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17/04/24, 14:26 Miguel Salazar: Aceitei submeter-me a uma prática de conversão por medo dos meus pais | Setenta

Miguel Salazar: Aceitei submeter-me a uma prática de conversão por medo dos meus pais | Setenta e Quatro

MIGUEL SALAZAR: ACEITEI


SUBMETER-ME A UMA PRÁTICA DE
CONVERSÃO POR MEDO DOS MEUS
PAIS
INVESTIGAÇÃO 74 3 DEZEMBRO 2021

O jovem de 22 anos decidiu contar a sua história para evitar que mais pessoas caiam no engano
destas práticas de conversão de orientação sexual. Para que esta realidade não continue
escondida e, sobretudo, a ser ignorada pela sociedade. Para pôr fim à impunidade de quem
Ricardo Cabral Fernandes
promove e pratica estas falsas terapias.

S
entado num café na baixa do Porto, a voz calma e terna de Miguel Salazar não revela a
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violência verbal, psicológica e até física por que passou desde que o pastor da sua igreja
Aceitar Não, obrigado
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evangélica revelou à sua família que era homossexual. Fê-lo sem o seu consentimento e a sua vida
virou um inferno a partir dessa tarde. Tinha 16 anos, estava no 11º ano.

Foi pressionado pelos pais e pelo pastor a submeter-se a uma prática de conversão de orientação
sexual. Disseram-lhe que tinha uma “doença” que precisava de “curar”, que Deus não o aceitava, que
ia acabar no Inferno. Com medo da reação dos pais se recusasse, fez-lhes a vontade por cinco meses,
até ter a coragem de dizer “chega!”. Fez-lhes frente e rompeu com amizades, com a sua comunidade
evangélica – podes ler aqui a carta que escreveu. Cortou com o seu mundo para poder ser quem é,
para não viver uma vida dupla. Para poder ser feliz.

A sua mãe não é uma pessoa qualquer. Maria Helena Costa faz parte do grupo de estudos do partido
de extrema-direita Chega e é uma das principais ideólogas evangélicas da “ideologia de género”.
Publicou vários livros a defender essa narrativa de extrema-direita, participou numa conferência do
Partido Nacional Renovador (hoje Ergue-te!) em que a promoveu e depois abraçou o Chega. Hoje,
publica artigos no Observador.

Maria Helena Costa não perde uma oportunidade para vir a público dar a cara pela sua cruzada contra
o que diz ser uma “agenda globalista político-ideológica” de esquerda. Escreveu-o em 18 de
setembro de 2020 no site de extrema-direita Notícias Viriato e republicou o mesmo texto no jornal
Observador, a 5 de novembro de 2021.

Hoje, com 22 anos de idade, Miguel Salazar conta-nos a sua história para ajudar pessoas que possam
estar na mesma situação e outras que possam vir a confrontar-se com isto. “Para que não caiam no
engano” destas práticas de conversão, garantiu em entrevista ao Setenta e Quatro. Para que esta
realidade não continue escondida e, sobretudo, a ser ignorada pela sociedade. Para pôr fim à
impunidade de quem promove e faz estas torturas.

Contactada pelo Setenta e Quatro, Maria Helena Costa desmentiu ter obrigado o filho a submeter-se
a uma prática de conversão e negou que o episódio de violência física tenha acontecido tal como o
filho contou, à exceção de uma chapada, justificando-a por desobediência aos pais. Acusou o filho de
propagar mentiras por motivos puramente ideológicos. O pai de Miguel Salazar recusou-se a falar
com o Setenta e Quatro.

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Como foste parar às práticas de conversão de orientação sexual?

Conversei com o meu professor da igreja sobre a minha orientação sexual. Acabei por lhe contar e,
apesar de lhe ter pedido segredo, disse que se não falasse em casa que iria eventualmente dizer. Até
que um dia cheguei a casa e toda a gente sabia, já tinha sido comunicado ao pastor e à mulher do
pastor. Também me disseram que já tinham arranjado uma solução. Fizeram uma reunião e os seis – o
pastor, a mulher do pastor, o meu pai, a minha mãe, o meu professor e a mulher do professor –
disseram que tinham decidido que o ideal era eu ir a um psicólogo que também fazia parte da
Assembleia de Deus e era presidente do grupo [evangélico] universitário. Decidiram que para me
curar o ideal era ir conversar com ele.

Essa narrativa da cura estava muito presente?

Não, nem era sequer um tema que se falasse muito na igreja. Até hoje, se me recordo de ouvir alguma
conversa sobre questões LGBT, foi muito raro. Era um tema que as pessoas evitavam falar,
principalmente quando descobriram que sou [gay]. Nunca quiseram entrar muito em confronto,
nunca tocaram nesse assunto, mas sempre que se falava toda a gente sabia que eram contra, que
não havia nenhuma possibilidade de aceitação de uma orientação sexual que não fosse a
heteronormativa.

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Miguel Salazar já saiu de casa dos pais | Design de Rafael Medeiros

Esse roubo da tua escolha em te assumires dá-te raiva? É de uma enorme


violência.

Fez-me confusão. Quando fui falar com o meu professor, disse-lhe: "vou-te contar uma coisa, mas
promete que não contas a ninguém". Ele prometeu-me, contei-lhe e ele disse que ia ter de contar.
Faz-me mais confusão terem-me mentido do que se calhar propriamente falar por mim.
Sinceramente, não sei até hoje como iria abordar a situação [de se assumir]. Iria acabar por contar,
não sei como, mas tinha de ser eu a saber como fazê-lo, não era tirarem-me isso. Acho que só aceitei.

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Depois foste submetido a essas ditas “terapias”. Quanto tempo lá estiveste?
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Devo ter ido no máximo a quatro ou cinco sessões. Era uma por
mês, por isso cinco meses. Mas deixei de ir quando disse aos meus
pais e ao psicólogo que não queria mais.

Que aconteceu nessas sessões? "Foi basicamente chapada,


puxa cabelo, chapada, puxa
O psicólogo conversou sobre a minha relação com o meu pai e com
cabelo. Chegou uma altura em
a minha mãe, mas acima de tudo com o meu pai. Quis saber da que já estava farto de apanhar,
minha vida até ao momento, sobre como era na escola, os episódios comecei a chorar, baixei a
de bullying que tive na escola e depois começou a centrar-se muito cabeça e o meu pai levantou-se,
sobre a minha relação com o meu pai e com Deus. Ia eventualmente chegou a mão toda para trás e
acabar por tocar nesse assunto [orientação sexual], derivado dessas deu-me uma chapada com
perguntas. Mas como eu não estava ali com muita paciência para imensa força na cabeça."
falar sobre a minha vida familiar, acabou também por me ajudar a
perceber que aquilo era só ridículo.

Sentiste uma certa indicação ou postura dele de a


homossexualidade ser um pecado ou algo curável?

Apesar de ao início não tocar muito nesse assunto, primeiro queria conhecer-me, ele não queria falar
do assunto que os meus pais e pastores lhe tinham dito que era para falar. Ele sabia claramente qual
era o propósito e não me deu qualquer sensação de alívio de 'posso confiar nele a minha sexualidade,
de sentir-me bem e seguro'.

Foste lá parar pressionado pelos teus pais.

Sim. Tive medo da reação deles caso dissesse que não queria ir à “terapia”. Foi no dia em que me
ligaram – estava eu na igreja – a dizer que quando acabasse fosse para casa. Estava um ambiente
muito tenso, a minha mãe estava a chorar. Quando me disseram que lhe contaram, aí percebi que
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aquilo era literalmente a reação de alguém ter morrido. Então, quando me falaram de haver um
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psicólogo para eu falar e me “ajudar”, sabia que não era de todo boa ideia dizer que não queria ir.
Aceitei e acabei por ir.

Mas depois tiveste a coragem de dizer 'não', disseste “chega”.

A minha relação com os meus pais sempre foi de muita discussão e debate sobre várias coisas,
sempre tivemos opiniões opostas, mesmo em termos religiosos. Se calhar isso ajudou-me um
bocado. Eu na altura praticava Kung Fu, comecei a chegar atrasado e tive um professor que achou
estranho. Um dia, no final de um treino, decidiu falar comigo à parte e contei-lhe: estava a ir a
consultas no psicólogo por um problema de homossexualidade. Ele perguntou-me qual era o
problema e começou a falar comigo, e isso também foi algo que me ajudou a decidir 'okay, não vou a
mais nada'. Foi tanto por mim como por ajuda de outras pessoas.

Qual foi o impacto psicológico que estas ditas "terapias" tiveram em ti?

Já senti culpa em ser gay, mas não senti culpa por ter aceite ir para as "terapias", porque foi a melhor
forma de me proteger e [naquele momento] não descambar para algo ainda pior. Já apanhei em casa
por causa dessa situação [ser gay].

Apanhaste, como assim?

Violência física. Recusei-me a dizer que o normal é um homem e uma mulher terem sexo.

Quem te bateu?

O meu pai e a minha mãe.

Foi caso único ou sistemático?


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Clicando no botão de aceitação dá o seu acordo para este fim. Foi caso único. De resto foi só mais a nível de violência verbal.
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Qual o conteúdo dessa violência verbal?

A violência verbal começou quando me recusei a continuar a ir à "terapia". Saí da "terapia", virei-me
para o meu pai e disse: "não quero ir mais". Ele disse: "mas tu tens um problema e tens de o curar". Eu
disse-lhe que "não tenho nenhuma doença, por isso não preciso de cura". A partir daí começou a falar
da minha relação com Deus e que Deus não me aceita. Disse-lhe que Deus me aceita.

Depois de um silêncio confrangedor, fui para o treino [de Kung Fu] e quando cheguei a casa a minha
mãe estava super fula, virou-se para mim e a primeira coisa que disse foi: "Então, Deus não está
contra ti?" E eu: "Não". Mandou-me tomar banho, vestir o pijama e quando cheguei à sala ela estava a
olhar para mim e a perguntar-me se Deus não estava contra mim, se era na boa ser homossexual aos
olhos de Deus.

Continuei na minha, ela foi buscar a Bíblia, o meu pai estava muito atento a olhar para mim e eu disse-
lhe, ironicamente, "obrigado". Então, ela sentou-se, abriu a Bíblia num texto que gostam muito de usar
e começou a pedir-me para ler aquilo. Só que eu já tinha a minha interpretação daquele texto, já me
tinha informado e visto outros pontos de vista, a pergunta dela não era genuína. Só queria uma
resposta e a que eu tinha não era a que ela queria, então calei-me. "O que está aqui escrito? O que
está aqui escrito?", disse ela sempre a insistir, até me dar uma chapada com as costas da mão. "O que
está aqui escrito?", voltou-me a dar uma chapada. "O que está aqui escrito?", puxou-me o cabelo.

Foi basicamente chapada, puxa cabelo, chapada, puxa cabelo. Chegou uma altura em que já estava
farto de apanhar, comecei a chorar, baixei a cabeça e o meu pai levantou-se, chegou a mão toda para
trás e deu-me uma chapada com imensa força na cabeça.

Olhei para ele – estava com os olhos super vermelhos e aguados de raiva – e ele foi fechar a porta da
sala para a minha avó não ouvir. Tirou o casaco e começou a mexer os braços – estava pronto para
me dar outra. Foi uma chapada com tanta força que a minha mãe se assustou e olhou para ele
dizendo-lhe para parar, porque tinha noção que se apanhasse outra com tanta ou mais força ia parar
ao hospital.

Cansado, disse-lhe que o normal é um homem fazer sexo com uma mulher. Ela até tinha dito que
podia dizer um palavrão para dizer o que é normal – foder. Foi preciso chegar àquele momento para
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perceber que devia dizer aquilo mesmo contra a minha consciência. A minha mãe fechou a Bíblia,
pousou-a, sentaram-se no sofá e começaram a falar como se não tivesse acontecido nada.

Não me voltaram a bater e mais tarde o meu pai pediu-me desculpa por me ter batido, ainda que não
tenha desenvolvido a questão de estar errado e daquilo ter sido uma agressão homofóbica. Para a
minha mãe, aquilo foi por eu ter sido mal-educado. Ainda hoje está convicta que é da minha cabeça,
por eu ter interpretado isto desta forma [agressão homofóbica].

A partir daí, as agressões verbais passaram a ser à base de [a homossexualidade] ser uma doença,
que vou para o Inferno.

"Por causa dos stresses em casa, os meus sonos


começaram a ficar descontrolados, não conseguia dormir
mais de duas horas seguidas, e isto todas as noites.
Durante bastante tempo não houve uma única noite que
conseguisse ter um sono descansado."

Eram todos os dias?

A uma certa altura chegou a ser diário, sim, quando era tudo muito quente [o saberem que era gay].
Houve várias discussões e esses termos – "estás na merda e não queres sair" - sei lá, era tanta coisa.
Na altura enchi uma página bastante grande de coisas que me tinham dito.

Como fizeste para lidar com isso?

Tinha os meus amigos e amigas. Tive também apoio de duas professoras de História do 11º e 12º
anos. Davam-me um abraço para me acalmar e assim. Às vezes chegava à escola com um ar que toda
a gente percebia que tinha tido um stress em casa. [As professoras] Passavam algum tempo comigo
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Isolavas-te em casa?

Desde essa altura que odeio estar em casa. Agora vivo sozinho e raramente estou em casa, habituei-
me a não estar em casa.

Isolavas-te no quarto?

Sim, estava sempre no quarto. Chegou a haver discussões pelo facto de estar no quarto e não
conviver em casa. Mas houve uma altura, quando ela se começou a meter na política, que lhes disse
que não comia mais à mesa com eles. Comecei a ficar no quarto e, independentemente da hora a que
acabassem de comer, saíam da mesa e eu ia comer. Comer à mesa com pessoas que estão
diariamente numa luta política contra mim não é uma coisa que me agrade. Essas foram as medidas
que tomei antes da medida final de sair de casa. Tem sido assim desde que me assumi - ou
assumiram por mim à minha família sem a minha autorização.

Ficaste fechado em casa com os teus pais durante a pandemia.

Sim, passei literalmente a pandemia toda no quarto. Quando ia à cozinha comer, comia sozinho.
Houve uma ou outra vez em que saí de casa, para apanhar ar ou assim.

Por causa dos stresses em casa, os meus sonos começaram a ficar descontrolados, não conseguia
dormir mais de duas horas seguidas, e isto todas as noites. Durante bastante tempo não houve uma
única noite que conseguisse ter um sono descansado, mesmo quando não tinha aulas. Também
fiquei com os apetites descontroladas e às vezes ficava muito tempo sem comer, nem sequer tinha
fome, ou dava-me enjoo só de pensar em comer. Às vezes ficava cheio de fome.

Outra coisa que me aconteceu foi ter ficado super frio a nível de emoções. Não consigo chorar há
imenso tempo. Sei lá, desde o 12º ano até hoje, se chorei cinco vezes foi muito, porque fiquei frio. Ver
a minha mãe chorar não me faz qualquer confusão. São coisas más e comecei a sentir que devia ter
apoio, então comecei a ir a consultas no Centro Gis, e isso ajudou-me bastante. Ia às escondidas. Saía
com a minha amiga e arranjava sempre uma desculpa. Agora já consigo dormir bem.
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Se uma pessoa jovem não tiver apoio externo, é muito difícil escapar a estas
pressões familiares.

Dependendo da relação que as pessoas têm com a sua família, é muito chato se não for uma boa
relação, principalmente se não tiverem amigos e amigas que sejam inclusivos nessa questão. Se
nenhum desses factores for uma realidade na vida da pessoa e se a sua integração no meio religioso
for muito boa, como era a minha, basicamente dar esse passo será acabar com isso tudo. Se uma
pessoa não tiver onde se amparar ou refugiar, vai ser muito difícil lidar com essa situação durante
anos e anos a fio.

Senti-me confortável a fazer isso, porque, sabendo que a reação seria má, me pude refugiar em
algumas pessoas da minha família, mas principalmente em amigos e amigas. Mesmo dentro da
igreja.

És evangélico desde sempre.

Nunca fui católico, cresci mesmo nos bancos da igreja.

"Percebi que o melhor


Fizeste a escola dominical, toda a tua rede social estava era aceitar que era [gay] e ter
ancorada na igreja. outra visão das pessoas da
minha comunidade religiosa e
Sim, os meus primeiros contactos e amizades foram na igreja, ainda das que não são da minha
que ao longo dos anos tenha mudado de igreja três vezes, mas igreja, ver opiniões sobre a
quando mudei ainda era muito criança. Por isso, a igreja onde estive homossexualidade e outros
mais tempo, 14/15 anos, foi onde estabeleci muitas das amizades – assuntos LGBT."
algumas já acabei com elas, mas ainda tenho pessoas minhas
amigas.

Num ambiente de crescimento numa igreja evangélica,


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onde a homossexualidade não é tolerada ou é tabu, quando é que tomaste
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consciência dos obstáculos que terias dentro da igreja?

Sempre soube que era gay, sei-o desde que me lembro de existir. É verdade que durante muitos anos
tive uma mentalidade homofóbica e, mesmo a nível escolar, quando havia debates defendia o lado
homofóbico da discussão. Nas minhas redes sociais, às vezes também calhava fazer publicações
homofóbicas. A partir do momento que comecei a interagir com pessoas a que não estava habituado,
fora da minha rede, comecei a repensar muito daquilo que eram as minhas ideias.

Honestamente, já estava cansado de ter duas vidas diferentes: estar com rapazes e depois estar a
falar mal de rapazes que estão com rapazes. Vivia uma vida dupla. Era inteiramente capaz de ter um
momento íntimo com um rapaz e no dia a seguir falar mal da homossexualidade. E estava de alguma
forma confortável com isso.

Houve um momento, um clique, em que paraste com essa vida dupla ou foi tudo
precipitado por causa das ações do professor?

Antes já tinha aceitado que era homossexual. Apesar de saber que gostava de rapazes, ainda houve
um momento em que tentei ver se me conseguia curar.

Acreditaste que era possível?

Sim, acreditei que se calhar era possível. Fiz algumas coisas.

Como assim?

Experimentei ver pornografia heterossexual para ver me estimulava alguma coisa.

Aos 15, 16 anos?

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Tentaste mais coisas?

Tentei. Olhar para uma rapariga que considerasse bonita e tentar sentir algum tipo de atração ou
imaginar se era possível ter alguma coisa além de uma amizade. Mas nunca foi possível, apesar de
durante três anos ter fingido gostar de uma rapariga da minha escola para tentar.

Sofri bullying homofóbico até ao 9º ano, mesmo sendo homofóbico, quando dizia que era hetero.
Durante três anos fizeram-me insultos homofóbicos e, para tentar fugir dessa imagem, fingi que
gostava de uma rapariga da minha turma. Mesmo tentando fingir era impossível, não conseguia sentir
qualquer tipo... Chegou um momento em que percebi que o melhor era começar a aceitar que era e
ter outra visão das pessoas da minha comunidade religiosa e das que não são da minha igreja, tentar
ver outras opiniões sobre a homossexualidade e outros assuntos LGBT.

Quando comecei a ler sobre isso, e a procurar outras interpretações da Bíblia além daquelas que me
tinham mostrado – é um bocado difícil sair de um ponto de vista que sempre te foi incutido –, vi
outras perspetivas. Não achei necessário deixar de ser evangélico. Ainda me considero evangélico e
não descartei de todo qualquer ensinamento, simplesmente no que toca a estas questões achei que
podia reformular as minhas ideias. Isso ajudou a sentir-me confortável e que não é por ser gay que
vou para o Inferno.

"Achei que dar o meu exemplo pode ajudar pessoas que


estejam nessa situação e outras que podem vir a
confrontar-se com isto. Para que não caiam no engano.
Sei que há muitas coisas escondidas, principalmente na
comunidade religiosa."

Depois do teu professor dominical te ter obrigado a assumir publicamente,


sentiste que houve mais debate na tua comunidade religiosa sobre estes
assuntos?
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Algumas das primeiras pessoas a quem me assumi na vida foram duas amigas na igreja. Já tinha
debates com elas sobre isso e elas já eram a favor, e eu dava aquela de ser contra, até que um dia
assumi. Falando na perspetiva delas, era 'okay, nós defendemos isto que é contrário ao que nos é
ensinado", agora é mais 'okay, o meu amigo é gay, está aqui na igreja e precisa de ser protegido'.

Sentiste que houve mais debate coletivo?

O pastor foi embora e veio outro, mais novo, mais a par dos assuntos do dia-a-dia. Tem mais facilidade
em falar sobre questões políticas relacionadas com LGBT. O que me fez mesmo sair da igreja foi
quando num culto começaram a falar sobre transsexualidade e que o pastor disse mentiras e passou
notícias falsas.

Quais?

Disse que em Nova Iorque [nos Estados Unidos] tinham aprovado 31 géneros, o que é mentira. Foi
literalmente buscar isto a um site de notícias falsas. Estava a dizer isto para pessoas maioritariamente
idosas sem acesso a informação. Vão simplesmente aceitar. Fez-me confusão olhar para a leviandade
e impunidade com que o estavam a fazer e saí a meio do culto, mesmo sendo porteiro na igreja. Fui-
me embora.

Ele falou comigo, claro que a dar-me na cabeça por me ter ido embora, tendo em conta que estava a
exercer funções, mas começou a perguntar se aquele assunto estava a ser incómodo e porquê.
Quando percebeu que estava numa de continuar com a minha [posição] e que não havia forma de a
mudar, parou. A partir daí deixei de ir. Até ao momento, se houve vez em que se tenha falado desses
assuntos foi com pessoas jovens em reuniões, nesse culto em específico ou noutro culto sobre um
tema não relacionado em que a meio se toca nestes assuntos de forma depreciativa.

De que forma depreciativa?

Há formas diferentes de verem a homossexualidade. Há pessoas que acham que é uma escolha, há
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pessoas (como o antigo pastor) que acham que não se pode mudar isso. Não se pode viver uma vida

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homossexual, tens de optar pelo celibato ou então por uma vida heterossexual. É assim que funciona
dentro da igreja, não há possibilidade para relações homossexuais: ou ficas sozinho ou com alguém
do sexo oposto.

Porque é que tomaste a decisão de falar publicamente


sobre isto?

Estou envolvido na política e debruço-me há algum tempo sobre


questões LGBT. Tento contribuir para mudanças necessárias, mas "Só tenho de cortar relações,
neste caso em específico – e já que as pessoas começaram a ela [a mãe] apenas está a
discutir o facto de existirem “terapias” de conversão – achei que dar
ajudar pessoas que querem
o meu exemplo pode ajudar pessoas que estejam nessa situação e
fazer mal a pessoas como eu."
outras que podem vir a confrontar-se com isto. Para que não caiam
no engano. Sei que há muitas coisas escondidas, principalmente na
comunidade religiosa.

Essa coragem é tanto maior quando és filho de quem és. A tua mãe, Maria Helena
Costa, é uma das principais ideólogas evangélicas da "ideologia de género", foi
candidata pelo Chega nas autárquicas e é dirigente nacional do partido de
extrema-direita. Sendo gay e tendo uma mãe que combate a comunidade LGBT,
como vês esse choque?

Foi muito por uma questão de habituação. Não foi sempre uma realidade. O facto de eu ser gay
tornou-se uma realidade dentro de casa. Foi um caminho que foi acontecendo e foi uma questão de
me habituar. Sempre houve muito confronto, muita discussão, tanto política como religiosa, mas
praticamente não tenho já relação com ela. Acabei por aceitar que ela não vai mudar, é essa a luta
dela, e se o facto de eu ser homossexual não a faz mudar – não digo mudar de ideias totalmente – e
deixar de combater os homossexuais, então não tenho nada para dizer. Só tenho de cortar relações,
ela apenas está a ajudar pessoas que querem fazer mal a pessoas como eu. Enquanto estava
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dependente dela, apenas tinha que aceitar...agora...
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Como rompeste com essa dependência económica?

Acabei a licenciatura, arrendei um quarto e passei a viver sozinho. Ainda nem tinha começado a
trabalhar e já tinha saído de casa. Porque tinha trabalhado no verão durante dois meses e juntei
dinheiro para pagar as rendas.

Qual a relação entre a tua mãe ser ideóloga da "ideologia de género" e o facto de
seres homossexual?

Sei que antes disso [de me assumir], ainda que ela tocasse nesse assunto uma vez ou outra, não era
de todo a prioridade dela. Antes era estudar outras religiões e escrever sobre isso. Reparei que foi a
partir do momento em que se tornou uma realidade na casa dela que começou a trabalhar
ativamente nessas questões. Quando entrei na política, na Juventude Socialista, o primeiro
comentário que ouvi foi: "pronto, já temos esquerda na família".

A partir daí também sentiu necessidade de ir para a política, até aí apenas exercia o direito cívico de
votar. Quando começou a debruçar-se sobre questões LGBT também terá sentido que fazia mais
sentido estar na política a fazer isso.

Foram entregues na Assembleia da República duas propostas de projeto-lei para


criminalizar quem faça as ditas "terapias" de conversão de orientação sexual,
uma do Bloco de Esquerda e outra da deputada independente Cristina Rodrigues.
Que achas destes projetos-lei?

Tudo o que venha a ser implementado nesta área [LGBT] vem sempre tarde, mas realmente as
"terapias" de conversão só começaram a ser faladas muito recentemente. Não percebo porquê,
talvez as pessoas tivessem a ideia que era algo que acontecia mais nos Estados Unidos e não aqui.

Acontecem há muito tempo?


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17/04/24, 14:26 Miguel Salazar: Aceitei submeter-me a uma prática de conversão por medo dos meus pais | Setenta e Quatro

Sim, ainda que seja escondido. Acontecem mais em espaços de comunidades religiosas, com uma
componente mais espiritual e não tanto clínica. A partir do momento em que as pessoas têm a ideia
que uma orientação sexual não heteronormativa é uma doença, acham que há sempre uma cura, ou
que deve haver um tratamento se não houver uma cura. Seja por via de um milagre, de intervenção
espiritual ou de um psicólogo ou psiquiatra.

Tenho noção que há pessoas que estão num contexto semelhante no qual estive numa igreja e ser
homossexual, e que não têm tanta sorte em ter relações diversificadas que lhes permitam sentir-se
seguras em caso de se assumirem.

Conheces mais casos desses?

Conheço e sei que há pessoas que são e que vivem escondidas. Mesmo não tendo falado com elas
sobre isso, já as encontrei em aplicações de encontros. Não falei diretamente com elas por não saber
até que ponto se sentem confortáveis com isso, porque depois também vou acompanhando as suas
redes sociais e continuam ativamente na igreja.

É bastante difícil pensar como se ajuda essas pessoas, é diferente estar ou não estar inserido numa
comunidade religiosa. As pessoas criam literalmente duas famílias: a família onde nascem e outra na
qual se encontram constantemente ao longo da semana e ao domingo. É muito difícil quebrar essa
barreira.

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17/04/24, 14:26 Miguel Salazar: Aceitei submeter-me a uma prática de conversão por medo dos meus pais | Setenta e Quatro

Práticas de conversão de orientação sexual: Se a minha igreja não me aceitou como sou, Memórias de homossexuais e lésbicas no
as torturas que ainda acontecem em só me restou abandoná-la Estado Novo: da repressão à resistência
Portugal quotidiana

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