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Trechos d’ “O Lobo da Estepe”

(Hermann Hesse, 1927)

Tratado do Lobo da Estepe


Só para loucos
[Editado]

Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas
pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das
estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento
podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o
seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um
homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de que, no fundo de seu coração,
sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um lobo das
estepes. As pessoas argutas poderão discutir a propósito de ser ele realmente um lobo,
de ter sido transformado, talvez antes seu nascimento, de lobo em ser humano, ou de ter
nascido homem, porém dotado de alma de lobo ou por ela dominado ou, finalmente,
indagar se essa crença de que ele era um lobo não passava de um produto de sua
imaginação ou de um estado patológico. É admissível, por exemplo, que, em sua
infância, fosse rebelde, desobediente e anárquico, o que teria levado seus educadores a
tentar combater a fera que havia nele, dando ensejo assim a que se formasse em sua
imaginação a ideia e & crença de que era, realmente, um animal selvagem, coberto
apenas com um ténue verniz de civilização. A esse propósito poder-se-iam tecer longas
considerações e até mesmo escrever, livros; mas isso de nada valeria ao Lobo da Estepe,
pois para ele era indiferente saber se o lobo se havia introduzido nele por encantamento,
à força de pancada ou se era apenas uma fantasia de seu espírito. O que os outros
pudessem pensar a este respeito ou até mesmo o que ele próprio pudesse pensar, em
nada o afetaria, nem conseguiria afetar o lobo que morava em seu interior.

O Lobo da Estepe tinha, portanto, duas naturezas, uma de homem e outra de


lobo; tal era o seu destino, e nem por isso tão singular e raro. Deve haver muitos
homens que tenham em si muito de cão ou de raposa, de peixe ou de serpente sem que
com isso experimentem maiores dificuldades. Em tais casos, o homem e o peixe ou o
homem e a raposa convivem normalmente e nenhum causa ao outro qualquer dano; ao
contrário, um ajuda o outro, e muito homem há que levou essa condição a tais extremos
a ponto de dever sua felicidade mais à raposa ou ao macaco que nele havia, do que ao
próprio homem. Tais fatos são bastante conhecidos. No caso de Harry, entretanto, o
caso diferia: nele o homem e o lobo não caminhavam juntos, nem sequer se ajudavam
mutuamente, mas permaneciam em contínua e mortal inimizade e um vivia apenas para
causar dano ao outro, e quando há dois inimigos mortais num mesmo sangue e na
mesma alma, então a vida é uma desgraça. Bem, cada qual tem seu fado, e nenhum
deles é leve.

Com nosso Lobo da Estepe sucedia que, em sua consciência, vivia ora como
lobo, ora como homem, como acontece, aliás, com todos os seres mistos. Ocorre,
entretanto, que quando vivia como lobo, o homem nele permanecia como espectador,
sempre à espera de interferir e condenar, e quando vivia como homem, o lobo procedia
de maneira semelhante. Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento
belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse uma das chamadas
boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe
com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera,
aos olhos de ura lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convinha, ou seja,
caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir alguma loba.
Toda ação humana parecia, pois, aos olhos do lobo horrivelmente absurda e
despropositada, estúpida e vã. Mas sucedia exatamente o mesmo quando Harry sentia e
se comportava como lobo, quando arreganhava os dentes aos outros, quando sentia ódio
e inimizade a todos os seres humanos e a seus mentirosos e degenerados hábitos e
costumes. Precisamente aí era que a parte humana existente nele se punha a espreitar o
lobo, chamava-o de besta e de fera e o lançava a perder, amargurando-lhe toda a
satisfação de sua saudável e simples natureza lupina.

(...)

Mas na realidade não há nenhum eu, nem mesmo no mais simples, não há uma
unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de
matizes, de situações, de heranças e possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito
a considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente
simples, bem formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo aos mais
eminentes, esse rude engano parece uma necessidade, uma exigência da vida, como o
respirar e o comer. O equívoco reside numa falsa analogia. Todo homem é uno quanto
ao corpo, mas não quanto à alma. Também na literatura, mesmo na mais refinada,
encontramos este conceito habitual em personagens aparentemente unas, aparentemente
uniformes. No teatro de hoje, o que mais aprecia a gente do ofício, os conhecedores, é o
drama, e com razão, pois oferece (ou oferecia) as maiores possibilidades para a
representação do eu como uma pluralidade, se a isto não se opõe a brutal impressão de
unidade que nos dá cada pessoa isolada do drama, ao levar encerrada, sem resistência,
essa pluralidade num corpo simples, uniforme e isolado. Também apreciam muito a
ingênua estética do chamado drama de caráter, no qual cada figura se apresenta como
uma unidade muito característica e isolada. Só de longe e pouco a pouco começa a
despertar em alguns a suspeita de que tudo isto não passa de uma razoável estética
superficial, de que nos equivocaremos se aplicarmos aos nossos grandes dramaturgos a
magnífica ideia de beleza dos antigos, pois esta não é congênita a nós, mas
simplesmente intuída, e é nela, na fonte comum dos corpos visíveis, que se encontra
exatamente a ficção do ego, da personalidade. Nas obras da Índia antiga esta concepção
é é completamente desconhecida, os heróis da epopeia indica não são pessoas, mas
aglomerados de pessoas, conjuntos de reencarnações. E m nosso mundo moderno há
obras em que, por trás do véu do jogo das pessoas e caracteres, tentou-se apresentar uma
pluralidade de almas, não de todo inconsciente para o autor. Quem queira comprovar
isto deve decidir-se a considerar de uma vez as figuras de uma obra semelhante, não
como seres individuais, mas como partes, como facetas, como aspectos diversos de uma
suprema unidade (que para mim é a alma do poeta). Quem examinar deste modo o
Fausto tanto o Fausto, Mefistófeles, Wagner e todos os demais significarão para ele
uma unidade, uma superpessoa, e só nesta suprema unidade e não nas figuras isoladas
estará refletido algo da verdadeira essência da alma. Quando Fausto diz a frase que
ficou célebre entre os professores e admirada com terror por filisteus: "Duas almas, ai,
moram no meu peito!'' esqueceu-se de Mefistófeles e de toda uma multidão de outras
almas que também se abrigam em seu peito. Nosso Lobo da Estepe crê levar também
em seu peito duas almas (lobo e homem) e por isto sente o peito demasiadamente
oprimido e estreito. O peito, o corpo, é sempre uno, mas as almas que nele residem não
são nem duas, nem cinco, mas incontáveis, o homem é um bulbo formado por cem
folhas um tecido urdido com muitos fios. Os antigos asiáticos sabiam disto muito bem,
e encontraram no ioga búdico uma técnica precisa para descobrir a ilusão da
personalidade. Divertido e multíplice é o jogo da Humanidade: a ilusão que levou
milhares de anos para ser descoberta pelos hindus é a mesma ilusão que aos ocidentais
custou tanto trabalho custodiar e fortalecer.

Se observarmos o Lobo da Estepe a partir deste ponto de vista, veremos


claramente por que sofre tanto sob sua ridícula dualidade. Crê, como Fausto, que duas
almas são demais para um só peito e podem arrebentar com ele. Mas ao contrário, são
demasiado poucas, e Harry violenta terrivelmente sua pobre alma se busca compreendê-
la numa imagem tão primitiva. Harry, embora seja um homem grandemente instruído
procede talvez como um selvagem, que não sabe contar além de dois. Chama a uma
parte de si mesmo de homem, à outra, de lobo, e com isso acredita haver chegado à
meta e esgotado o assunto. No "homem'' encerra tudo o que há de espiritual, de sublime
ou culto que encontra em si, e no "lobo" tudo o que há de instintivo, de selvagem e
caótico. Mas as coisas não se passam na vida de maneira tão simples como em nosso
pensamento, nem tão rude como em nosso pobre idioma de idiotas, e Harry se engana
duplamente ao empregar este método tacanho do lobo. Harry considera o que é de
temer-se, todas as divisões de sua alma como parte do "homem, muitas das quais já
deixaram de ser homem, e qualifica partes de seu ser como lobo, partes que há muito já
estão além do lobo. Como todos os homens, Harry crê saber muito bem o que é o
homem, e não sabe absolutamente nada, embora o suspeite algumas vezes em sonho e
em outros estados anímicos não sujeitos a controle. Quem dera não esquecesse esses
pressentimentos, mas se apropriasse deles tanto quanto possível! O homem não é uma
forma fixa e duradoura (tal era o ideal dos antigos, apesar do pensamento em contrário
de alguns luminares da época); é antes um ensaio e uma transição, não é outra coisa
senão a estreita e perigosa ponte entre a Natureza e o Espírito. Para o espírito, para
Deus, ele é impulsionado por sua vocação mais íntima. Para a natureza, para a mãe, é
atraído pelo mais íntimo desejo. Sua vida oscila vacilando angustiosamente entre ambos
os poderes. O que se compreende comumente pela palavra "homem" é sempre uma
estipulação efêmera e burguesa. Certos impulsos mais crus estão afastados e proibidos
nessa convenção; um grau de consciência e de cultura humana são reclamados à besta;
uma pequena parcela de espírito não é somente permitida, como também encorajada. O
homem desta convenção, como todos os outros ideais burgueses, é uma conciliação, um
intento tímido, de ingênua astúcia com o intuito de enganar tanto a perversa mãe
Natureza primitiva quanto o incômodo primitivo pai Espírito de suas enérgicas
exigências e para viver na zona temperada entre eles. É por isso que a média das
pessoas permite e tolera aquilo que denomina "personalidade", mas ao mesmo tempo
entrega a personalidade àquele Moloch chamado "Estado" e intriga continuamente um
com o outro. Assim o burguês queima hoje por herege e enforca por criminoso aquele
ao qual amanhã levantará estátuas.

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