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“História da América Latina”

de Halperin Donghi

Capítulo 1: A Herança Colonial

Os traços do processo da conquista na América Latina ainda eram bem visíveis no início do século XIX.
Os conquistadores tinham sido movidos pela busca do metal precioso. Seguindo suas pegadas, a coroa de
Castela – a pouco amorável herdeira dos conquistadores – iria buscar exatamente a mesma coisa,
organizando as Índias com objetivo fundamental. Se até 1520 as Antilhas foram o núcleo da colonização
espanhola, as terras de conquista – nas duas décadas subseqüentes – passaram a ser as zonas
continentais do altiplano, onde por dois séculos e meio haveria de permanecer o coração do império
espanhol, do México até o Alto Peru.
As Índias Espanholas assumem, a partir desse momento, um perfil geográfico que se manterá
substancialmente idêntico até à emancipação. As Antilhas, sem dúvida, e até metade do século XVIII, os
países da Costa Atlântica, são o flanco mais débil desse império organizado em torno das minas dos Andes.
Esse sistema colonial, tão capaz de sobreviver às suas debilidades, tinha – como já observamos – sua
finalidade principal na obtenção da maior quantidade possível de dinheiro com um gasto mínimo de
recursos por parte da metrópole. As conseqüências desse sistema comercial para a economia da América
espanhola eram múltiplas, e tanto mais graves quanto mais essa situação se via favorecida por dados
geográficos: em primeiro lugar, a supremacia econômica concedida aos representantes locais da economia
metropolitana, o fisco e os comerciantes que asseguravam as ligações com a Península; e, em segundo a
manutenção quase total dos demais setores da economia colonial – compreendidos, sob vários aspectos,
os setores da mineração – às margens da economia monetária.
O que fez dos altiplanos e das montanhas, do México a Potosí, o núcleo fundamental das Índias
espanholas não foi apenas a sua riqueza mineral, mas também a presença de populações indígenas, cuja
organização anterior à conquista tornava-se úteis à economia colonial que surgiria depois dessa.
Úteis, antes de mais nada, para as indústrias de mineração, mas também para as atividades artesanais
e agrícolas. Sobre a terra e o trabalho dos indígenas funda-se um modo de vida senhorial, que até o século
XIX conserva aspectos contraditórios de opulência e miséria.
Os senhores de terra dominavam indubitavelmente amplas esferas da sociedade colonial; não haviam,
porém, conquistado uma posição de igual predominância no conjunto da economia hispano-americana. E
essa, certamente, uma das objeções mais graves à imagem de uma ordem social colonial dominada por
características feudais, presentes indubitavelmente nas relações sociais e econômicas de vastíssimos
setores primários.
A catástrofe demográfica do século XVII provocará transformações ainda mais importantes no setor
agrário: substituição da agricultura pela pecuária, que foi a resposta dada pelo México (até Tucumán) à
diminuição da população trabalhadora; substituição parcial da comunidade agrária indígena, da qual o
espanhol se limita a exigir uma renda feudal em espécie ou em trabalho, pela hacienda, unidade de
produção agrária dirigida pelos espanhóis. Essa última transformação foi incompleta: o tipo e a forma
jurídica variavam segundo a região e, em alguns lugares, era praticamente inexistente.

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No âmbito do ordenamento econômico colonial, o empreendimento agrícola constitui, de qualquer modo,
uma espécie de segunda zona, dependente da mercantil e mineradora, mas capaz de desenvolvimento
próprios no âmbito de uma economia de autoconsumo, que elabora índices de riqueza que lhes são
peculiares e que desconcertam o observador. No âmbito do ordenamento colonial, é função do setor
agrícola fornecer gêneros alimentícios, tecidos e animais de carga a preço módico para as cidades e as
regiões mineradoras. Para evitar que, por falta de uma corrente espontânea de trocas em zonas rurais
inteiras, faltasse o necessário, decidiu-se garantir esse fluxo mediante um ato do império: os corregidores,
funcionários colocados pela Coroa na direção de vastos distritos, ofereciam os produtos que se devia trocar
aos indígenas sob a sua jurisdição. Durante todo o século XVIII, multiplicam-se as queixas pelas muitas
coisas inúteis que os índios são abrigados a comprar, estoques encalhados que não encontraram
compradores nas cidades.
No México, os concessionários das minerações constituem um grupo dotado de capitais suficientes para
enfrentar de modo autônomo a expansão de seus empreendimentos; e a relativa abundância faz com que
não seja preciso sacrificar, em contrapartida, a sua efetiva autonomia econômica. Já no Peru, os
concessionários das minas do Potosí dependem cada vez mais de antecipações feitas pelos comerciantes.
A essa diferença entre o México e o resto do império se deve a singular circunstância da formação, no
México, de um efetivo regime de salários, com níveis surpreendentemente altos para os observadores
europeus; esse regime domina a atividade mineradora e aparece em alguns setores privilegiados da
agricultura; esse fenômeno se liga, como já notamos, à situação privilegiada dessa região, atingida menos
duramente pelas conseqüências do pacto colonial.
O pacto colonial, amadurecido laboriosamente nos séculos XVI e XVII, começa a se transformar no
século XVIII. A admissão de que os metais nobres não eram a única contribuição possível das colônias à
metrópole; por outro, a descoberta – no quadro de um progresso da economia européia do qual a Espanha
participava, de modo limitado, mas real – das possibilidades de utilizar as colônias como mercado de
consumo.
O despertar econômico da Espanha setecentista não tem força suficiente para permitir à mãe-pátria
assumir plenamente a função de fornecedora de produtos industriais ao seu império. Os privilégios que o
novo sistema comercial assegura às metrópoles beneficiam, portanto, menos à sua indústria que ao seu
comércio: o novo pacto colonial naufraga, fundamentalmente, porque com ele a Espanha consegue apenas
se transformar numa pesada e onerosa intermediária entre as suas Índias e as novas metrópoles
econômicas da Europa industrial.
Nessa América espanhola, assinalada pelas marcas contraditórias de três séculos de colonização, o
México era a região mais povoada e mais rica, a mais significativa para a economia européia. Sua capital
era a maior cidade do Novo Mundo. As jazidas minerais e as novas fortunas levam novamente a primeiro
plano o México setentrional.
Esse México setentrional é menos índio do que o central e o meridional; sentiu com maior intensidade a
evolução que está transformando a comunidade agrária indígena em hacienda, mesmo porque a pecuária
foi introduzida em localidades nas quais não era praticada a agricultura, nem havia estabelecimento estável
de índios. Nessa regiões setentrionais em expansão, a sociedade local é dominada pelos concessionários
das minas e não pelos proprietários de terra; uns e outros, contudo, são predominantemente de origem
espanhola e ocupam as primeiras filas da classe alta nativa, que na capital competirá com a peninsular,

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ostentando títulos de nobreza que, no século XVIII, não ocultam sua origem venal, sendo a tradução – da
vitória obtida na luta pela riqueza.
O desperdício era o ponto final de uma riqueza que, uma vez acumulada, não encontrava muitas
possibilidades de investimento útil. Esse sistema, para subsistir fazia do México setentrional, mineiro e
pecuarista, um tributário do México central.
A maior parte da produção agrícola era consumida localmente e, por isso, sua importância se mantinha
semi-oculta; a indústria mineradora permanecia como atividade primária, e aqueles que a controlavam
conseguiam libertar-se melhor da hegemonia dos mercadores; vários deles chegaram mesmo a ingressar
nas classes altas do vice-reinado.
Essa classe alta é escandalosamente rica e sua prosperidade contrasta com a profunda miséria popular.
Grave, ao contrário, era a circunstância de que no México o progresso haveria de tornar mais agudos os
contrastes existentes originariamente. Havia, em primeiro lugar, o aumento demográfico: de menos de três
milhões de habitantes em meados do século XVIII, o México passa a pouco mais do dobro meio século
depois. A expansão da capital e das zonas mineradoras ampliam os setores da economia de mercado, mas
a maior parte dessa expansão demográfica se verifica no setor do autoconsumo, cuja participação no
controle da terra diminuía, por causa do aumento das culturas para a exportação.
Outros setores menos numerosos, embora mais capazes de fazer ouvir a própria voz de modo
permanente, estão interessados em outro problema: aquele do destino da população urbana que, em parte
por causa da imigração forçada de camponeses, em parte pelo aumento natural, cresce mais rapidamente
do que as possibilidades de trabalho na cidade.
O progresso mexicano, portanto, preparava as tempestades que, posteriormente, haveriam de ameaça-
lo. Nem por isso deixava de ser o aspecto mais brilhante daquela etapa evolutiva da América espanhola.
Para a Coroa, inspirada em parte na sua política progressista de critérios fiscais, o México – em condições
de fornecer dois terços das rendas provenientes das Índias – é a colônia mais importante. O mesmo vale
para a economia metropolitana; a prata mexicana parece encontrar espontaneamente o caminho para a
mãe-pátria. No império colonial espanhol, o México aparece como um privilegiado, e riqueza monetária por
habitante é superior aquela da própria metrópole.
No final do século XVIII, o México é o mais importante dos domínios americanos no plano econômico,
mas não é o que se desenvolve mais rapidamente. As Antilhas espanholas seguem com atraso o mesmo
caminho que, desde o século XVII, vem sendo seguido pelas Antilhas francesas e holandesas; dedicadas à
pecuária, orientam-se para a agricultura tropical a partir do século XVIII. Beneficiária de tal expansão, que é
ainda mais intensa por causa da ruína do Haiti, foi sobretudo Cuba. O desenvolvimento do cultivo da cana-
de-açucar é acelerado pela conjuntura internacional: com a Guerra de Independência dos Estados Unidos,
a economia cubana inicia relações com este aliado da Espanha; e, posteriormente, o período da Revolução
Francesa e das guerras napoleônicas assegura, depois de um breve parêntese de estagnação, uma nova e
mais rápida expansão.
Diante do crescimento do México e de Cuba, e América Central – dependente da Capitania-Geral da
Guatemala – revelava-se mais estática. Do seu milhão e meio de habitantes, mais da metade eram índios,
menos de 20% brancos e o resto vinha formado por negros e mestiços. El Salvador, em territórios mais
baixos e quentes, tem uma população mais densa, constituída por índios e mestiços, bem como uma
propriedade mais fracionada. Os comerciantes dominam toda a zona e controlam a produção e exportação
do principal produto com que a América Central participa na economia internacional: o anil.

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As terras sul-americanas do Caribe são zonas de expansão: em Nova Granada, o principal produto de
exportação é o ouro, extraído desde o século XVI, e cuja produção aumentou rapidamente no século XVIII,
superando no final desse século a produção do Brasil (que já se encontrava em declínio). Nova Granada,
porém, era uma região extremamente complexa. Bogotá, a capital, cidade surgida sobre o altiplano a leste
do Madalena, onde dominava a criação de gado, encontra grandes dificuldades para impor-se sobre suas
rivais: à população européia e mulata da costa, contrapõe-se a região interna habitada predominantemente
por mestiços, mas com importantes grupos brancos (mais de 30% em Nova Granada como um todo).
Nova Granada progrediu segundo linhas muito tradicionais e sua contribuição à economia do ultramar
foi feita sobretudo pelas minas de metais preciosos. Os distúrbios provocados pelos anos de guerra não
permitem ter cifras igualmente representativas para os anos subseqüentes. Ao lado do comércio legal, há
também o contrabando, cujo centro se encontra, desde o século XVII, na Jamaica, e que adquire
importância cada vez maior para a Nova Granada; graças ao comércio clandestino, o vice-reinado não se
vê privado de importações européias durante os anos de isolamento.
A essa Nova Granada, fechada em si mesma, contrapõe-se uma Venezuela aberta ao comércio de
ultramar. Sua estrutura interna, mais complexa que a de Nova Granada, é porém melhor integrada. Com
uma população que alcança metade daquela de Nova Granada, a Venezuela exporta mercadorias de valor
duas vezes maior que o da vizinha. O mais importante dos seus artigos de exportação é o cacau (um terço
do total das exportações, equivalendo a mais de quatro milhões e meio de pesos), ao qual se seguem o
anil, o café e o algodão, somando pouco mais de um milhão. A agricultura da costa e dos vales andinos
está mãos de grandes proprietários, que utilizam mão-de-obra formada por escravos. A savana
venezuelana participa de atividades mercantis mais restritas: muares e bovinos para as Antilhas, peles que
alcançam o mercado europeu (mas somando um valor anual de pouco mais de cem mil pesos) e,
sobretudo, animais para o consumo da costa. Humbolt nota que cada habitante de Caracas consome carne
numa quantidade anual sete vezes e meia maior que a consumida por um parisiense. Com isso, a criação
não oferece as mesmas possibilidades de enriquecimento que a agricultura tropical.
Ao Sul de Quito, o vice-reinado do Peru não está atravessando uma conjuntura favorável. A
reorganização imperial da segunda metade do século XVIII fez do Peru a sua principal vítima. O
desmembramento do vice-reinado de Nova Granada, e mais ainda daquele do Rio da Prata, não diminuíram
apenas a importância administrativa de Lima. Grave é, sobretudo, a perda do comércio do Alto Peru: sua
decadência como grande centro argentífero não o impede de continuar a ser o mais importante da América
meridional espanhola. Essas perdas, decerto, tem também uma compensação: um aumento considerável
da produção de prata no sul das terras do Baixo Peru, que continuam ligadas ao vice-reinado de Lima, com
uma produção global, até o fim do século, de cerca de dois milhões e meio de pesos por ano (de qualquer
modo, não passa da décima parte da produção mexicana).
A Costa é uma franja de desertos, interrompida por pequenos oásis irrigados. A serra meridional, maior
e mais maciça que a setentrional, é o grande centro da população indígena peruana; situa-se aí a cidade de
Cuzco, antiga capital dos incas. Existem, nessa região, cidades agrícolas cuja função é abastecer as zonas
de mineração, bem como centros urbanos nos quais se desenvolve um comércio que vive de acordo com o
ritmo da produção mineira, com freqüentes oscilações. As classes altas locais são subordinadas às de
Lima, a capital, que tem pouco mais de cinqüenta mil habitantes e foi superada pela Cidade do México e por
Havana; e muito breve, também o será por Caracas e por Buenos Aires.

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O reino do Chile, no extremo sul do Pacífico, é o mais isolado e remoto dos países espanhóis. No
século XVIII, aumenta a sua produção (e, portanto, a exportação) de metais preciosos, até alcançar no fim
do século cerca de dois milhões de pesos por ano. A economia chilena, porém, não dispõe de outros
produtos facilmente exportáveis; o trigo tem o seu mercado tradicional em Lima, mas a falta de aquisidores
freia uma possível expansão na criação de gado. As peles da margem atlântica tem um acesso mais fácil à
Europa do que as do Chile. A população, constituída por brancos e mestiços, cresce mais rapidamente do
que a economia, que progride lentamente (cerca de um milhão de habitantes em 1810) e continua a estar
dispersa pelos campos (Santiago, a capital, não chega a dez mil habitantes)
No curso do século, a classe dos latifundiários se renova, abrindo-se a não poucos emigrantes da
península, chegados ao Chile – como as outras localidades – com funções burocráticas ou por motivos
comerciais.
O antagonismo entre peninsulares e americanos caracteriza a vida chilena: a longa resistência dos
araucanos não permitiu a assimilação dos mesmos, nem sequer como grupo à parte na sociedade colonial.
Enquanto o Chile quase não é atingido pelas transformações estruturais do império na segunda metade
do século XVIII, o Rio da Prata – juntamente com a Venezuela e as Antilhas – são as regiões mais
profundamente atingidas. Por motivos sobretudo políticos (necessidade de antepor uma barreira ao avanço
português), a Coroa dá resoluto apoio a um processo já em curso: a orientação para o Atlântico da
economia de Tucumán, de Cuyo, do Alto Peru e do Chile. Trata-se de uma contribuição decisiva ao
desenvolvimento de Buenos Aires, que, desde 1714, era centro de importações de escravos para todo o sul
do império, e, a partir de 1776, capital do vice-reinado (e, portanto, capital administrativa do Alto Peru). O
desenvolvimento da cidade é rápido, aumenta a sua população e, de uma aldeia com casas de barro,
transforma-se numa cópia ultramarina de uma cidade provinciana da Andaluzia.
O conjunto do litoral do Rio da Prata cresce, num ritmo febril durante a segunda metade do século XVIII,
embora o faça menos rapidamente que sua capital. O desenvolvimento mais rápido tem lugar nas terras de
mais recente conquista, no oriente do Paraná e do Rio da Prata, e não naquelas de Buenos Aires e Santa
Fé (que já no século XVI eram defendidas contra os índios, com o objetivo de garantir uma via de saída
para o Atlântico meridional às Índias espanholas; até meados do século XVIII, predominou uma pecuária
destrutiva, que caça o gado e não o cria. Nessa terras novas, constitui-se uma sociedade muito primitiva e
muito dinâmica, governada brandamente pelas jurisdições rivais de Buenos Aires e Montevidéu. Essa última
cidade, que poderia se ter tornado a capital do novo litoral, estava mal situada em sua região.
As missões continuam a produzir algodão (exportado sob forma de tecido grosseiro) e particularmente
mate, uma erva da qual se bebe a infusão e que os jesuítas difundiram até Quito através de toda a zona
andina. Mas a produção das Missões conta cada vez menos; e a zona rival do Paraguai, dominada por
colonos de longínqua origem peninsular, termina por triunfar, conseguindo conquistar os mercados do mate,
antes dominados pelas redes comerciais da Companhia; e elem disso, tira vantagens da política de
encorajamento da produção de fumo, promovida pela Coroa com o objetivo de competir com as
importações do Brasil.
O núcleo demográfico e econômico fundamental do vice-reinado do Rio da Prata ainda se situa no Alto
Peru, em suas minas, nas de Potosí (que estão em processo de esgotamento) e nas mais recentes de
Oruro. Em torno das minas, nas zonas melhor protegidas do altiplano (e a mais importante é Cochabamba),
desenvolve-se a agricultura do Alto Peru e uma atividade têxtil de tipo artesanal doméstico, ou ainda
organizada em obrajes coletivos, nos quais se utiliza a população indígena obrigada ao trabalho

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compulsório. Ao lado das cidades mineiras, surgem as cidades comerciais, a mais importante das quais é
La Paz, centro de uma zona densamente povoada por indígenas, onde há numerosos latifundiários e
manufaturas, e que constitui um laço de união entre o Potosí e o Baixo Peru.
A economia e a sociedade do Rio da Prata apresentam complexidades derivadas, em parte, da
circunstância de que os seus territórios foram reunidos em data recente mediante uma decisão tomada em
nível político, depois de terem seguido caminhos por vezes divergentes e profundamente variados. O
mesmo ocorre no que se refere à população: o Alto Peru tem um alto percentual de indígenas e mestiços e
uma pequena minoria branca. Por outro lado, os indígenas – e, em parte, os mestiços não urbanizados –
ainda empregam as suas línguas próprias (quéchua e aymara) e, de modo geral, fora das cidades, não
compreendem o espanhol; a população negra é pouco numerosa e está empregada nos trabalhos
domésticos e no artesanato urbano. Nos territórios das Missões, uma sociedade indígena estava em
processo de rápida deterioração; no Paraguai e no norte de Corrientes uma população mestiça falava
guarani, mas seus hábitos culturais eram mais espanhóis que indígenas, e era submetida a uma classe
aristocrática que – nem sempre com razão – proclamava-se branca.
É possível e oportuno assinalar, junto com tantas diversidades, alguns lineamentos comuns à totalidade
da América espanhola. Um deles é o peso econômico, mais ou menos intenso, da Igreja e das ordens
religiosas, que influi no México, em Nova Granada ou no Rio da Prata, sob mil modos diversos, na vida
colonial. Um outro aspecto comum é a consolidação, cada vez mais sensível, das castas no rigoroso
sentido da palavra. Existem, por conseguinte, nítidas separações entre brancos, mestiços e mulatos livres,
as quais envenenam a vida urbana em toda a América espanhola.
A diferença de casta é um elemento de estabilização, destinado a impedir que os estratos urbanos mais
baixos se elevam por meio da administração pública, do exército e da Igreja, bem como a anular as
eventuais conseqüências sociais de uma difícil ascensão econômica obtida por outros caminhos. O fato de
que essa diferença se torne cada vez mais marcada talvez seja um índice do problema fundamental da
sociedade da América espanhola nas últimas etapas do período colonial: se todas as fronteiras entre as
castas se tornam mais sensíveis, isso ocorre porque a sociedade colonial não tem espaço para todos.
Desse modo, a sociedade colonial faz nascer nas camadas médias, numericamente modestas, um
crescente descontentamento.
O fato de que a população urbana, ainda relativamente escassa, desfrute de possibilidades de
ocupação e de elevação bastante limitadas revela-se como um aspecto de outro fenômeno mais geral: a
extrema desigualdade com que a sociedade hispano-americana se implantou no vastíssimo território
submetido ao seu domínio.
Contra certas críticas muito sistemáticas aos ordenamentos espanhóis, deve-se certamente recordar
que a distribuição desigual era imposta em parte pela geografia. As violentas disparidades demográficas da
América espanhola são devidas, em parte, aos relevos acidentados, às características do sistema
hidrográfico e aos contrastes de clima presentes até mesmo em espaços reduzidos. A expansão econômica
do século XVIII corrigiu, em alguns aspectos, a concentração pré-existente nas zonas altas do México e dos
Andes (remonta a essa época o desenvolvimento nas Antilhas, na Venezuela e no Rio da Prata); mas, nas
zonas recém-exploradas, reproduzem-se contrastes análogos àqueles típicos da colonização mais antiga.
Não apenas nas terras em que a sociedade rural se dividia em senhores brancos e trabalhadores índios,
mas também nas colônias mais recentes, de estruturas menos rígidas, as possibilidades de prosperidade
oferecidas pelo campo não compensam a extrema dureza da vida rural.

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A colonização, apesar da expansão das terras atlânticas, continuava a ser concentrada em núcleos
separados por desertos e obstáculos naturais dificilmente superáveis. Antes de chegar ao vazio
demográfico e econômico, o estabelecimento espanhol, em vastíssimas zonas, torna-se
extraordinariamente rarefeito.
Os núcleos singulares, que são assim mal integrados com os próprios vizinhos, carecem por vezes até
mesmo de continuidade interna. Em Nova Granada ou no Rio da Prata, as estreitas faixas de território
adjacentes às estradas que atravessam regiões não completamente submetidas duram até boa parte do
século XIX. Esse insuficiente domínio dos territórios, ao lado dos obstáculos naturais, explica a importância
que guardam os rios no sistema de comunicações hispano-americano.
Conseguir manter o sistema de comunicações internas, com efeito, é uma vitória repetida a cada dia;
mas uma vitória muito cara em energias humanas e em recursos econômicos. As conseqüências
econômicas desse sistema de comunicações são muito graves: no início do século passado, em Mendonza,
uma próspera pequena cidade no caminho que vai de Buenos Aires a Santiago, onde o comércio era menos
importante que a agricultura, cerca de 10% da população era flutuante, já que formada por tropeiros.
A América espanhola tem caráter unitário, embora seja extraordinariamente subdividida em pequenas
áreas; recorda, em seu conjunto, a Europa do século XVI, atravessada por vias comerciais por meio das
quais é possível superar as distâncias, mas a um preço altíssimo, e que põem em comunicação, de modo
inteiramente insuficiente, unidades econômicas modestas e, com freqüência, não melhor ligadas àquelas
adjacentes que àquelas situadas do outro lado do mundo.
Já se viu que, por mais limitados que possam parecer seus resultados, as transformações ocorridas
podem só parcialmente ser atribuídas à evolução de forças internas às Índias espanholas. A Coroa de
Espanha preocupou-se em orientá-las e empenhou-se na aceleração do movimento. As inovações
introduzidas pela Coroa tem dois aspectos: comercial e administrativo; encaminharam a transformação da
estrutura do comércio inter-regional da América espanhola e favoreceram o surgimento de centros
baseados sobre a economia de exportação à margem da indústria de mineração. No que se refere ao
aspecto propriamente comercial a transformação foi muito ampla, mas a modificação no equilíbrio entre os
vários artigos de produção dá resultados muito modestos. Apenas na Venezuela e, mais tarde, em Cuba
manifesta-se um desenvolvimento completamente desvinculado da tradicional indústria mineradora.
A reforma comercial mostra-se mais eficaz no que se refere às importações. A liberdade de comércio no
âmbito do império aproxima as Índias da economia européia, diminui localmente os preços das mercadorias
importadas e torna possível aumentar o volume das mesmas. Essa transformação, que corresponde à
alteração das funções atribuídas à Índia em suas relações com a metrópole, está bem longe de significar
uma completa inserção dos consumidores potenciais da América espanhola num mercado metropolitano
unificado.
Entre a metade é o fim do século XVIII, os ingressos da Coroa triplicam, passando aproximadamente de
seis para dezoito milhões de pesos por ano. O aumento permite a formação de estruturas administrativas e
militares mais sólidas nas Índias e torna igualmente possível o envio para a Espanha de remessas mais
vultosas.
Por trás da reforma administrativa (testemunho da presença de uma Espanha mais vigorosa), seria
certamente um erro enxergar apenas a intenção de extrair maiores lucros da Índia. Há também o objetivo de
obter um fortalecimento político, considerado sobretudo do ponto de vista militar, que tanto era caro ao
despotismo iluminado. Para as autoridades espanholas, a melhoria administrativa era, ao mesmo tempo,

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um meio para obter outras finalidades e uma finalidade em si. Com efeito, elas se haviam convencido,
assim como os seus críticos mais corajosos, de que as insuficiências administrativas eram de tal modo
graves que, se continuasse a tolerá-las, isso terminaria por ameaçar a própria existência dos vínculos com o
império.
Os vice-reis tem funções administrativas, financeiras e defensivas sobre territórios muito vastos para
que possam cumpri-las adequadamente (até o início do século XVIII, existem apenas dois vice-reinados nas
Índias: o México e o Peru. Ao vice-rei, estão submetidos governadores e corregedores, administradores de
territórios menores, os primeiros designados pelo rei, os outros pelo vice-rei.
Os cabildos espanhóis são instituições organizadas sobre o modelo da metrópole. Tem jurisdição
administrativa e exercem a justiça de primeiro grau sobre zonas amplas e, em geral, escassamente
povoadas. Os conselhos municipais de índios só se instituem onde existem estabelecimentos bastante
densos de indígenas.
No curso do século XVIII, dentro do quadro tradicional, assistiu-se a um processo de constituição de
novas unidades administrativas e formaram-se dois novos vice-reinados: em 1717, o de Nova Granada,
suprimido posteriormente em 1724, e novamente restabelecido em 1739; e o do Rio da Prata, constituído
em 1776. Foram concedidos maiores poderes de decisão às autoridades regionais no âmbito dos vice-
reinados. Tanto na Espanha quanto nas índias, trata-se de conseguir pôr em funcionamento um aparato
administrativo mais solidamente controlado pela Coroa. Na América, a tentativa se expressa na mais
ambiciosa de todas as reformas administrativas do século XVIII: a criação dos intendentes do exército e das
finanças.
Na América, a nomeação dos intendentes – ou seja, a unificação de competências administrativas,
financeiras e militares, que antes eram distribuídas de modo demasiadamente irregular – significa um passo
à frente na criação de um corpo administrativo formado e dirigido pela metrópole e constituído
majoritariamente por espanhóis.
As reformas não conseguiram diminuir os conflitos institucionais e de competência, mas tão somente
abrir para eles novas possibilidades de desenvolvimento. Os progressos na luta contra a imensa corrupção
da administração colonial são modestos. Após a Independência, em mais de uma região, serão necessários
decênios para se obter a eficiência administrativa perdida com o fim do domínio colonial.
Esse insucesso apenas parcial, ademais, era inevitável. A Coroa se empenhava por constituir um corpo
de administradores que agisse verdadeiramente em favor dela e não em favor dos ambientes locais
interessados, protegidos contra a curiosidade da metrópole. O corpo de funcionários que se pode constituir,
porém, era numericamente muito limitado.
O poder dos agentes do rei continua a ser escasso por causa da corrupção e da margem de indisciplina,
que – embora não se transforme em rebelião aberta – pode ser muito ampla. A reforma não se propunha
apenas a controlar melhor as Índias; pretendia colaborar, pelo menos em parte, para o seu progresso e, por
conseguinte, os métodos centralizadores não estão em contradição com aqueles destinados a alcançar,
quando menos parcialmente, esse objetivo através dos organismos locais.
A reforma da administração estende-se ao âmbito militar; também aqui existe uma organização baseada
sobretudo em forças locais, que se pretende modificar através da constituição de um exército profissional,
núcleo das forças armadas das Índias, com soldados recrutados na península, e não mais
predominantemente entre os deliquentes. Aos oficiais desse exército, a reforma preocupa-se em assegurar
uma situação social respeitável, com privilégios especiais.

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O mesmo empenho de renovação pode ser encontrado na marinha. A preocupação com a guerra –
tanto na Espanha culta como nos outros despotismo mais ou menos iluminados – é muita próxima da
atenção para com o progresso técnico. Isso pode ser visto nas grandes linhas da política real e na atividade
exercida em nível mais modesto por mais de um oficial. No Rio da Prata, são os marinheiros que iniciam o
ensino sistemático das matemáticas, enquanto os médicos militares ensinam a sua arte sanitária...
Também a Igreja haveria de sentir os influxos da onda de renovação. Desde as origens da colonização,
a organização eclesiástica estivera solidamente em mãos do poder real; também as ordens religiosas,
menos diretamente subordinadas, não haviam escapado a um controle mais discreto. Os escritores liberais
atribuíam à Igreja a propriedade de quase toda a terra mexicana; é um exagero, mas as propriedades
urbanas e as riquezas mobiliárias dos institutos eclesiásticos eram certamente de grande magnitude.
Além de dominarem terras disseminadas entre as de propriedade espanhola, as ordens religiosas
dirigem iniciativas complexas, que tem a finalidade simultânea de difundir a religião e de governar; é o caso
das missões e aldeias de índios já convertidos, situadas nas fronteiras imperiais, desde o alto Paraná até à
Califórnia, onde desempenham uma precisa função política.
Do ponto de vista econômico, os jesuítas constituem um aparato de produção e comércio cuja eficiência
supera, em grande medida, àquele implantado pelas demais ordens, no âmbito cultural, deve-se aos
jesuítas contribuições essenciais à cultura da América espanhola. Depois da expulsão dos jesuítas, o clero
secular domina o panorama eclesiástico das Índias, sendo indubitável o fato de que a Coroa julga essa
modificação algo positivo. O clero secular não alcança, sob nenhum aspecto, o nível dos jesuítas, porém é
mais dócil e, na medida em que suas hierarquias são renovadas sob o impulso direito da Coroa, pode ser
plasmado segundo os desejos do monarca.
No momento da revolução, serão freqüentes os casos de párocos que se impõem aos fiéis não apenas
pelo temor que inspiram por causa do poder bastante terreno ao qual os fiéis já estão acostumados de há
muito (e não pelo respeito reverencial devido às suas vestes sacerdotais), mas também graças a uma
popularidade pessoal que os transforma facilmente em chefes de massas revolucionárias ou monárquicas.
Existe, portanto, um indiscutível progresso entre os padres seculares. Em alguns casos, estes
colaboram com entusiasmo; em outros, apenas com zelo, ao qual são obrigados enquanto súditos fiéis, com
a obra reformadora da Coroa.
As modificações da orientação oficial não impedem que as mais altas hierarquias conservem uma
preocupação bastante mundana pela própria carreira, que se expressa na dócil obediência às diretrizes
gerais da política real e em outros indícios menos decorosos. Apesar dos seus limites, a Igreja conserva a
situação inteiramente particular que lhe foi legada desde os primeiros tempos da conquista: instrumento de
governo e elemento indispensável do poder político colonial, mas sem ser considerada pela população
como algo totalmente estranho.
O Brasil sofreu, durante o século XVII, transformações maiores que o resto da América Latina. A região
mais importante, que fora inicialmente a do norte produtor de açúcar, transferiu-se para a parte central onde
se situam as minas. Ao mesmo tempo, a expansão portuguesa prosseguiu rumo ao norte e ao sul: ao norte,
teve lugar a colonização do Maranhão, bem como um início de penetração na Amazônia, enquanto ao sul
ocorreu a abertura de novos territórios do Rio Grande ao Sul à criação de gado.
No final do século XVII, inicialmente a decadência da economia baseada sobre o açúcar. A indústria
açucareira do Brasil de então será caracterizada por formas arcaicas de organização e de técnica,
conhecendo momentos de esplendor tão-somente quando a ação conjunta do protencionismo e da

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expansão de outros setores da economia brasileira lhe assegura o domínio de um mercado interno mais
amplo; ou então – o que ocorre excepcionalmente – quando fatos externos, como o colapso da produção
açucareira das Antilhas francesas, lhe restituem uma parte do mercado mundial.
A decadência do açúcar tem conseqüências imprevistas nas zonas periféricas. Sobrevive o mais antigo
aspecto da exploração econômica do Brasil, a exportação de madeira, de um pouco de ouro e de pedras
preciosas, artigos obtidos mediante trocas com a população indígena. Paralelamente a essas, outras
atividades adquiriram uma crescente importância, entre as quais a pecuária, nas terras situadas junto às
fronteiras imediatas da zona açucareira, além da caça ao homem, naquilo que virá a ser o Brasil Central.
Ao norte, a parte da costa que virá a ser o Ceará e o Maranhão povoa-se lentamente com alguns
colonos, cuja principal atividade é a caça aos índios, que são vendidos como escravos nas plantações de
cana-de-açúcar.
O cruzamento de europeus e africanos ocorre rapidamente, fazendo com que a presença africana na
vida e na cultura brasileira seja uma componente típica, que surge nessa época e continua a existir. Nessa
região de plantações, cujo atraso econômico empresta às relações sociais um caráter que os saudosistas
chamarão de patriarcal. A população negra é inserida mediante a utilização do que permaneceu das
estruturas africanas após a brutal transplantação; estabelecidos na base de afinidades étnicas, os negros
do norte brasileiro conservam – sob um sutil verniz de cristianismo – tradições religiosas e sociais trazidas
de suas terras de origem. Por conseguinte, e tendo em vista que a importação de negros escravizados
durou até o século passado, a África continuou a ser, para os negros brasileiros profundamente
americanizados, uma presença viva, o que não ocorreu nem para os negros dos Estados Unidos nem para
aqueles das Antilhas ex-britânicas.
Como em certas zonas periféricas espanholas (por exemplo, o Rio da Prata e o Paraguai), a
necessidade de povoar vastos territórios traduziu-se numa febril reprodução dos conquistadores e na
constituição de organizações familiares cuja distância do modelo monogâmico europeu encheu de horror
mais de uma testemunha. As duas grandes zonas brasileiras – o centro açucareiro e a fronteira não ainda
estabilizada – tem ambas uma população escassa, que tende a expandir-se rapidamente num espaço não
limitado por obstáculos geográficos importantes, a não ser a própria distância. No Brasil, assim, não há a
separação em compartimentos estanques que a geografia impôs à América espanhola. Os rios constituem
as vias essenciais de comunicação no interior do Brasil. Desse modo, a população – que, até 1700, não
superava certamente os quatrocentos mil habitantes, entre os quais os negros eram mais numerosos que
os brancos e os mulatos, enquanto esses últimos eram mais numerosos que os índios subjugados – a
população ocupava amplamente um território de três milhões de quilômetros quadrados. A descoberta do
ouro (em 1698) e, trinta anos depois, a dos diamantes haveria de alterar o destino do Brasil.
A indústria mineradora produziu nova riqueza para o Brasil e a importação de escravos ganhou um ritmo
mais intenso. O pequeno empreendimento de busca e exploração do ouro, como posteriormente aquele de
diamantes, permitiu a presença de uma multidão de empresários individuais e provocou uma imigração da
metrópole que não tem similar na América espanhola. No final do século XVIII, graças especialmente a esse
fluxo de imigrantes, o Brasil alcançou três milhões de habitantes. O Brasil dos buscadores de ouro, mesmo
depois de sua decadência, estendera-se de modo irreversível para o norte e para o sul. No século XVIII, o
Rio Grande do Sul transforma-se em território de pecuária, com características comparáveis àquela do
vizinho Rio da Prata. Suas peles são buscadas pelos mercados europeus, mas os muares e a carne seca

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são absorvidas pelas zonas mineradoras do Brasil central e pelas regiões setentrionais onde se produz o
açúcar.
A economia açucareira entra em ligeiro aumento até 1760, para sofrer no final do século um colapso
que a fará voltar ao nível de um século antes.
No início do século XIX, a prosperidade do Brasil mal esconde os profundos desequilíbrios de um país
em que os centros açucareiros ainda importantes não tem mais caráter hegemônico sobre o conjunto da
produção e no qual, depois de 1770, as atividades mineradoras diminuem rapidamente de importância. O
desenvolvimento do Brasil nesse período decisivo é levado adiante pela região em torno do Rio de Janeiro,
por aquela do Maranhão e pela do extremo sul.
As alternativas da prosperidade brasileira são também ligadas à mutável política comercial da Coroa.
Desde o início do século XVIII, a economia portuguesa se insere completamente na área britânica. O
acordo com a Grã-Bretanha, se protege a produção vinícola portuguesa, não oferece nenhuma defesa para
a agricultura colonial, que dificilmente consegue colocar-se no mercado britânico. Tão somente na época de
Pombal houve tentativas no sentido de organizar o desenvolvimento da agricultura colonial através de um
sistema de companhias comerciais privilegiadas. A tentativa teve êxito no Maranhão, mas fracassou nas
zonas das plantações de cana-de-açúcar. A Companhia conseguia promover a difusão de produtos que já
tinham um mercado, mas não era capaz de abrir novos mercados para uma produção já abundante, como
era o caso do açúcar.
A importância do setor açucareiro, não obstante sua continua decadência, é também comprovada pela
demografia brasileira; no Nordeste, particularmente na Bahia, produtor de açúcar e algodão, concentra-se a
maior parte da população. Dessa, 50% são negros, quase todos escravos; 7%, índios; 23% brancos; e o
restante é formado por mestiços e mulatos. A sociedade brasileira é menos influenciada por preconceitos de
casta que a espanhola, o que não é de espantar se lembrarmos que a diferença de origem era protegida por
um instituto estabilizador excepcionalmente eficaz: a escravidão. Por outro lado a maior importância da
imigração da metrópole contribuía para produzir um equilíbrio diverso do restante da América Latina.
Nas cidades, existe uma antiga tradição mercantil. É o caso de Recife e da Bahia, no norte, e do Rio de
Janeiro, no centro. No norte, quando da última fase de sua luta, os senhores de engenho tiveram a seu lado
os comerciantes locais; com efeito, tratava-se de eliminar as companhias privilegiadas, instrumento utilizado
pela metrópole com o fim de se apropriar dos ganhos da produção colonial. No Rio, o período da extração
do ouro foi o de maior desenvolvimento dos setores comerciais locais.
A diversificação entre produtores e comerciantes no Brasil tem um sentido diferente daquele do resto da
América Latina; aqui existe um amplo setor agrário cuja produção dirige-se para o ultramar, um setor
controlado por uma classe homogênea de grandes proprietários de terra. Portugal tem estruturas
econômicas mais débeis que a Espanha e, além disso, não consegue seguir uma política tão precisa e,
sobretudo, com o mesmo poder de determinação que a espanhola. A debilidade demonstrada pelo pequeno
Portugal diante de sua imensa colônia reflete-se nas relações sociais; o Brasil só vem a dispor muito tarde
de uma administração colonial comparável, em coesão, àquela presente na América espanhola desde a
segunda metade do século XVII.
A transformação do país em colônia da Coroa é mais lenta que no resto da América Latina e, além
disso, é incompleta (das últimas jurisdições privadas sobre as capitanias são resgatadas pela Coroa, com
pagamento em dinheiro, tão somente no início do século XVIII). Quando, do primeiro Brasil, surge um novo,
aquele do açúcar, formar-se-á também uma classe de proprietários de terra cuja mão-de-obra não depende,

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como na América espanhola, de concessões mais ou menos gratuitas da Coroa, mas é constituída por
escravos negros adquiridos ao preço do mercado.
Na América espanhola, a propriedade da terra e a riqueza nem sempre estão ligadas; no Brasil, ocorre o
inverso e, por isso, a classe dominante dispõe de um poder que falta frequentemente à sua congênere da
América espanhola. Desse modo, a constituição do poder central no Brasil não ocorre em luta contra
efetivos poderes locais; esses sempre encontram maneiras de dominar as instituições criadas para controlá-
los. O poder central nasce fraco e elabora táticas adequadas a essa debilidade: a história do século XVIII
brasileiro é rica de choques armados inter-regionais – no norte, entre Olinda e Recife; no centro, entre
nortistas e paulistas em Minas Gerais –, diante dos quais o poder real comporta-se unicamente como um
árbitro bastante tímido.
Os progressos da estrutura administrativa ocorrem lentamente, mas sem interrupções. Durante o
período de unidade com a Espanha, na base do modelo sevilhano, constituíram-se em Lisboa instituições
para o governo das Índias. Após a restauração e particularmente no século XVIII, a máquina administrativa
no Brasil tornou-se mais complexa; criaram-se novas divisões administrativas, na medida em que, graças à
expansão mineira, vão-se povoando as regiões centrais e meridionais. Em 1717, o Brasil torna-se um reino,
governado por um vice-rei, o qual, em 1763, transfere sua sede da Bahia para o Rio de Janeiro, o porto do
ouro.
A situação da Igreja e das ordens religiosas é análoga. O predomínio dos jesuítas é ainda maior que no
resto da América Latina. No Brasil, a Companhia de Jesus, embora rica e poderosa, deve prestar contas,
exatamente como o faz o poder real, às camadas locais, mais unidas e, por isso, mais fortes que na
América espanhola. Talvez essa diferença explique a serenidade com que o Brasil assistiu em 1759 à
expulsão dos jesuítas, enquanto na América espanhola essa expulsão encontrou resistências.

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Capítulo 2:
A Crise da Independência

Em 1825, Portugal perdera seus territórios americanos, enquanto a Espanha conservava apenas Cuba e
Porto Rico. Quais os motivos de uma catástrofe tão rápida? No que se refere à América espanhola, onde o
problema se apresenta com maior agudeza, foram destacadas, em várias oportunidades, as conseqüências
da reforma (apenas parcialmente exitosa) do pacto colonial.
Junto à reforma econômica, havia reforma político­administrativa. Os problemas fundamentais do
governo da América Latina não haviam sido resolvidos. Difícil era o recrutamento de funcionários dispostos
a defender os interesses da Coroa com uma honestidade heróica, dada a poderosa fermentação dos
interesses locais coligados. A reforma, sem dúvida, assegurou às colônias uma administração mais eficiente
que a anterior. Mas foi precisamente essa, uma das causas profundas da sua impopularidade: os colonos
preferiam uma administração ineficiente e, por isso mesmo, menos temível. Todavia, não era a única causa;
havia ainda a bem conhecida preferência da Coroa pelos funcionários metropolitanos. O protesto contra o
homem proveniente da Península, que fizera carreira graças à sua origem metropolitana, escondia ­ às
vezes com dificuldade ­ a aversão para com uma testemunha incômoda, estranha ao ambiente de

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cumplicidade localmente dominante (e que, no melhor dos casos, tinha de ser introduzido através da
corrupção).
Tanto a hostilidade contra os peninsulares favorecidos na carreira administrativa (e na eclesiástica e
militar), quanto a oposição à crescente centralização, eram apenas um aspecto das reações provocadas na
colônia pelo influxo crescente de uma metrópole em fase de renovação.
Pode­se talvez buscar motivos menos discutíveis do fim da ordem colonial na renovação ideológica que
a cultura hispano­americana atravessava, enquanto parte da cultura espanhola, durante o decorrer do
século XVIII. Essa renovação, colocada sob a égide do iluminismo, não tinha necessariamente um conteúdo
revolucionário do ponto de vista político. Durante uma primeira e longa fase, manteve­se no âmbito de uma
escrupulosa fidelidade à Coroa. A fé na função renovadora da Coroa parece traduzir em termos racionais
uma mais antiga fé no rei, como chefe daquele corpo místico que é o reino.
Essa fé antiga e nova, tanto na América Latina quanto na Península Ibérica, tinha certamente, desde o
fim do século XVIII, os seus descrentes.
As rebeliões, mais que indicar a presença de novos elementos premonitórios da crise, revelam a
persistência de debilidades estruturais, cujas conseqüências haveriam de se tornar cada vez mais evidentes
na nova fase de desagregação que se aproximava.
É indubitável, que do México a Bogotá, onde em 1794 Antonio Nariño começava a sua carreira
revolucionária traduzindo a Declaração dos Direitos do Homem; a Santiago do Chile, onde em 1790 era
descoberta uma “conspiração dos franceses”; a Buenos Aires, onde, quase nessa mesma época, outros
franceses parecem ter conseguido despertar em alguns escravos a esperança de uma libertação próxima
graças a uma revolução republicana; ao Brasil, onde em Minas Gerais, no ano de 1789, é descoberta e
reprimida uma manifestação de atividade conspirativa secessionista e republicana; nas mais variadas
localidades da América Latina, dizíamos, existem claros sintomas de uma nova inquietação.
Verdadeiramente novas, depois de 1776 e sobretudo de 1789, não são as idéias, mas a própria
existência de uma América republicana, de uma França revolucionária. O desenvolvimento dos fatos faz
com que essas novidades interessem cada vez mais à América Latina. Portugal está fechado numa difícil
neutralidade, ao passo que a Espanha ­ convertida em 1795 numa aliada da França revolucionária e
napoleônica demonstra uma fraqueza cada vez maior entre as gigantescas lutas iniciadas com o ciclo
revolucionário. Na América espanhola, a crise da independência é a conseqüência da desagregação do
poder espanhol, iniciada por volta de 1795 e que assume um ritmo cada vez mais intenso.
Um primeiro aspecto da crise era o isolamento progressivo do centro metropolitano. A guerra com a
Grâ­Bretanha desenvolve­se no Atlântico e mantém a Espanha cada vez mais distante de suas Índias. É
cada vez mais difícil enviar novos soldados e funcionários; é impossível manter o monopólio comercial. Um
conjunto de providências de emergência, autoriza a abertura do comércio colonial a outras regiões
(dependências estrangeiras e países neutros) e concede aos colonos a liberdade de participarem na
arriscada navegação pelas vias internas do império.
De Havana a Buenos Aires, toda a margem atlântica do império espanhol valoriza essas vanatgens e
pretende conservá­las no futuro. Uma vez diminuída a pressão política e econômica da metrópole,
abrem­se a essas colônias novas e inesperadas possibilidades.
Os primeiros cinco anos do novo século, caracterizados por preços altos e por uma exportação mais
fácil, são seguidos por anos muito difíceis. Essas oscilações provocam uma impaciência ainda maior do que
a suscitada pelas limitações, graves mas uniformes, do passado colonial; produtores e

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comerciantes­especuladores, privados de seus mercados por causa das vicissitudes da política
metropolitana, tendem a considerar o vínculo colonial, cada vez mais, como uma desvantagem; a aspiração
a uma política comercial elaborada pelas próprias colônias torna­se cada vez mais viva.
A ampliação dessa aspiração e talvez, e ainda mais, o espetáculo de uma metrópole que não é capaz
de dirigir a economia de suas colônias, por causa da própria inferioridade naval, isola cada vez mais as
colônias, que havia sido um sucesso do despotismo iluminado espanhol. Por outro lado, a Europa das
guerras napoleônicas ­ esse bloco continental ávido de produtos tropicais ­ e, sobretudo, essa Inglaterra
obrigada a buscar novos mercados em substituição aos que lhe estão fechados ­ está pouco disposta a
considerar as Índias, como o havia feito no século XVII uma área periférica, aberta apenas ao contrabando.
Para outro (em particular para os proprietários de plantações, que haviam conhecido naqueles anos
febris alternativas de prosperidade e de isolamento ruinoso), a independência significa, ao contrário, um
vínculo mais sólido com as novas metrópoles econômicas, um vínculo mais sólido com as novas metrópoles
econômicas, um vínculo que só ilusoriamente poderia ser considerado de igualdade. São esses alguns dos
problemas colocados pela dissolução do vínculo colonial, mesmo antes de sua ocorrência efetiva.
Em 1806, as guerras napoleônicas assentam um primeiro golpe grave no domínio espanhol nas Índias;
em 1810, diante dos novos elementos que parecem assinalar a inevitável ruína da metrópole, a revolução
explode desde a Cidade do México até Buenos Aires.
Em 1806, a capital do vice­reinado do Rio da Prata é conquistada de surpresa pelos ingleses. As forças
militares locais são derrotadas após uma rápida tentativa de defesa; e isso apesar de Buenos Aires, após a
guerra que levou à conquista de Sacramento, ser ­ pelo menos no papel ­ um dos centros militares mais
importantes da América espanhola.
A guerra espanhola de independência é aspecto de um conflito mundial, sem o qual ela não teria
ocorrido. A expulsão dos franceses, com efeito, tornou­se possível graças à presença de um corpo
expedicionário britânico; já entes, a resistência espanhola fora encorajada pelo que ocorria no resto da
Europa conquistada pelos franceses. Além disso, apóia­se numa mobilização popular que se insere muito
bem no novo modo de combater introduzido pela revolução, ainda que as palavras­de­ordem do movimento
fossem contra­revolucionárias.
A Espanha anti­napoleônica, cada vez mais abatida pelas vitórias francesas, passa da provisória
legalidade do conselho de regência à revolução, formalmente mascarada, mas expressa de modo
inequívoco pela cortes liberais de Cádiz e dispõe de meios cada vez menores para exercer uma influência
qualquer sobre as Índias. Na América espanhola, desencadeiam­se as tensões acumuladas nos períodos
precedentes, desde o reformismo iluminista até aquelas derivadas do isolamento de guerra.
Inicialmente, entram em choque forças locais, e os grandes corpos administrativos entram no conflito
político para conferir o prestígio da legitimidade, de outro modo sempre duvidosa, às soluções impostas
pelas várias forças em jogo.
Os movimentos nativos haviam conseguido manter­se no âmbito, cada vez mais amplo, da legalidade.
Em 1809, chega­se à rebelião aberta.
Dos dois pontos de dissídio, ­ relações com a metrópole e situação dos espanhóis nas colônias, ­ as
circunstâncias contribuíam para por o acento no segundo. A Espanha estava quase inteiramente
conquistada pelos franceses; a supremacia naval britânica impediria a ampliação do domínio francês às
Índias, mas, ­ em 1809 ou 1810 ­ tudo parecia indicar que a inserção da Espanha no império napoleônico
seria um processo irreversível. Por outro lado, a Espanha que resistia aos franceses, reduzida primeiro à

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Andaluzia e depois a Cádiz, parecia disposta a rever o sistema de governo das Índias e a integrar as
províncias de ultramar num reino renovado mediante a adoção de institutos representativos. Isso no que se
refere ao futuro político das Índias; quanto ao econômico, a aliança britânica ­ da qual dependia a
sobrevivência dessa Espanha ­ garantia o fim do velho sistema monopolístico. Foi o último vice rei do Rio
da Prata quem autorizou a liberdade de comércio com a Inglaterra, lançando assim as bases da economia
da Argentina independente.
Em 1810, a derrota aparentemente inevitável da Espanha antinapoleônica parecia quase definitivamente
concluída. A perda da Andaluzia limitava a Cádiz e a algumas ilhas do seu golfo o território que se
mantivera fiel.
Na crise do sistema político espanhol, o pensamento revolucionário podia estar mais sujeito a flutuações
do que deixa supor a tese do duplo jogo político. Essa tese, com efeito, tende a pôr na sombra um fato
muito importante: os revolucionários não se considerem rebeldes, mas herdeiros de um poder caído,
provavelmente para sempre.
Essas considerações parecem necessárias para avaliar o problema do tradicionalismo e de quanto
existe de novidade no movimento da emancipação. Mais ainda que as idéias políticas da velha Espanha,
retomadas não sem deformações pela educação iluminista, os protagonistas da insurreição ­ que negam ser
tais ­ reclamam o apoio das instituições jurídicas espanholas. O novo regime, ao mesmo tempo em que não
se cansa de execrar o velho ordenamento, aspira a ser seu herdeiro legítimo, tendo interesse em mostrar os
defensores do antigo regime como rebeldes à autoridade legítima.
Por ora, a revolução é um drama que se desenrola num palco restrito. As elites nativas das capitais se
vingam das afrontas sofridas assumindo o posto dos seus adversários metropolitanos. Embora sejam
hábeis para cobrir­se com a bandeira da legalidade, eles sabem antecipadamente que essa atitude os
colocará em situação vantajosa no combate com os próprios adversários internos, mas não impedirá a
resistência desses.
A revolução não tinha provocado, nas zonas monárquicas, menos modificações que naquela
revolucionárias. Por toda parte os resultados era análogos, e, em primeiro lugar, os resultados políticos e
militares. Tão somente na Venezuela e em algumas zonas periféricas do Rio da Prata tinha havido, na
verdade, uma mobilização popular em ampla escala, que envolvera as estruturas institucionais
pré­existentes.
Mesmo se prescindirmos desses casos limites, os mais prudentes líderes dos legitimistas e dos patriotas
viam­se obrigados a embrenhar­se por um caminho cujo posterior percurso, com razão, os alarmava.
Tinham de constituir exércitos cada vez mais numerosos, cujos quadros eram fornecidos apenas pelas
classes elevadas. Ou seja: tinham de armar massas importantes de soldados recrutados entre a plebe e as
castas inferiores, mantê­los em condições satisfatórias, e isso implicava uma certa tolerância para com as
promoções.
Tudo se resume, no fim das contas, a uma imensa destruição de riquezas, sobretudo de metais
preciosos: os tesouros acumulados pelas oligarquias urbanas, pelas igrejas e pelos conventos, bem como
aquele investidos em obras de desenvolvimento econômico pelos consulados de comércio, são devorados
pela guerra. As plantações são devastadas; e o gado, em particular, é utilizado para finalidades bélicas.
E, a tais subversões econômicas, somam­se outras, no quadro de um sistema econômico que ampliou
a liberdade de comércio não apenas nas zonas controladas pelos patriotas. Todos os tipos de mercadoria

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são agora disponíveis a preços mais baixos e. com isso, se inicia a lenta ruína dos artesãos de várias zonas
rurais.
A luta contra os peninsulares significa por de lado, sem possibilidade de substituição imediata, uma
parte importante das classes altas de origem colonial. Inclusive na tranqüila Buenos Aires, os espanhóis são
proibidos por lei, a partir de de 1813, de exercerem o comércio a varejo, o que não lhes impede, por muitos
anos, de figurarem na cabeça das listas de subscrição forçada para manter a causa revolucionária. Essa
tragédia silenciosa, que culminará na guerra de vida ou morte, já começou a transformar o aspecto da
sociedade hispano­americana. O perigo que a humilhação e o empobrecimento dos peninsulares
representava para as classes altas era percebido por alguns dirigentes revolucionários, mas não havia
nenhuma alternativa: cabia­lhes dirigir esse arriscado processo.
Não é de surpreender que a guerra civil tenha prosseguido. Resultado da rigidez dos autores da
restauração, mais que a continuação da guerra, foi o aumento dos seus adversários. Por outro lado, o
conflito assumia um novo caráter. Se, depois dos primeiros envios de novas tropas para o Peru e a
Venezuela, as ajudas da Espanha voltam a escassear, essa ainda faz sentir a sua presença dirigindo mais
de perto as tentativas para suprimir totalmente o movimento revolucionário. A transformação da guerra civil
em guerra colonial causa novas tensões entre os legitimistas: oficiais e soldados espanhóis e nativos cedo
se verão divididos por fortes rivalidades. As soluções políticas subordinavam­se agora às militares; e uma
guerra propriamente dita assumia o lugar dos episódios armados de uma complexa revolução.
Entre a primeira e a segunda etapa da revolução americana, ocorre na Europa a Restauração; e, para a
revolução, isso foi uma fonte de perigos, mas também de novas possibilidades. O governo britânico, que até
então conservara uma cautelosa ambigüidade, ainda não se resolvia a assumir uma atitude explicitamente
favorável à causa revolucionária, mas passará a ser menos vigilante em relação aos voluntários e, o que é
mais importante, aos fornecimentos de material bélico para os exércitos que combatem os legitimistas.
As vitórias legitimistas de 1814­15 pareciam indicar uma antecipação da crescente intervenção do
exército espanhol na América. Isso não sucedeu, visto que a restauração absolutista na Espanha tinha
muitos problemas internos a resolver e não podia assim dedicar uma atenção contínua à submissão das
colônias em revolta; e, além disso, tinha de acertar contas com as vigorosas tendências liberais no seio do
exército, ao qual cabia a tarefa da reconquista.
O retorno do absolutismo à Espanha, em 1823, chegou muito tarde para influir sobre os novos
equilíbrios locais, mediante os quais se preparava a conclusão da guerra de independência, e se traduziu
num ainda maior enfraquecimento do peso da metrópole no conflito hispano­americano.
A guerra de independência avançava para seus objetivos finais. Apenas o Alto Peru, as zonas
montanhosas do Baixo Peru e algumas áreas insulares do Chile meridional ainda eram fiéis ao rei. O
avanço da revolução fora obra de San Martín e de Bolívar; o primeiro havia partido das bases que
abasteciam as províncias do Rio da Prata, enquanto o segundo, no início, nem sequer possuía uma base no
continente. Ambos deram início a campanhas militares de proporções continentais.
Somente uma série de êxitos militares, obtidos graças aos reforços provenientes do norte, permitiu a
Bolívar sobreviver. A vitória de Junín, em agosto de 1824, permitiu­lhe o acesso à serra; em Ayacucho, a 9
de dezembro desse mesmo ano, Sucre ­ comandando uma frota constituída por colombianos, chilenos,
argentinos e peruanos ­ derrotava o vice­rei La Serna e o tornava prisioneiro. A capitulação de La Serna pôs
fim à resistência peruana; Callao só capitulou e 1826.

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As últimas zonas da América meridional eram subtraídas ao domínio espanhol. De Caracas a Buenos
Aires, canhões e sinos anunciavam o fim da guerra. Na América do Norte, ela já havia terminado; desde
1821, o México se tornara independente.
Essa independência resultara de uma revolução bem diversa das ocorridas na América do Sul. A
iniciativa não partira das elites nativas urbanas, como na América do Sul, onde, ­ apesar de todas as
vicissitudes ­ elites haviam conservado o controle do processo a que tinham dado início; no México, ao
contrário, a revolução fora inicialmente uma revolta de índios e mestiços, na qual só multas décadas depois
a nação independente, virá a reconhecer sua própria origem.
A própria guerra, a sua longa e imprevista duração, as transformações que havia operado no coração da
revolução, quase por toda parte obrigada a ampliar as próprias bases (que eram ampliadas também pelo
agrupamento contra­revolucionário), pareciam ser o mais evidente motivo da defasagem flagrante entre o
futuro entrevisto em 1810 e a obscura realidade de 1825. Mas não era o único; e, nesse aspecto, o Brasil
oferece um útil termo de comparação. A independência fora conseguida sem luta digna desse nome, com
todas as diferenças que derivam desse fato, além daquelas já existentes, no período anterior, entre América
portuguesa e América espanhola; e, apesar disso, a história do Brasil independente foi agitada (e às vezes
com violência) pelos mesmos problemas de fundo existentes nos novos Estados da América espanhola.
As diversidades entre a independência do Brasil e a dos demais países da América Latina são
conseqüência de um processo de diferenciação que tem origens remotas. Com a restauração de 1640,
Portugal renunciara ao desempenho das funções de metrópole econômica com relação aos seus territórios
americanos, inseridos ­ tal como o próprio Portugal ­ na órbita britânica. O empenho do despotismo
iluminando português para reforçar a participação metropolitana na vida brasileira fora necessariamente
menos ambicioso que o da Espanha de Carlos III. A segunda conquista, contra a qual se havia endereçado,
ainda mais que contra a primeira, a revolução liberadora hispano­americana, fora no Brasil menos
importante.
As diversidades na estrutura local, aduzia­se também a diferente posição do Brasil na perspectiva
política internacional, que adquiriu uma importância cada vez maior com as guerras revolucionárias e
napoleônicas. Portugal, após uma primeira tentativa de inserir­se, ainda que muito em segundo plano, no
bloco contra­revolucionário, refugiara­se numa neutralidade baseada sobre o duplo temor da potência naval
britânica e da força militar francesa, que a aliança franco­espanhola transformava numa ameaça direta.
Nem sequer o bloqueio continental levou Portugal a modificar sua posição.
Na vida brasileira, ocorreram profundas mudanças em conseqüência da perda da metrópole. O Rio de
Janeiro, capital de uma colônia cuja unidade ainda não estava consolidada, tornava­se imprevistamente
sede da corte... Por outro lado, e de modo bem mais radical que no resto da América Latina, o alinhamento
com a Inglaterra provocava mudanças no sistema comercial. Tudo isso não ocorria sem atritos, mas as
relações de força não permitiam uma resistência, ainda que moderada, à inserção do Brasil na área
britânica. A Coroa, além do mais, graças à experiência que obtivera nos vinte últimos anos de história
européia, não era incentivada a assumir arrogantes. Os já frágeis laços entre o Brasil e Portugal eram assim
ainda mais enfraquecidos.
A ruptura foi acelerada, ainda mais, pela difusão de correntes republicanas no Brasil e pela tendência da
maioria do parlamento português a fazer com que a colônia voltasse a uma situação verdadeiramente
colonial, ainda que mascarada por uma união das províncias européias e americanas, essas últimas
representadas parcamente no governo central. Após a exigência peremptória dirigida ao infante pelo

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parlamento liberal no sentido de obedecer rigorosamente às suas diretrizes centralizadoras, Dom Pedro
proclamou às margens do Ipiranga, a 7 de setembro de 1822, a independência do Brasil. O reconhecimento
da nova situação ocorreu de maneira relativamente fácil; em 1825, graças à mediação britânica, e não sem
certa pressão, a corte de Lisboa aceitava o fato consumado. O Império do Brasil, surgido pacificamente na
antiga colônia, num período histórico pouco favorável às formas republicanas, foi repetidamente citado
como exemplo para a turbulenta América espanhola.
Na ausência de uma crise profunda de independência, o poder político continuava a estar em mãos dos
grupos dirigentes que se haviam formado durante o período colonial. No âmbito desses grupos, havia
motivos suficientes de luta para assegurar ao Brasil independente uma vida aditada. As repercussões dos
contrastes não serão tão vivas no Brasil como na América espanhola, mas toda a América Latina tinha
dificuldade para encontrar um novo equilíbrio interno, capaz de absorver as conseqüências das alterações
que a independência trouxera consigo.

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Capítulo 3:
A Longa Espera

Em 1825, terminava a guerra de independência, deixando uma pesada herança em toda a América. A
ruptura das estruturas coloniais fora causada por uma profunda transformação dos sistemas comerciais,
pela perseguição dos grupos mais estreitamente ligados à antiga metrópole (que haviam controlado o
sistema anterior); e a ruptura fora finalmente aguçada pela militarização, que impunha dividir o poder com
grupos que antes estavam excluídos do mesmo... No Brasil, uma passagem mais pacífica parecia ter
evitado mudanças catastróficas; mas também aqui, a independência sancionava o fim do regime colonial.
Esperava-se que, das ruínas desse regime, surgisse uma nova ordem, cujas linhas fundamentais
haviam sido previstas desde o início das lutas pela independência. Mas a nova ordem tardava a nascer. A
primeira explicação, a mais otimista, buscava a causa desse desconcertante atraso na herança da guerra.
Não obstante, as mudanças são impressionantes; nenhum setor da vida da América espanhola foi
poupado pela revolução. A violência é o mais evidente dos fatos novos; como já se viu, na medida em que a
revolução das elites nativas urbanas não consegue obter resultados imediatos, sua base tende a ampliar-se
progressivamente, ao mesmo tempo em que um processo similar se verifica entre os que tentam sufocá-la.
A guerra de independência se transforma num conjunto de conflitos, nos quais encontram expressão
antagonismos raciais, regionais e de grupo, por muito tempo reprimidos; e se torna – segundo as narrações
dos cronistas patriotas e legitimistas – uma sucessão de “sangue e horror”, da qual os dois agrupamentos
contrapostos dão versões simetricamente mutiladas. Paralelamente à violência plebéia, por imitação e mais
frequentemente por reação, desenvolve-se um novo estilo na atividade das elites nativas, que em quinze
anos de guerra formaram um corpo de oficiais que é sua expressão. Esse oficiais, obrigados a viver e a
fazer viver os próprios soldados no país ocupado, legitimista ou patriota, terminam por adquirir um espírito
de grupo que rapidamente se consolida; tornam-se assim um pesadelo e, ao mesmo tempo, um instrumento
de poder para o grupo social que desencadeou a revolução e pretende continuar a dirigi-la.
Desde os generais – que, como Prudhomme, dedicaram a espada à defesa da república e também,
quando necessário, ao seu combate – até os comandantes das formações rurais – que nem sempre perdem

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a oportunidade de transformar-se em assaltantes, contanto que valha a pena – os chefes de grupos
armados rapidamente se tornam independentes de quem os convocou e organizou. Na Argentina,
Venezuela, Nova Granada e Chile, - ou seja, nos países que conduziram operações militares fora das
próprias fronteiras, - constituíra,-se milícias rurais para manter a ordem no local. Essas milícias, mais
adequadas às estruturas regionais do poder, e também menos custosas, começam a inserir-se na luta
política, tornando-se intérpretes do protesto das populações esmagadas pelo peso do exército regular.
Os Estados recém-formados terminam por gastar mais do que arrecadam, mesmo porque só
excepcionalmente o exército consome menos da metade do orçamento. O peso das forças armadas – que
se faz sentir no exato momento em que tem início uma democratização, ainda que limitada, mas real, da
vida política e social da América espanhola – é inicialmente um aspecto do processo de democratização;
mas, bem cedo, transforma-se numa garantia contra uma extensão excessiva desse processo.
A democratização constitui uma das mudanças trazidas pela revolução.
O significado da escravidão se modificou: embora os novos Estados não se demonstrem dispostos a
aboli-la (escolhem, ao contrário, situações de compromisso, como a proibição do comércio e a liberdade
para os filhos dos escravos, a guerra os induz a emancipações cada vez mais amplas. A emancipação tem
a finalidade de recrutar soldados; e, além desse objetivo imediato, em alguns casos se busca explicitamente
conservar o equilíbrio racial, garantindo que também os negros forneçam a sua cota de mortos em combate.
É esse o argumento de Bolívar em apoio às providências que tomou, e que não eram aceitas pelos
proprietários de escravos. A escravidão doméstica perde importância, enquanto a agrícola resiste melhor
nas zonas das plantações, que não poderiam sobreviver sem ela. O Instituto da escravidão, antes de ser
abolido (quase por toda parte na metade do século), perde importância. Os negros emancipados não serão
reconhecidos como iguais à população branca e nem mesmo à mestiça; mas a posição deles será
profundamente diferente numa sociedade que, se não é igualitária, organiza porém as desigualdades de um
modo diverso da velha sociedade colonial.
Os mestiços, mulatos livres e, em geral, todos os que são colocados juridicamente em segunda linha
nas sociedades urbanas e rurais e que exercem uma atividade livre retiram maiores vantagens da
transformação revolucionária, enquanto a população indígena conserva de fato – e em parte também de
direito – o velho estatuto. Na primeira etapa revolucionária, enquanto a população indígena conserva de fato
– e em parte também de direito – o velho estatuto. Na primeira etapa revolucionária, os recenseamentos
incluem ainda a velha divisão em castas; mas a rápida diminuição dos habitantes classificados como de
“Sangue misto” indica como sob esse ponto do vista, existe uma nova situação nas sociedades pós-
revolucionárias.
Uma outra modificação ocorreu ao mesmo tempo, facilitada pelo enfraquecimento do sistema das
castas, embora não seja idêntica a tal enfraquecimento: alterou-se não apenas a relação de forças entre as
elites urbanas pré-revolucionárias e os mulatos e mestiços das cidades, mas também aquela com os
brancos pobres, que antes haviam encontrado as maiores dificuldades para aceder às camadas superiores.
A revolução dava armas a grandes massas e trazia um novo equilíbrio de forças, no qual o número
contava mais do que antes. Disso se beneficiava particularmente a população rural, que constituía na época
a esmagadora maioria.
Mas uma outra conseqüência, talvez mais importante, incidiu sobre a camada dos grandes proprietários
tomados em seu conjunto: durante o período colonial, ela estivera em posição subordinada, e ao, contrário,
está em ascensão na sociedade pós-revolucionária. As elites urbanas devem se adaptar às conseqüências

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dessa promoção o processo revolucionário trouxe-lhes prejuízos mais diretos. Elas tiveram de suportar os
primeiros choques da repressão, revolucionária ou legitimista, e, na maioria dos casos, tornaram-se mais
pobres.
A revolução não subtrai apenas das elites urbanas uma parte variável – e muito desigualmente
distribuída – das suas riquezas. É talvez mais grave ter retirado poder e prestígio ao sistema institucional
com o qual aquelas elites se identificavam e que gostariam de dirigir sozinhas, sem dividi-lo com os
peninsulares intrusos, favorecidos pela Coroa. A vitória dos nativos leva a um resultado paradoxal: a luta
destruiu aquilo que devia ser o prêmio do vencedor. Os novos poderes revolucionários tiveram de substituir
os altos cargos estatais, neles colocando elementos fiéis; e, desse modo, subtraíram-lhes o poder e o
prestígio, ao transformá-los em funcionários – poucos autônomos – do poder central. Na igreja tem lugar um
processo análogo: durante o período colonial, havia sido estreitamente vinculada à Coroa e, também agora,
não se salva da politização revolucionária. Em Buenos Aires, um líder da revolução indica assim as novas
tarefas dos eclesiásticos: libertados da opressão do antigo regime, eles devem por a sua eloqüência a
serviço da nova ordem; quem não o fizer, demonstrar-se-á indigno da liberdade e dela será privado. A
depuração dos bispos e párocos, expulsos, encarcerados, substituídos por sacerdotes patriotas designados
pelo poder civil, transforma não apenas a composição do clero da América espanhola, mas também as suas
relações com o poder político.
A Igreja se empobrece e submete-se assim cada vez mais ao poder político. Com as reduções ao
estado laico, amplamente concedidas pelas autoridades eclesiásticas – os religiosos passam a sobressair
na vida política e no exército. O processo, ademais não é freiado do exterior; enquanto a Igreja colonial
dividiu sua lealdade entre Roma e Madri, a Igreja revolucionária está isolada de ambos esses centros. O
papa não reconhece outro soberano legítimo além do rei da Espanha, e os novos Estados se proclamam
herdeiros das prerrogativas madrilenhas no que se refere ao governo da Igreja das índias. Daí resulta que
os representantes apostólicos (nem o Vaticano, nem os novos governos ousam nomear bispos) e os
párocos são designados – e frequentemente afastados – pelas autoridades civis e de acordo com critérios
políticos. As autoridades eclesiásticas, tal como as civis, perderam em boa parte as vantagens materiais de
que costumavam dispor. Além disso, perderam prestígio.
Em tais condições, enfraquecidas as bases econômicas do seu poder, por causa do custo da guerra e
da vitoriosa concorrência dos comerciantes, estrangeiros, bem como removidas as bases institucionais do
prestígio social, as elites urbanas foram obrigadas a aceitar sua integração em posição muito subordinada
em um novo ordenamento político, cujo núcleo é constituído pelos militares. Todos os que conseguiram
salvar uma parte importante da própria riqueza apreciam na hegemonia dos militares a capacidade –
limitada, decerto, e custosa, mas no momento insubstituível – de manter a ordem interna. A impopularidade
do novo estilo político entre a elite urbana, legitimista ou patriótica, não impede uma certa divisão de
funções, aceita com resignação por essa elite.
A relação entre o poder político e os poderosos da economia se modificou; a força social dos
proprietários de terra expressa-se em termos militares, enquanto a força econômica dos especuladores os
coloca numa nova posição em face de um Estado do qual não solicitam favores, mas impõem concessões.
Essas mudanças derivam em parte do fato de que, na América espanhola, foram necessários quinze
anos de guerra para que se conquistasse a independência. De qualquer modo, não foi a guerra o único
evento importante desses quinze anos: desde 1810, toda a América espanhola abriu-se completamente ao

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comércio exterior. Por conseguinte, a guerra se faz acompanhar por uma imprevista transformação das
estruturas mercantis, tanto nas zonas legitimistas quanto naquelas em que dominam os patriotas.
Na primeira metade do século XIX, com exceção dos dois anos febris que precederam o colapso da
bolsa de Londres, em 1825, nem a Inglaterra nem nenhum outro país europeu tinha aceito investir capitais
consideráveis na América espanhola. A recusa em tomar essa iniciativa era secretamente justificada por
juízos negativos diante do ordenamento surgido da revolução.
A Inglaterra e a Europa não pretendem arriscar muito na América espanhola porque o risco é grande e,
sobretudo, porque tem pouco capital a arriscar; ao contrário, buscam elementos bem precisos nos novos
mercados que se abriram. O que se busca na América Latina, antes de mais nada, é um local para
desembocar as exportações da metrópole e, ao mesmo tempo, um controle das redes comerciais locais
capaz de permitir uma acentuação ainda maior da situação favorável desfrutada pelos países mais
desenvolvidos.
Desde 8, o retorno da Europa continental ao comércio mundial faz desaparecer as novas oportunidades
ocasionalmente oferecidas pelas economias coloniais, imprevistamente separadas de seus habituais
fornecedores. A nova rota comercial dominante, a que passa por Londres (depois de 80 por Liverpool),
concede todas as vantagens ao rival ultramarino dos comerciantes nativos. O mesmo ocorre no que diz
respeito às vias de comunicação oceânicas: a reconciliação com a Inglaterra, embora não eliminasse os
concorrentes mais aguerridos da marinha mercantil britânica (é o caso da norte-americana), esmagava
desde o início as marinhas locais, que mal haviam surgido em alguns portos da América espanhola.
Em toda a América espanhola, desde o México até Buenos Aires, a parte mais rica e prestigiosa do
comércio local está em mãos de estrangeiros: após cinqüenta anos, os sobrenomes britânicos serão
bastante numerosos entre a aristocracia local. Até mesmo fora dos portos a situação dos comerciantes
estrangeiros é privilegiada. Entre 1810 e 1815, os comerciantes ingleses tentam conquistar os mercados e
colocar uma massa cada vez maior de produtos industriais. Desse modo, a economia confirma a política e
leva os agrários a emancipar-se dos comerciantes e dos agiotas da cidade.
O processo não vai muito longe; depois de 1815, tão logo se iniciam, já essas relações entram em crise.
A depressão econômica britânica impõe preços baixos para a aquisição dos produtos locais; por outro lado,
as possibilidades de absorção dos mercados hispano-americanos, avaliadas com excessivo otimismo nos
anos anteriores, começam a desaparecer por saturação.
A economia põe em evidência uma América espanhola imóvel, na qual a relativa vitória do produtor, ou
seja, quase sempre, dos grandes proprietários, sobre os comerciantes se deve à decadência desses últimos
e, com exceção de situações locais particulares, não é suficiente para provocar um aumento da produção.
Por outro lado, depois de 1810, essa produção não é estimulada na proporção que o mais íntimo contato
com as grandes correntes do comércio mundial autorizava esperar. A América espanhola fechada num
novo equilíbrio, talvez ainda mais estático que o colonial.
O papel que – por ação, porém ainda mais por omissão – as novas metrópoles desempenharam na
formação desse novo equilíbrio é muito importante. Mas é preciso também levar em conta a influência
política dos países que preenchiam o vazio deixados na América pelas antigas metrópoles coloniais. Desde
o início da independência, essa parte do continente tornou-se o campo preferido de luta entre os novos
aspirantes à hegemonia. Houve certamente uma luta; mas, apesar dos gritos de alarme de alguns dos seus
agentes locais, a vitória sempre esteve – e de modo sólido – nas mãos dos britânicos. As tentativas de lutar

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contra essa hegemonia foram empreendidas, inicialmente, pelos Estados Unidos, aproximadamente entre
1815 a 1830 e, depois dessa data, pela França.
A hegemonia britânica se afirmara durante a guerra de independência, sobretudo nos seus início,
quando o isolamento da Península Ibérica de toda a Europa napoleônica e, ao mesmo tempo, a guerra
entre Inglaterra e Estados Unidos haviam feito da Grã-Bretanha a única potência exterior em condições de
exercer influência sobre a América espanhola em revolta; além disso, a Grã-Bretanha tornara-se
efetivamente a metrópole do Brasil, onde se havia refugiado a corte portuguesa. Não se deve perder de
vista que as aspirações políticas da Grã-Bretanha na América Latina são definidas pelo tipo de interesse
econômico pelo qual está ligada aos países desse continente. Salvo exceções tornadas cada vez mais
raras com o passar do tempo, uma característica dominante dessa política é a extrema cautela.
Explica-se assim a preferência britânica pela manutenção da fragmentação política herdada pela
revolução, uma escolha atribuída, geralmente, ao despejo de enfraquecer os novos Estados.
Essa política prudente explica porque a hegemonia britânica continuou a se consolidar num momento
em que já algumas de suas bases começavam a vacilar. Se, na metade do século, o comércio e a
navegação britânicos situam-se ainda em primeiro lugar em toda a América Latina, já estão porém bem
longe da situação de quase monopólio dos anos imediatamente posteriores à independência. As correntes
localmente predominantes não combatem os ingleses, preferem, ao contrário, neles apoiar-se, extraindo as
vantagens possíveis. No Brasil, manifesta-se um igual desejo de evitar a ruptura completa; os governantes,
com efeito, resistem tenazmente às pretensões inglesas de suprimir o trágico negreiro; como exceção
desse conflito, que se prolongou por décadas e que levou inclusive a uma suspensão das relações
diplomáticas, os dirigentes brasileiros sempre consideraram utópico qualquer projeto de renunciar à
influência britânica.
A realidade da América espanhola e aquela da economia metropolitana concorrem para a manutenção
de uma estabilidade de penúria, bem diversa da renovação esperada nos inícios da revolução. A potência
dominante, tão logo toma consciência da situação, contribui para consolidá-la e explorá-la como postulado
essencial da sua política.
É particularmente fácil enxergar os aspectos negativos das modificações ocorridas: a corrupção da vida
administrativa; a desordem e a militarização; um despotismo mais pesado porque se exerce sobre
populações despertadas para a vida política pela revolução e às quais resta apenas a alternativa, ao
mesmo tempo ilusória e temível, da guerra civil, incapaz de instaurar sistemas de convivência menos
brutais. NO que se refere aos aspectos econômicos, apresenta-se no panorama global da América
espanhola uma estagnação que parece insuperável.
O dinamismo de América espanhola manifesta-se quase exclusivamente na margem atlântica, em
regiões cuja função fora inteiramente secundária na segunda metade do século XVIII; também o Brasil
supera sem dificuldades econômicas imediatas a crise da independência.
As soluções tanto de política econômico—financeira quanto de política geral) elaboradas para superar a
difícil situação amadurecem lentamente. Onde a crise era menos profunda, as soluções foram encontradas
primeiro e implicaram em transformações menos radicais. No Brasil, mais que em qualquer outro Estado, a
adaptação à nova ordem de coisas teve maior êxito e o Império terminou por constituir um termo de
comparação para demonstrar os insucessos das repúblicas latino-americanas. O segredo de tal êxito estava
no fato de que os velhos ordenamentos brasileiros eram mais semelhantes aos ordenamentos instaurados
após a emancipação do que fora o caso no resto da América Latina; e também no fato de que o peso local

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dos agentes da Coroa era relativamente modesto com relação aos poderosos locais. A constituição de um
parlamento levou, de modo menos violento, a conseqüências comparáveis à militarização das repúblicas da
América espanhola; nesse parlamento, a classe dos latifundiários – em se tratando de um país
essencialmente agrícola – haveria de prevalecer. Para evitar isso, a Coroa devia empregar os seus poderes
de maneira muito ponderada. A Coroa podia contar essencialmente com o apoio do exército, nacionalizado
só lentamente, e mesclado – não casualmente – com formações mercenárias de europeus.
Em 1831, Dom Pedro I decide transferir-se para Portugal, a fim de combater a rebelião absolutista de
Dom Miguel e garantir a sucessão para sua filha Maria da Glória. Sua renúncia constitui uma confirmação
implícita de insucesso e assinala o início do Império parlamentarista. As inovações são limitadas pelo fato
de que, se é verdade que o gabinete deve ser agora apoiado por uma maioria parlamentar, também é
verdade que – com o apoio da Coroa – essa maioria pode ser conquistada em eleições suficientemente
controladas. É indiscutível que o novo ordenamento concede um espaço mais amplo ao liberalismo; a
reforma da Constituição, em 83, assegurava maior autonomia para as províncias, e o quadro federativo era
mais favorável ao antigo partido da oposição que o parlamentarismo. Em 1840, a declaração de maioridade
de Dom Pedro II, que mal completara quinze anos, significou uma vitória dos liberais, rapidamente limitada
pelo próprio Imperador, desejoso de retomar a função de árbitro no jogo dos partidos.
A atenuação dos conflitos políticos não era tanto uma vitória do liberalismo; era-o antes, daqueles
estratos sociais que se haviam identificado com tal corrente política. Nas agitadas décadas de 1830 e 1840,
aqueles estratos sociais e os seus adversários políticos haviam encontrado um terreno comum na
resistência à abolição do tráfico negreiro. No fim da década de quarenta, essa comunidade de interesses
começou a sofrer fissuras: a perseguição cada vez mais ativa ao tráfico aumentava os lucros dos
comerciantes de escravos; mas, ao mesmo tempo, punha em crise a agricultura que utilizava essa força de
trabalho, cada vez mais cara. Em 840, o senador Vergueiro iniciara em São Paulo a cultura de café com o
emprego de colonos livres, aos quais correspondia a metade da colheita, e o Brasil central começava assim
a percorrer novos caminhos.
Diante do sucesso (ainda que limitado) do Brasil, o resto da América Latina apresenta um balanço onde
os insucessos predominam de modo esmagador.
A estrutura colonial portuguesa dera vida a um Brasil unitário, enquanto o domínio colonial espanhol
subdividira as Índias em jurisdições administrativas separadas. Essa diferente organização colonial refletia,
a seu modo, condições peculiares: todo o Brasil era governado por um vice-rei, e isso fora possível
malgrado a organização rudimentar da administração portuguesa; em troca, governar de um só centro os
territórios compreendidos entre a Califórnia e Buenos Aires era evidentemente impossível. A guerra da
independência confirmara as divisões internas da América espanhola do período colonial e criara outras
mais; os eventos históricos romperam com a unidade, ademais recente, do vice-reinado do Rio da Prata.
Bolívar entrevia a solução política na república autoritária, com um presidente vitalício e um corpo
eleitoral reduzido; garantindo um predomínio estável às elites pré-revolucionárias, esse regime poderia –
segundo Bolívar – deitar raízes na América espanhola. A república boliviana fora organizada pelo Libertador
segundo tais princípios, quando lhe solicitaram tornar-se o seu Licurgo. A constituição boliviana foi adotada
em 1826 pelo Peru, em substituição à carta liberal de 1823; e, como era de se esperar, Bolívar foi o primeiro
presidente vitalício do Peru. Em Lima, os soldados colombianos se revoltaram e, desse modo, terminou a
presidência vitalícia no Peru. Um comitê proclamou o retorno à Constituição de 1823, e, alguns meses
depois, uma Assembléia Constituinte elegia presidente da República o general Lamar, um militar de

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carreira, legitimista até 1821 destinado a se tornar um dócil executor da maioria parlamentar, a qual se
agrupavam os expoentes da elite de Lima que haviam sobrevivido. A posição de Sucre presidente vitalício
da Bolívia, cedo se enfraqueceu; uma revolução encorajada pelo Peru e da qual participavam alguns dos
seus inferiores afastou-o do poder. Um corpo expedicionário peruano, comandado pelo general Gamarra,
outro antigo expoente legitimista, entrou na Bolívia para consolidar a vitória sobre o predomínio colombiano.
Seguiu se uma guerra entre o Peru e a Colômbia: ambos os contendores foram derrotados pelas discórdias
internas, que chegaram mesmo a provocar a desagregação do exército peruano.
Um esforço grandioso (e ao mesmo tempo frágil) concluía-se com o fracasso, tendo em vista os limites
impostos pela realidade. Bolívar não alimentara muitas ilusões sobre as possibilidades de modificar
radicalmente os ordenamentos da América espanhola; e, mais ainda que nos aspectos políticos, havia
regressado conscientemente, naqueles econômicos e sociais, às práticas do antigo regime. Na Colômbia,
voltara a introduzir o sistema fiscal colonial; e, no Peru, depois de ter proclamado a abolição do imposto dos
índios, não fez com que a medida fosse aplicada. Bolívar estava também consciente do novo equilíbrio de
forças existente no mundo no período histórico em que a América espanhola atingia a independência e
demonstrava-se disposto a buscar o apoio das forças dominantes, opondo se às tentativas aventureiras dos
que buscavam esse apoio entre forças secundárias e remotas.
Esse apoio, concedido sempre com muita discrição, jamais faltaria aos ambiciosos projetos de
organização americana de Bolívar. A mais grandiosa tentativa, que não levaria a nenhuma consequência
prática, foi o congresso do Panamá, início de uma liga dos novos países americanos, do qual participaram
apenas delegados da Colômbia, Peru, México e América Central. A iniciativa suscitou, desde o início, a
aberta hostilidade do Brasil e do Chile, não muito desejoso de fazer parte do sistema idealizado por Bolívar.
Bolívar estava particularmente preocupado com o peso das sobrevivências dos velhos ordenamentos; o
seu realismo consistia em respeitá-las a fim de garantir à nova ordem uma base satisfatória nas regiões
atingidas apenas superficialmente pela revolução.
Bolívar certamente não ignorava que a ordem pós-revolucionária estava substancialmente confiada ao
militares; mas para ele, esse aspecto representava uma fase transitória; uma instituição estável sobre
bases aristocráticas só surgiria quando, passada a tempestade, viessem a ressurgir os elementos
fundamentais pré-revolucionários.
O insucesso de Bolívar pode ser relacionado a esse cálculo equivocado: ao contrário de suas previsões,
as inovações trazidas pela guerra de independência haveriam de permanecer. Ocorreu também uma
dificuldade de ordem tática, que ele não conseguiu superar; quaisquer que fossem os seus objetivos a longo
prazo, em Bogotá, Lima ou Chuquisaca, Bolívar aparecia como o representante daquele regime militar com
o qual não queria identificar-se, e, por esse motivo, devia enfrentar a suspeita de grupos sociais com os
quais pretendia, no futuro, partilhar o poder. As forças militares sobre as quais Bolívar deveria se apoiar
satisfaziam-se cada vez menos com sua função de instrumentos de governo destinados a desaparecer no
futuro. A convergência das oposições (oligárquicas e ideológicas) com os grupos de generais dispostos a
transações favoráveis pôs fim à tentativa de Bolívar.
O último período colonial fora caracterizado por uma prosperidade maior que no resto da América
espanhola e a independência havia sido conseguida sem a perda da supremacia local por parte dos
defensores do ordenamento colonial. O alinhamento conservador mexicano tornou-se o refúgio de todos os
que haviam suportado com resignação o colapso do velho sistema. As guerras de independência deixaram

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ao exército, como legado, um pletórico corpo de oficiais e a função de guardião da ordem interna; o peso do
mesmo é decisivo.
Na constituinte e no país se desenham dois partidos, que ainda se chamam de escoceses e yorquinos.
Os primeiros, conservadores, estão organizados – de modo não inteiramente secreto – na Loja Escocesa,
que goza da proteção do ministro britânico; os segundos, liberais e federalistas, estão organizados em outra
Loja, ramificação da de Nova York e sob os auspícios do cônsul dos Estados Unidos. A nova ordem não é
idêntica à antiga; e o ministro britânico Ward afirma que o México independente deverá continuar a importar
mais mercadorias do que o fazia no passado, já que a produção artesanal dos tecidos não pode concorrer
com os manufaturados estrangeiros; ele encontra uma solução na expansão da agricultura nas regiões
tropicais, cujos produtos suscetíveis de exportação para o ultramar poderiam permitir o equilíbrio do balanço
comercial.
Os aliados mexicanos do agudo diplomata não ignoravam que as transformações sofridas pelo México
não eram apenas econômicas. Eles eram particularmente sensíveis aos abalos provocados pela guerra nas
camadas dirigentes; para eles, a partida após 1821 dos mais ricos comerciantes espanhóis era importante
pelo grave enfraquecimento causado à classe dominante, já muito restrita numericamente.
A agitação no sentido da expulsão dos espanhóis recolocava na ribalta mexicana aquela plebe mantida
rigorosamente à margem pelos herdeiros da independência, incitando-se a uma ação em favor de um
projeto que significava a expropriação de poucos, relativamente ricos, em benefício de outros mais pobres.
Dessa coalizão, formada pela ampliação do Partido Escocês, nasceu o agrupamento conservador
mexicano. O Partido Conservador, nostálgico do passado. Consciente dos resultados do processo de
democratização, temeroso das suas conseqüências, busca apoio na Igreja a fim de combatê-lo, pois
considera o instituto eclesiástico o único capaz de impedir que a plebe mestiça e indígena siga os
agitadores liberais.
Em 1836, desencadeia-se a guerra do Texas. Os colonos do sul dos Estados Unidos, estabelecidos na
região e bem acolhidos pelas autoridades mexicanas, não aceitam o retorno à centralização incluída no
programa conservador.
A guerra era conseqüência da política interna dos Estados Unidos; e só não ocorreu antes porque os
Estados do norte não desejavam fortalecer o bloco dos Estados escravistas do sul, anexando um novo
Estado, isto é, o Texas, à União.
A guerra foi vencida – e muito facilmente – pelos Estados Unidos. O exército mexicano não havia sido
organizado para enfrentar conflitos internacionais; e, além disso, as dilacerações provocadas por décadas
de lutas internas estavam longe de ter sido eliminadas. A paz parecia ainda pior que a derrota; em 1848, o
México perdia metade do seu território – em verdade, quase inteiramente despovoado – anexado pelo
vencedor. Apesar do desastre, os conservadores conseguem manter o poder. Era necessário governar com
mão de ferro a fim de conter o inquietante despertar liberal.
O regime conservador alcançara o seu objetivo mais imediato: durar. Era também o único: em 1850, o
México não conseguira retornar ao nível econômico do período colonial. O México conservador não
conseguia realizar suas tarefas porque não dispunha de uma direção homogênea e porque eram muitas as
dificuldades desse país, tão florescente outrora, para adaptar-se à nova ordem instaurada pela
independência.
Na parcial restauração econômica posterior a 1823, a função do capital britânico foi decisiva, embora o
seu volume fosse insuficiente. A necessidade de afluxo de capitais é uma particularidade da indústria

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mineradora (na agricultura e na pecuária as exigências são bem mais modestas) e explica o atraso do
México na reconstrução econômica; explica também a atitude aberta ao exterior dos conservadores
mexicanos, uma atitude incomum entre os políticos latino-americanos desta tendência. A abertura em face
da colonização econômica das novas metrópoles não registrará sucessos; e essa foi uma das causas do fim
do predomínio conservador na política mexicana.
As demais regiões da América espanhola produtoras de prata, subdividas agora entre a República do
Peru e a da Bolívia, conheceram um processo análogo, caracterizado pela estagnação econômica e pela
incapacidade de encontrar uma base política estável.
O Peru sofre um processo de ruralização cada vez maior. A crise da mineração não se conclui após o
final da guerra; a crise do comércio de Lima é mais uma vez confirmada quando do aparecimento dos
centros rivais, desde Valparaíso até Guayaquil. A agricultura da serra e a do altiplano continuam a se
desenvolver isoladamente; as modificações econômicas trazidas pela revolução não incidem sobre a
agricultura, o mesmo ocorrendo com os desenvolvimentos políticos e jurídicos, depois que no Peru e na
Bolívia não foi possível abolir o tributo dos índios nem dividir suas terras comunitárias.
Transformar o Peru e a Bolívia em Estados modernos é uma operação muito dispendiosa e deixa
indiferentes tanto os estratos superiores quanto os inferiores.
A dificuldade que a nova ordem encontra para deitar raízes é compreensível: trata se de territórios que
não puderam encontrar a própria colocação na América Latina desintegrada pela revolução, em lento
processo de reconstituição numa conjuntura desfavorável. Derivam também do fato de que um exército
insuficientemente ligado aos novos ordenamentos funciona como árbitro entre os dirigentes urbanos e os da
zona mineradora, bem como entre os senhores das zonas rurais caracterizadas por uma economia quase
inteiramente isolada e a plebe urbana que começa a fazer se escutar. O comportamento dos generais e de
suas tropas, no mais das vezes estranhas à região, é ditado por convergências entre as oposições internas
à sociedade civil e as rivalidades entre comandantes militares. É uma situação nascida do modo particular
pelo qual o México e o Peru viveram as lutas pela independência: no México, a independência foi adquirida
tão somente quando os adversários dela fizeram suas as reivindicações políticas da independência, a fim
de melhor combater suas aspirações em outros setores; no Peru, a independência se afirma com a
conquista do país por exércitos provenientes do norte e do sul. Em outras regiões da América espanhola, a
nova ordem surgiria a partir de forças internas; e, se essa não era uma condição suficiente para garantir
uma evolução pacífica, favorecia em alguns casos o desenvolvimento da mesma.
Num dos Estados constituídos quando da dissolução da Grande Colômbia, existe uma situação
comparável àquela do Peru e da Bolívia. Trata-se do Equador, o Estado herdeiro – sob um nome novo – do
patrimônio territorial da antiga presidência de Quito. Num espaço mais restrito que no Peru, a linha de
desenvolvimento logicamente é mais simples; também aqui, os árbitros do conflito, velho mas sempre vivo,
entre a elite da faixa costeira – plantadores e comerciantes – e a aristocracia serrana são militares que
permanecem estranhos ao país: os venezuelanos de Flores, que constituem um corpo estrangeiro, até o
momento em que seus chefes mais importantes começam a estabelecer propriedades fundiárias na serra.
A Venezuela e Nova Granada, ao contrário do Equador, desenvolvem-se a partir de 1830 sob o influxo
de forças internas.
Deve-se levar em conta, em primeiro lugar, a função relativamente secundária do exército e a ligação
dos seus chefes com as camadas dirigentes locais; em segundo, o fato de que a grande variedade entre as
regiões não constitui um fator de instabilidade, já que provoca uma subdivisão da classe dirigente (que tem

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o monopólio quase absoluto do poder político) em grupos regionais relativamente indiferentes ao curso da
política nacional, sempre que essa não interfira no seu predomínio local, nem nos seus interesses
concretos. A ferocidade das guerras civis em Nova Granada na segunda metade do século XIX, as cifras
extraordinariamente altas de mortos, revelarão também uma maior solidez do organismo político, na medida
em que demonstram ser possível mobilizá-lo para essas lutas, numa intensidade que seria inimaginável, por
exemplo, no Peru.
Em 1830, um prognóstico sobre o futuro político da Venezuela deveria ser mais pessimista que aquele
acerca de Nova Granada. Uma guerra feroz devastara a Venezuela; a aristocracia das localidades costeiras
estava arruinada; e, a mercê de exércitos constituídos por mestiços dos llanos e mulatos das ilhas, o país
parecia condenado à instabilidade política. Ao contrário, sob a égide de Paez, presidente por longos
períodos, e de outros chefes militares da independência, o processo de reconstrução ocorreu segundo
diretrizes econômicas e sociais semelhantes àquelas do ordenamento pré-revolucionário. A economia
venezuelana, baseada mais sobre o café que sobre o cacau e o açúcar, ressente-se na década seguinte do
problema dos preços. O regime conservador começa a mostrar as primeiras fissuras. O retorno a
ordenamentos semelhantes aos do período colonial suscita tensões muitos fortes.
Por volta de 1845, o descontentamento se acumula; os primeiros a fazer-se ouvir são alguns
beneficiários do sistema, os grandes senhores de Caracas, que haviam voltado à antiga situação de
prosperidade; estão cansados de ter de continuar em segundo plano, atrás dos grosseiros generais da
revolução, e organizam uma oposição liberal propagandeada com êxito entre a plebe da capital.
Na América Central, as dificuldades foram menos graves. Aqui não ocorrem revoluções e nem mesmo
resistência legitimista; em 1821, a região passara – juntamente com o México da lealdade a Fernando VII
para a independência, separando-se do seu vizinho setentrional quando da queda de Itúrbide, ao qual
tinham permanecido fiéis os comandantes das guarnições do velho exército real acantonadas na capitania
da Guatemala. Surgem assim as Províncias Unidas da América Central a uma existência breve e agitada.
No extremo sul da América espanhola, o Rio da Prata atravessa uma evolução complexa, rica – nessa
época – mais de insucessos que de resultados estáveis. Em seu interior, o Paraguai inicia sua vida de
Estado independente, com uma experiência tão bizarra que merece a atenção e a curiosidade de
observadores europeus.
Após a desagregação do Estado revolucionário, herdeiro da administração do vice-reinado, que ocorrera
em 1820, a busca de uma nova ordem estável fracassou.
A decomposição do Estado unitário, em 1820, ao fora apenas uma calamidade; apresentou também
aspectos positivos, na medida em que serviu para liquidar rapidamente uma situação tornada insustentável.
Mas essa liquidação não se limitou a pôr fim à centralização de Buenos Aires e ao domínio da facção
federal da qual Artigas fora o paladino no resto do litoral. A política de Buenos Aires obteve um sucesso
póstumo quando os portugueses, terminada a conquista da Banda Oriental, transformaram o ex-Protetor
dos povos livres num fugitivo cada vez menos respeitado pelos seguidores que conservara no litoral
argentino.
O apoio ao sistema de desmembramento nacional explica-se porque a província de Buenos Aires, que
controlava as comunicações com o além-mar e, desse modo, os ingressos alfandegários, tendia a libertar-
se da obrigação de manter um aparato administrativo e militar também para as províncias situadas além de
suas fronteiras administrativas. Por outro lado, a desagregação do Estado pôs fim, de fato, à participação

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argentina na guerra de independência. A nova província vê-se numa situação de riqueza e, desvinculada de
compromissos no exterior, pode dedicar-se à melhoria da economia e da organização interna.
A experiência de Buenos Aires teve sucesso porque um conjunto de problemas foram deixados de lado,
mas não resolvidos. Um destes é a organização do país; um outro é aquele da Banda Oriental, onde o
domínio português e depois brasileiro são uma ofensa ao orgulho nacional.
Uma rebelião rural na Banda Oriental recoloca nas mãos do governo de Buenos Aires, tenazmente fiel a
uma política de paz, o incômodo presente de um vasto território que se libertou dos portugueses e que
reivindica ser anexado às províncias unidas do Rio da Prata. Em Buenos Aires, foi convocada uma
assembléia constituinte, e os deputados da capital não sabem ainda que posição assumir. Ao mesmo
tempo, e por motivos análogos, pressionam em favor da guerra contra o Brasil.
A guerra com o Brasil contribuiu para anular muitas mudanças ocorridas em 1820. Era novamente
necessário organizar um exército, reatribuir uma posição aos oficiais da guerra da independência, pôr em
movimento as estruturas financeiras. Além disso, a guerra trouxe consigo o bloqueio naval e, como no
Brasil, a inflação, produzida pelo papel-moeda não conversível criado recentemente. Declarada no final de
1825, a guerra culminou em 1827, com a vitória de Ituzaingo, que a Argentina não foi capaz de explorar
inteiramente. Em 1828, foi assinado acordo sobre cuja base se constituía um novo Estado independente, a
República Oriental do Uruguai, que, naquela época, ninguém acreditava viesse a sobreviver.
Na Argentina de Rosas, há uma atmosfera de guerra civil, com complicações internacionais surgidas
particularmente no irrequieto Estado oriental.
O governo do Uruguai é disputado por dois grandes proprietários e líderes, Lavalleja e Rivera. O
primeiro é o expoente dos proprietários, enquanto o segundo se apresenta como porta-voz dos camponeses
não-proprietários, que vivem em terras alheias, ou, em suma, dos gaúchos, que se tornaram ainda mais
rebeldes no decorrer de trinta anos de convulsões políticas no campo uruguaio. Rivera terminou vencendo e
governou o novo Estado com soberba indiferença em face dos princípios da ciência das finanças; em 1835,
deixou o posto para Manuel Oribe, eleito graças à sua intervenção.
Na Argentina de Rosas, os governos provinciais da ordem constituem apenas um pálido reflexo daquilo
é o Chile na primeira metade do século XIX: o mais considerável êxito da América espanhola. Na segunda
década do século passado, esse êxito ainda não se podia entrever: o Chile teve de enfrentar experiências
movimentadas.
O regime conservador – católico, autoritário, inimigo das novidades – expressou os seus princípios na
Constituição de 1833 so sua égide, o Chile conheceu uma ordem que perdeu o caráter pessoal e assumiu o
institucioal, depois de ter superado os abalos provocados pelo assassinato de Portales (1837) e pela guerra
cotra a Cofederação do Peru e da Bolívia. O regime é apresentado à opinião pública da América Latina de
forma idealizada por jovens emigrados argentinos adversários de Rosas (Sarmiento, López, Alberdi),
perseguidos em suas pátrias como propagandistas de ideologias desagregadoras.
Em meados do século, como outros países da América espanhola submetidos a regimes conservadores
menos felizes (Colômbia ou Venezuela), também p Chile PE minado por um difuso descontentamento. Mas,
ao contrário daqueles países, no Chile – em meio aos mais rumorosos porta-vozes do descontentamento –
aparecem novas camadas dirigentes (os concessionários das minas), cuja aspiração é participar do poder,
e que, para isso, travam uma luta política a partir de posições assinaladas por uma considerável força
econômica.

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Capítulo IV
Afirmação do Regime Neocolonial

Nem mesmo em meados do século XIX começam a ser recolhidos frutos da emancipação. A
estabilidade é alcançada tão somente no Brasil e em países outrora periféricos do império espanhol. As
regiões mineradoras do período colonial, México, Peru, e Bolívia, tinham conseguido menos sucesso; o
México, em particular, parecia imerso num marasmo, causado entre outras coisas pelas constantes
tentativas conservadoras de salvá-lo por caminhos impraticáveis. A estabilidade teve início, especialmente,
quando começaram a se modificar as relações com as zonas econômicas metropolitanas.
Os benefícios trazidos pelas mudanças na conjuntura econômica mundial foram ainda mais acrescidos,
para a América Latina, por causa do modo pelo qual se desenvolveram. Uma explicação (hoje impopular)
põe na base dessa modificação a descoberta do ouro da Califórnia, cujas conseqüências foram ampliadas
pela descoberta, um pouco posterior, das jazidas australianas. A unificação tornou-se fácil por causa da
intensificação dos meios tradicionais de transporte, especialmente nas rotas oceânicas. Mesmo antes da
descoberta das jazidas de metais preciosos, esses meios de transporte permitiram a expansão para as ilhas
do Pacífico, pretexto de conflitos entre franceses e ingleses; com a descoberta do ouro da Califórnia, ocorre
uma aproximação entre a área do Pacífico e a economia metropolitana. As conseqüências imediatas para
os países da América Latina que se voltam para o Pacífico são notáveis: eles passam imprevistamente a se
situar numa rota de crescente importância e adquirem novos e mais fáceis meios para exportar os seus
produtos.
Existem ainda outras modificações de alcance mais limitado os portos das novas rotas tem agora uma
vida mais intensa, determinada unicamente pelo trânsito. Entre 1850 e 1855, um tronco ferroviário de
elevado custo ligará os dois oceanos através da floresta e de zonas agrestes; foi essa uma das primeiras
estradas de ferro da América Latia e os seus proprietários eram capitalistas de Nova York.
A mais importantes dessas muitas transformações foi indubitavelmente indireta: com as variações
introduzidas pela Califórnia no mapa econômico mundial, tanto a América Latina do Atlântico quanto a do
Pacífico ingressavam ao mesmo tempo numa nova época histórica.
A relativa estabilização leva a uma incremento do conspicuous consumption das classes altas
tradicionais. Bem como das camadas urbanas altas é médias, que passam a desfrutar de certa
prosperidade. Além disso, o estado de miséria tradicional da época pós-revolucionária é um pouco
abrandado nas zoas mais ricas; em Buenos Aires, após a queda de Rosas, e em Santiago e Valparaíso,
com a consolidação da indústria extrativa e de cereais, constroem-se novos teatros e as ruas são
pavimentadas. Por outro lado, um conjunto de progressos técnicos invade as cidades, modificando-lhes o
aspecto: depois de 1850, a iluminação a gás substitui aquela a óleo, ou a mal-cheirosas graxas animais, em
Buenos Aires, Valparaíso e Lima, depois de já ter sido imposta também no Rio de Janeiro.
A preparação para tal progresso não se dá apenas nos aspectos superficiais: após 1850, quase por toda
parte, tem início o assalto às terras dos índios e, em algumas regiões, também às propriedades
eclesiásticas. Em alguns casos, o avanço se faz acompanhar pela expansão da agricultura cujos produtos
interessam ao mercado mundial; em outros, os dois fenômenos correm independentemente um do outro.
Tais inovações são fundamentalmente duas: maior disponibilidade de capitais e aumento da capacidade
de absorção das exportações latino-americanas. A primeira se traduz por investimentos e créditos aos

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governos, e esses tem uma importância política considerável, já que em alguns casos permitem acelerar a
emancipação dos governos das fontes habituais de ingresso tributário, situadas nas zonas rurais. Em suma,
permitem que os governos disponham de maiores recursos. Essa inovação tem conseqüências políticas
importantes e contribui para a consolidação do Estado, um dos fatos característicos dessa etapa.
Os empréstimos aos governos são, cada vez mais frequentemente, empréstimos a longo prazo; são
contratados nas bolsas européias, particularmente em Londres, e geralmente com amortização progressiva.
Os empréstimos baseiam-se numa perspectiva do futuro da América Latina, segundo a qual a constante
expansão econômica resolverá o problema do endividamento e os próprios empréstimos contribuirão para
reforçar essa perspectiva. Na realidade, o problema do endividamento resolve-se a seu modo, isto é,
contraindo-se novos empréstimos no exterior a fim de pagar os juros dos velhos débitos, enquanto a
expansão econômica está bem longe de desenvolver-se de modo constante.
Paralelamente aos empréstimos aos Estados, os investimentos redefinem um esquema de distribuição
das tarefas, cuja ordem remonta a um passado distante: a comercialização e o transporte transoceânico
continuam em mãos de grupos estrangeiros, enquanto aos grupos nacionais são reservadas as atividades
primárias. Só lentamente se começa a modificar o esquema e sempre no sentido de uma maior penetração
dos grupos estrangeiros; a atividade mineradora, bem como algumas formas simples de exploração das
riquezas de superfície (como o guano), são objeto de uma progressiva transferência para mãos
estrangeiras; também a rede ferroviária, em quase toda parte, é controlada por estrangeiros.
Esse processo é característico da fase histórica da América Latina que se inicia em meados do século
passado: chega-se finalmente à instituição, até agora retardada, de um novo pacto colonial, que, como
vimos, havia sido para alguns grupos sociais o significado concreto da emancipação da Espanha e de
Portugal. Esse novo pacto transforma a América Latina em produtora de matérias-primas para os países
metropolitanos; além disso, atribui ao continente a função de consumidor dos produtos industriais daquelas
zonas, o que traz consigo uma transformação, vinculada parcialmente com a estrutura produtiva
metropolitana. A evolução da composição do comércio importador, todavia, é lenta e amadurecerá somente
nos períodos subseqüentes.
As novas funções da América Latina na economia mundial são facilitadas pela adoção da política de
livre-câmbio, que agora se afirma por toda parte. A política de livre-câmbio acelera o processo iniciado na
América Latina; e este é o motivo, decerto, da sua popularidade, intensificada ainda mais pelos novos
hábitos de consumo de estratos urbanos em expansão, que fazem com que massas cada vez mais
extensas da população passem a depender das importações.
Por vezes, esses estratos urbanos se opõem ao monopólio político exercido pelas oligarquias
exportadoras e, em sucessivos períodos, chegarão mesmo a ameaçá-lo. Mas as lutas civis não incidem
sobre as convergências fundamentais que, no passado, não se apresentavam com a mesma clareza:
assim, a América Latina parece ter encontrado o seu caminho, enquanto as dissensões a respeito tornam-
se cada vez menos significativas.
O culto do dinheiro com cobertura em ouro, jamais abandonado em teoria, é puramente platônico
durante muitos anos; prosperam os sistemas monetários fundados no papel-moeda, seja como
conseqüência de uma legislação bancária pouco cautelosa, que favorece o crédito às camadas elevadas e
faz com que toda a população o pague através da inflação, seja como resultado das crises financeiras que
abalam os Estados que se lançaram com excessiva avidez sobre os empréstimos internacionais e que
devem renunciar à cobertura metálica da moeda circulante interna a fim de poderem enfrentar os

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compromissos com o exterior nos momentos de crise. O comércio de exportação europeu para a América
Latina dirige-se, em última instância, para clientes que adquirem a crédito e utilizam as várias moedas
nacionais; e, suporta assim uma parte das perdas devidas à desvalorização.
O grosso das perdas, porém, deve ser pago pelas camadas médias e pelas massas populares das
cidades da América Latina, enquanto os habitantes do campo – menos vinculados à economia de mercado
– suportam melhor a crise.
Fazer parte de um proletariado rural oferece vantagens muito escassas aos trabalhadores: os grupos
que dirigem a modernização da agricultura são pobres em capital e cogitam de mão-de-obra efetivamente
paga em dinheiro tão-somente quando não tem outra alternativa. Na opinião deles, os lavradores
assalariados, além de serem muito caros, são também demasiadamente independentes: um camponês com
algum dinheiro considera habitualmente ser mais livre do que o é na realidade, e abandona a fazenda.
Em quase todas as zonas onde existiam terras comunitárias e, de modo mais geral, onde continuava a
existir uma agricultura de tipo tradicional, havia disponibilidade de mão-de-obra e de terra para uma
exploração mais moderna. A pressão dos poderes públicos fazia com que a mão-de-obra, relativamente
abundante para uma agricultura nova, tivesse pouca influência no que se refere ao novo modo de
exploração; até mesmo em zonas com população local escassa, a imigração nem sempre consegue
introduzir melhoramentos na situação do trabalhador agrícola.
A imigração constitui outro aspecto de um processo ainda incipiente. A partir de 1810, houve a
tendência de colocar a imigração em primeiro plano em todos os projetos de transformação econômica e
social; na segunda metade do século, a tendência se acentuou ainda mais, quando os Estados Unidos
começaram a fornecer um exemplo impressionante de quanto a imigração era capaz de modificar o ritmo de
desenvolvimento de um país. Na América Latina, a imigração foi um evento de importância desigual ao
longo das várias regiões.
O desenvolvimento demográfico começa, quase por toda parte, a adquirir um ritmo muito rápido. O
incremento do comércio internacional, que fornece o método mais preciso para o ritmo de inserção da
América Latina nas correntes econômicas mundiais na condição de fonte de matérias-primas, é também
muito rápido.
O desenvolvimento econômico não se limita mais às indústrias extrativas, conseqüência essa de uma
série de booms na produção, alguns dos quais incidem só localmente, enquanto outros interessam a várias
regiões da América Latina. Assim, o cobre e o trigo interessam ao Chile, a lã ao Rio da Prata e o guano ao
Peru, enquanto a cultura d café se difunde no Brasil, Venezuela, Nova Granada e na América Central; a
cana-de-açúcar, por sua vez, tem um desenvolvimento menor nas Antilhas, no México e no Peru. Todas
essas produções tem em comum o fato de exigirem investimentos diretos de capital relativamente
modestos, tanto que no início – para o desenvolvimento das minas de cobre no Chile – foram suficientes os
capitais locais. É um progresso muito desigual; além disso, apenas em alguns países – Argentina, Chile,
México e Uruguai – se constroem redes ferroviárias nacionais; em outras zonas, estabelecem-se
simplesmente troncos ferroviários para a ligação entre os centros de produção do interior e os portos de
exportação para o além-mar: a rede ferroviária do Brasil e do Peru é organizada de acordo com esse
esquema.
Nas construções ferroviárias da América Latina, por enquanto, o monopólio britânico não é ameaçado
por ninguém e constitui um novo elemento de sustentação da hegemonia inglesa, ameaçada por outros
desenvolvimentos do processo econômico.

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A expansão econômica da América Latina manifesta-se também com a extensão do comércio, que
agora se dirige para novas regiões. A Grã-Bretanha conserva um predomínio – ainda intocado – nos
organismos bancários e financeiros; entre 1860 e 1870, os bancos ingleses se implantam na América Latina
e servem como intermediários, quase exclusivos, para as transações com a Europa; a maior parte dos
governos da América Latina valem-se dos banqueiros ingleses como agentes financeiros.
Graças a tudo isso, a influência britânica é ainda predominante, embora outros países venham
intensificando com ritmo mais rápido – os intercâmbios com a América Latina. A França, em particular,
segue-lhe de perto.
A tentativa francesa de afirmar sua hegemonia no norte da América Latina baseia-se na transitória
ausência dos Estados Unidos como importante elemento de equilíbrio entre as potências estrangeiras que
gravitam sobre o continente latino-americano. Essa ausência se faz sentir desde antes da Guerra de
Secessão, em conseqüência do difícil equilíbrio entre os Estados do norte e os Estados escravistas do sul.
Mas, com o fim da Guerra de Secessão, os Estados Unidos voltam a desenvolver uma política coerente e
decidida na América Latina; ao mesmo tempo, a estrela da França perde seu brilho e a política britânica
deve enfrentar cada vez mais o avanço dos Estados Unidos, que a Grã-Bretanha tenta obstaculizar apenas
de modo tímido, nos locais em que sua própria influência é bastante sólida.
A Grã-Bretanha administra com extrema prudência sua imensa influência; seus objetivos parecem
modestos quando comparados às metas grandiosas da França do Segundo Império: erguer um bastião
latino e católico contra a expansão da América inglesa e protestante. Os resultados dessa política são
impressionantes: nos países submetidos à hegemonia britânica, essa situação de dependência só será
questionada pelos políticos de modo incidental; e, quando isso ocorre, esses políticos – induzidos por
insucessos anteriores – usam de uma franqueza muito pouco apreciada pela opinião pública, que a julga
inspirada tão-somente pelo ressentimento e permanece assim indiferente ao núcleo do problema. Tão-
somente quando a decadência da força econômica da metrópole tornar impossível a manutenção das
relações consolidadas nesse período é que a Argentina e o Brasil descobrirão ter sido submetidos a um
imperialismo britânico.
A moderação inglesa, porém, é apenas aparente: na falta de um grand dessein político, existem muitos
objetivos concretos a defender, e, uma vez assegurados os próprios interesses, resta à Grã-Bretanha uma
posição predominante em boa parte da América Latina.
O acordo entre os grupos dirigentes, obtido em função de alguns pontos fundamentais, não é alcançado
sem conflitos: guerras causadas por rivalidades diante de regiões que revelam imprevistamente a própria
riqueza (como a segunda guerra do pacífico); guerras civis que se tornam internacionais (como o ciclo de
conflitos argentinos e uruguaios que desembocaram na Guerra do Paraguai); e, finalmente, guerras civis
que determinam a intervenção de potências estrangeiras de ultramar (a guerra da reforma no México, que
se prolonga na luta contra a intervenção francesa). Juntamente com a França, reaparece a Espanha, a qual,
embora num nível mais modesto, tenta conciliar as oposições internas com uma política exterior mais ativa.
Mais importante que o reaparecimento da Espanha é a presença, ao mesmo tempo velha e nova, da
Igreja, com a qual a França imperial espera contar enquanto aliada.
A nova Igreja tem uma organização mais vigorosa, porém nem sempre consegue conservar aquele
consenso popular (que, desde as origens, variara de zona para zona) que é o elemento essencial da sua
força política.

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As características da nova situação revelam-se claramente no México, onde a revolução liberal
conquista uma poderosa base popular diante de uma oposição maciça da Igreja (não limitada às altas
hierarquias). A Igreja, ao contrário, preenche ainda melhor a função de centro da resistência conservadora,
constituindo ademais uma importante ligação com as forças políticas e financeiras européias, o que
contribui para ampliar o conflito. No final do século XVIII, o bispo Schumacher – entusiasmado com a
importância dada pelos fiéis do Equador à excomunhão – utiliza largamente essa medida, com a finalidade
de conter os progressos da revolução liberal.
Sem dúvida, seria fazer uma idéia incompleta do problema supor que todas as inovações causadoras de
conflitos entre a Igreja e o Estado fossem introduzidas exclusivamente pelo clero. A sociedade hispano-
americana possuía forças cada vez mais vigorosas, que, por sua parte, dispunham-se a atacar o estatuto da
Igreja e das ordens religiosas, tais como esses haviam sido elaborados na época colonial.
Em algumas regiões, o objetivo imediato dessas forças laicas eram os bens (em particular os imóveis)
da Igreja. Portanto, elas estão presentes exatamente onde a Igreja, no período colonial, conseguira
acumular imensos patrimônios e mantê-los praticamente intactos durante a guerra revolucionária. A Igreja
deixava de ser considerada como uma organização talvez escassamente autônoma em face do poder
político, mas identificada com a fé religiosa de toda a sociedade, incluídos os governantes: era
simplesmente uma organização militante dos setores não descristianizados da sociedade.
A igreja, cada vez menos segura do apoio do poder político e, em geral das elites sociais e intelectuais,
assumia atitudes cada vez mais combativas; o aumento das tensões punha em evidência outros aspectos
negativos da herança colonial, até então conservados na sombra. O cristianismo popular, cuja
superficialidade não havia constituído um perigo enquanto a Igreja conservara um estatuto não questionado
pelos grupos dirigentes, revelava agora todos os seus limites. A Igreja que se afirma perseguida perde
imediatamente prestígio junto às massas populares, de cuja religiosidade pouco culta espera obter
compensação para a indiferença das esferas governamentais. A Igreja da América Latina aprende a viver
no âmbito dos novos ordenamentos, mas – para valer-se de sua influência, de modo algum desparecida,
sobre os estratos superiores da sociedade – ela deve estar disposta a aceitar os aspectos fundamentais das
modificações ocorridas e a desempenhar uma função análoga àquela que desempenhara durante o período
colonial.
A Igreja, desse modo, deve levar em conta um dos mais destacados aspectos das modificações
verificadas na América Latina: a extensão da vida política mediante a participação de setores novos é
bastante limitada. A renovação política termina por ser um processo interior as camadas dirigentes, que em
si sofrem uma escassa renovação através do afluxo de outros estratos sociais.
Quase por toda parte, em meados do século XIX, um regime substancialmente conservador – mais ou
menos solidamente enraizado pelas cidades em fase de expansão, expressão do descontentamento
sempre presente entre as plebes urbanas e, ainda mais, entre os jovens das camadas cultas mas não ricas.
Além disso, o conservadorismo intelectual, dominante em toda parte, resulta-se particularmente
insuportável. A conversão dos poderosos à nova ordem ocorrerá apenas quando se tornarem evidentes as
suas vantagens, ou seja, quando o seu advento tiver se revelado pelo menos provável. Até esse momento,
as forças da renovação terão de conduzir, em mais de um dos novos países latino-americanas, uma luta
extremamente difícil. Se, em alguns, a transição ocorre sem lutas, isso significa que se trata de uma
evolução mais superficial de atitudes políticas no âmbito de grupos já dominantes; e essa vitória fácil do
novo regime revelar-se-á, em vários casos, também menos duradouras.

33
Ainda tem de ser explicados os critérios, naturalmente discutíveis, que foram utilizados para estabelecer
uma separação entre a primeira e a segunda fase de consolidação do regime neocolonial. Dois foram os
elementos decisivos: a diminuição da resistência que o novo ordenamento, ao progredir, encontra; e a
identificação com ele por parte dos estratos social e economicamente dominantes.
Esse esquema de desenvolvimento esboça-se, com maior clareza que em outras partes, no México. O
ponto de partida é a revolução liberal de 1854. A reforma atinge, em primeiro lugar, à Igreja e suas
propriedades; a lei Juarez despoja os eclesiásticos dos seus privilégios jurídicos, enquanto a Lei Lerdo
proíbe que as propriedades imobiliárias continuem em mãos de comunidades, o que prejudica a Igreja e as
ordens religiosas, e resultado inesperado, também as comunidades indígenas. A resistência é séria. A
oposição conservadora conquista a capital, a guerra civil durará três anos: também os conservadores, já
que o exército regular não é suficiente para garantir a vitória, armam a plebe indígena em defesa da fé
ameaçada.
A reforma vencera; porém, mais uma vez, recolhera uma herança de ruínas. A segunda guerra de
independência, na qual desembocara a precedente guerra civil de três anos, deixava uma situação muito
difícil, o México tinha um exército de libertação que ameaçava converter-se numa fonte de perigos. Juarez
reduziu drasticamente as forças armadas e conseguiu superar dificuldades e insubordinações. Reduziu as
despesas do Estado, salvo no setor da instrução, onde iniciou uma vasta obra de difusão da educação
primária. A política de austeridade não lhe trouxe simpatias, sobretudo porque os resultados tardavam a
aparecer e o México não conseguia erguer-se da estagnação econômica.
Em 1872, morria Juárez; o seu sucessor, Sebastián Lerdo de Tejada, fazia parte do grupo de
intelectuais liberais que, desde o início, havia apoiado a reforma. Em 1875, Diaz iicia um novo movimento
de revolta a partir de Tuxtepec e, em nome da vitória conseguida pela “revolução tuxtepecana”, o México
pode ser governado até 1910. A vitória de Diaz deveria ter sido o ponto de partida para uma continuação da
reforma; o chefe vitorioso jurava sobre aqueles princípios e acusava o vencido de os ter traído.
Não obstante sua lealdade, talvez sincera, à tradição da reforma, a vitória de Diaz significa uma fase
importante da sua transformação: antes mesmo que o vencedor, seus seguidores encarregaram-se de
demonstrar que essa mudança assinalava o fim da tradição jurídico-liberal da reforma e o surgimento de um
progressismo autoritário, de uma “tirania honesta”, substancialmente diversa daquela de Santa Anna, já que
seus objetivos iam bem além da mera sobrevivência e visavam à modernização da economia que estava
sofrendo um grande atraso; era a exigência da nova fase do México.
O evangelho do progresso na ordem, do qual deveria ser atíficie um ditador benévolo e do qual os
primeiros beneficiários seriam os componentes das classes proprietárias mexicanas, tomava o lugar – e o
fazia sem obstáculos – de uma revolução destinada a declarar juridicamente livres e iguais a todos os
mexicanos; com eleito, a segunda era conseqüência necessária do primeiro.
No Rio da Prata, ao contrário, temos um desenvolvimento menos linear. A queda de Rosas estava longe
de resolver os problemas que ele enfrentara sem êxito. No Uruguai, a pacificação imposta por Urquiza
desemboca numa lenta reconquista do poder por parte dos “brancos”, antigos aliados de Rosas. O Brasil
tira suas vantagens desse complicado processo: em 1851, o governo de Montevidéu – para assegurar o
apoio brasileiro – assina compromissos exorbitantes e o Brasil muda os presidentes, em busca de um
político disposto a manter as promessas, apesar da indignação de seus concidadãos. Nesse meio tempo,
proprietários do Rio Grande do Sul continuam a conquistar as terras do Uruguai, enquanto o banco
pertencente ao brasileiro Mauá controla a vida financeira de Montevidéu.

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Na Argentina, os conflitos são ainda mais ásperos. O país está dividido em dois. O Estado de Buenos
Aires é muito popular em sua capital, onde a cor azul da tradição unitária substitui o vermelho da época de
Rosas; os resíduos de um liberalismo que tem suas raízes nas camadas médias urbanas se fortalecem,
identificando-se com o orgulho citadino, alimentado por jornalistas hábeis no uso de uma acesa demagogia.
O campo, ao contrário, está mais frio; os grandes proprietários apóiam a secessão da capital, porque
temem a criação de um Estado nacional no qual não possam exercer um controle sobre a base provincial. A
política é dirigida por uma difícil coalizão entre agrários, que escolhem discretamente posições de segundo
plano, e políticos provenientes, pelo menos em parte, de outras províncias, que gozam do apoio da plebe e
das classes médias urbanas; os agrários são favoráveis a uma secessão pacífica, ou à adesão à união
argentina em troca de garantias precisas para os interesses provinciais; seus aliados, ao contrário,
propendem para uma política mais enérgica, que permita o fortalecimento da independência de Buenos
Aires, com uma vitória decisiva ou capaz de reconquistar para seus homens a direção das províncias do
interior.
Também o Paraguai está, há algum tempo, buscando uma possibilidade de inserção na política do Rio
da Prata. Morto Carlos Antonio López, a presidência é assumida por seu filho Francisco Solano, que tinha
para o seu país ambições muito vastas, ainda que talvez muito pouco precisas. O Paraguai estava em
conflito permanente com o Brasil por causa de questões de fronteira; não era de se estranhar, portanto, que
buscasse alianças no Rio da Prata. Mas esse aspecto da política externa paraguaia não tem sucesso.
Contra o Paraguai, alinhava-se a tríplice aliança do Brasil, Argentina e Uruguai. A guerra havia sido
declarada contra López e não contra a população do Paraguai; mas, num tratado secreto, a Argentina e o
Brasil dividiam entre si os territórios contestados, mais da metade da superfície do país inimigo (em grande
parte, é verdade, despovoada). A conquista revelou-se mais difícil que a projetada divisão; o heroísmo dos
paraguaios surpreendeu o mundo inteiro: em cerca de cinco anos da guerra, o país perdeu praticamente
toda a sua população adulta masculina. A guerra durou tanto tempo não só por causa da resistência do
Paraguai, mas também porque os aliados não eram os colossos que pareciam ser a quem observava de
longe, num mapa geográfico da América meridional, a extensão dos seus territórios.
O Paraguai tornou-se um país desmembrado e devastado; as conseqüências de sua derrota foram
limitadas pelas divisões que surgiram entre os vencedores. A Argentina protegia no Paraguai os que haviam
regressado do exílio; o Brasil, na condição de obter os territórios contestados, deu seu aval a um governo
dominado pelos generais de López, incitando-o a resistir às reivindicações territoriais argentinas. Afirmou-se
assim o predomínio brasileiro, enquanto os novos governantes organizavam a liquidação das terras
públicas; a reconstrução do Paraguai, muito lenta, tem lugar sob a égide da grande propriedade; o país
continuará mantendo seus laços econômicos sobretudo com a Argentina, que absorve a maior parte de
suas exportações e de cujo sistema de navegação fluvial depende para as comunicações com o ultramar.
Também a Argentina saiu esgotada da guerra: fora obrigada a organizar um exército de dezenas de
milhares de homens, repetidamente dizimado pelas operações bélicas e pelas epidemias.
A passagem do regime de Rosas ao de Roca foi muito mais do que uma simples transformação política.
Como diziam orgulhosamente até mesmo os dissidentes do ordenamento político dominante, a Argentina de
1880 era bem diferente daquela de 1850. A oscilação entre período de prosperidade econômica e períodos
de crise não conseguia ocultar uma expansão que caracteriza a etapa inteira.
Acredita-se que a prosperidade da Argentina seja permanente: enquanto dura, a ordem se mantém
estável; as oscilações da conjuntura, ao contrário, causam conflitos, destinados a extinguir-se tão logo a

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situação melhora. A nova ordem tem um consenso, se não unânime, suficientemente amplo para assegurar-
-lhe a estabilidade.
O progresso econômico se faz acompanhar por outras aquisições, limitadas pela circunstância de que o
Estado é menos favorecidos pela recente prosperidade: a opinião pública, formada por proprietários rurais,
agrários, exportadores, comerciantes com o ultramar e classes médias consumidores de produtos
importados, é contrária aos impostos fundiários, às taxas aduaneiras e aos impostos sobre o consumo:
preferem o endividamento do Estado e o recurso à inflação do papel-moeda, sempre condenado e jamais
eliminado. Paralelamente aos investimentos estrangeiros, existem também aqueles efetuados por capitais
nacionais: desde as melhorias urbanas na capital, passando pela melhoria dos rebanhos ovinos e bovinos,
até a implantação de cercas nos campos. Herdeiro e beneficiário político desse processo, Roca – que
conquistou para os agrários vinte mil léguas quadradas de terras índias – não hesita em apresentar-se
como o dirigente máximo de um empreendimento econômico.
Desenvolve-se no Uruguai – e com maior rapidez – um processo análogo ao da Argentina. Ponto de
partida é a crise política que continua desde 1811 e devastou os campos. A política uruguaia continua
envolvida pelos seus velhos motivos, pelos combates entre “brancos” e colorados, entre líderes rurais e
intelectuais urbanos; esses últimos conseguem o predomínio após o assassinato de Flores: colorados e
“brancos” da capital empenham-se na busca de um terreno de conciliação na melhoria das instituições, mas
isso não leva a uma pacificação no campo. Um regime parlamentar um pouco verboso cede diante da crise
de 1873. Uma nova ordem para o Uruguai o substitui: a ditadura não de um chefe rural, mas de militar de
carreira, que governa em nome do exército. Lorenzo Latorre estabelece uma ordem rigorosa nos campos e
enfrenta no Uruguai as tarefas que, na Argentina, tinham sido iniciadas por Rosas e concluídas por Roca.
Em 1880, Latorre deixa o governo, depois de ter feito aprovar severas medidas contra a oposição política. O
Uruguai está muito diferente de como ele o tinha encontrado quando de sua ascensão ao poder: parece ter
sido disciplinado por quatro anos de ditadura e estar ainda preparado para ser dirigido por militares, o que
efetivamente ocorre no período seguinte.
No México, na Argentina e no Uruguai, onde a dissidência armada era um elemento constante, onde,
em meados do século, políticos conhecidos e respeitados em toda a América Latina tinham iniciado uma
renovação inspirada na ideologia liberal-constitucional, o progressismo adquiria – em maior ou menor
proporção – aspectos autoritários e militares.
A Venezuela, em meados do século, no curso de uma crise provocada pela queda do preço do café, cai
o predomínio dos conservadores.
A penetração comercial estrangeira na Venezuela aumenta consideravelmente no curso desse período
de incremento das exportações; as classes elevadas resignavam-se a aceitar que a gestão da coisa pública
não estivesse em suas próprias mãos, mas naquela de chefes militares que tinham obtido o direito de
governar no curso de combates cujo resultado, no fundo, era indiferente. Os estratos populares tinham sido
educados no silêncio e na obediência. No lugar do exército popular que fizera a revolução federalista, havia
agora um exército profissional, verdadeiro senhor da política venezuelana; e os senhores do exército, por
sua vez, eram recrutados entre as classes dominantes das regiões mais pobres e atrasadas do país.
Na Guatemala, o domínio de Carrera se conserva até sua morte: isso significa que a aliança entre a
aristocracia branca e o chefe mestiço durou o mesmo período. Em 1885, morria Carrera, no momento em
que o país começava a transformar-se, embora lentamente. Em 1873, subia ao poder um líder mestiço,
Justo Rufio Barrios, e entre os seus atos de governo contam-se o confisco de Igrejas, a expulsão de

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congregações, a difusão da instrução popular laica, a reforma do direito privado (concebida de modo a não
deixar possibilidades jurídicas para a propriedade de terras comunais dos indígenas), etc. Em 1855, Barrios
Morria, deixando um complexo legado: um liberalismo com o qual estavam de acordo, no que se refere aos
princípios econômicos, todas as classes possuidoras, e que se fortalecera aos princípios econômicos, todas
as classes possuidoras, e que se fortalecera com os resultados da secularização, obtidas com grande
energia; um sistema ditatorial, apoiado nos militares, que disciplinava tanto as elites urbanas, quanto a
plebe rural.
Uma evolução com características menos acentuadas, mas substancialmente análogas, verifica-se
também no resto da América Central. A modificação ocorrera de modo mais gradual, em parte por motivos
políticos, já que em nenhum outro país a ditadura conservadora assumira um caráter tão claro quanto na
Guatemala; e, em parte, por causa das características enconômico-sociais. As lutas entre liberais e
conservadores (clericais) constitui a trama dos acontecimentos políticos da América Central na segunda
metade do século passado.
A exceção é representada pela Costa Rica, ode uma categoria de médios proprietários prospera com o
café, e, as tentativas de privá-la dos seus poderes políticos em favor de ditaduras militares progressistas.
Durante um certo período, também El Salvador parece constituir uma exceção às tendências autoritárias;
mas, quando é atingido pela prosperidade do café, o pequeno Estado superpovoado, que fora outrora uma
fortaleza do liberalismo centro-americano, terminará por seguir a mesma rota que os seus vizinhos.
A política da América Central nesse período começa a sentir os efeitos da importância estratégica da
região: a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, rivais não inteiramente reconciliados, pois ambos aspiram ao
domínio do caminho do istmo, empenham-se em adquirir influências políticas, e manobras através da
utilização das múltiplas rivalidades políticas locais.
O progresso do liberalismo se traduziria numa luta para limitar a função da Igreja na vida civil, processo
que fora mais cauteloso na Argentina e mais decidido no Uruguai, México, Venezuela e América Central. No
Equador, encontra-se uma solução mais original, embora efêmera: uma ditadura progressista sob a égide
de um catolicismo intransigente, imposta por Gabriel García Moreno.
Em outros países, como dissemos, a evolução ocorre entre alternativas menos radicais. No Chile e em
Nova Granada (rebatizada como Colômbia em 1860), o predomínio conservador cede lugar ao liberal, mas
as tendências autoritárias só aparecem mais tarde e, no Chile, são derrotadas. No Peru, a oligarquia da
costa reconquista o poder e consegue manobrar os estratos urbanos descontentes com o predomínio dos
militares. O desenvolvimentos políticos no Chile e no Peru, embora profundamente diferentes, são
estreitamente ligados. O general Castilla organiza no Peru, em 1845, um regime que se apóia numa nova
fonte de riquezas: o guano. Em Lima, reconstitui-se assim uma riqueza privada; e, enquanto algumas
grandes famílias voltam a dourar os seus brasões e outras, novas, alcançam a opulência, aumenta o
descontentamento dos ricos que se arruinaram, de todos os que não participam dos ganhos fáceis
proporcionados pelo guano, de uma plebe curiosa e maledicente, etc. Mas isso não basta, por enquanto,
para abalar o predomínio político de Castilla que, em 1862, pode passar o governo para uma pessoa de sua
confiança. Mas esse morre a guerra civil recomeça, complicada por um conflito com a Espanha. Diante do
perigo de uma possível reconquista espanhola, constitui-se temporariamente uma efêmera união nacional e
uma também efêmera aliança com o Chile, a Bolívia e que culminará com um violento bombardeio de
Valparaíso e outro menos grave em Callao. Finalmente, a esquadra espanhola se retira, sem esperar as
reparações exigidas. A union sacré peruana se dissolve: entre revoltas indígenas, explode uma nova guerra

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civil, da qual – em 1868 – emerge um novo presidente, o coronel Balta, herdeiro da “revolução
conservadora”. O fácil afluxo de dinheiro ofereceu novas oportunidades para difundir a corrupção política,
estigmatizada – com linguagem severa – pelos antigos concessionários. Desse ambiente provinha o
fundador do partido “civilista”, Manuel Pardo, de velha família limenha. A situação de dificuldade econômica,
porém, não era favorável à consolidação do regime “civilista”; Pardo, assim, teve de aceitar a candidatura à
presidência do general Pardo, que – mesmo sem ser seu adversário não podia ser considerado um seguidor
de sua corrente política. No governo, o general revelar-se ainda mais independente do partido que queria
mantê-lo sob tutela e que, em 1878, perderá o seu chefe, assassinado em circunstâncias não esclarecidas.
A era do guano no Peru estava para terminar; mas, no sul, as jazidas de salitre ofereciam uma nova
fonte de riqueza para a exportação e o governo buscava inutilmente os fundos necessários para comprar
dos proprietários privados as terras ricas de salitre existentes no deserto em torno de Iquique.
Em 1879, o Peru entrou em guerra com o Chile, que há muito visava às riquezas das jazidas de salitre
dos territórios fronteiriços – Peru e Bolívia onde trabalhavam operários chilenos e, na Bolívia, com
freqüência, até mesmo empresas chilenas. A guerra (e a derrota à qual ao quis se resignar) significou para
o Peru uma ruína de enorme alcance, condenando restrospectivamente um período que não pode decerto
identificar-se unicamente com a prosperidade efêmera e corruptos produzida pelo guano e pelo salitre.
Para a Bolívia, a derrota devia ter um significado menor que para seu vizinho setentrional; com efeito, o
boom do salitre no período anterior não chegara a assumir proporções capazes de modificar radicalmente
os dados essenciais da realidade boliviana. Muitos anos depois, a Bolívia iria considerar a perda do litoral
oceânico como uma causa do seu isolamento e do seu atraso econômico. No Peru, a aristocracia urbana
das regiões costeiras e em particular de Lima se reconstruiu, sobretudo graças à generosidade do fisco.
Na Bolívia, nada disso acontece: uma economia estagnada minou a superioridade das elites tradicionais
e constituiu um novo grupo de governo, formado por oficiais vulgares, cujos modos grosseiros e cuja
facilidade de corrupção podem ser objetos de denúncias enérgicas, mas que não parecem ter maiores
conseqüências que aquelas determinadas pelo estilo administrativo dos representantes das velhas elites.
No Chile, a situação foi – e continua a ser – diferente da peruana e mais ainda da boliviana. O regime
conservador começou a limitar a força do exército; com a primeira guerra do Pacífico, as forças armadas
chilenas adquirem um prestígio nacional sem paralelo no resto da América Latina. O tato de que o exército
pudesse ser, ao mesmo tempo, expressão do país e da facão dominante era, para os observadores mais
benevolentes, outro índice de uma experiência excepcional, mais européia que latino-americana, e isso
explica – pelo menos em parte – as características peculiares da evolução do país.
O Chile representou nesse período um modelo bem realizado de política oligárquica e nenhum país da
América Latina podia comparar-se com ele. Mesmo o Império do Brasil, naqueles anos, perde muito do seu
anterior prestígio: verifica-se uma progressiva deterioração do equilíbrio político, que já anteriormente era
muito menos perfeito do que poderiam levar a supor certas descrições idealizadas.
A guerra do Paraguai – esforço de proporções imprevistas exigido ao governo liberal – constituiu o ponto
de partida da sua crise. A ruptura entre o marechal Caxias, comandante das forças brasileiras no Paraguai,
e o gabinete liberal provocou a queda do ministério e, diante da solidariedade do partido para com os
demissionários, os conservadores voltaram ao poder. Esse resultado era a conseqüência da função
equilibradora da Coroa e explica a crescente distância dos liberais em face da monarquia: às suas
tentativas de limitar os poderes imperiais através da acentuação dos aspectos parlamentares e federativos
do regime (tradicionais no movimento liberal brasileiro), acrescentam-se agora ataques – embora discretos –

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à própria instituição. O regime deve enfrentar ainda outras ameaças. No Brasil, as tensões provocadas
pelo fortalecimento das posições clericais interessam diretamente à Coroa.
A ordem política imperial se enfraquecia a partir de dentro (isso por causa da posição marginal
assumida pelo partido Liberal, que há algumas décadas era o setor mais importante); outrossim, perdia o
apoio seguro – e, no Brasil, decisivo – do exército, bem como aquele menos essencial da Igreja. Esse
processo de deterioração tinha lugar num período de rápidas transformações econômicas e sociais. A crise
creditícia européia, abatendo-se sobre um país cujos débitos externos haviam aumentado
consideravelmente durante a guerra com o Paraguai, provocou uma crise bancária, cuja principal vítima foi
o Visconde de Mauá, que – através de seu banco – dominara a vida financeira do Brasil após 1850.
A decadência geral dos ordenamentos tradicionais era evidente; e, enquanto a decadência parecia
influir sobre toda a vida brasileira, o regime imperial tinha também de liquidar a mais pesada herança de um
passado de prosperidade: a escravidão. A decadência da escravidão parecia apenas um dos aspectos da
decadência da economia agrária baseada sobre o trabalho escravo; e os problemas colocados pelas
reformas já adotadas punham à luz a responsabilidade do Estado nesse processo de deterioração. Em
1889, um golpe de Estado – que não encontrou a menor resistência – derrubou a monarquia: principais
beneficiários da mudança foram o exército e as elites políticas do Brasil central , onde se estava expandindo
a cultura do café. O novo regime brasileiro apoiava-se sobre bases mais sólidas do que poderia fazer supor
a evolução bastante fraca dos vinte últimos anos de regime imperial. O Brasil, liberado do peso da velha
ordem institucional, entrava numa fase de desenvolvimento febril e de crises devastadoras, fase comum,
por outro lado, a toda a América Latina, à medida que ia se consolidando o regime neocolonial.
A nova ordem estava se afirmando também nas Antilhas colonizadas pelos espanhóis, particularmente
em Cuba enquanto em Porto Rico o desenvolvimento das plantações conseqüências sociais mais limitadas.
Cuba, que pertencia ainda à Espanha, atravessava – ao contrário – vivas e complexas transformações.
O açúcar continuava a ser o produto fundamental no quadro das exportações de Cuba, cobrindo 80 do total
em 1820 e 75% em 1865, e mantinha um ritmo constante, embora nesse meio tempo os preços
internacionais do açúcar estivessem em gradual decréscimo. O problema de fundo da economia açucareira
era o da mão-de-obra: o emprego de escravos era obstaculizado pelos empecilhos postos pelos britânicos
ao tráfego negreiro. O governo espanhol, por sua parte, apoiava discretamente a continuação do comércio
dos escravos, formalmente ilegal. A crise do regime colonial amadurecia também em Cuba. Entre 1850 e
1860, a Espanha assumiu uma atitude menos clara a respeito do problema do tráfico negreiro, reduzindo
assim a validade do vínculo colonial como garantia da manutenção da escravidão. Os arbítrios de um
regime baseado sobre a predominância de elementos militares tornaram o conflito latente ainda mais agudo
e, em 1868, começava a primeira guerra de independência em Cuba. A guerra durou dez anos; os
insurretos constituíam um alinhamento singular; a sociedade nativa estava atravessada por conflitos
internos e a revolução não pretendia esclarecer seus próprios objetivos. A guerra destruíra boa parte da
riqueza no campo e, sobre as ruínas dos patrimônios nativos e espanhóis, avançavam ovos pretendentes
ao domínio de Cuba: os capitalistas norte-americanos, que haviam imposto seu predomínio sobre o
comércio de exportação, graças a uma sociedade que – em funcionamento a partir de 1880 – monopolizava
a compra do açúcar. Em Cuba, ocorre assim um novo tipo de participação estrangeira na economia. A
influência dos Estados Unidos não se limita aos mercados e aos transportes; estende-se também aos
trabalhos industriais e procede à conquista da terra. Desse modo, a colônia – ainda não emancipada do
domínio espanhol – precede outras regiões da América Latina ao pôr-se sob uma tutela de novo gênero.

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Capítulo V
Maturidade do Regime Neocolonial

Por volta de 1880, com o progresso de uma economia primária e de exportação, consolidou-se em
quase toda a América Latina um novo pacto colonial que substitui aquele imposto pela Espanha e por
Portugal. Desde então, continua-se a avançar rapidamente pelo caminho empreendido. O desenvolvimento,
mais rápido que antes, será acompanhado por crises de intensidade cada vez maior.
No momento mesmo em que se afirma, o novo pacto colonial começa a modificar-se em sentido
favorável à metrópole. A divisão de tarefas atribuía às classes elevadas dos países latino-americanos,
praticamente em toda parte, a produção primária e os primeiros estágios do processo comercial. Mas essa
subdivisão das tarefas nem sempre se conserva: algumas atividades primárias, sobretudo as de mineração,
exigem desde o início uma considerável inversão de capitais e passam assim para o controle direto das
economias metropolitanas.
As classes de latifundiários, embora se apóiem em estruturas políticas, financeiras e comerciais locais,
enfraquecem-se sob a pressão dos representantes das economias metropolitanas. Esse enfraquecimento
das oligarquias é acompanhado por um outro processo, de intensidade variável a depender das regiões, de
acordo com o qual, ao lado das velhas classes elevadas, desenvolvem-se camadas médias,
predominantemente urbanas, cada vez mais exigentes; além disso, em algumas regiões, as classes
dominantes devem enfrentar também as reivindicações de grupos de trabalhadores ligados a formas
modernas de atividade econômica. Esse último processo – que tem lugar sobretudo onde a economia é
mais vigorosa e, portanto, onde as classes dirigentes defendem-se melhor contra as pressões estrangeiras
– encontra correspondência política num início de democratização. No México, isso ocorre sob formas
revolucionárias; na Argentina, Chile e Uruguai, manifesta-se com o acesso ao poder de novos estratos,
através do sufrágio universal.
A América Latina passa, de modo cada vez mais intenso, do estado de zona sob influência britânica
àquele de teatro de conflitos entre velhas e novas influências, as quais, a seu modo, tentam repetir a
conquista econômica realizada com tanto sucesso pela Inglaterra após 1810.
A passagem da intervenção européia à tutela dos Estados Unidos se faz evidente no conflito
venezuelano. Nos inícios do século XX, o Estado e alguns cidadãos privados da Venezuela são devedores
insolventes de fortes credores ingleses e alemães. Como já haviam feito cinqüenta anos antes a Inglaterra
e a França no Rio da Prata, os dois grandes impérios rivais pretendem agora atenuar seus antagonismos e
exercer uma ação conjunta contra seus inermes devedores sul-americanos. Expressão dessas reações foi,
por um lado, a formulação da “doutrina Drago”, onde o chanceler argentino proclamava que, nas relações
entre credores e devedores, não era possível empregar forças militares, ainda que se tratasse de Estados;
e o chamado corolário de Roosevelt à doutrina de Monroe, com o qual os Estados Unidos – insistindo na
atitude de estabelecer através de decisões unilaterais as bases do regime internacional americano –
sustentavam que, no caso em que a escassa vontade de por ordem às finanças reduzisse um Estado da
América Latina à condição de devedor crônico, cabia aos Estados Unidos, e só a eles, exerceram uma ação
de persuasão, até mesmo através do uso da força, a fim de levá-lo a adotar as necessárias reformas
também em benefício dos credores europeus e não apenas estadunidenses.

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Desse modo, os Estados Unidos assumiam a função de polícia e serviço das relações financeiras
instauradas durante o período de maturidade do neocolonialismo. Os fatos iriam posteriormente demonstrar
com que seriedade os Estados Unidos cumpririam os seus novos deveres nos trinta anos seguintes.
Ao sul do Rio Grande, essas formas de intervenção eram consideradas como simples hipocrisia. Eles
percebiam com absoluta clareza que as imperiosas exigências de pureza política eram chamadas em
causa, implacavelmente, quando serviam para justificar a conquista de vantagens muito concretas para os
interesses norte-americanos; além disso, em outros casos, aqueles interesses se impunham pela utilização
de procedimentos que mesmo os latino-americanos de mangas mais largas consideravam escandalosos.
Os Estados Unidos tentaram dar forma jurídica às suas relações com os Estados Americanos, com
caráter de pacto regional no âmbito das Nações Unidas.
O movimento pan-americano tem, em suas primeiras fases, uma função muito modesta na efetiva
política latino-americana dos Estados Unidos. Essa política desenvolve-se no sentido de dois objetivos: os
fins estratégicos, por um lado, e, por outro, aqueles derivados do potencial econômico ampliado dos
Estados Unidos. Esses últimos, predominantes no início do pan-americanismo, logo passam a segundo
plano.
As tentativas norte-americanas encontraram uma resistência aberta e eficaz, liderada pela Argentina,
cuja rápida expansão acentuara ainda mais sua dependência comercial e financeira à Grã-Bretanha. Na
conferência pan-americana de Washington, ocorrida em 1889-1890, um membro da delegação argentina,
Roque Saénz Peña, opôs à fórmula norte-americana “a América para os americanos” aquela de “a América
para a humanidade”, que refletia a decisão de alguns países no sentido de manter ligações diversas com
países europeus e de outros no sentido de opor-se ao avanço – no mínimo ameaçador – da hegemonia
norte-americana. A busca de um sistema de normas internacionais capazes de limitar, pelo menos em seu
aspecto político, os objetivos expansionistas dos Estados Unidos estava se orientando para organismos
mundiais ainda em embrião, particularmente para a Corte Internacional de Haia. Confiava-se também na
força equilibradora das grandes potências européias.
A tentativa de construir essa barreira formou o objeto da reunião de Santiago do Chile (1923); o Uruguai,
que no sul do continente se mantivera em posições extraordinariamente filo-estadunidense propugnou
aquilo que chamava de “internacionalização da doutrina de Monroe”. Os Estados Unidos, tendo retornado à
política isolacionista, recusaram apoiar a proposta de uma garantia multilateral da independência e
integridade de todos os Estados americanos, dirigida não apenas contra as ameaças extra-continentais.
Confirmavam assim as apreensões que derivavam de sua política na América. Em 1928, ainda era viva a
tendência dos Estados Unidos no sentido de restringir o quadro no interior do qual devia funcionar a União
Pan-Americana, enquanto por parte dos Estados latino-americanos repetiam-se as tentativas de fazer
daquela União o ponto de partida para um ordenamento regional capaz de limitar, em suas relações com os
Estados Unidos, as iniciativas unilaterais desses últimos.
O Tratado de Paris deixou os Estados Unidos como senhores de Porto Rico e dominadores da nova
Cuba independente; a opinião pública da América espanhola, entre a qual a causa da independência
cubana tinha grande popularidade, acolheu com sentimentos discordantes essas conclusões. O passo
seguinte dos Estados Unidos, a constituição da República do Panamá no istmo que pertencia à Colômbia,
causou um alarme mais imediato.
A constituição de um Estado protegido no Panamá provocou reações ineficazes, mas muito amplas, em
toda a América Latina: também nos Estados Unidos não foram poucos os que duvidaram da justeza de uma

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política que sacrificava, em nome de vantagens imediatas, ainda que importantes, o respeito formal pelas
normas de convivência internacional. O presidente Theodore Roosevelt, ao contrário, era de opinião que a
sinceridade e a brutalidade da sua política fossem um mérito. E foi ele – coerente com o gosto que a época
de maturidade dos conflitos imperialistas havia desenvolvido no sentido do realismo político – que a definiu
como política do porrete: segundo ele, os Estados Unidos não deveriam temer usar o big stick para impor a
disciplina às volúveis repúblicas do sul.
Assim, enquanto as organizações pan-americanas colaboravam para criar uma comunidade de países
aparentemente livres e iguais, os Estados Unidos continuavam uma política que se justificava através de
uma polêmica aberta contra essa igualdade fictícia. Os grandes países do sul – o Brasil, a Argentina e o
Chile – estavam, ao contrário, em condições de exercer a própria soberania e não deviam temer a
penetração norte-americana. Essa justificação tranqüilizadora dirigia-se a países cada vez mais conscientes
da própria importância e responsabilidade na manutenção da ordem latino-americana. A Primeira Guerra
Mundial, pondo em crise o conjunto do ordenamento internacional no qual os países do ABC tentavam
inserir-se, pôs fim também às tentativas do grupo de países, as quais não mais seriam retomadas no pós-
guerra. O período entre as duas guerras foi agitado sobretudo por conflitos sociais e políticos no interior de
cada nação latino-americana, enquanto as tensões entre os vários países não se colocavam em termos tão
graves que exigissem a presença equilibradora da aliança austral.
Até 1914, a inflação norte-americana afirmou-se especialmente no Caribe e na América Central. No
período compreendido entre a guerra e a grande crise de 1929, os progressos da influência econômica
norte-americana foram muito rápidos: os países do Pacífico terminaram por se colocar completamente na
órbita dos Estados Unidos; o Brasil, assim como o Uruguai e a Argentina, sofreram a penetração norte-
americana.
As potências que, no passado, haviam exercido sua hegemonia retiravam-se cautelosamente diante dos
Estados Unidos; a mais importante de todas, a Grã-Bretanha, não se revela disposta – nem no período da
ascensão imperial, nem naquele do seu colapso – a tornar-se inspiradora de amplos projetos políticos a fim
de salvaguardar suas posições. Com experiente habilidade, diminui o ritmo de sua retirada e, agora como
antes, defende com sucesso os seus interesses concretos. Os investimentos franceses, modestos em seu
conjunto, colocam a França, que em seu melhor momento, aspirava a proteger várias zonas latino-
americanas, numa posição irremediavelmente secundária.
Para contrapor-se ao avanço dos Estados Unidos, recorre-se a outras influências externas, melhor
radicadas na realidade latino-americanas. A consciência da origem católica e espanhola da América Latina
tornar-se mais viva. A Espanha, após a derrota de 1898, adquirira uma mais justa consciência da própria
força, e por certo, não tinha a intenção de utilizar essa onda de benevolência de suas velhas colônias como
base para uma aventura contra os Estados Unidos, a qual seria superior às suas possibilidades. O prestígio
crescente das tradições pré-revolucionárias, porém, retirar à nova potência dominante a possibilidade de
adquirir sobre a vida a cultura latino-americana uma influência comparável àquela obtida pela Europa
ocidental na segunda metade do século XIX.
Numa época anterior, essa oposição aos aspectos culturais e ideológicos do avanço norte-americano
interessa-se de modo apenas ocasional pela penetração econômica, a qual, depois da Primeira Guerra
Mundial, tornar-se a mais importante que a penetração política. Por outro lado, com exceção do México,
onde a fé tradicional foi atingida por governos revolucionários e encontra defensores também nos estratos

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populares, as tendências conservadoras tem eco apenas entre as elites tradicionais, das quais expressam
parcialmente o crescente afastamento.
O movimento operário faz se aparecimento no México, Buenos Aires, Santiago do Chile, na última
década do século passado; naquele mesmos período, constituem-se os primeiros movimentos políticos que
recusam a direção das elites tradicionais (embora recrutem seus dirigentes, com frequência, nessas
mesmas elites).
Uns e outros opõem-se – mais que ao vínculo neocolonial que está na base dos regimes latino-
americanos – à posição de privilégio que, no interior daquela ordem, ocupam as chamadas oligarquias. A
luta contra a oligarquia permite, em cada oportunidade, motivações variáveis, que vão do tradicionalismo
católico até posições revolucionárias de inspiração socialista, sem excluir a possibilidade de que umas e
outras coexistam na mesma organização.
Essa distância entre a renovação ideológica, radical mais imprecisa, e objetivos concretos, modestos
mas claros, manifesta-se do modo mais evidente num movimento que é talvez o mais típico da corrente
anti-oligárquica: a reforma universitária que, no primeiro pós-guerra, difunde-se por toda a América Latina a
partir da Argentina. O movimento de reforma admite uma dupla inspiração: a revolução russa e a mexicana.
Os dois exemplos encorajam a lutar para modificar a organização universitária. O movimento estudantil é
uma escola política na qual se formaram muitos dos futuros dirigentes revolucionários ou reformistas da
América Latina, dede Victor Raúl Haya de La Torre até Fidel Castro.
A importância política do movimento estudantil é consequência, sobretudo, da ausência de movimentos
populares de massa; só em cão excepcionais e com atraso (como em Cuba) é que a ação dos dirigentes
universitários desemboca em movimentos populares desse tipo. Prosseguem na política nacional através de
organizações políticas d inspiração ideológica frequentemente mais radical que as de antes da guerra, mas
com uma base de sustentação onde os estratos populares continuam a ter um peso inferior àquele das
camadas médias.
De qualquer modo, o movimento estudantil enquanto tal não consegue inserir-se de modo permanente e
eficaz no jogo político cada vez mais complexo que se desenvolve na América Latina. Ao contrário,
readquire certa influência nesse jogo um elemento mais tradicional: o exército.
Assim, mesmo antes da entrada em crise do regime colonial, o processo de democratização política e
de progresso irregular nos vários países aparece ameaçado pela rivalidade entre as soluções
revolucionárias e as outras, bem mais sólidas, de tipo autoritário. O constitucionalismo liberal não havia
superado a prova da democratização (na Argentina e no Chile), ou a tinha evitado durante um período tão
longo que agora era tarde demais para tentá-la (Brasil). De qualquer moo, até mesmo os países que se
vangloriavam de constituir exceção ao autoritarismo dominante em 1930 na América latina mostravam um
panorama político tão cheio de ruínas quanto a sua economia.
A crise de 1930 interrompeu bruscamente meio século de desenvolvimento econômico, que fora
representado por uma sequência de ciclos locais, simultâneos ou sucessivos, em alguns casos já esgotados
antes mesmo do término do período de expansão.
Examinemos, em primeiro lugar, o ciclo dos produtos agrícolas. A partir do último terço do século XIX, o
café transforma as zonas tropicais montanhosas e de média altitude, desde São Paulo no Brasil até a
Colômbia, Venezuela, América Central e México. No Brasil, a cultura do café estendo-se continuamente
para novas terras, das quais esgota a fertilidade; as zonas produtoras de café estão em constante
movimento e as terras abanadas tornam-se improdutivas. Para explorar essa imensa riqueza, os

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latifundiários brasileiros devem recorrer ao trabalho sub-pago dos imigrantes, em sua maioria italianos;
esses, até 1914, são quase dois milhões, mas são ainda insuficientes para sistemas de cultivo não
extensivo.
Na América espanhola, a expansão da cultura do café assume aspectos menos dramáticos e sofre
também menos oscilações. As terras disponíveis são mais limitadas e, ao contrário do que ocorre no Brasil,
não permite um desenvolvimento ilimitado; por outro lado, os recursos humanos. Representam uma oferta
de mão-de-obra em condições de satisfazer constantemente uma demanda mais restrita que aquela do
Brasil.
O desenvolvimento da cultura do café na América espanhola tem assim elementos comuns, apesar das
diferenças locais, devidas particularmente às relações de propriedade. Ambos os tipos de empreendimento
se diferenciam, por sua vez, da grande propriedade subdividida em pequenos lotes cultivados o
trabalhadores não proprietários, que recebem ao mesmo tempo um salário e uma parte da produção: esse é
o tipo que predomina no Brasil. Em situações diversas, porém, há um traço comum: a debilidade dos
produtores em face dos comerciantes, que realizam grandes lucros ao esperarem tanto com as oscilações
sazonais do preço do café, quanto com aquelas (mais irregulares e bruscas) que são apresentadas
continuamente por um mercado em expansão na oferta e na procura. Apenas no Brasil esses proprietários
conseguem, graças ao controle do aparelho estatal (e graças também à sua maior experiência política e
administrativa, que os torna capazes de elaborar projetos que seriam muito complexos para a maioria dos
plantadores da América espanhola), dar vida a um sistema de defesa contra a ameaça da superprodução;
mas, também aqui, os comerciantes e os bancos contarão mais que os produtores.
O sistema, adotado em 1906, consiste essencialmente no financiamento das compras, destinadas a
constituir estoques que só gradualmente são colocados nos mercado; o período de crise é superado em
1910, mas a Primeira Guerra Mundial encontrará uma parte dessas reservas acumuladas ainda na
Alemanha...
Mesmo com tais limitações, a estabilização de 1906 tem sucesso e, além disso, salva da crise de
superprodução as zonas produtoras de café da América espanhola, que gozam das vantagens derivadas da
limitação da oferta brasileira. Tem sucesso também porque resolve uma crise passageira da conjuntura;
muito mais arriscado, em toca, é a ambiciosa tentativa de estabilização iniciada em 1924 e voltada para
eliminar as consequências de uma superprodução crônica e cada vez mais grave.
O experimento brasileiro do café antecipa, em mais de um aspecto, futuros desenvolvimentos: um grupo
de proprietários rurais se dedica à organização do mercado para os seus produtos, deixando de lado a
confiança no liberalismo econômico, ao qual, porém, não renuncia formalmente.
Nas zonas temperadas do sul, as culturas de gêneros alimentícios têm um desenvolvimento menos
agitado: a expansão argentina e uruguaia se baseia sobre a lã, a carne e o trigo, apresentado o mesmo
ritmo rápido que a cultura do café no Brasil. Com a queda dos preços internacionais, com a interrupção dos
investimento externos, a Argentina reconstitui sua economia ampliando o cultivo do trigo e do milho. Os
pequenos comerciantes urbanos, arruinados pela crise, têm pretensões modestas esse adaptam aos
contratos agrícolas usuais, entre os quais predomina o arrendamento, que posteriormente cede lugar à
meação, difundida mais amplamente por volta de 1914, tendo em vista o fato de que o dinheiro escasseia
nesse pampa cerealífero, do qual provém grande parte dos lucros das exportações argentinas.
Na parte meridional da província de Córdoba e em Santa Fé, está se afirmando uma nova classe de
grandes proprietários, em parte imigrantes, que adquirem com frequência a terra a partir de posições

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dominantes no comércio local. É uma classe menos poderosa que aquela que, a partir de Buenos Aires,
domina o pampa com grande pecuária; na verdade, tem maior necessidade de mão-de-obra, insere-se num
mercado internacional rigidamente regulado pelas empresas comerciais e, finalmente, ressente-se das
consequências de um vínculo menos direto com os centros de decisão política. Todavia, mais que no Brasil
do Café – já que no pampa cerealífero o setor dos proprietários fundiários é mais fraco – a hegemonia dos
operadores econômicos ligados à finança ultramarina constitui o aspecto mais relevante do
desenvolvimento da cultura de cereais.
Essa mesma hegemonia será obtida apenas o ritmo mais lento na pecuária do pampa, cujo centro mais
importante se encontra na província de Buenos Aires; essa pecuária está firmemente controlada por uma
classe de proprietários habituada a manter de modo exclusivo as ligações com os poderes públicos.
A melhoria do gado, os cruzamentos sistemáticos para selecionar um tipo de bovino capaz de satisfazer
às exigências do mercado europeu de carne congelada, constituem a história mesma da pecuária argentina
nos anos que precedem 1910 e até a Primeira guerra Mundial. Essas transformações são possibilitadas
pelos investimentos – que se fazem mais consideráveis – dos proprietários rurais. A colocação de cercas
nos pastos, iniciada desde 1870, prossegue com ritmo mais rápido; aumenta a importação de animais de
reprodução etc. Os investimentos mais importantes continuam, porém, a ser feitas – como antes – pelo
Estado e pelo capital estrangeiro. As empresas frigoríficas, salvo algumas de pequenas proporção, são
propriedade de firmas estrangeiras: a partir de 1950s, as inglesas – que inicialmente dominavam o setor –
são obrigadas a competir com as norte-americanas.
Após a agricultura, também as fazendas de criação de gado ressentiram-se da influência negativa dessa
inovação: até a Primeira Guerra Mundial, a concorrência entre as empresas frigoríficas inglesas e norte-
americanas favorece o aumento dos preços.
Em escala reduzida, o Uruguai vive experiências análoga àquelas argentinas, as exportações de cereais
são menos importantes que na margem oposta do Prata e, por conseguinte, o retorno à pecuária é menos
significativo. Como na Argentina, a produção foi aumentada graças à seleção do gado, à difusão das
empresas frigoríficas e ao desenvolvimento da rede ferroviária.
O Brasil central, a Argentina e o Uruguai obtiveram êxitos, ainda que relativos, na tentativa de
modernização empreendida por toda a América Latina. Na Argentina cerealícola, e mais ainda no Brasil do
café, criam-se sociedades rurais extremamente instáveis; a hegemonia dos proprietários consegue manter-
se apenas ao preço da falta de segurança dos trabalhadores, sobre os quais se faz possível laçar o peso
dos aspectos negativos da conjuntura.
As crises da demanda estão sempre presentes na história do açúcar da América Latina: em
desvantagem no mercado do continente europeu quando comparado ao açúcar de beterraba, limitado no
mercado inglês pela presença do açúcar das índias ocidentais, o açúcar da América Latina tinha seu
principal escoadouro nos Estados Unidos. Mas, mesmo aqui, uma legislação protecionista condenava-o a
compensar o aumento do volume exportado com a diminuição dos preços.
A riqueza do açúcar tem algo de devastador : mudou Cuba e Porto Rico a ponto de torná-los
irreconhecíveis para quem os havia visitado no passado. A cultura da banana se difunde por iniciativa de
um conjunto de empresas dos Estados Unidos, que nos inícios do século fundem-se na United Fruit
Company. Na margem atlântica da Guatemala, de Honduras, de Nicarágua, da Costa Rica, do Panamá, da
Colômbia e da Venezuela, essa companhia possui quase três vezes mas extensa que aquela pública,
certamente bastante limitada. A banana torna-se o artigo de exportação mais importante em vários países

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da América Central e seu único mercado de exportação são os EUA, os quais, em 1918, adquirem mais de
90% das exportações da Nicarágua.
Na região da Amazônia brasileira, existem numerosos camponeses provenientes do sertão nordestino,
expulsos pela superpopulação e pelas seca periódicas: tornam-se seringueiros, coletores do látex nas
florestas; sua infiltração na floresta tropical, que só é habitada (com exceção das margens dos rios de maior
parte) por tribos indígenas não submetidas, traduz-se num deslocamento da fronteira brasileira,
particularmente no sentido da Amazônia boliviana (aquisição do território do Acre em 1902). O látex começa
a ser importante para as exportações brasileiras; em 1899, constitui 19% e, em 1910, 25% das exportações,
somando dezenove milhões de libras esterlinas. A riqueza do látex não poderá ser absorvida por nenhum
grupo de proprietários, já que as plantas crescem em regiões onde não existem títulos de propriedade.
Na Amazônia colombiana, equatoriana, peruana, e venezuelana, a exploração do látex é ainda mais
primitiva e destrutiva; faltam aquelas reservas de mão-de-obra que o Nordeste oferecia no caso do Brasil,
razão pela qual as poucas efetivamente disponíveis se veem coagidas ao trabalho com violência e
crueldade ainda maiores. Na busca de lucros rápidos, destroem-se até mesmo as árvores, enquanto no
Brasil, ao contrário, elas são cortadas periodicamente, tendo em vista que a manutenção de reservas é do
interesse dos seringueiros, que só podem trabalhar na zona que lhes é designada e que seriam as
primeiras vítimas do desaparecimento das árvores.
Nem sequer os esforços dos norte-americanos, desejosos de liberar-se do monopólio anglo-holandês,
são capazes de fazer reviver o episódio do látex da Amazônia, limitado à segunda década do século XX; e,
como testemunho daquela época, restam apenas cidades absurdas, perdidas nas florestas.
A ampliação na demanda do cobre, cuja exploração é muito antiga nos Andes e já teve um
desenvolvimento modesto no Chile nas primeiras décadas do século XIX, caracteriza a economia chilena
nas primeiras décadas do nosso século.
Na economia chilena, , o cobre não consegue substituir o salitre, que até 1930 continua a ter o primeiro
lugar nas exportações. Ele constitui o principal butim de guerra na vitória sobre os países limítrofes do norte
e faz surgir, em pleno deserto de Atacama, cidades com dezenas d milhares de habitantes.
Mais lento é o desenvolvimento petrolífero, o qual, iniciado no princípio do século com implantações em
várias localidades dispersas pelo continente, estabelece-se progressivamente em grande centros de
produção. Depois de 1920, o México está na vanguarda, seguido de longe pela Venezuela, Colômbia e
Peru. Enquanto a guerra civil devasta os campos, o petróleo constitui o principal artigo de exportação do
México e sua produção se amplia de modo uniforme, ao contrário do resto da economia. Colômbia e no
Peru, após um início promissor, o ritmo de desenvolvimento é menos dinâmico; na Argentina – dividida
entre um empresa estatal e aquelas que dominam as atividades petrolíferas mundiais – os progressos da
produção não são rápidos.
A agricultura e a indústria de mineração, em desenvolvimento no período de amadurecimento do regime
neocolonial, tem um aspecto comum: a tendência ao monopólio ou ao oligopólio dão vida a emprsa
extraordinariamente poderosas.
Desde a Guerra do Pacífico, na qual capitalistas ingleses, franceses e norte-americanos tentaram pôr a
influência dos seus países de origem a serviço dos próprios interesses, até episódios de menor alcance
(como o zelo com o qual os agentes franceses no Rio da Prata estudam a demanda de fio de ferro e tentam
fazê-la aumentar) pode-se entrever as consequências provocadas nas áreas periféricas peã identificação

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entre os interesses políticos das potências imperialistas e aqueles econômicos do grupo cada vez mais
restrito em cujas mãos está a direção comercial e financeira.
A Cidade do México triplica a população entre 1895 e 1910 e alcança, incluindo os subúrbios, um
milhão e seiscentos mil habitantes; Havana, Lima, Santiago, Bogotá, Montevidéu desenvolvem-se de modo
igualmente rápido. Enquanto apenas em algumas regiões, entre as quais o litoral do Rio de Prata, existe
forte consumo rural de artigos de importação, a urbanização implica por toda parte num aumento do
consumo, que deve ser pago com as exportações. Ao contrário do que ocorrera durante quase todo o
século XIX, no século XX as trocas se processam no mais das vezes em sentido desfavorável aos produtos
primários; isso se liga, em parte, ao papel de máxima potência industrial exercido pelos Estados Unidos.
No México, o avanço da grande empresa agrícola de cultura nem sempre extensiva contribui para
provocar uma explosão revolucionária, de violência e duração sem paralelo na América Latina do século
XX. Com exceção do México, as tensões sociais alcançam maturidade suficiente para expressar-se
politicamente, sobretudo nas cidades em desenvolvimento e em algumas zonas rurais com caráter
relativamente moderno (no litoral cerealífero argentino e uruguaio) e, em outras, mais limitadas, de
economia mineira (quase exclusivamente no Chile).
Nesse período, a evolução política assume três aspectos distintos: é revolucionária no México; nos
países austrais (Chile, Argentina e Uruguai), é caracterizada pela democratização pacífica da vida política,
acompanhada pela vitória dos partidos populares; o resto da América latina continua a viver
substancialmente fechado no alternar-se de oligarquia e ditadura militar, sem que faltem situações
intermediárias.
Nas últimas décadas do século XVIII, o México apresenta o exemplo mais maduro de ditadura
progressista conhecido pela América Latina. Herdeiro pouco fiel da “reforma”, Porfírio Díaz é sobretudo o
restaurado da ordem, antes ameaçada no campo em consequência da herança bélica bastante pesada. É
também o “tirano honesto”, que põe sua força a serviço da causa do progresso.
Esses progressos são acompanhados por uma lenta afirmação do autoritarismo político. Ainda em 1880,
Díaz considera oportunidade manter-se fiel ao princípio revolucionário da não-reeleição e encontrara por
quatro anos um sucessor dócil à sua influência; mas, posteriormente, conservar-se-à sem interrupções na
presidência de 1884 a 1911.
Em 1910, o centenário do grito de Dolores oferece ao regime um pretexto para prestar uma última
homenagem a si mesmo; para a Europa e os Estados Unidos, contudo, Díaz é uma figura de governante
exemplar. O problema da sucessão já está aberto e, em 1908, Díaz parece acolhê-lo, quando – numa
célebre entrevista a um jornal dos EUA – declara que chegou justamente, para o México , o momento de ter
novamente uma oposição. Essa se forma então com grande rapidez e, no princípio, busca sobretudo o favor
do ditador que a invocou. Um proprietário do norte, Francisco Madero, está entre as pessoas a quem o
ambíguo apelo de Díaz retirou do silêncio. Madero, inicialmente contente por poder secundar na qualidade
de vice-presidente ao inderrubável Díaz, torna-se no fim seu rival. Preso e posteriormente condenado ao
exílio, Madero acrescenta aos seus slogans eleitorais de sufrágio efetivo e não-reeleição outras palavras-
de-ordem, que assinalam a passagem da tradição da ‘reforma” à revolução: dizem respeito ao ordenamento
sobre as terras, cuja conquista por parte dos grandes latifundiários nacionais e estrangeiros ora concluída a
ritmo febril na época de Díaz. Essas preliminares de uma reforma agrária estão inseridos no “plano de San
Luis Potosí”, ponto de partida da revolução de Madero.

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A derrocada do regime de Díaz foi quase imediata e abriu caminho para a presidência de Madero, mas
foi acompanhada por choques entre correntes revolucionárias diversas, às quais se haviam unido grande
parte dos partidários do velho regime. Para vencer os insurrectos de Zapata em Morelos, Madero se valeu
de um general contra o general Félix Díaz. A insurreição recomeçou no norte com Pancho Villa e seus
seguidores, que ainda não se haviam entregue ao banditismo pro e simples; e, no centro, com Zapata e
seus camponeses famintos por terra.
Um novo elemento foi introduzido no conflito pelo presidente Wilson, que lamentava o chefe de governo
que a diplomacia do seu país contribuíra a dar ao México. O governo de Washington recusou reconhecer o
governo de Huerta e, quando esse demonstrou não estar disposto a abandonar o terreno em favor de uma
solução constitucional, Wilson – sem maiores resultados – buscou apoios mais sólidos para a revolução
constitucional em progresso: finalmente, nos inícios de 1914. Decidiu-se pela ocupação militar de Veracruz.
Seguidores de Huerta e constiucionalistas expressaram indignação diante dessa medida; e, dado que
Huerta continuava no poder, Wilson buscou uma saída na mediação conjunta da Argentina, Brasil e Chile,
em decorrência da qual se reuniu a Conferência de Niagara Falls, de onde surgiu a proposta de constituir no
México um governo provisório. Entrementes, a ocupação de Veracruz retirava de Huerta os ingressos
aduaneiros; o presidente fugia em 14 de julho de 1914 e, a 20 de agosto, os contitucionalistas ocupavam a
capital, para logo depois dividirem-se.
As resistências foram vencidas entre 1916 e 1920; Obregón foi eleito presidente e o poder
revolucionário se consolidou. A experiência custara centenas de milhares de mortos e dez anos de colapso
para a economia mexicana. O resultado foi a hegemonia política dos generais nortistas, árbitros entre o
movimento operário (que cedo se tornou vítima da corrupção) e o movimento camponês (que, após te
alimentado a fúria revolucionária, demonstrava-se singularmente moderado).
Obrégon foi assassinado em 1928; Calle mantinha-se senhor da situação, representada pelo Partido
Nacional Revolucionário, no qual se havia organizado o movimento. Para não violar o princípio da não-
reeleição, Calles fez eleger presidentes da República personalidades não muito fortes e, enquanto pintores
e romancistas davam vida à epopeia revolucionária, um regime não muito diferente daquele de Porfírio Díaz
(com eleições manipuladas e assembleias parlamentares unânimes, além de generais enriquecidos e, como
novidade, sindicalistas milionários)parecia dar o México uma paz não muito diversa daquela porfiriana.
Vinte anos de revolução pareciam desembocar na restauração, cada vez mais dispostas a firmar-se;
tão-somente a luta religiosa, novamente aguçada, mantinha vivas as tensões do passado. A crise mundial e
suas consequências deram novo vigor à revolução mexicana.
Na parte meridional do Continente, a democratização da vida política ocorre com menos violência. No
Uruguai, foi consequência de uma complexa evolução interna do Partido Cobrado. O significado dos
partidos começara a se fazer menos claro depois de 1851, quando as forças políticas da oligarquia urbana
buscaram formar alianças que as libertassem da tutela de líderes de base rural. O retorno ao governo civil
pareceu assinalar a volta do predomínio da fração cobrada da oligarquia da capital, e as divisões partidárias
aparentavam retomar novamente um significado. O retorno ao poder de políticos de origem não militar
significava um difícil equilíbrio com o Partido Branco, representado pelos últimos grandes líderes rurais.
Diante do governo de Montevidéu, delineava-se no campo um poder rival.
Dessa difícil situação, o país saiu graças à renovação do Partido Colorado, operada por José Batlle y
Ordóñez. Batlle tornou-se presidente em 1903 e dirigiu a batalha decisiva contra a resistência dos brancos
na última e sangrenta guerra civil; ao mesmo tempo, conseguiu realizar uma reforma na legislação do porto.

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A legislação alfandegária, que já era sistematicamente protecionista, foi completada ainda por monopólios
para o comércio e os seguros; a partir de 1920, foi iniciada a construção de uma rede de estradas a fim de
liberar o país do monopólio dos transportes, mantido até então pelas ferrovias britânicas. Tudo isso foi
tarefa de governos cobrados, que encontraram – contra a influência britânica – o apoio dos EUA, em cujo
mercado financeiro o Uruguai dos colorados encontrava maiores facilidades para negociar empréstimos que
naquele de Londres.
Essas transformações deixavam intencionalmente de lado as zonas rurais de criação de gado e de
grandes propriedades, que produziam os excedentes exportáveis e tornavam assim possível a experiência
política cobrada enquanto isso, a democracia política punha raízes no resto do Uruguai e se proclamava a
necessidade de fazê-la progredir através da democracia social.
As bases políticas do Uruguai de Batlle, que em quinze anos passara da guerrilha ao welfare state , não
eram sólidas. O partido de Batlle, que queria ser um partido moderno de massas e de opinião, era forte por
causa da figura do seu fundador. A morte de Batlle enfraqueceu gravemente o regime, o qual, mesmo em
seus períodos mais brilhantes, era vivido através de crises quase contínuas. A expansão da primeira
década do século e a longa primavera da guerra e do pós-guerra, que o Uruguai soube aproveitar melhor
que a vizinha Argentina, muito ligada à hegemonia britânica, foram o clima econômico em que prosperou o
Uruguai de Batlle.
O Uruguai deu o mais feliz exemplo de democracia política e modernização social que tenha ocorrido na
América Latina durante esse período histórico. Em confronto com isso, as experiências argentina e chilena
foram bem menos exitosas.
Na Argentina, o percurso para a democratização foi muito mais rico de incidentes. Em 1880, o general
Roca conseguiu instaurar um regime político que servia, ao mesmo tempo, aos interesses dos grandes
proprietários do litoral, principais beneficiários da modernização econômica, e aos interesses dos senhores
estrangeiros do comércio e dos transportes.
Na década iniciada em 1880, a prosperidade argentina aumentou rapidamente: naqueles dez anos, o
país mudou mais que a em toda a sua história anterior, isso foi possível graças ao vertiginoso aumento da
imigração e aos investimentos estrangeiros; os imigrantes eram provenientes sobretudo da Itália, enquanto
os capitais eram britânicos. Na bolsa de Londres, o Estado argentino devia enfrentar a concorrência das
províncias e, bem cedo, também das comunas empenhadas numa custosa corrida para o progresso
urbanístico. O regime de Roca, no início, tentou pôr um limite a essa conquista financeira do país (por
exemplo, cuidou de reservar ao Estado as construções ferroviárias). O sucessor de Roca, seu cunhado
Juarez Celman, continuou por esse caminho de irrefletida prosperidade, única garantia de estabilidade
política; mas, para isso, teve de sacrificar a estabilidade monetária, permitindo a inflação do papel-moeda
através da multiplicação dos bancos de emissão privados.
A substituição da luta política pela administração sobre a base de princípios técnicos, anunciada em
1888 pelo presidente Juárez Celman, demonstrou-se uma inovação efêmera. Os desesperados esforços
para retardar a crise não impediram que essa explodisse em 1890; e, ao mesmo tempo, verificou-se um
despertar político de amplitude inesperada. Fracassada uma tentativa revolucionária da qual participaram
civis e militares, Juárez foi obrigado a se demitir; o vice-presidente Pelegrini assumiu seu lugar; esse gozava
da confiança dos banqueiros europeus e do apoio do ex-presidente Roca.
Se o programa dos radicais nada continha de revolucionário, o caminho revolucionário continuava
porém a ser o único que lhes restava aberto; o regime conservador, após se ter desembaraçado em 1892,

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graças à habilidade de Roca, do “candidato nacional” à presidência, que deveria ser Mitre, demonstrou-se
pouco inclinado a arriscar sua sobrevivência em pleitos eleitorais honestos. Os radicais fizeram duas
tentativas fracassadas de revolução, em 1893 e 1904, mas os insucessos não lhes retiraram a força; o
regime conservador sentia-se continuamente ameaçado pelos radicais e, a partir de 1904, começava a se
desagregar por causa da perda de influência do general Roca sobre aquela aliança de grupos provinciais
heterogêneos, que constituíam o conservadorismo argentino. Em 1912, o novo presidente conservador,
Roque Sáenz Peña, pensou que houvesse chegado a hora de traduzir em realidade o sufrágio universal,
que até então era aplicado na Argentina de modo apenas nominal. Abria-se assim aos radicais o caminho
do poder e, em 1916, o dirigente de um quarto de século de conspirações radicais, Hipólito Irigoyen,
chegava à presidência da República com uma pequena maioria relativa.
Esse triunfo do radicalismo se baseava nas classes médias urbanas do litoral e nos amplos estratos
populares das cidades, bem como em quase toda a classe média das zonas cerealícolas e numa parte
considerável de pequenos criadores de gado; apoiava-se, finalmente, em grupos marginais das classes
elevadas do interior. Dada essa base social, compreende-se a impossibilidade em que se viram os radicais
de realizar uma política inovadora coerente. No âmbito econômico, o regime radical inovou bem pouco; no
social, tentou superar o antagonismo, legado como defensor da ordem social constantemente ameaçada e
um movimento sindical radicado nas cidades (e frequentemente entre os imigrantes), que, embora fosse
moderado, era considerado como extremamente perigoso.
O radicalismo, ao mesmo tempo em que encorajava as tendências renovadoras moderadas, das quais
se esperava uma diminuição da influência dos grupos conservadores sobre a vida nacional, lutava
energicamente e muitas vezes com brutalidade contra qualquer atitude na qual se pudesse entrever uma
ameaça dieta ou indireta à ordem social. A coerência política, decerto, não podia ser buscada nas posições
doutrinárias dos dirigentes radicais, que recusavam admitir até mesmo a existência de problemas sociais;
para Irigoyen, a política se esgotava em si mesma.
A Constituição não permitia que Irigoyen fosse reeleito depois de 1922; ele escolheu para suceder-lhe
Marcelo Torcuato de Alvear, um aristocrata que conhecera na Paris da belle époque, considerado por
Irigoyen como demasiadamente frívolo e insignificante para ser capaz de disputar-lhe a direção efetiva do
partido e do governo. O novo presidente não conseguiu afastar a influência de Irigoyen no partido; seu estilo
de governo, neoconservador, afastou-o de seu predecessor. Em 1924, uma cisão dava lugar a uma prova
de força que desembocou na eleição presidencial de 1928. Irigoyen conseguiu se eleger com grande
maioria, contra a fração radical “antipersonalista”, apoiada pelo presidente Alvear e por grupos
conservadores.
Era uma situação perigosa, inclusive naquele 1928 que assinalou o ponto mais alto da prosperidade
argentina, com exportações de duzentos milhões de libras esterlinas ouro (o duplo de 1913). No ano
seguinte, a crise mundial começaria a devastar as estruturas de uma Argentina muito aberta aos ventos do
mundo.
Surgido em um país de difícil equilíbrio entre o velho e o novo, o movimento radical revelou-se muito
menos inovador que o “batllismo” no Uruguai; as grandes linhas políticas traçadas pelos conservadores
foram respeitadas em maior medida. Mas na Argentina, como no Uruguai, o movimento popular demonstra
ser excessivamente ligado a um chefe (a decadência de Irigoyen revelou-se de imediato muito mais
catastrófica que a morte de Batlle) e à prosperidade econômica, indispensável para desenvolver
pacificamente uma moderada redistribuição da renda.

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No Chile, nem mesmo no período de prosperidade econômica verificou-se uma ampliação da base
política sem abalos. A vitória do Partido Liberal, em 1871, fora reflexo no equilíbrio político de uma nova e
complexa situação, na qual se encontravam os grupos dirigentes chilenos graças ao desenvolvimento
mineiro e comercial. A guerra do pacífico viria a confirmar e acentuar ainda mais as transformações que
haviam contribuído para o triunfo dos liberais. Esse sucesso contribuíra para reforçar ainda as o regime
liberal, sob cuja bandeira o governo de Santa Maria, entre 1881 e 1886, obteve as máximas vantagens
territoriais para o Chile em detrimento do Peru e da Bolívia, além de iniciar uma política de reforma das
estruturas estatais e de obras públicas. Os liberais se cindiram quando se colocou o problema da sucessão
de Santa Maria: os três partidos (liberal, radical e nacional) que estavam à esquerda do alinhamento
conservador aceitaram a candidatura de Balmaceda, ministro e favorito de Santa Maria; mas, no Interior, as
divergências se multiplicaram. O novo presidente prosseguiu a obra renovadora do seu predecessor e, para
isso, teve de recorrer com frequência cada vez maior ao crédito estrangeiro. Em 1890, chegava ao Chile a
crise econômica e, com ela, a reação contra a ampliação dos poderes presidenciais, que havia sido possível
graças à prosperidade do decênio precedente. No parlamento, a maioria liberal se cindiu acerca do
problema da sucessão presidencial.
O parlamentarismo – que provocou a progressiva fragmentação dos partidos chilenos – foi
acompanhado por um imobilismo político, interrompido apenas pelas agitações sociais, violentamente
reprimidas em Santiago e em Valparaíso, e ainda mais duramente nas zonas mineiras do norte. As
consequências do sufrágio universal eram limitadas, no início, não pela ação do governo, mas por aquela
de uma corrupção eleitoral que necessitava mobilizar somas muito grandes, que tornava impossível fazer
política sem dispor de muito dinheiro. Como na Inglaterra de antes de 1832, os partidos buscavam
sobretudo candidatos capazes de financiar a própria vitória...
Duas coalizões instáveis dominavam a fútil política chilena: a União Liberal e a Aliança Liberal-
Conservadora. À Aliança Conservadora, opunha-se a candidatura do liberal Arturo Alessandri. A vitória
eleitoral deu-se por estreita margem, mas teve consequências decisivas. O movimento operário se
desenvolveu, enquanto um grupo de origem sindicalista organizava o Partido Comunista; a massa operária,
em seu conjunto, apoiava o novo presidente. Alessandri encontrou-se diante da oposição parlamentar.
A maioria favorável não demonstrou, porém, ser mais eficiente que aquela hostil; diante da crise
administrativa, Alessandri teve de partir para o exílio em 8 de setembro, cedendo o poder a uma junta
militar. A nova Constituição (1925) sancionava a separação entre a Igreja e o Estado estabelecia um regime
presidencialista e incluía até mesmo princípios que foram considerados socialistas: função social da
propriedade, proteção do trabalhador e saúde pública. Em seguida aos episódios de janeiro, graças aos
quais Alessandri voltara à Presidência, o exército afirmou-se como poder superior no Estado e impôs um
ritmo mais célere ao processo de renovação. O líder da corrente militar vitoriosa em janeiro era o coronel
Ibañez, candidato à sucessão presidencial e ministro da guerra.
O governo de Ibañez desenvolveu uma atividade febril: construção de obras públicas (estradas, portos,
edifícios escolares), reforma da escola e reforma sanitária; paulatinamente, a presidência de Ibáñez
transformou-se numa ditadura, embora conservando o apoio do atemorizado parlamento. Essa ditadura
progressista, não necessariamente hostil os setores populares, era apoiada pela prosperidade econômica
dos anos 1925-29, durante os quais recorreu sistematicamente ao crédito, sobretudo nos Estados Unidos, a
fim de financiar seus ambiciosos programas. A depressão econômica transformou-a num regime mais rígido

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e opressivo, ao mesmo tempo em que a privava do apoio popular. Em 1931, após alguns dias de agitação
na capital, o presidente Ibañez atravessou a fronteira rumo ao exílio.
O exército colocara-se entre os grupos minoritários tradicionalmente no poder e aqueles que visavam à
modernização, como um árbitro mais capaz que a classe política tradicional. As soluções apresentadas pelo
exército, porém, estavam tão ligadas à prosperidade econômica quanto aquelas dos partidos de massa na
Argentina e no Uruguai. O militarismo progressista chileno, vítima do fim dos bons anos, sofreu as
consequências da crise, do mesmo modo que os partidos citados.
No resto da América espanhola, as tendências à ampliação da participação na vida política se fizeram
sentir de modo mais episódico e com consequências mais limitadas. Nos países andinos da margem do
Pacífico, Peru e Equador, encontramos desenvolvimentos que sofrem o influxo das divisões herdadas, mas
não superadas, entre os setores modernizados e as massas indígenas dos campos insuficientemente
inseridas no quadro estatal.
No resto da América Latina, continuavam simplesmente as oscilações entre os regimes da oligarquia e
os governos militares. Costa Rica, porém, era uma exceção; aqui, a continuidade constitucional só foi
rompida na segunda década deste século, por uma tentativa ditatorial que se concluiu com a dissolução do
exército; o governo continuou a ser mantido pela classe média rural da zona do centro, ligada ao cultivo do
café. Uma outra exceção de grande importância foi Cuba, onde o atraso com que foi conquistada a
independência dera origem a situações que, excepcionais no início, aproximaram-se cada vez mais, com o
passar dos tempos, ao panorama do restante da América Latina.
Os Estados Unidos – libertadores e conquistadores da ilha – continuavam a manter sua tutela e faziam
tudo para evitar a vitória dos liberais, dos quais temiam tanto as virtudes, quanto os defeitos. A Constituição
de 1900 fora obra de uma Assembleia na qual os liberais tinham a maioria e, ao contrário dos desejos da
potência protetora, sancionara o sufrágio universal. No final, os EUA conseguiram obter uma coisa bem
mais substancial: o primeiro presidente cubano, o liberal moderado Tomás Estrada Palma, foi eleito sob os
auspícios norte-americanos por uma coalizão de liberais e conservadores e pende cada vez mais para
esses últimos, enquanto os liberais apelam para a proteção dos EUA.
A interdependência entre as insuficiências da vida política cubana e a sujeição do país aos EUA era
sentida por todos; as consequências negativas da dependência total da economia cubana com relação à
dos EUA eram também claras para todas as pessoas.
As consequências políticas da hegemonia norte-americana se faziam sentir num âmbito mais vasto.
Antes de mais nada em Porto Rico, transformado em possessão dos EUA com a paz de Paris; abalado
economicamente em decorrência da submissão à nova metrópole, que impusera a eliminação das
plantações de café e sua substituição pela cana-de-açúcar; alterado em sua estrutura demográfica pelo
aumento da população, consequência (embora parcial) das enérgicas medidas sanitárias tomadas pela
administração norte-americana, que impusera também uma política escolar e cultural voltada para o
combate ao analfabetismo, criando um corpo docente que usava o inglês em vez de espanhol.
A tutela direta dos EUA não diz respeito apenas a Cuba e a Porto Rico; também no reto do Caribe e da
América Central continental se fazem sentir as consequências políticas da hegemonia econômica e
estratégico-militar norte-americana. Nicarágua e São Domingos, em particular, sentem os efeitos dessa
hegemonia.
No resto da América Central, a presença norte-americana não se fez sentir do mesmo modo, mas deu
uma contribuição à chamada estabilidade política, isto é, em palavras mais pobres, à estabilidade de

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regimes autoritários, que era favorecida, por outro lado, pelos desenvolvimentos da economia e da
sociedade dos países da América Central.
Os países da América Central e a Venezuela, governados por ditaduras militares, mostram
indubitavelmente grandes diferenças entre si. Existe, porém, um elemento comum: a frequente repetição de
crises do setor produtivo, o atraso na afirmação de produtos que se tornem predominantes, a conquista de
terras férteis por parte de investidores estrangeiros; todos esses são fenômenos que concorrem para o
enfraquecimento dos grupos oligárquicos tradicionais. Em Cuba e na Venezuela, esses grupos perderam
sua posição dominante já em 1930; na República Dominicana e na América Central continental, eles
sobrevivem, apesar de terem perdido grande parte dos seus poderes. Em outras regiões da América Latina,
defendem-se melhor; e, quando isso ocorre, conserva-se o modelo de república formalmente democrática e
efetivamente aristocrática.
É, antes de mais nada, o caso do Brasil. A república tinha significado um aumento do poder do exército,
protagonista da revolução vitoriosa, e o seu peso se fez sentir durante toda a história do Brasil republicano.
Mas, até 1930, essa história se desenvolveu no quadro de uma política dominada por grupos influentes nos
vários Estados, que formavam o Partido Republicano, o único com peso efetivo na vida política.
Mesmo em seus melhores momentos, o Brasil republicano não conhecera a relativa solidez institucional
da República Argentina. Um federalismo mais enraizado condenava o poder central a uma crise crônica;
além disso, as consequências negativas da dependência a um único gênero de exportação, o café, fizeram-
se sentir muito antes de 1930. A democratização era uma possibilidade efetiva, no Brasil, apenas até um
certo ponto: a população rural constituía a grande maioria e tão somente através de radicais modificações
sociais é que seria possível libertá-la da tutela política dos grandes proprietários de terras. O sufrágio
universal, por conseguinte, confirmaria a hegemonia das oligarquias rurais.
Na Colômbia, a república oligárquica conservou todas as suas características originais; nesse período,
colocou sólidas raízes também em Estados onde tivera um nascimento difícil: na Bolívia e no Paraguai. Na
Colômbia, a mudança de atitude de Núñez dera um chefe e um programa ao Partido Conservador e
também lhe restituirá o poder político, posteriormente conservado até 1930. Entre 1899 e 1903, o poder foi
disputado numa feroz guerra civil de mil dias, que causou milhares de vítimas e devastou a economia e as
finanças da Colômbia. No Paraguai, a consolidação de uma forte classe de grandes proprietários (com
raízes no período colonial e pós-colonial e pós-colonial, que os historiadores locais preferem
frequentemente ignorar) ocorre particularmente após a derrota de 1870, a partir de quando o Paraguai
orienta sua economia para o mercado exterior: produção de peles para a Europa, de tabaco e mate para o
mercado vizinho do Rio da Prata. Na Bolívia, o sistema de partidos é um fenômeno recente e se relaciona
com o lento progresso das oligarquias urbanas, intensificando após o desenvolvimento das minas de
estanho. Os partidos, a não ser em casos excepcionais, tiveram uma função subordinada; na medida em
que foram capazes de compreender melhor do que os continuadores do estilo de governo militarista as
exigências dos novos grupos dominantes, puderam contar com o favor dos poderosos.
Assim como a Venezuela constituía um ideal-typus de ditadura militar, a Bolívia é um exemplo d
república oligárquica no período de maturidade do sistema neocolonial. Esses exemplos são menos
frequentes o que casos mais complicados e menos facilmente redutíveis a um esquema. Tem em comum,
apesar dos contrastes e das diferenças e até mesmo nos numerosos casos intermediários, a marca de
transformações que, nesse período atingem a totalidade da América Latina: ditaduras e oligarquias são, em
medida cada vez maior, emanações das forças que governam o Continente e que o Governam de fora.

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Capítulo VI
Crise do Regime Neocolonial

A crise de 1929 não apenas colocou à economia latino-americana tarefas de dimensões


incomparavelmente mais amplas que as anteriores, mas forneceu também o espetáculo de colapsos
econômicos, catástrofes sociais e crises políticas, através dos quais, por uma dezena de anos, pareceu
delinear-se – nas grandes potências dominantes – o fim de um mundo. A catástrofe na conjuntura
econômica – atenuada, para a América Latina, pela Segunda Guerra Mundial e pelas suas consequências a
curto prazo - deixou como herança permanente, porém, múltiplas dificuldades estruturais de efeitos menos
imediatos.
As relações entre o centro industrial da economia e a periferia orientada para a produção primária se
modificaram no curso de complicados episódios, o mais impressionante dos quais foi precisamente a crise
de 1929. No século XX, a situação se altera rapidamente: só depois da crise e, mais ainda, depois da
Segunda Guerra Mundial, é que será possível medir as consequências dessas alterações nos países
periféricos. O renascimento do capitalismo nas grandes potências, depois da crise e da Segunda Guerra
Mundial, ocorre graças à expansão do mercado interno de consumo.
Segundo uma definição justamente célebre, as áreas periféricas se transformam nos slum do nosso
planeta, comparáveis àquelas áreas urbanas onde, uma vez iniciada, a degradação se torna irresistível.
A crise e a guerra trazem mudanças muito profundas, diante das quais os países da América Latina
tentarão um difícil esforço de adaptação. Isso se realiza em muitas direções: sob o estímulo de abalos,
transformam-se simultaneamente a economia nacional, o equilíbrio social e o equilíbrio político.
A ascensão do fascismo no mundo (um de cujos episódios, o da guerra na Espanha, teria grandes
repercussões na América espanhola), com a alternativa oferecida pela esquerda revolucionária, caracteriza
o primeiro dos esquemas políticos-ideológicos dentro de cujos limites uma América Latina, sensível ao ritmo
dos eventos mundiais, deve buscar o seu novo caminho. A guerra forma um complicado intermezzo, até o
momento em que a Guerra Fria virá novamente delimitar os campos, de modo cada vez mais urgente , após
ter sido o sistema interamericano – sobretudo por meio da ação direta dos Estados Unidos – transformado
num instrumento dessa Guerra Fria.

1. A Busca de um Novo Equilíbrio

A crise tem consequências diversas no setor primário e naquele secundário: queda de preços no
primeiro, queda de produção no segundo. Essa contraposição excessivamente esquemática deve
naturalmente ser concretizada: muitos setores da produção primária, especialmente a indústria de
mineração, cedo recorrem a uma diminuição da produção; outros sentem com menor gravidade a queda
dos preços.
A deterioração se faz acompanhar por um colapso do mercado financeiro mundial, do qual inutilmente
os países da América Latina esperam novos créditos. Mas, aqui, a amplitude da catástrofe provoca
situações novas, , em parte menos graves que aquelas que decorrem de crises menos fortes.
Quais são as consequências? No comércio, verifica-se uma diminuição imprevista e brusca do poder de
compra que se origina das exportações; a substituição de importações, já antes estimulada por algumas

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crises menores, tem agora novas possibilidades. Por outro lado, a produção primária busca – decerto, com
muita lentidão – opor-se à queda de preços emulando com a produção industrial e, ao mesmo tempo,
reduzindo o seu volume. Aquilo que no período precedente constituía um exceção, torna-se agora coisa
normal: a limitação da produção, a compra oficial de colheitas para estocagem (ou mesmo para destruição)
são praticadas em Cuba, no Brasil, na Argentina etc.
A intervenção do Estado na economia produtiva é um empreendimento dispendioso; o setor primário
passa a ser subvencionado sistematicamente, no âmbito de uma política comparável àquela do New Deal
norte americano, com a qual tem analogias do ponto de vista estritamente econômico, mas não no campo
social, já que na América Latina são os grandes proprietários que se aproveitam das subvenções estatais.
Todavia, é necessário pagar tais subvenções. De que modo? Apresenta-se aqui um outro elemento trazido
pela crise: quase em toda parte ela impõe uma nova política monetária e cambial.
A crise, já por si, era uma causa de diminuição no ritmo do processo orientado para a monocultura de
exportação, já que não dizia respeito apenas aos preços, mas também ao volume da demanda; por outro
lado, começa-se a enxergar na monocultura uma das principais responsáveis ela dificuldade em que se
debate a América Latina. A diversificação torna-se uma palavra-de-ordem acolhida por todos; e se começa
a fazer tentativas – com resultados diversos e geralmente modestos – para estimulá-la.
Todas essas inovações implicavam a adoção de um sistema novo nas relações entre Estado e
economia; o prestígio do liberalismo, atingido pelo descrédito na Europa, bem como por sua incapacidade
de justificar uma política conforme os interesses dos grupos dirigentes, entra em rápido colapso, fato
proclamado conjuntamente por conservadores e inovadores. A adoção de princípios dirigistas contribuiu
indiretamente para a crise da tradição política liberal, mas a nova orientação é limitada pelos modestos
recursos do Estado, diminuídos ainda mais em consequência da crise. O intervencionismo, que geralmente
tutela a difícil sobrevivência dos setores produtivos pré-existentes à crise que haviam conseguido superar
os seus primeiros golpes, carece dos meios de guiar, mediante uma ação que não deveria excluir os
investimentos públicos, mudanças capazes de pronunciar, ainda que entre os escolhos da crise, uma
renovação geral.
O processo começa pela indústria leve; e, quanto a isso, não faz mais do que repetir a linha seguida nos
países mais desenvolvidos. Mas, no futuro, os fatos irão demonstrar as dificuldades encontradas pela
América Latina para passar à etapa subsequente. Os motivos de tais dificuldades são complexos: nessa
nova etapa, a América Latina continua a utilizar a infra-estrutura herdada do passado e, por conseguinte,
não existem os estímulos à expansão industrial que, em outros países desenvolvidos, foram fornecidos pelo
crescimento das ferrovias.
Mais ainda que a crise, a guerra de 1939-45 estimula o processo de industrialização, de alcance limitado
mas de amplitude ante desconhecida na América Latina. As repercussões da guerra são complexas, na
medida em que incidem de modo variável sobre a demanda dos vários produtos primários que a América
Latina exporta. A tendência geral, acentuada durante os primeiros anos do pós-guerra, orienta-se porém
para o aumento de demanda e dos preços. Esses aumentos não significam uma imediata expansão das
possibilidades de importação: entre as ações beligerantes, os países do Eixo estão isolados do comércio
mundial, enquanto as Nações Unidas diminuem de modo drástico a exportação de produtos industriais. Em
troca, os países da América Latina acumulam durante a guerra reservas monetárias – importantes mesmo –
nos países desenvolvidos.

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Isso significa que os setores primários produzem em ritmo acelerado e, quanto a isso, a guerra traz
correções aos aspectos negativos da crise. Significa, além do mais, que o setor industrial desfruta – em
maior medida que no período anterior – das vantagens constituídas pelo desaparecimento da concorrência
dos países mais desenvolvidos. Se a guerra promove a industrialização, acentua porém os aspectos
negativos e as insuficiências de uma infra-estrutura cada vez menos adequada, à medida que avança o
próprio processo de industrialização.
A América Latina chega assim a 1945 com uma estrutura produtiva profundamente transformada nos
países mais densamente povoados, mas continua a ser desequilibrada.
A concentração urbana não é apenas uma consequência do processo de industrialização; também os
setores primários sofreram as repercussões das crises. Essas aparecem, de imediato, numa tão grande
diminuição dos preços que torna impossível superar o problema mediante o aumento ou a racionalização da
produção; ao contrário, a única medida considerada eficaz é a diminuição dessa produção. Nessa situação,
a modernização da agricultura é irrealizável. A guerra torna-a novamente impossível por outros motivos, os
mesmos que impedem um progresso técnico da indústria; as bases econômicas e sociais do setor primário
são assim muito pouco atingidas pelas turbulentas variações da conjuntura.
Em meio a tais transformações, o futuro começa a abrir perspectivas apocalípticas. A explosão
demográfica domina sobre tudo o mais: como ocorre em outras zonas marginais, também na América Latina
o progresso sanitário, ainda que limitado, rompeu um equilíbrio secular; a natalidade continua, geralmente,
em nível fisiológico, ao passo que a mortalidade diminui rapidamente.
O caráter agudo desses problemas e, em particular, o seu caráter permanente, serão descobertos mais
tarde; nos anos de crise, naqueles de prosperidade devida à guerra, ainda se acredita possível encontrar
soluções no âmbito da reconstrução econômica do pós-guerra, para a qual a América Latina se prepara
com reservas em ouro e em divisas incomparavelmente mais importantes do que as possuíra em qualquer
época do passado; e, além disso, tem-se esperança de que as dificuldades da Europa durem o suficiente
para assegurar uma longa prosperidade às exportações primárias. O pós-guerra, prolongado ainda pelo
boom da guerra da Coréia, será ao contrário mais breve do que havia sido esperado: e nele não serão
resolvidas – com exceções que continuam a ser marginais – as descompensações estruturais acumuladas
na etapa aberta pela crise.
A experiência em processo de esgotamento não foi assinalada apenas por uma conjuntura econômica
bastante mutável: as relações entre a América Latina e o resto do mundo foram atingidas, de modo ainda
mais complexo, pelas consequências político- sociais da crise que desemboca na Segunda Guerra Mundial.
A crise atinge, antes de mas nada, as relações entre a América Latina e os países metropolitanas; significa
um novo passo na decadência das relações com a Europa.
Salvo nas regiões onde os EUA tem desde antes da crise uma posição dominante no comércio exterior
(em particular nas indústrias de mineração e em algumas culturas agrícolas tropicais do caribe espanhol e
da América Central), há uma tendência no sentido do comércio triangular, que se torna CAD vez mais difícil
por causa das restrições quantitativas aplicadas por grande parte da Europa, mas que – apesar das
dificuldades – continua a expandir-se.
Nesse período, os EUA aumentam a sua influência política com um ritmo mais rápido que o do processo
de fortalecimento da sua hegemonia econômica, e reveem sua política para com a América Latina. O
republicano Hoover realiza os primeiros passos, sendo seguido pelo seu sucessor democrata Roosevelt,

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cuja política de boa vizinhança - no quadro da renovação geral da vida política introduzida pelo New Deal –
parece mais nova do que na verdade é.
A política de boa vizinhança implica a renúncia à intervenção armada e um apoio crescente às
organizações pan-americanas. Em sua forma primitiva, essa política é definida quando os EUA conseguem
organizar, nas regiões que ocupavam militarmente num passado recente, forças armadas locais que lhe são
fiéis. Além da pressão direta, os EUA se atribuem ações mais discretas, mas nem sempre de resultados
modestos. De qualquer modo, é certo que a intervenção armada parece eliminada do arsenal político do
país que exerce a hegemonia e, até mesmo no duro conflito com o México a propósito da nacionalização do
petróleo, os EUA demonstraram, sob esse aspecto, uma prudência desconhecida no passado.
Graças a essa cautela, os EUA podem apoiar com maior autoridade o fortalecimento do sistema pan-
americano, pelo qual demonstram um crescente interesse. É um interesse partilhado, de modo cada vez
mais amplo, pelos países da América Latina. Se torna evidente a deterioração do sistema internacional
fundado sobre a Sociedade das Nações, na qual muitos – na América Latina – haviam enxergado uma
válida alternativa a um pan-americanismo condenado a refletir a hegemonia dos EUA.
São sensíveis a essa atração mesmo alguns políticos que simpatizam com os pressupostos políticos do
processo contra cujas consequências o pan-americanismo oferece proteção. Com efeito, haja ou não um
equívoco de origem, o fascismo – primeiro em sua forma italiana, depois no modelo alemão – encontrou
simpatias muito amplas entre os ambientes governamentais da América espanhola, tanto entre os ditadores
militares (que viam no fascismo uma inesperada justificação do próprio autoritarismo) quanto entre alguns
grupos oligárquicos tradicionais (que começavam a temer as consequências da democratização política.
Os obstáculos ao pan-americanismo continuaram a provir sobretudo dos Estados mais ligados a países
europeus, e, desse ponto de vista, a Argentina manteve as posições assumidas desde 1889. Mas a
debilidade crescente da sua resistência refletia muito bem a inexorável decadência da influência britânica,
não mais em condições de rivalizar abertamente com aquela dos Estados Unidos.
Em 1936, reunia-se em Buenos Aires uma conferência pan-americana para a manutenção da paz. Ela
reafirmou o princípio da não-intervenção, já sancionado no pacto de Montevidéu de 1933; o projeto dos
EUA, que induzira o presidente Roosevelt a visitar Buenos Aires. Não pode ser acolhido nesse momento; o
que foi tão-somente, em parte, na conferência de Lima, realizada em 1938; naquela oportunidade, a
Argentina opôs-se tenazmente – e com êxito – à proposta dos Estados Unidos de dar vida a um Comitê
Consultivo Interamericano Permanente.
Chegava-se assim à Segunda Guerra Mundial; a Conferência pan-americana reunida no Panamá
delimitava então uma vasta zona oceânica em torno dos EUA e da América Latina, no interior da qual se
solicitava aos países beligerantes que se abstivessem de operações de guerra. O valor jurídico dessa
declaração era mais que duvidoso. Mas a conferência do Panamá teve consequências mais importantes:
pela primeira vez, o movimento pan-americanismo tomava unanimemente uma posição política de um
evento internacional, e parecia transformar-se numa liga de Estados neutros, do tipo daquela que a Europa
conhecera no passado.
Essa transformação não se destinava a amadurecer: a neutralidade não era a política definitiva dos EUA
diante do segundo conflito mundial. Seus dirigentes deviam resolver um problema mais complexo: imprimir
ao movimento pan-americano um impulso gradual no sentido da intervenção, de acordo com o que
acontecia no seu próprio país entre 1940 e 1941. A conferência de Havana, reunida em final de 1940,
estava dominada pela sombra das vitórias alemãs na Europa: diante da eventualidade de uma vitória do

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Eixo, da enérgica resistência da Grã-Bretanha e do apoio crescente que os EUA ofereciam a esse país, a
maior parte dos Estados latino-americanos considerou necessário manter uma grande prudência.
Em janeiro de 1942, no Rio de Janeiro, reuniu-se um nova conferência pan-americana e tão-somente a
resistência do Chile e da Argentina impediu-a de adotar medidas mais drásticas do que a recomendação no
sentido de romper relações com as potências do Eixo; o Chile esperou um ano e a Argentina, dois, antes de
aceitarem tal recomendação.
Em toca, a política norte-americana encontrava um apoio entusiasta em outros países da América
Latina; a declaração de guerra dos países da América Central e do caribe (novembro de 1941) não
surpreendeu, mas a do México (maio d 1942) e do Brasil (agosto de 1942) eram bem mais significativos. O
México se aproveitava da situação bélica para aproximar-se de seu poderoso vizinho; o Brasil se valia da
situação para aumentar sua importância militar e política na América Latina.
A guerra favoreceu a volta dos EUA a uma política mais aberta de intervenção na América Latina,
especialmente contra a Argentina, governada desde 1943 por militares, sobre a qual os norte-americanos
exerceram pressões cada vez mais violentas; nos inícios de 1944, baseando-se sobre a prova de que
funcionários Consulares da Argentina eram agentes secretos da Alemanha, os EUA a ameaçaram de
intervenção naval e conseguiram impor-lhe o rompimento de relações com a Alemanha e o Japão. O
exército argentino respondeu a essa demonstração de debilidade do presidente Ramirez destituindo-o. Os
Estados Unidos organizaram uma quarentena diplomática contra o governo do seu sucessor, o general
Farrell.
A conferência do México, em fevereiro de 1945, não apenas resolveu o problema argentino, mas
transformou profundamente todo o sistema pan-americano, criando um organismo regional que, entre
outras funções, tinha aquela de dirigir a resistência a agressões internacionais no interior da área
americana.
Em 1947, a conferência do Rio de Janeiro elaborava o mecanismo destinado a realizar o que havia sido
previsto no pacto de Chapultepec. O sistema pan-americano, reforçado por esse meio, tinha desde então –
pelo menos para os EUA – uma tarefa precisa: fazer sentir o próprio peso na Guerra. Os EUA haviam
sofrido uma derrota política, já que não tinham conseguido impedir que o coronel Perón – herdeiro político
do governo militar argentino – fosse eleito presidente em 1946; estavam dispostos agora à convivência com
aquele estadista autoritário e pretendiam comprometê-lo na nova cruzada antibolchevista. Tiveram, porém,
um sucesso limitado: A Argentina peronista, como antes a conservadora e há mais tempo ainda a radical,
continuava a chefiar a resistência contra o avanço de um pan-americanismo no qual enxergava, com
clareza sempre maior, o instrumento da nova potência hegemônica.
Em 1948, a conferência de Bogotá criava a Organização dos Estados Americanos, organismo regional
de estrutura complexa; a organização pan-americana transformava-se assim num pacto regional dirigido por
organismos permanentes e fortemente empenhado nos conflitos internacionais. Do ponto de vista
institucional, os Estados Unidos haviam conseguido formar uma organização pronta a enfrentar as
consequências do ingresso da área americana na Guerra Fria. Naquele momento, a possibilidade de
experiências socialistas em terras americanas parecia ainda remota.
O dilema político fundamental parecia ainda ser aquele entre democracia e ditadura. O terreno ganho
pelas ditaduras após 1948 constituía, para muitos, o reflexo da política dos Estados Unidos em face da
América Latina; essa política, acentuada mais com a volta ao poder do Partido Republicano em 1952, era
mascarada – com dificuldade cada vez maior – pela cruzada anticomunista.

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Decerto, não se podia negar a existência desse dilema. Havia países que, depois de 1930, 1940 e 1945,
continuavam fechados dentro dos limites muito tradicionais de um estilo político já definido nos períodos
anteriores; em alguns países menores – que, por outro lado, conservavam as características econômicas
das etapas anteriores; em alguns países menores – que, por outro lado, conservavam as características
econômicas das etapas anteriores – a ditadura continuava a seguir as linhas do passado (como na
Guatemala), ou se afirmava com modalidades novas e fisionomia mais nítida que em qualquer outro
período, mesmo dos mais remotos.
Em ambos os casos, os regimes ditatoriais foram uma consequência da ocupação militar dos EUA; os
comandantes da guarda nacional, devedores da própria posição ao ocupante, tem à sua disposição tropas
bem armadas e bem pagas, fiéis à sua pessoa; por conseguinte, eles podem contar com um aparato militar
mais independente das bases locais do poder e, desse modo, menos influenciados que o exército
tradicional pelas peculiares situações locais. A ditadura chega a limites extremos: seu domínio é total, já que
sua força é em grande parte externa ao país.
Além dessa ditaduras de novo tipo, outras mais tradicionais sobrevivem a todas as mudanças: é o caso
da Guatemala e de outros pequenos países exportadores, onde a ditadura militar – mesmo conservando os
seus traços essenciais – havia adquirido maior solidez que no passado; é o que ocorre em El Salvador e
Honduras. Em ambos os casos, a ditadura é necessária sobretudo para a defesa contra tentativas reais de
instaurar regimes análogos; é, ademais, o instrumento político mais adequado à utilização do poder com
finalidades de enriquecimento.
Esse quadro, ainda há poucos anos, teria sido válido para amplas regiões da América Latina, enquanto
agora reflete apenas a situação de suas regiões mais atrasadas. Algo mudou quase por toda parte; e as
consequências da mudança se fazem sentir de modo particularmente agudo na política. Liberalismo
constitucional e ditadura adquiriram um significado novo, na medida em que tentam responder a um
problema também novo e cada vez mais urgente: a extensão da vida política em decorrência da politização
de massa da população cada vez mais extensas. Esse novo problema caracteriza a evolução da América
Latina no período que vai de 1930 a 1955. O problema se coloca com intensidade diversa, a depender das
situações locais; variam também as reações suscitadas. Portanto, é oportuno examinar esses processos no
interior das estruturas nacionais em que efetivamente se verificam.
Talvez tenha sido no Brasil onde as consequências da nova situação se refletiram mais rapidamente
sobre a vida nacional. Em 1930, a revolução liberal pusera fim ao predomínio das oligarquias políticas de
São Paulo e parecia abrir caminho para uma ampliação da base política, similar àquela ocorrida quinze
anos antes na Argentina.
O governo surgido da revolução liberal adotara um programa baseado na reforma da vida política, com
a eliminação do clientelismo e o respeito aos resultados eleitorais. Vargas tentou retardar a execução do
programa, adiando a convocação da Assembleia Constituinte , que, após três anos de ditadura, foi
finalmente reunida em 1933. Antes disso, tivera já de sufocar, além de revoltas de menor importância, uma
sublevação muito grave em São Paulo, que estava sitiada há três meses. A Constituição de 1934 introduzia
uma representação corporativa na Câmara dos Deputados e concedia o voto às mulheres; nenhuma das
duas inovações podia modificar os dados essenciais da vida política brasileira, que se tornava cada vez
mais turbulenta. Para responder à ameaça à ameaça fascista e evitar a cansativa luta pela reeleição
presidencial, Vargas encontrou uma solução bastante original: adotou, ele mesmo, um fascismo mitigado;
com o golpe de Estado de novembro de 1937, proclamou o Estado Novo, cujas instituições eram definidas

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numa Constituição a ser eventualmente submetida a plebiscito (a eventualidade, porém, não se
apresentaria jamais). A nova Constituição acentuava os aspectos corporativos, aumentava os poderes do
presidente diante do parlamento e diminuía notavelmente as prerrogativas dos Estados em face do Governo
Federal. A ditadura introduziu alguns aspectos políticos novos para a América Latina, na medida em que
integrava o aparato policial com outros de censura e propaganda, mais elaborados que os habituais.
A hostilidade de Vargas ao fascismo se devera, originariamente, ao ressentimento para com a
Alemanha e a Itália por causa do apoio que elas tinham dado ao movimento integralista; acentuou-se ainda
mais quando os EUA tomaram posição contra o Eixo. Durante esse período, Vargas empenhou-se numa
aproximação ainda maior com os Estados Unidos e, para isso, aproveitou-se da ocasião que lhe era
fornecida pela guerra. Um golpe de Estado militar, que contou com o consenso do embaixador norte-
americano, depôs Vargas em 1945 e instalou no poder o presidente da Suprema Corte, que dirigiu as
consultas eleitorais. Das eleições, saiu vitorioso o Partido Social Democrático, fundado por Vargas para
enquadrar uma parte dos seus seguidores; o general Dutra, candidato do PSD, tornou-se assim presidente
do Brasil. O retorno ao regime constitucional, com a elaboração de uma Constituinte que restituía grande
parte das antigas prerrogativas dos Estados federados, significava um retorno ao poder do Brasil rural; e o
Partido Social Democrático revelou-se muito cedo pouco obediente às sugestões do seu fundador.
No segundo período presidencial, Vargas teve de competir com uma fortíssima oposição parlamentar,
que impediu qualquer reforma; enquanto isso crescia a inflação. Em 1954, uma violenta campanha de
imprensa levou Vargas ao suicídio; em seu testamento político, de acordo com as posições assumidas na
última fase da sua carreira, indicava como responsáveis pela sua morte ou inimigos nacionais e
estrangeiros do bem-estar do povo e da efetiva independência do Brasil. Outros grupos militares se
impuseram e forçaram a entrega do poder ao presidente eleito, Juscelino Kubitschek, social-democrático,
eleito com o apoio dos trabalhadores e dos comunistas (esses ainda na ilegalidade).
A política de Kubitschek tendia a uma transformação radical da estrutura econômica do Brasil; a
transferência da capital para uma localidade longínqua do altiplano central devia significar uma premissa e o
anúncio da unificação econômica real do país e da completa exploração dos seus recursos. Entre 1955 e
1960, o presidente pretendia fazer com que o Brasil percorresse cinquenta anos de progresso... Os
resultados imediatos foram consideráveis.
Mas qual havia sido a fórmula que dominara por trinta anos a vida política brasileira? Do que dissemos
antes – golpes e reviravoltas imprevistas – emerge talvez a superior capacidade de manobra de um
veterano da política oligárquica, que percebeu em tempo a decadência dessa política. Mas, Durant vinte e
cinco anos, Vargas fez algo mais do que simplesmente lutar pela própria sobrevivência: dirigiu uma
transformação ao mesmo tempo econômica, social e política do país, menos incoerente do que poderia
parecer à primeira vista.
Durante a primeira década do regime de Vargas, o Brasil segue uma Política que concilia os interesses
dos exportadores com aqueles do nascente setor industrial; é uma política dominada pelos dados da
conjuntura mundial, da qual depende a exportação dos produtos brasileiros e, por conseguinte, a própria
indústria; uma política, outrossim, que se faz acompanhar pó uma ação governamental visando ao
favorecimento, muito prudente, na distribuição de renda, dos estratos operários, sem tampouco esquecer a
tutela tradicional dos interesses das camadas médias. Há portanto, uma certa afinidade entre a experiência
do regime de Vargas, politicamente autoritário, e aquela anterior a 1930 no Chile e na Argentina, com
regimes liberais e constitucionais. É uma política que não enfrenta os problemas fundamentais da vida

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brasileira: a existência de um Brasil tradicional, atingindo muito superficialmente pelas consequências d
desenvolvimento industrial (salvo enquanto reserva de mão-de-obra); e a constituição de uma indústria
predominantemente leve, que se torna também importadora de metais e combustíveis, recolocando assim o
problema do desequilíbrio na balança comercial, um problema para cuja solução essa indústria fora criada.
O equilíbrio trabalhosamente mantido até então, equilíbrio que diminuíra as tensões sociais e, com isso,
facilita a expansão econômica, contribuía agora para tornar mais difícil a busca de uma saída que viesse a
pressupor opções político-sociais até então sempre adiadas. A necessidade de gastos estatais para manter
uma burocracia que é parte essencial das camadas médias, bem como a pressão dos trabalhadores
assalariados e dos exportadores, esses os únicos beneficiários da desvalorização, levam à inflação.
Kubitschek tenta utilizá-la numa fuga para a frente, a qual – apesar de alguns êxitos – não cosegue
modificar a situação em seus dados essenciais. Em 1960, o Brasil esgotou as possibilidades da experiência
iniciada trinta anos antes; começa a dolorosa busca de novas soluções.
A experiência argentina, politicamente, não revela aquela continuidade que, mesmo no quadro das
modificações de orientação, soube conservar a experiência brasileira. A Revolução de 1930, depois de se
ter inclinado para a tentação de um corporativismo de inspiração fascista, optou – fim de eliminar o
ameaçador sufrágio universal – por uma solução menos radical, mas não menos eficaz; o retorno formal ao
regime constitucional com a falsificação sistemática dos resultados eleitorais.
O predomínio político dos grupos oligárquicos, mantido graças a pressões que aumentaram ainda mais
depois que os radicais em 1934 abandonaram sua política de abstencionismo eleitoral, transformava o
regime constitucional, em medida cada vez maior, numa ficção transparente: a solução ditatorial (o general
Justo utilizava esse espantalho para manter disciplinados os partidos de oposição) continuava a ser uma
alternativa provável.
A tensão ideológica aumentou então, para depois decrescer, quando a guerra da Inglaterra contra o
Eixo tornou oportuna uma mudança de rumo: o candidato da coalizão governamental à sucessão do general
Justo, o Doutor Ortiz, que triunfa em 1937 após violências eleitorais sem precedentes, demonstrou-se
disposto a uma reinserção dos radicais na vida política; restituiu-lhes assim o controle da província de
Buenos Aires (pelo simples meio de organizar eleições honestas). 1940 parecia ser o ano do retorno da
Argentina ao sufrágio universal; essa nova orientação da política interna deveria ser acompanhada peo
aberto repúdio ao progresso do fascismo no mundo. Essa solução encontrou a sólida oposição dos
conservadores: a doença e, posteriormente, a morte do Doutor Ortiz recolocaram a direção da coisa pública
em mãos de um ultraconservador, o vice-presidente Castillo.
A revolução de 4 de junho de 1943 declarava, numa proclamação, sua pretensão de restaurar a
democracia; mas numa outra, confidencial e talvez apócrifa, revelava querer instaurar um regime fortemente
autoritário, capaz de impor os sacrifícios necessários para garantir a hegemonia argentina sobre a América
Latina (e aqui havia um reflexo do ciúme dos militares em face do aumento da potência brasileira).
Todo o ano de 1945 foi empregado pelas autoridades militares para assegurar uma saída liberal –
constitucional que lhes fosse favorável. Era uma tarefa difícil: os partidos políticos, condenados ainda até
poucos meses atrás como resíduos de um passado de corrupção, mostravam-se reticentes às lisonjas de
que eram objetos; ademais, as pressões de grupos socialmente mais elevados, que – por gestão de Perón,
promulgara uma série de decretos favoráveis aos operários industriais, e que – com o estatuto do
assalariado agrícola e as novas normas sobre os arrendamentos (bloqueio dos preços e estabelecimento
dos arrendatários nas terras) – parecia ameaçar o predomínio daquelas classes altas na Argentina agrícola.

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Assim, as tentativas de conciliação cederam lugar a um choque frontal, e o coronel Perón, após ter
buscado inutilmente o apoio que não o obtido ao estar no poder. A sua base política era consistente, como
se viu em outubro de 1945, quando uma hesitante conjura militar retirou-o da vice presidência para colocá-
lo na prisão.
A vitória peronista, com efeito, assinalava o início de uma nova época; o equilíbrio político argentino fora
transformado pela presença de um novo elemento: a classe operária; fortalecida numericamente em
decorrência da industrialização do período da guerra, apresentava notável importância eleitoral, já que à
imigração do exterior (interrompida quase inteiramente após 1930) se substituíra aquela interna. O
peronismo, além de introduzir uma política social necessária para a manutenção de sua base operaria.
Renovou também a política econômica.
A partir de 1945, havia na Argentina o pleno emprego; a população das zonas periféricas de
subocupação dissimulada havia sido completamente utilizada pelas migrações internas; a sólida posição
dos operários industriais era fruto não apenas da política, mas da própria economia. Por outro lado, o
peronismo se apoiava em minorias eleitorais muito pouco seguras para poder ameaçar, sem riscos, as
posições econômicas tanto da classe operária quanto das camadas médias, entre os quais tinha realizado
consistentes progressos após 1946 (até contar, no conjunto, com 65% do eleitorado). As transformações
mais importantes, proclamadas pelo peronismo como de introdução necessária na estrutura econômica,
implicava sacrifícios que o governo não podia impor, a não ser transformando-se numa ditadura
extremamente rígida. O peronismo, surgido num período favorável da conjuntura, não conseguira
transformar as estruturas econômicas; se não ignorava a existência do problema, resolvê-lo não era menos
impossível a esse regime que aos partidos dominantes na Argentina pré-industrial. Como no Brasil toda
essa complexa estrutura econômica continuava a se subordinar às exportações e, por conseguinte, á
produção agropastoril, controlada fundamentalmente pelos proprietários de terras: as consequências da
seca de 1951 e as da queda dos preços internacionais em 1952-53 demonstram cabalmente esse fato.
No Brasil, Argentina e Chile a política baseada sobre soluções de equilíbrio social se esgotara e estava
em crise. Em contraste com essa crise, a continuidade da política mexicana ressalta com maior vigor. O
México – que nos anos trinta fora tomado como exemplo pelos progressistas, que nos anos quarenta era
aprontado pelos seus adversários para demonstrar as consequências negativas de uma audácia excessiva
– aproximava-se da respeitabilidade.
A continuidade do progresso mexicano não ocorre sem mudanças de rumo. O ponto de partida é dado
pela revolução e pelo seu inesperado rejuvenescimento entre 1930 e 1940. No início dessa década, o
México é governado por generais do norte, assistidos por dirigentes sindicais e camponeses, cuja
organização política é o Partido Revolucionário Nacional. O novo regime, sob muitos aspectos, é similar ao
antigo. Ao lado da ortodoxia revolucionária, cada vez mais vazia, aumenta a simpatia pelo fascismo, que
cresce em certo grupos governamentais e na oposição católica exasperada pelos limites impostos à
liberdade de culto.
A revolução, ma não apenas essa. Se se compara o México – e sua experiência relativamente feliz na
busca de um novo equilíbrio – com as experiências do Brasil, Argentina e Chile, tem-se uma demonstração
da importância da reforma agrária, muito superior ao que se poderia julgar sobre a base de uma análise
puramente econômica. Com efeito, foi a reforma agrária que – transformando profundamente um dos dados
essenciais do equilíbrio social que terminara por paralisar mais de um país latino-americano – evitou que o
México caísse numa tal paralisia. O governo mexicano conseguiu traçar uma política de investimentos e de

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prioridades mais sólida e coerente do que costuma ser o caso da América Latina, não porque fosse mais
perspicaz e sim porque era mais livre para fazê-lo; e essa liberdade foi conquistada não apenas pelos
chefes do período revolucionário iniciado em 1910, mas também por Cárdenas.
Colocar ao lado do êxito da experiência mexicana aquele de Porto Rico seria uma coisa discutível
embora a ilha tenha adotado uma fórmula política capaz de sobreviver às mudanças de conjuntura que, em
outras regiões da América Latina, provocaram o fim de tentativas destinadas aparentemente a uma vida
mais longa. Porto Rico, que se tornou colônia dos Estados Unidos após o Tratado de Paris, submetida a
uma transformação econômica vertiginosa, teve de sofrer uma tentativa maciça de assimilação à metrópole,
que rapidamente fracassou.
As modificações ocorridas na ilha são efetivas: progresso urbano e sanitário; legislação social que
segue de longe o ritmo daquela dos EUA; planificação econômica indicativa, que traz para a ilha
investimentos industriais metropolitanos e dá início a variações numa economia ante dominada pela
monocultura do açúcar... Esses progressos se refletem no indiscutível aumento do padrão de vida, mas são
limitados pelos efeitos do desenvolvimento demográfico vertiginoso e ressentem-se também das
consequências negativas provenientes das particulares relações entre a ilha e os EUA. Do ponto de vista
econômico, a ilha não é uma nação, ma um fragmento periférico e atrasado dos EUA; deriva dessa
circunstância uma parte do sucesso da experiência empreendida (facilidades para os investimentos, total
abertura do mercado continental à produção da ilha, em particular a de açúcar, estabilidade institucional
etc.), mas daqui derivam também os seus limites.
O avanço do nacionalismo nos países periféricos, perceptível há uma década também na América
Latina, retirou qualquer valor de exemplo ao experimento de Porto Rico, mesmo aos olhos dos EUA, e
minou o prestígio de Muñoz e do seu partido no resto da América Latina.
O México e Porto Rico (apesar de todas as limitações desse último) oferecem um exemplo de fórmula
políticas e sociais que, elaboradas nos anos posteriores a 1930, sobrevivem ainda hoje. O Brasil, a
Argentina e o Chile, também eles, embora com menor sucesso, tentaram encontrar um novo equilíbrio
social; também outros países de média importância e alguns pequenos se puseram, ainda que timidamente,
no mesmo cainho. Porém, mais que de experiências sem sucesso, deve-se falar aqui de experiências que
fracassaram em meio ao caminho: talvez o caso em que se tenha chegado mais próximo de um
amadurecimento foi aquele de Cuba.
A crise cubana refletiu as consequências da nova política protecionista dos EUA, que, ao invés de
aumentar as tarifas aduaneiras estabeleceu um sistema de restrições às importações.
A greve geral de 1933 derrubou Machado; foi então implantado um triunvirato, presidido pó Grau San
Martín, muito popular entre os estudantes da Universidade de Havana, o qual inicia uma experiência que
quer ser socialista. Os EUA não reconhecem esse governo, e Fulgêncio Batista retira o retira o seu apoio.
Segue-se um período de normalização constitucional; na presidência da República, sucedem-se diversos
dirigentes políticos até 1940, quando Batista – que até então se conservara nos bastidores, mas controlando
o governo – torna-se presidente com um programa “um pouco à esquerda do centro”, segundo o exemplo
de Roosevelt. Sob sua direção, fortalece-se o movimento sindical, promovido pelo Partido Comunista, que
apoia Batista considerando-o um progressista. Em 1944, o Partido Revolucionário Autêntico vence as
eleições (cujos resultados Batista aceita) e a presidência é confiada a Ramón Grau San Martín; Em 1948,
Grau consegue instalar no governo, numa eleição não privada de violência e fraudes, o seu candidato, Prío
Socarras. Esse prossegue o sistema administrativo do seu predecessor, enquanto a oposição encontra uma

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saída no partido Ortodoxo. Batista, que também se recandidata à presidência, prevê a derrota: em 1952, um
golpe de Estado militar o proclama ditador e dois anos depois, em 1954, através de eleições plebiscitárias,
ele se torna presidente. Seu novo governo é mais abertamente ditatorial que o anterior. Precisamente
desses ambientes e do movimento universitário é que surge a resistência mais decidida: em 26 de julho de
1953, Fidel Castro – um estudante que simpatizava com os “ortodoxos” – dirige o assalto à caserna de
Moncada, em Santiago de Cuba. A tentativa não tem sucesso e a opinião pública, na época, mantém-se
indiferente; um magistrado corajoso, porém, salva Fidel Castro, que – do seu exílio no México – organiza
uma expedição que, em 1956, consegue constituir um pequeno movimento de guerrilheiros na Sierra
Maestra, na província de Oriente, de onde proclama uma solução humanista para os problemas cubanos.
Uma greve geral proclamada por Castro não tem êxito: o setor do movimento operário não influenciado
pelos comunistas e organizados pelos “autênticos” passou-se para Batista. Os comunistas declaram-se
neutros; junto com eles, a classe operária das cidades, que atravessa um período de prosperidade,
mantém-se como espectadora passiva do conflito. Em 1958, o governo de Washington declara o embargo
de armas (até então, abastecera abundantemente as forças armadas cubanas) e, no final do ano, a
resistência de Batista se esgota; em 1º de janeiro de 1959, os barbudos guerrilheiros entram na capital
delirante. Em 1958, terminava um período no qual a vida política se concentrara na capital em sua
universidade sempre em agitação, nas camadas médias corruptas e, ao mesmo tempo, politicamente
puritanas, na classe operária organizada em sindicatos que cresceram sob a proteção oficial...
A evolução democrática da Venezuela foi mais matizada; no fim das contas, porém, veremos que
também nesse caso a democracia constitucional estará disposta a se transformar em instrumento da ordem
constituída.
As consequências da crise mal tocaram na Venezuela: o boom do petróleo continuou entre 1930 e
1940. A indústria petrolífera cria empregos para um número reduzido de trabalhadores relativamente bem
pagos, mas as consequências indiretas da sua expansão tem repercussões muito amplas na vida
venezuelana. Particularmente em Caracas, há um grande desenvolvimento urbano. Essas transformações
já se haviam iniciado durante a ditadura de Gómez, o qual, por seu turno, dando incremento à rede de
estradas, tomou mais fácil o processo de unificação do país. Morto Gómez, os seus herdeiros – os generais
López Contreras e Medina Angarita – tentaram orientar e controlar as mudanças necessárias: um Estado
rico (que a partir de 1943 extrai 50% dos lucros petrolíferos sob a forma de royalties) constrói escolas,
estradas, instalações sanitárias urbanas, subúrbios operários...
Mas a transformação de um regime tirânico em despotismo iluminado não impede que os militares no
governo marginalizem da vida política os setores mais dinâmicos das camadas médias venezuelanas.
Contra um mecanismo eleitoral baseado num complicado sistema de eleições indiretas, a oposição –
fortalecida durante os anos de resistência à ditadura de Gómez – tenta um golpe de Estado militar no final
de 1945. A junta revolucionária provisória coloca no poder Rómulo Betancourt, dirigente daquele partido;
Betancourt organiza uma eficientíssima máquina eleitoral, apoiada pelos estratos operários e pelos votos do
campo. O novo presidente, que no passado estivera próximo aos comunistas, moderou muito os seus
pontos de vista: bastante consciente da situação venezuelana, julga que alguns dos seus aspectos não
podem ser transformados. A dependência política aos EUA, bem como a influência econômica dos
interesses petrolíferos, fixam limites intransponíveis a uma democratização destinada a assumir formas
mais políticas que sociais. Dentro desses limites, o empenho de modernização é notável, sendo também
considerável a irritação dos grupos tradicionais da Venezuela. Promulgada uma nova Constituição em 1947,

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o romancista Rómulo Gallegos é eleito para a presidência com grande maioria, mas demonstra
imediatamente menos habilidade do que seu predecessor nas relações com o exército. É derrubado em
1948 por um golpe de Estado militar, que não encontrou resistência entre a população civil. Em 1952, após
o fechamento do Partido de Ação Democrática e do Partido Comunista, a junta militar convocou eleições e –
graças à manipulação dos resultados – levou ao poder o general Pérez Jiménez.
Jiménez implantou no país uma ditadura cada vez mais rigorosa, enquanto uma onda de prosperidade
sem precedentes, devida à indústria petrolífera, transformava a Venezuela. Em 1958, Pérez Jiménez
propõe sua reeleição para a presidência, pensando assim em perpetuar a situação. A época não era
favorável: aos anos gordos, começavam a se suceder tempos difíceis, por causa da superprodução do
petróleo. A situação econômica piorava, a popularidade do regime estava em fase descendente e, depois
de um fracassado golpe de Estado da aeronáutica e de três semanas de desordens populares, o exército –
em janeiro de 1958 – convenceu-se da necessidade de abandonar o ditador ao seu destino.
Poder-se-á indagar se uma democracia tão respeitosa dos seus limites seria ainda capaz de conservar
algum poder de atração; e, nesse sentido, as eleições nas quais Betancourt triunfou foram significativas. As
zonas rurais garantiram a vitória para o líder da Ação Democrática; mas, na capital, venceu a candidatura
do seu opositor Larrazábal, apoiada pelos comunistas e acompanhada por uma propaganda
cautelosamente anti-norte-americana. Com maiorias reduzidas, Betancourt tinha de governar numa situação
de dificuldades econômicas e financeiras, que faziam lamentar os anos loucos da ditadura.
O novo governo deveria também libertar a Venezuela de algumas consequências bastante gravosas da
sua dependência econômica e política. O país desfrutava da maior renda per capita da América Latina, a
taxa de desenvolvimento era alta, não havia inflação e a moeda era tão sólida quanto o dólar dos Estados
Unidos; em suma, possuía o conjunto das vantagens próprias do período de expansão das exportações,
enquanto a maior parte da América Latina já as tinha perdido; todavia, em meio à grande prosperidade, não
conseguira criar os instrumentos necessários para enfrentar a crise da conjuntura na qual estava envolvido.
A decadência da economia agrária, a concentração de uma população que aumentava vertiginosamente
(duplicara a partir de 1940) nas cidades, cuja expansão é mais rápida que aquela de suas funções
produtivas, constituíam problemas que deviam ser enfrentados em situações muito menos favoráveis que a
de 1945 e com uma opinião pública mais impaciente que a de então.
No Peru, havia uma situação análoga, pelo menos em face de alguns problemas. Aqui, a oligarquia local
– à diferença da Venezuela – conservava solidamente suas posições de poder e era sempre um elemento
que se tinha de levar em conta.
Na Venezuela e no Peru, as classes médias e os operários urbanos estão na cabeça dos novos
movimentos populares; a debilidade desses estratos é a causa da ineficiência desses movimentos no
Equador. No Paraguai e na Bolívia, ocorre um desenvolvimento diferente: a experiência da guerra do Chaco
(1932-35) transformou profundamente os dois beligerantes. A guerra (que fora desencadeada pela intenção
da Bolívia de conquistar no Chaco uma abertura para o rio, a fim de substituir o litoral marítimo cedido aos
chilenos, e que terminara com a derrota boliviana após combates sangrentos e uma mobilização de massas
de soldados relativamente importante) foi para uma parte dos oficiais paraguaios e bolivianos a
oportunidade de conhecer o povo, do qual sempre tinham vivido afastados. No heroísmo popular,
manifestado sobretudo na infinita capacidade de suportar os sofrimentos, acreditaram descobrir uma nova
fonte para reforçar as esgotadas energias nacionais. A guerra constituiu também uma ocasião para
conhecer melhor os grupos oligárquicos dominantes, que na Bolívia eram considerados como responsáveis

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pela guerra e pela derrota, e, no Paraguai, eram acusados de ter aceito uma vitória mutilada em decorrência
das interferências do sistema pan-americano, no qual viam o defensor dos interesses petrolíferos dos EUA,
titulares de concessões nas zonas bolivianas ameaçadas pelo avanço paraguaio.
A revolução boliviana ousara realizar opções entre os vários grupos sociais e, sob esse aspecto,
distinguira-se dos experimentos mais moderados efetuados no restante da América Latina. Isso explica, em
parte, a sua duração, uma vez esgotadas suas possibilidades: ainda que enfraquecida, encontrava-se
diante de forças sociais decapitadas pela nacionalização das minas e pela reforma agrária.

2. Deterioração Econômico-Social e Aumento dos Desequilíbrios

Por volta de 1960, os sinais de esgotamento das soluções inauguradas sob os sucessivos estímulos da
crise da guerra (baseadas numa industrialização graças à fundamental tornara possível a firmação de
soluções políticas apoiadas por mais de um setor social) se ornam cada vez mais evidentes. Perdendo as
esperanças de poder consolidar o frágil equilíbrio nascido das respostas dadas à crise de 1929, a América
Latina dirige-se para um novo período de choques entre agrupamentos políticos, ligados ao aumento da
tensão entre grupos sociais e econômicos. Acrescentando-se ao esgotamento de uma solução econômica
cuja eficácia se estendera por trinta anos, durante os quais servira de base para variadas soluções políticas,
o ingresso total da América Latina na Guerra Fria apressou o ritmo da crise latino-americana.
Com exceção do México e do Brasil, a segunda metade dos anos cinquenta viu efetivamente – em todos
os setores significativos da América Latina – uma estagnação que, em alguns países, chegou à regressão;
no início da década seguinte, também o Brasil se inseriu no processo geral. Após vinte e cinco anos de
economia dirigida (ainda que de modo frequentemente aproximativo), não eram poucos na América Latina a
prestar ouvidos, por volta de 1955-60, às perorações em favor do neoliberalismo econômico, que lhes eram
dirigidas pelos países metropolitanos. O fato é que a inflação atingiu em quase toda parte níveis
intoleráveis; e o Estado, que dirige a economia, não pode mais esconder que ela está andando à deriva.
Mas as soluções neoliberais cumpriram muito mal suas promessas, a não ser nos casos em que foram
sustentadas por um boom produtivo que não deriva da sua aplicação (é o caso do Peru).
Passada a euforia do pós-guerra, os países latino-americanos voltaram a ser devedores dos países
metropolitanos; sua balança comercial está em déficit; o balanço de pagamento ainda mais. Sua estruturas
mais complexas tem maior necessidade de créditos do que ocorria no período das exportações. Sem
créditos, não existem matérias-primas para a indústria; em muitos países, não há combustíveis e, em
outros, nem mesmo os gêneros alimentícios essenciais. Embora as teorias da moda prefiram a finança
privada, quem domina os créditos são os organismos financeiros estatais e internacionais; o Fundo
Monetário Internacional adquire agora um peso decisivo, não tanto pelo seu fornecimento direto, mas pela
função estimulante que desempenha junto aos temerosos investidores privados.
Esgotada a solução liberal, adquire-se uma ampla consciência da dimensão dos problemas diante dos
quais se encontra a América Latina. Essa tomada de consciência foi preparada lentamente pelos trabalhos
da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), constituída pelas Nações Unidas e dirigida por
Raúl Prebisch, um economista argentino ao qual se deve, em boa parte, o matiz keynesiano que a política
econômica conservadora assumiu em seu país depois de 1930. Ora, Prebisch diz que as inovações
sugeridas por Keynes não são suficientes: não se trata de salvar do caos economias já maduras, mas de
encontrar o caminho para levar à maturidade estruturas ameaçadas de raquitismo. Com efeito, para

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Prebisch, o pioramento da situação das zonas exportadoras de produtos primários é inevitável: essas zonas
periféricas estão condenadas a ser sacrificadas ao centro industrial, que controla tanto o ritmo da produção
delas quanto os mecanismos comerciais e financeiros internacionais.
Qual é, portanto, a solução? Uma transformação completa e não parcial, que crie – entre agricultura e
indústria, entre zonas centrais e marginais – um equilíbrio comparável ao existente nos países
economicamente maduros. Mas com que recursos efetuar essa transformação? Prebisch considera
indispensável fazer isso utilizando apena a poupança nacional. Dentro das estruturas políticas vigentes, as
forças renovadoras não poderiam sacrificar o nível de vida já alcançado sem com isso se enfraquecerem.
Portanto, só restam os investimentos estrangeiros. Como obtê-los? É um problema que o economista
argentino coloca, mas não resolve. Sua contribuição mais importante à problemática da América Latina
consiste, por conseguinte, num diagnóstico mais profundo que os habituais. Ourtrossim, a moda das teorias
do desenvolvimento cedo oferecerá um grande número de soluções...
As teorias do desenvolvimento (difundidas mais rapidamente e de modo mais geral que as conclusões
da Cepal, as quais tiveram de enfrentar a hostilidade dos que controlam os meios de comunicação de
massa) foram para a América Latina um aspecto de uma tomada de consciência de alcance mais vasto: a
descoberta da exigência de um “terceiro mundo” e a constatação de que a América Latina está inserida
nele.
O processo de descolonização na África e na Ásia fez com que a América Latina não fosse mais a única
região periférica a gozar de independência formal. A independência d Indonésia e da índia; a revolução,
egípcia; os progressos realizados pela África, no sentido da emancipação, durante a segunda metade dos
anos cinquenta: tudo isso pôs em primeiro plano situações muito similares àquelas que, há mais de um
século, constituíam a problemática doméstica, quase privada, da América Latina. Mas, se os problemas são
em parte os mesmos, as soluções são muito diferentes.
A Guerra Fria parece assumir, em nível mundial, formas novas, menos perigosas que aquelas do
período anterior: os blocos rivais competem no sentido de ganhar a amizade dos países novos, contribuindo
para o progresso econômico dos mesmos. A presença da URSS sob as vestes de generosa financiadora de
transformações econômicas, dirigidas num sentido que tão-só no vocabulário político aproximativo dos
países novos poderiam ser definidas como socialistas, inaugura essa nova era, a qual, da parte dos países
metropolitanos, prossegue com o empenho de elevar o nível de vida dos países socialistas à altura daquele
dos EUA e da Europa Ocidental: aquilo que fora uma fé revolucionária parece assim se converter numa
técnica emuladora para obter o progresso econômico.
A extrema prudência que a geração mais velha continuava a demonstrar nas relações com a potência
hegemônica, a inabalável lealdade para com os Estados Unidos professada por vários dirigentes
revolucionários dos anos trinta, era julgada com severidade pela esquerda ligada aos soviéticos, mas
também e com não menor rigor, ainda que com motivações diferentes, por políticos que tentavam tirar
vantagens dos dois alinhamentos: típica é a atitude de Kubitschek, o qual – no âmbito da coligação não
deixava de acenar para a metrópole com a ameaça de uma política externa independente, obtendo assim
as ajudas financeiras que sua política econômica teria tornado difíceis.
O neutralismo, que era inicialmente uma hábil especulação, transformou-se bem cedo num empenho
que, para ser levado adiante, necessitava de uma certa dose de heroísmo: a potência hegemônica não
estava disposta a estender também às zonas que dominava solidamente a amplitude de visão demonstrada
nas regiões em que devia disputar a influência com sua rival. A experiência cubana pôs fim às últimas

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ilusões; a América Latina, politicamente, não fazia parte daquele Terceiro Mundo que, por um instante,
pareceu ser o árbitro da rivalidade entre os dois alinhamentos.
A ideia de modificar radicalmente o mecanismo político pan-americano, a fim de convertê-lo num
instrumento para obter as necessárias transformações econômicas e sociais, foi exposta pela primeira vez
pelo presidente Kubitschek; com o seu costumeiro ecletismo político, o estadista brasileiro, ao mesmo
tempo em que encorajava as tendências neutralistas latino-americanas, oferecia publicamente ao
presidente Eisenhower uma alternativa ao neutralismo: a Operação Pan-Americana, que na opinião dele
permitia transformar a América Latina numa zona economicamente madura, mantendo-a ao mesmo tempo
na esfera internacional dominada pelos EUA. Essas transformações exigiam grandes investimentos, os
quais – fornecidos sobretudo pelos norte-americanos – deveriam ser administrados por novas organizações
pan-americanas.
A proposta suscitou menos entusiasmo nos EUA. O presidente Kennedy acolheu-a apenas mais tarde,
com a Aliança para o Progresso, que previa investimentos norte-americanos durante um período de dez
anos, no montante de dois bilhões de dólares por ano (metade dos quais para investimentos públicos),
integrados por outros investimentos de capital local, numa proporção quatro vezes superior. Como Kennedy
orgulhosamente dizia, tratava-se de uma revolução social pacífica que, no espaço de dez anos, mudaria a
face da América Latina.
Resultado da Aliança para o Progresso foi duplicar os créditos públicos norte-americanos à América
Latina e pouca coisa mais. O desaparecimento de Kennedy privou-a também da posição de privilégio que
até então desfrutara na propaganda norte-americana; a propaganda voltou a centrar-se num anticomunismo
mais grosseiro, em harmonia com o aguçamento da Guerra Fria nas zonas marginais, ocorrido em 1965. Os
EUA não tinham nenhuma intenção de financiar a revolução social na América Latina, sob a planificação de
professores de economia; preferiam apoiar-se nas forças da ordem constituída a fim de enfrentarem cada
uma das crises provocadas, com violência cada vez maior, pelo crescente desequilíbrio.
Esse desequilíbrio continua a ser a característica fundamental; na falta do ingresso maciço de dólares e
de técnicos norte-americanos, ele se acentua cada vez mais rapidamente. As causas são evidentes:
insuficiência da modernização, que atinge apenas setores limitados; e da industrialização, que – incompleta
– sufoca-se pela impossibilidade de ampliar os próprios mercados. As causas de sua permanência, porém,
derivam de um dado fundamental: o equilíbrio social torna difícil a aplicação de qualquer solução proposta
para superar o desequilíbrio econômico.
A reforma agrária – voltada para aumentar a produtividade no campo, para diminuir a proporção dos
empregados na agricultura no total da população e para promover o incremento do consumo nas zonas
rurais – implica uma transformação profunda das relações de produção que, há séculos, consolidaram a
hegemonia dos grandes proprietários. Esses resistem energicamente; e não o fazem êxito, em particular
nas áreas mais atrasadas, onde mantêm ainda o controle da vida política.
A renovação pacífica do setor agrário, por conseguinte, parece extremamente difícil. Nem é mais fácil
completar as insuficientes estruturas herdadas do passado. A manutenção de vastas áreas rurais mal
inseridas no mercado nacional é, por si só, um mau augúrio para o desenvolvimento industrial, que
continuará a ser freado pelos limites do próprios mercado. Além disso, a instalação de indústrias de base e
a expansão da exploração dos combustíveis, indispensáveis para diminuir o déficit da balança comercial,
exigem grandes investimentos, ao mesmo tempo que, sobretudo no primeiro caso, é necessário qu o
conjunto da estrutura industrial já tenha alcançado proporções nem sempre ao alcance das economias dos

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países latino-americanos. Todos esses projetos, porém, encontram sobretudo a resistência de um setor
primário, cada vez menos disposto a financiar os custos da industrialização.
Assim como a reforma agrária, também a edificação de estruturas industriais modernas revela-se, no
atual estado de coisas, tão necessária quanto impossível. Então só resta o caminho revolucionário? Esse é
um problema que os teóricos da CEPAL evitaram (suas opiniões eram técnicas e não políticas); que os
teóricos da política do desenvolvimento declararam frequentemente como inexistente (ao traçar
comparações entre o desenvolvimento paralelo da Rússia socialista do século XX e dos Estados Unidos
capitalistas do século XIX, sugeriam bastante claramente que, para todos os que possuíam a chave secreta
do processo, socialismo e capitalismo eram inteiramente indiferentes); e que propagandistas da Aliança
para o Progresso confundiram, ao adotar uma linguagem vibrantemente revolucionária. Mas,
evidentemente, a alternativa existia e tinha um sentido: a revolução cubana e as transformações que,
graças à sua simples presença, foram introduzidas na problemática da América Latina demonstram até que
ponto isso é verdade.
Os Estados Unidos, pelo menos até 1964, tentaram justificar sua oposição à evolução cubana em puros
termos de política de potência: não se opunham a um experimento revolucionário, mas à inserção de um
membro do bloco rival numa área que consideravam sob sua indiscutível hegemonia. As duas coisas, com
efeito, não podiam ser separadas tão facilmente: de qualquer modo, é significativo que a única revolução
vitoriosa realizada na América Latina depois do episódio da Guatemala só tenha podido se salvar por ter se
colocado sob a proteção do bloco contraposto ao norte-americano, e que isso tenha transformado a
perspectiva política de toda a América Latina.
Em janeiro de 1959, a revolução triunfava em Cuba. Ao dilema entre capitalismo e comunismo, era
oferecida – e não pela primeira vez – uma alternativa humanista, carregada do moralismo das classes
médias e intelectuais cubanas.
A hostilidade em face do governo revolucionário haveria de aumentar diante da sua coragem em dirigir
as questões econômicas. No início, ele era criticado por não ter freado a depuração diante dos poderosos
da economia; depois, as acusações foram mais sérias. O novo governo cubano não só empreendia uma
reforma urbana (diminuição obrigatória dos aluguéis, que era de resto uma medida tradicional dos políticos
da América Latina para conquistar popularidade), mas dava início a uma reforma agrária de amplitude sem
precedentes na América latina, reforma que atingia também os interesses de empresas açucareiras norte-
americanas. As inovações, como era natural, causaram o afastamento dos grupos moderados, que até
então haviam apoiado a revolução. O conceito (errado) de que fossem os comunistas os inspiradores de
medidas tão audazes começou a difundir-se cada vez mais; assim, a administração Eisenhower – esmo não
se mostrando disposta, pelo momento, a acolher a sugestão de intervir militarmente em Cuba – não se
recusou a exercer pressões econômicas. Nesse meio tempo, a existência de um país dissidente no âmbito
do sistema pan-americano tornava-se o problema mais importante para a potência hegemônica. Em abril de
1961, a administração Kennedy levava adiante um projeto herdado da administração anterior: a invasão de
Cuba por exilados, apoiados, armados e instruídos pelos EUA. O empreendimento fracassou.
A ilha – sitiada economicamente e atacada no plano militar pelo seu poderoso vizinho – transformava-se
em país socialista; em junho de 1961, o Partido Comunista entrava na nova organização para a qual
afluíram todas a formações revolucionárias. A reforma agrária continuava queimando etapas, percorridas
em outros lugares com maior lentidão. No acervo político da revolução castrista, havia indubitavelmente

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muitas ideias confusas e projetos vagos; mas havia também uma inteligência política muito popular, que
faltava inteiramente aos disciplinados funcionários comunistas.
Em meados de 1962, um anúncio sensacional do presidente Kennedy revelava que Cuba estava se
transformando numa base para mísseis atômicos soviéticos. Diante das ameaças norte-americanas, a
URSS aceitou retirá-los. O episódio revelou com brutal clareza a Cuba socialista os limites do apoio que
poderia esperar de sua poderosa aliada. Começa assim, para a experiência cubana, um difícil período de
adaptação à complicada realidade de uma distensão que não eliminou a Guerra Fria, mas apenas alterou-
lhe a tática. Essa Cuba, que não poderia sobreviver sem os auxílios de sua longínqua protetora, conserva
diante dela uma autonomia que lhe permite, com todo direito, continuar a denunciar a subordinação dos
governos latino-americanos aos ditames de Washington. A melhor arma de Cuba diante da URSS é o golpe
que significaria para o prestígio russo a ruína da experiência socialista na ilha do Caribe.
A partir de 1962, Cuba não se cansou de pregar às esquerdas latino-americanas a solução
insurrecional; e, em alguns países, particularmente na Venezuela, sua ação transcendeu a simples
pregação. Em 1965, os muitos fracassos – ainda mais que as resistências que essa linha encontrara e
continuava a encontrar entre os partidos comunistas latino-americanos – parecem ter levado a uma revisão
profunda. Era também o momento em que os problemas econômicos assumiam , para a ilha, uma nova
gravidade; para resolvê-los, recorria-se – contra a orientação de Ernesto Guevara, que gostaria de enfrentá-
los mediante uma revivescência do espírito revolucionário – a soluções baseadas em cálculos mais
estritamente econômicos.
A influência de Cuba socialista sobre a América Latina perde progressivamente a sua importância
imediata: com efeito, a reafirmação – a partir de 1967 – das teses insurrecionais não impede que o
problema cubano tenha deixado de ocupar a posição preeminente no interior da crise latino-americana que
alcançara no início dessa década e graças à qual uma vivíssima consciência da profundidade e da urgência
da própria crise pode enraizar-se rapidamente, tanto na América Latina quanto na potência hegemônica.
As vicissitudes da economia cubana influíram indubitavelmente sobre essa modificação da imagem da
revolução cubana numa perspectiva latino-americana. Embora os simpatizantes da experiência cubana
tenham reagido com ceticismo (que os fatos haveriam de justificar) aos periódicos anúncios segundo os
quais a economia da ilha estava se avizinhando do colapso, a descoberta de que a instauração do
socialismo não eliminava imediatamente os problemas particulares de uma economia marcada pela
dependência e por uma secular concentração na agricultura do exportação serviu para atenuar os
entusiasmos.
A revolução cubana introduziu de fato uma dimensão nova na história da América Latina. Existem dois
aspectos essenciais nessa segunda fase; por um lado, a transformação da perspectiva a partir da qual a
potência hegemônica vê a situação latino-americana; por outro, na própria América Latina, o alinhamento
mais decidido de setores antes bastante incertos, cujo deslocamento em sentido conservador, no momento,
aparece como decisivo.
A política de Washington já aprendera a utilizar para os seus objetivos, em medida cada vez maior, a
organização pan-americana: com a aproximação da crise cubana, multiplicam-se as reuniões de
chancelaria e as conferências. Em 1959, em Santiago de Chile, e em 1960, em São José da Costa Rica, os
funcionários insistiram no princípio da não-intervenção, mas nele introduziram, ao mesmo tempo, uma nova
limitação, quando menos potencial, reconfirmando o apoio coletivo ao regime democrático-representativo.

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Os Estados Unidos consolidavam suas ligações bilaterais com numerosos países da América Latina,
mediante pactos de assistência que permitiram estabelecer contatos diretos entre o seu exército e os de
outros países sul-americanos; do ponto de vista técnico, a colaboração vai desde o envio de conselheiros
para adestrar os oficiais da América Latina no uso das armas que são entregues no quadro dos pactos de
assistência, até a organização – em território norte-americano – de centros de treinamento para as novas
técnicas (especialmente de luta antiguerrilheira), onde os oficiais da América Latina realizam períodos de
adestramento, e, finalmente, até a preparação de manobras conjuntas entre o exército estadunidense e
aquele de um ou de vários países latino-americanos.
Em 1964, Thomas Mann – secretário-adjunto dos EUA para as questões latino-americanas – anunciava
uma importante mudança na política de Washington: não se tratava mais de impor de qualquer modo a
democracia representativa, mas de contar com aliados seguros e, portanto, os golpes de Estado não mais
deviam ser considerados com hostilidade sistemática. Desse modo, a eficiência dos exércitos da América
Latina enquanto instrumentos políticos era reconhecida publicamente; um reconhecimento quase
desnecessário: uma sucessão de golpes de Estado militares, à qual se somava a submissão cada vez mais
aberta de outros governos (mesmo dos constitucionais) à tutela militar, demonstravam até que ponto,
graças à Guerra Fria, a hegemonia militar estava reconquistando terrenos na América do Sul.
Depois de 1929, a industrialização pareceu oferecer, com o grupo de empresários que então surgia,
uma direção às classes médias. Mas as relações entre esses empresários e a massa das camadas médias
eram problemáticas: essas últimas eram mais numerosas nos setores menos atingidos pela industrialização
(burocracia, comércio); e, embora os pequenos industriais se multiplicassem, continuavam a ser
numericamente menos importantes do que a classe média dependente, com cujos interesses tinham bem
pouco em comum.
Mas havia algo mais: os novos dirigentes industriais nasciam numa atmosfera política que, como vimos,
propunha-se reconstruir os setores primários da economia; até época recente, não havia na América Latina
divergência de interesses entre os setores tradicionais (produtores primários e exportadores) e os
industriais.
Na medida em que os novos setores operários urbanos adquirem maior influência política (na Argentina
peronista e pós-peronista , no Chile da Frente Popular e de seus continuadores, no novo Brasil de Vargas,
basta sua simples presença para impelir os industriais a assumirem atitudes cada vez mais conservadoras.
Mais ainda: tão logo começam os anos difíceis, após a prosperidade da guerra, os setores industriais
convertem-se inesperadamente ao liberalismo econômico. Parafraseando uma célebre ditado, o patronato
industrial da América Latina parece ser precisamente a classe que aprendeu a pensar sistematicamente
contra os seus próprios interesses.
Por isso, ela se isola cada vez mais dos setores da classe média. Esses, embora em sua maioria se
tenham convertido ao conservadorismo político mais extremo (e frequentemente obtuso), não pretendem
renunciar ao nível de vida anterior à atual crise: depois de terem seguido com entusiasmo as revoluções
restauradoras, criam imediatamente para elas os mais graves problemas; as greves de bancários, de
O remédio para a desordem é buscado cada vez mais intensamente nas soluções de força: às
restaurações democráticas, sucedem aquelas autoritárias. A própria noção de democracia se transformou
de tal modo que se torna cada vez mais difícil distinguir as primeiras das segundas. Umas e outras surgem
para enfrentar fenômenos diversos: a revolução, na Venezuela; a violência, na Colômbia; o esgotamento
das soluções reformistas, no Brasil e na Argentina; a reforma, e, depois, a revolução, no Peru. Tão-somente

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o México parecia imune ao contágio da restauração; e o Chile, por sua vez, lançava-se na ambiciosa
tentativa de escapar ao círculo vicioso revolução-reação.
No Brasil, o enfraquecimento das posições reformistas assume proporções catastróficas. O presidente
Quadros tentara levar adiante uma política econômica liberal e rigidamente antiinflacionária, acompanhada
por tentativas neutralistas no campo internacional. Os resultados econômicos não tardaram a se manifestar:
o ritmo da inflação diminuiu, mas o custo da operação recaiu imediatamente não apenas sobre os
assalariados, mas também sobre o conjunto da economia, lançada violentamente na estagnação, após
anos de expansão incontrolada , sob a imprudente política financeira de Kubitschek.
O segundo aspecto da nova política foi acolhido no Brasil com sentimentos confusos e com uma pura e
simples consternação por seu aliado do norte; e isso, em particular, quando , após a Conferência de Punta
del Este, o presidente Quadros (irritado, ao que se diz, pela escassa propensão dos Estados Unidos a
fornecer ajuda financeira, embora sua política econômica fosse rigidamente ortodoxa) acolheu com
cordialidade o delegado cubano. Um mês depois Quadros se demitia, declarando não estar disposto a
ceder às pressões baseadas na força.
Depois de alguns dias transcorridos à beira da guerra civil, a presidência era confiada a Goulart
mediante uma fórmula de compromisso, mas uma reforma constitucional, apoiada servilmente pelo
parlamento, esvaziou o cargo de qualquer significado, instaurando o regime parlamentarista. Elevado à
presidência, o primeiro objetivo de Goulart (alcançado apenas pela metade) foi modificar em seu favor o
equilíbrio político nas forças armadas; o segundo, foi libertar-se do parlamentarismo através de um
plebiscito, que aprovou a volta ao sistema presidencialista; o terceiro, que se revelou apenas lentamente, foi
eleger-se para um período presidencial inteiro, através de uma reforma constitucional.
Goulart considera então considera então possível utilizar os novos alinhamentos que, sob o impulso
conjunto da evolução latino-americana e do esgotamento da experiência de Vargas, estavam surgindo no
Brasil. Era uma decisão que o obrigava a enfrentar um conjunto de oposições, cuja gravidade não parece
ter percebido plenamente. O equilíbrio alcançado entre o Brasil tradicional e o Brasil moderno haveria de se
romper, ou melhor, já se estava rompendo: no Nordeste do açúcar e do sertão, um inteligente advogado,
Francisco Julião, estava organizando ligas camponesas, que agrupavam posseiros até então vítimas de um
regime senhorial.
A revolução conquistara uma fortaleza no Brasil? Não necessariamente. Um economista formado na
Cepal, Celso Furtado, mesmo reconhecendo no setor camponês arcaico a capacidade de provocar uma
ruptura revolucionária do equilíbrio brasileiro, considerada possível canalizar as velhas inquietações no
sentido de uma modernização não revolucionária, através da qual o Brasil poderia alcançar aquele novo e
mais maduro equilíbrio, que já havia vários anos vinha a Cepal indicando como o objetivo para o qual
deveriam tender todas as forças da América Latina. Por um momento, pareceu que essa seria a solução:
antecipando-se, Robert Kennedy visitou a cabana de um mártir do movimento camponês do Nordeste,
enquanto o presidente Goulart punha Furtado na chefia de um organismo de planificação econômica e
incluía a reforma agrária entre os seus objetivos políticos imediatos.
Para Goulart, a transformação econômico-social devia ser acompanhada por medidas políticas
correspondentes: a concessão do voto aos analfabetos. A autorização para que os suboficiais, entre os
quais parecia que as tendências radicais gozavam de um apoio cada vez maior, participassem da vida
política.

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Goulart, mais que uma revolução social, propunha-se uma renovação maciça da classe política
parlamentar e militar. Portanto, não é de surpreender que tenha encontrado nesses grupos a mais rígida
oposição. Por outro lado, essa oposição encontrou grande eco no país; no curso dessas manobras
necessariamente lentas, a economia brasileira seguia seu caminho, ou melhor, continuava sem orientação
alguma.
Seguiu-se uma revolução militar que, em três dias e quase sem luta, derrubou o regime de Goulart; ela
foi acolhida com aberta satisfação pelos EUA, vivamente preocupados com os progressos do neutralismo e
do nacionalismo econômico brasileiros. A revolução levou à presidência, com a aprovação do parlamento, o
marechal Castello Branco. Uma série de ‘atos institucionais” caracterizou o novo regime.
Esse regime modificou toda a linha política do passado: destruiu ou submeteu a severo controle o
aparato sindical; adotou o liberalismo e a austeridade econômica, bem como a luta contra a inflação através
da recessão; apelou ao capital estrangeiro, que serviu para colonizar a estrutura industrial brasileira,
enfraquecida pela depressão... Essa política garantiu ao regime uma solidíssima impopularidade: as
eleições estaduais de 1965 o demonstraram, dando a vitória em quase toda parte aos candidatos da
oposição, apoiados por Kubitschek e Goulart, ambos no exílio. O governo militar respondeu com a
dissolução dos velhos partidos, com a criação de novos e com a transferência da eleição do presidente para
o parlamento. Assim, a legalidade constitucional foi salva através de transformações que a tornaram
irreconhecível.
As crises demonstraram à tradicional classe política brasileira – tanto a herdeira da experiência varguista
quanto a proveniente dos setores mas arcaicos – que a revolução de 1964 não fora feita para ela. No
exército, somente uma corrente (a chamada “linha dura”) deseja uma ditadura militar pura e simples; mas a
corrente oposta não propugna o retorno a um sistema representativo não limitado pela faculdade do veto
contra pessoas e movimentos, controlada pelo exército: é favorável à manutenção das formas institucionais
e, ao mesmo tempo, ao exercício do poder efetivo pelos chefes militares. Diante das dificuldades, essa
oposição começou a unir-se em torno dos seus líderes mais moderados – que se esperava fossem mais
simpáticos aos setores dominantes brasileiros e ao seu poderoso aliado – e substituiu o ambicioso
programa de reformas adotado por Goulart antes da queda por um apelo mais genérico à democratização
efetiva do regime e ao retorno à expansão econômica.
A ordem no Brasil foi mantida sem essa ampliação das bases sociais, a qual – segundo alguns dos seus
defensores, hoje apresentados como perigosos subversivos – teria podido salvá-la definitivamente. Na falta
dessa ampliação, o regime retrocede e agrava todos os seus desequilíbrios: miséria no campo, fome de
terra, explosão demográfica.
Embora com intensidade diversa nas várias zonas do subcontinente, o aguçamento das tensões
internas – agravadas pela entrada da América Latina na Guerra Fria – parecia ser o dado dominante da
situação política latino-americana dos anos sessenta. É muito cedo, sem dúvida, para afirmar que essa
tendência se inverteu: mas parece evidente que, à espera de uma crise iminente a aguda, que deveria se
manifestar através da recusa global e decidida da ordem política social vigente, está se substituindo a
perspectiva de um confronto mais longo, em ritmo mais lento e menos dramático, entre alternativas talvez
menos nitidamente definidas. Essa mudança não implica certamente numa atenuação dos elementos
fundamentais da crise latino-americana: desenvolvimento econômico lento ou nulo, quase por toda parte;
acelerado incremento demográfico; impossibilidade, mesmo onde esse incremento não existe (como na

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Argentina ou no Uruguai), de continuar a satisfazer os diversos setores sócias que haviam participado, em
maior ou menor medida, dos benefícios derivados das transformações econômicas iniciadas em 1930...
A morte de Kennedy significou também o fim de toda aspiração a uma mudança econômica que fosse
bastante rápida para ser capaz de redefinir os termos do conflito sociopolítico no subcontinente latino-
americano, antes do desencadeamento da hipoteticamente próxima crise geral. No momento, a posição do
setor militar – também dominado pelo presságio de uma catástrofe próxima – parecia ser dona do terreno: o
apoio explícito dado ao exército brasileiro para a derrubada de Goulart, as sucessivas ações do Panamá e
de São Domingos, ofereciam um claro sinal dessa vitória, que haveria de se prolongar através da
colaboração um pouco mais discreta na repressão do movimento guerrilheiro na Venezuela, Bolívia e
Guatemala. Todavia, essa política de crescente intervenção militar encontrou bem cedo seus próprios
limites: também nesse caso, não foi a descoberta de que o status quo era mais sólido do que, m dado
momento, haviam temido os seus defensores o que determinou a atenuação do alarmante ativismo militar,
cuja expressão mais criticada, fora da América Latina, foi a intervenção militar no Vietnã.
Desse modo, os EUA parecem retornar a uma política mais costumeira, preocupada com a defesa dos
seus interesses econômicos – que cobrem agora a totalidade da América Latina – e dos seus interesses
estratégicos e políticos – que nem sempre coincidem com os primeiros – e não mais tão ansiosa em traduzir
na realidade um ou outro dos dois grandes mitos em conflito: o primeiro, favorecido pela direita norte-
americana, e que visa à união da América Latina, sob a direção dos EUA, numa fervorosa cruzada
anticomunista; e os segundo, apoiado pelos setores liberais estadunidenses, que chama a mesma América
Latina, sob a mesma direção, a uma cruzada pela democracia política, pelo progresso social e pelo
desenvolvimento econômico, no interior de limites que não atinjam a hegemonia econômica e estratégica da
nação-guia. Ambos exigem uma política econômica ao mesmo tempo mais coerente e mais decididamente
intervencionista, mais custosa e mais ambiciosa que aquela que os EUA acreditam poder se permitir nessa
face particularmente delicada de sua vida internacional.
Esse novo clima, favorável a uma maior variedade de experiência políticas, faz-se sentir precisamente
onde, por longo tempo, s havia inutilmente esperado o seu influxo: ou seja, no interior dos regimes militares
implantados a partir do argentino, que o fora em 1966. Esse último, mesmo continuando a proclamar a
urgente necessidade de quebrar um processo que ameaçava levar à aberta subversão social, demonstrou
efetivamente que compreendia, com mais clareza do que se poderia supor pelos seus programas, quais
eram os problemas sociais e políticos do país. No campo estritamente político, trouxe assim uma inovação:
a eliminação pura e simples do sistema representativo (os comandantes-em-chefe das forças armadas
substituíram o povo coo origem da soberania), acompanhada por uma aplicação extremamente moderada
de medidas repressivas; com exemplo, convocar dois congressos, certamente clandestinos, mas cujas
conclusões foram publicadas pela imprensa e cujos membros (os mais significativos deles foram também
citados pelos jornais) não sofreram por isso o menor incômodo.
No Brasil – no decurso da crise progressiva que atinge o regime semiconstitucional – as alternativas se
alteraram intensamente. Como vimos, a oposição ao regime militar se identifica cada vez mais fortemente
com a totalidade da classe política do período anterior a 1964. A aliança de Carlos Lacerda (o fogoso
político e jornalista da direita brasileira, que levou Vargas ao suicídio, Quadros à renúncia e animou com
sua violenta oratória a revolução de 1964) com seus inimigos de ontem (Kubitschek, que antes costumava
denunciar como o maior responsável pela corrupção que acompanhara o período de prosperidade no Brasil;
e Goulart, que acusara dos mais graves crimes), essa aliança é uma manifestação particularmente

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esclarecedora do processo. E o modo pelo qual Lacerda foi privado de direitos políticos, ou seja, sem que a
medida tivesse provocado nenhuma emoção comparável àquelas que o tempestuoso político do Rio de
Janeiro costumava provocar no passado, revela com igual clareza que os governantes brasileiros não tem
muito a temer dele.
Desse modo, tais governantes responderam ao cauteloso desafio da classe política tradicional com
golpes brutais, que reconduziram-na à obediência e agravaram sua subordinação aos militares que
controlam o poder efetivo. A principal vítima do processo foi a instituição parlamentar, inicialmente reduzida
a uma sombra de si mesma. As sucessivas vitórias do governo contra um inimigo inerme, que é ao mesmo
tempo seu aliado e seu prisioneiro, são tão esmagadoras quanto privadas de consequências. De qualquer
modo, impediram que o Brasil surgido da Revolução de 1964 alcançasse qualquer tipo de estabilidade
institucional; e tiveram seu lógico ponto de chegada no golpe desfechado em 1968 pelo exército, contra um
parlamento ainda não suficientemente submetido e, ao mesmo tempo, contra a oposição das universidades
e dos intelectuais.
A Igreja Católica transformou em temas de discussão legítima os problemas sociais básicos do Brasil de
hoje, formulando reservas de excepcional severidade acerca da política econômica e das atitudes
repressivas do governo, o qual, por sua parte, procurou evitar um conflito aberto.
Todavia, embora essa segunda oposição tenha no país um peso maior que a primeira, não constitui
uma ameaça imediata para a estabilidade do regime. Mais séria, talvez, é a oposição – ao mesmo potencial
– que existe no seio da nova classe política, constituída no Brasil pelo corpo de oficiais.
A manutenção de uma estrutura constitucional e representativa cada vez mais fantasmagórica revela-se
então, mais uma vez, como um elemento de instabilidade na ordem nascida do movimento militar de 1964;
e esse fato novamente se revela por ocasião da morte do presidente Costa e Silva, cuja substituição pelo
general Garrastazu Médici – designado pelas forças armadas – é claramente inconstitucional. Isso parece
dar razão aos defensores da “linha dura”, que gostariam de ver interrompida essa experiência em favor de
uma ditadura militar pura e simples (o golpe de 1968 chegará bem perto disso).
A crise de 1964 já demonstrara como a economia brasileira não poderia continuar a pagar as despesas
de soluções político-sociais capazes de satisfazer, ao mesmo tempo, a todos os setores representados na
variável coalizão de forças que governou o Brasil durante a Segunda República: dar plena liberdade política
a todos esses grupos equivaleria a reconstituir uma coalizão indubitavelmente majoritária, mas
forçosamente condenada a fragmentar-se novamente em frações reciprocamente hostis. Para dar à solução
neoliberal alternativas não revolucionárias e economicamente válidas, o exército tem assim necessidade de
um monopólio de poder ainda mais rigoroso do que aquele necessário para seguir a linha atual: isso pela
óbvia razão de que, mesmo uma modificação dessa linha, desfavorável necessariamente aos que hoje se
beneficiam com ela, não poderia certamente satisfazer a todos os setores que atualmente se lhe opõem.
Em particular, se a principal causa de alarme é a progressiva desnacionalização da economia brasileira,
qualquer política dirigida no sentido de frear esse processo não poderia, ao mesmo tempo, aumentar o nível
de renda das camadas médias e populares urbanas; nessas condições, é mais que compreensível a
resistência a restituir-lhes qualquer liberdade de decisão política.
Para a economia da América Latina, o problema reside em sair da estagnação, apesar da diminuição
dos recursos provocada pela própria estagnação.

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