar 29, 35 defesa mais G
argumento(s) forte 30 graus diferentes de
da clareza 62 e uma mais fraca 32 ilegitimidade 87
teleológico(s) 5 fraca 30,31 guerra fiscal 76,78
evalorativos 23 definição
conotativa 60 H
( denotativa 60 hierarquia 41,79
caráter persuasivo 31 definitio 30
carreira para os denotação 60 |
servidores 83 devido processo legal 105 locução 60,61,62
clareza 58, 62, 64 substantivo 117 ilocutiva(o) 62,63
cláusula rebus sic direitos fundamentais impessoalidade 87
stantibus 16 instituídos 82 implicatura 61
coisa julgada 126, 127, 128 discricionariedade 15 inobservância de princípios
inconstitucional 130 discurso judiciário 24 fundamentais 88
140 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

interpretação 8, 16, 40, 66 observância germânico da proporcio-


ampliativa 5 de princípios 87 nalidade 115
de bloqueio 40, 49,55 é absoluta 87 hermenêutico da
extensiva 5,62 ordem escalonada 79 unidade 40
gramatical 59 originários 82
restritiva 5,83 p reconhecidos 80
teleológica 66 padrão argumentativo são ponderáveis 75
transparente 62 tradicional 23 procedimento(s) 30
perdase danos 111 argumentativo(s) 30,51
J petítio principii 113 legitimador 48
juiz 23 poder de violência de legitimação 47,51
juízos arbitrais 23 simbólica 9 tópicos 92
justeza proporcional 117 ponderação 95 processo 92
justiça 126, 127, 130, 134 de princípios 37,71, 78, argumentativo 58, 92
dos procedimentos 130 92 process oflaw 106, 115
processual 126 jurídica 113 programa/âmbito 64
justificação da regra 65 princípio(s) 16 programação
comuns de organiza- condicional 22
L ção 83,84 finalística 22
lacuna(s) 95 constitucionais 73 programa e o âmbito
autêntica 68 da irretroatividade 129 normativo 59
de axiológicas 67 da legalidade 16 proporcionalidade 116,
espúrias 67 da proporcionalida- 117
legalidade 15,87 de 117 ou razoabilidade em
legislador racional 17 da razoabilidade 108 sentido estrito 118
limites estruturais 55 da reparação inte- publicidade 87
gral 111
da supremacia das Q
metacrítica 33 normas constitucio- questionamento
método nais 81 argumentativo 33
gramatical 40 da unidade 83
histórico 40 de autonomia políti- R
sistemático 40 ca 83 ratio decidendi 8,9
moralidade 87 de maioria 99 razoabilidade 106, 107,
de organização 83,87 109, 111, 116, 117
H de razoabilidade 66 de ponderação 110
neoconstitucionalismo 37, de segurança jurídi- de seleção 110
Fa ca 128 jurídica 105, 109,110
normas enorma 74 ponderativa 112
constitucionais 80 estabelecidos 84, 87 regime jurídico 83
inconstitucionais 80 estatuídos 80 regra
federativo 83 da superioridade 41
0 fundamentais 37,81, 82 sobreinclusiva 65
obiter dictum 8 de reconhecimento 82 regulador dogmático da
obscuridade 95 originários 82 interpretação 49
teleológicos 82 relação meio/im 113
INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 14]

responsabilidade pela I
decisão 22 teoria(s)
restrição denotativa 65 da argumentação 92
rule of reasonableness 116 dos lugares comuns 92
deontológicas 95
$ teleológicas 95
segurança tópica
ecerteza 128 de princípios 92
jurídica 127 formal 24
semântica natural 30 material 24
sentido indireto 62 principiológica 96
séries argumentativas 93 topoi de argumentação 24
significado indireto 60,63 translatio 29
sistema
constitucional 89
de valores 42 uso tópico de
subinclusão 65 princípios 93
substantive due 106
process oflaw 115 )
subsumir 30 zetético 69
subsunção XIV, XV, 7, 12,
Los d/
analógica 31
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
Doutor em Filosofia pela
Johannes Gutenberg-Universitat
Mainz, Alemanha.
Doutor em Direito pela Faculdade
de Direito da Universidade de
São Paulo — USP.
Professor Titular aposentado
do Departamento de Filosofia
e Teoria Geral do Direito da
Faculdade de Direito da USP.
Professor emérito pela Faculdade
de Direito da USP Ribeirão Preto.
Professor da Faculdade de Direito
PUC-SP— pós-graduação.
Este livro não se apresenta como uma teoria
da argumentação jurídica, embora conjugue,
na forma de elaborações argumentativas
sobre casos concretos, os temas próprios da
hermenêutica e da teoria da argumentação
no Direito. Entre eles, por exemplo, o
papel da subsunção normativa e o uso de
princípios como objeto de aplicação direta
na decisão de conflitos. Com isso pretende
fornecer ao leitor exemplos de uma praxis
no uso de argumentos, mediante a qual
os procedimentos de interpretação e
argumentação são explicitados na sua
abrangência e delimitados no seu alcance.

Argumentação jurídica é um livro-texto para


os cursos de hermenêutica jurídica e teoria da
argumentação jurídica.

Manole
Educação ISBN 975-55-204-4713-0

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www.manoleeducacao.com.br/argumentacaojurídica. 9 188520 44715

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