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O Projeto de novo Código Civil

Josaphat Marinho

Sumário
1. Dever de divulgar o Projeto: breve histó-
rico. 2. Estrutura e conteúdo do Projeto. 3. Parte
Geral. 4. Direito das Obrigações. 5. Direito de
Empresa. 6. Direito das Coisas. 7. Direito de
Família. 8. Direito das Sucessões. 9. Livro
Complementar. 10. Conclusão.

1. Dever de divulgar o Projeto:


breve histórico
Em sucessivos atos culturais, sobretudo
em instituições universitárias e de advoga-
dos, temos exposto as tendências gerais e
as normas básicas do Projeto de Código
Civil, recentemente aprovado pelo Senado
Federal.
O objetivo das preleções, à vista dos
convites recebidos, tem sido divulgar o
conteúdo do Projeto e abrir oportunidade
à análise e crítica de suas diretrizes.
A dimensão e a importância do docu-
mento legislativo, ainda dependente de
nova apreciação da Câmara dos Deputa-
dos, justificam larga e metódica discussão,
que possa confirmar princípios e institutos
incluídos no texto, ou propiciar a revisão
de outros, considerados, porventura, inade-
quados ou imprecisamente conceituados.
O exame, sem ânimo de defesa incon-
dicional nem de condenação preconcei-
tuosa ou dogmática, é essencial ao aper-
feiçoamento ainda cabível da sistemati-
zação elaborada.
Preparado o Anteprojeto por douta
Josaphat Marinho é advogado e ex-Senador. Comissão de juristas, sob a coordenação
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do Professor Miguel Reale, foi encami- 2. Estrutura e conteúdo do Projeto
nhado à Câmara dos Deputados em 1975.
Admitido o prosseguimento dos traba-
Dela saiu, como Projeto aprovado, em
lhos, manteve-se a estrutura do Projeto,
1984. No Senado, a que foi remetido, não
com os Livros previstos – Parte Geral e Parte
teve apreciação imediata, embora logo
Especial constante de Direito das Obriga-
apresentadas emendas, em número de
ções, Direito de Empresa, Direito das Coisas,
360. Em 1995, quando efetivamente
Direito de Família, Direito das Sucessões e
começou a ser examinado, recebeu mais
Livro Complementar.
6 emendas.
Como se vê, o método estabelecido de
Designado Relator-Geral na Comissão
unificar as obrigações fez com que se
Especial instituída, primeiro apreciamos
incluísse, na divisão das matérias, a
o problema da conveniência, ou não, de relativa ao Direito da Empresa.
prosseguir no trabalho de codificação, Conservou a Comissão, por igual, a
diante da evidente controvérsia aberta. diretriz de enunciar, na definição dos
Situadas as teses opostas e citados seus institutos, normas gerais, reservando os
propugnadores, oferecemos Parecer Pre- pormenores para a legislação especial. É
liminar no sentido de que se completasse forma que corresponde à boa técnica
o esforço iniciado. Para tanto, considera- legislativa, na sociedade moderna em
mos fatores diversos. Primeiro tratava-se transformações constantes. Assim se
de texto inovador, elaborado por juristas preserva o arcabouço da lei básica, sem
competentes e especializados, que o dificultar as modificações convenientes.
submeteram ao contraste de opiniões Observou-se, também, que, ao lado da
valiosas. Depois, sendo bicameral o regime técnica seguida, ao Projeto foi incorporado
brasileiro, e já a Câmara dos Deputados conteúdo ético e social em harmonia com
tendo aprovado o Projeto, não seria as exigências do direito contemporâneo.
próprio, sem motivo relevante, que não Introduziram-se, naturalmente, inova-
ocorria, desprezar a matéria e levá-la ao ções, umas para maior ajustamento do
arquivo. Além disso, para suprir falhas e texto à realidade ou à doutrina domi-
lacunas, seria possível colher novos nante, outras para adequá-lo à Consti-
subsídios da comunidade jurídica, exato tuição superveniente de 1988, de modo
como fez a Comissão. amplo na parte do Direito de Família.
Acresce que durante o preparo do No esforço de revisão e atualização,
parecer final, a revista Droits , n. 24, de além daquelas emendas individuais dos
1996, publicou uma série de estudos sobre Senadores, já mencionadas, foram objeto
codificação, não uniformes, porém todos de estudo 127 de autoria do Relator-Geral.
indicativos de que está em renascimento Na consideração do Projeto como
esse processo de legislar – o que confir- dessas emendas, tiveram-se em conta as
mou a prudente decisão da Comissão. Já principais teorias civilistas e o espírito de
apresentado o Parecer, a mesma revista renovação, atentando-se, porém, que um
publicou outro número (26, de 1997) sobre Código não é sede definidora de contro-
codificação, a revelar que o assunto está vérsias, nem de recepção de novidades ou
presente no espírito dos juristas. A diversi- aspirações não consagradas pela consci-
dade de opiniões indica que deve cada ência científica e coletiva. Inovou-se sem
povo adotar o critério que se afigurar mais exageros incompatíveis com o destino de
compatível com sua cultura e seu sistema uma grande lei permanente.
legislativo. E, conforme assinalamos no Nesse processo de mudança, salientou-
parecer preliminar, o regime brasileiro não se, com justiça, a excelência do trabalho
desaconselha a codificação. de Clóvis Beviláqua, refletida na sistemati-
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zação e na substância do Código vigente f) na definição do estado de perigo
desde 1917. Mas é certo que a obra meri- (art. 155) e da lesão (art. 156), assim
tória não poderia resistir, para sempre, à caracterizando figuras que impeçam a
erosão dos fatos novos e à conseqüente violação de direitos;
configuração de outras normas. Tanto que g) na previdente disposição de aplicar
leis especiais, de diferentes momentos e “aos atos jurídicos lícitos, que não sejam
origens, já lhe deformaram a fisionomia. negócios jurídicos”, e “no que couber”, as
Convém, pois, substituí-la, sem que se prescrições relativas a estas (art. 184);
desprezem, como não foram desprezadas, h) na norma justa de condenar, contra
diretivas, instituições e regras atuais o ato ilícito, “o dano a outrem, ainda que
válidas, que o Projeto reproduz. exclusivamente moral” (art. 185);
i) no critério de diferençar a prescrição
3. Parte Geral e a decadência. Regula os casos de pres-
Na sistemática adotada, foi mantida, crição, quanto às causas que a impedem
apesar da opinião contrária de ilustres ou suspendem, às que a interrompem, aos
juristas, a figura da Parte Geral, com distintos prazos (arts. 188-204). A propó-
dimensão ampliada, conforme justificação sito da decadência, a par de outras regras
de seu autor na Comissão elaboradora do específicas, estabelece: “Salvo disposição
Anteprojeto, professor José Carlos Moreira legal em contrário, não se aplicam à
Alves 1 . decadência as normas que impedem,
Além de disposições coincidentes nos suspendem ou interrompem a prescrição”
dois textos, a respeito de pessoas e bens, o (art. 206).
Projeto inova em vários aspectos da Parte É claro o objetivo de evitar confusão
Geral, a exemplo: entre as duas formas extintivas de direitos,
a) na admissão dos direitos da perso- que tanto proliferou sob o Código atual.
nalidade (arts. 11-21), adotando critério Por isso o Professor Miguel Reale acentua
que tende a generalizar-se; que “não haverá dúvida nenhuma: ou
b) na disciplina da ausência, da suces- figura no artigo que rege as prescrições,
são provisória e da sucessão definitiva ou então se trata de decadência” 3.
(arts. 27-39), deslocadas de âmbito do Cumpre ressaltar duas outras inova-
Direito de Família, em que hoje se en- ções, resultantes de modificação ao Pro-
contram, inadequadamente (C.C., arts. jeto originário da Câmara dos Deputados
463-484); e sugeridas pelo Relator-Geral:
c) na previsão de desconsideração da – uma, a que substituiu, no art. 1º, a
pessoa jurídica (art. 50), para evitar abusos palavra homem, preferindo a fórmula ser
correntes, sendo de assinalar-se que a humano.
forma originária do Projeto foi substituída Conforme observado na justificação da
pela atual, ajustada à melhor doutrina; emenda (367-R),
d) na preferência da locução negócio “o vocábulo ´homem`, constante do
jurídico, e não ato jurídico (arts. 103-113), Projeto, já não é claramente indica-
por superior técnica2 ; tivo da espécie humana, vale dizer,
e) na conceituação genérica da repre- também da mulher. Com a quali-
sentação (arts. 114-118), esclarecendo que ficação marcante dos dois seres, e
os “requisitos” e os “efeitos” da “represen- dada a evolução, inclusive no direi-
tação legal são os estabelecidos nas normas to, da situação da mulher, elevada a
respectivas”, e “os da representação volun- independente, evita-se o uso da
tária são os da Parte Especial deste Có- palavra homem como abrangente da
digo” (art. 119); pessoa de um e de outro sexo”;
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– a segunda, a que declara, no art. 5º,execução continuada ou diferida, se a
que “a menoridade cessa aos dezoito anos prestação de uma das partes se tornar ex-
completos quando a pessoa fica habilitada cessivamente onerosa, com extrema van-
à prática de todos os atos da vida civil”. tagem para a outra, em virtude de aconte-
A justificação da emenda desdobra as cimentos extraordinários e imprevisíveis,
razões da alteração proposta. O desenvol- poderá o devedor pedir a resolução do con-
vimento da sociedade e de seus meios de trato, retroagindo os efeitos da sentença
comunicação, facilitando o conhecimento que a decretar à data da citação (art. 477
dos fatos, já não aconselha manter a e parágrafo único). Em dispositivo justo,
maioridade aos 21 anos. Demais, a Cons- esclarece, porém, que a resolução poderá
tituição atribuiu o pleno direito de votar ser evitada, oferecendo-se o réu a modifi-
aos 18 anos (art. 14, e) e de ser votado para
car eqüitativamente as condições do ne-
Vereador (art. 14, § 3º, VI, d). E a tendência,
gócio (art. 478). Segundo o art. 479, se no
no mesmo sentido da emenda, é tão grande contrato as obrigações couberem a apenas
que o princípio foi incorporado à Consti- uma das partes, poderá ela pleitear que a
tuição espanhola de 1978 (art. 12). sua prestação seja reduzida, ou alterado o
modo de executá-la, a fim de evitar a one-
4. Direito das Obrigações rosidade excessiva.
No que concerne ao Direito das Obri- Repele o Projeto, pois, a majestade do
gações, há muitas normas preservadas, contrato, da velha cláusula pacta sund
por encerrarem conteúdo prevalecente. servanda , para imprimir às obrigações
Assim as relativas à caracterização das assumidas caráter compatível com o
diferentes classes de obrigações. De outro alcance social do direito. Adota o espírito
lado, inovações várias distanciam o de justiça, que desenvolveu Duguit já em
Projeto da índole do Código vigente. O 1911, na Faculdade de Direito de Buenos
caráter social delas o distingue, niti- Aires, e se alargou, pelo tempo afora, com
damente, da natureza individualista da Ripert, Savatier e tantos outros mestres.
codificação em vigor. Muito do que se Mas transmitindo flexibilidade as relações
vinha obtendo nos fluxos e refluxos da jurídicas, o Projeto não as desguarnece de
jurisprudência e da doutrina passa a ser segurança. Tanto que no parágrafo único
direito positivo. do art. 896, relegando controvérsia e
Conforme fixamos no Parecer Final, o fixando garantia, veda o aval parcial.
novo texto “acolhe conquistas da expe- Não devendo ignorar os efeitos do de-
riência e da cultura”. Proclama que pelo senvolvimento tecnológico, o Projeto
inadimplemento das obrigações respon- incorporou sugestão do Professor Mauro
dem todos os bens do devedor (art. 390). Rodrigues Penteado, no sentido de que o
Estipula que os contratantes são obrigados título de crédito “poderá ser emitido a
a guardar, assim na conclusão do contrato, partir dos caracteres criados em compu-
como em sua execução, os princípios de tador ou meio técnico equivalente e que
probidade e boa-fé (art. 421). Prescreve constem da escrituração do emitente,
que, nos contratos de adesão, são nulas as observados os requisitos mínimos previs-
cláusulas que estipulam a renúncia ante- tos neste artigo” (§ 3º do art. 888).
cipada do aderente a direito resultante da Não é de esquecer, por fim, que o
natureza do negócio (art. 423). Preceitua Projeto, espancando definitivamente
que é lícito às partes estipular contratos dúvida, declara:
atípicos, observadas as normas gerais “Haverá obrigação de reparar o
fixadas neste Código (art. 424). Vigoro- dano, independentemente de culpa,
samente estabelece que, nos contratos de nos casos especificados em lei, ou
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quando a atividade normalmente e traça o perfil das diferentes espécies de
desenvolvida pelo autor do dano sociedade: da sociedade não personificada
implicar, por sua natureza, risco – compreendendo a sociedade em comum
para os direitos de outrem” (pará- e a sociedade em conta de participação
grafo único do art. 926). (arts. 985-995); da sociedade personificada
É a consagração terminante do princípio – abrangendo a sociedade simples, a
da responsabilidade objetiva. sociedade em nome coletivo, a sociedade
em comandita simples e a sociedade
5. Direito de Empresa limitada (arts. 996-1.086); da sociedade
anônima (arts. 1.087-1.088); da sociedade
Na tentativa de unificar, mesmo par-
em comandita por ações (arts. 1.089-
cialmente, as obrigações civis e comercias,
o Projeto dedica Livro ao Direito de 1.091); da sociedade cooperativa (arts.
Empresa. Recepcionado no Anteprojeto 1.092-1.095); das sociedades ligadas
como Atividade Negocial, a Câmara dos (arts. 1.096-9.100); da sociedade de-
Deputados preferiu a denominação Direi- pendente de autorização – circunscreven-
to de Empresa. Como a expressão tem do a sociedade nacional e a estrangeira
amplitude suficiente, e, em verdade, não (arts. 1.122-1.140).
é o nomen iuris , mas a substância que Ao mesmo tempo, considera “estabe-
caracteriza a matéria, não se discutiu esse lecimento” “todo complexo de bens orga-
pormenor no Senado. O texto, em normas nizado, para exercício por empresário, ou
gerais e flexíveis, encerra conceitos bási- por sociedade empresária” (art. 1.141); e
cos, diretrizes gerais. ainda dos “institutos complementares”:
Assim, consigna que empresário é do registro (arts. 1.149-1.153); do nome
“quem exerce profissionalmente ativi- (arts. 1.153-1.167); dos propostos (arts.
dade econômica organizada para a pro- 1.168-1.170); do gerente (arts. 1.171-1.175);
dução ou a circulação de bens ou de do contabilista e outros auxiliares (arts.
serviços” (art. 965). Para impedir equí- 1.176-1.177); da escrituração (arts. 1.178-
voco, elucida que “não se considera 1.194).
empresário quem exerce profissão intelec- Ao Senado chegou o Projeto com ex-
tual, de natureza científica, literária ou clusão do contrato bancário, julgado
artística, ainda com o concurso de auxi- demasiado mutável, e das sociedades por
liares ou colaboradores, salvo se o exercício ações, por sua vinculação com o mercado
da profissão constituir elemento de em- de capitais. Desde que leis especiais
presa” (parágrafo único do art. 965). poderão estabelecer regulação adequada,
Determina que “o empresário que instituir não se reputou indispensável mudar o
sucursal, filial ou agência, em lugar sujeito procedimento.
à jurisdição de outro Registro das Empre- Em realidade, como ponderou o Profes-
sas, neste deverá também inscrevê-la, com sor Sylvio Marcondes, que elaborou essa
a prova da inscrição originária” (art. 968). parte do Projeto, o texto deve ser analisado
Determina que “a lei assegurará trata- “não somente à luz dos grandes
mento favorecido, diferenciado e simpli- focos, na contemplação de idéias.
ficado ao empresário rural e ao pequeno Igualmente grandes, mas vagas e
empresário, quanto à inscrição e aos imprecisas: o que cumpre é meditá-
efeitos daí decorrentes” (art. 969), distin- lo, na complexidade objetiva com
guindo, portanto, com espírito de justiça que se procura dar segurança jurí-
social. dica à totalidade dos fenômenos
A par de outras regras, prefigura, compreendidos na atividade nego-
genericamente, a sociedade (arts. 980-984) cial dos cidadãos”4.
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Convém acentuado, ainda, que nesse 1984 (art. 1.229 e § 1º), antes, pois, da
Livro do Direito da Empresa, sobretudo, o Constituição de 1988, que atribuiu relevo
estilo é marcadamente de regras gerais – à função social da propriedade (art. 5º,
a respeito de sociedade anônima só há dois incs. XXII e XXIII).
artigos –, de sorte que as mudanças ou Timbrando nessa técnica saneadora de
inovações que se tornem necessárias excessos patrimonialistas, o Projeto aplica
constem de leis especiais, resguardada a sanções ao “uso normal da propriedade”
estrutura do Código. (arts. 1.276-1.280) e protege os direitos de
vizinhança. Disciplinando o condomínio,
6. Direito das Coisas cria regras próprias para o condomínio
Como em relação ao Direito das Obri- edilício, notadamente para considerar o
gações, quanto ao Direito das Coisas que nele é “propriedade exclusiva” e o que
foram mantidas várias normas, a exemplo representa “propriedade comum” (arts.
as pertinentes ao conceito de possuidor e 1.330-1.345). Harmonizando-se com a
de posse. Não havia que as substituir, se Constituição, o Projeto reduz os prazos do
exprimem a verdade jurídica. usucapião, nas espécies contempladas
Nem por isso o Projeto mantém o (arts. 1.239-1.240), sempre com o intuito
espírito do Código vigente. A partir do de propiciar destino útil à propriedade.
conceito do direito de propriedade, a Na mesma orientação do Projeto
diferença é patente. O Código ainda em Orlando Gomes, o Projeto atual restaura
prática estabelece, sem imitação: “a lei o direito de superfície (arts. 1.368-1.376),
assegura ao proprietário o direito de usar, concorrendo mais para o aproveitamento
gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los econômico regular da propriedade, maté-
do poder de quem quer que injustamente ria que os Professores Ricardo Pereira Lira
os possua” (art. 524). A essa regra acres- e José Guilherme Braga Teixeira estudam
centa o Projeto: com proficiência.
“o direito de propriedade deve ser Relativamente à enfiteuse, o Projeto
exercido em consonância com as revisto não a extinguiu, como reclama a
suas finalidades econômicas e so- cultura jurídica, porque a Constituição
ciais e de modo que sejam preser- dispõe de modo que não autoriza sua
vados, de conformidade com o esta- eliminação sumária (art. 49, ABCT).
belecido em lei especial, a flora, a Conservou-a, apenas, no Livro Comple-
fauna, as belezas naturais, o equilí- mentar, reservado às disposições transitó-
brio ecológico e o patrimônio his- rias, e proibiu novas enfiteuses e subenfi-
tórico e artístico, bem como evitada teuses (art. 2.052). É o caminho para sua
a poluição do ar e das águas” (art. extinção.
1.227 e § 1º).
E ainda edita o texto em configuração final 7. Direito de Família
na Câmara dos Deputados: “São defesos O livro sobre o Direito de Família, desde
os atos que não trazem ao proprietário o Anteprojeto de 1975, que a Câmara dos
qualquer utilidade, e sejam animados pela Deputados de modo geral aprovou, repre-
intenção de prejudicar outrem” (§ 2º do sentava um avanço em relação ao Código
art. 1.227). É o reconhecimento pleno da vigente, aceitando “medidas que o tempo
função social de propriedade, obstativa aconselhou e que somente depois foram
dos abusos do privatismo. E de ver e objeto de legislação”. Assim observando
assinalar é que assim já dispunha o Projeto no Parecer Final, pormenorizamos, guar-
aprovado pela Câmara dos Deputados, em dando ainda agora a referência ao primi-
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tivo número dos artigos: “Antecipando-se dança do sistema do Projeto, a fim de
à Emenda Constitucional nº 9, de 1977 suprimir toda menção a filhos de dife-
(art. 1º), e à conseqüente Lei nº 6.515, de rentes categorias e a adoção ampla e
26 de dezembro de 1977, incluiu o divórcio restrita, desde que só subsiste uma, plena
entre as causas terminativas da sociedade e definitiva. Tornou-se imprescindível, por
conjugal (art. 1.574, IV). Precedendo ainda igual, conceituar a união estável, expres-
à Lei nº 6.515 (art. 50, 7), estabeleceu o samente prevista na Constituição como
regime da comunhão parcial de bens como “entidade familiar” (art. 226, § 3º). Em
o legal, na inexistência ou nulidade de procedimento eqüivalente, porém se
convenção (art. 1.558). Atribuiu a direção atentando nas singularidades da ordem
da sociedade conjugal, em colaboração, ao normativa de outros países, estipulou-se
homem e à mulher (art. 1.569), não sendo que lei especial regulará a adoção por
esta apenas auxiliar do “chefe”. Instituiu estrangeiro (art. 1.641).
o regime de participação final nos aquestos Todas as inovações impostas pela
(art. 1.700), assegurando que “cada côn- Constituição, ampliando o espírito social
juge possui patrimônio próprio e dessa do Direito de Família, inclusive prevendo
forma facilitando que ambos tenham o planejamento familiar, consubstanciam-
atividades autônomas, como já se verifica. se entre os atuais artigos 1.510 a 1.795.
Norma compreensível nesse quadro pre- Repetindo ou desdobrando o Projeto, no
ceitua que “as dívidas de um dos cônjuges, particular, cânones maiores, afigura-se
quando superiores à sua meação, não dispensável a referência individuada,
obrigam ao outro ou a seus herdeiros” aqui, aos textos respectivos.
(art. 1.714). Estipulou amplo regime de É oportuno esclarecer que o Projeto não
alimentos entre “parentes” e entre “côn- cuidou de relações entre pessoas do
juges”, como entre “pais e filhos”, consi- mesmo sexo porque a Constituição, no
derando o estado de necessidade e as plano da família, somente alude a vínculo
exigências de vida condigna (arts. 1.722 a do homem com a mulher. Assim preceitua
1.725), e assim realçando o vínculo de ao tratar de “união estável entre o homem
solidariedade na família. E ainda pres- e a mulher” (art. 226, § 3º), bem como ao
creveu que, “para a manutenção dos definir que “os direitos e deveres referen-
filhos, os cônjuges separados judicialmen- tes à sociedade conjugal são exercidos
te contribuirão na proporção de seus igualmente pelo homem e pela mulher”
recursos” (art. 1.731), aplicado, portanto, (art. 226, § 6º).
o princípio da justiça social. Certo é que a nova codificação, quer
A Constituição de 1988, contudo, foi por suas disposições originárias, quer pelas
além do Projeto, frisamos ainda no Pare- decorrentes da Constituição, imprime
cer, ao disciplinar “as relações entre os novo perfil à instituição da família.
cônjuges e as dos companheiros, bem como
as de parentesco, e a situação dos filhos, 8. Direito das Sucessões
compreendidos os adotivos”. No Livro do Direito das Sucessões, se
Daí ter sido amplamente modificado o há regras mantidas do atual regime, como
texto do Projeto, para o ajustar às provi- ocorreu noutras partes, notam-se normas
sões constitucionais, sobretudo na deter- inovadoras, na intenção de suprimir
minação de assegurar igualdade entre os poderes e formalidades excessivos, ou de
cônjuges, tanto quanto em relação aos facilitar a declaração de última vontade,
filhos, abrangidos os adotivos. No cumpri- em circunstâncias especiais. Nessa esfe-
mento das cláusulas superlegais, foi ra, o Projeto atual também modifica o
indispensável, para exemplificar, a mu- anterior, proveniente da Câmara dos
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Deputados, ampliando as restrições ao
poder de dispor dos bens.
9. Livro Complementar
Entre as normas que merecem realce, Reguladas, em cada domínio próprio,
apontam-se: as matérias de índole permanente, no
a) a que permite ser o testamento Livro Complementar, são estabelecidas as
público “escrito manualmente ou mecani- regras de transição. Por sua natureza,
camente”, bem como feito “pela inserção da visam a resguardar a segurança das
declaração de vontade em partes impressas relações jurídicas.
de livro de notas , desde que rubricadas Em princípio, atos e negócios jurídicos
todas as páginas pelo testador, se mais de celebrados na conformidade da legislação
uma” (art. 1876, parágrafo único); ora vigente são mantidos válidos, “mas os
b) a que autoriza ser o testamento seus efeitos, produzidos após a vigência
cerrado “escrito mecanicamente, desde que deste Código, aos preceitos dele se subor-
seu subscritor numere e autentique, com dinam, salvo se houver sido prevista pelas
a sua assinatura, todas as páginas” (art. partes determinada forma de execução”
1.880, parágrafo único); (art. 2.049). A locação do prédio urbano,
c) a que faculta ser o testamento que esteja sujeita a lei especial, por esta
particular escrito também mediante proces- continua a ser regida (art. 2.050). As
so mecânico (art. 1.888), reduzidas as disposições de leis “não revogadas por este
testemunhas a três (§ 1º), e não podendo a artigo”, e aplicáveis a empresários e
cédula conter “rasuras ou espaços em sociedades empresárias, bem como a
branco” (§ 2º); atividades mercantis, continuam a regular
d) a que concede que, “em circuns- sua situação (art. 2.051). “O regime de bens
nos casamentos celebrados na vigência do
tâncias excepcionais declaradas na cédula, o
Código Civil de 1916 é o por ele estabele-
testamento particular de próprio punho e
cido” (art. 2.053). Da mesma sorte, estão
assinado pelo testador, sem testemunhas,
protegidas as conseqüências da ordem da
poderá ser confirmado, a critério do juiz” (art.
vocação hereditária na sucessão aberta an-
1.891);
tes da vigência do novo Código (art. 2.055).
e) a que propicia “a quem estiver em
Inovando, porém, em nome do interes-
viagem, a bordo de aeronave militar ou se social, o Projeto não havia de manter
comercial”, poder “testar perante pessoa incondicionalmente todas as situações. Por
designada pelo comandante”, feito o isso, limita no tempo determinados casos.
registro da cédula no diário de bordo (art. Assim, as associações, sociedades e funda-
1.901, com remissão ao art. 1.900). ções, constituídas anteriormente, “terão
São relevantes, ainda, outras dispo- um prazo de ano” para adaptar-se ao
sições, como a determinante de que, novo regime legal (art. 2.045). Proíbe-se a
“mediante autorização judicial e havendo constituição de enfiteuses e subenfiteuses,
justa causa, podem ser alienados os bens “subordinando-se as existentes, até sua
gravados, convertendo-se o produto em extinção, às disposições do Código” ora
outros bens, que ficarão sub-rogados nos vigente e leis a este posteriores (art. 2.052).
ônus dos primeiros” (§ 2º do art. 1.860). Demais, prevenindo a hipótese de
De igual ou superior relevância é a regra situações preexistentes absurdas, opostas
proibitiva de ser a legítima dos herdeiros ao próprio espírito da Constituição de
necessários incluída em testamento (§ 1º 1988, o parágrafo único do art. 2.049 do
do art. 1.869). Sendo um direito de tais Projeto estipula:
herdeiros, não é justo que a legítima fique “Nenhuma convenção preva-
exposta a decisão circunstancial em lecerá se contrariar preceito de
cláusula testementária. ordem pública, tais como os estabe-
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lecidos por este Código para assegu- preliminar ao primeiro projeto do Código
rar a função social da propriedade e Civil francês, “a ciência do legislador
dos contratos”. consiste em encontrar, em cada matéria,
E prevê o Projeto que o Código entrará os princípios mais favoráveis ao bem
em vigor um ano após sua publicação, comum”5 .
revogados, então, o Código Civil atual, a O esforço desenvolvido no Senado teve
Parte Primeira do Código Comercial de esse objetivo. Se não alcançado, cabe à
1850, “e toda a legislação civil e mercantil” cultura jurídica oferecer as correções,
por ele “abrangida” ou “com ele incom- inclusive com a experiência dos advoga-
patível, ressalvado o disposto no presente dos, alicerçada no conhecimento dos fatos.
Livro Complementar” (art. 2.040).

10. Conclusão Notas


Eis a tentativa de expor, sucintamente, 1
MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do
as linhas mestras do Projeto, os relevos de projeto de Código Civil Brasileiro. São Paulo, Saraiva,
seu sistema. O intuito foi mostrar a 1986. p. 14-23.
ossatura principal da codificação, sem 2
MOREIRA ALVES, J.C. Ibidem, p. 96-99.
larga preocupação doutrinária. 3
REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. São
Importante é buscar a demonstração Paulo, Saraiva, 1986. p. 12.
4
MARCONDES, Sylvio. Exposição de Motivos
de que o texto, suscetível de aperfeiçoa-
Complementar. In: Código Civil: anteprojetos, Senado
mento, reveste-se de objetividade e con- Federal, v. 5, t. 2, p. 65.
temporaneidade para servir ao corpo 5
PORTALIS. Discours preliminaire au premier projet
social. Como observou Portalis no Discurso de Code Civil. France, Editions Confluences,1999. p. 23.

Brasília a. 37 n. 146 abr./jun. 2000 13

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