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“Torna-te quem tu és”,

“Tu precisas conquistar a tua natureza, tu precisas te tornar e alcançar aquilo que
podes vir a ser por um esforço consciente da vontade, por meio da educação, por meio
da formação.”

O Rei Leão me parece valioso para entendermos a crise da cultura. O drama humano
de Simba é uma fábula. Os animais são antropomórficos, humanizados. Eles falam e
apresentam dramas. É bonitinho e soa lindamente para as crianças, mas é um
personagem simbólico em busca da humanização. Logo, trata-se de um filme adulto
cujo gênero é, inclusive, inspirado indiretamente na tragédia de Hamlet, do irmão que
quer usurpar o trono do rei matando o irmão e dominando o reinado.

O Rei Leão sob a perspectiva da elevação da alma

O leão é um símbolo de autoridade e poder. É o Rei da Selva.

Ninguém, nenhum animal o ataca ou domina. Pode dormir sem correr o risco de ser
atacado por algum animal noturno, pode dormir ao léu, não precisa descansar em
lugares protegidos porque ninguém é capaz de agredi-lo. Se isso acontecer ele mata o
agressor e essa é a verdade natural, zoológica e biológica.

Simbolicamente, ele é a representação do poder. Dos animais, o macaco é o xamã,


Rafiki é o poder espiritual que simboliza a mística, as hienas Pumba e Timão são
animais inferiores e Simba é um homem, o ser humano que precisa se elevar, atingir o
patamar espiritual.

Assim sendo, o leão (o homem) está entre o espiritual e o animal. Ele pode subir ou
descer, pode assumir sua vocação e enfrentar com coragem os desafios ou vai para o
cemitério dos elefantes com as hienas do reino obscuro de Scar ou ainda, vai para a
hakuna matata, de drogas, sexo e rock and roll da vida adolescente e deliciosamente
animal de Timão e Pumba, que é o que a nossa sociedade gosta. “Hakuna matata!
What a wonderful phrase! Que alegria! Don’t worry, be happy!” Sem política, sem
preocupação, sem dramas. Vamos beber, dormir, regalar-nos com uma vida animal.
Não tenho problema com essa vida, ela só não é humana. Um ser humano deitado na
praia bebendo, comendo besouros, não tem nenhum problema, só que é uma vida
animal, não humana, portanto, não é uma vida de leão.

Mufasa é o rei justo de um reino luminoso. Ele apresenta ao filho, o príncipe-herdeiro,


o limite do reino banhado pela luz do Sol. Reino luminoso significa a instalação da
ordem pelo limite das cenas mais importantes. Eles estão no alto da pedra que
simboliza uma catedral e de onde o rei consegue vislumbrar todo o reino. O filme
começa com uma aclamação apoteótica do nascimento de Simba, o menino príncipe, e
sua apresentação, porque ele será o rei.

E o xamã (sacerdote semelhante a um bispo, padre ou até mesmo ao Papa), figura


solitária, sendo o ápice da autoridade espiritual, é quem apresenta o poder espiritual e
político para a sociedade. De modo que, Rafiki apresenta Simba a todos e batiza-o
fazendo uma espécie de unção com óleo como se fosse uma cruz (a cruz aparece, salvo
engano). E Mufasa dá a seguinte ordem a Simba:

“Cada animal desempenha uma função social. Isto é, na selva cada um tem a sua
função e você não pode romper essa ordem, que é a ordem da vida. Você deve
aprender seus limites e não pode invadi-los. Governar é aprender limites, saber até
onde é possível ir e o limite do reino é o cemitério dos elefantes”.

Toda pessoa poderosa é uma pessoa limitada. Toda pessoa realmente poderosa,
reconhece seu limite. Primeiro ela reconhece que não é a única pessoa do mundo e
seu limite está exatamente nos outros poderes. Aliás, o constitucionalismo moderno
trabalha com a ideia de contenção de poderes:

“Eu não sou o único, eu sou o leão, mas não sou o único da selva, têm os elefantes, as
hienas, os dromedários, os mastodontes”.

É claro que Simba, infantil, tem uma euforia adolescente e quer ir além de suas
possibilidades. Isso faz parte do processo de amadurecimento, embora possa lhe
custar a vida, assim como custou a do pai. Ele invade o cemitério de elefantes seduzido
por seu maquiavélico tio Scar, personagem ressentido e dominado por uma inveja
mimética que deseja ocupar o lugar de seu irmão majestoso, o Rei. Assim, com o
objetivo de matar Simba, Scar o atrai para o cemitério. Uma vez o príncipe morto, ele
passaria a ser o herdeiro do trono, já que não haveria outro sucessor e nesse caso
bastaria matar o próprio Rei.

Simba está envolvido com Nala, personagem que transita entre a amiga e a
namoradinha. Nesse momento, a ideia é mostrá-lo em uma fase intermediária entre a
criança boba e o adolescente querendo mostrar o falo para a menina por quem ele
está interessado. É possível interpretar de ambos os modos. Ele tem uma exaltação
imaginativa, típica de quem ainda não conhece seu poder e consequentemente seu
limite. De forma que quando invade o cemitério, Simba começa a se mostrar para
Nala: “Eu rio na cara do perigo. Hahahaha! Eu não tenho medo do perigo”. Na tragédia
grega isso chamava-se, a desmesura, a desmedida, quando ultrapassamos nosso
limite. Tem uma frase famosa que diz: “As divindades ou os deuses nunca deixarão
impune a desmesura. A desmesura será punida.” Ou seja, ninguém fará qualquer coisa
que não pode ser feita e vai ficar por isso mesmo. Em uma segunda tentativa de acabar
com Simba, Scar coloca-o em um desfiladeiro e os animais mastodônticos tentam
atropelá-lo. Simba está treinando o rugido que é como de um gatinho, ainda não é um
leão pronto, está em formação. Ele deve aprender os próprios limites e respeitá-los.

Essa é a base da formação. O papagaio consegue voar e avisar Mufasa que seu filho
está em perigo. Mais uma vez os mastodontes tentam atropelá-lo e ele é salvo pelo pai
que é então, assassinado pelo irmão. A lição moral é que devemos respeitar nossos
limites. Em resumo, Scar, figura maquiavélica do filme, mata Mufasa e querendo
herdar o trono coloca em Simba a culpa de ter matado o pai:

“Você matou o seu pai”. Esse é o ponto mais importante, pois é quando dá a proposta
diabólica: “Fuja!.” É o uso do conceito simbólico de diábolos, que é o que divide, cinge,
separa, engana e mente. É simbólico porque não é apenas fugir do espaço geográfico,
não é somente mudar de cidade, mas fugir da missão, da própria vocação; é evadir-se
de seus deveres morais e sociais e por isso, ele passa pelo deserto, que representa o
esgotamento das energias, esvaziamento das forças e crise da cultura, quando as
coisas perdem o significado. Isto é, voltar para casa já não tem mais sentido, uma vez
que ele acreditou em seu tio mentiroso e maquiavélico de que teria matado o pai. Ele
então vai para o paraíso terrestre, o Éden antissocial, onde estão Timão e Pumba, um
suricato e um javali que o atraem para a vida ociosa. Não a vida ociosa da cultura, do
tempo livre, edificante, do espírito, mas a vida ociosa dos animais, do Havaí, do ideal
havaiano de tranquilidade, epicurismo vazio, de prazeres, de ficar simplesmente
deitado, regalado, comendo insetos. Isso é muito importante porque um leão,
carnívoro, comer insetos revela o rebaixamento, a redução, o enfraquecimento e a
debilidade. Mostra o rei da selva completamente fraco e aquém da sua natureza,
porque a natureza é uma conquista, não se nasce pronto. Píndaro dizia: “Torna-te
quem tu és”, “Tu precisas conquistar a tua natureza, tu precisas te tornar e alcançar
aquilo que podes vir a ser por um esforço consciente da vontade, por meio da
educação, por meio da formação.” Então, elese evade e percebe o clima rebaixado em
que se encontra no momento em que estão debatendo sobre as estrelas. Pumba acha
que as estrelas são gases e Timão diz: “Você só pensa em gases. Você só pensa em
peido”. Um javali peidão, olhando para as estrelas e achando que elas são peido. Olhar
para as estrelas e achar que são simplesmente gases revela o horizonte materialista e
hedonista de Pumba. Timão por sua vez, acha que são insetos luminosos (pirilampos).
Simplesmente isso. Ou seja, nenhum dos dois consegue perceber que as estrelas
simbolizam um plano superior, espiritual, da cultura, da religião, da memória.

Evasão e Conversão de um Rei

Rafiki convoca Simba a cumprir sua missão: “Olhe quem é você”. Simba olha a si
mesmo em um espelho d’água, com a luz da Lua e vê o pai. Rafiki é a figura mística que
faz a ligação dele com o pai morto, mas vivo dentro do filho. É papel do xamã
estabelecer a relação entre o poder espiritual e o poder político, o desejo de prazer, de
poder, da verdade e perfeição, tudo interligado. Além disso, Simba tem uma espécie
de lembrança sobre o que pai lhe disse a respeito dos antepassados estarem escritos
nas estrelas.

Portanto, a formação depende exatamente da lembrança da tradição e da


perpetuação dos valores, honrando e legando algo para o futuro a partir dessa
tradição. Mas sua verdadeira conversão se dá quando ele encontra Nala. É nesse
momento que ele percebe que não é um moleque inútil, mas um homem, um macho
que se seduz pela mulher, pela fêmea e que precisa, de algum modo, merecê-la. Só
que a mulher não quer um bobão, um moleque. Nenhuma mulher quer um moleque
ocioso comendo inseto e tomando banho de sol. Existe uma cena belíssima de sedução
afrodisíaca, de atração sexual, ele atrás dela, ambos se seduzindo e ele percebe que
tem de enfrentar, tem de ser homem e amadurecer. E ser homem significa a assunção
das responsabilidades, dos deveres, cumprir a vocação e a missão. Ele lembra da mãe
e nesse momento Nala diz que a mãe está dominada pelo tio. Que todos, inclusive ela
própria, Nala, com quem ele tem uma relação de amizade e amor, estão sofrendo. Ele
assume a virilidade e força leonina, volta para declarar guerra contra o tio, que é o
usurpador e retoma, reconquista o reino. Neste ponto, é interessante notar que Timão
e Pumba viram amigos e tornam-se fiéis a ele. As hienas são a parte baixa da alma,
mas são traidoras, elas, inclusive, traem o próprio Scar. Quando ele apela a elas, elas o
traem. Obviamente não é uma tragédia, é uma comédia no sentido clássico. Acaba
bem, tal qual a comédia de Dante que começa mal e acaba bem.

A comédia começa mal e acaba bem, a tragédia começa bem e acaba mal A
tragicomédia, que é um gênero moderno explorado por Cervantes e Shakespeare tem
os dois, altos e baixos constantes e não acaba nem só bem nem só mal, fica em uma
indecisão, a vida é boa e má ao mesmo tempo, portanto, ela é tragicômica. Essa é uma
característica da literatura moderna em geral, acaba bem porque ele consegue assumir
sua vocação e eu titulei esse ensaio “Evasão e Conversão de um Rei”, porque ele se
converte aos seus deveres, às suas responsabilidades. Então, o hakuna matata é a vida
hippie, o gozo dos prazeres do dia sem se preocupar com o amanhã, “carpe diem,
quam minimum credula postero”, dizia o grande poeta latino Horácio. Isto é, “colha o
dia e não se preocupe com o amanhã”. Isso não é humano, é muito diferente da
despreocupação evangélica com o dia de amanhã. No Evangelho, como vocês
lembram, há a ideia de que cada dia tem a sua agonia:

“As raposas têm tocas, os pássaros têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde
repousar a cabeça”, “Olhai os lírios do campo, eles não tecem nem fiam, mas nem
Salomão em toda a sua glória conseguiu alcançar a sua beleza e simplicidade. Se Deus
cuida dos animais e das plantas assim, que dirá dos seus filhos”. Então, a
despreocupação evangélica com o amanhã, o abandono nas mãos de Deus, a total
segurança e fortaleza que Deus nos dá, não é aquele tipo de epicurismo antigo: “Ah,
não vou me preocupar com o amanhã, porque o amanhã...” Uma coisa é dizer: “Deus
cuida do amanhã”, “Cada dia com a sua agonia”, “O pão nosso de cada dia nos dai
hoje”, amanhã ele vai dar o de amanhã, que será o hoje, então não vou ficar
preocupado com o futuro, que a Deus pertence. São dois tipos de abandono, de carpe
diem. O carpe diem cristão é a preocupação com o presente pelo abandono nas mãos
de Deus. A crise da cultura também significa que temos duas possibilidades, mas não é
um maniqueísmo dualista. Scar é o duplo de Mufasa. Temos o reino da luz, que é
Mufasa, e o cemitério dos elefantes, que é Scar. Mufasa é o princípio divino da ordem,
da hierarquia, da limitação, do amor, do poder com o serviço e do ciclo natural das
coisas. Scar é o símbolo demoníaco que prostitui a ordem, é o engano, a noite e as
trevas. Mufasa tem o peito aberto, a juba grande, um sorriso; tem o poder do serviço.
Scar é o oblíquo, mentiroso, cheio de histórias e maquiavélico; não respeita a ordem e,
por isso não é capaz de instaurá-la. Seu reino é ditatorial e tirânico. Ele representa uma
imagem nazista da sociedade padronizada, homogeneizada, exatamente quando há a
perda das diferenças hierárquicas que estabelecem a sociedade. Esse filme nos
permite refletir sobre nossa vocação, nossa pertença, nossa inserção na sociedade
com base em deveres e responsabilidades. Não somos um átomo, nossa vida não é só
nossa. O individualismo como fator da crise da cultura, afirma: “Eu sou eu, a minha
vida depende de mim, o que eu faço ou deixo de fazer, a minha vida, concerne só a
mim”. Isso está errado. Na verdade, a sua vida está entrelaçada com várias outras
vidas que dependem da sua e das quais você também depende. Todos estamos em um
ciclo orgânico de relações. Se um sucumbe, se um fracassa, uma série de coisas
fracassam e sucumbem e vice-versa. Se você logra sucesso e conquista muitas coisas,
você também consegue alcançar um patamar de realização social, um bem-comum;
nunca fica somente em um bem individual

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