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20 REVISTA DO SERVIÇO PÚBLICO — MAIO E JU N H O DE 1 9 4 7

O d é f ic it o r ç a m e n tá r io
R ic h a r d L e w in s o h n

Dr. rer. pol

Não existe, em teoria e direito orçamen­ paração, e ao economista cabe somente verificar se a
tários, problema mais debatido do que o do situação real corresponde ou não a essas normas.
déficit. Isto ocorre porque vários são os fa­ P er exemplo, os fisiologistas concordam em que
tores que se incorporam à discussão — idéias o equivalente a 3 .000 calorias por dia é o ne­
econômicas e financeiras, contábeis e admi­ cessário para a alimentação de um trabalhador
nistrativas — o que ainda mais concorre adulto e — a cifra exata depende da composição
para dificultar sua formulação correta. O demográfica — o equivalente a 2.000-2.500 ca­
Prof. Lewinsohn, recapitula as noções básicas lorias o necessário “per capita”, para tôda a popu­
que se prendem ao prob.ema do déficit, mos­ lação. Se não se atingem êstes valores caloríficos,
trando a impropriedade de certas idéias feitas, então existe déficit %alimentar, ou sub-alimen-
que ainda hoje viciam até mesmo o raciocínio tação. Da mesma forma se procede para verificar
de estucjiosos e homens públicos. Analisa o dé­ o abastecimento de um país em um gênero ali­
ficit em função das variações da arrecadação mentício determinado, ainda que neste caso a nor­
e despesa mensais para chegar ao conceito do ma seja ditada mais pelo uso do que pelas ne-
que chama déficit flutuante e como é reme­ cess:dades fisiológicas. Assim, há déficit de trigo
diado em nosso direito constitucional e orça­ quando, em conseqüência de dificuldades de im­
mentário. Analisa-o ainda em função de portação ou de má colheita, o abastecimento é in­
idéias e teorias que tiveram larga populari­ ferior ao consumo normal.
dade entre os estudiosos na década que ante­ O conceito de déficit difere muito no setor eco­
cedeu a última gverra, e o faz com uma lu­ nômico em que o têrmo é mais corrente : o do
cidez e perspicácia que coloca êste seu ensaio comércio exterior.
entre as melhores contribuições com que, há Em primeiro lugar, na balança do comércio ex­
tantos anos, vem abrilhantando as nossas terior o déficit não indica, como nos casos citados,
páginas, a diferença entre um algarismo verificado e üm
de base fixa, considerado necessário ou norm al;
I. O CON CEITO DO D É FIC IT resulta, ao contrário, de duas variáveis — a expor­
tação e a importação. D e conformidade com a
têrmo “déficit” é, sem dúvida, um dos mais terminologia universalmente usada, a balança do

O expressivos do vocabulário econômico-finan-


comércio exterior acusa déficit quando as expor­
tações são inferiores às importações. Contudo, o
ceiro. Provém do latim “deficere” — faltar e sig­déficit em si não revela se o que ocorre provém
nifica, literalmente, falta, sentido que também lhe de exportações reduzidas ou de importações em
é dado em tôdas as líguas modernas. grande escala.
Destarte, para verificar se falta alguma coisa Em segundo, o déficit verificado na balança do
cumpre ter, a priori, um conceito do equilíbrio. comércio exterior nem sempre é sinal de um ver­
dadeiro desequilíbrio econômico. Êle pode ser
Em certos casos tal conceito resulta de experi­
mesmo desejável, necessário. Por certo o têrmo
ências e teorias estabelecidas fora da economia
déficit implica, originalmente, um julgamento des­
política e das finanças públicas. Para medir o bem favorável, uma qualificação negativa. Se, por di­
estar da população de um país existem normas minuição de atividades criminais, o número de po­
de natureza fisiológica, que servem de base à com- lícias se torna excessivo, ninguém se referirá a um
o " d é f ic it ” o r ç a m e n t á r io 21

déficit de crimes. Todavia, as palavras sofrem se identifica com as receitas e despesas orçamen­
mudanças de sentido e, no domínio econômico, tárias. Para apurar estas últimas, cumpre eli­
déficit não quer dizer, forçosamente, carência. A minar uma grande quantidade de outros ite n s :
Inglaterra, por exemplo, há quase um século m an­ depósitos e fundos, operações de crédito, operações
tém uma balança de comércio exterior deficitária, de financiamento, etc. Em 1945, a soma das ren­
e até há pouco tal deíicit não prejudicava a sua das e a soma das despesas foram cêrca de quatro
economia, de vez que foi compensado pelas re­ vêzes mais elevadas do que as receitas e despesas
ceitas oriundas de serviços prestados no estran­ orçamentárias do mesmo exercício (1 ) .
geiro — navegação, segurança, etc. — e de inves­
Do lado da receita, o ponto nevrálgico para a
timentos de capital em outros países. No Brasil,
verificação do déficit é o produto das operações
ao contrário, uma balança comercial apenas equi­
de crédito. Universalmente se reconhece que não
librada, foi no passado, e seria, ainda hoje, insu­
se pode considerar êste produto como receita or­
ficiente, porque é indispensável um excedente
dinária, e que se êle figura no orçamento ordi­
constante das exportações sôbre as importações,
nário ou geral apenas para indicar a maneira pela
a fim de que se pague o serviço da dívida pública
qual será coberto o déficit, deve-se separá-lo ni­
externa e satisfaça outras obrigações financeiras
tidamente das outras receitas governamentais:
para com o estrangeiro.
rendas tributárias, administrativas, industriais, pa­
A divergência acima demonstrada origina-se do trimoniais. Quanto aos orçamentos extraordiná-
fato de ser a balança do comércio exterior apenas ros ou especiais, o modo de contabilidade varia
elemento de uma balança maior — a dos paga­ de um país para outro. No P la n o .d e Obras e
mentos internacionais. Em verdade, uma balança Equipamentos do Brasil, extinto em setembro de
de pagamentos deficitária não tem a mesma s.gni- 1946, figurava regularmente a rubrica “produto de
ficaçao em todos os países. Para se desenvolve­ operações de crédito”, orçada em 200 milhões
rem economicamente, os países jovens precisam de de cruzeiros, ao lado das outras receitas — taxas,
um afluxo de capitais estrangeiros, que se reflete rendas de capitais, e tc ., e que poderiam ter sido
num excedente de importações totais — bens e incorporadas à renda ordinária do Orçamento
serviços tomados em conjunto — sôbre as expor­ G eral. É evidente que esta “receita” — o mon­
tações totais, e freqüentemente conduz a um endi­ tante previsto em 200 milhões raram ente foi atin­
vidamento crescente para com o estrangeiro. gido — representava, na realidade, um déficit,
A forma adotada no Brasil nada tem de excep­
II. E M PR É S T IM O S E IN V ESTIM EN TO S cional. Na parte do Anuário Estatístico da So­
ciedade das Nações referente às Finanças Públicas
O conceito de déficit complica-se ainda mais
de cêrca de 60 países, lê-se, a êste resp e ito :
quando se passa do terreno propriamente econô­
“A coluna de receitas indica o m ontante total, tal
mico para o das finanças públicas. Aparente­
como figura nos documentos originais relativos ao
mente o têrmo é sim plíssim o: o orçamento — e
orçamento g eral; destarte, em inúmeros casos,
no fim do exercício o balanço das contas — mos­
ela abrange o produto de empréstimos e os saldos
tra as receitas e as despesas. Se as primeiras exce­
dos anos anteriores” ( 2 ) .
dem as últimas, há um superávit; na hipótese
contrária, um déficit. Entretanto, para saber qual Outro fator que afeta sèriamente o conceito do
dos dois ocorre, neste esquema de comparação, déficit é o que diz respeito aos investimentos de
importa primeiro conhecer a sua base, isto é, o capital e às alienações de propriedades do Es­
conceito do equilíbrio; em outras palavras, im­ tado. Sôbre a m atéria não existem nem uma dou­
porta saber o que se considera receita e despesa. trina nem uma prática uniformes. Sem dúvida,
grande parte das despesas ordinárias têm o caráter
Poder-se-ia, talvez, tentar responder a isso re­
correndo ao princípio da universalidade do orça­
(1 ) C o n tad o ria G e ra l d a R e p ú b lic a , Balanços Gerais
mento : tôdas as importâncias que entram nos
cofres públicos são receitas; tôdas as que saem da União relativos ao exercício d e 1945 (R io , 1 9 4 6 ),

são despesas. Um golpe de vista, porém, sôbre o pág. 71.

balanço financeiro da União mostra que o mo­ (2 ) A nuário E statístico da Sociedade das Nações

vimento de receitas e despesas de nenhum modo 1940-41 (G e n e b ra , 1941) gág. 2 2 5 .


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de investimento, principalmente as construções de capital” . Dois são os esquemas geralmente usados,


imóveis, ainda que se destinem aos serviços go­ principalmente para* as despesas :
vernamentais, como, por exemplo, o edifício de
um ministério. Quando se trata de despesas rela­ I. a) despesas efetivas:
tivamente pequenas, inscrevem-se no orçamento 1) ordinárias
ordinário, ao passo que as despesas maiores são 2 ) extraordinárias;
freqüentemente incluídas nos orçamentos extraor­
h) despesas de capital.
dinários ou especiais.. A questão torna-se mais de­
licada quando se trata de uma despesa verdadei­ II. a) despesas ordinárias;
ram ente extraordinária, como a aquisição de uma b) despesas extraordinárias:
estrada de ferro ou, ainda, a alienação de em- 1) efetiva
prêsas industriais pertencentes ao Estado — cascs
2 ) de capital.
que não são raros na história das finanças. Às
vêzes alienações desta espécie são feitas expressa­ Semelhante articulação do orçamento evidencia,
m ente no intuito de obter receitas para o governo ao mesmo tempo, sob o aspecto econômico, o ca­
e de cobrir o déficit orçam entário. Deve-se, ou ráter do déficit, isto é : se as despesas financia­
não, considerar o produto ou as despesas de tais das por empréstimos acrescem ou não o patri­
transações como receita ou despesa orçamentárias? mônio nacional. Na última hipótese, o déficit au­
menta a espécie de dívida pública que a econo­
Questões semelhantes se apresentam no que
mista inglesa Ursula Hicks (3 ) denominou “dead-
tange ao resgate extraordinário de empréstimos. weight deb” (dívida de pêso m orto). Na primeira,
Anualmente inscreve-se no orçamento uma cota o Estado nada perdeu; endividou-se, apenas, por­
de amortização — no Brasil, no próprio orçamento que assumiu a obrigação de pagar a seus credores
geral; em muitos outros países, separadamente, juros e — a menos que se trate de dívida per­
num orçafnento, ou em um fundo especial para a pétua — uma cota de am ortização. Se o inves­
dívida pública. Todavia, reembolsos extraordiná­ timento fornece ao govêrno recursos para o ser­
rios ---- como os efetuados no Brasil, em virtude viço da dívida — o que infelizmente é raro acon­
dos acordos de novembro de 1943 sôbre a dívida tecer — eis o tipo de dívida auto-am ortizável; se
externa — não podem ser fàcilmente adaptados ao não, a dívida será contrabalançada, nas contas do
esquema de amortização ordinária. É verdade que patrimônio, pelo valor criado ou adquirido por
reembolsos maciços raram ente podem ser feitos meio do empréstimo — edifícios, terrenos, ouro,
sem operações de crédito paralelas, isto é, sem etc.; do ponto de vista orçamentário, entretanto, êle
novos empréstimos destinados ao pagamento dos criará um encargo suplementar e não se distin-
antigos, ou sem empréstimos internos para finan­ guirá de um “dead-weigth debt”, salvo no caso
ciar o resgate de empréstimos externos. Em tais de alienação.
circunstâncias ocorre um a conversão, que não
atinge o orçamento senão à medida que se modi­ III. D É FIC IT FL U T U A N T E

ficam as despesas para o serviço de dúvida pú­


A origem do déficit não é o critério único para
blica. Não obstante, a fim de dar clareza às fi­
decidir sôbre quais as contra-medidas apropriadas
nanças públicas, será preferível contabilizar tam ­ para eliminá-lo. Outro critério, ainda mais im­
bém as transações dessa espécie, sob fcrrna de portante, é o da duração do déficit. Principal^
balanço, equiparar a amortização a uma despesa, mente sob êste aspecto era o problema analisado
e o produto do novo empréstimo a uma receita na literatura financeira mais antiga. Adolph W ag­
extraordinária. Inútil frisar que tais contas de­ ner (4 ) e seus discípulos foram os que mais in-
vem ser nitidamente separadas do orçamento de
custeio das atividades governam entais.
(3 ) U . K . H ick s, T h e Finance o f B ritish G overnm ent
Para solucionar o problema, alguns países fazem,
1920-1936 (O xford, 1 9 3 8 ).
no orçamento, estrita discriminação entre “receitas (4 ) A. W agner, T raité de la Science des Finances
ou despesas efetivas” e “receitas ou despesas de (P a ris, 1 9 0 9 ), Vol. I, pgs. 129, 163 e seg .
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sistiram sôbre êste ponto, e criaram tôda uma R ECEITA GERAL NOS PR IM EIR O S SETE E O IT O

nomenclatura para caracterizar a duração do dé­ M E SE S — EM % DA RECEITA ANUAL

ficit. Daí, então, o falar-se em déficit de caixa, Exercício janeiro-julho jan.-agôsto


agudo e crônico, provisório, real, definitivo. 1942 46,57% 54,84%
Formalmente, a duração do déficit é determi­ 1943 .. 42,41% 51,16%
nada pela extensão do exercício, e, porque em 1944 .. 38,97% 47,72%
quase todos os países seja o orçamento anual, o
1945 _____ _ 41,70% 49,32%
déficit se refere também a um período anual. To­
davia, a anualidade orçamentária não é mais que 1946 .. 43,10% 52,63%
um esquema, ao passo que o déficit é um fato, Média
bastante real e penoso. Para a boa gestão das 1942-46 ................ 42,35% 51,13%
finanças, não basta que duas vêzes por ano se
cogite do equilíbrio das receitas e das despesas : O quadro acima demonstra que as receitas da
uma vez quanuo da elaboração do orçamento e União arrecadadas nos últimos quatro meses e no
outra quando da apuração do exercício. O equi­ período adicional do qüinqüênio — que aliás não
líbrio orçamentário exige um controle permanente, fornecem senão cêrca de 4% da receita anual —
e os órgãos de controle devem conhecer as flu­ foram quase tão elevados quanto nos primeiros
tuações regulares das receitas e despesas, levando- oito meses do exercício. Quanto à despesa, os pa-
as na devida consideração. mentos se avolumam também no segundo semes­
Uma perfeita coordenação das receitas e des­ tre, não sendo a diferença, porém, tão grande
pesas é virtualm ente impossível. Diariamente as quanto a que ocorre do lado da receita.
entradas e saídas de caixa acusam divergências, e O efeito real é que, mesmo no caso de um orça­
mesmo mensalmente os dois lados da balança m ento perfeitamente equilibrado, existe sempre
raramente se equilibram. Todavia, manifesta-se déficit em certos períodos do ano, assim como su­
nestas variações uma notável periodicidade, por­ perávit em outros. A esperança, ou mesmo a cer­
que parte das receitas, sobretudo dos impostos teza, de que o déficit desta espécie — que deno-
diretos, se arrecada dentro de um período deter­ minaremos “déficit flutuante” — seja coberto,
minado, e parte das despesas — vencimentos e posteriormente, pelo excedente das receitas, não
salários, pagamento de juros da dívida pública — dispensa o Govêrno da obrigação de procurar
é igualmente realizável em prazo fixo ou em pe­ meios para custear as despesas necessárias. E por­
ríodo limitado. que o déficit flutuante seja um fenômeno perió­
dico, até certo ponto inevitável, cumpre adotar, de
O ritmo da arrecadação federal é condicionado,
antemão, dispositivos tendentes a cobri-lo. Com
principalmente, pelo imposto sôbre a renda das
pessoas físicas e jurídicas, cobrado a partir do mês êste objetivo a lei orçamentária da União auto­
riza, anualmente, o Ministro da Fazenda a realizar
de agôsto. Daí resultar uma receita consideràvel-
operações de crédito “por antecipação da receita”,
mente mais acentuada no segundo semestre do
até, um m ontante determinado, que corresponde,
que no primeiro. De 1930 a 1941 — em doze
grosso modo, a 10-15 % da despesa to ta l. No
anos, portanto — a arrecadação de janeiro a julho
orçamento para o exercício de 1947, o limite das
representou, em média, 49,20% do total do exer­
operações de crédito foi fixado em um bilhão e
cício respectivo, enquanto que o período de agôsto
duzentos milhões de cruzeiros; na proposta para.
a dezembro, inclusive o período adicional, forne­
o exercício de 1948, recentem ente enviada ao-Le­
ceu 50,80 % da receita geral ( 5 ) . A partir dessa
gislativo, em um bilhão e trezentos milhões. À
época mais se acentuou a desigualdade das receitas
proporção que q sincronismo da receita e da. des­
mensais i Relativam ente aos últimos cinco anos, os
pesa se fôr aperfeiçoando, diminuirá a amplitude
resultados foram os seguintes : dêsses créditos. -- • - . ... . . . ...

IV. D É FIC IT R E T IL ÍN E O E D É F IC IT CÍCLICO


(5 ) M in isté rio d a F a z en d a , C om issão d e O rçam ento,
Proposta Orçamentária para 1943 — R elatório (R io , Cumpre que se distinga d o déficit flutuante
1 9 4 3 ), pág. 139. tquele que sè" verifica -ntr-fim tfo -exercício,' e -para -
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o qual talvez a melhor designação seja “déficit manteria estacionária durante mais de um século
efetivo” . Efetivo, ai, não quer dizer irremediável. Êsse é um efeito bem pouco provável.
Em tempos normais, é bastante freqüente ser um O “deficit-spending” é uma forma de inflação
pequeno déficit compensado no exercício seguinte — talvez uma infkção relativamente moderada e
por um superávit. Contudo, o fato de o período bem controlada — mas, de qualquer forma, uma
orçamentário encerrar-se com um excedente de ação inflacionista. Ainda mesmo que ela não con­
despesa apresenta, além da importância financeira, duza, como esperam seus propugnadores, a um
uma significação psicológica. O déficit do exer­ aumento da renda real, é quase certo que, aplica­
cício é mencionado em inúmeras estatísticas, na­ da em larga escala durante um período longo,
cionais e internacionais, e considerado como prova fará subir os preços e, conseqüentemente, a renda
de que as finanças do país em causa não sã,o nominal. Se a renda nacional, no exemplo citado,
boas — pelo menos de conformidade com a dou­ aumentou de apenss dez biliões de dólares anual­
trina clássica, pela qual o equilíbrio orçamen­ mente, 280 anos poderão escoar-se antes que o
tário é o supremo critério das finanças públicas. serviço da dívida exija 15 % da renda nacio­
É bem verdade que, a êsse respeito, as idéias nal (6 ) .
sofreram profundas modificações na última dé­ Conquanto a partir do princípio dêste século
cada de pre-guerra. Grande número de financistas haja a dívida pública de vários países aumentado,
teóricos e práticos, nos Estados Unidos, Inglaterra involuntàriamente, em ritmo a:nda mais acelerado
e outros países, defenderam e aplicaram a teoria que no caso imaginário citado, nenhum país se
de que o orçamento não é apenas um instrumento arriscaria a tal experiência, a qual conduziria a
para as atividades inerentes ao G ovêrno: êle uma permanente depreciação da moeda. Ademais,
deve ser, também, um impulsionador e regulador importa lembrar que, nos países em que as taxas
da economia nacional, e um orçamento desequili­ de juros são três ou qustro vêzes mais elevadas
brado em uma economia florescente é melhor que que nos Estados Unidos, chegar-se-ia muito ma’’s
um orçamento equilibrado em uma economia para- depressa ao ponto em que os juros da dívida pú­
lizada. Nesta premissa fundamentou-se a tese de blica absorveriam uma percentagem exagerada da
que, em determinadas circunstâncias, o Estado renda nacional, ou, o que é mais provável, a ex­
deve dispender mais do que auferir, causando pro­ periência terminaria por uma hiper-inflação, que
positadamente um déficit, ainda mesmo que, tèc- reduziria a dívida virtualmente a zero. O déficit
nicamente, seja possível equilibrar o orçamento. retilíneo é, pois, uma brincadeira com fogo, e não
se conhece nenhum caso em que, mais cedo ou
Entre os partidários desta teoria do “deficit-
mais tarde, não haja provocado uma inflação ver­
spending” percebem-se duas tendências : uns pre­ tical .
conizam o déficit retilíneo, ao passo que outros
se contentam com o déficit cíclico. Os primeiros, O déficit cíclico parece mais razoável. Ainda
seduzidos pela baixa taxa de juros existente nos que seus motivos determinantes não sejam os
Estados Unidos, esforçam-se por demonstrar que mesmos, o mecanismo assemelha-se ao do déficit
o govêrno poderia, durante séculos, custear grande flutuante. O desequilíbrio que se exprime pelo
parte de suas despesas por meio de empréstimo, déficit flutuante resulta da impossibilidade de
sem que os ônus fiscais relativos ao serviço da completa coordenação das receitas e despesas go­
dívida pública se tornassem insuportáveis. Cal­ vernamentais durante períodos muito curtos. No
cula-se, por exemplo, que um país que tenha uma decurso de um ano, elas se compensam. Dêsse
renda nacional de 130 bilhões de dólares e uma modo, sob o aspecto puramente fiscal, o orçamento
dívida de 300 biliões poderia emprestar, todos os ânuo é suficiente; mas sob o aspecto econômico,
o exercício anual ainda é muito curto.
anos, 6 % da renda nacional, a 2 % de juros, sem
que o serviço da dívida pública absorvesse, ao A evolução econômica apresenta forma cíclica,
fim de 110 anos, mais de 15 % da renda nacional isto é, períodos de prosperidade e de depressão se
E esta previsão seria ainda pessimista se baseada
na hipótese de não terem as grandes despesas go­ (6 ) E . D . D o m ar, T h e "B urden o i the D eb t” and
vernamentais financiadas pelo empréstimo qual­ the N ational In co m e. T h e A m erican E co n o m ic R eview ,
quer repercussão sôbre a renda nacional, que se D eze m b ro 1944, págs. 798-827.
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sucedem com tal regularidade, que se pode repre­ anos e são geralmente os mais m arcantes. A fim
sentá-los como um movimento cíclico. O fenô­ de atenuar seus efeitos perturbadores, pode o go­
meno é incontestável, mas as opiniões divergem verno preparar medidas econômicas e financeiras
no que se refere à duração dos ciclos. Análise que lhe permitam agir quando necessário.
mais aprofundada da conjuntura demonstrou que Antes da guerra exam:nava-se o problema prin­
existe não somente um ciclo de 7 a 11 anos, como cipalmente do ponto de vista do “deficit-spending”,
se acreditava no passado, mas diversos movimen­ ou seja, das grandes despesas governamentais,
tos cíclicos que se cortam, sendo difícil dizer qual efetuadas no intuito de estimular, durante a de­
o mais importante para a vida econômica. Na sua pressão, o consumo e a produção. Depois da
grande obra sôbre o assunto, Schumpeter (7 ) dis­ guerra e sob a pressão do mal inflacicnista, co­
criminou três ciclos principais. Um livro mais re­ meçou-se a cuidar também do outro hemiciclo da
cente (8 ), de dois especialistas norte-americanos, ccn ju n tu ra: o da prosperidade e dos exageros
refere-se a quatro, cuja duração média é de 54 especulativos, que levam à crise. Tam bém neste
anos, 18 anos, 9 anos e 41 meses, respectivamente. período incumbe ao Estado importante tare fa .
É claro que a política financeira não se pede Certas restrições na utilização de capitais, razoa­
adaptar às “longas ondas” de 54 anos. Mesmo os velmente aplicadas no momento apropriado, são
ciclos de 18 anos, que se manifestaram principal­ talvez mais eficazes que os •esforços feitos no sen­
mente na indústria de construção (9), a nda são tido de obter superávit orçamentário para amor­
demasiadamente longos para os planos financeiros tizar uma parte da dívida pública — como se fez
do govêrno. Pràticamente, o Estado pode fazer antes de 1929 nos Estados Unidos, pois, pela
previsões e provisões somente para os “minor bu- amortização da dívida, o dinheiro não desaparece
siness cycles” de 41 meses e os “major business da circulação : simplesmente passa das mãos dos
cycles”, que se renovam mais ou menos de 9 em 9 contribuintes para as mãos dos credores, que são,
alás, muitas vêzes as mesmas pessoas.
Os fundos acumulados durante a prosperidade,
(7 ) J o s e p h A. S c h u m p ete r, Business Cycles (N ew
Y ork, 1 9 3 9 ), 2 v o ls. ou durante a inflação, sob o controle do govêrno
podem ser “descongelados” e utilizados no fo­
(8 ) E d w a rd R . D ew ey and E d w in F . D a llin , Cycles,
the Science oi Prediction (N e w Y ork, 1947) . mento da economia, quando se delineiam os sinto-
mas de crise im inente. Destarte, o Estado ficará
( 9 ) C. D . L ong J r . , B uilding Cycles and the Theory
t<f In vestm en t (P rin c e to n , 1 9 4 0 ). — A lvin H . H a n se n , dispensado, pelo menos parcialmente, de aum entar
Fiscal Policy and Business Cycles (N e w Y ork, 1 9 4 1 ), seus próprios gastos, realizando despesas sem re­
pgs. 19-27. ceitas e acumulando novas dívidas.

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