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QUEIMADA VIVA
Souad
Na sua aldeia da Cisjordânia, como em tantas outras, o
amor antes do casamento era sinónimo de morte. Tendo
ficado grávida, um cunhado é encarregado de executar a
sentença: regá-la com gasolina e chegar-lhe fogo.
Terrivelmente queimada, Souad sobrevive por milagre.
No hospital, para onde a levam e onde se recusam a
tratá-la, a própria mãe tenta assassiná-la.
O relato de um milagre.
France Soir
France Dimanche
ELLE
Há relatos que nos deixam desarmados e incrédulos face
às atrocidades de que o Homem é capaz; Queimada Viva
é um desses casos.
Marianne
La Dernière Heure
QUEIMADA VIVA
MARIE-THÉRÉSE CUNY.
ÍNDICE
Memória .......................................... 11
Hanan? ........................................... 25
Assad ............................................ 59
O Segredo ........................................ 67
O Fogo .......................................... 91
Morrer ........................................... 95
Jacqueline ......................................... 103
MEMÓRIA
mesma maneira.
Talvez tenha sido dessa vez que ele nos atou às duas, a
mim e a Kainat, com as mãos atrás das costas, as pernas
atadas, um lenço a tapar-nos a boca para nos impedir de
gritar. Ficamos assim durante toda a noite, presas a uma
estaca no imenso estábulo, junto dos animais, mas pior
do que animais.
Não sei dizer com que idade, mas ainda não era
«madura», pelo que tinha menos de dez anos. Noura, a
mais velha, está comigo. Esqueci muitas coisas, mas não
o que vi com os meus olhos, aterrorizada, apesar de não
compreender que era um crime.
Vejo a minha mãe deitada no chão em cima de uma pele
de carneiro.
Desapareçam!»
E eu gostava dele.
Mas ela teve sorte, porque está morta. Pelo menos não
sofre.
Maboula!
medida que fui crescendo, mais ele lhe batia e mais ela
se ia embora.
- Não. Nunca.
- Amo-te.
- Também te amo.
Só muito mais tarde é que lhe quis mal por ter duvidado
da minha honra, por se ter aproveitado de mim quando
sabia perfeitamente o que eu estava a arriscar. Eu não
queria fazer amor com ele escondida numa vala, queria o
que querem todas as raparigas da minha aldeia. Casar,
ser depilada como deve ser, ter um belo vestido e ir
dormir na sua casa. Queria que ao nascer do sol ele
mostrasse a todos o lençol branco manchado. Queria
ouvir os aplausos das mulheres. Ele aproveitou-se do
meu receio, sabia que eu acabaria por ceder para não o
perder.
- Nunca te abandonarei.
- Amo-te.
- Até quando?
- Sim, mamã.
E outras vezes:
Vou falar com o teu pai. Espera por mim aqui amanhã, à
mesma hora.
O meu pai não disse nada, não ouvi dizer nada. Tenho
tanto medo que quase perco o fôlego. Ele chega uma boa
meia hora depois de mim. Por uma questão de
prudência, passo ao ataque: - Porque é que não foste
falar com o meu pai?
O ÚLTIMO ENCONTRO
- Vais mostrar-lhes.
- Estás grávida?
- Tiveste o período?
- Tive!
- Quem é?
Mesmo que eu acuse Faiez, o meu pai não irá ter com ele
para me casar. A culpa é minha e não dele. Um homem
que rouba a virgindade a uma mulher não é culpado, foi
ela que quis. Pior ainda, foi ela que pediu! Foi ela que
provocou o homem, porque é uma puta desavergonhada.
Não tenho nada para me defender. A minha ingenuidade,
o meu amor por ele, a sua promessa de casamento, até
mesmo o seu primeiro pedido feito ao meu pai, nada
disso conta. Na nossa terra, um homem que se respeite
não desposa a rapariga que ele próprio desflorou antes
do casamento.
- Olha para ti, minha filha... Não posso levar-te para casa
assim, já não podes viver lá em casa, viste como estás?
Quem foi?
- No campo.
Com o teu pai e o teu irmão, com a tua mãe, com o teu
cunhado, com toda a família. Se tu não morreres, o teu
irmão terá problemas com a polícia.
-Não!
Chorei muito. Chorei por saber que era a última vez que
o via? Chorei por ter um desejo enorme de ver os filhos
dele? Estavam à espera que a mulher desse à luz. Soube
mais tarde que tinha tido dois rapazes. Toda a família
deve tê-la admirado e felicitado.
- É monstruoso!
- Ah sim, é aquela!
É tudo. A enfermeira sai. Não se detém sequer no
corredor, não me pergunta quem sou, nada! Apenas um
vago gesto em direcção a uma das camas:
- É aquela!
Encontro uma.
Não responde.
- Aioua.
E para eles, ela está morta. Seja como for, é isso que
esperam.
- Para outro país, não sei qual, mas para qualquer parte
onde não se ouça falar mais disto.
- Sim... Obrigada.
Sei isso. Desde o início, há uns bons dez dias atrás, que
me vêm repetindo que uma mulher queimada é uma
coisa complicada e que não me devo meter. Só que
resolvi meter-me.
- Sei que têm uma filha que vos causa muitos problemas.
Um fantasma.
- Vou buscá-la.
- E a criança?
- Quando partimos?
- Chama-se Marouan.
- Achas?
positiva.
A SUÍÇA
Ainda que tivesse fome, esperava por ele como vira fazer
às mulheres da nossa terra. Com a diferença que tinha
sido eu a escolher aquele homem, que ninguém mo tinha
imposto e que o amava. Tudo isso devia ser bastante
surpreendente para ele. Um homem ocidental não está
habituado. Ao princípio, disseme: - Excelente! Agradeço-
te, poupa-me tempo e não tenho que me preocupar.
- O que é, mamã?
- A mamã queimou-se.
- É muito má!
- Não, o teu papá não pode fazer o que ele fez à mamã,
porque foi lá longe, no país onde nasci, e aconteceu há
muito tempo. A mamã há de explicar-te quando tu fores
ainda mais crescida.
- Mas eu quero!
Agora já posso.
- Bom-dia, doutora.
Antônio dizia-me:
- Não é verdade, querida, é um filme, é só um filme.
Apagou a televisão. Apertou-me nos braços para me
acalmar, repetindo:
Vivo com este medo dia e noite. Sei que estorvo a vida
dos outros.
Ficara lá, num orfanato. Não fui capaz de lhes dizer outra
coisa.
TESTEMUNHA SOBREVIVENTE
Jacqueline pediu-me, pois, que desse o meu testemunho
em nome da associação Surgir. Esperou que os meus
nervos mo permitissem fazer, depois da depressão que
me tinha abalado bruscamente, dado que eu tinha
conseguido construir uma vida normal, estava integrada
no meu novo país, tinha emprego, marido e filhos,
segurança. Estava melhor, embora ainda me sentisse
frágil perante aquele público formado por mulheres
européias. Ia falar-lhes de um mundo totalmente
diferente, de uma crueldade absolutamente inexplicável
para elas.
las sozinha.
- Não sei, acho que não. Não me atrevia por causa dos
teus pais...
- A que horas?
Tinha ciúmes.
- Ciúmes de quem?
- E agora? Hoje?
Ele parece muito feliz. Não esperava que fosse tão fácil.
Julgava que ele me censurava tanto por ter permitido
que o adotassem que me desprezasse. Mas nem sequer
levantou a questão. Beija-me, beijo-o e dizemos um ao
outro «adeus e até amanhã».
preciso que ele me perdoe por ter feito isso. Pensava que
o sangue me viria libertar, era demasiado ignorante. Não
tinha nada na cabeça, apenas medo! Poderá ele
compreender e perdoar-me? Poderei dizer tudo a esse
filho? E às minhas filhas? Como é que os três me vão
julgar?
- Pois é.
- E bonito!
- Está bem...
- Eu também...
Combinado?
- Impecável.
- Sim, tu contaste-nos...
- E onde é que achas que possa estar essa criança?
Olham-me nos olhos, com uma expressão singular.
- Não, mamã.
- Não, mamã.
- Ele enerva-me!
- Ele tem razão, assim como o teu pai tem razão. Tu dás
más respostas...
- Tens medo?
- Algum.
Mamã,
Obrigada.
Souad.