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SMAD, Rev Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog.

2022 abr.-jun.;18(2):5-7
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.smad.2022.000217
www.revistas.usp.br/smad/
SMAD

Editorial

O uso de telas na primeira infância: o que mudou na


pandemia COVID-19 e que lições ainda temos a aprender?

Giana Bitencourt Frizzo1


https://orcid.org/0000-0001-8106-4441

As telas ou mídias digitais, especialmente celulares, smartphones, computadores,


notebooks e também a televisão, têm se tornado companheiras frequentes das crianças
na atualidade. Ainda antes da pandemia COVID-19, muito se questionava sobre seu
impacto no desenvolvimento infantil.
Num primeiro momento, os estudos tentavam focar muito na questão entre poder
usar telas e por quanto tempo, tanto que sociedades de pediatria em diferentes países
trouxeram orientações de restrições de uso de telas por crianças até 2 anos, e de
poucas horas dos 2-5 anos de idade(1). Poucas tomaram uma posição mais reflexiva,
como a Academia Britânica de Pediatria(2), que sugeriu que cada família pudesse avaliar seu uso a partir
de 4 questões: o uso de telas na sua casa é controlado? O uso das telas interfere no que sua família quer
fazer? O uso das telas interfere no sono? Você controla o consumo de guloseimas durante o uso de telas?
Questionamentos nessa linha podem ajudar as famílias a optar pelo melhor uso das telas, visto que a
proibição mesmo quando orientada por pediatras e outros profissionais da saúde não funciona, além de
deixar pais e mães muitas vezes culpados ao oferecer esses recursos a crianças pequenas.
Mais atualmente tem-se percebido que o impacto das telas é muito mais complexo, passando não só
pelo tempo de uso, mas pelo tipo de conteúdo acessado, se é um uso mais passivo ou mais ativo, segurança
digital e mediação do adulto. A WHO(3) orienta muito que se pense nas oportunidades perdidas quanto ao uso

1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Porto Alegre, RS, Brasil.

Como citar este artigo

Frizzo GB. Screen use in childhood: what changed in the COVID-19 pandemic and which lessons do we still have
to learn?. 2022 abr.-jun.;18(2):5-7. https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2022.000217
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de telas e sugere um equilíbrio entre atividades físicas, rotinas de sono e o cuidado com o sedentarismo infantil.
A atualização da Sociedade Brasileira de Pediatria em 2019, ainda que mantendo as restrições por faixa etária,
também convida à reflexão sobre o cuidado com as rotinas de alimentação e sono das crianças(1), justamente
rotinas em que se observa um grande uso por parte das crianças.
A chamada tecnointerferência vem sendo investigada como um fator que atrapalha as interações cuidadores-
criança. Cuidadores desatentos em frente às telas podem não perceber quando a criança se envolve em
comportamentos de risco ou ainda estimular que a criança fique mais tempo usando telas e com menos supervisão
quanto ao conteúdo acessado. No entanto, o uso é menos prejudicial se a criança acessa as mídias junto a um
adulto, que tanto pode supervisionar o conteúdo acessado, como até mesmo utilizar as mídias como uma forma
de brincadeira e conexão.
A pandemia COVID-19 também trouxe muitas mudanças no uso de telas por adultos e crianças. Forçados a
ficar em casa em função de regras do distanciamento social, muitas vezes sem poder com familiares ou profissionais
para cuidar dos filhos e no caso do Brasil, com o longo fechamento das escolas, as famílias se viram muitas vezes
com poucas opções de como cuidar das crianças.
Especialmente pensando no impacto da pandemia para as mães de crianças pequenas, um survey do nosso
grupo de pesquisa indicou que embora os motivos pelos quais eram oferecidas as telas não tenha mudado muito,
a frequência aumentou bastante, tanto no relato de aumento de tempo de uso das mães, como nas rotinas em
que se sentia a necessidade desse uso. Em 2018, antes da pandemia, os principais motivos pelos quais as mães
relataram sentir necessidade de usar esse recurso foram para fazer atividades domésticas (51%), para resolver
alguma situação do trabalho (25%) ou para descansar (17%). Já durante a pandemia, os principais motivos
alegados se mantiveram, mas com frequência respectivamente de 75%, 45% e 26%. Para poder tomar banho
entrou em terceiro lugar, com 27%. Realmente com esses dados não espanta que o estudo durante a pandemia
COVID-19 encontrou uma incidência grande de transtornos mentais comuns (75%) e um relato percebido de
estresse em 94% dos participantes. Se ainda antes da pandemia, um estudo longitudinal recente havia indicado
uma associação bidirecional importante entre comportamentos externalizantes dos filhos, estresse parental e uso de
telas na primeira infância(4), avaliar a saúde mental pode ser crucial no oferecimento de telas na primeira infância.
Ainda em outro estudo(5), mães com problemas de maior ansiedade e depressão segundo o instrumento
SRQ-20 tendiam a oferecer mais mídias a seus filhos, em ambos os momentos, tanto antes como durante a
pandemia. Com esses índices maiores de problemas de saúde mental durante a pandemia, que no momento
de escrita desse editorial ainda não chegou ao seu fim, é plausível pensar que o uso de telas pelas crianças
pequenas segue intenso. Ainda que os estudos relatados digam respeito a famílias recrutadas on-line, com grande
proporção de pessoas altamente escolarizadas, com renda acima de 3 salários mínimos na sua maioria, já há
indicação de intenso sofrimento. A pandemia COVID-19 está tendo impactos diferentes nas diferentes camadas
da população, definitivamente não estamos todos no mesmo barco, mas todos sofremos com fechamento de
escolas, distanciamento social, perdas importantes de renda, de emprego, de redes de apoio, com receio de não
ter quem cuide das crianças nas profissões que seguiram funcionando ou até tiveram demandas aumentadas,
com home-office muitas vezes precariamente organizado, com aumento no tempo de telas.
De qualquer forma, daqui para frente nossa relação com as telas foi profundamente alterada, de forma
que novos estudos ainda virão responder muitas das indagações acima, além de várias outras que surgiram. De
momento é importante estarmos atentos às manifestações das crianças e seus cuidadores, a fim de que possa
ser promovido um ambiente de qualidade nas suas interações, com e sem uso de telas.

Referências

1. Sociedade Brasileira de Pediatria. #Menos telas #Mais saúde: manual de orientação [Internet]. 12 abr 2019 [cited
2021 Dec 27]. Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/menos-telas-mais-saude/
2. Royal College of Paediatrics and Child Health. The health impacts of screen time: a guide for clinicians
and parents [Internet]. 2019 [cited 2021 Dec 27]. Available from: https://www.rcpch.ac.uk/resources/
health-impacts-screen-time-guide-clinicians-parents
3. World Health Organization. Guidelines on physical activity, sedentary behaviour and sleep for children under 5 years
of age. Geneva: WHO; 2019 [cited 2021 Dec 27]. Available from: http://www.who.int/iris/handle/10665/311664
4. McDaniel BT, Radesky JS. Technoference: longitudinal associations between parent technology use, parenting stress,
and child behavior problems. Pediatr Res. 2018;84:210-8. https://doi.org/10.1038/s41390-018-0052-6

www.revistas.usp.br/smad
Frizzo GB. 3

5. Pedrotti BG, Mallmann MY, Almeida CRS, Marques FM, Vescovi G, Riter HS, et al. Infants’ and toddlers’ digital media
use and mothers’ mental health: A comparative study before and during the COVID-19 pandemic. Infant Ment Health
J. 2021. https://doi.org/10.1002/imhj.21952

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