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DOI: 10.1590/s0103-4014.2022.36105.

009

Domínios armados
e seus governos criminais –
uma abordagem nã o
fantasmagó rica do “crime
organizado”
JACQUELINE DE OLIVEIRA MUNIZ I
CAMILA NUNES DIAS II

Crime organizado: decifra-me ou te devoro,


uma problematização introdutória

N
dossiê Crime Organizado, realizado pela revista Estudos
O pRIMEIRO
Avançados 61, Muniz e Proença Jr. (2007) já chamavam a atençã o para
o fato de que essa categoria ilude mais do que esclarece sobre os
fenô menos
que circunscreve. Corresponde a uma palavra-performance que cria um efeito de
realidade no ato mesmo de sua enunciaçã o. Serve como uma categoria-exílio,
uma espécie de depó sito de fragmentos empíricos, de conjecturas, prescriçõ es
político-jurídicas e raciocínios hipotéticos que conjugam achados de pesquisa
com os achismos do senso comum.
Crime organizado aparece no debate pú blico como uma categoria em
dis- puta por uma unidade classificató ria no universo acadêmico e por uma
hege- monia tipoló gica no mundo das políticas pú blicas de segurança. A
ausência de consensos científico e normativo possibilita acordos técnicos e
procedimentais, mais ou menos tá citos, de seu conteú do arrolado. Revela-se
que o tal crime organizado é um arquivo cumulativo e provisó rio de
presunçõ es, prescriçõ es e prospecçõ es aberto ao devir das experiências sociais,
políticas e institucionais em um dado contexto histó rico.
Há que problematizar essa nomenclatura e seu rendimento explicativo,
diante do á lbum de evidê ncias empíricas disponíveis e do acervo crítico da
pro- duçã o acadê mica recente (Salla; Teixeira, 2020). Ela possui um forte apelo
mi- diá tico e político-jurídico que produz efeitos sobre as representaçõ es e
prá ticas sociais sobre o crime, a violência e a insegurança, independentemente
do que seja capaz de esclarecer sobre grupos que atuam nos mercados ilícitos
e que sã o definidos e/ou auto identificados como criminosos.
A classificaçã o de crime organizado tem sua origem na tradiçã o da crimi-
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nologia norte-americana e constitui-se num fenô meno empírico-terminoló gico
do século XX. Nesse sentido, seria inú til buscar raízes histó ricas anteriores
por-

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que implicaria negar alguns aspectos fundadores do pró prio termo: a
estrutura empresarial e o mercado ilícito contemporâ neos. Para Zaffaroni
(1996) crime organizado nã o compreende qualquer composiçã o de agentes ou
associaçõ es com fins ilegais anteriores à emergência do capitalismo. Mas essa
subordinaçã o à ló gica capitalista de mercado, ao mesmo tempo que põ e em
relevo a compo- siçã o de interesses e seus cá lculos utilitá rios, encontra problemas
na inclusã o de grupos de origem pré-capitalista atravessados por atributos
tradicionais e mo- dernos como as má fias e que, paradoxalmente, sã o usados
como modelos de cri- me organizado. Segundo Paoli (2002), essa
incongruência descritivo-funcional é suficiente para ilustrar a inconsistência
conceitual decifrada do crime organi- zado, mas que se sustenta como uma
emblemá tica metá fora a devorar mentes astutas e agradar coraçõ es aturdidos.
A alegoria crime-organizado segue, como um ajuntamento de ó rgã os sem
corpo, vivificando o nosso imaginá rio social, animando as coberturas jornalís-
ticas, justificando exercícios heterodoxos dos poderes de polícia e jurisdicional
e, ainda, legitimando políticas restritivas de direitos. Trata-se de uma
categoria-
-índice cujas abertura e maleabilidade para justapor sucessivos qualificativos pos-
sibilitam apropriaçõ es particularizadas para cada novo episó dio jurídico-policial
e midiá tico que se candidata a mais um “caso de repercussã o”. Cria a exempla-
ridade de casos típicos que desafiam a lei, mobiliza cruzadas morais e soluçõ es
políticas anticrime e produz um efeito de controle da criminalidade violenta ao
estigmatizar, além dos sujeitos, as pró prias relaçõ es sociais e os lugares por onde
estes transitam (Muniz; Cecchetto, 2021).
Tal como manobrado nas narrativas do senso comum midiá tico-político-
-policial, a categoria crime organizado mesmo que nã o permita compreender
a pluralidade de seus agentes, a distinçã o dos seus arranjos organizacionais, a
diversidade de seu funcionamento, a diferenciaçã o das suas territorialidades, a
multiplicidade do mercado de bens e serviços, aponta para um repositó rio ex-
pressionista de aspectos sensíveis identificados no trabalho investigativo policial
e/ou jornalístico que servem para apontar os corpos e as coisas processados
e apreendidos pelo sistema de justiça criminal. Alguns dos aspectos que, por
recorrência e reiteraçã o, fazem parte do seu descritivo sã o: 1) a estrutura de-
rivada do que é visível (a boca de fumo) e do que aparenta trabalho conjunto
(os seus integrantes); 2) a comercializaçã o de bens ilegais, sobretudo drogas
e armas cujos fornecedores e seu delivery sã o misteriosos; 3) a natureza or-
ganizacional criminosa distinta de empresas legais que cometem crimes; 4) a
composiçã o por criminosos de carreira e de origem subalterna; 5) enraizamento
em espaços populares; e 6) participaçã o de agentes estatais. Tal somató rio de
elementos comporia um rentá vel amontoado seletivo e episó dico que é
ficciona- do e desvendado pelos dispositivos repressivos do Estado. Têm-se tantos
crimes organizados quanto os casos policiais, as coberturas jornalísticas e os
processos judiciais construídos e veiculados.

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A pró pria definiçã o legal de crime organizado, no Brasil, torna-se refém,
causa e efeito da construçã o desse ornitorrinco tipoló gico. Isso amplia a inse-
gurança jurídica por abrir uma enorme avenida interpretativa para as decisõ es
discricioná rias e invisíveis dos operadores do sistema de justiça e segurança, fa-
zendo prosperar ativismos policiais e judiciais que sabotam preceitos constitu-
cionais e o devido processo legal. De acordo com a Lei n.12.850, de 2.8.2013:
§ 1º Considera-se organizaçã o criminosa a associaçã o de 4 (quatro) ou
mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de ta-
refas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indire-
tamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prá tica de infraçõ es
penais cujas penas má ximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que
sejam de cará ter transnacional.
A definiçã o legal de “organizaçã o criminosa” é tã o vaga que a sua impre-
cisã o normativa impossibilita a autolimitaçã o do ius puniendi estatal. O direito
do Estado de punir se torna tã o ilimitado quanto o arrolamento de atributos
identificá veis para justificá -lo. Um dos problemas críticos da caracterizaçã o da
“organizaçã o criminosa” é a comprovaçã o de uma associaçã o efetiva entre
seus membros: o animus (intençã o de agir conjuntamente) e a affectio
societatis (rea- lizaçã o do ato conjunto) criminosos que delimitariam a
cobertura punitiva. Mas que diante da inconsistência classificató ria favorece a
produçã o de sobrealcances incriminató rios no afã de colocar, além de
indivíduos, um ente imaterial e intan- gível, as pró prias interaçõ es sociais, no
banco dos réus.
O empreendimento moral de produzir um efeito de puniçã o e detençã o
do coletivo requer uma manobra contá bil e habilidosa de quantificar
qualificati- vos entre “4 ou mais pessoas”. Na prá tica, isso confere estatuto de
realidade fá - tica e prova legal à s categorias nativas: “organizaçã o paramilitar”
“milícias”, “es- quadrã o”, “família” ou outros apelidos saídos dos relatos
policiais-jornalísticos. Como a listagem é, por natureza, nominalista,
cumulativa e aberta, coloca-se como recurso substituto e conclusivo a palavra
genérica “grupo” (qualquer um) desde que nele se atribua a “finalidade de
praticar crimes”. Vê-se um movimen- to normativo subordinado a alguma
forma (i)legal e (i)legítima de delaçã o. Esse requer tanto a confissã o direta
pela autoidentificaçã o ou uma autodeclaraçã o incriminató ria quanto a
confissã o indireta oferecida pelo discurso midiá tico e, sobretudo, a tipificaçã o
criminal exterior feita pelos agentes de controle social.
Diante das ambivalências presentes na expressã o “crime organizado” e das
dificuldades para operacionalizá -la na aná lise de fenô menos concretos, optamos
por adotar a conceituaçã o de “domínio armado” (Muniz; Proença Jr., 2007;
Miranda; Muniz, 2018) e suas manifestaçõ es como “governo criminal” para
problematizar as formas de gestã o dos territó rios e populaçõ es e os modos de
regulaçã o de mercados que podem ser observados no Brasil, e que apresentam
formas de atuaçã o e de representaçã o singulares em diferentes localidades. A no-
çã o de domínio armado vincula diretamente a discussã o dos governos

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criminais

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ao campo da soberania e, portanto, à problemá tica teó rica clá ssica da ambiçã o
de monopó lio estatal da violência física legítima e as formas que ele (nã o)
assu- me no Brasil (Adorno; Dias, 2014).
Compreendem-se por domínio armado os grupos ou redes que exercem
controle territorial armado e regulam atividades econô micas ilegais e irregulares,
em um territó rio específico, fazendo uso da coaçã o violenta como principal re-
curso de sustentaçã o de seu governo criminal. Sua natureza instá vel, provisó ria e
fluida demanda disputas continuadas e concessõ es pactuadas entre atores crimi-
nais e destes com agentes estatais (Muniz; Proença Jr., 2007; Miranda; Muniz,
2018). O domínio armado como manifestaçã o de um governo autô nomo em
conflito latente com outros concorrentes (“trá fico” e “milícias”) e em confronto
amistoso e transacionado com o Estado (polícias, políticos e burocratas) possi-
bilita apreender as articulaçõ es entre os fins de sua política, as estratégias de seus
negó cios, as tá ticas comerciais de suas competiçõ es e as necessidades logísticas
de sustentaçã o territorial (Miranda; Muniz, 2018).
Busca-se pô r em evidência o que se considera indispensá vel para a ambiçã o
de soberanias sobre territó rio e populaçã o que instrumentalizam a pretensã o de
monopó lios na criaçã o e regulaçã o de mercados ilícitos: os processos de domina-
çã o que possibilitam a constituiçã o de uma economia política ilegal, translocal,
itinerante e em rede. Trata-se de trazer as relaçõ es de poder de volta ao centro
da discussã o sobre os tantos crimes organizados assim nomeados, compreen-
dendo que as suas racionalidades econô micas sã o antes expressõ es da política
em suas paixõ es e interesses. Procura-se resgatar o complexo e decisivo lugar do
Estado na produçã o de inputs político-criminais como o policiamento reativo-
-repressivo e o encarceramento massivo que incrementam a constituiçã o e a ma-
nutençã o de governos criminais relativamente autô nomos (Muniz; Cecchetto,
2021; Dias, 2013). Dadas as mú ltiplas possibilidades empíricas existentes, ire-
mos considerar somente ilustraçõ es dos casos de Sã o Paulo e do Rio de
Janeiro. O objetivo deste artigo é contribuir para a compreensã o das ló gicas
de controle de territó rios e de regulaçã o dos mercados estabelecidos por
atores criminais no Brasil, sublinhando singularidades desses e das suas
governanças a partir de seus repertó rios discursivos-normativos e das bases nas
quais apoiam o exercício de seu poder. Nesse exercício analítico,
problematizam-se alguns “mi- tos” que se constituíram na abordagem do
crime organizado evidenciando que na emulaçã o de um Estado Policial que
instaura a insegurança como projeto de poder, o medo como regime e a
exceçã o como regra, governa-se com o crime organizado e nã o contra ele.
Essa proposta analítica se coloca como alternativa a construtos teó ricos-
abstratos distanciados dos fenô menos empiricamente veri- ficáveis e da pró pria
expressã o crime organizado. Trata-se de uma contribuiçã o que se pretende
analítico-teó rica, mas que tem como substrato as realidades nos territó rios
concretos onde se produzem, nos seus efeitos sobre as comunidades
e que atravessam a vida das pessoas reais que por ali circulam e vivem.

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Veja-me como quero ser visto:
narrativas nativas do “crime organizado” e suas serventias
Brodeur (2002) chama a atençã o para o cará ter paradoxal do objeto de-
nominado crime organizado que, impossível de ser empiricamente observá vel,
constitui-se em produto de um saber prescritivo que se apoia em juízos
morais, registros seletivos, testemunhos parciais, relatos indiretos; enfim,
fundamenta-se em seleçõ es arbitrá rias de dados enviesados de segunda e
terceira mã os. Uma das razõ es da pobreza desse saber é a ausência de pesquisas
empíricas, sendo a maioria dos estudos derivados de fontes policiais e/ou
jornalísticas.
Os dossiês policiais sã o resultantes de distintos níveis de discricionariedade
cujas filtragens nã o sã o convergentes entre si. Essas vã o da demanda do
cidadã o delator, passando pela avaliaçã o do policial, chegando até as prioridades
organi- zacionais da polícia, do governo e de suas bases de apoio. A produçã o
de infor- maçõ es policiais fala mais do trabalho policial que se quer realizado,
legitimado e publicitado do que das realidades submetidas aos processos
policiais de relato e registro. Muito do que faz a “imprensa investigativa” é
dependente das “fon- tes oficiais” e privilegiadas, vindas da polícia, o que
introduz um filtro a mais na coleta e tratamento das informaçõ es, além da
seletividade exercida pelo repó rter, redaçã o e editoria. Constroem-se
levantamentos policiais-jornalísticos que nã o sã o pesquisas estrito senso, a
serviço das ló gicas persecutó ria do sistema criminal e repercussiva da
construçã o da verdade noticiada das mídias (Muniz, 2021).
Nã o há um corpo de conhecimento sobre crime organizado que seja coe-
rente e amarre um consenso sobre seus atributos classificató rios. Vê-se a prolife-
raçã o de realidades ficcionais, sensacionalistas sobre crime organizado dissocia-
das das suas realidades concretas e possibilidades reais de atuaçã o. No â mbito
acadêmico, ora se superestimam, ora se subestimam os domínios armados e
suas formas mó veis de governo sobre territó rios e populaçõ es, optando-se,
por exemplo, pelo uso da expressã o “gestã o de ilegalismos” (Telles; Hirata,
2010; Salla; Teixeira, 2020). Essa desloca o cerne do problema do ator
criminal para o ator estatal em abstrato, avançando pouco na compreensã o do
problema em suas manifestaçõ es concretas nos territó rios onde eles se
encrustam.
Tem-se nas narrativas policiais e jornalísticas a tomada tendenciosa de um
partido: a defesa da sociedade contra o crime que, na sua pedagogia discursiva
de reprovaçã o moral das prá ticas delitivas, censura e silencia características im-
portantes do “mundo do crime” de interesse para a pesquisa. Há uma constru-
çã o apofá tica do universo criminal reconstruído por fatos sob sançã o. Os ritos
da reportagem guiados pelos rituais da açã o policial dã o vida e reforçam mitos
sobre o crime organizado que conferem mérito, prestígio e privilégio aos seus
operadores que se tornam “arquivos” ambulantes ou “tudó logos” que sabem
tudo sobre a vida do crime.
Sã o diversas as fabulaçõ es que atendem a projetos de poder e à
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manuten- çã o de status quo nas agendas de segurança pú blica. A veiculaçã o
substantivada

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dos domínios armados como uma “firma” é uma delas. Ao reduzi-los à sua fun-
çã o econô mica mascaram-se os atributos políticos, sociais e culturais de sua con-
figuração que apontam para relaçõ es de convivência, conveniência e
conivê ncia com o Estado e com a sociedade.
O jargã o “firma”, usado por membros de grupos armados, comunica uma
atividade laboral lucrativa e um modo de legitimaçã o. Toma-se a categoria na-
tiva ao pé letra para dar vida à falsa analogia com um poderoso Crime S/A ou
com um CNPJ criminoso como uma grande corporaçã o. Esse nativismo des-
critivo serve como publicidade criminal, indispensá vel ao efeito de dominaçã o
dos grupos armados para se mostrarem mais fortes do que sã o. Vivifica-se
uma moralidade beligerante que autoriza uma guerra (comercial) contra o crime
feita pelo Estado Policial. Isso chancela a negociaçã o de armistícios provisó rios
com a oferta política de uma paz pontual do arrego durá vel até a pró xima
extorsã o. No discurso aparente faz-se a guerra para conter o “avanço do crime
organiza- do”, reduzir o “aumento do (seu) poderio bélico” divulgado como
maior que o Estado e para frear uma “grande ameaça a soberania nacional”. No
discurso pro- fundo faz-se a guerra para se obter mais cheques em branco
para despachantes do poder de polícia e novas procuraçõ es em aberto para
representantes dos man- datos pú blicos. Uns e outros, com elevada autonomia e
baixa governabilidade, redimensionam contratos de concessã o de territó rios e
renovam os “alvará s” do funcionamento das firmas criminais (Muniz, 2021).
A narrativa do crime-firma põ e em relevo a sua cara metade, a de um
“es- tado paralelo” prepotente que emerge dos grupos criminosos para
“desafiar o Estado ausente” nas intituladas “comunidades carentes” de rei, lei e
ordem. A ideia de um Estado evoca uma burocracia profissional e está vel que
exerce au- toridade també m está vel sobre uma sociedade politicamente
organizada. Nada mais distante dos domínios armados que exercem governos
criminais que se be- neficiam das tecnologias da estatalidade e suas prá ticas de
autoridade (Miranda; Pita, 2011) para existirem. A fantasia purista de um
Estado criminal que funcio- na em paralelo ao Estado formal e que é, ao
mesmo tempo, uma empresa, quer fazer crer na existência de um mundo
criminoso à parte sem articulaçõ es com poderes e mercado formais. A
autossuficiência criminosa como Estado-firma sobre um territó rio oculta as
inter-relaçõ es entre os domínios armados (trá fico e milícia) e as estruturas do
Estado e do mercado. Eleva també m o status do inimigo e o seu
reconhecimento como um antagonista que faz jus à construçã o política de um
estado de guerra continuado para sustentar um estado de sobre- vivência que
promove a conversã o das polícias em autarquias sem tutela, recon- figura os
contratos informais de exploraçã o de territó rios populares e renova os termos de
funcionamento dos mercados ilícitos (Muniz; Proença Jr., 2007). De bandos,
bondes e quadrilhas desorganizados chega-se, por esta narrativa, ao “Estado
empresarial” parceiro dos poderes pú blicos que organizam o crime na
implementaçã o da política econô mica da (in)segurança pú blica.

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As generalidades que a expressã o crime organizado produz obscurecem
os sentidos da autonomeaçã o dos grupos criminosos e as pistas analíticas so-
bre o exercício armado de seus domínios político-econô micos. “Facçã o” e “co-
mando” sã o alegorias nativas, sensíveis e prescritivas, manobradas por detentos,
autoridades e mídias que afirmam poderes, legitimam tipos de autoridade, rei-
vindicam posses e, assim, seus regimes de verdade. Indicam formas de poder
armado, direto ou indireto, que comunicam modos distintos de exercer gover-
no criminal. Para Muniz (2021) a “facçã o” sinaliza uma pretensã o de unidade
tá tica de propó sito e açã o, explora a fragmentaçã o com alianças provisó rias e
instáveis, reconhecendo a existência de antagonistas e a pertinência de disputa
por supremacia econô mica no territó rio. E o “comando” indica uma ambiçã o
de unidade política de propó sito e açã o, explora a concentraçã o do mando e
a centralizaçã o decisó ria com sujeiçã o e assimilaçã o de rivais, reconhecendo a
pertinência de disputa por hegemonia política no territó rio. As duas categorias
tratam de modos de governar, atuando na construçã o e regulaçã o de merca-
dos ilícitos e nas suas interfaces com os poderes pú blicos constituídos.
Facçõ es, comandos, milícias, firmas e famílias sã o variaçõ es empíricas do
mesmo tema conceitual: domínios armados e seus dispositivos de
governabilidade no plano local. Os mitos de sua origem e reputaçã o, apoiados
nos seus ritos de afirmaçã o política de autoridade e de negociaçã o comercial
de seus interesses, configuram modos específicos de exercício de governança
criminal.
PCC e milícias: mitos de origem e seus ritos de legitimação
Checcheto, Muniz e Monteiro (2020) enfatizam que nem sempre fica cla-
ro o que sã o as teorias nativas que os grupos criminosos constroem para afirmar
suas identidades, e o que sã o as construçõ es analíticas que visam compreender
as narrativas destes grupos e suas prá ticas. Os trabalhos de Muniz e Proença
Jr. (2007), Dias (2013), Feltran (2018), Cano e Duarte (2012) e Alves
(2020) trazem achados que permitem reconstruir os discursos que o PCC e as
milícias constroem sobre si, a vivificaçã o de seus mitos de origem e as formas
como sã o justificados seus rituais ou “modos de proceder”. Permitem perceber
como as explicaçõ es sobre o PCC e as milícias seguem coladas à s suas
estratégias legiti- madoras, arriscando-se a validar o modo como esses domínios
armados querem ser representados e reconhecidos em contraste com outros
arranjos criminosos. Aqui problematizam-se essas construçõ es híbridas nas quais
se misturam repre- sentaçõ es sociais e conceituais.
• PCC, da firma ao governo: uma irmandade empreendedora?
A narrativa do PCC sobre si permite refletir sobre os dispositivos coer-
citivos (nã o) estatais, (i)legais de controle e regulaçã o de pessoas, territó rios e
mercados, suas composiçõ es, relaçõ es e implicaçõ es no cotidiano da segurança
pú blica. O PCC divulga o seu “mundo do crime” como algo ú nico.
Apresenta-
-se como um ente independente e horizontal em sua composiçã o feita por ban-
didos da periferia batizados de “irmã os”, sem conexõ es para o alto da burocracia

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estatal e para cima com os grupos de poder econô mico (Cecchetto; Muniz;
Monteiro, 2020). Mostra-se como uma agremiaçã o coesa, com uma unicidade
de princípios e verticalizada em sua orientaçã o (Dias, 2013). Aparece, no seu
lugar de fala, como uma fraternidade igualitá ria que se move por laços de respei-
to, lealdade, solidariedade, e se afirma como livre para se organizar em células
autô nomas (Feltran, 2018).
A narrativa do PCC sobre si busca legitimar sua atuaçã o prometendo
igualdade e justiça entre seus integrantes. Pretende produzir engajamento dos
sujeitos enquanto um “comando” que se afirma como unidade centralizadora
que unifica rivais pela sujeiçã o, impondo monopó lio político de mercado no
ter- ritó rio. A produçã o de hegemonia é narrada a partir da transmissã o de
conheci- mentos, comportamentos e dos pressupostos éticos da tal irmandade.
Tudo sob o manto da conscientizaçã o do bandido convertido em “irmã o”,
transmitida repetidamente através da via oral e numa profusã o de registros
escritos (Dias, 2013; Manso; Dias, 2018; Miranda; Muniz, 2018).
Nos territó rios “pacificados” das prisõ es e periferias de Sã o Paulo, o go-
verno do PCC é exercido de forma nã o ostensiva, com o recurso de força ma-
nobrado de forma indireta. A capacidade impositiva dada pelas armas é mantida
como potencial, cuja justificativa é a da desnecessidade de sua ostentaçã o em
razã o do suposto conhecimento que a comunidade policiada pelo PCC, na qual
se incluem bandidos autô nomos, tem sobre o (agir) “certo”. A sua hegemonia
no mundo do crime aparece no discurso nativo como uma vantagem para
todos (polícia, moradores e criminosos) já que minimiza a possibilidade de
ataques de rivais garantindo a manutençã o das rotinas de quem pertence,
circula ou traba- lha nos mercados ilegais nestes espaços populares. O controle
do territó rio soa imperceptível para quem nã o tem os olhos atentos aos
olhares vigilantes que acompanham as circulaçõ es e movimentaçõ es nestes
espaços.
Além das teias de vigilâ ncia horizontalizada compostas por olheiros in-
tegrantes do PCC, moradores e agentes pú blicos, tem-se a instituiçã o de um
procedimento ritualístico para a discussã o sobre os problemas que emergem nas
“quebradas” e a deliberaçã o por meio do “debate”, denominado pela imprensa
de “tribunal do crime” e que na comunicaçã o local se conhece como “ir pras
ideias”. Cabe a uma junta governamental com atuaçã o na localidade e que pode
envolver indivíduos que estã o dentro do sistema prisional, proferir decisõ es que
implicam puniçã o violenta. Reafirma-se a posiçã o do PCC como um modo de
governo sobre territó rio e populaçã o, como uma instâ ncia de administraçã o de
conflitos e, neste sentido, de “pacificaçã o” para dentro do “mundo do crime”
que reforça e legitima o exercício de seu monopó lio (Dias, 2013; Feltran, 2008;
Ruotti, 2016; Muniz, 2021).
O PCC, como uma expressã o do mercado, oculta o conflito e, como
uma projeçã o de governo, invisibiliza as disputas violentas por poder entre seus
mem- bros e os acordos políticos com atores estatais e privados (Cecchetto;
Muniz;
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Monteiro, 2020). A paz em Sã o Paulo contrasta com a guerra em territó rios
e em mercados nos quais o Comando paulista nã o tem hegemonia e os quais
disputa com comandos rivais o controle dos mercados e do territó rio (Manso;
Dias, 2018). O discurso da guerra é elaborado mediante tá ticas de legitimaçã o
nas quais o PCC reclama uma forma de fazer o crime que seria superior aos
dos demais grupos, que é inscrita como o “crime verdadeiro” ou “o crime pelo
cer- to”. A construçã o da hegemonia do PCC é elaborada através de um
“consenso” impositivo que bloqueia e elimina o dissenso (Dias, 2013).
A sociologia nativa que emerge dessa saga discursiva é evolucioná ria-de-
senvolvimentista e sobrevaloriza as virtudes da iniciativa privada em relaçã o as
iniciativas pú blicas. A modernidade do PCC é veiculada na aposta moral no
mercado (ilícito) como um ente superior em fins, meios e modos ao Estado
situ- ado como dé bil e ausente. Mais que um Estado mínimo nos lugares com
pontos comerciais ilícitos, a narrativa neoliberal do PCC deixa entrever a
existência de um Estado ínfimo, incapaz de garantir soberania sobre territó rio
e populaçã o e de produzir regulaçã o sob o mercado (Cecchetto; Muniz;
Monteiro, 2020). Na epopeia discursiva do PCC depreende-se um estado
necessitado de uma parceria pú blico-privado com o crime para gerir territó rios
e populaçõ es sobre os quais teria uma espécie de terceirizaçã o da soberania de
territó rios pobres e periféri- cos, incluindo os territó rios estatais, como as
prisõ es (Dias, 2013).
Constró i-se e veicula-se uma visã o que subestima os dispositivos estatais
de força, suas ló gicas em uso nos processos institucionais, informais e mesmo
ilegais de produçã o de controle e regulaçã o (Muniz, 2021). Nas falas do PCC, a
polícia, assim como toda a má quina coercitiva estatal, além de indistinta, aparece
reduzida a policiais avulsos com os quais se negociam os “alvará s” para manter a
“loja” aberta (Muniz, 2021). Se o PCC aparece como uma agremiaçã o pacífica
e organizada, a polícia, a política em armas e o Estado na “quebrada”, é repre-
sentada como um amontoado de agentes violentos e corruptos dispostos a
fazer negó cios com o crime. Os agentes estatais aparecem só no varejo como
subal- ternos, e nã o como parceiros, prestadores de serviço, só cios ou mesmo
patrõ es (Muniz, 2021). Nota-se um esforço retó rico criminal e jornalístico-
policial de ocultar o lado Estado e publicitar o lado empresa do PCC.
Conforme ressaltam Cecchetto, Muniz e Monteiro (2020), a teoria nativa
do PCC, um arranjo criminoso nascido nas prisõ es de Sã o Paulo (Adorno; Salla,
2007; Dias, 2013; Biondi, 2010), apropria-se do mito de origem dos bandeirantes
em sua versão heroica. A simbó lica das Bandeiras retrata Sã o Paulo como a
fonte de desenvolvimento e de progresso que se irradiaria por todo territó rio
brasileiro, forjando um sentido comum de nacionalidade a partir do ethos paulista
empreen- dedor e resistente. As representaçõ es pujantes do bandeirantismo
retratam uma saga pioneira do povo paulista que “traz no sangue” o destemor
para desbravar divisas e o empreendedorismo para explorar riquezas. Essas
imagens têm sua sig- nificação manobrada na narração civilizató ria do PCC que
ambiciona hegemonia

1 ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105),


política pela extensã o de suas fronteiras, unidade de governo pela assimilaçã o de
grupos oponentes e o monopó lio no controle dos mercados ilícitos. A
antropolo- gia nativa do PCC traz um olhar bandeirante, etnocêntrico, que
reproduz a cren- ça de que a “terra do trabalho” (legal e ilegal) conduz o
Brasil, ilustrando uma concepçã o socioló gica dos “Anos Dourados” de que a
interpretaçã o do Brasil viria do Sudeste, a regiã o mais rica do país (Cecchetto;
Muniz; Monteiro, 2020). Diferentemente do Rio de Janeiro, o PCC tem um
papel explícito na ges-
tã o nas políticas de segurança de matriz repressiva em Sã o Paulo, cumprindo
um lugar estratégico numa equaçã o funcional e perspicaz: o governo aumenta
o nú mero de presídios e suas populaçõ es vinculadas ao PCC e, em
contrapartida, o Comando “organiza o crime” e reduz mortes violentas que
promovem o agra- vamento do temor com impactos negativos para atores
políticos que desejam a reeleiçã o para mandatos majoritá rio e proporcional. A
populaçã o prisional serve como uma commodity política negociada de fora para
dentro e uma mã o de obra “uberizada” de dentro para fora. Nessa
circularidade retroalimentadora, os pre- sos e egressos enredam-se nas teias dos
governos criminais e da sua regulaçã o de mercados ilegais. Assim se conectam as
prisõ es à s periferias urbanas, garantindo produçã o, reproduçã o, fortalecimento
e expansã o do PCC com suas diversas conexõ es com os atores estatais (Dias;
Ribeiro, 2019).
Tem-se uma constelaçã o de elementos que favorecem que a irmandade
empreendedora do PCC participe da manutençã o das hegemonias políticas (in)
formais que governam repressivamente com o crime. Essas estruturam uma
di- nâ mica social e criminal em que os homicídios perdem espaço e
visibilidade conquanto os crimes mais complexos e que demandam maior
organizaçã o ope- racional e de pessoal, e manejo de armamentos e explosivos
– roubos de cargas, instituiçõ es financeiras, por exemplo – se deslocam para
uma posiçã o de maior centralidade (Dias, 2013).
• Milícia, do governo a firma:
um liga comunitária de autodefesa contra o crime?
A construçã o narrativa da milícia tem a sua inscriçã o no campo discursi-
vo da “guerra contra o crime”, inaugurada no governo Alencar (1995-1998)
servindo-lhe como mais um dispositivo de validaçã o de sua verdade política e
de sua necessidade econô mica no Rio de Janeiro (Muniz; Cecchetto, 2021). É
no contexto da produçã o político-econô mica da ficçã o de uma guerra transfor-
mada em realidade-testemunho, vivida de dentro nas periferias, e em realidade-
-espetá culo, sentida de longe nos bairros nobres, que se tem a emergência do
que se chama milícia no final da década de 1990. Essa foi apresentada como
uma força a se somar na luta contra o estado de insegurança constituído e
alimentado por governos eleitos que atuam em consó rcios informais, por
vezes pú blicos e transitó rios, com arranjos privados e (i)legais de proteçã o nos
quais a milícia é uma das variantes e atual protagonista dos domínios armados
na regiã o metro- politana do Rio de Janeiro (Muniz; Proença Jr., 2007).
ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105), 2022 13
A milícia, como a “polícia de operaçõ es”, ambas substitutas dos policia-
mentos pú blicos ordiná rios e convencionais (Muniz, 2021), tem o ilusó rio cri-
me organizado como seu antagonista e o seu enfrentamento como
estruturante das suas retó ricas legitimató rias. É na promoçã o da insegurança
como projeto de poder que se foram instituindo no Rio os regimes do medo que
instrumentali- zam como rotina as prá ticas de exceçã o realizadas pelas polícias,
milícia e trá fico (Muniz; Cecchetto, 2021). O “tiro, porrada e bomba” torna-se o
mote publi- citá rio do marketing do terror vivificado nos confrontos armados
entre as forças do Estado e do crime, com a delicada ressalva de serem
situados nas subalter- nidades, mas dramatizados sob a forma de percepçã o
generalizada insegurança para todos os eleitores fluminenses.
A categoria milícia surge como um contraponto policial-jornalístico ao trá -
fico, erigido como a grande ameaça à sociedade e, por isso, o “Inimigo Pú blico
Nú mero 1” dos seus rivais aparentes e de ocasiã o, milicianos e policiais. É uma
categoria engenhosa cujas manobras simbó licas lançam mã o de seu conteú do
tradicional para construir uma imagem positiva, distinta do trá fico e anticrimi-
nal. Nas propagandas milicianas, dissolvidas nas coberturas discursivas policiais-
-midiá ticas, a milícia seria um grupo de cidadã os comuns armados, dentre eles
os agentes da lei, indignados com a “situaçã o da insegurança”, que se organi-
zaram (ou nã o) em moldes paramilitares para defenderem uma causa justa, a
suas vidas e suas posses, de seus familiares e afins postos em risco pela “falta de
resposta firme do poder pú blico”. A presença de PM, bombeiros e militares
regulares, também moradores, na linha de frente de sua criaçã o e gestã o, fazia
parte dos anú ncios político-publicitá rios e acreditava-se agregar mais um quan-
tum de credibilidade fundacional atribuída a esses grupos criminais que
diziam “combater o crime” e “nã o permitirem o trá fico na regiã o”. No início de
2000, os policiais milicianos funcionavam como garotos propaganda das
milícias que davam garantias de vitó ria na luta do bem contra o mal
teatralizada na guerra à s drogas. Ocultavam-se os lados firma e governo das
milícias, em favor de sua fachada como um modo particularizado de presença
do Estado por meio de seus integrantes armados.
O mito de origem das milícias traz um constructo discursivo que a
institui e a propaga como “ligas de autodefesas comunitá rias” que seriam
“legítimas” diante de sua causa superior e “legais” porque fariam uso do
trabalho de agentes da lei que tem a missã o institucional de “defenderem a
sociedade com suas vidas mesmo na folga”. Os “bicos” policiais prestados no
serviço individual varejista da vigilâ ncia informal e, sobretudo, realizados no
atacado dentro das pequenas firmas clandestinas e nos coletivos milicianos
foram tratados como um “mal menor” diante da evocaçã o da “grave crise da
segurança no Rio”, um á libi reno- vado a cada novo episó dio da mesma guerra
feita para renegociar a paz dos acor- dos com os domínios armados. As taxas de
proteçã o eram apresentadas como uma retribuiçã o social por um trabalho
missioná rio e voluntá rio que, apesar de

1 ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105),


ilegal, atendia à s demandas comunitá rias por segurança. Servia como uma forma
digna e honesta do policial complementar o seu salá rio e nã o servir ao trá fico.
Da fantasia da autovigilâ ncia comunitá ria até a anunciaçã o como uma fir-
ma ilegal que extorque moradores e comerciantes locais, a narrativa sobre as
milícias segue se desviando do seu lugar como um tipo de domínio armado que
se institui como um governo criminal que, sob coaçã o direta e indireta,
controla territó rio, administra populaçã o e regula mercado (i)legal de bens e
serviços pú - blicos essenciais como vigilâ ncia, moradia, transporte urbano,
energia elétrica, gá s, internet, TV a cabo e tudo mais que a hegemonia sobre
territó rio e popu- laçã o possibilite. As milícias trazem uma superioridade
político-organizacional em relaçã o aos arranjos criminais do trá fico por sair de
dentro da estrutura do Estado e contar com suas redes de agentes pú blicos
como parceiros dentro das engrenagens pú blicas estadual e municipal. Esse é o
seu principal capital político na relaçã o com o Estado em contraste com o PCC
que tem na gestã o dos fluxos de bandidos desde as prisõ es o seu principal
patrimô nio de negociaçã o.
A leitura ilusó ria das milícias em oposiçã o moral ao trá fico de drogas segue
reciclada já que a narrativa policial-midiá tica esculpe o termo “narco-milícia”,
uma justaposiçã o de itens à moda cumulativa da noçã o de “crime organizado”,
para explicar a recente criaçã o do Complexo de Israel, comandado pelo trafi-
cante Peixã o que se autodenomina Arã o e que unificou as comunidades Cinco
Bocas, Pica-Pau, Cidade Alta, Vigá rio Geral e Parada de Lucas, na Zona Norte
do Rio, como uma populaçã o estimada em 134 mil moradores. Esse compre-
ende um arranjo entre milicianos, traficantes e policiais sob a bençã o de
alguns religiosos que se intitulam pastores evangé licos (Muniz, 2021). Tem-se
uma cla- ra ilustraçã o de um domínio armado que afirma sua hegemonia como
governo criminal, por meios coativos violentos, aumentando sua base aliada,
anexando territó rios e populaçõ es, ampliando mercados e, por isso,
diversificando a oferta de bens ilícitos como o ingresso das drogas.
Há alguns elementos empíricos dos domínios armados milicianos que
descortinam as narrativas tolerantes que circulam entre as editorias, as unidades
policiais e os palá cios governamentais e que jogam luz sobre este fenô meno
cri- minal. Os domínios armados milicianos sã o arranjos político-econô micos
locais, daí milícias no plural, estruturados, inicialmente, pelo universo das
praças da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e do Corpo de
Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro e, em menor expressã o da
tiragem da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, que se ocupam das
atividades de policiamento nas ruas e que estavam inseridos na oferta de
serviços (i)legais de segurança à s lide- ranças, comerciantes, políticos e
contraventores locais. Sua fragmentaçã o reflete a divisã o informal do trabalho da
segurança entre a subalternidade policial com suas carteiras segmentadas de
clientes e os representantes dos escalõ es superiores das polícias (oficiais e
delegados) que atendem empresas e celebridades por meio de firmas abertas em
nome de familiares.
ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105), 2022 15
Milicianos nã o estã o escondidos e nem sã o invisíveis. Além de endereço,
trabalho fixo e matrícula pú blica, eles precisam “ter muito trâ nsito” dentro das
repartiçõ es para desembaraçar problemas com a má quina pú blica e viabilizar a
economia política da proteçã o. Diferentemente dos traficantes, cuja circulaçã o
é confinada ao seu territó rio, os milicianos transitam por distintos meios sociais
e entre autoridades, um dos seus indispensá veis recursos políticos. Um outro
aspecto relevante é que os milicianos, como os policiais, têm “tiro certo” – cer-
teiro e legalizá vel pelo poder de polícia – em contraste com o despreparo técnico
na composiçã o e emprego de armamentos pelo trá fico. As milícias trazem uma
expertise na produçã o de proteçã o que aporta mobilidade logística com maior
cobertura armada e ampliaçã o do deslocamento dos traficantes entre territó rios
como reduçã o de gastos de armas e muniçõ es. Em alguns lugares da regiã o
me- tropolitana a segurança dos traficantes foi terceirizada para a milícia que
cobra um percentual sobre o faturamento das bocas. Uma das vantagens desse
acordo é poder contar com o lastro policial que confere maior estabilidade aos
con- tratos feitos. Segundo Muniz e Cecchetto (2021), há relatos de que
algumas operaçõ es policiais sã o feitas em domínios do trá fico para preparar
uma vindou- ra ocupaçã o miliciana. Há relatos de casos em que milicianos
colocam fardas operacionais e vã o na frente das incursõ es policiais, assumindo
a “trocaçã o de tiros” em territó rio que será deles depois das operaçõ es. Há ,
ainda, relatos de milicianos que contam com “reforço” do policiamento
ostensivo em seus do- mínios, com a seçã o de guarniçõ es policiais ou a
prioridade no atendimento do
190. Esses relatos frequentes nã o apontam para uma realidade consumada. Mas
o fato de existirem como relatos possíveis indica a normalizaçã o dessas prá ticas
que configuram expressõ es de governos criminais.
Governança criminal: elementos estruturantes
Propomos o uso da noçã o domínio armado para compreender os governos
criminais em territó rios periféricos em todo o Brasil, focalizando nossa aná lise
nos casos de Sã o Paulo e Rio de Janeiro, que apresentam elementos comuns e
singulares e que nos permitem tecer consideraçõ es que possam validar aproxi-
maçõ es ou distanciamentos com outras realidades no contexto nacional. Do-
mínio armado, uma construçã o de inspiraçã o weberiana, envolve o exercício
da dominaçã o como resultante de embates e acomodaçõ es entre agentes
estatais e criminosos e que, por isso, sã o modos de governo instá veis e
transientes sobre territó rios, populaçõ es e mercados.
Abordar a governança criminal em diferentes regiõ es brasileiras é uma
agenda de pesquisa que poderá contribuir para uma abordagem mais ampla que
se inscreve na América Latina. Alguns pontos elencados por Durá n (2019) e
discutidos por Alvarado (2019) permitem aprofundar os efeitos dos mercados
ilícitos e das dinâ micas criminais locais e regionais. Eles conformam especifici-
dades que estabelecem diferenças nos distintos contextos geográ ficos, nacionais,
culturais, nas posiçõ es que ocupam na produçã o das drogas e outros produtos,

1 ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105),


nas relaçõ es com atores estatais e legais, avançando em termos das abordagens
que ganhem corpo teó rico e analítico.
Durá n (2019) propõ e alguns eixos analíticos para compreender as trans-
formaçõ es dos mercados de drogas e das dinâ micas criminais na América Latina.
Aqui faz-se uso de três desses eixos, situando as conformaçõ es empíricas e teó -
ricas dos casos analisados em Sã o Paulo e Rio de Janeiro, abrindo
possibilidades interpretativas ú teis para compreender a governança criminal em
outros terri- tó rios.
Governança criminal e relações sociopolíticas
Compreender as relaçõ es sociopolíticas que conformam os mercados
ilíci- tos permite apreciar os comportamentos variados dos distintos atores
criminais e civis, as relaçõ es comunitá rias estabelecidas nos territó rios onde a
governança criminal produz efeitos econô micos, políticos, culturais e sociais.
Abordar rela- çõ es no seu conjunto permite entender as esferas da sociedade
que se intersec- tam as atividades ilícitas e a interconexã o entre os agentes
legais e ilegais. Há uma grande variaçã o na forma como os grupos criminais
afetam as comunidades onde estã o situados e no nível de violência que
administram nos territó rios sob seu domínio. Compreender a governança
criminal em sua complexidade teó rica e em suas particularidades empíricas-
concretas, possibilita, por exemplo, situar os impactos da violência potencial e
concreta que resultam da forma como se produzem os (des)arranjos
sociopolíticos entre os atores criminais e nã o crimi- nais.
Há um conjunto de pesquisas que desde os anos 1980 no Rio de Janeiro
(Zaluar, 2004; Misse, 1998) e a partir dos anos 2000 em Sã o Paulo (Feltran,
2008; Telles; Hirata, 2010), apresentam os atores criminais inseridos em com-
plexas redes que envolvem a sociedade civil e o poder pú blico. As suas
posiçõ es acordadas nos negó cios ilícitos, apontam para mú ltiplos papéis
exercidos nas comunidades sob domínio armado, implicando em funçõ es de
governo, como o policiamento, a arbitragem de disputas, a regulaçã o de
mercado, a gestã o de processos eleitorais.
No nível micropolítico, a governança criminal pode impor uma ordem
sob disputa violenta (Machado da Silva, 2008) ou uma ordem pacificada sob
monopó lio, tal como as formas de governança que se produzem no Rio de Ja-
neiro e em Sã o Paulo, respectivamente. Fatores como a força do enraizamento
local, dos vínculos comunitá rios, familiares, religiosos ou sociais, o balanço de
poder entre os grupos criminais, seus acordos e capacidades coercitivas, as rela-
çõ es conflitivas constituídas com os atores estatais, podem explicar as formas de
governança criminal estabelecidas nos espaços populares.
No Brasil, uma especificidade importante é ter na prisã o a base essencial
a partir da qual se tecem e entrelaçam as redes criminais e comunitá rias em
muitos territó rios sob governança criminal, como é mais evidente no caso
paulista. Em quase todos os espaços urbanos brasileiros, há formas estruturadas
de governan-

ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105), 2022 17


ça criminal através de grupos de base prisional, como PCC, CV, GDE e FDN
(Manso; Dias, 2018; Misse, 1999). As dinâ micas de governo criminal sã o distin-
tas nos diferentes estados brasileiros e, como já dito, essas diferenças resultam de
uma complexa combinaçã o de fatores diversos como acima elencados.
Um contraponto a essa governança criminal articulada com o universo
prisional é aquela exercida pelas milícias que, conforme visto, possui outras in-
tersecçõ es com o Estado. Seus principais quadros vêm de dentro das má quinas
pú blicas estadual e municipal, conferindo-lhes vantagens políticas com apoio
de políticos locais e operacionais com o suporte de policiais. Nas milícias, os
agen- tes pú blicos nã o estã o necessariamente na linha de frente, mas seguem
sendo um passaporte para sua constituiçã o e funcionamento.
Nas governanças criminais exercidas por domínios armados, as populaçõ es
civis sã o duplamente coagidas já que se subordinam aos atores criminais e esta-
tais em conflito e/ou em acordo. Em geral, tem-se um reconhecimento forçado
da capacidade da governança criminal prover ordem, garantido as rotinas da vida
comunitá ria, reduzindo a violência ou tornando-a mais previsível. Tem-se um
regime do medo instrumentalizado pela imposiçã o de um domínio armado que
normaliza práticas de exceçã o em seu exercício ilegal e, por vezes, legitimado,
de governo. Entre dois polos extremos – completa aquiescência e o medo
comple- to –, a populaçã o local dispõ e de uma variedade ampla de repertó rios de
resposta ao controle e à violência de grupos armados nã o estatais.
Governo criminal e Estado(s):
um complexo de relações multidimensionais
A governança criminal exercida pelos domínios armados em alguns terri-
tó rios urbanos articula-se à forma normativa-procedimental da gestã o do
Esta- do, ao tipo de política repressiva executada por governos eleitos e ao uso
dos po- deres dos agentes pú blicos nas relaçõ es que estabelecem com os atores
criminais e civis. Essas relaçõ es colocam em relevo a problemá tica weberiana da
pretensã o de monopó lio da força física legítima pelo Estado que nã o se realiza
plenamente (Adorno; Dias, 2014). Isso é suficiente para superar a visã o
comum da ausência ou complacê ncia do Estado nas á reas onde grupos
criminais operam. Têm-se negociaçõ es da presença e da tolerâ ncia estatais em
formas variadas de interaçã o, como a paga de “arrego”, os acordos velados, as
parcerias explícitas e até o que produz indistinçã o do que é ou nã o o Estado,
como na governança miliciana. Observar como as prá ticas estatais e criminais
se entrelaçam e suas serventias é essencial para compreender os efeitos
sociopolíticos das redes criminais e a gestã o de violência nos territó rios. Nã o
há como pensar em economias crimino- sas independentes das políticas
executadas pelas burocracias estatais. A elevada desproporçã o de poder e de
recursos coercitivos entre o Estado e o mercado ilegal faz que grupos
criminosos, em seus distintos níveis decisó rios, tenham que seguir
renegociando com distintas agências de controle, em suas diversas instâ ncias
verticais e horizontais de tomada de decisã o, que nã o começa e nem

1 ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105),


termina na “propina” do guarda da esquina (Muniz, 2021). Daí a caracteriza-
çã o de economias políticas do crime itinerante e em rede nas quais as relaçõ es
com as estruturas estatais tornam-se decisivas. Daí as oportunidades de negó cios
translocais de atores estatais com poderes de polícia (policiais, fiscais, auditores,
gestores etc.) que administram as barreiras internas e externas por onde circulam
as mercadorias ilegais.
Em diferentes cená rios latino-americanos a soberania fragmentada pro-
duz conformaçõ es locais diferenciadas. Durá n (2019) discute os efeitos dessa
fragmentaçã o nos contextos do México, da Colô mbia e de países da Amé rica
Central. Estudos sugerem como o comércio de drogas e grupos criminais nã o
só criam alianças com setores do Estado, como sã o funcionais para a
manutençã o do poder de elites políticas e econô micas, local e global. Revelam
que esforços estatais para reconstruir sua autoridade mediante intervençõ es
militarizadas, po- líticas repressivas e ampliaçã o da puniçã o, em geral,
aprofundam os problemas. Romper o arranjo organizacional de grupos
criminais pode gerar mais violência e aumentar o preço das mercadorias
políticas (Misse, 1999), criando incentivos para outros grupos ampliarem seus
domínios armados.
O PCC e as milícias apresentam relaçõ es entre agentes criminais e
estatais apoiadas em prá ticas discursivas distintas e se baseiam em arranjos
políticos-so- ciais-institucionais particulares que estruturam modelos específicos
de domínio territorial, gestã o da populaçã o e regulaçã o de mercados que
conformam distintas dinâ micas de administraçã o coercitiva das conflitualidades.
As interaçõ es entre os atores situados em posiçõ es específicas nos dois “polos”,
o Estado e o crime, sã o capazes de produzir arranjos de governo mais ou menos
está veis e que se apoiam num controle social que demanda maior ou menor uso
direto da violência que assume uma forma armada ostensiva ou nã o nos
territó rios onde se estruturam.
Como compreender o uso (in)discreto e a (in)visibilidade das armas nas
“biqueiras” ou “bocas” desconsiderando articulaçõ es políticas com a gestã o pú -
blica da segurança acima da guarniçã o que faz o policiamento local? O Estado
com suas vá rias espadas policiais, por vezes emancipadas, nã o deixa de exercer
algum tipo de governo nos territó rios-favela e de regular os mercados ilícitos
ali inseridos. Os mercados ilícitos, com suas vá rias conexõ es para dentro, ao
lado e ao redor do Estado, nã o deixam de se apoiar em domínios armados,
mais ou menos independentes, que conferem lastro, proteçã o e regularidade nas
transa- çõ es políticas e comerciais (Miranda; Muniz, 2018).
Isso é evidente quando se observa um paralelismo entre as ló gicas inter-
nas de estruturaçã o das agências policiais e a ordenaçã o de redes criminosas.
Em Sã o Paulo, constata-se uma gestã o superior mais cooperativa nas polícias,
com coligaçõ es mais está veis, uma forte articulaçã o corporativista entre elas na
defesa de seus interesses comuns que conta com o apoio para cima das elites
políticas. Tem-se unidade de governo, unidade nos comandos policiais,

ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105), 2022 19


unidade no arranjo criminal (Checchetto; Muniz; Monteiro, 2020) e uma
estruturaçã o

2 ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105),


que conecta o urbano-prisional e se retroalimenta da política de encarceramento
massivo adotada no estado nas ú ltimas décadas (Dias, 2013).
Já no Rio de Janeiro, tem-se uma elevada autonomizaçã o das polícias que
expressam uma aguda fragmentaçã o em grupelhos que tocam os seus negó -
cios (i)lícitos de policiamento com alguma autonomia. Tê m-se vá rias polícias
dentro das polícias militar e civil, com apoio político local e o seu campo de
controle pró prios. É como se cada batalhã o e delegacia funcionasse como um
Vaticano dentro de Roma, cuja oportunidade de comando central depende de
coalizõ es pontuais entre grupos internos rivais. Essa ló gica de franquias
ocupa- cionais competitivas, com baixa capacidade de uniã o, també m se
reconhece nos arranjos criminosos no Rio de Janeiro que se dividem entre
distintos comandos, facçõ es e milícias. Tê m-se tantos governos, tantas polícias,
tantos grupos crimi- nosos, tantas disputas territoriais armadas (Cecchetto;
Muniz; Monteiro, 2020). Das relaçõ es Estado e grupos criminais emergem
governos criminais, in- dicando como as formas estatais de intervençã o se
conectam à s disputas entre grupos criminais e conformam novas condiçõ es para
fluxos ilícitos e atuaçã o vio- lenta nos territó rios, permitindo a redistribuiçã o
do poder econô mico e político. Vê-se que as intervençõ es estatais estã o mais
relacionadas aos novos arranjos político-econô micos criminais e menos ao
“combate” ao crime, à “guerra à s
drogas” ou outras retó ricas políticas vazias.
Regulação de mercado e diversificação criminal
Embora o comércio de drogas seja um condutor poderoso das dinâ micas
criminais no Brasil e na Amé rica Latina, nã o é a ú nica modalidade de economia
ilícita capaz de engendrar conflitualidades violentas. A extorsã o, um
dispositivo essencial na conformaçã o de domínios armados, está presente nos
locais onde grupos criminais governam. Os lucros das taxas de proteçã o
impostas no varejo dos moradores e no atacado das atividades econô micas – de
pequenos comércios e de veículos de transporte até a produçã o agrícola e
mineral de alguns países
– podem ser até maiores do que aqueles advindos do trá fico de drogas. Outro
negó cio importante é o trá fico de armas que racionaliza os custos do controle
territorial armado e se institui numa dinâ mica de reforço mú tuo com o
mercado de drogas. Muitos desses mercados se sobrepõ em a mercados
informais como a pirataria e o contrabando e aos mercados que transacionam
produto de roubos, seja de automó veis (Feltran, 2018), de cargas, de empresas
de valores ou de combustíveis.
Em Sã o Paulo, tem sido mais conhecida a atuaçã o do PCC em outros
mercados como o de construçõ es de moradias em á reas de preservaçã o ambien-
tal, o furto de petró leo em oleodutos e o transporte clandestino e adulteraçã o
de combustível. Embora seja ainda bastante pontual, é importante
acompanhar esses processos de diversificaçã o criminal e compreender como se
conectará com as demais atividades nas quais o PCC está envolvido e quais as

ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105), 2022 21


relaçõ es serã o tecidas com as dinâ micas prisionais.

2 ESTUDOS AVANÇADOS 36 (105),


No Rio de Janeiro, como já visto, as milícias proveem um amplo repertó -
rio de serviços e produtos ilícitos que se inauguram com a cobrança impositiva
de taxas de proteçã o a moradores e comerciantes que se desdobram na oferta
coativa e monopolista de bens urbanos essenciais como policiamento, constru-
çã o, venda e aluguel de imó veis, luz, á gua, gá s, transporte alternativo, internet,
TV a cabo. Há , ainda, o provimento de segurança para os grupos do trá fico que
garante uma maior mobilidade de seus integrantes por seus domínios e uma
paz negociada mais estendida com a polícia e grupos rivais.
A diversificaçã o dos mercados criminais é fundamental para compreensã o
da governança criminal de um territó rio e a regulaçã o dos mercados ali
existen- tes. Suas causas e as consequências, considerando os casos analisados,
eviden- ciam dois elementos importantes. Primeiro, as relaçõ es sociais, ideias
e valores que sustentam atividades ilegais permitem a ampliaçã o do portfó lio
criminal a partir de uma estrutura prévia. As redes previamente estruturadas com
mú ltiplos atores – criminais, estatais, civis – possibilitam as conexõ es e os
fluxos num de- terminado territó rio, agregando vantagens para fazer circular
outros produtos e serviços. Segundo, é importante situar a diversificaçã o
criminal como efeito político do domínio armado. Os grupos criminais
adquirem independência para controlar territó rios, à s vezes, tornando-se
altamente predató rios e se engajando em quaisquer oportunidades econô micas
que surgirem em mercados ilícitos ou lícitos passíveis de serem explorados no
territó rio controlado.
As observaçõ es dos processos de inserçã o e enraizamento comunitá rio de
atores criminais e das relaçõ es sociopolíticas que estabelecem nas localidades;
da centralidade do papel exercido por atores estatais nas atividades ilícitas; e por
fim, das dinâ micas sociais, políticas e econô micas que favorecem diversificaçã o
do portfó lio criminal permitem avançar na compreensã o das configuraçõ es de
governos criminais dos domínios armados e seus efeitos sobre territó rios, popu-
laçõ es e mercados. Sobretudo, a gestã o de violências mais ou menos
expressivas e intensivas.
Os dados empíricos e a base conceitual apresentada aqui nos permitem
avançar numa compreensã o dos governos criminais situando o problema
como disputas por soberania nos espaços populares. Esse caminho analítico
ultrapassa as generalizaçõ es e abstraçõ es que pouco contribuem para explicar
os fenô me- nos e os efeitos perversos concretos que sã o produzidos sobre a
populaçã o que vive nos territó rios sob domínio armado.
Em síntese...
A governança criminal pressupõ e o controle do territó rio, o que envolve
administrar os fluxos e a circulaçã o de pessoas, bens e serviços. Os mercados ilíci-
tos precisam de governo que garanta previsibilidade no seu funcionamento. Há
que ter regularidade na aquisiçã o de estoque, nos contratos com fornecedores e
trabalhadores, na oferta das mercadorias à clientela, na manutençã o dos pontos de
venda e, para isso, nos acertos com os atores estatais a fim de garantir algum lastro

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para a atividade comercial. Há que ter dispositivos de vigilância, isto é, de policia-
mento. O domínio territorial torna-se central, o que significa a demarcaçã o sob
disputa das fronteiras, o que envolve o estabelecimento de complexas formas de
relaçã o com a comunidade local, os agentes estatais e atores dos mercados lícitos.
Os grupos que exercem governança criminal por meio do controle ter-
ritorial armado estabelecem relaçõ es diversas com as vá rias esferas estatais, em
especial com as agências de controle e correiçã o, articulando as dinâ micas de
policiamento e prisionais. Essa governança se apresenta por meio do contro-
le territorial e da gestã o da populaçã o, desdobrado na extorsã o, na produçã o
de policiamento e justiça, e das formas de legitimaçã o construídas para susten-
tar moral e simbolicamente seu governo. Por sua vez, a regulaçã o do mercado
envolve a diversificaçã o da oferta de bens e serviços, a construçã o violenta de
monopó lios pela tentativa de eliminar disputas e concorrê ncias e uma atuaçã o
que se estrutura através do domínio armado em â mbito local, mas, conforma
redes comerciais de alcance regional e até internacional. A forma de estruturaçã o
da governança criminal pode se dar mediante combinaçã o de distintas ló gicas,
conforme seu alcance territorial. No â mbito local se apresentam como arranjos
armados, mais ou menos estruturados, e conforme se considere as á reas mais
ampliadas de atuaçã o, percebe-se a sua projeçã o em redes complexas, abarcando
distintos atores, a produçã o de vínculos que se apoia nas regras impermanentes
de mercado e nos perenes imperativos morais e políticos.
As relaçõ es de poder instituídas nos domínios armados podem se apre-
sentar pelo uso ostensivo de armas e a ameaça de coaçã o explícitas, como é o
caso mais comum no Rio de Janeiro. Podem també m se expressarem median-
te ameaça do uso da violência ocultada nas narrativas da pacificaçã o, mas que
permanece latente e sinalizada como disponível pelos mecanismos de vigilâ ncia
mais ou menos sutis, como ocorre no governo criminal do PCC em Sã o Paulo.
A caracterizaçã o dos governos criminais por meio de domínios armados
permite ultrapassar as armadilhas teó rico-abstrata-fantasmagó ricas instituídas pe-
las narrativas do “crime organizado” ou da “gestã o dos ilegalismos”. Possibilita
uma caracterizaçã o empírica destes fenô menos em territó rios marcados pela in-
fraestrutura urbana débil, pela pobreza e pela precarizaçã o da vida, delineando a
atuaçã o concreta de grupos armados em suas distintas relaçõ es com atores estatais
e comunitá rios voltadas para a gestã o político-econô mica dos mercados (i)legais.
A proposta empírico-analítica para compreender os governos criminais
rompe com a circularidade de um campo de aná lises que ora adota a expressã o
crime organizado como um dado da realidade, ora se esmera em apontar os
equívocos do uso da expressã o, sem, contudo, apresentar uma alternativa que
contemple a dimensã o concreta-empírica dos fenô menos inscritos nesse cam-
po discursivo e que desvele a complexidade das relaçõ es sociais, econô micas e
políticas que se conformam nesses domínios armados e que produzem efeitos
dramá ticos na vida das pessoas que vivem e circulam nestes territó rios.

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reSUMo – Busca-se contribuir para a compreensã o das dinâ micas sociais, econô micas e
políticas onde se estabelecem domínios armados com suas ambiçõ es de hegemonia
so- bre territó rio e populaçã o e de monopó lio de mercados ilegais. Parte-se das
prá ticas de governança criminal do PCC em Sã o Paulo e das milícias no Rio de Janeiro
como ilus- traçõ es de exercício de governos criminais, explorando suas similaridades e
diferenças. Propõ e-se uma grade conceitual-analítica a partir de alguns elementos
centrais como as mú ltiplas relaçõ es com diversos atores estatais, a complexa inserção
comunitá ria e a

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diversificaçã o criminal e regulaçã o de mercados (i)legais. A abordagem da governança
criminal coloca-se como alternativa à s narrativas do “crime organizado”, substituindo
noçõ es teó rico-abstratas por concepçõ es teó ricas-conceituais construídas a partir da ob-
servaçã o empírica dos efeitos produzidos nos territó rios sob domínio armado.
palavraS-chave: Crime organizado, Governança criminal, Domínio armado, PCC,
Mi- lícias.
abStract – This article seeks to understand the social, economic and political dynamics
by which armed domains are established, with their ambitions of hegemony over
terri- tories and populations, and of monopoly of illegal markets. It begins with the
governan- ce practices of the PCC criminal organization in Sã o Paulo and of the
militias in Rio de Janeiro as illustrations of criminal governments, and explores their
similarities and diffe- rences. A conceptual-analytical grid is proposed based on certain
core elements, such as their multiple relationships with different State players, their
complex community insertion and the criminal diversification and regulation of legal and
illegal markets. The criminal governance approach is an alternative to the narratives of
“organized crime” and replaces theoretical-abstract notions with theoretical-conceptual
conceptions built from empirical observation of the effects produced in territories
under armed domain.
keyWordS: Organized crime, Criminal governance, Armed domain, PCC, Militias.

Jacqueline de Oliveira Muniz é professora do Departamento de Segurança Pú blica


(DSP) e do Programa de Pó s-Graduação Justiça e Segurança da Universidade Federal
Fluminen- se (UFF). Integrante do Fó rum Brasileiro de Segurança Pú blica.
@ – jacquelinemuniz@id.uff.br / http://orcid.org/0000-0002-1481-414X.
Camila Nunes Dias é professora Associada da Universidade Federal do ABC (UFABC),
docente permanente do Programa de Pó s-Graduaçã o em Ciências Humanas e Sociais
da UFABC e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça (Se-
viju). Pesquisadora do CNPq e Nú cleo de Estudos da Violência da USP.
@ – camila.dias@ufabc.edu.br / https://orcid.org/0000-0002-8389-3830.
Recebido em 22.11.2021 e aceito em 28.12.2021.
I
Universidade Federal Fluminense, Programa de Pó s-Graduaçã o Justiça e Segurança,
Niteró i, Rio de Janeiro, Brasil.
Universidade Federal do ABC, Programa de Pó s-Graduaçã o em Ciências Humanas e
II

Sociais, Santo André , Sã o Paulo, Brasil.

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