Você está na página 1de 11

Bruna Pinotti Garcia Oliveira

Rafael de Lazari

Manual de
DIREITOS HUMANOS

3.ª edição,
revista, atualizada e ampliada

2017
I
TEORIA GERAL
DOS DIREITOS HUMANOS

Sumário • 1. Conceito e base teórica de direitos humanos – 2. Direitos humanos e garantias


constitucionais fundamentais: convergências e divergências conceituais – 3. Vertentes de proteção
dos direitos humanos e relações entre elas: conceitos básicos de direito internacional: 3.1. Direitos
humanos e as subvertentes do direito de minorias e do direito internacional penal; 3.2. Direito
humanitário; 3.3. Direito dos refugiados – 4. Características dos direitos humanos: 4.1. Historicida-
de; 4.2. Mobilidade e dinamismo; 4.3. Universalidade; 4.4. Generalidade; 4.5. Inalienabilidade; 4.6.
Imprescritibilidade; 4.7. Irrenunciabilidade; 4.8. Inviolabilidade; 4.9. Indivisibilidade; 4.10. Comple-
mentaridade; 4.11. Interdependência ou inter-relação; 4.12. Inexauribilidade; 4.13. Essencialidade;
4.14. Efetividade; 4.15. Relatividade – 5. A estrutura normativa do sistema internacional e do sistema
regional de proteção aos direitos humanos – 6. Condições para suspensão de direitos e direitos
inderrogáveis – 7. Interpretação dos tratados internacionais de direitos humanos: 7.1. Normativa
cogente (jus cogens) e normativa não cogente (soft law); 7.2. Vedação à interpretação deturpada;
7.3. Repercussões interpretativas do monismo e do dualismo do direito internacional; 7.4. O critério
pro homine ou da primazia da norma mais favorável; 7.5. Teoria da margem de apreciação – 8. A
incorporação dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ao Direito brasileiro:
8.1. O processo de incorporação de tratados internacionais pelo ordenamento jurídico brasileiro;
8.2. Valor do tratado de direitos humanos na Constituição Federal: princípio da primazia dos direitos
humanos; 8.3. A posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos em face do
art. 5º, § 3º, da Constituição Federal: hierarquia supralegal; 8.4. Tratados “equivalentes a emendas
constitucionais”; 8.5. Análise da aplicação do critério da supralegalidade perante a jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal quanto ao princípio do duplo grau de jurisdição; 8.6. Controle de
convencionalidade – 9. Classificação constitucional dos direitos humanos – 10. Eficácia vertical,
horizontal e diagonal dos direitos humanos: 10.1. Teoria da ineficácia horizontal (ou doutrina da
State Action); 10.2. Teoria da eficácia horizontal indireta; 10.3. Teoria da eficácia horizontal direta
– 11. O neoconstitucionalismo, a nova fase positivista e o Estado Democrático de Direito – 12.
Teorias doutrinárias de classificação de direitos humanos: 12.1. Classificação com base na teoria
dos “status” de Jellinek; 12.2. Classificação do Caso Lüth: direitos objetivos e subjetivos – 13. Fun-
damentos de direitos humanos: 13.1. Fundamento da dignidade da pessoa humana; 13.2. Funda-
mento da democracia; 13.3. Fundamento da razoabilidade-proporcionalidade; 13.4. Fundamento
da interdependência: a teoria das “gerações” ou “dimensões” de direitos – 14. Sinopse do capítulo.
50 MANUAL DE DIREITOS HUMANOS • Bruna Pinotti Garcia Oliveira e Rafael de Lazari

A teoria geral dos direitos humanos compreende o estudo amplo de uma


temática, abrangendo desde os seus elementos básicos – como conceito, caracterís-
ticas, fundamentação e finalidade -, passando pela análise histórica, e chegando à
compreensão de sua estrutura normativa. No presente capítulo, será efetuado um
estudo da teoria geral dos direitos humanos, à exceção da parte histórica, que será
tratada no capítulo seguinte.

1. CONCEITO E BASE TEÓRICA DE DIREITOS HUMANOS


Na atualidade, a primeira noção que vem à mente quando se fala em direitos
humanos é a dos documentos internacionais que os consagram, aliada ao processo
de transposição para as Constituições dos países democráticos. Contudo, é possível
aprofundar esta noção se tomadas as raízes históricas e filosóficas dos direitos hu-
manos, as quais serão abordadas em detalhes adiante, acrescentando-se que existem
direitos inatos ao homem independentemente de previsão expressa por serem ele-
mentos essenciais na construção de sua dignidade.

(PROMOTOR DE JUSTIÇA – MPE/SP – 2010) Em que medida é possível afirmar


que as Declarações de Direitos Humanos, a partir do século XVIII, trazem em si
raízes jusnaturalistas?

Questão polêmica que se estabelece para conceituar os direitos humanos se refere


à adoção de uma tendência jusnaturalista ou contratualista. O fato de, a partir do
século XVIII, estarem os direitos fundamentais do homem usualmente reconhecidos
em documentos expressos levou a crer que estes teriam mais um caráter contratua-
lista do que um caráter jusnaturalista.
Por seu turno, não se pode negar que a origem teórica do reconhecimento dos
direitos humanos está na afirmação de que existem direitos inerentes ao homem e
que devem ser a ele garantidos a qualquer tempo, independentemente de reconhe-
cimento expresso: os direitos primeiro surgem e depois são afirmados, tendo tal
afirmação o caráter meramente declaratório.
Em suma, devido ao aspecto da historicidade e da forte influência pelas pre-
missas do direito natural e do cristianismo, o conteúdo dos direitos humanos possui
caráter jusnaturalista. Contudo, os direitos humanos não são pura e simplesmente
jusnaturalistas. Afinal, criou-se um sistema voltado à proteção e ao reconhecimento
destes direitos, de caráter contratual entre os Estados-membros das organizações
internacionais e regionais, o que denota também um caráter contratual ao sistema
de proteção dos direitos humanos.
Pode-se afirmar, assim, que um conceito de direitos humanos não pode ser
fixado em termos rigorosos do jusnaturalismo ou do contratualismo: direitos hu-
manos se fixam em duplo estandarte. A noção contemporânea de direitos humanos
nos leva a primar pelo expresso reconhecimento em documentos internacionais,
mas a origem teórica de formação exige que se considere a intensa relação entre os
direitos humanos e o direito natural.
Cap. I • TEORIA GERAL DOS DIREITOS HUMANOS 51

Como consequência desta dupla influência, um conceito preliminar de direitos


humanos pode ser estabelecido: direitos humanos são aqueles inerentes ao homem
enquanto condição para sua dignidade, e que usualmente são descritos em docu-
mentos internacionais para que sejam mais seguramente garantidos.
Ainda, não se pode perder de vista a essência da finalidade dos direitos huma-
nos, que é a proteção da dignidade da pessoa humana, resguardando seus atributos
mais fundamentais. A conquista de direitos da pessoa humana é, na verdade, uma
busca da dignidade da pessoa humana.

2. DIREITOS HUMANOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS


FUNDAMENTAIS: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS CONCEITUAIS

Quais as semelhanças e diferenças entre os direitos fundamentais e os direitos


humanos?

É natural, no estudo dos direitos humanos tipicamente feito por alguém habituado
ao direito interno, “caseiro”, correlacioná-los aos direitos e garantias fundamentais
explícitos ou implícitos na Constituição Federal.
Ainda que sejam sobrelevadas as nuanças de cada país dito “democrático de
direito” na maneira como estruturam seus respectivos ordenamentos internos (orga-
nização do Estado, repartição de competências, organização dos Poderes, sistema de
tributação, sistema de administração pública, maior ou menor intervenção estatal,
regras procedimentais etc.), há entre eles um ponto de sinonímia representado
justamente pelos direitos humanos e pela forma como estes são encaixados dentro
do sistema particularizado de cada nação.
Em outras palavras, enquanto cada país erige-se nos moldes de seu povo, de
seu território e de sua ideologia no que diz respeito às pilastras embasadoras do
funcionalismo estatal, são os direitos humanos, necessariamente, supranacionais,
porque resultantes de uma evolução histórica que se deu por meio de documen-
tos internacionais, conflitos bélicos, acordos econômicos, entendimentos de paz,
delimitação de fronteiras, dentre outros tantos meios de convivência – positiva ou
negativa – no plano internacional.
Os direitos humanos ficam, portanto, em uma zona de flutuação acima dos
ordenamentos internos, pois necessariamente dependem de um consenso que trans-
cenda ao “quintal” de cada país. É exatamente por isso, por exemplo, que não há
consenso em se admitir a condição da mulher submissa tal como em vários países
dos continentes africano e asiático, ainda que pequenos grupos setoriais entendam
isso como algo absolutamente natural. O motivo pelo qual a mulher submissa não é
encarada como algo normal é simples: há absoluta discrepância entre sua condição
de subordinação e violência física/moral e a natureza consensual inerente a uma
democracia de que homens e mulheres são iguais perante a lei e na forma da lei.
52 MANUAL DE DIREITOS HUMANOS • Bruna Pinotti Garcia Oliveira e Rafael de Lazari

Exatamente por isso chama-se a atenção para os direitos humanos apenas em


um cenário dito “democrático de direito”: ressalvando o respeito por quem pense o
contrário, somente é possível se chegar a um consenso onde é possível, antes, rea-
lizar discussões históricas em prol de tal fito. Algo que os Estados ditatoriais e/ou
fundamentalistas e/ou extremistas não costumam propiciar aos seus povos.
Desta forma, com maior ou menor variação, os direitos humanos são enca-
rados de mesmo modo pelos países que prezam pelo diálogo. Diz-se “com menor
ou variação”, pois é óbvio que nuanças internas devam ser respeitadas, ainda que
num cenário macro se busque sempre um mesmo objetivo, isto é, um denomi-
nador comum.
Entretanto, como fator inerente à soberania de cada país, cujos sistemas consti-
tucionais são exemplos, mister se faz capturar estes direitos humanos de sua zona
de flutuação e afixá-los dentro de um ordenamento interno para que norteiem as
pessoas vinculadas a uma Constituição (respeitando-se, urge insistir, as peculiaridades
óbvias de cada sistema interno).
Assim, a mesma fórmula do devido processo legal ou do direito ao con-
traditório e à ampla defesa, como exemplo, pensada através de regras genéricas
discutidas, aprovadas e consagradas em documentos internacionais, é depois
trazida para o ordenamento de cada país. É dizer: a República Federativa do
Brasil faz sua consagração do devido processo legal, do contraditório e da ampla
defesa, e as implementa da maneira que melhor atender aos interesses do povo,
assim como o fazem os Estados Unidos da América, a Alemanha, o México, o
Canadá, a Austrália, a Inglaterra, dentre tantos outros países que prezam pela
democracia. Cada país faz a implementação destes direitos humanos de acordo
com suas peculiaridades, muito embora respeitem uma matriz genérica inter-
nacionalmente consagrada.
Se há diferença entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, portanto,
é uma questão de “ponto de vista”. E, ainda que assim o seja, se trata de problema
puramente conceitual.
Materialmente falando, ambos visam à proteção e à promoção da dignidade
da pessoa humana. Logo, quanto ao conteúdo, pouca ou nenhuma diferença há
entre eles.
A dissonância, pois, é em relação ao plano em que esses direitos são consa-
grados. Assim, para quem entende haver distinção, os “direitos humanos” são os
consagrados no plano internacional, enquanto os “direitos fundamentais” são os
consagrados no plano interno, notadamente nas Constituições.
Em pensando sob enfoque de consagração interna, o que se vê em cada
Constituição são os direitos fundamentais, porquanto direitos humanos inter-
nalizados. Entrementes, sob enfoque de um objetivo comum de asseguramento
de direitos e deveres às pessoas e aos Estados, qualquer diferença pode haver
entre eles, a depender do prisma de observação. Repete-se: é tudo uma questão
de “ponto de vista”.
Cap. I • TEORIA GERAL DOS DIREITOS HUMANOS 53

SEMELHANÇAS DIFERENÇAS

Direitos humanos Direitos humanos Direitos fundamentais


fundamentais

Estabelecem direitos Supranacionais (plano Nacionais (plano interno)


individuais, sociais e coletivos internacional)
a serem garantidos à pessoa
humana

Visam à proteção e à Processo histórico longo a Inspirados nos direitos


promoção da dignidade da ser observado na evolução humanos internacionalizados,
pessoa humana (pouca ou da humanidade e em seus embora exista influência de
nenhuma diferença quanto conflitos fatores históricos internos
ao conteúdo material)

São formados por princípios Zona de flutuação acima do Se encontram no topo do


que possuem baixa ou ordenamento interno, embora ordenamento interno e
baixíssima densidade a baixíssima densidade possuem conteúdo mais
normativa, favorecendo o normativa permita um amplo específico que os direitos
papel do intérprete espaço de interpretação pelos humanos (baixa densidade
países que os aplicam normativa), sujeitando as
normas do ordenamento
interno

O respeito constitui marco Conferem atenção especial Por serem mais restritos
dos regimes de governo a questões de relativismo territorialmente, se
democráticos, fundados na cultural devido à abrangência preocupam menos com
lei (Estados Democráticos de territorial global questões de relativismo
Direito) cultural

3. VERTENTES DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E RELAÇÕES


ENTRE ELAS: CONCEITOS BÁSICOS DE DIREITO INTERNACIONAL

Quais as principais vertentes de proteção dos direitos humanos? Quais são suas
principais características?

Direitos humanos stricto sensu, direito humanitário e direito dos refugiados


formam, juntos, as três vertentes de proteção da pessoa humana: o primeiro voltado
à sua situação em geral; o segundo à sua proteção em circunstâncias de guerra; e, o
terceiro, à garantia de asilo quando recluso de seu país. Comum mencionar, ainda,
como vertentes específicas – diante de certas peculiaridades – o direito internacional
penal e o direito de minorias, que na verdade fazem parte da vertente mais ampla,
que é a dos direitos humanos stricto sensu.
Como se fala em vertentes de proteção dos direitos humanos, sendo os direitos
humanos (em sentido estrito) uma destas vertentes, é possível afirmar que a expres-
são direitos humanos pode ser tomada em dois sentidos: um sentido genérico, lato
sensu, que envolve todo e qualquer aspecto de proteção da pessoa humana; e um
54 MANUAL DE DIREITOS HUMANOS • Bruna Pinotti Garcia Oliveira e Rafael de Lazari

sentido específico, stricto sensu, envolvendo a proteção da pessoa humana excluídas


as situações de conflitos armados e de refúgio.
Por originarem de premissas diferentes, por muito tempo prevaleceu uma
distinção rigorosa entre as três vertentes – direitos humanos stricto sensu, direito
humanitário e direito dos refugiados, como se não houvesse diálogo. Atualmente,
é unanimidade de que estas três vertentes se complementam, não se excluem, e
podem se fazer presentes simultaneamente em algumas situações.
“Uma revisão crítica da doutrina clássica revela que esta padeceu de uma visão
compartimentalizada das três grandes vertentes da proteção internacional da pessoa
humana – direitos humanos, direito humanitário, direito dos refugiados, em grande
parte devido a uma ênfase exagerada nas origens históricas distintas dos três ramos
(no caso do direito internacional humanitário, para proteger as vítimas dos confli-
tos armados, e no caso do direito internacional dos refugiados, para restabelecer
os direitos humanos mínimos dos indivíduos ao sair de seus países de origem). As
convergências dessas três vertentes que hoje se manifestam, a nosso modo de ver, de
forma inequívoca, certamente não equivalem a uma uniformidade total nos planos
tanto substantivo como processual; de outro modo, já não caberia falar de vertentes
ou ramos da proteção internacional da pessoa humana. Uma corrente doutrinária
mais recente admite a interação normativa acompanhada de uma diferença nos
meios de implementação, supervisão ou controle em deter minadas circunstâncias,
mas sem com isto deixar de assinalar a complementaridade das três vertentes. [...]
Nem o direito internacional humanitário, nem o direito internacional dos refugia-
dos, excluem a aplicação concomitante das normas básicas do direito internacional
dos direitos humanos. As aproximações e convergências entre estas três vertentes
ampliam e fortalecem as vias de proteção da pessoa humana”1.
Sem prejuízo, cabe observar que tais vertentes de proteção da pessoa humana
passam constantemente por revisões de perspectivas. Os problemas que são colo-
cados em seu cerne de discussão mudam de cenário e obrigam os operadores ao
reconhecimento da necessidade de interação entre as vertentes e à adoção de novos
modos de ver cada vertente individualizada, para além do seu conceito clássico.
“Especialmente ao longo das últimas décadas, o direito internacional dos
refugiados, assim como o direito internacional dos direitos humanos e o direito
internacional humanitário, tem enfrentado situações bastante críticas, bem como
repetidas violações. De fato, ao longo desse período, essas três vertentes da proteção
da pessoa humana adaptaram-se às novas realidades do cenário internacional, ao
mesmo tempo em que se consolidaram e aperfeiçoaram-se. Apesar dos atentados que
ocorreram e que ocorrem contra as suas normas, é importante reafirmar a validade
continuada dos seus princípios básicos”2.

1
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional Humanitário
e Direito Internacional dos Refugiados: Aproximações ou Convergências. In: COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ
VERMELHA (Org.). As três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana: Direitos Huma-
nos, Direito Humanitário, Direito dos Refugiados. [s.n.], 2004. Disponível em: <http://www.icrc.org/por/resources/
documents/misc/direitos-da-pessoa-humana.htm>. Acesso em: 13 jun. 2013.
2
PAULA, Bruna Vieira de. As três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana: direito inter-
nacional dos refugiados e o princípio do non-refoulement. Fronteira, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p. 31-65, jun. 2006.
Cap. I • TEORIA GERAL DOS DIREITOS HUMANOS 55

Neste sentido, no direito humanitário se intensifica a preocupação com guerras


civis, rompendo com a sua clássica aplicação a conflitos internacionais ou mistos;
no direito dos refugiados surgem polêmicas crescentes quanto a pedidos de asilo
não mais motivados por perseguições políticas, religiosas, sociais ou afins, mas sim
pela busca de sobrevivência fora de zonas de guerra ou de extrema miséria; no di-
reito internacional dos direitos humanos cada vez mais se ruma a uma ampliação
do acesso da sociedade civil aos sistemas de proteção, retirando os Estados e as
organizações internacionais do protagonismo absoluto no cenário de proteção destes
direitos. Compreender a nova dinâmica das vertentes de proteção da pessoa humana
é tarefa árdua, mas não há desafio algum em reconhecer que os princípios inaugurais
norteadores de cada uma delas permanecem válidos e devem ser implementados
para que se propicie a adequada proteção da pessoa humana.

3.1. Direitos humanos e as subvertentes do direito de minorias e do


direito internacional penal

Como será visto em momento oportuno (capítulo III), direitos humanos ou


direitos do homem são um conjunto de normas com base nas quais garante-se aos
indivíduos ou grupos de indivíduos a proteção de sua dignidade, notadamente esta-
belecendo diversos bens jurídicos que devem ser protegidos para que ele tenha uma
vida digna. Tais direitos são enumerados em diversos documentos internacionais e
também nas Constituições dos Estados Democráticos de Direito.
O sistema de proteção dos direitos humanos pode ser geral ou específico, isto é,
voltado para todas as pessoas ou voltado para grupos específicos que necessitam
de proteção especial – neste segundo ponto se encontram os chamados direitos de
minoria. Não há incompatibilidade entre a proteção geral dos direitos humanos e
a criação de um sistema de proteção de minorias, pois sem igualdade material não
há efetivamente direitos humanos.
“Minoria”, neste sentido, pode ser vista como uma categoria relacional cor-
respondente a todo grupo social que possua traços relativamente indeléveis cujos
membros não possuem condições de fundirem-se em uma população homogênea e
nela plenamente se adaptar. Isso pode ocorrer por peculiaridades étnicas, linguísticas,
religiosas ou culturais que não sejam compartilhadas pela maior parte da sociedade, o
que demonstra que o conteúdo semântico da denominação “minoria” somente pode
ser obtido contextualmente, ou seja, o que é minoria numa sociedade poderá não
sê-lo em outras. A categorização jurídica de uma minoria depende não do sujeito
em si, mas da posição jurídica ocupada por ele na sociedade. A criação do conceito
de minorias remete ao clássico direito internacional público, mas toma novos rumos
no direito internacional dos direitos humanos. Neste contexto, reconhece-se que o
Estado Democrático de Direito não deve apenas tutelar os interesses das maiorias,
fundando-se também num princípio contramajoritário que será aplicado in casu pelo
56 MANUAL DE DIREITOS HUMANOS • Bruna Pinotti Garcia Oliveira e Rafael de Lazari

Judiciário3. Com efeito, o direito das minorias é apontado como uma subvertente de
proteção, dentro da vertente do direito internacional dos direitos humanos.
Por sua vez, a regulamentação do direito internacional penal também está en-
volvida nos direitos humanos, notadamente no Estatuto de Roma, colocando a pessoa
humana como verdadeiro sujeito de direito internacional não apenas na busca de
direitos, mas na punição por graves violações conforme a competência do Tribunal
Penal Internacional, notadamente, crimes contra a humanidade, crimes de guerra,
genocídio e agressão internacional. O direito internacional penal é desenvolvido a
partir do fenômeno da fragmentação do direito internacional, mas assume impor-
tância também no campo dos direitos humanos, eis que aborda a responsabilidade
por delitos de caráter internacional. Sujeitam-se a suas normas indivíduos que
cometem este tipo de delito, evidenciando-se uma posição não apenas protetiva de
indivíduos pelo direito internacional dos direitos humanos, mas também punitiva.
Ainda assim, a possibilidade de punição de uma pessoa no âmbito internacional
reforça o status do indivíduo como parte integrante do sistema de proteção da
pessoa humana, de modo que o direito penal internacional pode ser apresentado
também como subvertente de proteção da pessoa humana, dentro da vertente do
direito internacional dos direitos humanos.

3.2. Direito humanitário


O direito humanitário é o corpo de normas jurídicas de origem convencional
ou consuetudinária (costumeira) que se aplica aos conflitos armados e que limita,
por razões humanitárias, o direito das partes em conflito de escolher livremente os
métodos e os meios utilizados na guerra, evitando que sejam afetadas as pessoas e
os bens legalmente protegidos.
Isto é, o direito internacional humanitário regulamenta as situações de conflito
armado, com o intuito de proteger ao máximo os envolvidos – direta (militares) ou
indiretamente (civis e outros) – no conflito, minimizando os seus danos. Também
é conhecido pelo nome de direito dos conflitos armados, nomenclatura muito
utilizada no âmbito da Organização das Nações Unidas mas que talvez não reflita
todo o seu objeto de proteção.
“Se é verdade que um ser humano se move por vezes por sentimentos de cruel-
dade, também é certo que ele se comove perante a dor e o sentimento de humani-
dade, que à semelhança do sofrimento, é também universal. Sendo impossível fazer
com que o ser humano renuncie à guerra, é o sentido de humanidade que o leva
a opor-se aos seus efeitos”4. A peculiaridade do direito humanitário é que ele não
proíbe a guerra ou o atentado contra a vida e a saúde dos que estão no campo de
batalha, mas sim cria regras para que isso ocorra de uma maneira menos brutal.
Seu objeto é, portanto, diverso do direito internacional dos direitos humanos,
que rechaça a própria guerra – basta saber que o objeto central da Organização

3
MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; MITUZANI, Larissa. Direito das minorias interpretado: o compromisso demo-
crático do direito brasileiro. Sequência, n. 63, p. 319-352, dez. 2011.
4
DEYRA, Michel. Direito internacional humanitário. Lisboa: Procuradoria-Geral da República, 2001.
Cap. I • TEORIA GERAL DOS DIREITOS HUMANOS 57

das Nações Unidas é a paz. Desde suas origens os ramos são autônomos, mas esta
mesma autonomia conduziu à complementaridade sistêmica. Logo, aplicam-se regras
de direitos humanos quando o direito humanitário não é aplicável. “Hoje em dia
esta convergência exprime-se através de três princípios comuns aos dois ramos do
direito: o princípio da inviolabilidade, que garante a todo o indivíduo não comba-
tente o direito de respeito pela sua vida, integridade física e moral; o princípio da
não discriminação no acesso aos direitos protegidos; e o princípio da segurança, que
implica nomeadamente o respeito pelas habituais garantias judiciárias. Apesar desta
aproximação a um núcleo duro irredutível, os dois ramos do direito continuam a
ter as suas especificidades no conteúdo dos direitos enunciados, na sua aplicação
e também no facto de serem consagrados em instrumentos jurídicos distintos, nos
quais nem todos os Estados são Partes”5.

A pretensão do direito humanitário é a de “humanizar a guerra”. Mas, será


que isso é possível?

A Cruz Vermelha tem manifestado preocupações quanto aos meios utilizados


em conflitos armados na atualidade, principalmente naqueles que correm à margem
da sociedade, como as guerras civis. Não obstante, tem enfrentado dificuldades de
se imiscuir em alguns campos de batalha, a exemplo da Faixa de Gaza. Por mais
que o direito humanitário controle o modo como se realizam os conflitos armados,
esbarra em obstáculos relevantes em fazer cumprir suas normas. Uma das principais
falhas é a de proteção de civis, que são constantemente agredidos nos mais variados
conflitos armados ao redor do mundo. O ceticismo quanto ao direito humanitário
é, assim, justificável pela ferocidade da guerra e pela fragilidade dos mecanismos
de controle da implementação deste ramo do Direito.

Quais são as vertentes do Direito Humanitário?

Com efeito, nas Convenções de Genebra e em seus protocolos adicionais é que


se concentra a proteção do direito humanitário. No entanto, a doutrina do direito
internacional do direito humanitário afirma que o Direito de Genebra é apenas uma
de três vertentes do direito humanitário, ao lado do Direito de Haia e do Direito
de Nova York. Segundo Derya6, esta distinção atualmente é inapropriada, já que os
Protocolos de ambas vertentes contêm disposições que regulamentam igualmente a
conduta das hostilidades, mas possui um valor histórico e didático.
O Direito de Genebra é composto pelas quatro Convenções de Genebra e seus
protocolos adicionais que, em cerca de seiscentos artigos, volta-se à proteção das
vítimas nos conflitos de guerra, tanto militares quanto civis.

5
Ibid.
6
Ibid.
58 MANUAL DE DIREITOS HUMANOS • Bruna Pinotti Garcia Oliveira e Rafael de Lazari

3.2.1. Direito de Genebra


O direito de Genebra se refere ao conjunto normativo elaborado e aplicado no
âmbito do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, organização humanitária suíça
dotada de personalidade jurídica internacional. Tal personalidade se evidencia,
notadamente, pelo fato de que os Estados aderem aos acordos e tratados propostos
em seu âmbito, desempenhando para com a Cruz Vermelha relações de natureza
diplomática.

Quais os princípios que regem a atuação da Cruz Vermelha?7

a) Princípios substantivos:

– Princípio da humanidade: proteção da vida e da saúde humanas;


– Princípio da imparcialidade: conferir proteção sem distinção de nacio-
nalidade, raça, religião, condição social ou filiação política, conferindo
atendimento prioritário em situações de emergência.

b) Princípios derivados:

– Princípio da neutralidade: abstenção de participação nas controvérsias


de ordem política, racial, social, religiosa ou filosófica;
– Princípio da independência: a Cruz Vermelha tem autonomia em relação
às sociedades nacionais.

c) Princípios orgânicos:

– Caráter benévolo: trata-se de instituição voluntária e desinteressada;


– Unidade: cada país pode possuir apenas uma Sociedade da Cruz Verme-
lha, que é vinculada ao Comitê Internacional;
– Universalidade: a instituição é universal.

Quais os principais documentos de proteção do direito humanitário?

Pelo direito humanitário, tem-se que em tempo de guerra os homens devem


observar certas normas de humanidade, mesmo em relação ao inimigo. Tais normas

7
Ibid.

Você também pode gostar