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A geografia do Liberalismo | 200 anos da Revolução Liberal | PÚBLICO 25/10/23, 12:59

A geografia do Liberalismo
O Porto tornou-se um lugar central na geografia da
instauração do regime Liberal que se consolida com
a Regeneração, em 1851. É aí que se faz o primeiro
pronunciamento e se desenrola o principal episódio
da guerra civil, num mapa de instabilidade e conflito
que abrange Vila Franca de Xira, Angra ou Évora-
Monte. Último ensaio da série que o PÚBLICO
dedicou aos 200 anos do da Revolução Liberal
Conceição Meireles Pereira 27 de Agosto de 2020, 6:00

O Porto tornou-se um lugar central na geografia da instauração do regime


Liberal que se consolida com a Regeneração, em 1851. É aí que se faz o
primeiro pronunciamento e se desenrola o principal episódio da guerra
civil, num mapa de instabilidade e conflito que abrange Vila Franca de
Xira, Angra ou Évora-Monte. Último ensaio da série que o PÚBLICO
dedicou aos 200 anos do da Revolução Liberal
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Estava reservada à boa, e leal, e heróica Cidade do Porto a nova glória de


restaurar a legítima liberdade dos Portugueses: cumpria a esta segunda
Capital do Reino obrar um Feito memorável, que salvasse a Pátria
comum….

(Diário Nacional, n.º 1, 26.8.1820)

Alguns lugares marcaram particularmente a geografia do Liberalismo,


desde a eclosão da Revolução até ao fim da segunda guerra civil, ao longo
de um conturbado período de 27 anos. O Porto foi o rastilho. Por que
motivo esta cidade encabeçou a revolta contra a insatisfação que crescia
desde as invasões napoleónicas e se agravara com a tutela britânica do
país que assumira o poder desde a saída da Corte? Entre outros fatores,
devido ao seu cosmopolitismo, suscitado pelo trato mercantil que sempre
lhe propiciara a circulação de ideias e a convivência com numerosos
estrangeiros, tanto de passagem como residentes. Cidade do trabalho,
burguesa e reivindicativa, nos inícios de 1818 foi palco da criação do
Sinédrio, iniciativa de Manuel Fernandes Tomás, que, usando do maior
segredo para escapar ao radar policial, agregou até 1820 mais doze
elementos, permitindo-lhe divulgar jornais e livros proibidos, estabelecer
contactos com alguns revolucionários da capital e com personalidades
civis e militares de vários pontos do Norte do país, bem como realizar
reuniões com emissários espanhóis.

O 24 de Agosto amanheceu com um pronunciamento militar no Campo de


Santo Ovídio (atual Praça da República) e uma salva de 21 tiros anunciou
o início da Revolução; seguiram depois para a Câmara Municipal, onde os
seus representantes e a vereação se reuniram, tendo deliberado criar a
Junta Provisional do Governo Supremo do Reino.

Do Porto, a Revolução disseminou-se por outros centros urbanos do país;


na capital ocorreu um levantamento a 15 de setembro, altura em que os
revolucionários do Norte iniciavam a sua marcha sobre Lisboa e, em 28 de
setembro, Norte e Sul fundiram-se numa nova Junta Provisional, sendo
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um dos seus encargos a organização de eleições para as Cortes


Constituintes, que decorreram em dezembro.

A dinâmica deste movimento revolucionário que se iniciara em agosto não


esteve todavia isenta de fações, sentia-se a tensão entre o “partido
militar”, liderado por António Silveira e Sebastião Cabreira, e o grupo dos
civis e homens de leis, em que se destacavam Fernandes Tomás, Ferreira
Borges e Silva Carvalho. Se o retorno ao absolutismo a todos preocupava,
por outro lado, os liberais estavam longe de serem um grupo coeso e
unido.

Regressado do Brasil em julho de 1821, por solicitação das Constituintes,


D. João VI tinha já jurado as bases da futura Constituição e, não obstante
infundir em muitos liberais alguma desconfiança, comportar-se-ia como
um monarca constitucional no biénio subsequente. A ameaça absolutista
residia, ainda assim, no seio da família real, nas pessoas da rainha Carlota
Joaquina e de seu filho D. Miguel, que aproveitaram a independência
brasileira (7 de setembro de 1822) – temida por todos mas
particularmente dura para os liberais, que se assim viam ruir um dos
objetivos da Revolução, que era reconduzir o Brasil à condição de colónia
– para capitalizarem o descontentamento geral dos setores mais
tradicionalistas da população, alentar a campanha de descredibilização e
culpabilização das Cortes, recusando-se até a rainha a jurar a
Constituição aprovada em 23 de setembro.

A conjuntura ser-lhes-ia ainda mais favorável no ano seguinte, em abril,


com a Espanha a sentar Fernando VII no trono e a restaurar o regime
absoluto, com a ajuda do exército francês mandatado pela Santa Aliança.
Dois meses depois, em 27 maio de 1823, uma insurreição armada em Vila
Franca de Xira, liderada pelo infante D. Miguel, proclamava também a
restauração do absolutismo em Portugal, confiante no auxílio francês,
eventualmente projetando com sua mãe a abdicação de D. João VI. Foi
todavia o rei que, no final do mês, se deslocou a Vila Franca e obrigou o

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filho a submeter-se. Mas no seu retorno vitorioso a Lisboa, algo de


substancial tinha mudado – D. João VI optou por uma estratégia de
compromisso, dissolvendo as Cortes e prometendo a modificação da
Constituição, na prática, o regime tornara-se absoluto – era o primeiro
sinal de alarme para muitos liberais, que optaram pelo exílio.

A Vilafrancada mostrara a força do movimento anticonstitucional, dera o


mote à contrarrevolução, com uma ala centrista simbolizada pelo rei e seu
governo e outra extremista protagonizada por Carlota Joaquina e D.
Miguel. Esta voltaria a conspirar e provocou outra insubordinação no ano
seguinte – a Abrilada – colocando novamente em confronto o rei e o
infante, mas mais uma vez o primeiro subjugou o segundo, que teve de
exilar-se, enquanto D. João VI consolidava o seu absolutismo “moderado”.
Muitos liberais prosseguiam o caminho do desterro.

Com a morte do rei (março de 1826) colocaram-se ao Liberalismo


português novos quadros políticos e também geográficos. D. Pedro, seu
primogénito e imperador do Brasil, foi aclamado D. Pedro IV mas logo
abdicou a favor de sua filha de sete anos, Maria da Glória, na condição de
esta se casar com o tio Miguel, a quem caberia a regência do reino –
perseguia uma política de conciliação, contornando alguns traços mais
“radicais” do vintismo, como revela a outorga da Carta Constitucional que
substituiu a Constituição de 1822.

Em fevereiro de 1828, D. Miguel regressou de Viena (onde fizera o


juramento da Carta, que inclusive renovou à chegada, juntamente com os
votos de fidelidade a D. Pedro e D. Maria II) mas as suas ideias não tinham
mudado: aproveitando o clima de forte tensão no país, onde se notava o
predomínio dos absolutistas, e o apoio da Espanha e da Áustria,
igualmente favoráveis à restauração do Absolutismo, dissolveu as Cortes
no mês seguinte, para as convocar em maio – por ordens, à maneira
antiga – sendo aí aclamado rei absoluto em julho. Era o início do “terror”
miguelista que durou seis anos e, além de execuções, assassinatos e

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confisco de bens, fez milhares de presos enquanto outros milhares


fugiram.

O derrube deste regime despótico só se podia preparar fora do país, do


continente pelo menos. Os exilados – sobretudo em Inglaterra e em
França, países que nunca reconheceram o regime de D. Miguel –
mobilizaram-se para esse desiderato. Em 1831, D. Pedro abdicou do trono
brasileiro e tomou o comando da causa liberal; dirigiu-se àqueles países
para recolher apoios e fundos com o fito de organizar uma expedição
militar que libertaria Portugal da sujeição absolutista.

A reunião das forças liberais deu-se na ilha Terceira, que logo em 1828 se
revoltara contra o rei absoluto e foi recebendo milhares de exilados,
formando um governo provisório sob a regência de Palmela. Lisboa bem
tentara submeter a ilha pelas armas mas, ao invés, todo o arquipélago
açoriano foi conquistado pelos liberais, aí fazendo um “embrião de
Estado” com base na legislação de Mouzinho da Silveira. A cidade de
Angra foi então nomeada capital do reino (março de 1830) e pelos
serviços prestados ao movimento liberal logo passaria a denominar-se
Angra do Heroísmo (decreto de 15 de janeiro de 1837).

Em junho de 1832, a esquadra comandada pelo britânico Rose George


Sartorius rumou à costa norte de Portugal com sessenta navios e mais de
8 mil homens (muitos deles mercenários e auxiliares de diversas
nacionalidades) tendo pretendido desembarcar em Vila do Conde, mas tal
foi impedido pelas autoridades locais (o padrão comemorativo aí erguido
evoca essa tentativa). O desembarque acabou por dar-se um pouco mais
a sul, na tarde de 8 de julho, na Praia dos Ladrões, em Arnosa de
Pampelido, onde seria erigido o Obelisco da Memória.

Os “7500 bravos do Mindelo” ou “Exército Libertador”, que incluía o


Batalhão dos Académicos integrado por Garrett e Herculano, alcançaria o
Porto logo no dia seguinte, pois apesar da expressiva superioridade
numérica das hostes absolutistas era na capital que a sua estratégia de
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defesa incidia. No entanto, os liberais e a população da cidade não seriam


poupados ao prolongado e doloroso Cerco do Porto, um dos lances mais
emblemáticos desta guerra civil.

A paz só seria assinada quase dois anos depois (26 de maio de 1834) no
coração do Alentejo, através da Convenção de Évora Monte, uma vila do
atual concelho de Estremoz, onde D. Miguel se havia acantonado após
uma série de derrotas que provocaram pesadas baixas e deserções do
seu exército. Abandonou definitivamente o país após aceitar os termos,
aliás honrosos, da capitulação – achava D. Pedro que era necessário unir
os portugueses.

Mas esse não era um objetivo fácil em tempos de grande conturbação.


Afastado o perigo legitimista, era entre os liberais que avultavam os
dissídios – o Liberalismo português não se cumpriria sem passar por outra
luta fratricida e nova intervenção de tropas estrangeiras. A revolta da
Maria da Fonte e a Patuleia opuseram em 1846-1847 os cartistas
(moderados-conservadores) e os setembristas (progressistas-radicais). A
primeira, iniciada no Minho mas logo se espalhando ao resto do país,
sublevou-se contra a atuação do poderoso ministro do Reino, Costa
Cabral, levando à formação de um governo chefiado por Palmela, que
todavia mal completou cinco meses no poder. A sua substituição por
Saldanha não evitou que a insurreição se reacendesse, e a Patuleia lavrou
por oito meses, até à Convenção de Gramido (Valbom, Gondomar)
realizada em 29 de junho de 1847, e assinada, de um lado, pelos
comandantes das forças militares espanholas e britânicas que intervieram
na guerra ao abrigo da Quádrupla Aliança e, do outro, pelos
representantes da Junta do Porto – um acordo que selou a derrota dos
setembristas. Pelo artigo 2º deste tratado ficou estabelecido que as
tropas espanholas ocupariam a partir do dia seguinte a cidade do Porto e
Vila Nova de Gaia para pacificar o território, superintender sem represálias
a rendição e entrega de armas por parte do exército da Junta do Porto e
assegurar a segurança da população, enquanto o Castelo da Foz seria

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ocupado pelos ingleses e no rio Douro estacionariam vasos de guerra das


potências aliadas. Novamente o Porto como cenário na história e na
geografia do Liberalismo.

Todavia, a clemência face aos vencidos, inclusive por parte da rainha,


deixou muito a desejar, e a instabilidade subsequente clamava pela
“Regeneração” (1851). Este, aliás, foi um tópos reiteradamente almejado
pelo Oitocentismo português.

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