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MÍNIMO EXISTENCIAL E OS LIMITES DA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO:

concretização do mínimo existencial pelos Poderes da União.

Demerval Nunes de Sousa Filho1

1. INTRODUÇÃO

A expressão mínimo existencial ergue-se como tema


de destaque na construção da dignidade da pessoa humana, bem como na
corriqueira utilização como parâmetro para fins de legitimar a intervenção do Poder
Judiciário em espaço de atuação que, em princípio, não lhe competiria atuar
precipuamente.

Para fins de realização de detido exame,


imprescindível buscar a origem do conceito de mínimo existencial, bem como
averiguar de que maneira a construção jurídica foi absorvida pelo modelo brasileiro.

Fixado o seu conteúdo, será possível construir a


teoria das necessidades humanas de modo a identificar qual a melhor forma de
concretizar o mínimo existencial, pontuando a atuação de cada um dos Poderes da
União.

1
Aluno do Curso de Doutorado em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP.
Email: dn@demervalnunes.com.br.

1
2. Conceito de Mínimo Existencial

Aponta a doutrina brasileira que a construção


jurídica do conceito de mínimo existencial adveio do Tribunal Constitucional Federal
da Alemanha. Na ocasião do seu surgimento, o mencionado Tribunal assentou que
o existenzminimum corresponde à garantia e à prestação daquilo que é
imprescindível para a vida com dignidade.

Daí que, já no contexto do seu surgimento perante


um Tribunal Constitucional, o mínimo existencial guarda íntima relação com
dignidade da pessoa humana. Atribui-se a esse momento, pois, a elevação do
mínimo existencial à condição de direito fundamental.

A propósito, Ingo Wolfgang Sarlet2 traça excepcional


paralelo, registrando que a Constituição Francesa, de 1793, previa um direito aos
socorros públicos, além da distinção entre mínimo existencial e mínimo social, e que
o art. 25 da Declaração da ONU, de 1948, atribuiu a todas as pessoas um direito a
um nível de vida suficiente para assegurar a sua saúde, o seu bem estar e o de sua
família.

Desse modo, o mínimo existencial abrangia


diferentes perspectivas, tais como alimentação, salário, liberdade, lazer igualdade,
saúde e que, quando atrelado a direitos prestacionais, é vinculado ao princípio da
razoabilidade.

Do contexto do surgimento resta possível fincar a


distinção entre mínimo existencial e mínimo vital, expressões que jamais devem ser
confundidas, sob pena do jurista incorrer em imprecisão, ou nas palavras de
CANOTILHO, fuzzysmo.

A advertência acima é solucionada por por IURI


BOLESINA E MONIA CLARISSA HENNING LEAL3, p a r a q u e m o mínimo
existencial está ligado à perspectiva de vida com dignidade, em nível de

2
Artigo Dignidade humana, mínimo existencial e jurisdição constitucional.
3
Artigo Mínimo existencial versus mínimo vital.

2
essencialidade. Desse modo, ocorrendo lesão, não se tem ameaça à vida em
sentido estrito, mas uma lesão à dignidade humana, possuindo duplo conteúdo: um
material, vale dizer, necessidades físicas, moradia, alimentação, saúde, e o outro
imaterial, que diz respeito à inserção social, cultura, política, acesso e participação
cidadã, paz, lazer, dentre outros. Anotam os autores que as balizas do mínimo
existencial são sempre variáveis, de acordo com espaço e tempo, razão pela qual
afirma existir uma teoria dinâmica e que pode ser ponderado.

Do outro lado, ainda no escólio de IURI BOLESINA


E MONIA CLARISSA HENNING LEAL4, ainda para o mínimo vital está ligado à
ideia de proteção à sobrevivência e, por assim dizer, encontram-se na primeira faixa,
do ínfimo. Desse modo, por tratar de tão importantes necessidades, tem-se uma
teoria rígida, eis que as necessidades humanas não são negociáveis, vale dizer, ou
são supridas ou resultará em grave prejuízo. Portanto, o mínimo vital protege as
condições de sobrevivência do ser humano e não pode ser ponderado.

Deveras, fincadas as balizas acima e a partir do


conteúdo e alcance do mínimo existencial, é possível desdobrá-lo em mínimo
fisiológico, relacionando às necessidades básicas e de conteúdo essencial, e
mínimo de inserção na vida social, política e cultural.

Da abordagem, é possível extrair o conceito de


mínimo existencial, qual seja, teia de direitos necessários para a vida com dignidade,
direitos necessários para assegurar a dignidade ou direitos necessários para uma
vida condigna.

Não se olvida, contudo, que no seu surgimento, a


dignidade era apreciada sempre de acordo com o tempo, o espaço e o próprio
sujeito, de modo que não se pode ter um rol taxativo, pronto e encerrado de direitos
que encerram o mínimo existencial.

4
Apud.

3
3. Absorção pelo Modelo Brasileiro

Embora a origem o mínimo existencial trouxesse


uma dimensão material e imaterial ou, dito de outra forma, um mínimo fisiológico e
um mínimo de inserção, o modelo brasileiro adotou a teorização de modo
extremamente restritivista, reduzindo o mínimo existencial ao mínimo vital.

Nesse sentido, o modelo brasileiro já no seu início


utilizava o mínimo existencial de forma quantitativa, dando ensejo a sua aplicação
nos casos de extrema vulnerabilidade.

Resta transcrever, uma vez mais, o registro de IURI


BOLESINA E MONIA CLARISSA HENNING LEAL5, para quem a adaptação ocorreu
de modo a desvirtuarma própria teorização do mínimo existencial construído na
Alemanha:

Não se olvida, entretanto, que conceitos transplantados de outros sistemas


jurídicos carecem ser adequados quando interiorizados ao direito pátrio,
observando-se o contexto próprio local. Essa adaptação, porém, não pode ser
míope e desvirtuar características e limites próprios da teoria.

Ora, registra Ingo Wolfgang Sarlet6 que não deixar


alguém sucumbir por falta de alimentação é o 1º passo, mas não é o suficiente! Vale
dizer, o conteúdo do mínimo existencial não pode ser confundido com o mínimo vital,
senão porque o mínimo existencial, como visto, alcança um mínimo de sobrevivência
condigna.

Na realidade, além de sofrer alteração de acordo


com o tempo, espaço e o sujeito, pode-se afirmar que o mínimo existencial é variável
inclusive de acordo com a região do Brasil, razão pela qual possui conteúdo sempre
variável e aberto da dignidade da pessoa humana.

5
Artigo Mínimo existencial versus mínimo vital.
6
Artigo Dignidade humana, mínimo existencial e jurisdição constitucional.

4
4. Teoria das Necessidades Humanas e a definição de critério para a atuação do
Poder Judiciário

Atribui-se a Abraham H. Maslow, na obra Motivation


and Personality, a edificação da teoria das necessidades humanas, segundo a qual,
o que motiva o homem são as suas necessidades organizadas numa hierarquia de
acordo com sua prepotência.

Do essencial, construiu-se que as necessidades


humanas podem ser destacadas em três níveis de necessidades. São eles: o vital,
no qual haverá vida, contudo sem qualquer grau de dignidade. Nele as
necessidades são elementares destinadas a proteção da própria vida humana, tendo
como exemplo a água, alimentos, dentre outros.

O nível essencial, por sua vez, trata da vida com


certa dignidade, logo, relacionado com necessidades intermediárias, que guardam
relação com razoável qualidade de vida, tendo como exemplo a alimentação de
qualidade, saúde, saneamento, lazer, dentre outros, o que revela vida condigna.

Por fim, o nível ideal, que trata da plena e irrestrita


satisfação das necessidade dos indivíduos relacionadas com a dignidade da pessoa
humana. O nível em comento, por óbivio, não integra o mínimo existencial e tão
somente será alcançado por intermédio de concretização progressiva dos Poderes
Legislativo e Executivo.

Ora, a identificação dos níveis de necessidade não é


sem propósito. É que, a partir deles, tem-se a identificação dos marcos que serão
utilizados para formular políticas públicas e a atuação do poder judiciário.

Para Maitê Damé Teixeira Lemos7 a atuação do


poder judiciário ocorre porque direitos que necessitam de políticas públicas para sua
efetiva concretização não são cumpridos. Assim, a referida intervenção ocorre no
intuito de preservar direitos fundamentais.

7
Artigo O judiciário e o controle jurisdicional de políticas públicas.

5
Comungam do mesmo pensamento IURI BOLESINA
E MONIA CLARISSA HENNING LEAL8, para quem a somente instâncias de
satisfação vital e essencial poderão ser objeto de demanda judicial.

Em tempo, resta assentar que a concretização de


direitos fundamentais sociais deve ocorrer de forma gradativa, inclusive à luz da
disponibilidade de recursos. Contudo, se notável afetação à dignidade, ergue-se um
direito concretizável de imediato. De outra lado, se se tratar de afetação mediata, a
proteção ocorrerá programática e gradualmente9.

5. Distinção da Concretização do Mínimo Existencial pelos Poderes da União

Ressalvado que o poder judiciário apenas tem


legitimidade para atuar na concretização de necessidade humana de nível vital e
essencial (logo, adstrito à noção de mínimo existencial10), possível fincar a distinção
no que diz respeito a concretização do mínimo existencial pelos Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário.

Antes, porém, compete uma advertência. Em raão


da clareza e minuciosa forma de elencar a distinção, filia-se por completo ao
pensamento de IURI BOLESINA E MONIA CLARISSA HENNING LEAL11

8
Artigo Mínimo existencial versus mínimo vital.
9
Registre-se que há na doutrina aqueles que, com razão, entendem que o cidadão pleitear ao Estado a concessão
de tratamento, remédio ou cura mais dispendiosa. Perceba-se que é dever do estado tão somente assegurar um
dos tratamentos eficazes, logo não necessariamente o de custo mais elevado.
Ainda assim, poderá o Estado conceder tratamento, remédio ou cura mais dispendiosa se tal escolha
não conduzir a uma escolha disjuntiva, vale dizer, se não causar prejuízo aos demais membros da coletividade.
10
Filia-se aqueles para quem mínimo existencial não se confunde com direito fundamental. Estes,
prestam-se para realizar os padrões ideais de vida, tem atendimento constante e progressivo. O
mínimo existencial, por sua vez, assegura a dignidade da vida em termos mínimos, é objeto de tutela
imediata, mas não necessariamente progressiva.
Daí o acerto no desfecho de IURI BOLESINA E MONIA CLARISSA HENNING LEAL, eis
que o mínimo existencial é o ponto de partida para a concretização de direitos fundamentais, de modo
que o que vem depois disso é visando atingir os padrões ideais.
11
Apud.

6
Por primeiro, os Poderes Legislativo e Executivo se
distinguem pois contam com presunção de democracia ou também designada como
perspectiva prima facie de democracia, em razão da forma que é formatado. São,
portanto, instâncias classicamente democráticas.

Ocorre, porém, que tais os Poderes Legislativo e


Executivo podem perder tal qualidade democrática por diversos fatores, dentre eles,
quando não age por medo de editar uma lei ou em razão da corrupção e falta de
ética.

Ao contrário do Poder Judiciário que, embora não


seja classicamente democrático, pode vir a ser assim considerado ao atacar uma
decisão majoritária emanada por representantes populares. Ainda que assim o faça,
não se está voltando contra o povo, mas, em nome do povo, contra seus
representantes políticos, cercados de ineficiência e omissão.

Em acréscimo, os Poderes Legislativo e Executivo


têm preferência na concretização dos direitos do mínimo existencial, porque gozam
de democracia formal e de presunção de democracia material. Não obstante, o
modo de decisão tende a ser mais cauteloso, técnico e melhor preparado por meio
das políticas públicas12.

Tal circunstância decorre mesmo da qualidade de


possuir profissionais de áreas diversas para elaborar políticas públicas, o que
possibilita visão ampla e difusa do cenário, do problema, das possíveis soluções e
dos efeitos direitos e indiretos, o que não ocorre com o Poder Judiciário.

Este por sua vez (Poder Judiciário), revela visão


restrita, mormente porque os julgadores não tem o conhecimento técnico necessário.
Registre-se que a situação se agrava com os processos individuais, nos quais os
instrumentos de abertura jurisdicional democrática dificilmente são utilizados13.

12
Por ela, entende-se o conjunto de ações em prol do bem-estar social e do interesse público, decorrentes de
ações políticas.
13
É a conhecida clausura judicial no processo individual, o que implica no cenário de desordem interna, pois o
magistrado brasileiro pode criar seus próprios critérios de atendimento e controle.

7
Nem por isso, deixa de se apontar a importância da
ação individual, em especial porque existem situações em que a pretensão da parte
somente é atendida quando veiculada dessa forma.

5. CONCLUSÃO

Feita a incursão no conceito de mínimo existencial,


viu-se que o seu surgimento correspondia à garantia daquilo que é imprescindível
para a vida com dignidade. Desse modo, o mínimo existencial abrangia diferentes
perspectivas.

A análise do seu surgimento autorizou extrair o


conceito de mínimo existencial como direitos necessários para assegurar a
dignidade ou direitos necessários para uma vida condigna.

Ocorre que o modelo brasileiro já no seu início


utilizava o mínimo existencial de forma quantitativa, dando ensejo a sua aplicação
nos casos de extrema vulnerabilidade.

Analisada as necessidades humanas, identificou-se


os marcos para fins de formulação de políticas públicas e a atuação do poder
judiciário, certo que o Poder Judiciário apenas tem legitimidade para atuar na
concretização de necessidade humana de nível vital e essencial.

Por fim, embora os Poderes Legislativo e Executivo


contem com presunção de democracia, o Poder Judiciário que, embora não seja
classicamente democrático, pode vir a ser assim considerado, em especial porque
existem situações em que a pretensão da parte somente é atendida quando
veiculada dessa forma.

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