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Dez regras modernas de diplomacia

PAULO ROBERTO DE ALMEIDA*

Passei minhas férias de verão francesa (o pobre enviado português à


(setentrional) na companhia de um corte de Luís XVI jogado à prisão,
pequeno livro para o qual minha como um reles conspirador aristocrata),
atenção tinha sido despertada pelo além de outros “escriptos” do
Embaixador Sérgio Bath, aliás sob Congresso de Viena ou relativos ao
recomendação inicial do Emb. Seixas Brasil imperial. Segundo Figanière,
Corrêa, atual secretário geral do “Dos diversos ramos do serviço
Itamaraty, ambos apreciadores de público, o diplomático é sem dúvida
velhos manuscritos e de tudo o mais que aquele em que ao agente é concedida
se refira à história diplomática. Trata-se maior liberdade no modus operandi” (p.
de um opúsculo hoje démodé (mas 9), o que, se era correto em sua época
provavelmente um utilíssimo manual de comunicações lentas e precárias, há
para meus antecessores do oitocentos), muito deixou de corresponder à
cujo autor, um diplomata monárquico realidade de uma diplomacia cada vez
português da segunda metade do século mais enquadrada de perto, não apenas
XIX, Frederico Francisco de la pela Secretaria de Estado – com a qual
Figanière, o intitulou modestamente estamos em contato as 24 horas do dia,
Quatro regras de diplomacia (Lisboa: praticamente – mas seguida com
Livraria Ferreira, 1881, 239 p.). Retirei- atenção pela imprensa, pelos grupos de
o da Biblioteca do Congresso interesse e, agora também, pelas hordas
americano, infalível para esse tipo de de “anti-globalizadores” conectados às
trouvaille, e passei bons momentos em redes internáuticas de uma aldeia
sua companhia, 120 anos depois de sua decididamente global.
publicação original (e, ao que parece, Enfim, quais eram essas regras que
única). apareciam como um imperativo moral,
O prazer me foi dado não tanto pelo quase que de ordem kantiana, ao colega
enunciado, aliás pouco extensivo, das lusitano de mais de um século atrás?
ditas quatro regras de diplomacia – Elas eram o objeto de quatro curtos
manifestamente desadaptadas à capítulos de observações e de
diplomacia do século XXI – mas mais recomendações a eventuais candidatos à
exatamente pelos seus saborosos anexos carreira diplomática: I. Agradar; II. Ser
históricos, uma “colecção de modelos leal; III. Antepor a palavra à pena; IV.
das principaes especies de escriptos Ter concisão e ordem no redigir. Como
diplomaticos”, entre elas cartas da se vê, nada de muito esclarecedor ou
época do tratado de Utrecht (1713), um propriamente entusiasmante, para a
protesto contra a violação de prática atual, a não ser talvez a última
imunidades no período da Revolução das regras, que vinha com uma
advertência ainda válida para os tempos 1. Servir a pátria, mais do que aos
que correm: “O estilo prolixo e difuso é governos, conhecer profundamente os
um defeito que cumpre evitar nas interesses permanentes da nação e do
composições diplomáticas” (p. 70). povo aos quais serve; ter
Dois pontos para nosso antecessor absolutamente claros quais são os
português, pois que ele também achava grandes princípios de atuação do país
que, de todos os deveres, o primeiro era a serviço do qual se encontra.
o de bem servir a pátria, algo que não
custa relembrar atualmente (e de modo O diplomata é um agente do Estado e,
permanente). ainda que ele deva obediência ao
governo ao qual serve, deve ter absoluta
Deixo de lado as regras relativas a consciência de que a nação tem
agradar e ser leal (ao seu real senhor, interesses mais permanentes e mais
ora pois), mais adequadas talvez à fundamentais do que, por vezes,
“época das cabeleiras empoadas, dos orientações momentâneas de uma
peitilhos de renda, dos passeios em determinada administração, que pode
cadeirinhas, (ou) da pena de pato, estar guiada — mesmo se em política
aparada entre boas pitadas de rapé”, nas externa isto seja mais raro — por
palavras de outro antecessor meu da considerações “partidárias” de reduzido
belle époque, José Manuel Cardoso de escopo nacional. Em resumo, não seja
Oliveira (in A moderna concepção da subserviente ao poder político, que,
diplomacia e do comércio, 1925). A como tudo mais, é passageiro, mas
terceira regra, a rigor, também apresenta procure inserir uma determinada ação
sua utilidade, uma vez que ainda particular no contexto mais geral dos
costumamos tratar oralmente de algum interesses nacionais.
assunto importante, antes de oficializá-
lo mediante uma nota diplomática ou 2. Ter domínio total de cada assunto,
um aide-mémoire. Em todo caso, dedicar-se com afinco ao estudo dos
inspirado no exemplo do ilustre assuntos de que esteja encarregado,
representante da diplomacia lusa de tão aprofundar os temas em pesquisas
saudosa memória – ela foi, com toda a paralelas.
sua habilidade no navegar entre os Esta é uma regra absoluta, que deve ser
interesses sempre divergentes dos auto-assumida, obviamente: numa
principais poderes europeus, a base de secretaria de estado ou num posto no
nossa diplomacia imperial, exterior, o normal é a divisão do
reconhecidamente excelente para os trabalho, o que implica não apenas que
padrões da época, mesmo em escala você terá o controle dos temas que lhe
comparativa com outros países mais forem atribuídos, mas que redigirá
avançados economicamente –, resolvi igualmente as instruções para posições
arriscar, igualmente, formular minhas negociais sobre as quais seu
próprias regras modernas de conhecimento é normalmente maior do
diplomacia, esperando que elas possam que o do próprio ministro de estado ou
ser bem recebidas por meus colegas de o chefe do posto. Mergulhe, pois, nos
profissão mais jovens. Aqui vão elas, dossiers, veja antigos maços sobre o
em formato reduzido, geralmente mais assunto (a poeira dos arquivos é
pensadas em função do ambiente extremamente benéfica ao seu
multilateral, que é o comum na vida desempenho funcional), percorra as
atual da diplomacia, do que para estantes da biblioteca para livros
situações de relações bilaterais. históricos e gerais sobre a questão,
formule perguntas a quem já se ocupou do foro processual, sem interação com
do tema em conferências negociadoras os demais participantes do jogo
anteriores, mantenha correspondência diplomático. Considerar os argumentos
particular com seu contraparte no posto da parte adversa também contribui para
(ou na secretaria de estado), enfim, avaliar os fundamentos de sua própria
prepare-se como se fosse ser sabatinado posição, ajudando a revisar conceitos e
no mesmo dia. afinar seu próprio discurso. Uma
saudável atitude cética — isto é, sem
3. Adotar uma perspectiva histórica e negativismos inconseqüentes — ajuda
estrutural de cada tema, situá-lo no na melhoria constante da posição
contexto próprio, manter negociadora de sua chancelaria.
independência de julgamento em
relação às idéias recebidas e às 5. Dar preferência à substância sobre
“verdades reveladas”. a forma, ao conteúdo sobre a
roupagem, aos interesses econômicos
Em diplomacia, raramente uma questão concretos sobre disposições jurídico-
surge do nada, de maneira inopinada. abstratas.
Um tema negocial vem geralmente
sendo “amadurecido” há algum tempo, Os puristas do direito e os partidários da
antes de ser inserido formalmente na “razão jurídica” hão de me perdoar a
agenda bilateral ou multilateral. Estude, deformação “economicista”, mas os
portanto, todos os antecedentes do tratados internacionais devem muito
assunto em pauta, coloque-o no pouco aos sacrossantos princípios do
contexto de sua emergência gradual e direito internacional, e muito mais a
no das circunstâncias que presidiram à considerações econômicas concretas,
sua incorporação ao processo negocial, por vezes de reduzido conteúdo
mas tente dar uma perspectiva nova ao “humanitário”, mas dotadas, ao
tema em questão. Não hesite em contrário, de um impacto direto sobre os
contestar os fundamentos da antiga ganhos imediatos de quem as formula.
posição negociadora ou duvidar de Como regra geral, não importa quão
velhos conceitos e julgamentos (as idées tortuosa (e torturada) sua linguagem,
reçues), se você dispuser de novos um acordo internacional representa
elementos analíticos para tanto. exatamente — às vezes de forma
ambígua — aquilo que as partes
4. Empregar as armas da crítica ao lograram inserir em defesa de suas
considerar posições que devam ser posições e interesses concretos.
adotadas por sua delegação; praticar Portanto, não lamente o estilo “catedral
um ceticismo sadio sobre prós e gótica” de um acordo específico, mas
contras de determinadas posições; assegure-se de que ele contém
analisar as posições “adversárias”, elementos que contemplem os
procurando colocá-las igualmente no interesses do país.
contexto de quem as defende.
6. Afastar ideologias ou interesses
Ao receber instruções, leia-as com o político-partidários das considerações
olho crítico de quem já se dedicou ao relativas à política externa do país.
estudo da questão e procure colocá-las
no contexto negocial efetivo, A política externa tende geralmente a
geralmente mais complexo e matizado elevar-se acima dos partidos políticos,
do que a definição de posições in bem como a rejeitar considerações
abstracto, feita em ambiente destacado ideológicas, mas sempre somos afetados
por nossas próprias atitudes mentais e negociadoras de que aquela solução
algumas “afinidades eletivas” que favorecida por seu governo é a que
podem revelar-se numa opção melhor contempla os interesses de todos
preferencial por um determinado tipo de os participantes e na qual as partes saem
discurso, “mais engajado”, em lugar de efetivamente convencidas de que
outro, supostamente mais “neutro”. fizeram o melhor negócio, ou pelo
Poucos acreditam no “caráter de classe” menos deram a solução possível ao
da diplomacia, mas eventualmente problema da agenda.
militantes “classistas” gostariam de
ajudar na “inflexão” política ou social 8. Ser eficiente na representação, ser
de determinadas posições assumidas conciso e preciso na informação, ser
pelo país internacionalmente, sobretudo objetivo na negociação.
quando os temas da agenda envolvem Considere-se um agente público que
definição de regras que afetam agentes participa de um processo decisório
econômicos e expectativas de ganhos relevante e convença-se de que suas
relativos para determinados setores de ações terão um impacto decisivo para
atividade. Deve-se buscar o equilíbrio sua geração e até para a história do país:
de posições e uma definição ampla, isto já é um bom começo para dar
verdadeiramente nacional, do que seja dignidade à função de representação
interesse público relevante. que você exerce em nome de todos os
seus concidadãos. Redija com clareza
7. Antecipar ações e reações em um seus relatórios e seja preciso nas
processo negociador, prever instruções, ainda que dando uma certa
caminhos de conciliação e soluções de latitude ao agente negocial direto; não
compromisso, nunca tentar derrotar tente fazer literatura ao redigir um
completamente ou humilhar a parte anódino memorandum, ainda que um
adversa. mot d’esprit aqui e ali sempre ajuda a
diminuir a secura burocrática dos
O soldado e o diplomata, como expedientes oficiais. Via de regra, estes
ensinava Raymond Aron, são os dois devem ter um resumo inicial
agentes principais da política externa de sintetizando o problema e antecipando a
um Estado — embora atualmente outras solução proposta, um corpo analítico
forças sociais, como as ONGs e os desenvolvendo a questão e expondo os
homens de negócio, disputem espaço fundamentos da posição que se pretende
nos mecanismos decisórios burocráticos adotar, e uma finalização contendo os
— mas, à diferença do primeiro, o objetivos negociais ou processuais
segundo não está interessado em ocupar desejados. No foro negociador, não
território inimigo ou destruir sua tente esconder seus objetivos sob uma
capacidade de resistência. Ainda que, linguagem empolada, mas seja claro e
em determinadas situações negociais, o preciso ao expor os dados do problema
interesse relevante do país possa ditar e ao propor uma solução de
alguma instrução do tipo “vá ao compromisso em benefício de todas as
plenário com todas as suas armas partes.
(argumentativas) e não faça
prisioneiros”, o confronto nunca é o 9. Valorize a carreira diplomática
melhor método para lograr vitória num sem ser carreirista, seja membro da
processo negociador complexo. A corporação sem ser corporatista, não
situação ideal é aquela na qual você torne absolutas as regras
“convence” as outras partes hierárquicas, que não podem
obstaculizar a defesa de posições bem 10. Não faça da diplomacia o foco
fundamentadas. exclusivo de suas atividades
Geralmente se entra na carreira intelectuais e profissionais, pratique
diplomática ostentando um certo temor alguma outra atividade
reverencial pelos mais graduados, enriquecedora do espírito ou do
normalmente tidos como mais “sábios” físico, não coloque a carreira
e mais preparados do que o iniciante. absolutamente à frente de sua família
Mas, se você se preparou adequada e e dos amigos.
intensamente para o exercício de uma A performance profissional é
profissão que corresponde a seus importante, mas ela não pode ocupar
anseios intelectuais e responde a seu todo o espaço mental do servidor, à
desejo de servir ao país mais do que aos exclusão de outras atividades
pares, não se deixe intimidar pelas igualmente valorizadas socialmente,
regras da hierarquia e da disciplina, seja no esporte, seja no terreno da
mais próprias do quartel do que de uma cultura ou da arte. Uma dedicação
chancelaria. Numa reunião de acadêmica é a que aparentemente mais
formulação de posições, exponha com se coaduna com a profissão
firmeza suas opiniões, se elas refletem diplomática, mas quiçá isso represente
efetivamente um conhecimento uma deformação pessoal do autor destas
fundamentado do problema em pauta, linhas. Em todo caso, dedique-se
mesmo se uma “autoridade superior” potencialmente a alguma ocupação
ostenta uma opinião diversa da sua. paralela, ou volte sua mente para um
Trabalhe com afinco e dedicação, mas hobby absorvente, de maneira a não ser
não seja carreirista ou corporatista, pois apenas um “burocrata alienado”,
o moderno serviço público não deve voltado exclusivamente para as lides
aproximar-se dos antigos estamentos de diplomáticas. Sim, e por mais
mandarins ou das guildas medievais, importante que seja a carreira
com reservas de “espaço burocrático” diplomática para você, não a coloque na
mais definidas em função de um frente da família ou de outras pessoas
sistema de “castas” do que do próprio próximas. Muitos se “sentem”
interesse público. A competência no sinceramente diplomatas, outros apenas
exercício das funções assignadas deve “estão” diplomatas, mas, como no caso
ser o critério essencial do desempenho de qualquer outra profissão, a
no serviço público, não o ativismo em diplomacia não pode ser o centro
grupos restritos de interesse puramente exclusivo de sua vida: os seres
umbilical. humanos, em especial as pessoas da
família, são mais importantes do que
qualquer profissão ou carreira.

*
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de
Bruxelas; Ministro Conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington; Editor adjunto da Revista
Brasileira de Política Internacional.

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