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Saúde Global e Saúde Planetária: perspectivas para uma transição

para um mundo mais sustentável pós COVID-19


Gabriela Marques Di Giulio (https://orcid.org/0000-0003-1396-9788) 1
Eliseu Alves Waldman (https://orcid.org/0000-0001-7807-6898) 2
João Nunes (https://orcid.org/0000-0002-0118-0993) 3
Paulo Marchiori Buss (https://orcid.org/0000-0002-9944-9195) 4
Patricia Constante Jaime (https://orcid.org/0000-0003-2291-8536) 5
Tereza Campelo (https://orcid.org/0000-0002-9905-9453) 6
Helena Ribeiro (https://orcid.org/0000-0002-1321-7060) 1

Introdução

A pandemia de COVID-19 acrescentou enormes dificuldades ao desenvolvimento


sustentável global. Economias paralisadas, perspectivas de recuperação adiada, a fome e a
insegurança alimentar aumentaram. A pandemia destacou e amplificou problemas sociais,
econômicos e ambientais. Ressaltou um cenário sindêmico complexo, com emergências de
saúde e climáticas interagindo para impactar a vida humana. Riscos interligados estão
intimamente relacionados ao desenvolvimento, com globalização, avanço tecnológico,
desmatamento desenfreado, perda de biodiversidade, exploração insustentável da terra, água,
florestas e oceanos e prevalência de cidades insalubres. O campo da saúde testemunha
exemplos da interação entre o comportamento humano e o desenvolvimento de vírus e outras
entidades biológicas, assim como com o desenvolvimento de doenças.

Enfrentar esses desafios exige uma perspectiva multidimensional de sustentabilidade,


privilegiando a diversidade cultural, a solidariedade com o planeta, valores éticos e equidade,
direitos, justiça e autonomia. Vai muito além da Agenda 2030 e de esforços realizados nos
últimos 30 anos, desde as conferências das Nações Unidas (ONU) sobre as dimensões do
desenvolvimento para “preparar o mundo para o século XXI”. O relativo sucesso dos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) estimulou a ONU e os Estados Membros a
manter metas de desenvolvimento globais e nacionais consensuais. O aprofundamento da
crise ambiental e a crescente pressão da sociedade civil levaram ao aprofundamento da
estratégia de “desenvolvimento sustentável”, com metas novas e mais ambiciosas (os
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS) a serem efetivadas até 2030. Vários
relatórios desde 2016 mostraram que - apesar do compromisso global com um modelo de
desenvolvimento sustentável, equitativo e inclusivo e o slogan 'não deixe ninguém para trás' -
houve um baixo desempenho do compromisso dos países desenvolvidos em financiar os ODS
unido à permanência de um modelo de desenvolvimento não sustentável, pobreza e
desigualdades globais, regionais e locais aceleradas na maioria dos países. Durante a
pandemia da COVID-19, enquanto a maioria dos chefes de agências da ONU e de alguns
agentes multilaterais reafirmaram enfaticamente que a recuperação social, econômica e
ambiental só poderá ser possível por meio da Agenda 2030, o silêncio dos líderes das
Instituições Financeiras Internacionais, como o FMI – Fundo Monetário Internacional e
Banco Mundial, no que diz respeito à Agenda 2030 no novo contexto, tem prevalecido.

As perspectivas de Saúde Global e Saúde Planetária podem lançar luz sobre essas
questões. A emergência da saúde global como um campo de estudo sinalizou um crescente
reconhecimento da interdependência nos padrões de circulação de doenças e de uma rede
crescente de mecanismos de governança que podem ser mobilizados para enfrentar os
problemas de saúde. A saúde global foi originalmente conectada a uma visão de mundo
segundo a qual “as doenças não conhecem fronteiras” e o mundo é marcado por uma
comunalidade de condições para responder a ameaças transfronteiriças. Nos últimos anos,
estudos críticos sobre a saúde global reconfiguraram disputas ideológicas, geopolíticas e
metodológicas preexistentes na arena internacional da saúde. Esses estudos reúnem
conhecimento, ensino, prática e pesquisa sobre questões de saúde que ultrapassam as
fronteiras geográficas nacionais; seus determinantes sociais e ambientais; bem como
possíveis soluções que requerem intervenções e acordos entre diferentes partes interessadas,
incluindo países, governos, instituições internacionais públicas e privadas.

A Saúde Planetária pressupõe que os problemas de saúde e a definição de políticas


públicas para enfrentá-los não podem ser dissociados da atual emergência ecológica. Este
último é uma emergência climática relacionada à perda desenfreada de biodiversidade,
degradação ambiental e esgotamento de recursos. É importante ressaltar que as emergências
ecológicas também incluem uma profunda crise dos sistemas humanos e da organização
socioeconômica. A emergência decorre da interação de diferentes dinâmicas de destruição e
dominação, que incluem, mas não se limitam à invasão de interesses privados em bens
públicos e globais; e novas formas de expropriação e exploração, incluindo colonialismo e
escravidão em velhas e novas formas. Argumentando que muitas visões no campo da saúde
global tendem a elidir a perpetuação das desigualdades em saúde, a saúde planetária exige
uma consciência mais ampla e profunda dos problemas interconectados que afetam a saúde
global e suas causas complexas. A saúde planetária exige uma mudança de paradigma na
forma como concebemos a saúde e a doença. Analiticamente, exige um aprofundamento de
um conhecimento sindêmico, reconhecendo a interligação dos problemas de saúde e
ambientais, as dinâmicas socioeconômicas e como elas impactam os grupos de forma
diferenciada. Normativamente, exige saberes emancipatórios, incluindo: decolonialidade e
um projeto claro de desmantelamento do racismo institucional e estrutural; conhecimento
feminista e não-binário, que resiste e subverte estruturas de poder heteronormativas e
patriarcais; e uma perspectiva ecológica para promover a solidariedade entre e dentro das
fronteiras, incluindo a transformação dos ritmos e padrões de comportamento na vida
individual e comunitária.

Em comum, ambos os conceitos de Saúde Global e Saúde Planetária


envolvem-se diretamente com desafios críticos do século 21: a distribuição desigual de
doenças ao redor do mundo; a impactos das mudanças ambientais globais na saúde humana;
mitigação e adaptação ao clima; padrões existentes de consumo e desperdício; o crescimento
da xenofobia, racismo, misoginia e transfobia; e as tensões econômicas, políticas e sociais em
relação a políticas, instituições e sistemas. A partir dessa dupla perspectiva, este artigo
discute alguns desafios que impactam a saúde.

Doenças infecciosas e pandemias – lições da crise do COVID-19

As doenças infecciosas acompanham o homem desde os tempos primordiais e a


dispersão começou quando foram alcançadas condições propícias para os agentes infecciosos,
através da transmissão contínua de pessoa a pessoa ou pessoa-animal-pessoa com os
primeiros assentamentos humanos e domesticação de animais para alimentação regular. Os
contatos próximos e contínuos entre homens e animais favoreceram a transferência (“saltos”)
de microrganismos que circulam nas populações animais para os homens, explicando, pelo
menos em parte, por que cerca de 60% dos agentes infecciosos são de origem animal.

As doenças infecciosas foram responsáveis ​por epidemias frequentes por novos


agentes infecciosos, alguns com potencial para se tornarem pandemias. Com a fome e as
guerras, as doenças infecciosas constituíram, historicamente, os principais flagelos da
humanidade, ajudando a moldar o curso da história e causando imensuráveis ​mortes e
crescente miséria.

Há muitos registros na história de pandemias ou grandes epidemias, por exemplo, a


Praga de Atenas (século 5 d.C.), a peste de Justiniano (século 6 d.C.), a peste bubônica (final
da Idade Média) e a gripe espanhola (1918). Até o século XX, os intervalos entre as
pandemias eram séculos ou muitas décadas; a partir da década de 1980, esses eventos
aumentaram em frequência e intensidade para níveis não registrados, a saber, HIV (1981),
Sars (2002), H1N1 (2009), Ebola (2013), Chikungunya (2014), Zika (2015) e COVID-19
(2019).

Esse fato contraria as rápidas transformações do século XX, com queda expressiva da
mortalidade por doenças infecciosas e aumento da expectativa de vida em decorrência da
ampliação do saneamento básico, introdução de novas tecnologias médicas (vacinas e
antibióticos), melhoria na nutrição, habitação e condições de trabalho. Ao mesmo tempo em
que melhoraram o bem-estar e aumentaram a expectativa de vida de grande parte dos
humanos, criaram condições que colocam em risco a sobrevivência da humanidade.

Crescimento populacional acelerado e urbanização, expansão do consumo de


alimentos industrializados, sistemas complexos de transporte de massa e aumento
impressionante de intercâmbio internacional de pessoas, introdução de métodos de
alimentação intensiva para animais, mudanças ambientais e climáticas, aquecimento global,
desmatamento e perda de biodiversidade, associados a uma incrível capacidade de mutação e
recombinação de microrganismos, criaram cenários ideais para emergência de
microrganismos potencialmente pandêmicos. Isso levou à reintrodução de prioridades de
doenças infecciosas nas políticas públicas de saúde, especialmente, as emergentes com
potencial pandêmico, devido ao seu grande impacto social em todo o globo.

Alertas surgiram no final do século XX com novas propostas de vigilância global e


reforma do Regulamento Sanitário Internacional (ISR) em 2005. Com base no novo ISR, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os países membros tornem a
vigilância e a estrutura dos serviços de saúde mais robustas e eficazes diante das emergências
de saúde pública. Quatro pilares são fundamentais: i) uma rede básica de serviços de acesso
universal com capilaridade; ii) vigilância com capacidade de identificar rapidamente eventos
com potencial para criar emergências locais, nacionais ou internacionais; iii) capacidade de
identificar a necessidade de produção de conhecimento de estratégias ou de apoio a
intervenções; e iv) governança com capacidade de assumir coordenação e articulação interna
e externa para garantir uma conduta efetiva e coerente entre o público e as diferentes
instituições de saúde, públicas e privadas. As estratégias de controle/mitigação e as ações
articuladas desses quatro pilares requerem análises de vigilância da complexa interação de
fatores biológicos, fatores sociais, políticos, demográficos e econômicos, cada um deles
obedecendo a sua própria dinâmica.

Considerando que o comportamento das doenças infecciosas é, em grande medida,


condicionado pelo comportamento humano, e a relevância das zoonoses no surgimento de
agentes infecciosos potencialmente pandêmicos, é fundamental analisar: i) o contato entre as
pessoas e seus determinantes (por exemplo, urbanização, migrações, crescimento
populacional, aumento do intercâmbio internacional); (ii) contato entre animais e humanos e
suas restrições (por exemplo, mudanças ambientais, introdução de novas técnicas de criação
intensiva, uso intensivo de alimentos industrializados); (iii) o processo evolutivo dos
microrganismos e seus determinantes naturais e aqueles induzidos pela aplicação de
tecnologias em saúde.

A integração desses 3 fatores, adotando a estratégia “One Health” é fundamental para


entender melhor os determinantes e impactos da atual pandemia de COVID-19. Entre os
desafios enfrentados, há conhecimento insuficiente sobre características clínicas, resposta
imune, terapia e epidemiologia e falta de preparação dos sistemas de saúde em todos os
países. A rápida disseminação pelo globo e o aumento significativo da morbidade e
mortalidade levam ao colapso dos sistemas de saúde em vários países. A longa duração e a
ocorrência de várias ondas de incidência crescente comprovam a resiliência dos sistemas de
saúde e seus profissionais, ao mesmo tempo em que evidenciam a falta e/ou falhas dos
sistemas de saúde em relação aos quatro pilares em diversos países.

Embora a maior parte da capacidade dos serviços de saúde tenha se concentrado no


atendimento aos casos de COVID-19, o acompanhamento de pacientes crônicos (diabéticos,
hipertensos, pneumopatas crônicos) e o diagnóstico precoce de câncer foram reduzidos em
todo o mundo, aumentando as mortes evitáveis. Os países de renda alta e alguns de renda
média enfrentaram esses desafios por meio do uso mais intensivo da telemedicina e de outras
novas tecnologias da informação. Por motivos semelhantes, houve também uma queda
drástica na cobertura vacinal, criando condições para o surgimento de várias epidemias,
agravando ainda mais a situação de vulnerabilidade dos sistemas de saúde. Há também
impactos de médio e longo prazo da pandemia no sistema de saúde pela necessidade de
acompanhamento contínuo de pacientes com diferentes sequelas, em sua maioria
permanentes de COVID-19.
O impacto da pandemia na expectativa de vida em vários países, devido à mortalidade
excessiva, é um sério retrocesso para os avanços alcançados nos países de média e baixa
renda. Embora a queda da fecundidade tenha sido uma consequência crítica da pandemia na
estrutura demográfica dos países, e o fechamento de escolas tenha gerado perdas irreparáveis
​para toda uma coorte de crianças, a intensificação das disparidades sociais e a insegurança
alimentar de muitos indivíduos são os impactos mais graves que comprometem seriamente os
direitos humanos.

Sistemas alimentares e segurança alimentar

Dois pontos são destacados em relação aos sistemas alimentares: as evidências


científicas negligenciadas sobre os impactos dos sistemas alimentares atuais; e as soluções
tech-fix (de correções técnicas) na mesa para transformar nossos sistemas alimentares. O
impacto dos sistemas alimentares na saúde do planeta é alarmante: 27% das perdas florestais
globais podem ser atribuídas à produção de commodities; a produção e o consumo de
alimentos são as principais causas da perda de biodiversidade; são responsáveis ​por cerca de
30% das emissões de gases de efeito estufa e pelo consumo de 70% das reservas mundiais de
água doce, entre outros impactos relacionados às práticas agrícolas.

No entanto, o intenso e acelerado processo de produção de alimentos que vem


devastando o planeta não alimenta a todos de forma saudável, sustentável e adequada. Hoje, o
mundo enfrenta uma dupla carga de desnutrição. Antes da pandemia do COVID-19, 2 bilhões
de pessoas não tinham acesso regular a alimentos saudáveis ​e suficientes, e cerca de 800
milhões passavam fome em um mundo que tem capacidade de produzir e alimentar a todos.
Simultaneamente, 650 milhões de pessoas estavam com obesidade e expostas a riscos
relacionados à dieta. Apesar desses números chocantes, a necessidade urgente de reverter os
sistemas alimentares predatórios de hoje foi negligenciada. Os debates sobre o Clima
Mundial, em abril de 2021, por exemplo, focaram em energia e transporte. Da mesma forma,
a maioria dos países propôs ações para enfrentar a emergência climática principalmente
nesses dois setores. A comida permanece marginalmente no debate sobre o Green New Deal,
a transição verde ou soluções verdes.

Em segundo lugar, a busca por soluções baseadas em alta tecnologia tornou-se mais
comum e perigosa. A carne cultivada em laboratório é um bom exemplo de soluções mágicas.
Em nome de tornar o consumo de carne mais sustentável, uma vez que a produção de carne é
causa do desmatamento, o consumo de carne de laboratório, paradoxalmente um alimento
ultraprocessado, aumentou. Boas soluções para sistemas alimentares e insegurança alimentar
devem considerar: i) o Princípio da Precaução, que deve nortear novas soluções que tenham
consequências desconhecidas; ii) soluções baseadas em alta tecnologia colocam o futuro da
produção de alimentos nas mãos das grandes corporações alimentícias, que são as principais
responsáveis ​pelos atuais modelos hegemônicos insustentáveis; iii) tais soluções tendem a
substituir a comida de verdade, as refeições preparadas na hora e a culinária tradicional. Essa
combinação causou perturbações nutricionais, sociais e culturais, aumento da obesidade e
outras doenças relacionadas à dieta.

É fundamental analisar os fatores que facilitam a promoção de intervenções grandes,


centralizadas e até caras, baseadas em engenharia e tecnologias, em vez de esforços de
mudança de comportamento e regulação do setor privado. A desculpa é muitas vezes
associada à urgência das questões planetárias, que exigem soluções rápidas. No entanto, a
prova de que é possível mudar o comportamento no curto prazo é a velocidade com que as
grandes indústrias alimentícias convenceram os indivíduos a comer junk food em vez de
comida de verdade em poucas décadas.

Outra questão crítica é admitir que existem alimentos bons e ruins que afetam nossa
saúde e meio ambiente de diferentes maneiras – contrariando os argumentos da indústria. Os
produtos ultraprocessados ​precisam ser reconhecidos e regulamentados considerando seus
impactos na saúde e no meio ambiente. Os governos e as agências da ONU devem reconhecer
que a indústria de alimentos não se auto-regulará e liderará a mudança para sistemas
alimentares saudáveis ​e sustentáveis.

Como Bittman disse: você não pode ter uma conversa séria sobre comida sem falar
sobre direitos humanos, mudanças climáticas e justiça. Acrescentando, há ciência da
impossibilidade de garantir segurança alimentar, promover uma dieta saudável e sustentável,
e prevenir e controlar a má nutrição de todas as formas sem discutir sistemas alimentares,
justiça social, saúde global, e sustentabilidade. Segurança alimentar é o acesso estável à
comida saudável e adequada para todos, sempre. Promover a segurança alimentar requer uma
combinação de políticas globais, nacionais, regionais e locais, assim como estratégias que
miram fornecer a todos maneiras de comer bem, prestar atenção no uso sustentável dos
recursos naturais, proteção ambiental, da cultura gastronômica e da tradição culinária.
Assim como outros países, o Brasil, que recebeu atenção por reduzir a fome e a
pobreza, observou, em anos recentes, inflexões em políticas públicas com impactos negativos
sobre segurança alimentar. Os esforços brasileiros do passado resultaram em políticas para a
melhora ao acesso à alimentação, geração de renda, apoio à produção de alimentos vindos de
pequenos produtores, e melhorando a administração da segurança alimentar. Junto a isso, o
Brasil construiu uma estrutura robusta, institucional e legal para a segurança alimentar,
transformando a luta contra a fome em uma obrigação, perseguindo novos objetivos
relacionados a prevenir a obesidade e promover dietas saudáveis e sustentáveis. O resultado
foi uma mobilização de longa data que reuniu organizações, redes de apoio e movimentos
sociais, assim como pesquisadores desde os anos 80. O compromisso político com a
prioridade em segurança alimentar cresceu em 2002, atraindo tanto o governo quanto a
população civil. Investimentos e o uso de dados dos sistemas de informação pública e
evidências científicas desempenharam um papel fundamental em apontar diferentes aspectos
de má nutrição: comida e segurança nutricional, fome, amamentação e obesidade. Os novos
desafios eram os de adotar práticas de dietas saudáveis e sustentáveis, de acordo com os
ODS. A resposta política para estes desafios foi de estratégias inovadoras para a promoção da
saúde individual, coletiva e planetária, o Guia Alimentar Nacional para apoiar a reorientação
dos sistemas alimentares e controle da má nutrição em todas as formas, incluindo
subnutrição, obesidade e riscos dietéticos, que são as principais causas de má qualidade da
saúde mundial.

O Guia Alimentar para a População Brasileira publicado pelo Ministério da Saúde em


2014 promove o consumo de comida minimamente processada, como também uma variedade
de vegetais, reforça uma base de arroz e feijão, sugere uma modesta porção de comida de
origem animal e a redução de ultraprocessados o máximo possível. O guia afirma que quanto
maior for o consumo de ultraprocessados, maior o risco de consumir excessivamente
açúcares, gorduras nocivas e proteínas inadequadas. Comidas ultra processadas também
contém muitos aditivos que, embora sejam usados legalmente, possuem efeitos incertos ou
desconhecidos para a saúde. Este consumo também desencoraja famílias agricultoras, reduz a
biodiversidade, ameaça os recursos naturais, aumenta os resíduos sólidos e substitui culturas
alimentares genuínas. Os princípios e recomendações do Guia influenciaram programas e
políticas oficiais sobre comida e nutrição de outros países, um caso de sucesso de difusão
política e exemplo de progressivamente estarmos garantindo o direito humano de alimentação
adequada. Infelizmente, houve uma piora no duplo fardo da má nutrição, fome e subnutrição,
agravado pelo sobrepeso e obesidade. Isso representa um retorno aos problemas do século
passado, exacerbados pela pandemia da COVID-19.

Emergência climática e a urgência para agir

Globalmente, países, cidades, governos e populações estão enfrentando riscos


significativos causados pelo clima, incluindo mudanças na temperatura do ar e precipitações,
aumento da intensidade e da frequência de ameaças naturais como enchentes, desabamentos,
ondas de calor e aumento do nível do mar, que comprometem serviços utilitarios como
eletricidade, suprimento de água, saúde e serviços emergenciais. A mudança climática é uma
condição da nossa realidade com sérios impactos que simultaneamente interagem com e
agravam outras contradições importantes em nossas sociedades, incluindo desigualdades
socioeconômicas, acesso a bens e serviços, poluição (do solo, água e ar), acesso a comida e
água e direitos humanos. O aumento da vulnerabilidade social e ambiental a extremos
eventos climáticos colocou a emergência climática como um desafio urgente para os
tomadores de decisões e para as sociedades. Das perspectivas de saúde global e planetária, é
criticamente necessário considerar a sinergia entre mudanças climáticas e outras crises,
incluindo a perda da biodiversidade, a pandemia da COVID-19, e a confiança institucional e
crise de responsabilidade. É também de importância crítica analisar as interdependências
entre saúde, desenvolvimento econômico, degradação ambiental, governança e direitos
humanos, ressaltando as interações entre normas políticas, estruturas regulatórias, ações
coletivas e perspectivas individuais; procurando mitigar os efeitos cumulativos e sinergéticos
e a amplificação de condições vulneráveis.

Ainda sobre emergência climática, dois problemas estão intimamente relacionados à


saúde global e planetária. Primeiro, as interações climáticas globais-locais, e o fato de que as
ações de adaptação são principalmente locais e específicas de seu contexto. Segundo, uma
necessidade urgente de um compromisso com a sustentabilidade como um caminho para
promover mudanças para um futuro mais adaptável.

Durante a Cúpula do Clima, em abril de 2021, o presidente dos Estados Unidos


declarou que a humanidade está em uma década decisiva para combater a mudança climática.
A cúpula envolveu governos que anunciaram seu compromisso em reduzir emissões,
incluindo esforços para uma economia ecológica e ações concretas e imediatas para prevenir
o desmatamento. Além dos esforços de mitigação necessários vindos dos países presentes
para a redução da emissão dos Gases de Efeito Estufa (GEE), há uma necessidade urgente de
planejar adaptações e intervenções a nível local onde as pessoas vivem e são afetadas. É um
processo sócio-político-ambiental intimamente dependente da disposição de tomar medidas e
adaptação, da disponibilidade e habilidade para implantar recursos apropriados, e de facilitar
ou dificultar a consolidação de iniciativas.

As cidades desempenham um papel importante em lidar com a crise climática, em


acelerar transformações do uso da terra e gerenciamento de espaços, e em esforços de
liderança para impulsionar mudanças de estilo de vida. Cidades são locais críticos para
experimentos, para testar novas soluções e para implementar estratégias, porém curtos prazos
políticos, complacência sobre mudanças climáticas, falta de motivação, recursos
insuficientes, falta de capacidade técnica, informação insuficiente, incentivos políticos
inadequados, lideranças políticas, financiamento, gerenciamento de interessados, interações
entre ciência-política e apoio do público restringem a adaptação urbana.

Em relação aos ODS, um importante aprendizado vindo de múltiplas crises é a


urgência na adoção de uma perspectiva crítica sobre a sustentabilidade, que fortalece um
novo caminho capaz de alterar visões políticas, sociais e econômicas. O entendimento deste
novo caminho, que inclui uma responsabilidade solidária e compartilhada sobre os recursos
do planeta, direitos humanos e um modelo revisado de produção e consumo, é crucial.

Crises são consequências diretas da atividade humana. Lidar com estas crises requer
reforços e aplicação de regulações ambientais, pacotes de estímulo que oferecem incentivos
para atividades mais sustentáveis e positivas para a natureza, fundação de sistemas de saúde e
encorajamento de mudança comportamental, que significa repensar a forma que interagimos
com outras espécies e com o planeta. Uma perspectiva crítica de sustentabilidade significa
inclusão, justiça, consciência das diferenças e consideração dos atuais modelos econômicos
baseados em crescimento constante, consumo e desperdício. Também inclui soluções -
planejamento orientado de sustentabilidade baseado na natureza.

Soluções naturais e infraestrutura verde

Apesar da tendência de homogeneização das culturas devido a globalização,


diferentes populações, migrantes de várias partes do mundo e a grande desigualdade de
distribuição de renda torna impossível um conceito universal de bem-estar no curso da vida.
O conceito abrange múltiplos significados, desde sentimentos individuais para resolver
problemas pessoais e familiares, até a satisfação dos bens de consumo. Na esfera de
condições externas, saneamento adequado, energia, beber água; infraestrutura de mobilidade;
práticas e acesso à cultura, serviços de saúde, educação, segurança pública e vida social;
organizações politicamente estáveis e justiça acessível são atributos essenciais para o
bem-estar. No topo das condições externas, o bem-estar é baseado no equilíbrio físico, mental
e espiritual.

Um corpo de pesquisa aponta os benefícios para a saúde mental em viver com a


natureza. Estudos recentes ressaltam o papel das superfícies com vegetação, que tem laços
com a biodiversidade, mitigação de mudanças climáticas e a pandemia de COVID-19.
Impactos positivos do meio ambiente no bem-estar podem fomentar uma reflexão sobre um
caminho viável para promover mudanças para um futuro mais sustentável, equitativo e
adaptável para o planeta e para a humanidade.

A biodiversidade de ecossistemas naturais proporciona muitos benefícios e serviços


ao planeta. A perda de biodiversidade é reconhecida como um fenômeno planetário. Poucas
publicações relacionam a biodiversidade à pandemia de COVID-19 e bem-estar, mostrando
as relações intrínsecas da eclosão do vírus com a biodiversidade e para cura. Mais de 40% de
todos os medicamentos e 70% daqueles usados como antibióticos e anticâncer tem origem na
biodiversidade. A biodiversidade também é usada em medicamentos contra trombose,
micróbios e vírus. Contudo, o desenvolvimento de drogas antivirais para novas doenças é
complexo, caro e demanda uma sólida investigação científica. A vegetação natural também é
uma importante condutora para minimizar mudanças climáticas, mas está sob sério risco com
o desmatamento acelerado e o uso das terras. Portanto, é urgente que as ações tomadas pelos
governos e população contra a pandemia de COVID-19 e para minimizar seus efeitos não
amplifiquem os riscos de futuras crises e surtos de doenças.

Glikson assume que o homem tem um impulso biológico para estar em contato com
diferentes tipos de ambientes. Isso provavelmente pertence à mesma categoria da demanda
física por uma variada nutrição e também à demanda física por uma variada rede de contatos.
Na visão dele, um homem urbano moderno pode ser considerado desnutrido em respeito ao
meio-ambiente e necessidades recreacionais. A mudança de ambiente é uma necessidade
sentida em todas as estruturas temporais da vida: durante o dia, o dia em si, a semana, as
estações do ano e em diferentes etapas da vida. Uma casa de família ou escolas suprem as
necessidades de recreação durante parte do dia; os jardins públicos, quadras, praças, parques
de diversões e centros culturais fornecem recreações diárias e algumas vezes semanais; os
arredores da cidade com parques, florestas e rios oferecem finais de semana e férias em
diferentes estações do ano. As áreas recreacionais nas cidades e em torno delas são
importantes para a saúde física e equilíbrio mental, sendo socialmente essenciais por serem
espaços onde vínculos comunitários são gerados durante as horas de lazer. O crescente
problema de depressão, ansiedade e estresse tem, ao menos em parte, sido atribuído à
crescente desconexão entre as pessoas e a natureza, apoiado por pesquisas que mostram que
as interações com a natureza promovem restauração psicológica, melhoram o humor e a
atenção e reduzem o estresse e a ansiedade.

Frumkin analisou o papel de soluções naturais para os problemas de saúde mental,


incluindo o papel terapêutico em pessoas que sofreram acidentes cerebrais, e como uma
ferramenta importante para diminuir a violência e o crime em vizinhanças superlotadas.
Favelas são caracterizadas por falta de espaço, obsolescência de apartamentos ou casas, e por
crianças e adultos saindo de suas habitações e preenchendo as ruas. Como não se encontram
nestes bairros quadras ou jardins apropriados, quando seus moradores vão para ruas ou pátios
buscando algum lazer e não o encontram, a proximidade de um com o outro estimula o atrito
e brigas entre eles. Um bairro de favela, portanto, precisa de maiores quadras e praças
públicas para instalações de recreação e convívio de seus moradores.

Os moradores da cidade com melhores condições econômicas, por outro lado,


constituem um incômodo ou mesmo um problema para as áreas rurais. Houve uma grande
onda de uso da natureza como recreação durante a pandemia de COVID-19. Isso tem relação,
primeiro com o trabalho em casa, que se tornou viável para algumas categorias de
trabalhadores, principalmente os com renda mais alta; segundo com o desejo de ir para longe
de cidades lotadas e de altos riscos de contágio. Como exemplo, um aplicativo de imobiliária
que registrou, no estado de São Paulo, Brasil, de fevereiro de 2020 à fevereiro de 2021, um
aumento de 154% na demanda por propriedades no interior, das quais 47% são litorâneas, e
um declínio de 9% na demanda pela cidade capital. Esse fenômeno foi registrado em outras
cidades pelo mundo, como Nova York e arredores. A migração de pessoas e
empreendimentos, a princípio, pode parecer um retorno positivo à natureza e uma redução
das grandes áreas urbanas, mas os efeitos na saúde planetária devem ser estudados em sua
complexidade total. Uma das maiores ameaças, pode ser a abertura de grandes condomínios e
hotéis nas áreas rurais e selvagens, transformando o ambiente natural, destruindo a
biodiversidade e empurrando as atividades de agricultura para as florestas ou para solos
menos férteis, onde serão necessários mais produtos químicos para manter a produção e um
maior uso de combustíveis fósseis para o transporte.

Conclusões

Estas crises e seus efeitos claramente mostraram a complexidade de novas respostas, e


claramente sugerem a necessidade de uma reorientação de valores e uma reorganização de
poder e responsabilidades. De uma perspectiva crítica de Saúde Global e Saúde Planetária, o
foco na interdependência entre saúde e o Antropoceno claramente identifica os limites das
soluções tecnológicas em resposta a crises globais. Nós devemos entender melhor as
interações entre estruturas regulatórias, processos de decisões, ações coletivas e perspectivas
individuais para lidar com elas.

Entretanto, estas crises podem ser oportunidades para catalisar processos de mudança
social, como experimentos em tempo real sobre reduzir a economia de consumo e acelerar
transformações. A questão crucial aqui é: como um coletivo, nós realmente queremos
isso? Nós temos condições de forçar essa agenda transformadora? Nós estamos cientes
de que devemos enfrentar estes desafios planetários trazidos pelo Antropoceno?

Para este fim, é essencial revitalizar e fortalecer o multilateralismo global, como é o


caso com a ONU e suas agências, e, na América Latina, reconstruir o multilateralismo
destruído por governos conservadores que tomaram o poder em países da região, como o
Brasil. Parece haver um consenso global de que o ‘novo normal’ não deve ser o retorno ao
‘velho normal’, mas sim o paradigma da agenda e seus ODS e o compromisso efetivo para
alcançá-los, pelos mesmos países que decidiram compactuar para a criação destes em 2015.

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