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Editora CRV - Proibida a comercialização

Editora CRV - Proibida a comercialização


Ana Maria de Vasconcelos
Maria Inês Souza Bravo
Silene de Moraes Freire
(organizadoras)
Editora CRV - Proibida a comercialização

DEMOCRACIA, POLÍTICA
SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2024
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem de Capa: Nikol85 | Freepik
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

D369

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Democracia, política social e serviço social / Ana Maria de Vasconcelos, Maria Inês Souza
Bravo, Silene de Moraes Freire (organizadoras) – Curitiba : CRV, 2024.
200 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-5904-1
ISBN Físico 978-65-251-5909-6
DOI 10.24824/978652515909.6

1. Serviço social 2. Democracia 3. Política Social 4. Conjuntura 5. Conservadorismo I.


Vasconcelos, Ana Maria de, org. II. Bravo, Maria Inês Souza, org. III. Freire, Silene de Moraes,
org. IV. Título V. Série.

CDU 364 CDD 364


Índice para catálogo sistemático
1. Serviço social - 364

2024
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
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Gloria Fariñas León (Universidade


de La Havana – Cuba)
Guillermo Arias Beatón (Universidade
de La Havana – Cuba)
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Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................................ 9
Ana Maria de Vasconcelos
Maria Inês Souza Bravo
Silene de Moraes Freire

PREFÁCIO
A UNIVERSIDADE PÚBLICA E O SERVIÇO SOCIAL RESISTIRÃO,
APESAR DE TUDO ....................................................................................... 15
Ana Elizabete Mota

PARTE I
TEMAS DE POLÍTICAS SOCIAIS
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RESISTIR E ENFRENTAR – CONTRA O FASCISMO E CONTRA O


CAPITAL ......................................................................................................... 23
Virgínia Fontes
DOI 10.24824/978652515909.6.23-34

AS ILUSÕES DEMOCRÁTICAS DAS POLÍTICAS URBANAS E A


EXPROPRIAÇÃO PERSISTENTE NO BRASIL .......................................... 35
Silene de Moraes Freire
Thaís Lopes Cortes
José Henrique Galdino
DOI 10.24824/978652515909.6.35-53

TEORIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL:


uma reflexão crítica acerca do Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos (2019-2022) ....................................................................... 55
Maíra Carvalho Pereira
DOI 10.24824/978652515909.6.55-69

EMANCIPAÇÃO POLÍTICA, EMANCIPAÇÃO HUMANA:contribuições


a partir da Crítica da Economia Política .......................................................... 71
Morena Gomes Marques
DOI 10.24824/978652515909.6.71-86

QUESTÃO AGRÁRIA E RACISMO NA FORMAÇÃO SOCIAL


BRASILEIRA: um estudo a partir do modo de produção escravista .............. 87
José Amilton de Almeida
DOI 10.24824/978652515909.6.87-100
PARTE II:
SERVIÇO SOCIAL E RESISTÊNCIA AO CONSERVADORISMO

SAÚDE NO GOVERNO BOLSONARO, LUTAS CONTRA A


PRIVATIZAÇÃO
E CONTRIBUIÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL .............................................. 103
Maria Inês Souza Bravo
Juliana Souza Bravo de Menezes
DOI 10.24824/978652515909.6.103-118

A REUNIÃO COMO DIREITO, COMO ESTRATÉGIA E COMO


INSTRUMENTO NO SERVIÇO SOCIAL ................................................... 119
Ana Maria de Vasconcelos
DOI 10.24824/978652515909.6.119-139

EXPRESSÕES DO CONSERVADORISMO CONTEMPORÂNEO NO

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SERVIÇO SOCIAL....................................................................................... 141
Ana Luiza Avelar de Oliveira
DOI 10.24824/978652515909.6.141-157

EM NOME DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO: evidências de ecletismos


teóricos e da heterogeneidade política no Serviço Social ............................. 159
Jonatas Lima Valle
DOI 10.24824/978652515909.6.159-176

A SAÚDE DO TRABALHADOR E DA TRABALHADORA NO SUS E A


CONTRIBUIÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL .................................................. 177
Debora Lopes de Oliveira
DOI 10.24824/978652515909.6.177-191

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 193

SOBRE AS (OS) AUTORAS (ES): .............................................................. 197


APRESENTAÇÃO

“O desafio da modernidade é viver sem


ilusões, sem se tornar desiludido”
(Antonio Gramsci)

A coletânea enseja uma ampla e substanciosa abordagem sobre temáticas rela-


cionadas ao tema “Democracia, Política Social e Serviço Social”, em nosso país.
A atualidade do livro expressa a relevância das produções docentes, discentes e de
egressos do PPGSS, assim como um campo de concentração de estudos críticos que
tem sido a marca do nosso Programa.
Ao se deparar com uma coletânea como essa, que congrega diferentes estudos
no campo do marxismo, fica a certeza que os leitores perceberão que a tentativa de
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negar a evolução do conhecimento humano é uma tarefa irrealizável. A Universi-


dade Pública resiste e sua resistência no Serviço Social se traduz na produção de um
conhecimento autônomo e emancipatório.
As páginas que o leitor encontrará nesse livro, de estudos inéditos, majoritaria-
mente originados de pesquisas docentes, teses e dissertações de inspirações marxis-
tas, chegam ao público num contexto absolutamente relevante. Após os 50 anos de
neoliberalismo na América Latina, completados no ano de 2023, essa obra destaca
a importância do seu legado para as lutas e resistência da classe trabalhadora, num
momento de profunda crise econômica e retrocessos sociais aprofundados nos gover-
nos de Bolsonaro e Temer, que permanecem como desafios ainda no novo governo
Lula da Silva. Afinal, ainda estamos na antessala do fascismo, enfrentando uma
ameaça permanente e real, e precisamos sair das ilusões de um socialismo mágico e
afinarmos nossas críticas para construção de propostas que não percam o viés trans-
formador e de classe. A análise política, na perspectiva da emancipação humana, não
pode ser maniqueísta, positivista e sem dialética e realidade, aspectos que geram uma
antropomorfização dos sujeitos coletivos e um rebaixamento da luta de classes que
aparece como um conflito entre classes estáticas, com líderes conciliadores.
Não seria exagero afirmarmos que além da crise econômica, o momento
atual parece não deixar dúvidas que o neoconservadorismo tem sido a tônica da
política brasileira nos anos dessa terceira década do século XXI. A razão disso é o
significado social, a instrumentalidade que o pensamento e a práxis conservadoras
representam na contemporaneidade.
Não por acaso, são muitos os estudiosos que hoje confirmam que um dos
caminhos necessários do exercício profissional na perspectiva de projeto do Ser-
viço Social é o aprofundamento teórico-crítico de desvelamento dos limites e das
possibilidades do fazer profissional.
É num contexto de profundas alterações e despolitização da política que as lutas
guiadas pelo compromisso com as classes subalternas têm valor estratégico e devem
explicitar a profunda desigualdade social, as formas de exploração e de opressão
10

vivenciadas na atualidade. O seu enfrentamento exige uma nova forma de organizar


as relações sociais fundadas também na socialização do conhecimento produzido.
A coletânea que ora vem a público tem por intencionalidade fortalecer a luta do
exercício profissional crítico e comprometido. Assim, esta obra também apresenta ao
leitor, estratégias coletivas para afirmar profissões voltadas para defender os direitos
e conquistas acumuladas ao longo das lutas das camadas da classe subalterna no
Brasil e, sobretudo, comprometida com a radical democratização da vida social no
horizonte da defesa e garantia dos direitos.
A obra foi dividida em duas partes: Temas de Políticas Sociais e Serviço Social
e Resistência ao Conservadorismo. Inaugurando a primeira parte, apresentamos o
texto de Virginia Fontes intitulado: “Resistir e enfrentar – contra o fascismo e contra
o capital”. No estudo a autora observa que o sujeito central do tempo de catástrofes
é uma figura abstrata e contraditória, o capital. É sempre bom lembrar que sob essa
figura gelatinosa existe um modo de produção, ou seja, uma maneira social de ser, de
viver, de sentir, de organizar o sociometabolismo. Está claro como nunca esteve em

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escala internacional, que a dinâmica do capitalismo é hoje o maior obstáculo a uma
vida social menos desigual e à defesa de um sociometabolismo capaz de assegurar
simultaneamente a vida social humana e a preservação da natureza. Para Fontes é
preciso construir outra pauta, que combine resistência e enfrentamento, que entenda
que o Estado não se limita aos setores institucionais e que a dominação de classes
ocorre em todos os espaços da vida social. E que é do capital e de sua defesa que
brotam fascismos.
O segundo capítulo da obra “As Ilusões Democráticas das Políticas Urbanas e
a Expropriação Persistente no Brasil” de autoria de Silene de Moraes Freire, Thaís
Lopes Cortes e José Henrique Galdino busca analisar a complexidade do espaço
urbano e sua relação direta com os interesses do capital. Para os autores, as cidades
se tornaram um dos lócus privilegiados da acumulação de capitais. Desta feita, o
negócio e a oportunidade do negócio ganharam a primazia e se tornaram fundamentos
essenciais para a gestão das políticas públicas urbanas. Assim, a ingerência do Estado
visa ordenar o espaço de acordo com as necessidades da reprodução do capital em
seu estágio altamente desenvolvido e monopolizado. Desse modo, os autores rea-
firmam que as políticas urbanas se tornaram cada vez mais excludentes e seletivas,
demonstrando a ilusão democrática de tais políticas.
No terceiro capítulo, Maíra Carvalho Pereira discute o tema oriundo de sua
pesquisa de dissertação, “Teoria da Reprodução Social: uma reflexão crítica acerca
do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (2019-2022)”, com o
objetivo de fortalecer a tese de que há uma relação entre o metabolismo socioeco-
nômico do modo de produção capitalista e a desigualdade de gênero. Na sociedade
capitalista dividida por classes, a classe dominante se apropria da força de trabalho
de frações de classe dominadas expropriando um excedente de trabalho que não é
remunerado. Assim é de suma importância que possamos lançar mão da Teoria da
Reprodução Social – conceito criado pela vertente unitária do feminismo de tradição
marxista – que explicita haver uma relação entre os âmbitos da produção e reprodução,
tendo por centralidade a produção/reprodução da vida na dinâmica contraditória da
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 11

relação entre capital e trabalho. A partir disso, a autora buscou analisar o Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em que se percebe o fortalecimento
da naturalização do trabalho não remunerado no âmbito da família como uma con-
dição intrínseca feminina.
O quarto capítulo da primeira parte “Emancipação política e emancipação
humana: contribuições a partir da Crítica da Economia Política”, de autoria de
Morena Gomes Marques, realiza uma análise crítica dos conceitos de emancipação
política e emancipação humana, de modo a demonstrar a natureza fundamental-
mente burguesa da primeira e o caráter anticapitalista da segunda. Em igual sentido,
apresenta o “Estado Político” na sua condição de “capitalista total ideal” e principal
responsável em propiciar as condições gerais de valorização do capital. A autora parte
da hipótese de que a forma predatória assumida pelas expropriações contemporâneas
impõe uma inflexão à emancipação política, aproximando-a da sua forma residual
originária como antes descrita por Marx.
O capitulo “Questão agrária e racismo na formação social brasileira: um estudo
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a partir do modo de produção escravista” de autoria de José Amilton Almeida é fruto


de uma pesquisa de doutorado dedicada ao estudo do modo de produção escravista
no Brasil, e cujo foco centrou-se no papel da monopolização da terra e da força de
trabalho escravizada no processo de produção do valor, assim como nas suas formas
de alienação e nas expressões contemporâneas desse processo. Este breve estudo apre-
senta indagações, os caminhos da pesquisa, algumas hipóteses e resultados. Trata-se
da exposição parcial de um estudo teoricamente embasado na crítica da economia
política e mediado através de pesquisa bibliográfica e revisão teórica. O objetivo é
apresentar uma rápida síntese dos principais fundamentos e dos nexos intrínsecos
entre questão agrária e racismo no seio da formação social brasileira, as quais se
lançam do passado escravista, vêm chocar-se com o presente e nos desafiar diante da
necessidade da construção de uma sociedade humanamente emancipada no futuro.
Na segunda parte de nossa coletânea: Serviço Social e Resistência ao Con-
servadorismo são apresentados mais cinco produções, desta vez, com mediações
diretamente relacionadas ao serviço social. No primeiro artigo desta seção, de autoria
de Maria Inês Bravo e Juliana Bravo de Menezes, as autoras abordam a “Saúde no
Governo Bolsonaro, lutas contra a privatização e contribuição do Serviço Social”.
O estudo analisa a política de saúde no governo de Bolsonaro e o enfrentamento do
novo Coronavírus. A pandemia da covid-19 agravou as condições de crise econô-
mica, ambiental e sanitária, pondo em evidência os sistemas de saúde. O contexto
pandêmico reforçou a necessidade e a importância de fortalecer o Sistema Único de
Saúde (SUS). Por fim, as autoras ressaltam as lutas travadas pela “Frente Nacional
contra a Privatização da Saúde” diante desse cenário e a contribuição do Serviço
Social na assessoria aos movimentos sociais.
Na sequência, apresentamos o capítulo de autoria de Ana Maria de Vascon-
celos, “A reunião como direito, como estratégia e como instrumento no Serviço
Social”, onde a autora afirma que a escolha dos instrumentos e técnicas a serem
operados pelo assistente social está condicionada a referências ético-políticas e teó-
rico-metodológicas do profissional – explícitas ou implícitas -, as quais orientam o
12

planejamento da atividade profissional quando, ao utilizar a capacidade teleológica


própria dos seres humanos de antever os resultados desejados, nos colocamos como
sujeitos da prática e tornamos mais potente e poderosa nossa relativa autonomia e
sua realização. O estudo aborda a atuação dos assistentes sociais junto a segmentos
da classe trabalhadora quando a escolha do instrumento reunião se torna necessária
e estratégica, mais ainda diante da recusa de grande parte dos assistentes sociais em
priorizar esse instrumento no contato como os trabalhadores.
Na esteira da reflexão sobre o Serviço Social, Ana Luiza Avelar de Oliveira,
tendo como referência para análise a tradição marxista, apresenta o capítulo “Expres-
sões do conservadorismo contemporâneo no Serviço Social” que tem o objetivo de
compreender algumas expressões do conservadorismo contemporâneo no Serviço
Social. Para tanto, em um primeiro momento, foi feita análise de alguns autores de
correntes do pensamento conservador contemporâneo que têm incidência no Brasil
e, posteriormente, procedeu-se uma análise de alguns autores brasileiros que são
considerados referência para o debate conservador no presente. Do ponto de vista

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metodológico, optou-se por realizar uma pesquisa documental a partir da análise
de três páginas no Facebook que têm como proposta debater o Serviço Social para
além do que vem sendo construído pelo chamado “pensamento hegemônico”, quais
sejam, “Serviço Social Libertário”, “Serviço Social Conservador” e “Serviço Social
e Pluralismo”. A partir das análises, observou-se que os movimentos conservadores
presentes, atualmente, na profissão, possuem alguns traços que lhes garantem unidade,
que retomam elementos das vertentes “modernização conservadora” e “reatualização
do conservadorismo”, do processo de renovação do Serviço Social brasileiro.
Ainda no campo do debate profissional, Jonatas Lima Valle apresenta “Em nome
do projeto ético-político: evidências de ecletismos teóricos e da heterogeneidade
política no Serviço Social”. A discussão resgata um conjunto de produções teóricas
acerca do projeto ético político, no intuito de estabelecer uma mediação entre a
síntese desse acúmulo e determinados dados colhidos na tese de doutorado do autor.
Esse movimento visa evidenciar que, por trás de uma multiplicidade de concepções
de “projeto ético-político” corre uma disputa – não apenas filosófica, mas também
concreta – entre parcela importante daquela heterogeneidade de projetos profissio-
nais presentes, hoje, na profissão. Mais do que evidenciá-los, a discussão propõe
um diálogo com a formação profissional, chamando a atenção para a necessidade
de se adensar a discussão direcionada às mediações com o cotidiano interventivo,
enfatizando-se, para tanto, o plano teleológico.
Debora Lopes de Oliveira, nos apresenta o capítulo “A saúde do trabalhador e
da trabalhadora no SUS e a contribuição do Serviço Social” onde objetiva discutir a
Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (STT) no Sistema Único de Saúde, tecendo
algumas contribuições do Serviço Social para o debate e para a implementação de
ações e práticas no SUS. Ao considerar as ameaças às conquistas e direitos da classe
trabalhadora e seus os impactos, a autora evidencia a centralidade do trabalho na vida
social e expõe as contradições da relação capital e trabalho, face ao adoecimento e
morte dos(as) trabalhadores(as) decorrentes da exposição aos riscos no trabalho. Para
tanto, discute a STT como questão de saúde pública, elucidando sua origem como
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 13

questão e como campo, traça os caminhos percorridos na sua institucionalização no


SUS, recuperando as tensões, limites e desafios e, ao final, tece considerações sobre
a contribuição do Serviço Social para a incorporação das ações de STT no SUS.
Os capítulos apresentados incitam a leitura a partir de abordagens críticas e
revelam um expressivo conjunto da produção de nosso PPGSS. Desta forma, certas
da contribuição da nossa obra, desejamos a todos/as excelentes leituras.

Rio de Janeiro/UERJ, novembro de 2023

Ana Maria de Vasconcelos


Maria Inês Souza Bravo
Silene de Moraes Freire
(Organizadoras)
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PREFÁCIO
A UNIVERSIDADE PÚBLICA E O
SERVIÇO SOCIAL RESISTIRÃO,
APESAR DE TUDO
Ana Elizabete Mota

O título que dei a este prefácio foi parcialmente extraído da apresentação do


livro Democracia, Política Social e Serviço Social, escrito pelas organizadoras,
professoras Ana Maria Vasconcelos, Maria Inês Bravo e Silene Freire, docen-
tes permanentes do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro e que tenho o prazer de prefaciar. A


coletânea é integrada por capítulos de autoria de pesquisadores e pesquisadoras de
diversas gerações, desde os jovens que passaram pelas salas de aula da Faculdade
de Serviço Social da UERJ até as minha amigas decanas, Ana e Inês, que, como
eu, são mulheres septuagenárias altivas que labutam na vida, na conservação das
amizades e dos amores e não “arredam o pé” na defesa de um Serviço Social crítico
e progressista, pelejando por uma formação profissional e intelectual afinada com
os desafios da sociedade brasileira.
Presente em praticamente todos os capítulos do livro, pareceu-me consensual
o reconhecimento da dimensão política do Serviço Social que, das suas origens até
os meados da década de 1970, foi balizado, preponderadamente, por uma direção
tradicional e conservadora, somente vulnerabilizada nos finais daquela década, sob o
impulso do exaurimento da ditadura empresarial militar. O marco temporal e referen-
cial dessa renovação é o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, conhecido
como “Congresso da Virada”, realizado em setembro de 1979, quando a profissão
assumiu publicamente um longo e contínuo processo de politização à esquerda dos
e das assistentes sociais.
Essa trajetória é legatária da construção de uma cultura profissional que incor-
porou às suas práticas profissionais e na experiencia formativa as pautas dos movi-
mentos sociais e sindicais e as lutas sociais das classes subalternas; encontrando, na
teoria social crítica de inspiração marxiana, o impulso prático-político e intelectual
para conhecer, problematizar e decifrar criticamente a formação social brasileira e
as demandas da ação profissional. Definitivamente, impulsionou, nos planos teóri-
co-político e prático-operativo, a definição de princípios, valores e diretrizes que
vieram a compor o ideário e a programática progressista do Serviço Social brasileiro.
Assim, ao desvendar as determinações da desigualdade social e as estratégias
de dominação e exploração, mediadas por particulares mecanismos de expropriação
e opressão, a profissão identificou na dinâmica contraditória da sociedade capitalista,
16

os fenômenos e processos que exigiam rigoroso tratamento teórico-metodológico e


histórico, o que lhes daria a “régua e o compasso” para imprimir uma direção social
ético-política à pratica profissional. Acionando meios e estratégias, iniciou-se um
persistente processo de contestação e insurgência ao lugar designado pelas classes
dominantes como a razão de ser da profissão. Essa questão foi brilhantemente sinteti-
zada por Marilda Iamamoto1, no livro Serviço Social e Relações Sociais, publicado em
1982, ao afirmar que “O Assistente Social passa a receber um mandato diretamente das
classes dominantes para atuar junto à classe trabalhadora. A demanda da sua atuação
não deriva daqueles que são alvo dos seus serviços profissionais, os trabalhadores e
trabalhadoras [...]” (1982, p. 83), mas é convocada pelos “de cima”, sob sua direção,
inclusive mediada pelo Estado, para atender necessidades das classes subalternas.
Como afirmei em outra ocasião2, o Serviço Social contrapôs-se no seu para-
doxal processo de renovação, ao lugar que o capitalismo monopolista lhe reservara,
abraçando uma direção social oposta àquela para a qual foi criado, como inscrito
no código de ética vigente, nas diretrizes da formação e nas tendências da produção

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do conhecimento, contestando aquele mandato ao qual nos referimos, embora sob
condições e relações socialmente determinadas (Mota, 2017, p. 47).
Fundamentais e mediadoras desse movimento foram a organização política da
categoria levada a efeito pela vanguarda profissional: as mudanças no conteúdo da
formação, a democratização das universidades, o desenvolvimento da pesquisa e da
pós-graduação em Serviço Social. Vale destacar a importância dos quadros intelectuais
e lideranças da profissão em meio à ebulição da militância de esquerda nos gloriosos
anos 1980. Seus efeitos se fizeram sentir na reconfiguração das entidades da cate-
goria, no ensino, nos objetos de pesquisa, na articulação política de esquerda, com
desdobramentos sobre as práticas profissionais que passaram desde então a sintonizar
com as lutas por novos direitos e pela democratização do Estado e da sociedade.
Essa cultura profissional rebelde e insurgente vai amadurecendo ao longo dos
ultimos quarenta anos sob os influxos das conquistas sociais, dentre elas a liberdade
de imprensa e organização, a Constituição de 1988, a formação de centrais sindicais,
a criação de novos partidos vindo, posteriormente, a operar uma unidade entre a
atividade prático-profissional e a dimensão intelectual e política da profissão.
Em síntese: essa nova cultura profissional continha e contém uma direção social
estratégica3 (Netto, 1996, p. 116) colidente com os interesses do grande capital.
Considerada protagonista da intenção de ruptura com o conservadorismo, ela per-
mitiu a criação de uma massa crítica no Serviço Social de caráter anticapitalista e
progressista. Voltando às decanas referidas nos parágrafos iniciais deste prefácio e a
muitas outras e outros com as quais estivemos juntas, “a geração da virada”, nacional
e regionalmente, pôde impulsionar junto às novas gerações, a incorporação dessa

1 IAMAMOTO, Marilda V. e Carvalho, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço e uma
interpretação histórico-metodológica. 21. Lima, Peru: ed. Cortez: :CELATS, 2007.
2 MOTA, A. E. 80 anos do Serviço Social brasileiro: conquistas históricas e desafios na atual conjuntura. Serv.
Soc. Soc., São Paulo, n. 128, jan./abr. 2017, p. 47
3 NETTO, José Paulo. Transformações Societárias e Serviço Social: notas para uma análise prospectiva da
profissão no Brasil. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, ano 17, n. 50, 1996.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 17

nova cultura que está na base do projeto profissional do Serviço Social brasileiro. Na
minha percepção, essa processualidade fertiliza e fertilizou o terreno de um ideário
profissional enfeixado no que denominamos de Projeto ético-político do Serviço
Social brasileiro e que defino como nossa ideologia insurgente, progressista e orgâ-
nica a um projeto societário.
A minha hipótese (e o conteúdo deste livro parece comprovar) é de que o Serviço
Social que hoje conhecemos, recolhe do exercício profissional e da relação com a
realidade um conjunto de temas e questões que têm capilaridade para além da inter-
venção profissional propriamente dita, razão maior do seu significado social não se
ater à dimensão técnico-interventiva, cuja importância não pode ser menosprezada,
mas também não pode ser supervalorizada. Argumento que o Serviço Social brasi-
leiro não se restringe à intervenção imediata sobre a realidade, mas avançou rumo a
uma intervenção mediata, resultado da já referida insurgência e rebeldia em relação
à divisão técnica do trabalho e do saber, ou seja: vem se constituindo também numa
área de produção do conhecimento que pode não se voltar exclusiva e imediatamente
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às requisições do fazer profissional como contestam os conservadores que criticam


o marxismo por não dar resposta direta à pratica profissional.
Essas dimensões requerem esclarecimentos: a) enquanto a produção teórico-inte-
lectiva pode não materializar respostas imediatas às demandas da prática profissional;
b) o exercício profissional, por sua vez, ao referenciar-se nessa produção, necessita
de outros aportes que são inerentes ao mundo do cotidiano, às ações institucionais e
dependem de condições objetivas para efetivação de programas, políticas e projetos de
intervenção. Por isso mesmo, defendo que o Serviço Social brasileiro adensou a sua
intervenção na realidade através da construção de uma cultura profissional e intelec-
tual crítica, redefinindo a sua representação intelectual e social até então caracterizada,
prioritariamente, pelo exercício profissional, na qual a ação profissional imediata teve
primazia sobre o estatuto intelectual e teórico da profissão. E o fez exercitando um
movimento em que as situações-objeto da atuação profissional são também objeto do
conhecimento e de intervenção política, o que lhes permite apreender os nexos entre
os objetos da ação profissional e os das lutas sociais no âmbito da formação social
e das conjunturas da sociedade brasileira de que são exemplares as relações entre: a
precária oferta de bens e serviços sociais públicos e os processos de privatização e
mercantilização das políticas públicas; as expressões do desemprego e do trabalho
precário e os requerimentos da reestruturação e restauração capitalista; as diversas
expressões da pobreza e as modernas expropriações de direito e acesso a bens, ser-
viços públicos; as diversas manifestações de racismo, machismo, homofobia e das
violências em geral com os traços patriarcais, conservadores e retrógados presentes
na realidade, dentre tantos outros. Enfim, o trânsito entre o âmbito das singularidades
da atuação prático-operativa cotidiana e as tendências macro políticas da sociedade
que exigem a realização de pesquisa concreta de situações concretas, a definição de
linhas estratégicas de pesquisa nos programas de pós-graduação, a formação graduada
articulada às demandas da sociedade, o acesso não mercantil a essa produção técnica
e intelectual e uma universidade laica, democrática, politizada, plural, antirracista,
comprometida com as reais necessidade das classes subalternas.
18

Devidamente contextualizada, essa cultura pode esgarçar-se, dependendo do


contexto e da correlação de forças e tendências da luta de classes, operando reveses ,
como enfaticamente abordam os capítulos desse livro, sobretudo na atual conjuntura
mundial e continental, onde amplia-se a direção da direita ultraneoliberal, conserva-
dora e reacionária, sob inspiração de ideologias e práticas fascista, o que, no limite,
ameaça conquistas históricas dos trabalhadores e podem operar inflexões substantivas
no ideário ideopolítico do Serviço Social brasileiro. A ofensiva de então revela a exis-
tência de um conservadorismo de novo tipo4 (Mota: Rodrigues, 2023), distinto daquele
vigente nas pelejas dos anos finais de 1970 e de tantas outras que historicamente se
apresentaram nos anos 1990. Enfrentar o conservadorismo reacionário de agora requer
que reforcemos uma das principais lições do Congresso da Virada: conjugar a luta
política com a luta teórica, pois ainda que seja indispensável reforçar a aliança com
os movimentos sociais, tradicionais e/ou emergentes, que não se vergaram à ordem,
o acerto das estratégias de enfrentamento dessa cultura regressiva da crise de então5
(Mota, 2019, p. 174), que se espraia na sociedade e atinge a profissão, dependerá,

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em grande medida, do conhecimento acurado do conservadorismo contemporâneo e
dos estreitos fios que o ligam ao projeto do grande capital: seus ardis para fomentar
o capital financeiro, a concentração de riquezas, a pilhagem do fundo público e o
aumento da desigualdade (Mota; Rodrigues, 2023).
O crescimento da ultradireita internacional, neofacista, com pretensões de massa,
inclusive apropriando-se – no campo reacionário – de uma espécie de “rebeldia
popular que era nossa”6, com pautas morais, desmonte democrático, apoio às medidas
neoliberais e supressão de direitos sociais, mostra a sua extensão, em prol da barbárie.
São notórias as implicações desse processo na conjuntura brasileira dos últimos
4 anos, todavia temos que louvar a nossa resistência, com a vitória de Lula da Silva e
o retorno da militância às ruas, na mais acirrada campanha eleitoral que minha geração
assistiu, derrotando a candidatura neofacista e de extrema direita de Jair Bolsonaro.
Mas ganhamos apenas uma batalha, não a guerra, fato demonstrado pelas tentativas
de golpe, pela atuação do Congresso Nacional, das instâncias legislativas estaduais
e municipais e, principalmente, na existência de bases sociais populares, integradas
por frações de trabalhadores e classe média, numa direitização inaudita.
São muitos os paradoxos e contradições do atual governo, que se elegeu à base
de uma frente ampla, com presença de setores dos mais diversos, inclusive bancos,
empresariado, mídia corporativa, partidos de esquerda, centro e direita, movimentos
sociais e sindicais de diversos espectros políticos. Ainda assim, advogo que não

4 MOTA, A. E.; RODRIGUES, Mavi. “O Serviço Social brasileiro em tempos de neofascismo: ameaças
a cultura crítico-profissional. 2023”. Comunicação apresentada no V Encuentro Laitnoamericano de
Profesionales, docentes y estudiantes de trabajo social. Crise do capital, irracionalismo e Serviço Social
Debates contemporáneos, interpelaciones desde una perspectiva critica. 2023. Tandil – Argentina, 18 a 20
de maio de 2023.
5 MOTA, A.E. 40 ANOS DA VIRADA DO SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL: LIÇÕES E DESAFIOS In: MEDEIROS,
Evelyne, NOGUEIRA, L e BEZERRA, L (Orgs), Formação Social e Serviço Social: a realidade brasileira
em debate. São Paulo, Outras Expressões, 2019.
6 Sobre o tema, ver STEFANONI, P. ¿La Rebeldía se volvió de Derecha? Buenos Aires, Siglo XXI Ed.,
Argentina, 2022.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 19

vivemos o mais do mesmo. No meu entendimento, nossas pautas não foram apagadas,
mas precisamos (re)politizá-las com autonomia organizativa, vigilância e mobiliza-
ção política. Vivemos o que Gramsci conceituou como uma crise orgânica7, aquela
que, ao se originar no ambiente econômico, transita para o ambiente político. Uma
das características da crise orgânica é a concomitância entre a crise econômica (de
acumulação) e a emergência de uma crise política, determinada pelo acirramento dos
conflitos entre as classes e, no seu interior, entre as frações de classe. Ao se ampliar
para o campo das relações políticas, ideológicas, culturais, seus efeitos atingem a
essência das relações de classe, incidindo no conteúdo das lutas sociais.
Como qualquer fenômeno social, a sua compreensão requer contextualização
histórica: situá-la nas condições macrossociais da dinâmica capitalista, entender a
particularidade brasileira, seus traços estruturais conjunturais e a correlação de forças
entre as classes. Nosso cenário é de fragilidade após mais de 30 anos de ofensiva
neoliberal, acirrada desde o golpe de 2016, quando o desmonte de direitos trabalhistas
e sociais, a precariedade e insuficiência das medidas de proteção social pública e de
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programas sociais, em todas as esferas, transformou-se no programa ultraneoliberal


do último governo.
No caso brasileiro, cuja formação social tem raízes no sistema colonial, no
trabalho escravo e no latifúndio, a modernização capitalista assentou-se historica-
mente na dependência e subordinação ao capital-imperialista, sob a dominação da
autocracia burguesa, caracterizada pela exclusão política das classes trabalhadoras
e subalternas, cujos modos de ser e de viver carregam marcas de relações sociais de
classe em suas expressões generificadas, racializadas, oprimidas, superexploradas e
socialmente desprotegidas.
Nesse ambiente, o oportunismo e as estratégias das classes dominantes adqui-
riram fôlego: seja através das ações do Estado, seja através dos aparelhos privados
de hegemonia, num clima de acirrada conflituosidade política de classes, sendo que
o principal destaque dessa ofensividade se faz pelo uso das mídias sociais e das tec-
nologias de comunicação robotizadas pela internet, seja sob a forma de fake news ou
de apelos publicitários, através da ação de influenciadores digitais, afetando todos
os aspectos da vida cotidiana e da sociabilidade com o propósito de tornar subjetiva
a objetividade das exigências do capital na implementação de medidas necessárias
aos seus modos de operarem o enfrentamento da crise capitalista8 (Mota; Rodri-
gues, 2020).
Nesse contexto, a nossa cultura profissional anticapitalista, tida como “majori-
tária”, pode se fragmentar, ora pelos pós-modernos, ora pelo neofascismo, ora pela
ausência de unidade das esquerdas. Questões que emergem na singularidade das
demandas sociais estão a exigir pesquisas e sínteses no campo das contrarreformas
do Estado, das ideologias do senso comum, do perfil das políticas públicas e de
questões, como o racismo, os preconceitos, as discriminações e as violências de toda

7 Para uma síntese do conceito ver VOZA P. e LIGUORI G. Dicionário Gramsciano. São Paulo, Boitempo,
2017 p.162-164.
8 MOTA, A. E., & RODRIGUES, M. Legado do Congresso da Virada em tempos de conservadorismo
reacionário. Revista Katálysis, 23(2), p.204, 2020. https://doi.org/10.1590/1982-02592020v23n2p199.
20

ordem. Aparentemente individuais e pontuais, os fenômenos em curso clamam por


serem tratados prospectiva e pedagogicamente na contracorrente da “pedagogia da
hegemonia das classes dominantes”9 (Neves, 2005).
Como já afirmado em outras ocasiões, sob determinadas relações e utilizando
algumas mediações, a pedagogia da cultura regressiva da crise (Mota, 2019) levada
a efeito pelas classes dominantes e seu Estado, consiste em metabolizar objetiva e
subjetivamente a produção de consensos ativos e passivos das classes subalternas,
inclusive transformando-os em tarefas profissionais. A burguesia investe para que as
classes subalternas assimilem como seus/suas os costumes e as ideias propagandeadas
pelos aparelhos privados de hegemonia da direita e da extrema direita, orgânicos às
exigências da acumulação, socializando seu projeto social e moral.
A bem da verdade, não se trata de algo inédito no Brasil, esse processo tem
marcas históricas e podem ser creditadas ao genético conservadorismo das classes
dominantes: antidemocrático, antirreformista, patrimonialista, misógino, machista,
homofóbico, dentre outros. E não nos enganemos: há capilarização dessas ideologias

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da extrema direita (nesta segunda década do século XXI) entre segmentos das classes
subalternas, especialmente, os extratos mais expostos à insegurança e precarização
decorrentes das medidas de flexibilização do trabalho e desproteção legal e social
que – não por coincidência, são parte da população que precisa das políticas sociais,
dos bens públicos e dos programas e serviços sociais compensatórios, protetivos, de
acolhimento e acesso a meios materiais de sobrevivência.
São tempos muito difíceis e desafiadores, mas é preciso dizer que por mais que
essa onda conservadora e regressiva venha se apresentando objetiva e subjetivamente
com um surpreendente caráter ofensivo e tenha pretensões de tornar universal o seu
projeto de classe e sua visão de mundo, ela não apaga as possibilidades da resistência
e insurgência social e profissional. O que me faz repetir a sábia afirmação grams-
ciana de que a realidade atual precisa ser enfrentada com o otimismo da vontade e o
pessimismo da razão. Essa recomendação, caros e caras leitoras, pode ser o ponto de
partida para motivá-los encontrar na leitura desse livro, muitas das reflexões que nos
ajudará a pensar sobre as determinações e manifestações da atual conjuntura mundial
e brasileira e a enfrentar, com o impulso da nossa histórica resistência de esquerda,
os desafios da universidade brasileira e do Serviço Social.

Recife, novembro de 2023.

9 NEVES, Maria Lúcia W. (Org.). A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o
consenso. São Paulo: Xamã, 2005.
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PARTE I
TEMAS DE POLÍTICAS SOCIAIS
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RESISTIR E ENFRENTAR – CONTRA O
FASCISMO E CONTRA O CAPITAL1
Virgínia Fontes

DOI 10.24824/978652515909.6.23-34

Vivemos em um tempo de catástrofes. O nosso não é, portanto, um tempo no


qual possamos assegurar ou prometer um futuro risonho para as próximas gerações.
Este é um tempo em que precisamos aprender a lutar de maneira ainda muito melhor
do que nós e nossos antepassados fizeram.
Um tempo de catástrofes – não vou listar os problemas, porque gastaria o tempo
todo e possivelmente não chegaria ao fim dessa lista –, mas vale lembrar que esses
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dramas econômicos, sociais e ambientais não são naturais, eles têm sujeitos e sujeitas
que os impelem para diante, para um aprofundamento ainda maior dos horrores. O
sujeito central do tempo de catástrofes é uma figura abstrata e contraditória, o capital.
É sempre bom lembrar que sob essa figura gelatinosa existe um modo de produção,
ou seja, uma maneira social de ser, de viver, de sentir, de organizar o sociometabo-
lismo – a troca e as relações entre os seres sociais e a natureza. Esta forma de ser, ou
modo de produção, é elogiado pela pena, pela boca e pelos vídeos de seus defensores,
como se decorresse da natureza humana. Essa defesa desumaniza a vida social ao
apagar sua dimensão histórica, podando suas possibilidades, prossegue utilizando a
natureza como se fosse apartada de nós, seres sociais, quando, ao contrário, integra-
mos um sociometabolismo; não estamos fora da natureza, ela não é uma mera coisa
que podemos usar e destruir apenas para lucrar. Outros argumentos em defesa do
capital consideram que essa vida social supõe alguma existência transcendental que
teria autorizado e estimulado o uso predador da natureza.
O capital, no entanto, é a expressão de relações sociais e resulta de intensas
lutas históricas. Sua expansão gerou profundas transformações que, originadas na
Europa (especialmente na Inglaterra), disseminaram-se em todo o planeta a ferro

1 Agradeço às diversas pessoas amigas que tornaram possível esta publicação. Ivana Jinkings e, em nome
dela, a toda a equipe da editora Boitempo, assim como à Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, que
possibilitaram a minha participação em mesa redonda no dia 20 de maio de 2023, intitulada “Desafios para
desbolsonarizar o Brasil”. Eu estava ao lado de Paulo Arantes, o filósofo que, sempre com reflexão densa e
instigante costuma nos inquietar, nos retirando de zonas de conforto e nos confrontado com nossas próprias
limitações. E também de Christian Dunker, cujo aporte psicanalítico nos exige sonhar para inventar a saída
dos pesadelos reais. A Tábata Luz, mediando e formulando questões, permitiu iluminar pontos confusos e
trazer novos elementos.
Na sequência, agradeço a duas outras grandes amigas – Maria Inês Bravo e Ana Maria Vasconcelos que,
com enorme celeridade, fizeram a transcrição do debate, garantiram a possibilidade da publicação.
Essa foi a pré-história do texto, falta explicar que minhas intervenções foram curtas, e as questões do
público e de Tábata Luz me permitiram ir um pouco mais adiante. Mantive o texto o mais próximo possível
da intervenção oral, com diversos acréscimos e ajustes para permitir uma melhor compreensão.
24

e fogo, através da escravidão, das colonizações, das sucessivas expropriações e da


sujeição da maioria da população aos ditames dos grandes proprietários de capital e
dos Estados que os protegem, sem falar do ataque constante aos bens naturais – ter-
ras, águas, ares etc. Se podemos apresentá-lo como forma “abstrata”, pois aparenta
ser resultado de meros cálculos de produção (e de lucratividade), despersonalizando
tanto os trabalhadores quanto a grande maioria dos capitalistas, não se deve esquecer
que ele se ancora na concretude de nossas vidas cotidianas de maneira profunda,
inquietante e muitas vezes dramática. Além disso, o capital, apesar de ser uma força
cega, aparentemente uma força abstrata, está concretamente assentado em práticas,
em pessoas e em formas de fazer que têm como objetivo exclusivamente proteger o
lucro e os grandes proprietários, desconsiderando quaisquer circunstâncias – humanas,
sociais, ambientais – que contra eles se interponham.
É de certa maneira espantoso, pois enquanto aumenta a fúria cega expansionista
do capital, resultando em montanhas de lucro, mas também em crises estruturais,
em montanhas de lixo, em contaminação das águas, em poluição dos mares, em

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desigualdades brutais, em que punhados de pessoas possuem bilhões de dólares
enquanto a maioria do planeta não consegue se alimentar, há um consenso interna-
cional de que o drama ambiental atual pode ser denominado de capitaloceno, pois
é resultante do período de predomínio do capital e de devastação da natureza. Em
outros termos, está claro como nunca esteve, em escala internacional, que a dinâmica
do capitalismo é hoje o maior obstáculo a uma vida social menos desigual e à defesa
de um sociometabolismo capaz de assegurar simultaneamente a vida social humana
e a preservação da natureza.
Daí a importância de conhecer as práticas e formas pelas quais as classes domi-
nantes no capitalismo se organizam em meio à sua permanente concorrência e como
se conectam com o Estado para assegurar sua própria expansão. E, é claro, garantir
e impor a subordinação das massas trabalhadoras.
Uma das nossas questões fundamentais é que não lutamos suficientemente
contra o capital, não foi suficiente o que fizemos até aqui e, agora, temos assestada e
escancarada contra nós a sua pior arma, o fascismo. O fascismo e as práticas fascistas
de maneira alguma estão circunscritas ao Brasil. Elas estão no cenário internacional
e são as formas mais brutais e mais violentas de repressão sobre as lutas populares,
sobre a liberdade, sobre o direito de organização e de reivindicação, de pensamento
e de expressão, em suma, de liquidação dos direitos conquistados e de redução da
humanidade à obediência, sob ameaça permanente de massacre.
Há muito tempo venho trabalhando e pesquisando sobre a atuação das classes
dominantes brasileiras e sobre como elas procuram dificultar e obstaculizar as lutas
populares. Nossos clássicos mostram que classes dominantes (e seu Estado) fazem
isso de duas maneiras.
1 – A primeira maneira é pela violência, a violência aberta que historicamente
no nosso país é de teor muito elevado, muito brutal. Nós somos o país das milícias,
elas estão no país inteiro. O Rio de Janeiro figura como uma espécie de vitrine dos
horrores milicianos, o que não é falso. Eleger, porém, uma cidade ou um estado
da federação, como se condensasse o conjunto de tais práticas, é uma maneira de
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 25

apagar o uso generalizado da violência que atravessa nossa formação histórica desde
a colonização, e que se expandiu e se atualizou, adotando formas mais “modernas”,
mais mercantis e agressivas. Há constante atuação de milícias rurais com pistoleiros
contratados e até mesmo modernas empresas de vigilância, com aparatos tecnoló-
gicos, a soldo de grandes proprietários, atacando e expropriando populações rurais,
ribeirinhas e outras. Empresas de vigilância estão disseminadas no país na proteção
de grandes empresas e empresários. Em boa medida, tais empresas de segurança
são constituídas por ex-policiais e ex-militares ou por intermediários quando tais
agentes ainda estão na ativa, assegurando uma estreita intimidade com as casernas de
origem, o que já demonstra a conexão entre a força pública e seus usos privados. As
tendências milicianas estão, portanto, disseminadas. E, sobretudo, todos têm interesse
de constantemente produzir insegurança para vender… “segurança”. Nem todas se
tornam exatamente milícias – a imbricação entre serviços públicos de segurança e a
compra e venda de atividades ilícitas -, mas todas exacerbam a violência privada e
abrem as portas para as conexões ilícitas mais diversas. O medo se torna uma arma
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das mais poderosas, com pesado material bélico, ao lado dos poderosos e contra a
massa da população.
O governo protofascista de Bolsonaro nos deixou um estímulo aos CACs2, além
da corrosão de polícias e militares. CACs são um novo tipo de milícia, que ainda não
sabemos exatamente como estará operando ao lado das outras, das mais clássicas,
como jagunços, matadores, seguranças privadas e das forças policiais e das Forças
Armadas, todas diretamente a serviço do patronato, do empresariado. Esse é o lado
coercitivo direto (não mediado sequer pelo direito), voltado para frear as reivindica-
ções populares através da violência. A essa violência difusa e permanente, se agrega
a violência institucionalizada, de forças policiais e jurídicas que discriminam bairros
e populações, especialmente negros e negras, trabalhadoras e trabalhadores.
2 – A segunda maneira é que muitos desses que contratam os meios violen-
tos, adotam práticas para nos convencer de que são gentis. Na atualidade, querem
se mostrar preocupados com as mulheres, preocupados com os negros e negras,
preocupados com as favelas. Insistem que estão muito chateados com tudo isso e
apresentam a filantropia como solução. Nas propagandas de suas filantropias dizem
que já resolveram o problema de todo mundo mas o problema só piora. Nas últimas
3 décadas, convivemos com uma malha crescente de entidades empresariais volta-
das para impedir as lutas autonomamente populares. As burguesias não conseguem
impedir que as lutas populares existam, mas tentam esterilizar a capacidade popular
de cortar o mal pela raiz, enfrentando o processo produtor de desigualdades, que é o
capitalismo, em cada uma de suas decorrências dramáticas: racismo, o patriarcalismo
machista, o envenenamento alimentar e das águas, o ataque aos povos originários, a
destruição da natureza, a reforma agrária, o direito de organização dos trabalhadores
etc. É uma filantropia mercantil (que pode ser rentável!) e direcionada pelo empre-
sariado, voltada para desmantelar as possibilidades de organização mais extensiva
das lutas populares, mas, caso não consigam, não hesitam a empregar a força bruta.

2 CACs: caçadores, atiradores e colecionadores registrados.


26

Coerção e convencimento nunca vêm isolados. Eu estou falando de Gramsci,


de algo que todo mundo já ouviu falar, de coerção e convencimento, porém é bom
lembrar que em Gramsci esses dois polos não são opostos, vêm juntos. Essa é a
forma clássica da dominação capitalista. São movimentos das classes dominantes
que ocorrem por dentro e por fora das instituições oficiais, estatais. Entidades sem
fins lucrativos, dirigidas pelas burguesias por fora da institucionalidade estatal e dos
partidos, fazem política, organizam setores dominantes e controlam setores domina-
dos, além disso definem qual deve ser a política de governo a ser adotada.
Deve ficar claro que tal atuação não ocorre apenas “por fora” do Estado, mas
têm como objetivo explícito definir políticas (de governo e de Estado), implantá-las e
monitorá-las. Integram, portanto, o Estado que, por seu turno, ao exercer tais políticas
buriladas pelas classes dominantes, generaliza como “educação” (convencimento) e
como “lei” (coerção) exatamente o que vem sendo proposto pelas classes dominantes.
É preciso lembrar que há lutas e que, portanto, conquistas são arrancadas pelas classes
trabalhadoras e é exatamente para diminuir o impacto de tais eventuais conquistas

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que aparelhos privados de hegemonia empresariais se voltam para capturar lideranças
dos setores subalternos.
Apenas indicativamente, também no medo e no convencimento encontraremos
muitas das práticas religiosas disseminadas no país.
Voltando ao tema central, o de enfrentar o bolsonarismo, ou desbolsonarizar.
Ele exige enfrentar o fascismo. Isto é, enfrentar uma forma de organização política
e um projeto de destruição que é capitalista no seu âmago; não há como derrotar o
fascismo se não enfrentarmos, juntamente com o fascismo, o conjunto das formas de
ser e de viver que o capitalismo estimula e pilota, e que o fascismo adota, exaspera,
impulsiona e protege.
Vejamos um exemplo simples: O que eu estou querendo dizer é que essas
burguesias, que se cercam de seguranças mas se dizem filantrópicas e generosas,
silenciaram sobre o fascismo. Essas burguesias que vão a banquetes milionários
para se mostrarem gentis e generosas, nem todas foram imediatamente apoiadoras
do fascismo ou de Bolsonaro. Mas sua grande maioria apoiou as manifestações
das extremas direitas em 2015, silenciou em 2016, no golpe parlamentar-jurídi-
co-midiático ao governo de Dilma Rousseff e acomodou-se satisfeita ao longo do
governo Temer. Pior ainda, disseram publicamente a Michel Temer: “faça o que tem
de ser feito, porque você não será reeleito mesmo”3. Que tarefa exigiam de Temer?
A devastação dos direitos dos trabalhadores no país. Que Michel Temer, o golpista,
aliás, cumpriu com satisfação e muita violência contra os milhares de manifestantes
contrários. Fez exatamente isso: implementou ainda mais contrarreformas e mais
duras contra os trabalhadores.
Desbolsonarizar ou derrotar o fascismo, a meu juízo, envolve inúmeras ini-
ciativas, inclusive institucionais, como punir os militares, revogar todas as medidas
de devastação de direitos, assegurar as políticas de controle do capital e garantir os

3 Editorial de O Globo, 23/05/2016 – https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial-hora-de-temer-19360657 e


texto de Reynaldo Azevedo na revista VEJA – https://veja.abril.com.br/coluna/reinaldo/michel-temer-popu-
lismo-e-impopularidade-maquiavel-amor-e-temor 10/03/2017 – acesso 10/06/2023.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 27

direitos populares conquistados etc. Precisamos ter clareza, todavia, que não pode se
limitar a atuar institucionalmente. Como assinalamos, as classes dominantes agem
por dentro e por fora do Estado, tanto na violência como nas suas práticas de conven-
cimento. Desenham no Estado os contornos da arena e definem quais – e quando –
divergências serão admitidas. A captura da democracia sob o capital é exatamente isso:
as classes dominantes estabelecem os parâmetros do tabuleiro recém conquistado.
O jogo se torna marcado. Mas tais classes dominantes não podem e não conseguem
dominar o volume de contradições que suscitam, nem mesmo com o uso de recursos
econômicos nas eleições, com a violência ou com suas filantropias. As contradições
aumentam, as tensões sociais crescem, pois, a produção das desigualdades é constante
e crescente, com seu cortejo de opressões. Os lucros e os dividendos enriquecem
alguns, e há cada vez mais trabalhadores sem empregos, sem direitos, com jornadas
exaustivas, segregados nas periferias. Avança a devastação ambiental, agora disfar-
çada de “capitalismo verde”, vandalizando o que ainda resta.
É sobre tais contradições que o fascismo procura se equilibrar, oferecendo
uma falsa solução, como a pura repressão, para tampar a panela de pressão das
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tragédias sociais e garantir a continuidade dos lucros e dos dividendos. O fascismo


devora todos os espaços de conquistas populares – encolhe ainda mais o tabuleiro
onde sobreviviam alguns direitos para os setores populares e onde se exprimem os
dissensos – que asseguram um espaço democrático mínimo, enquanto escancara
as portas tanto da ilegalidade quanto da institucionalidade para as megaempresas,
para os empresários, para os dominantes. Dissemos da ilegalidade, pois o governo
Bolsonaro intensificou uma prática que já era usual – permitir ao empresariado agir
como bem entenda, despreocupando-se com punições legais, o que incentivou, por
exemplo, a atuação dos grileiros e dos madeireiros na Amazônia.
Vale lembrar que mesmo em governos burgueses normais, as classes domi-
nantes, além da exploração cotidiana da força de trabalho a cada dia com menos
direitos (e, portanto, mais lucrativos), se apropriam de parcela dos fundos e recursos
públicos, em especial através da dívida pública, mas também por inúmeras outras
maneiras, como exonerações fiscais, empréstimos públicos a custos reduzidíssimos, e
descompromisso com o pagamento de impostos. No governo Bolsonaro, tais práticas
foram intensificadas e apoiadas com o desmantelamento quase completo de órgãos
públicos voltados para o controle da atuação do capital.
A vitória eleitoral de Lula resultou de um esforço enorme para desbolsonarizar
o país. Mas essa vitória não foi casual, não foi instantânea. Lula é um importante líder
popular e eleitoral, mas não se elegeu sozinho, nem a Frente Ampla que construiu
para esse enfrentamento, está livre de bolsonarismos. Essa vitória resulta de 7 anos
de lutas de muitos e muitas que, anonimamente, lançaram o seu corpo, suas vidas e
suas capacidades nesse enfrentamento aos golpes, às contrarreformas, ao fascismo,
ao negacionismo da pandemia, à devastação das conquistas sociais. Não devemos
esquecer de nossas batalhas, não é algo que possa ser deixado para trás, para ser
agora engolfado por uma institucionalidade que deve ajudar, mas não pode resolver
o problema.
28

É importante a institucionalidade, eu não tenho dúvida disso. A luta principal,


porém, segue sendo aquela que fizemos até aqui, diuturna e incansável, por variados
meios que construímos – sindicais, de movimentos sociais, de lutas diversas, de
estudos e acompanhamento. Em outras palavras, é urgente ampliar a capacidade de
formar, informar e organizar politicamente a população.
Ora, formar é educar cotidianamente, politicamente, são os debates que fazemos,
nos quais as grandes questões do nosso tempo encontram eco, reflexão, e precisam
ser socializadas. Eu tenho muito orgulho de estar nessa mesa com Paulo Arantes e o
Christian Dunker que são dois intelectuais que estão formando diariamente, muito
além da dimensão que a gente imaginava, ou do público que a gente alcançaria na
sala de aula. É importantíssima essa formação e a Boitempo tem um papel funda-
mental nisso. Mas ela precisa ser muito maior, a formação precisa estar numa escala
enorme, atingindo milhões de pessoas. Nós precisamos ir além, pois ademais de
formar politicamente, educar criticamente e socializar as grandes questões do nosso
tempo, nós precisamos organizar, garantir que as organizações, as associações e as
entidades populares das massas trabalhadoras, das mulheres, dos negros e negras,

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dos indígenas, dos favelados, dos e das camponesas, dos ambientalistas, dos partidos
e movimentos sejam autônomos com relação ao governo e com relação ao patro-
nato, que possam ter voz e ação no cotidiano; isso é absolutamente indispensável.
Só assim poderão debater entre elas, se entrelaçar construindo novas constelações,
enquanto ao mesmo tempo cada uma delas pode manter suas reivindicações cen-
trais, todas fundamentais para o enfrentamento do capital. Assim como o papel da
cultura foi fundamental nesses tempos duríssimos de governo fascista e genocida,
nos conservando próximos apesar do distanciamento físico (“ninguém solta a mão
de ninguém”), a formação e a organização são também espaço cultural, de contato
social, de acolhida, de aprendizado concreto, de solidariedade ativa, de convívio e de
construção compartilhada de alternativas. Formar, educar politicamente, organizar
e mobilizar permanentemente são tarefas fundamentais para desbolsonarizar o país.
Envolvem reivindicações de conquistas institucionais, mas precisam garantir uma
força popular organizada de maneira permanente e de grande escala, pois a luta para
desbolsonarizar é também e simultaneamente a luta anticapitalista. E é na luta que
avança o aprendizado coletivo, é na luta que a confiança entre os setores populares se
constrói, é nesse processo que embates e debates entre as forças populares permitem
que todos os grupos avancem.
Essa é uma necessidade contraposta à obediência comprada pela filantropia
empresarial, que se converte em mera venda de força de trabalho, na maioria das vezes
através de projetos cujas atividades são remuneradas, mas sem direitos, instituindo
uma espécie de militância pró-capital. O empresariado a envolve sob uma capa de
enfrentamento das desigualdades, mas se recusa a sequer falar de suas múltiplas
causas: exploração acirrada e altamente lucrativa dos trabalhadores, crescimento
simultâneo das opressões (concorrência entre os trabalhadores) e da devastação
ambiental. Em outros termos, fomentam a precariedade laboral, a retirada de direitos
sociais e fingem se condoer de suas consequências, enquanto aprofundam a captura
dos recursos públicos e da natureza. Precisamos enfrentar a questão da sustentação
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 29

autônoma da luta social, para além da venda – com ou sem direitos – da força de
trabalho. Sabemos que não é fácil.
Devo dizer que eu estou decepcionada pois, desde o momento da eleição do
Lula, para a qual eu batalhei bastante, no meu modesto alcance, mas batalhei como
era possível, esse processo tem sido tímido, pequeno e muito menor do que espe-
rávamos e do que precisamos. Decerto, não basta exigir que os políticos eleitos o
façam. Embora seja uma obrigação deles, a de consolidar de maneira orgânica as
bases populares que os elegeram, assegurar que a capacidade popular de intervenção
social, econômica e política cresça. Assim como é uma obrigação a de não se deixa-
rem devorar pela fascinação dos tapetes felpudos e pela limitação que já conhecemos
dos limites institucionais. Entretanto, esse jogo parlamentar de cartas marcadas leva
muitos deles a temer as mobilizações populares e a limitar seus esforços no âmbito
das negociações com as classes dominantes e, portanto, com bolsonarismos abertos
ou discretos.
E fundamental tomarmos essa iniciativa – formar, informar, organizar, mobili-
zar – e que essa mobilização e essas organizações possam empurrar nossos eleitos,
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porque o que estava em jogo na eleição, continua em questão. O que estava em jogo
em primeiro lugar na eleição? Derrotar os fascistas. Estão derrotados? Não. Essa
ainda é nossa tarefa.
Para derrotar o fascismo, para desbolsonarizar, é preciso enfrentar o capital.
Porque aberta ou discretamente, é esse empresariado que mantém e permite que se
mantenham no país os grupos fascistas de todos os tipos, inclusive armados.
Nosso desafio é enorme: combater os fascistas ao mesmo tempo que enfrentamos
o capital, formando, informando, organizando, mobilizado. Só assim abriremos a
possibilidade que esse governo tenha de fato um perfil democrático, o que precisa-
mos de maneira urgente e imediata. Não haverá perfil democrático se um governo
de Frente Ampla escuta mais quem está nos gabinetes do que quem está nas ruas,
no enorme esforço popular de se organizar. Não haverá perfil democrático se nossas
lutas forem abafadas e silenciadas.
Por sorte, nós estamos hoje aqui num espaço de várias organizações popu-
lares. Ao falar disso, já declaro publicamente todo meu apoio ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra-MST frente a uma Comissão Parlamentar de
Inquérito-CPI instaurada unicamente para criminalizar não apenas o MST, mas
para eliminar qualquer possibilidade de reforma agrária ou urbana e permitir a
grilagem, a violência e o controle pelos poderosos de todas as terras e águas do
país. Pior ainda, trata-se de criminalizar todos os movimentos populares, do campo
e das cidades: é importante que se tenha claro que hoje o agronegócio é o maior
ogro – sabe o ogro das historinhas de crianças? -, pois é, então ele é o ogro. É o
contrário de tech, de pop; o ogro é quem envenena pessoas, águas, flora e fauna;
é quem rouba as terras públicas, quem expulsa camponeses e indígenas, é quem
privatiza a água; é quem não paga imposto, é quem nunca fez aquilo que exige
dos outros. Vale lembrar, por exemplo, que arrotam mérito e concorrência, mas na
grande maioria são herdeiros e que, longe da concorrência que pregam, exercem
abertamente monopólios. O ogro não é apenas agrário, é o conjunto do capital, que
30

vem há anos simplesmente devorando os Fundos Públicos para sua sustentação. E


é esse conjunto do capital que realiza enormes fraudes (como o caso das Ameri-
canas, atualmente) e depois, é claro, engorda com lucros faraônicos. Esses lucros
são parte extorquida da nossa atividade:
1) através da exploração direta dos nossos mais variados trabalhos, cada dia
mais precarizados, cada dia mais uberizados, cada dia mais plataformizados. Mas
também dos trabalhadores que ainda contam com direitos, e que temem todos os
dias por sua retirada;
2) quando recebem massivas injeções de dinheiro do Orçamento público, isto
é, derivado da massa dos impostos, também resultam da atividade dos trabalhado-
res, uma vez que impostos são pagos com o sobretrabalho (tanto os impostos pagos
diretamente pelos trabalhadores, como aqueles – muitas vezes sonegados – pelo
lucro do empresariado);
3) quase metade do orçamento público brasileiro se destina a pagamento de
dívida pública, cuidadosamente construída de modo a engordar sem riscos os gran-

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des proprietários;
4) do que resta do orçamento público após essa rapina cotidiana empresarial,
enorme parcela é destinada a subsidiar juros para o ogro, além de ser direcionado
de inúmeras maneiras, através de políticas privilegiadas para as classes dominantes.
Enquanto isso, tais classes dominantes estrangulam as políticas destinadas às
grandes massas populares, como salários, carreiras, direitos, saúde, educação, trans-
porte, habitação, terra indígena, garantia do sociometabolismo etc.
O bolsonarismo se enfrenta com luta, ou não se enfrenta. Lógico, queremos
que a institucionalidade mude, precisamos derrubar muitas barreiras institucionais,
porém a institucionalidade não conservou a presidência de Dilma; a institucionalidade
não impediu a prisão do Lula; a institucionalidade não está impedindo o avanço do
fascismo no mundo. Precisamos ter isso claro, temos de ser a memória que lembra
que, quem derrota fascismo é luta popular das massas trabalhadoras contra o capital.

***

Educação
Há uma luta efetiva que expressa a realidade concreta dos processos que esta-
mos vivenciando e que envolve o enfrentamento tanto ao bolsonarismo quanto
ao capital. É assim chamada “reforma” ou “novo” Ensino Médio. Essa “reforma”
do ensino médio está sendo cozinhada há pelo menos 20 anos pelo empresariado
brasileiro e estrangeiro. Pretende impor e legalizar processos que desmantelam a
educação pública brasileira, cuja imposição legal aliás não chegou a se implantar
completamente. A luta pela educação pública universal segue em curso há 40 anos,
desde a constituinte. Atualmente, em qualquer jornal da grande mídia proprietária,
se repete incessantemente o bordão: a educação pública e democrática é o velho,
nós precisamos do novo. Ora, a mídia faz juntamente como o empresariado mais
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 31

enriquecido do país; é o avesso disso: o que era uma conquista possível, fruto de
lutas centenárias por uma educação pública de massas de qualidade, o que seria de
fato a enorme novidade da sociedade brasileira, a isso chamam de velho. O que esse
empresariado, supostamente filantrópico, vem fazendo é implantar um cupinzeiro, um
caruncho sob seu controle no interior da educação pública. Desqualificam a educação
pública, e imediatamente procuram desqualificar qualquer luta por ela e, como não
conseguem, pretendem dirigir tais reivindicações através de entidades como Todos
pela Educação ou Movimento pela Base. Não é uma questão apenas de narrativas
(como gostam os pós-modernos), mas de práticas concretas: impedem que os recursos
públicos se direcionem para a educação pública, capturam esses recursos desde a
sua formulação legal e os canalizam na sua destinação e, além do mais, pretendem
dirigir diretamente a educação pública – pública, eu não estou falando da privada,
estou falando da educação pública.
De certa maneira, o que o bolsonarismo e alguns grupos religiosos ultracon-
servadores católicos e evangélicos trouxeram é a generalização de uma raiva (ódio)
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confusa e sem fundamentos, que captura o cansaço popular. Ora, a raiva legítima é
também nossa, não basta sermos os simpáticos e civilizados, a fazer apenas o que é
possível, numa espécie de progressismo adaptativo, pois ele nos separa daquilo que
é nossa raiz, de nossa crítica radical. A escola de tempo integral é nossa luta, que
se eu não me engano, remonta aos anos 60. Nos anos 1980, a mesma Rede Globo
e sua Fundação Roberto Marinho, que agora perora repetitivamente na defesa do
“Novo Ensino Médio” denunciava, no Rio de Janeiro, que não era desejável escola
de dia inteiro para crianças pobres, que deveriam trabalhar para ajudar os pais…
A luta pelo tempo integral, que era também pela escola pública, não parou. O tal
“novo” ensino médio, que o empresariado defende, é a generalização do cupinzeiro
empresarial que vem corroendo a escola pública (em todos os níveis, da educação
infantil até a pós-graduação). Carol Cattini, professora da Unicamp, a denomina de
política do caruncho.
O que querem? 1) Acabar com as carreiras públicas nos âmbitos estatais desti-
nados a políticas voltadas diretamente para a população. Esse desmanche deve servir
como exemplo para a devastação de relações de trabalho com direitos. 2) Reduzir os
recursos públicos destinados a essas mesmas políticas, insinuando que não se trata
de volume de dinheiro, mas de má gestão pública. De fato, o que querem é vender
– e realizar – a gestão privada dessa massa de recursos que resulta de conquistas
constitucionais. Querem matar dois coelhos de uma cajadada – liberar parcela do
fundo público para atender unicamente aos interesses empresariais e, finalmente,
gerir diretamente tais recursos (inclusive através de acordos, contratos de parceria e
de vendas governamentais de seus próprios produtos). Para caçar seus ricos coelhos,
entretanto, não hesitam em estrangular a própria educação pública.
Será que alguém acredita que Jorge Paulo Lemann (e o trio Garantia, composto
por ele, Marcel Telles e Beto Sicupira, donos de vários conglomerados de perfil
empresarial – dentre os quais figura a faraônica fraude das Lojas Americanas, e de
outro conglomerado constituído de uma penca de entidades sem fins lucrativos, como
analisou a professora Adriana Farias), que Jorge Guerdau, que o grupo IOCHPE, que
32

Roberto Marinho e outros que tais estão interessados na educação pública? Ora, no
entanto, são eles os dirigentes de Todos Pela Educação, junto com outras megaem-
presas ou suas fundações, de origem brasileira e estrangeira. Esses, que apoiaram
Bolsonaro, que silenciaram durante anos, pretendem agora levantar a bandeira da…
educação pública que estão devastando!
Decerto, a policialização das escolas públicas como propôs Bolsonaro é o ápice
do horror. É como um ataque de machadadas sobre a educação pública. Mas um horror
não apaga o outro. Se esquecermos que os organizadores de ambos é uma relação
social chamada capital, não desbolsonarizaremos a vida social.
Eu posso não saber que futuro podemos propor ou assegurar, mas sabemos
que inimigos nós precisamos combater. Essa segue uma questão crucial, porque
o machado e o cupinzeiro estão devastando todos os dias não são apenas os nos-
sos sonhos, são as nossas vidas. Essa dinâmica perversa do lucro a qualquer custo
desorganiza as nossas vidas cotidianamente e ao mesmo tempo exige que sejamos
plásticos – flexíveis – para nos adequar a qualquer custo às suas imposições. Não

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importa o sofrimento, não importa a degradação que promovem, eles imputam sempre
a responsabilidade sobre nós, sobre a massa da população.
Não podemos esquecer contra quem estamos lutando. Todos os movimentos
populares de lutas sabem o que faz esse empresariado. Mulheres, LGBTQIA+, negros
e negras, indígenas, reivindicações de novo sociometabolismo, de comida saudável, de
agroecologia, de habitação, sabem contra quem temos de lutar. As classes dominantes
tentam nos seduzir para que esqueçamos que ela existe. Sabemos que continuamos
precisando enfrentá-la, e em todos os terrenos – econômico, político, jurídico, ideo-
lógico, intelectual etc. Não tenho certeza do que conseguiremos construir, sabemos
que precisamos de vida em comum e do fim da propriedade sobre tudo o que deve
ser comum. Eu sou comunista afinal. Sem enfrentar o capital, o empresariado e seus
esbirros não avançaremos sequer para desbolsonarizar.

***

Milícias
Ora, é fundamental trazer a discussão das milícias para um terreno histórico.
Decerto, há uma ralé ou delinquentes que foram convocados com o bolsonarismo para
os palácios. Infelizmente, já foram convocados há bastante tempo para os quintais das
classes dominantes, como seus protetores. Milícias não nascem agora e nem nascem
só no Rio de Janeiro. Esses são dois elementos importantíssimos – a temporalidade
e o território. Nós temos no país inteiro uma prática da associação entre a violência
privada e a pública, nascida no ambiente agrário e cedo transplantada para as cidades,
assim como as relações sociais de segregação e de racismo. Difunde-se a suposição
de que segurança privada é legítima, de que é “normal” contratar seguranças arma-
dos para fechar ruas de cidades e impedir que tipos “suspeitos” possam transitar. O
que é “tipo suspeito” jamais é explicado, embora saibamos exatamente sobre quem
incidem tais suspeitas, não é? É a segregação e o racismo escancarados. Há uma
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 33

generalização do subemprego para que vigiem e cuidem das casas ricas urbanas que
não ocorre apenas na cidade do Rio de Janeiro, está em cada vez mais capitais. Esse
é o processo dos alphavilles e dos condomínios, é a maneira pela qual a riqueza (e
classes médias que se acreditam milionárias) erige muros e os enfeita com concer-
tinas, cercados de câmeras e de vigilantes. Há um conto ótimo, eu não me lembro o
autor, que narra uma revolução ao contrário. Todos os bilionários foram convidados
para morar num dos mais luxuosos condomínios que se possa imaginar, mais bem
armado, mais bem equipado. Depois que todos se instalassem naquele Condomínio,
bastava trancar a chave e deixá-los lá dentro, sem poder sair.
Não é uma mera questão de pobreza ou de favela; aliás quem vai trabalhar na
segurança destes condomínios são os pobres e favelados. É uma questão de produ-
ção constante e crescente de desigualdade social, de centralização e concentração
da riqueza. Em todo o interior rural, o agronegócio (o OGRO), mantém tropas de
jagunços. Agora eles estão tecnologizados, com carros equipados com radar, têm
drones e sinal de satélite. São seguranças que funcionam linkados e sob vigilância
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também do exterior; o mesmo satélite que o proprietário usa para dirigir um trator
ou disseminar veneno, usa para controlar essa jagunçada contra indígenas, contra
sem-terra do MST, contra sem-terra dos outros movimentos ou meramente um sem-
-terra que vivia ali, e que será expulso, seja por conta da expropriação da água, seja
por conta da expropriação da terra, seja só porque ele “enfeia” a paisagem, exibindo
sua pobreza. Apenas por uma questão de paisagem. Essa tradição se intensificou
nos últimos anos e o número de seguranças privados é maior do que o das Forças
Armadas. Já era assim, e com a triste herança de Bolsonaro, o número de CACs é
também maior do que o das forças armadas.
Reparem. O fascismo e as milícias são formas pela qual os megaproprietários
convocam integrantes das classes subalternas contra elas próprias. É óbvio que ao
longo do tempo, uma afinidade eletiva entre esses ‘trabalhadores’ da vigilância/vio-
lência e classes dominantes se instaura: a banalização do enriquecimento sem limites
os ensina a extorquir, a “empreender” produzindo violência e vendendo “segurança”,
transformam-se em ralé enquanto as classes dominantes se habituam a dormir intran-
quilas e se armam a cada dia mais.
Em algumas situações essa aproximação está coligada ao fato de que um traba-
lhador sem direitos pode decuplicar a taxa de lucro dos dominantes, mas pode, tam-
bém, assegurar sua sobrevivência com maior folga, copiando as práticas devastadoras
que eles divulgam. Produzir massivamente trabalhadores urbanizados, precarizados,
plataformizados, onlinizados, gera empreendedores? Essa é a propaganda, mas o que
essa relação social em sua expansão cega produz são vendedoras de Avon, pilotos de
Uber, entregadores, trabalhadores docentes sem direitos, presenciais ou por EAD.
A precarização da vida também invade a educação pública, assim como a violência.
Essa afinidade eletiva se dissemina para os setores médios, temerosos de sua
própria segurança e aplicados alunos do empreendedorismo. Adoram exibir seus
carros, gostam de mimetizar para os ainda mais subalternos o tratamento que recebem
de seus superiores, mas estão prisioneiros de seus medos.
34

A brutalidade cotidiana da vida social é a violência, ela tende a se tornar o natu-


ral, o normal. Não se trata de uma violência distante, mas de violências cotidianas.
Não se abate apenas nas favelas, ou sobre os negros e negras, embora seja sobretudo
contra eles. Essa violência se incorpora no cotidiano das classes médias que se acos-
tumam aos assassinatos dos filhos dos outros. No dia em que conseguirmos parar
o país a cada vez que há uma chacina em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Porto
Alegre ou em qualquer local, pode ser que haja alguma chance para ir além. Os que
ficamos quietos e silentes diante dessa barbárie somos parte dessa ralé.
Uma Frente Ampla antifascista pode ser importante, mas sem esquerda antica-
pitalista organizada pode apenas se converter em frente pró-capital e esterilizar as
enormes lutas que fizemos nos últimos anos. Uma Ampla frente antifascista como
a que aconteceu na segunda guerra mundial só ocorreu pois se impôs a participação
da União Soviética ao lado dos Estados Unidos. Uma frente Ampla sem uma força
anticapitalista forte dificilmente derrota o fascismo porque ela tende a ser dominada
pelos dominantes. Insisto na importância de que a luta de classes segue fundamental.

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Nós sabemos que a classe trabalhadora não tem mais o desenho que teve há 50 anos.
As expectativas não podem ser as mesmas, a situação é outra, mas, me repetindo,
o inimigo é o mesmo.
Não basta se manter meramente na resistência, pois ela não impede que nos
acuem. Resistir é legítimo: cravamos o calcanhar no chão e tentamos não ser empur-
rados, porém sabemos dos limites. Até quando seremos acuados antes de tentar
avançar? Precisamos construir outra pauta, que combina resistência e enfrentamento,
que entende que o Estado não se limita aos setores institucionais e que a dominação
de classes ocorre em todos os espaços da vida social. E que é do capital e de sua
defesa que brotam fascismos.
AS ILUSÕES DEMOCRÁTICAS
DAS POLÍTICAS URBANAS
E A EXPROPRIAÇÃO
PERSISTENTE NO BRASIL
Silene de Moraes Freire
Thaís Lopes Cortes
José Henrique Galdino

DOI 10.24824/978652515909.6.35-53
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1. Introdução
O presente estudo é fruto de preocupações traduzidas nas produções dos auto-
res, em diferentes níveis e temporalidades. Desde o início do século XX é possível
perceber a necessidade do debate mais amplo sobre a política urbana, reconhecendo
que o Brasil é um lugar significativo para o estudo da “questão urbana”. Em contraste
com muitos países latino-americanos, que têm apenas uma cidade realmente grande,
nosso país possui inúmeros centros importantes (como São Paulo, Rio de Janeiro,
Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Curitiba, etc.) e imensos “problemas urbanos”
que atravessam décadas e até séculos. Tais problemas nos levam a reconhecer que
as “formas contraditórias” do desenvolvimento urbano são a revelação do caráter
historicamente determinado pelo capitalismo em cada latitude em que se desenvolve.
A compreensão do conjunto que compõe a totalidade das relações sociais pres-
supõe a identificação das contradições e mediações que constituem cada realidade
estudada. Desta forma, entendemos que é preciso ter clareza que o melhor caminho
reflexivo deve buscar se afastar de uma leitura simplória sobre o aprofundamento
das desigualdades sociais que os espaços urbanos apresentam em nossa sociedade.
Vale destacar que é impossível reduzir e superar as desigualdades sociais ignorando
a concentração de renda. Assim como é inconcebível acabar com a concentração de
renda sem se colocar a necessidade de se transpor a concentração da propriedade
privada. É fundamental pautar esse debate com urgência, sendo o mesmo imprescin-
dível para a compreensão da concentração de poder no Brasil. Se não considerarmos
esses níveis de concentração não existe política capaz de enfrentar os abismos entre
as classes sociais no país. Isso implica em também entender os limites persistentes
de superação que atravessamos frente às inúmeras problemáticas que envolvem o
espaço urbano.
Apesar do caráter introdutório de nosso estudo – traduzido na própria escassez
das páginas aqui apresentadas – pretendemos discutir algumas questões capazes de
36

contribuir com o debate, através de dois blocos de reflexões: o primeiro abordará a


quimera democrática impulsionada pela ilusão dos marcos formais das leis percebida
como efetivação de direitos1 capazes de materializar conquistas dos trabalhadores,
sobretudo através da análise dos limites do Estatuto da Cidade; o segundo eixo obje-
tiva descortinar os nexos da persistente expropriação espacial da classe trabalhadora
em nosso país, evidenciando a complexidade da questão. Por fim, buscamos apresentar
algumas considerações sobre a relevância do estudo.

2. A farsa da democratização da política urbana no Brasil


É indubitável que existem disputas de modelos e projetos de cidades que apre-
sentam claramente as forças em presença num determinado momento histórico, as
mesmas revelam interesses distintos, com lógicas particulares, oriundas dessas forças
emergentes da luta de classes. Não por acaso, autores como Harvey (2006), Vainer
(2014) e Maricato (2013) consideram que estamos diante de uma disputa entre para-

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digmas de gestão urbana, onde se destacam dois modelos centrais: a “cidade-merca-
doria” e a “cidade-direito”, cada qual com seus diferentes impactos sobre as políticas
urbanas. Embora esses modelos não expressem intenções de ruptura com o capital,
o segundo se aproxima mais de uma sociabilidade menos cruel e mais democrática.
Após 50 anos da implementação da agenda neoliberal na América Latina, através
da experiência do Chile, e aproximadamente três décadas de efetivação do receituário
neoliberal em nosso país, o modelo “cidade-mercadoria” ganhou fôlego e passou a
ser hegemônico na maior parte do Brasil.
No início do século XXI a conflitividade social2 apresentava determinados prota-
gonismos e conquistas dos movimentos sociais urbanos que lutavam pelas demandas
da população urbana. Cabe lembrar que ainda não nos encontrávamos numa fase
ultraneoliberal do capital, como nos dias atuais. Só assim podemos entender o sur-
gimento, no dia 10 de julho de 2001, da principal legislação brasileira sobre o tema,
o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), que apresenta claramente esse conflito. É
importante lembrar que na década de oitenta, do século XX, os movimentos sociais
urbanos emergiram como uma força social organizada em luta pela superação da
desigualdade no acesso à cidade formal (Jacobi, 1989; Santos, 1981). Foi nesse qua-
dro de ascensão dos movimentos sociais organizados que a questão urbana passou a
ser incluída na agenda da Assembleia Constituinte de 1988. Essa herança da Carta
Magna não foi extinta automaticamente e resistiu alimentando um expressivo período
de lutas pelo marco legal dos avanços “garantidores de direitos”.
Fruto de uma grande mobilização popular dos movimentos de reforma urbana,
o Estatuto da Cidade ainda é objeto de diversos debates em torno de suas diretrizes,

1 Concordamos com Santos (2023, p.15) quando observa que a manipulação da realidade exercida pelo
complexo social do direito contribui para ocultar os fundamentos da vida social para pôr em seu lugar a
aparência de relações jurídicas desprovidas de quaisquer interesses de classe, e como campo de resolução
dos antagonismos oriundos da relação capital e trabalho.
2 Entendemos que “o conflito social é expressão das mudanças em ato e, portanto, é a expressão das tensões
e contradições da própria ordem social que constitui na própria medida que transforma” (Ramos, 2003, p. 2).
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 37

dos seus instrumentos e da sua aplicação pelas gestões locais. Como observaram
Fontes e Souki (2020, p. 8):

O Estatuto apresenta possibilidades de reversão do quadro de exclusão territorial


e instrumentos de regularização fundiária, indução do desenvolvimento urbano e
gestão democrática, mas ainda restam questionamentos em relação à sua aplicabi-
lidade e à eficácia da gestão democrática e à utilização de seus instrumentos para
legitimação de políticas engendradas por interesses privados. O uso de alguns de
seus instrumentos parece estar sob uma coexistência conflituosa entre esses dois
paradigmas, como é o caso da Operação Urbana Consorciada (OUC). A OUC é
uma modalidade de Parceria Público-Privada (PPP) que busca viabilizar projetos
de reestruturação urbana a partir da criação de uma “zona de exceção” em meio
à cidade, com condições de edificação e produção imobiliária distintas das leis
de zoneamento do município.

Segundo Mariana Fix (2009) o Estatuto tem natureza controversa e permitiu um


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uso dúbio para os que advogam uma gestão democrática, pela possibilidade de (re)
orientar o planejamento em prol de interesses privados e de alto impacto territorial,
resultando, por vezes, em processos de segregação e gentrificação urbana. Ou seja,
impulsiona um processo de segregação socioespacial em áreas urbanas, caracterizado
pela valorização acentuada de determinada área, que acaba culminando na expulsão
de moradores antigos em razão do aumento local do custo de vida, alterando assim
o perfil social e econômico dos bairros e provocando sua valorização mercadológica.
Entendemos que as experiências históricas nos ensinam com muita sabedoria,
não apenas os limites das leis, como também os direitos que delas emergem, para
emancipação humana. Por isso é importante incrementar a crítica ao direito burguês
que apregoa “igualdade”, “liberdade” e “propriedade” realizáveis apenas mediante o
estatuto jurídico burguês. Por conseguinte, entendemos que um estatuto é insuficiente
para a plena expansão dos indivíduos sociais e sua igualdade substantiva, tendo
em vista que as relações sociais capitalistas alargam substancialmente a cisão entre
indivíduo e gênero humano, como, observou Francisca Santos (2023) ao aprofundar
as armadilhas do direito na sociedade capitalista.
Hoje, após mais de três décadas da Carta Magna, podemos avaliar que a crença
no potencial da Constituição de 1988 (como garantidora de direitos) fez não apenas
com que a mesma fosse reconhecida como Carta Cidadã, como também estimulou
uma ilusão sobre os avanços das conquistas sociais apenas pelo caminho do marco
formal das leis. Foi essa a Constituição que pela primeira vez na história do país
definiu os princípios da política urbana brasileira, posteriormente desenvolvida no
Estatuto da Cidade, conforme já mencionado, e isso não deixa de ser importantíssimo,
apesar dos limites da garantia de direitos na sociedade burguesa. Na época em que
a Constituição foi aprovada, segundo Santagada (1990, p. 121-143) menciona ao
analisar o período, “o país atingia 75% da população total concentrada em cidades,
41% da população vivendo em situação de pobreza (53.2 milhões de pessoas) e
ainda 55% delas vivendo nas cidades sendo que 18% concentravam-se nas regiões
metropolitanas”. Como observaram Koury e Oliveira (2021, p. 2)
38

A inclusão da política urbana na Constituição de 1988 e, posteriormente, a aprova-


ção do Estatuto da Cidade em 2001 significou, para toda uma geração de ativistas
engajados com a questão urbana no Brasil, uma vitória estratégica em direção a
uma sociedade urbana mais inclusiva e democrática. Permitiu incluir, no marco
legal do país, os instrumentos da reforma urbana que estavam sendo propostos
pelos arquitetos desde o Seminário de Habitação e Reforma Urbana de 1963.

Concordamos com Santos (2023) quando observa que a legitimidade social que
o direito adquire no cotidiano deve-se ao fato do direito ser uma ideologia restrita3.
Ou seja, o complexo que constitui o direito controla comportamentos e se coloca
como campo de mediação dos conflitos que, na superficialidade do cotidiano, apre-
sentam-se como conflitos pessoais, individuais, reforçando a ilusão jurídica de que
“a lei assentaria na vontade e, mais ainda, na vontade dissociada da sua base real,
na vontade livre. Do mesmo modo o direito é, por sua vez, reduzido, à lei” (Marx;
Engels, 2009, p.112 apud Santos, 2023, p. 88).
Não foram muitos os autores que apresentaram, em uma perspectiva históri-

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co-crítica, a disputa política em torno das narrativas da reforma urbana no Brasil.
Ressalta-se que poucos estudiosos questionaram a linha evolutiva da história da
Reforma Urbana, ao destacarem as diferenças entre a agenda em 1963 e aquela que
dominaria nas décadas seguintes. Para Koury e Oliveira (2021), depois do Movimento
Nacional de Reforma Urbana, o tema e sua origem histórica ficaram associados ao
projeto democrático popular com base nos movimentos sociais urbanos que emergiu
nos anos oitenta. Dentre os autores que avaliaram criticamente a incorporação da
emenda popular pela Reforma Urbana na Constituição de 1988 e os planos diretores
como instrumentos de controle da função social da terra destacamos Rolnik (1994),
Maricato (2014) e Bonduki (2018).
Como Quinto Jr. (2003, p. 193) apontou não foi difícil constatar a presença de
representantes do mercado imobiliário na Subcomissão da Questão Urbana e Trans-
portes, que buscavam dar visibilidade ao acompanhamento crítico das atividades da
Subcomissão realizadas pela Universidade de Brasília e pela Federação Nacional dos
Arquitetos. Quinto Jr (2003, p. 193) afirma que “os lobbies do mercado imobiliário
dominam a Subcomissão da Política Urbana e Transportes”. E menciona ainda a
presença do empresário Sergio Naia e do deputado Sérgio Nahas, ambos ligados ao
setor empresarial imobiliário.
É preciso ressaltar que o campo da chamada democracia popular com base nos
movimentos sociais urbanos, que se organizou durante o processo de redemocrati-
zação do Brasil, também foi liderado pelos arquitetos que reivindicavam um lugar
destacado na institucionalização da política urbana pela Constituição de 1988 e depois
pelo Estatuto da Cidade, Lei Federal.

3 Para Santos (2023) a partir da apreensão lukacsiana do direito como ideologia restrita e como falsa cons-
ciência, sendo o mesmo um complexo socialmente necessário à sociabilidade capitalista, cuja função é
dirimir os conflitos que têm por base o puro desenvolvimento econômico, adquirindo uma forma limitada e
insuficiente de consciência social, podemos perceber como ele corrobora na manutenção dos interesses
de classes, bem como ocultando os fundamentos da exploração do trabalho.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 39

O Estatuto da Cidade procurou garantir a gestão democrática das cidades e, com


isso, universalizar o acesso a condições básicas de moradia e serviços urbanos como
saneamento, transporte, educação e saúde, com o objetivo de atender principalmente
a população trabalhadora, pobre e urbanizada em condição precária nos grandes
centros urbanos. O que foi, sem dúvida, um marco na afirmação dos direitos urbanos
dos trabalhadores, colocado em prática por algumas experiências inovadoras em
administrações municipais na década de noventa (Koury e Oliveira, 2021, p. 8).

Concordamos com Koury e Oliveira (2021, p. 12) quando destacam que a luta
política em torno do direito à cidade consolidou nesse período uma importante base
eleitoral, que contribuiu para a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) no pleito
presidencial do ano seguinte à aprovação do Estatuto. À vista disso, “esse foi o quadro
político que antecedeu a criação do Ministério das Cidades em 2003” (ibidem), e que
originou um curto período em que a instituição foi liderada por quadros políticos
comprometidos com a agenda da Reforma Urbana e dos movimentos sociais urbanos.
Como mencionaram Koury e Oliveira (2021, p. 12), mais de uma década separa a
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Constituição de 1988 e a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001. Esse longo e


contraditório “processo de proposição, tramitação e aprovação da lei federal de 2001
explicita a luta em torno de um projeto político de base urbana no qual se engajou
toda uma geração de profissionais, técnicos e intelectuais” (ibidem). Contudo, tal
processo também evidenciou a complexidade da questão urbana e do jogo político
no qual prevalecem as contribuições das instituições burocráticas em detrimento da
participação direta dos movimentos sociais urbanos, que se encontravam organizados
naquela época.
Não são poucas as cidades no Brasil, como é o caso do Rio de Janeiro, por
exemplo, que atravessaram uma série de intervenções urbanas desde a consolidação
do padrão exportador de especialização produtiva4. Podemos dizer que visivelmente,
na segunda década do século XXI, o poder público é explicitamente mais fundido
com as empresas privadas, não por acaso “[...] implantou uma forma de governança
que molda consensualmente a cidade de acordo com os desenhos e necessidades das
elites econômicas, políticas e culturais transnacionais” (Rolnik, 2015, p. 373). Um
dos principais elementos desse projeto de cidade é a maximização de interesses de
acumulação, com o Estado sendo central para a concretização desse novo projeto.
Todo esse processo de lutas e conquistas legais foram acompanhados pela
ampliação das formas mais diversas de violência, desigualdade social, miséria, dis-
criminação, devastação da natureza, e demais expressões da ‘questão social’ que
limitam a classe trabalhadora de alcançar a emancipação humana e configuram-se
como elementos que apontam os rumos da “questão social” inerentes ao desenvol-
vimento capitalista em escala global. Porém, é possível identificar nessas expressões
elementos particulares de cada formação social, em que a dimensão civilizatória
do capitalismo em algumas nações é quase inteiramente abafada pela dimensão de

4 OSORIO, Jaime. América Latina: o novo padrão exportador de especialização produtiva – estudo de cinco
economias da região. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução
do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 103-139
40

devastação da vida humana. O capitalismo nasce expropriando, processo esse que


ocorre, se moderniza e se aprofunda até os dias de hoje, sob a forma das expropria-
ções secundárias, com um maior aparato jurídico, impulsionadas pelo imperialismo
contemporâneo (Fontes, 2010).
Segundo Santos (2023) é importante destacar a observação de Lukács (em
diálogo com Marx), de que a única concepção de justiça alcançável no interior do
direito corresponde a um dos conceitos mais ambíguos no desenvolvimento humano,
tomando para si a missão impossível de conciliar interesses antagônicos e contradi-
tórios presentes no processo real de vida dos sujeitos. A ilusão acerca das conquistas
legais garantidoras de direitos na sociedade burguesa, não apenas revela “que as
leis não bastam, os lírios não nascem das leis”5, como também geram uma espécie
de farsa democrática. Como se um país pudesse avançar politicamente apenas pelo
avanço do marco Constitucional, dos marcos legais de modo geral, incorporados
pelas conquistas das lutas dos trabalhadores. Temos que ter claro esses elementos
como também a clareza das reflexões apresentadas por Douglas Barboza, quando
observa que:

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Na perspectiva marxiana, assim como pode ser denominada de “vulgar” a econo-
mia que restringe o seu alcance à esfera da circulação, também pode ser denomi-
nada “vulgar” a democracia que constitui a esfera política decepando-a, de forma
arbitrária, face às condições concretas de vida e as relações reais de poder que
se desenvolvem sobre esta base. Com a consolidação da democracia burguesa
(e a consolidação de seu caráter vulgar), a comunidade política que se formata é
puramente a transfiguração da esfera da circulação: nela se deparam unicamente
“cidadãos” sem ulterior caracterização ou distinção; apenas compradores e ven-
dedores de mercadorias que usufruem o “livre direito” de escolherem diferentes
produtos políticos (Barboza, 2015, p. 31).

A perda da visão e compreensão analítica implica uma mudança de objetivos na


prática da crítica: da ênfase na compreensão das crises, antagonismos e contradições
do direito e da democracia vulgar na sociedade capitalista passaremos a ênfase na
busca por normas sociais capazes de desempenhar a função social integrativa. Nada
se garante apenas com leis, as leis regulam níveis de civilidades consentidas. Não
obstante, apesar dos avanços legais, as respostas à questão urbana historicamente
vêm se revelando em torno do valor. Indiscutivelmente há na implementação da
política urbana

uma disputa básica, como pano de fundo, entre aqueles que querem extrair dela
melhores condições de vida e aqueles que visam apenas extrair ganhos. A cidade
constitui um grande patrimônio construído histórica e socialmente, mas sua apro-
priação é desigual e o nome do negócio é renda imobiliária ou localização, pois
ela tem um preço devido aos seus atributos (Maricato, 2013, p. 20).

5 A frase faz parte do livro de Carlos Drummond de Andrade “A Rosa do Povo”, escrito durante a II Guerra
Mundial e publicado em 1945.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 41

Neste sentido, convém tornar compreensível que, nesse processo de lutas e de


tensionamentos entre os projetos de cidade: a “cidade-direito” e a “cidade-mercadoria”
prevalecem este último, para o qual a cidade se constitui impreterivelmente enquanto
um lócus privilegiado para a produção e para a reprodução do capital, quaisquer que
sejam os preços a se pagar por isso. Isto é, as cidades passaram a ser geridas como um
grande negócio, principalmente para os capitais que embolsam com a sua produção,
exploração, juros, lucros e rendas. Este projeto tem a sua face mais acabada explicita-
mente reconhecida na administração urbana pautada no processo de empresariamento
urbano, que foi fortemente difundido a partir da década de 1990. Inicialmente, esse
modelo de planejamento urbano foi implementado nos países centrais e tardiamente,
a partir do primeiro decênio do século XXI, se consolidou nesta latitude chamada
Brasil. Sob esta perspectiva, as cidades e os projetos urbanos passaram a ser geridos
pela lógica do mercado, baseados na produtividade e na competitividade. Como
Vainer (2020, p. 86, com grifos nossos) elucida:

Ver a cidade como empresa significa, essencialmente, concebê-la e instaurá-la


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como agente econômico que atua no contexto de um mercado e que encontra


neste mercado a regra e o modelo do planejamento e execução de suas ações. Agir
estrategicamente, agir empresarialmente significa, antes de mais nada, ter como
o horizonte o mercado, tomar decisões a partir das informações e expectativas
gerada no e pelo mercado.

Em razão disso, esses tempos recentes demonstram que, “os direitos da proprie-
dade privada e da taxa de lucro se sobrepõem a todas as outras noções de direitos”
(Harvey, 2014, p. 73). Donde nota-se a proeminência da intervenção estatal em
propiciar os investimentos urbanos especulativos, que tem como um de seus reveses
a expropriação e a potenciação da barbárie engendrada pelo capital que se revela
em projetos urbanos marcados pela inclusão excludente (Martins, 2002). Portanto,
enfrentar a questão urbana implica em ampliar os horizontes de compreensão dos
nexos do capitalismo e da expropriação persistente que conduz dentro da sua lógica
a reprodução das relações sociais.

3. Capitalismo e Expropriação Persistente: um debate necessário


Não nos parece comum, no âmbito analítico, a presença de estudos que relacio-
nem as políticas urbanas com a expropriação. Ao ampliarmos os nossos horizontes
de análise depreendemos que a categoria expropriação é fulcral para a apreensão da
forma como as políticas públicas urbanas vêm sendo materializadas, especialmente
neste início do século XXI.
Em concordância com Marx (2013) no capítulo seminal denominado “A assim
chamada acumulação primitiva do capital”, no livro I de “O Capital”, a expropriação
pode ser compreendida como o

processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência


e de produção, e, por outro lado, converte os produtores diretos em trabalhadores
42

assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte,


mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção
(Ibidem, p. 786, grifos nossos).

Como ironiza Marx (2013), a acumulação primitiva, iniciada no período de


transição da sociedade feudal para a capitalista desempenhou na economia polí-
tica o mesmo papel do pecado original teleológico. Isto é, condenou o conjunto da
humanidade despojado do seu meio de vida e de subsistência à proletarização e ao
assalariamento, uma vez que só detinha da sua própria força de trabalho para subsistir.
Com isso, os camponeses “livres como os pássaros” passaram a vender a si
mesmos na indústria nascente e foram “convertidos em capital” (Fontes, 2018, p.
23) contribuindo para o processo de acumulação de capital. Esse período supraci-
tado marca a gênese desse penoso e violento modo de produção, cujo imperativo é a
acumulação de capitais que “pressupõe o mais-valor, a produção capitalista, e esta,
por sua vez, a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de
trabalho nas mãos de produtores de mercadorias” (Marx, 2013, p. 959). Portanto, a

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expropriação é a base da acumulação originária, dizendo de outro modo, a parteira
do modo de produção capitalista, segundo observou o autor.
Nos elucida ainda Marx (2013) que o grande “progresso” dos processos de
expropriação ocorreram no século XVIII quando a própria lei se tornou um instru-
mento de roubo de terras. A forma jurídica que instituiu os roubos das terras comunais
sem escalas precedentes na gênese do capitalismo foi denominada como as “Bills for
Inclosures of Commons”. Esta lei permitiu que os proprietários fundiários presen-
teassem a si mesmo ou comprassem a preços irrisórios as terras comuns, a partir da
intervenção coercitiva direta do Estado. Ressalta-se que “os capitalistas burgueses
favoreceram a operação, entre outros motivos, para transformar o solo em artigo
puramente comercial, ampliar a superfície da grande exploração agrícola, aumentar
a oferta de proletários absolutamente livres, provenientes do campo” (Ibidem, p.
970, grifos nossos).
Notemos que desde os primórdios do modo de produção capitalista, a proprie-
dade da terra já se constituía num elemento nodal para a acumulação de capitais.
Ao reconhecermos que o solo se transformou em artigo puramente comercial, com-
preendemos que a expropriação do espaço rural (e na atualidade também urbano)
é de suma importância para o capital, ao passo que esses processos continuam a se
repor na história. Como bem observou Marx (2013, p. 961), “tão logo a produção
capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva essa separação, mas a reproduz em
escala cada vez maior”, seja para estimular a produção agrícola ou para fomentar
transformações urbanísticas que são a própria expressão do capital, em cada contexto
do desenvolvimento das forças produtivas, a partir da ingerência do Estado na criação
e na redefinição de leis, bem como na instituição das políticas urbanas.
Em concordância com Fontes (2010), identificamos que essas práticas da expro-
priação que retiram ou que degradam os meios de vida e de subsistência dos seres
humanos não fazem parte de um momento fundacional do capitalismo, mas se tratam
das suas práticas regulares e inerentes a esse modo de produção. Na atualidade, a
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 43

expropriação vem ocorrendo de forma mais intensa e deletéria, face a necessidade


que o capital tem de se valorizar no curso da sua crise estrutural, iniciada no último
terço do século XX, que exigiu uma série de transformações no âmbito da reprodução
capitalista (Mészáros, 2009). Dentre essas transformações, temos a constituição de
um sistema econômico amplamente reconhecido como sendo a mundialização do
capital, que deve ser entendido como a “expressão das ‘forças de mercados’, por fim
liberadas [...] e que todos os campos da vida social, sem exceção, sejam submetidos
à valorização do capital privado”, segundo observou Chesnais (1996, p. 25).
Não obstante, o espaço urbano (e rural) passou a se constituir cada vez mais
também como um produto e como um importante mecanismo garantidor da lógica
da acumulação e da circulação de capitais. Como parte do compósito das medidas
anticíclicas adotadas pelo capital, tem-se a transformação da administração urbana
que era baseada no gerenciamento urbano, que prontamente deu lugar ao empresa-
riamento urbano, que tem

objetivo político e econômico imediato (se bem que, de forma nenhuma exclusivo)
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muito mais o investimento e o desenvolvimento econômico através de empreen-


dimentos imobiliários pontuais e especulativos do que a melhoria das condições
em um âmbito específico (Harvey, 1996, p. 53).

As cidades se tornaram um dos lócus privilegiados da acumulação de capitais.


Desta feita, o negócio e a oportunidade do negócio ganharam a primazia e se tor-
naram fundamentos essenciais para a gestão das políticas públicas urbanas. Assim,
a ingerência do Estado visa ordenar o espaço de acordo com as necessidades da
reprodução do capital em seu estágio altamente desenvolvido e monopolizado. Nos
elucida ainda Harvey (1985, p. 150) que

o capitalismo luta, perpetuamente, portanto, por criar uma paisagem social e física
à sua própria imagem, e indispensável para suas necessidades em determinado
ponto do tempo, simplesmente para, com igual certeza, minar, desintegrar e até
destruir essa paisagem, num ponto posterior do tempo. As contradições internas
do capitalismo expressam-se através da formação e re-formação irrequietas das
paisagens geográficas. É de acordo com essa música que a geografia histórica do
capitalismo deve dançar, ininterruptamente.

Harvey (1985) nos ajuda no entendimento de que as políticas urbanas passaram a


exigir constantes e profundas transformações paisagísticas e geográficas para atender
as contradições internas do capitalismo, que, por sua vez, decorrem de processos de
expropriações. Neste sentido, inúmeras parcerias público-privadas foram realizadas
com o objetivo de, supostamente, ampliar as condições de urbanidade das cidades
brasileiras, sob a perspectiva da cidadania, que no Brasil se dá fortemente atrelada
aos direitos. No entanto, Milton Santos (1993, p. 95) afirmou que, na realidade, tra-
tava-se de uma urbanização corporativa, empreendida pelos interesses das distintas
frações de capitais, nos explicitando que o urbano é expressão do capital, e por isso,
tais políticas públicas se constituem em “um receptáculo das consequências de uma
44

expansão capitalista devorante dos recursos públicos, uma vez que estes são orien-
tados para os investimentos econômicos, em detrimento dos gastos sociais”.
Nessa medida, as políticas públicas implementadas no país, especialmente em
período posterior a adoção da administração urbana pautada em seu empresariamento
são dotadas de uma concepção especulativa, pois, segundo Harvey (1996, p. 53),

o empresariamento urbano tem como foco de atenção muito mais a economia


política do local do que do território. Entendo este último como os tipos de pro-
jetos econômicos (de habitação, educação etc.) concebidos primordialmente
para promover melhorias nas condições de vida ou de trabalho em uma determi-
nada jurisdição).

Isto posto, reafirmarmos que as políticas urbanas se tornaram cada vez mais
excludentes e seletivas, demonstrando a ilusão democrática que as permeiam. Estas,
por sua vez, prioritariamente vêm atuando a partir da perspectiva da garantia das
condições necessárias para a ampliação dos valores de troca e para a criação de novas

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mercadorias destinadas ao consumo do urbano, ainda que fetichizadas na garantia
de direitos. O que ocorre

tendo em vista que o capitalismo tem sobrevivido, temos forçosamente que con-
cluir que o capital domina o trabalho não só no local de trabalho, mas também
no espaço de viver, através da definição da qualidade e dos padrões de vida da
força de trabalho, em parte pela criação de ambientes construídos que se adaptem
às exigências da acumulação e da produção de mercadorias (Harvey, 1982, p.
20, com grifos nossos).

Isto quer dizer que o capital vem exigindo o desenvolvimento da abertura de


novos setores produtivos que permitam a valorização e a atuação do capital sobrea-
cumulado a partir do espaço urbano. Ou seja, por meio de investimentos no mercado
imobiliário e fundiário. Com isso, as políticas urbanas se pautam na realização de
obras que buscam melhorias nas condições de urbanização, em espaços bem espe-
cíficos da cidade, com o nítido objetivo de aumentar o seu valor, conforme Arantes
(2006). É sob esta perspectiva que as políticas urbanas vêm sendo implementadas
com o evidente objetivo de atuar sobre o controle do espaço urbano. Desse modo,
há uma nodal intervenção do poder local que reforça, que destrói, que expropria e
que cria determinadas áreas da cidade a partir da execução das políticas públicas
urbanas, com o intuito de promover novas centralidades urbanas, consolidando o
empresariamento urbano.
Sob esse paradigma, as cidades se tornaram cada vez mais segregadas e segrega-
doras, constituindo uma urbanização excludente6. O que ocorre, segundo Vainer (2014,
p. 98), à medida que a administração urbana, atualmente implementada, corrobora

6 A esse respeito ver: CORTES, Thaís Lopes. A Instrumentalidade do Programa Habitacional “Morar
Feliz” no Processo de Empresariamento Urbano em Campos dos Goytacazes/RJ no Início do Séc
XXI. Tese (Doutorado em Serviço Social/PPGSS – orientação Silene de Moraes Freire) – Faculdade de
Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 369. 2023.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 45

para um projeto de eliminação da esfera política local, a partir da qual assume o


exercício um projeto empresarial, quando as políticas urbanas e o planejamento
estratégico são transfigurados “em mercadoria em empresa ou em pátria, definiti-
vamente a estratégia conduz à destruição da cidade como espaço da política, como
lugar de construção da cidadania” e também da democracia. Conforme observou
Harvey (2015, s/p):

Nada desse novo desenvolvimento poderia ter ocorrido sem despejos e des-
possessões massivas, onda após onda de destruição criativa que tem cobrado
não só um preço físico, mas também destruído solidariedades sociais, varrido
quaisquer pretensões de governança urbana democrática, e tem cada vez mais
recorrido ao terror e à vigilância policial militarizada como seu modo primário
de regularização social.

Portanto, não nos parece demasiado ressaltar que a expropriação tem relação
direta com o processo de empresariamento urbano que vem gerindo as políticas
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urbanas nesse período recente, de modo que,

a ação de privatização do espaço (antigos cercamentos) é um ato característico


do momento da mercantilização em uma expropriação capitalista. Tal ação viabi-
liza a abertura de um mercado até então inexistente, que será capaz de absorver
os fluxos do capital. Isso, por sua vez, pode se dar por desapropriações legais,
nas quais ironicamente retira as pessoas de suas casas ou terras e reestrutura o
território para a criação de valor. Ainda que legais, essas medidas têm a mesma
forma do roubo, pois pressupõem uma prerrogativa unilateral do Estado que não
depende da concordância do afetado (Gonçalves, 2018, p. 121, grifos nossos).

Podemos notar que as expropriações oficializadas pelo Estado a partir das polí-
ticas públicas, possuem um papel fulcral no novo ciclo econômico do capitalismo
decadente e em crise, pois permitem salvaguardar os interesses do modo de pro-
dução capitalista. Segundo Rolnik (2012, s/p), a política urbana atua com o intuito
de permitir

a liberação de terra bem localizada para empreendimentos e grandes negócios tem


levado a um aumento exponencial de remoções forçadas de assentamentos popu-
lares, muitos com décadas de existência, e – pasmem! – vários já regularizados e
titulados de acordo com os instrumentos legais. As conquistas no campo do direito à
posse da terra desses assentamentos são ignoradas e tratadas de maneira ambígua e
discricionária. Ou seja, espoliam-se os ativos dos mais pobres, sem reconhecer seus
direitos, porque é mais barato. Mas também porque, dessa forma, limpa-se a imagem
da cidade a ser vendida nos stands globais: sem assentamentos populares à vista.

Posto isto, as políticas urbanas implementadas nestas primeiras décadas do


século XXI objetivam a aplicação de estratégias que fomentem a revalorização e a
especulação imobiliária através de projetos de revitalização, de requalificação urbana,
da urbanização de favelas e de programas habitacionais. Participam ainda desses
46

processos, diferentes atores sociais e políticos, como os setores imobiliários, financei-


ros, o judiciário, a construção civil, o marketing e outros (Alvarez, 2012). Gonçalves
(2018, p. 117) nos ajuda nessa apreensão quando afirmou que essas intervenções
estatais operadas foram efetivadas por meio de

políticas de regularização fundiária, desocupação e especulação imobiliária em


bairros operários ou favelas. Em comum, todas essas medidas têm o fato de se
desenvolverem por meio de ações diretas do Estado que efetuam a mudança das
relações de propriedade então existentes e mercantilização de espaços até então
pouco atrativos para a produção do valor [...]. Tal mercantilização torna-se possí-
vel por dispositivos regulatórios que privatizam bens públicos e comuns, cortam
gastos sociais, reduzem impostos sobre a renda, retiram as barreiras que limitam
o livre fluxo do capital financeiro por meio de políticas de desregulamentação e
restringem as garantias dos trabalhadores.

Desta feita, posterior às expropriações, ocorre a reestruturação do espaço, por

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meio da qual o capital sobreacumulado atua através da abertura de novos nichos de
atuação, do mercado imobiliário, da criação de grandes conglomerados e de grandes
empreendimentos, sejam eles destinados ao comércio ou à moradia, denominados
como os enclaves fortificados. Em síntese e objetivamente, podemos destacar que

a privatização e a liberalização do mercado foram o mantra do movimento neo-


liberal, o resultado foi transformar em objetivo das políticas do Estado a “expro-
priação das terras comuns”. Ativos de propriedade do Estado ou destinado ao uso
partilhado da população em geral foram entregues ao mercado para que o capital
sobreacumulado pudesse investir neles, valorizá-los e especular com eles. Novos
campos de atividade lucrativa foram abertos e isso ajudou a sanar o problema da
sobreacumulação, ao menos por um tempo (Harvey, 2014, p. 130).

Em “A Montanha que Devemos Conquistar”, Mészáros (2015) asseverou que


a acumulação de capitais ocorre como uma autoimposição destrutiva. O que nos
auxilia na apreensão de que a autoimposição destrutiva ou a destruição criativa,
implementadas pelas políticas urbanas, podem também ser vislumbradas no processo
de expropriação, quando populações inteiras são despojadas dos seus territórios de
origem para que o novo possa se erguer sob os escombros do velho. Em muitos casos,
esses processos de expropriação vêm sendo efetivados a partir da ilusão democrática
do direito à casa própria, às condições de urbanidade, à cidade, e ao suposto “bem
comum”. Nos esclarece Mészáros (2009, p. 73) que o capitalismo

não pode separar “avanço” de destruição, nem “progresso” de desperdício –


ainda que as resultantes sejam catastróficas. Quanto mais o sistema destrava os
poderes de produtividade, mais libera os poderes de destruição; e quanto mais
dilata o volume da produção tanto mais tem de sepultar tudo sob montanhas de
lixo asfixiante.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 47

Isto posto, compreendemos que as políticas urbanas implementadas no século


XXI demonstram que as forças cada vez mais bárbaras e destrutivas do capital vêm
sendo destravadas. Os massivos processos de expropriação persistem nas políticas
urbanas, porque “o desenvolvimento do capitalismo é um processo permanente de
superação dos obstáculos e limites à acumulação por meio de espaços ainda não
mercantilizados” (Gonçalves, 2018, p. 111). Portanto, o objetivo das expropriações
engendradas a partir das políticas urbanas está em propiciar grandes investimentos
através do mercado de terras, a partir da articulação do capital imobiliário com o
capital financeiro, que conta com o forte aparato estatal que oficializa os processos
de expropriação a fim de fomentar as condições necessárias à reprodução deste
modo de produção, que tem a expropriação como um elemento imanente para a sua
sobrevivência. Isto é, para garantir, ampliar e expandir os seus limites de valorização.
É possível observar que nestas primeiras décadas do século XXI, apesar dos
avanços logrados nas letras das leis, as políticas urbanas vêm sendo implementadas
a partir de massivos e persistentes processos de expropriação com o intuito de urba-
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nizar ou de remover áreas das cidades que passaram a integrar o circuito econômico
em termos de mercado imobiliário. Como notou Mauriel (2018, p. 242), as políticas
urbanas tiveram um papel de “descortinar novas fronteiras e arenas para a acumulação,
desbravando novos locais de rentabilidade, disponibilizando novos terrenos para o
processo de valorização”, que foi efetivado por expropriações de comunidades intei-
ras e de bairros populares. O que se vislumbra é ainda mais deletério, uma vez que,
há uma generalização de recursos vultosos destinados a esse fim. Melhor dizendo,
voltado para uma urbanização excludente e seletiva, enquanto uma ampla maioria
da população brasileira permanece perene à própria sorte.
Não nos faltam exemplos para elucidar a expropriação persistente efetivada
pelas políticas urbanas brasileiras. Sem nos alongar, podemos citar exemplos recen-
tes e amplamente conhecidos, como as remoções realizadas em função da Copa do
Mundo de 2014 e das Olímpiadas de 2016. Segundo as estimativas dos Comitês
Populares da Copa7, cerca de 62,5 mil residências foram desapropriadas. Além das
obras do chamado Porto Maravilha que expropriaram inúmeros sujeitos das suas
residências (Gonçalves; Costa, 2020). Nesta congruência, espaços tradicionais e
históricos foram removidos e a sua população reassentada para conjuntos habitacio-
nais precários, em áreas carentes de urbanização, longínquas das antigas moradias
e afastadas da malha urbana central, da geração de trabalho, de emprego e de renda
e do direito à cidade.
Outrossim, as expropriações fomentadas pelas políticas urbanas operam ainda
impondo novas condições e abrindo novos setores de mercado para a extração da
mais-valia que podem ser vislumbrados na esfera dos serviços. Estes se dão a partir
da venda e da comercialização de energia elétrica, de gás, de internet, dentre outros
serviços, que outrora eram acessados sem que onerassem os já escassos recursos das
classes subalternizadas pelo capital. O que, por conseguinte, revela a agudização das
expressões da “questão social” na vida desses sujeitos.

7 COMITÊS POPULARES DA COPA. Dossiê de Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa
– Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil. 112f. Brasil, 2012.
48

Posto isto, as políticas urbanas se revelam como uma farsa democrática do


acesso aos direitos, o que se vislumbra à medida que compreendemos que as políticas
públicas conquistadas pelas lutas e pelas reivindicações das classes subalternizadas
foram capturadas para garantir as condições necessárias à reprodução do capital.
Trata-se de políticas minimalistas, focalizadas e compensatórias8 que, ao invés de
atenuar as desigualdades socioespaciais têm contribuído para intensificá-las.
Portanto, as políticas públicas urbanas se constituem na expressão do capital e
dos seus interesses e têm como objetivo nodal a dinamização econômica. Diferentes
são as frações de capitais que atuam embolsando com a produção capitalista da urba-
nização. O que se observa, no Brasil, especialmente neste início do século XXI, é que
os governos imprimem uma postura empreendedora em relação ao desenvolvimento
urbano (Harvey, 1996). À vista disso, “neste momento, o capital precisa recorrer
à expropriação de outro espaço, de outro lugar, criar novas condições sociais que
permitam o excedente fluir, abrindo novas alternativas à revalorização” (Gonçalves,
2018, p. 111). Assim sendo, a implementação das políticas públicas urbanas parece
unir como um cordão umbilical a expropriação persistente, a reestruturação urbana

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e o empresariamento urbano, face à “caça apaixonada pelo valor” (Marx, 2013). O
que não significa dizer que se trata de uma nova acumulação primitiva ou se trata de
uma continuidade tal qual dos processos de expropriação sob os quais se assentaram
a gênese desse modo de produção (Fontes, 2010).

4. Considerações Finais
Como observou a assistente social Iamamoto (2008, p. 119) “‘a questão social’
é indissociável da sociabilidade capitalista fundada na exploração do trabalho, que a
reproduz ampliadamente”. Consideramos a questão urbana uma expressão da “ques-
tão social”.
Ao analisarmos as políticas urbanas, atentamos à barbárie engendrada pelo
capital que destrói sociabilidades e laços socioafetivos, além da historicidade dos
sujeitos para operar ao seu bel prazer. Isto é, alterando significativamente a organi-
zação socioespacial, a partir de intervenções urbanas que não lhe são inócuas. E que
também não podem ser compreendidas fora do movimento de reprodução do capital.
Não podemos perder de vista que sob a ilusão democrática, as políticas urbanas
implementadas se constituem em renovados processos de expropriações, pois vêm
efetivando uma massiva subtração dos meios sociais de subsistência imprescindíveis à
vida e a sua consequente mercadorização. Assim, as políticas supracitadas vêm sendo
efetivadas através de um elo que conjuga a expropriação e o empresariamento urbano,
pois a expropriação é efetivada com o intuito de ampliar os valores de troca de espa-
ços bem específicos das cidades. O que por sua vez, vem reafirmando a centralidade

8 As políticas sociais compensatórias têm como objetivo atenuar as expressões da “questão social”. Contudo,
não resultam na apropriação devida da riqueza socialmente produzida. Dessa forma, continuam a perpetuar
as desigualdades sociais e espaciais das camadas mais subalternizadas pelo capital. Conforme analisou
Martins (2012, p. 14), “são apenas débito a fundo perdido, preço a pagar pela sustentação de uma economia
cuja dinâmica bane e descarta parcelas da população”.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 49

do projeto de “cidade-mercadoria”, em detrimento do projeto da “cidade-direito”,


resguardadas todas as críticas a este último projeto que também se liga aos interesses
do capital, conforme já afirmamos linhas acima.
Dito isto, é necessário enfatizarmos ainda que vislumbramos nitidamente os
lastros perversos da efetivação da administração urbana pautada no seu empresa-
riamento, por mais que, às vezes, a intervenção estatal venha travestida da retórica
democrática a partir de leis que são alteradas e/ou criadas sob o fetiche da garantia
de direitos constitucionais.
Não nos parece demasiado ressaltar que esses processos de expropriações via
políticas urbanas se potencializaram e se adensaram nas últimas décadas. O que
decorre do fato de que a expropriação tem um papel orgânico na dinâmica da repro-
dução do sistema capitalista, por isso mesmo, se constitui em um traço disjuntivo e
persistente da dinâmica de reprodução do capital. Há de se observar também que a
expropriação engendrada pela política urbana contribui ainda para que vários aspectos
indispensáveis para a moradia e para as condições de habitação e de urbanidade se
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constituam em torno do valor. Consequentemente, a expropriação é um mecanismo


indispensável para a reprodução expandida do capital e como um dos seus imperativos
por crescimento e valorização, sobretudo, no contexto na crise estrutural do capital.
Por isso, esses processos se impulsionaram sob modalidades cada vez mais
brutais, à medida que, o capital tem uma incessante necessidade de reconverter os
usos do espaço urbano para promover processos de valorização que garantam as
condições favoráveis para a sua reprodução e para a sua expansão. Vide as remoções
que cresceram cerca de 333%9 no período de março de 2020 a fevereiro de 2022,
quando vivenciávamos o período mais difícil do que se convencionou denominar de
capitalismo pandêmico (Antunes, 2022).
Nos parece lúcido ressaltar que todas as medidas adotadas pelo modo de pro-
dução capitalista demonstram a sua incompatibilidade com qualquer quadro de
orientação humana. Portanto, o que se revela é que as políticas urbanas, ao invés
de atenuar a problemática urbana, têm contribuído para agravá-la a partir das dis-
paridades socioespaciais que emergem deste cenário altamente destrutivo, que vem
sendo implementado a partir de uma ilusão democrática presente nas letras da Lei,
isto é, da Carta Cidadã.
Concordamos com Santos (2023) quando ressalta que Lukács, ao afirmar que
o desenvolvimento das forças produtivas torna real e concreta a criação de “um
espaço de manobra de possibilidades para as decisões ideológicas dos seres humanos”
(LUKÁCS, 2019, Tomo II, p. 461 apud SANTOS, 2023), possibilitando a operati-
vidade de ideologias que de fato apreendam o ser social, tornando desnecessários
complexos ideológicos restritos a exemplo do direito.
Como Marx observou claramente em sua “Crítica do Programa de Gotha”, as
razões pelas quais o direito consiste no estabelecimento de um padrão de igualdade
se devem ao fato de ser desigual e limitado quanto à observância das potencialidades

9 Para aprofundamento, consultar: DESPEJO ZERO. Dados atualizados dos despejos no Brasil. Disponível
em: https://drive.google.com/file/d/1CIZjXacbUDgMqSaidkIps0ba9BF9q8Ju/view: Acesso em: abril. 2022.
50

humanas em sua generalidade. Assim sendo, é limitado pensar em esgotar as lutas


sociais através das conquistas das leis, como também é extremamente restrito acre-
ditar que a democracia não pode ultrapassar o marco vulgar em que se configura. Em
síntese, somente as lutas por uma sociedade que ultrapasse a sociedade do capital
será capaz de garantir o direito à cidade.

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DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 51

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TEORIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL:
uma reflexão crítica acerca do
Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos (2019-2022)
Maíra Carvalho Pereira

DOI 10.24824/978652515909.6.55-69

1. Introdução
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Buscamos fortalecer a tese de que há uma relação entre o metabolismo socioe-


conômico do modo de produção capitalista e a desigualdade de gênero1. Na socie-
dade capitalista, dividida por classes, a classe dominante se apropria da força de
trabalho de outras frações de classe, expropriando um excedente de trabalho que não
é remunerado. Ora, se a classe dominante necessita da força de trabalho para que
assim possa expropriar trabalho excedente, é necessário que haja trabalhadores aptos
ao desempenho de suas funções no mercado, capazes de gerar um valor que não os
pertence, mas sim, ao capitalista detentor dos meios produtivos.
Assim, é de suma importância que possamos lançar mão da Teoria da Reprodu-
ção Social – conceito criado pela vertente unitária do feminismo de tradição marxista
– que explicita haver uma relação entre os âmbitos da produção e reprodução, tendo
por centralidade a produção/reprodução da vida na dinâmica contraditória da relação
entre capital e trabalho. Em outras palavras, para produzir é preciso trabalhadores
prontos a dispensar força de trabalho em prol da produção e, para isso, é necessário
que essa energia vital seja reposta através da reprodução social fora do meio produ-
tivo, como alimentação, sono, lazer e etc. Portanto, compreendemos que a produção/
reprodução do modo de produção capitalista é um processo plenamente interligado
com a produção/reprodução da vida.
A partir disso, buscamos analisar o Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos, em que percebemos o fortalecimento da naturalização do traba-
lho não remunerado no âmbito da família como uma condição intrínseca feminina.
Desta feita, podemos inferir que a relação de opressão do gênero feminino em suas

1 Este artigo é proveniente de reflexões oriundas da Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-graduação


em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
PEREIRA, Maíra Carvalho. Reprodução Social e Conservadorismo: a reatualização dos nexos patriarcais no
governo do Presidente Jair Bolsonaro. Dissertação (Mestrado em Serviço Social/PPGSS – orientação Silene
Freire) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 184. 2023.
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condições materiais, sociais e culturais pode ter sido reforçada e disseminada pela
atuação desse Ministério, à medida que favoreceu: a naturalização da subordinação
do trabalho do gênero feminino; introjeção do trabalho de “cuidado” como inerente
às mulheres, independente de seu caráter assalariado, ou na própria família.
Ao nos depararmos com o aprofundamento do neoliberalismo nos tempos atuais,
compreendemos que a exploração do gênero feminino tem sido adensada, tendo
em vista as constantes tentativas de regressão de direitos historicamente conquis-
tados. O sistema capitalista, a fim de manter suas taxas de lucro, vem fortalecendo
seus aparatos objetivos e subjetivos da força de trabalho; sendo esta força de traba-
lho, produzida e reproduzida através da exploração de trabalho não remunerado de
mulheres. Com isso, o neoliberalismo, que reforça princípios de individualismo e
meritocracia, ao promover a redução dos gastos em políticas públicas, rebate dire-
tamente nos aspectos da reprodução social que são organizados em maior parte por
mulheres. Isto tem por resultado a responsabilização exacerbada da família – e aqui
falamos sobre suas múltiplas conformações – pela sua própria reprodução, em que
políticas públicas essenciais vêm sendo erodidas, como por exemplo: a redução do

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investimento em saúde, educação, segurança alimentar, segurança pública, transporte,
habitação, empregabilidade e etc. Ou seja, o sucateamento das políticas públicas
reflete na piora das condições de vida da classe trabalhadora e no adensamento da
desigualdade de gênero.

2. A teoria da reprodução social como importante construção


teórica para o desvelamento da sociedade burguesa
A força de trabalho é o “conjunto de capacidades físicas e mentais que existem
na corporeidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento
sempre que produz valores de uso de qualquer tipo” (Marx, 2017, p. 242). Com a
generalização do modo de produção capitalista nas relações sociais, o trabalhador foi
expropriado dos seus meios de produção, não lhe restando mais nada a vender além
de sua própria força de trabalho. Diante desta relação de compra e venda, a força
de trabalho é uma mercadoria a ser vendida em uma suposta relação de igualdade
no âmbito do mercado, em que há um comprador e um vendedor, no entanto, há o
ocultamento que nos cabe dar centralidade: a relação de exploração do comprador
da força de trabalho, pois o objetivo último de sua produção é expropriar trabalho
excedente não remunerado; a situação de explorado do vendedor que não possuindo
seus próprios meios produtivos, precisa vender sua força de trabalho como uma
mercadoria para garantir sua sobrevivência (Marx, 2017).
Trabalhadores aptos a integrarem a produção na sociedade capitalista necessitam
de renovação diária de sua energia vital, bem como uma renovação geracional da
força de trabalho. Sem a intenção de criar estruturas esquemáticas de casualidade,
temos por objetivo dar visibilidade a um aporte teórico que demonstre uma relação
intrínseca entre a imprescindibilidade de trabalhadores para a acumulação de capital
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 57

e a desigualdade de gênero, pois são as mulheres que desempenham a maior parte


das atividades de reprodução social no âmbito da família2.
Apropriando-se da teoria marxiana, as autoras demonstram que é através do tra-
balho humano que o capitalismo consegue manter sua produção/reprodução. E, diante
da necessidade de renovação diária da vida em atividades no âmbito da reprodução
social, para continuidade da produção, é que há essa relação direta entre a explora-
ção da força de trabalho e o trabalho não remunerado de mulheres, despendidos no
âmbito da família.
Para Brenner e Laslett (1991, p. 314 apud Fonseca, 2019, p. 35), há uma dis-
tinção terminológica entre a reprodução societal e a reprodução social, em que a
primeira foi empregada por Marx referindo-se à reprodução das relações sociais no
capitalismo, em sua dimensão mais ampla, e a segunda é referida pelo feminismo
de tradição marxista, de forma mais específica, acerca da renovação da energia vital
que possibilita a manutenção da vida. Segundo Fonseca (2019):
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Cabe ressaltar que na definição de Brenner e Laslett, a reprodução societal abrange


a reprodução social: isto significa que relações específicas de classe também defi-
nem o quadro dentro do qual a reprodução social se realiza. A noção de reprodução
social, nessa perspectiva, tem o sentido de destacar a centralidade do trabalho de
manutenção da vida e de reprodução da próxima geração como parte do trabalho
necessário no interior de todo o processo de reprodução societal (Brenner; Laslett,
1989, p. 383 apud Fonseca, 2019, p. 35).

Assim, nos cabe explicitar que, nos marcos deste artigo, ao utilizarmos o termo
“reprodução social”, estamos nos referindo, de modo mais preciso, às condições que
perpassam as atividades de manutenção e renovação que compõem a reprodução da
vida, em que vão resultar na forma pela qual o trabalho físico, emocional e mental
de produção de pessoas será despendido.
A forma pela qual o trabalho de “produção de pessoas” – renovação diária e
geracional da força de trabalho – é invisibilizado nas relações sociais, nos demonstram
uma face generalizada e naturalizada de exploração do gênero feminino: tendo como
função não somente a procriação, mas também a manutenção da força de trabalho,
que no âmbito da família é um trabalho intenso e de tempo integral. Dessa forma,
homens e, majoritariamente, mulheres despendem do trabalho não remunerado na
família, para renovação da força de trabalho, que é a fonte de valor do sistema
capitalista. Por isso, é de fundamental importância que o sistema capitalista reforce
de forma naturalizada o trabalho não remunerado que gerações do gênero feminino
desempenharam e desempenham na família, pois objetiva encobrir, principalmente, a
imprescindibilidade desta função na acumulação de capital, oriunda da exploração da

2 Nos cabe demarcar que dentro do campo dos estudos feministas há uma polêmica acerca do caráter do
trabalho doméstico despendido por mulheres que não perpassa pelo objeto desta investigação. Todavia, é
importante ressaltar que para a Teoria da Reprodução Social – vertente de análise pela qual nos vinculamos
– o trabalho doméstico é valor de uso, visto que cumpre uma necessidade social específica de produção e
reprodução da força de trabalho para o Capital (Vogel, 2013).
58

força de trabalho (Arruzza; Bhattacharya; Fraser, 2019). Uma mediação importante


a ser visitada neste ponto, trata-se da defesa intransigente da ética liberal-burguesa
ao núcleo familiar, pois sendo a força de trabalho a fonte de valor da acumulação
capitalista, o âmbito familiar é o espaço de “produção de pessoas”, em que são desem-
penhadas atividades que suprem as necessidades materiais, sociais e culturais, capazes
de propiciar renovação diária e geracional de trabalhadores que estarão disponíveis
para uma progressiva exploração da força de trabalho.
Não nos restam dúvidas de que a reprodução social é central para nos possibilitar
a compreensão da desigualdade de gênero a partir das múltiplas determinações do
real que se apresentam no cotidiano, sem perder de vista que só pode haver expro-
priação de trabalho excedente se trabalhadores despenderem força de trabalho no
sistema capitalista. Queremos demonstrar, a partir disso, que o âmbito em que os
trabalhadores despendem força de trabalho remunerado está inteiramente relacionado
ao âmbito em que os trabalhadores exercem a função da reprodução social, como
forma de produzir a si mesmo e sua família.
A partir de Bhattacharya (2019a), podemos inferir que a Teoria da Reprodução

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Social é um importante aporte teórico no que diz respeito ao desvelamento da explo-
ração da classe trabalhadora em sua totalidade, pois a indissociável relação entre os
âmbitos produtivos e reprodutivos expressam a base elementar do sistema capitalista:
a interrelação entre o trabalho remunerado e o trabalho familiar não remunerado. É
neste ciclo ininterrupto entre trabalho remunerado e trabalho não remunerado, no
âmbito da família, que os nexos da desigualdade de gênero se renovam e perpetuam
no capitalismo. Diante disso, a autora cita Vogel (2013) e destaca os processos repro-
dutivos característicos da sociedade de classes:

Vogel propõe três tipos de processos que compreendem a reprodução da força de


trabalho em sociedades de classes: (a) as diversas atividades diárias que restau-
ram os produtores diretos e lhes permitem voltarem ao trabalho. (b) as diversas
atividades similares que dizem respeito aos membros não trabalhadores da classe
subordinada (as crianças, os mais velhos, os doentes, ou as pessoas que não fazem
parte da população ativa por diversas razões). (c) as atividades que substituem os
membros da classe subordinada que não podem trabalhar por qualquer razão que
seja (Vogel, 2013 apud Bhattacharya, 2019a, p. 18).

A autora elucida que a reprodução social é algo de grande interesse para classe
capitalista, pois é no âmbito da família que a força de trabalho é criada e projetada
para atender as demandas do capital. A reprodução social não pode ser vulgarmente
compreendida como uma mulher que cumpre atividades do lar para garantir o retorno
de outros membros ao âmbito produtivo reabastecidos, mas sim como esta força de
trabalho é reproduzida, de forma que, subjetivamente, é gerenciado por interesses do
capital, como o grau de instrução e até as condições de saúde. De forma a exemplificar
melhor esta relação de interesse do Capital na reprodução social, podemos demons-
trar as predisposições ao trabalho, como o conhecimento de outras línguas e cultura,
sendo relações reproduzidas diariamente no âmbito familiar (Bhattacharya, 2019a).
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 59

A força de trabalho, mercadoria cujo modo de produção capitalista é dependente


para extração de mais-valia3, é produzida pelos corpos de mulheres e reproduzida
no âmbito da família, majoritariamente, também por mulheres e, por isso, é impres-
cindível para continuidade desse sistema que o gênero feminino esteja em situação
de subalternidade, para que sua força de trabalho siga sendo extraída na produção
deste bem insubstituível: o trabalho humano.
Portanto, insistimos que há uma centralidade da reprodução social na dinâmica
contraditória da relação entre capital e trabalho. E, por isso, temos por pretensão dar
visibilidade que mulheres são responsabilizadas pela reprodução da família sem que
tenham condições objetivas de igualdade no mercado formal de trabalho e acumu-
lam a execução do trabalho não remunerado no âmbito da família por absorver as
condições subjetivas que as colocam nesta posição de forma compulsória como se
fosse um dom natural e inalienável. Dito isso, buscamos demonstrar que a reprodução
social – nos cabe mais uma vez mencionar que nos referimos aqui como atividades
de cuidado e educação de crianças, cuidado de idosos e doentes, questões domésti-
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cas como alimentação e asseio da casa, dentre outras – é um importante conceito a


ser fortalecido para desvelar a sociedade burguesa e seus incontáveis artifícios de
ocultamento das opressões às quais a classe trabalhadora é submetida e, para o nosso
objeto de investigação, o quanto a perpetuação da lógica de exploração do trabalho
do gênero feminino propicia a manutenção da acumulação capitalista.
Bhattacharya (2019b) vai explicitar que um aspecto central para a Teoria da
Reprodução Social é que o capitalismo, enquanto um sistema unitário, é capaz de
integrar a esfera da produção e a esfera da reprodução para seu fim último: garantir
a máxima acumulação de capital. É diante desta assertiva que a autora busca dar
visibilidade sobre os direitos das mulheres, pois mesmo que avancem dentro ou fora
da economia formal, são ocasionais e contingentes, visto que o alicerce que sustenta
a opressão ao gênero feminino é o sistema capitalista como um todo. Para a autora
“qualquer conversa sobre o fim da opressão e sobre a libertação, então, precisa lan-
çar mão de uma conversa simultânea sobre o fim do sistema em si”. (Bhattacharya,
2019b, p. 104).

3 Para Marx, mais-valia é um conceito chave para compreender a lei geral de acumulação capitalista, pois se
antes da generalização deste modo de produção era comum relações de vender algo que não é mais útil para
comprar algo de que necessita, depois se coloca dinheiro para efetuar a compra de uma mercadoria pela
qual se pretende vender em um valor diferenciado de sua compra. Nos termos do autor (M é mercadoria e
D é dinheiro), se antes a forma era de M-D-M, posteriormente torna-se D-M-D, e com relação à mais-valia a
forma completa é D-M-D’, em que D’ representa o valor adiantado somado a um adicional, ou seja, a venda
que tem como valor total o seu adiantamento somado a um incremento. Este excedente, ou incremento,
acrescido ao valor original é denominado como Mais-valia. Esta operação na esfera da produção modifica
a grandeza de valor ao adicionar um mais-valor na mercadoria, o que resulta na transformação do dinheiro
inicial em capital (Marx, 2017).
60

3. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos: a


investida ideológica sob os aspectos da reprodução social
A década de 1990 é marcada pela degradação dos direitos adquiridos pela luta
da classe trabalhadora, através da Constituição Federal de 1988. O neoliberalismo4,
enquanto conjunto ideológico hegemônico, propiciou, pelos meios de comunicação,
a divulgação maciça do livre comércio como liberdade e a flexibilização do trabalho
como algo positivo. A correlação de forças em torno da legitimação da hegemonia5
foi intensa, o Estado foi demonizado pelo neoliberalismo e visto como um enorme
peso para a sociedade, e, portanto, deveria ser reformado para diminuir seu tamanho
e inserção na economia.
Com relação ao papel do Estado na concepção neoliberal, há uma importante
contradição que perpassa a disputa pela hegemonia: o Estado é mínimo para os gastos
sociais, incentivando a atuação frente à questão social pela filantropia, individualiza-
ção das necessidades e estímulo da meritocracia; o Estado é máximo na criação de

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estratégias que diante de qualquer ameaça de reação por parte das frações da classe
trabalhadora lança mão de violenta coerção e estruturas de consenso para a garantia
da manutenção hegemônica do capital. Há uma constante investida ideológica atra-
vés da instrumentalização da mídia para a permanente hegemonia do grande capital
representado pelo neoliberalismo. Sobre esta questão, podemos perceber o entrela-
çamento entre o pensamento conservador e o complexo ideológico neoliberal – os
quais são estruturados e são estruturantes da ordem capitalista – que se utilizam da
ação midiática para generalização e naturalização do modo de vida burguês como
relações comuns a todo o conjunto da sociedade (Freire, 2014).
Ainda segundo Freire (2014), a negação dos Direitos Humanos no Brasil faz
parte da cultura política, permeada pelo autoritarismo, que adentra ao século XXI
ainda com aspectos de uma autocracia burguesa que esteve voltada a atender às
necessidades das elites. Diante disso, o neoliberalismo construiu uma ideologia que
o Estado não deve suprir as necessidades da classe trabalhadora através de políticas
sociais, mas sim devem ser supridas pelos próprios indivíduos. A partir disso, as
expressões da questão social se agudizam conforme o neoliberalismo se aprofunda
na sociedade brasileira. O neoliberalismo construiu um consenso que entroniza a
individualidade que camufla o grau de letalidade pela qual o Estado vem atuando

4 O neoliberalismo é um complexo ideológico e econômico que é originado para contrapor o Keynesianismo


e foi ampliado como estratégia de superação da crise do capital aprofundada na década de 1970, tendo
baixas taxas de crescimento e altas taxas de inflação. A partir disso, a teoria Neoliberal ganha fôlego,
justificando a grande recessão devido à intervenção do Estado sobre os gastos sociais. Assim, preza a não
intervenção do Estado na economia e parcos investimentos públicos no bem-estar da classe trabalhadora,
sendo imprescindível a interrupção do pleno emprego, recuperando a taxa “natural” de desempregados
(Anderson, 1995).
5 Cospito (2017) expõe que o conceito de hegemonia demonstrado em Gramsci é como um elemento de
conexão entre a esfera da sociedade civil e a esfera política e, em sentido mais amplo, se expressa na
direção de classes aliadas e dominação das classes adversárias. O autor demonstra ainda que o “terreno
no qual se desenvolve a “luta pela hegemonia” é o da sociedade civil” (Cospito, 2017, p. 366).
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 61

frente às expressões da questão social, utilizando-se da ação midiática como princi-


pal instrumento de elaboração de uma subjetividade generalista, mas que atende às
necessidades da ordem capitalista.
São com essas reflexões acerca do aprofundamento da exploração da classe tra-
balhadora que vamos de encontro ao que nos importa para o diálogo com a investida
institucional que ocorreu contra os direitos das mulheres. Ao tempo em que ocorreu
o governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro, que se caracterizava sumariamente
como liberal e conservador e, notoriamente, investia em ataques sucessivos aos Direi-
tos Humanos, utilizando, principalmente, mídias sociais para promover a adesão de
sua base de apoio através de discursos aviltantes e degradantes. O governo em tela é
o resultado da ação articulada da direita política brasileira, que veio se fortalecendo
na opinião pública a partir da crítica aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT)
– dos anos de 2003 a 2016 – e, aproveitando os momentos de instabilidade política e
econômica, emergem na disputa pela hegemonia e consenso da classe trabalhadora.
O Presidente em questão se torna representante desta direita política ao aglutinar
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os interesses do grande capital ao discurso conservador. Não por acaso, o pensamento


conservador tem expressão na política brasileira no que se convencionou a chamar
de bancadas do boi, da bala e da bíblia, que, respectivamente, representam setores do
agronegócio, segurança e religião. Jair Bolsonaro tornou-se representante desta nova
direita ao traduzir as angústias destes setores de maior expressão conservadora como
uma reação às pautas progressistas que foram desenvolvidas nos anos do governo PT.
Percebemos que esta bancada é expressão do enraizamento do pensamento conser-
vador na política brasileira à medida que demonstra a centralidade da pauta moral e
religiosa na escolha de representação no congresso nacional. É possível compreender
que o pensamento conservador promoveu uma unidade da direita política no Brasil,
resultando em Jair Bolsonaro como seu principal porta-voz e vencedor do pleito em
2018 com o lema: “Deus, Pátria e Família”6.
Neste governo, houve a desconstrução do Ministério dos Direitos Humanos, o
qual foi substituído pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
nomeando a Pastora Damares Alves, que se apresentava como grande defensora da
“moral e dos bons costumes” e que buscava a retomada da virtude da família tradicio-
nal cristã supostamente “destituída pelos anos de governo PT”. A ministra Damares
Alves forneceu declarações7 na contramão da história, contrariando as conquistas
civilizatórias acerca do lugar do gênero feminino na sociedade, por vezes, discursou
sobre a importância da mulher nas atividades da casa e na criação dos filhos; além
disso, forneceu declarações sobre a submissão da mulher no casamento e, não por
acaso, também demonstrou grande contrariedade ao aborto, correlacionando essas
temáticas com conceitos conservadores, tradicionais e religiosos.

6 DIAS, Gabriel. ‘Deus, Pátria, Família’: de onde veio o lema fascista usado por Bolsonaro?. UOL, 29 Ago.
2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/08/29/deus-patria-familia-lema-de-bolsona-
ro-tem-origem-fascista-entenda.htm. Acesso em: 13 set. 2022.
7 “NA MINHA CONCEPÇÃO CRISTÃ, MULHER NO CASAMENTO É SUBMISSA AO HOMEM”, DIZ DAMA-
RES. Istoé. 17 Abr. 2019. Disponível em: https://istoe.com.br/na-minha-concepcao-crista-mulher-no-casa-
mento-e-submissa-ao-homem-diz-damares/. Acesso em: 20 nov. 2021.
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Nos cabe mencionar que não temos os eventos recentes de emersão do con-
servadorismo como parte do triunfo político de Bolsonaro, mas sim, como uma
expressão da cultura política brasileira que foi resgatada como forma de garantir as
bases da hegemonia do grande capital. Freire (2018) afirma que esta “mentalidade
privatizante” resgata uma característica particular da cultura política brasileira, em
que “o moderno se constitui por meio do “arcaico”, recriando nossa herança histórica
ao atualizar aspectos persistentes e, ao mesmo, transformando-os no contexto da
mundialização” (Freire, 2018, p. 196). A autora vai demonstrar que, a exemplo dos
marcos macroeconômicos mundiais de mínimo para o social e máximo para o capi-
tal, o conservadorismo vai se expressar em ações de filantropia, assistencialização,
criminalização da pobreza, benemerência, sendo atualizados a partir dos “programas
focalizados de combate à pobreza” na atual conjuntura.
A religião – e aqui não mencionamos somente as de denominações pentecos-
tais – tem sido uma fundamental base do conservadorismo na atualidade brasileira
em que não podemos perder de vista a forma pela qual o Ministério da Mulher, da

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Família e dos Direitos Humanos era calcado na moralidade e religiosidade, tendo
como prioridade a manutenção da “família tradicional”, com forte estreitamento
entre o pensamento conservador e os nexos patriarcais. Assim, podemos inferir que
este Ministério atuou de maneira a fortalecer a base popular de apoio do governo
Bolsonaro ao fomentar debates de cunho conservador sobre as políticas públicas,
principalmente no que diz respeito aos aspectos que envolvem a reprodução social.
Neste quesito acerca da reprodução social, o apoio popular viria da dispersão no
senso comum de uma suposta investida da esquerda política para degeneração da
família, estratégia conhecida como “pânico moral”. Visto que o cuidado familiar é
difundido como atividade atribuída às mulheres, o fortalecimento de um suposto
modelo de família por este Ministério nos demonstra a forma pela qual há um reforço
da naturalização da desigualdade de gênero e opressão das mulheres pelo órgão que
deveria promover o seu oposto.
Cabe destacar que, durante a campanha presidencial de 2018, Jair Bolsonaro
teve como pauta o combate à “ideologia de gênero” e “defesa da família” como
questão central e durante seu governo isso se expressou através da inócua atuação
do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos frente às questões
relacionadas à proteção de mulheres e fomento de políticas públicas pela igualdade
de gênero. Além disso, este Ministério realizou uma verdadeira investida ideológica
contra o debate progressista dos direitos das mulheres, em que podemos ressaltar o
enfraquecimento substancial dos mecanismos de prevenção e combate à violência
doméstica8, bem como o avanço do viés conservador que provoca a regressão de
direitos já instituídos

8 RESENDE, Thiago. Bolsonaro Cortou 90% da Verba de Combate à Violência Contra a Mulher. UOL.
17 Set. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/09/bolsonaro-cortou-90-da-ver-
ba-de-combate-a-violencia-contra-a-mulher.shtml. Acesso em: 21 set. 2022.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 63

Tal Ministério buscou garantir o fortalecimento do sistema patriarcal9 à medida


em que deu uma maior centralidade à família para resolução das questões pertinentes à
produção e reprodução da classe trabalhadora. Temos ciência de que esta centralidade
não foi inaugurada pelo governo do Presidente Jair Bolsonaro, mas compreendemos
que se trata de um fenômeno novo o deslocamento da assistência social de apoio
e suporte às famílias para a pasta dos Direitos Humanos. Queremos dizer com isto
que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos atuou de forma que
deslocou a responsabilização do Estado para o provimento de condições básicas
de existência da família para o âmbito privado, através do incentivo de medidas
individuais e responsabilização do indivíduo, e isto com forte apelo ideológico à
necessidade do cuidado executado por mulheres. Compreendemos como resultado
disso, que a “defesa da família” ocasiona uma possível limitação de direitos garan-
tidos constitucionalmente e naturaliza no senso comum a desigualdade de gênero.
Há inúmeras declarações de Damares Alves10 alinhadas ao pensamento con-
servador, relacionando a mulher como mãe, cuidadora, responsável pelo serviço do
lar e educação Cristã, a qual deve exercer seu papel na família sob a supervisão do
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homem. Assim, sendo veemente contra debates históricos do direito da mulher como
igualdade na inserção do mercado de trabalho, direitos sexuais e reprodutivos, os
quais envolvem o debate sobre sexualidade e aborto. Com relação a este último, a
Ministra Damares tem voz ativa nos movimentos em favor da vida desde a concepção,
tendo, inclusive, declarado durante a sessão anual do Conselho de Direitos Humanos
da Organização das Nações Unidas em Genebra, ocorrido em fevereiro de 2022,
que o governo do Presidente Jair Bolsonaro é a favor da liberdade e da vida desde a
concepção11. Este ministério foi um elo importante de incorporação e fortalecimento
do conservadorismo no governo do Presidente Jair Bolsonaro, passando a discussão
conservadora de família, mulher e religião para o âmbito institucional, responsável por
planejamento, descentralização e implementação de programas e políticas públicas.
Neste sentido, percebemos uma diluição entre o público e o privado e não res-
peito à laicidade do Estado. Além disso, discussões do campo progressistas como
aborto e equidade de gênero, dentre tantas outras, passaram a ser contestadas e regre-
didas de forma institucional e sob viés do conservadorismo. A ideologia conservadora,

9 Sobre o sistema patriarcal, cabe destacar: “Como já apontei, a dificuldade nesse debate diz respeito à
definição de patriarcado. Não há uma definição uniforme, mas um conjunto de proposições, algumas das
quais são compatíveis com as demais, enquanto outras são contraditórias. Uma vez que não posso analisar
todas estas definições, proponho, por enquanto, focar no conceito de sistema patriarcal, entendido como um
sistema de relações, tanto materiais como culturais, de dominação e exploração de mulheres por homens.
Este é um sistema com sua própria lógica, que é ao mesmo tempo maleável a mudanças históricas, em
uma relação de continuidade com o capitalismo” (Arruzza, 2015, p. 39).
10 SACONI, João Paulo. Cotada Ministra diz que ‘mulher nasce para ser mãe’ e ‘infelizmente tem que
ir para o mercado de trabalho’. O Globo. 31 nov. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/
cotada-paraministra-diz-que-mulher-nasce-para-ser-mae-infelizmente-tem-que-ir-paramercado-de-traba-
lho-23272762. Acesso em: 28 jun. 2022.
11 EM GENEBRA, MINISTRA DAMARES FAZ BALANÇO DE ATUAÇÃO EM DEFESA DOS DIREITOS.
Brasília: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. 28 fev. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/
mdh/pt-br/assuntos/noticias/2022/fevereiro/ministra-damares-faz-balanco-de-atuacao-em-defesa-dos-direi-
tos-humanos-em-genebra. Acesso em: 11 dez. 2022.
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neste sentido, avança no conjunto da sociedade civil para realização das exigências
do mercado, de mesmo modo, amplia sua reprodução e de forma contínua se apropria
de esferas da cadeia econômica-produtiva que são essenciais para a reprodução da
vida. Assim, a ideologia conservadora cumpre seu papel na defesa intransigente da
acumulação capitalista, em que possibilita que o gênero feminino siga cumprindo
trabalho não remunerado de cuidado na família aparentemente de forma espontânea
e natural, possibilitando que o capitalismo mantenha seu controle sobre a qualidade
e quantidade de força de trabalho disponível no mercado através da exploração e
opressão de mulheres.
Dessa forma, compreendemos que a dispersão ideológica possibilita que a
ordem dominante possa impor o projeto neoliberal às outras frações de classe, reper-
cutindo no planejamento e financiamento das políticas sociais, em que demonstra
a forma pela qual a dinâmica dos processos políticos vai refletir “a disputa entre
diferentes projetos de poder” (Freire; Sierra, 2022, p. 214). Isto nos importa saber
tendo em vista que a deterioração e subfinanciamento das políticas sociais vão
influenciar diretamente sobre a responsabilização da família – ou a isenção de

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atuação do Estado – na garantia do bem-estar de seus próprios integrantes, ocasio-
nando sobrecarga dos aspectos da reprodução social sustentados, majoritariamente,
pelo gênero feminino.
Nos cabe observar como o neoliberalismo alcançou o senso comum da socie-
dade, visto que seu aprofundamento deteriora as condições de vida da classe subal-
terna e ainda assim segue seu curso deliberado de acumulação capitalista. A partir de
Coutinho (2010), o neoliberalismo disseminado na sociedade trata-se de um aspecto
da hegemonia, pois uma relação hegemônica se estabelece à medida em que um
conjunto de valores e crenças são consolidados no senso comum12. Determinados
aspectos do senso comum asseguram a constante reprodução do capitalismo, mesmo
que esses valores e crenças não explicitem claramente sobre a questão econômica.
A partir disso, podemos relacionar a opressão das mulheres, em que o senso
comum – subsidiado e reforçado pela classe dominante – as coloca em situação de
desigualdade, seja no âmbito produtivo e reprodutivo, bem como o subjetivo em que
são naturalizadas formas de violência física e psicológica como parte integrante do
âmbito privado da família. Outra questão que se coloca à prova no que é disperso no
senso comum e que subjuga o gênero feminino à suposta condição natural do cuidado
da família é o incentivo ao individualismo e a crítica às necessidades de subsistência
que são supridas em sua forma coletiva através das políticas sociais, com a ideia
pejorativa de que famílias pobres são “acomodadas” ao auxílio público. Os aspectos
do senso comum exemplificados demonstram o quanto a ideologia da classe dirigente
possui formas de garantir relações sociais em que o gênero feminino permaneça em
relação de subordinação, pois há a necessidade de que mulheres sigam exercendo

12 Utilizamos o termo “senso comum” como um conglomerado de ideias tradicionais e pouco elaboradas que são
disseminadas às frações de classe e naturalizadas. Coutinho (2010, p. 30), explicita o “senso comum” como
algo “[...] com frequência contraditória, que orienta – muitas vezes sem plena consciência – o pensamento
e a ação de grandes massas de mulheres e homens”.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 65

trabalho não remunerado na família para garantia da produção e reprodução da força


de trabalho disponível a ser explorada pelo capitalismo.
Para Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019, p. 51), o capitalismo tem seus nexos
calcados na opressão de gênero, em que “longe de ser acidental, o sexismo está entra-
nhado em sua própria estrutura”. É neste fio condutor argumentativo que podemos
perceber a instrumentalidade da opressão do gênero feminino para a classe dominante,
sendo expressa pela necessidade da manutenção de mulheres exercendo o trabalho
não remunerado no âmbito da reprodução social para a “produção de pessoas”. Isto
não significa a capacidade de mulheres somente em seu sentido biológico, mas sim é
consubstanciada na forma pela qual a ordem capitalista promove valores, habilidades,
qualificações “certas”, competências para adequar as relações sociais conforme as
necessidades de expansão de acumulação da ordem capitalista.

Em resumo, o trabalho de produção de pessoas supre algumas das pré-condições


– materiais, sociais e culturais – fundamentais para a sociedade humana em geral
e para a produção capitalista em particular. Sem ele, nem a vida nem a força de
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trabalho estariam encarnadas nos seres humanos (Arruzza; Bhattacharya; Fraser,


2019, p. 52).

Portanto, desonerar as mulheres no âmbito da reprodução social estaria em razão


oposta à maior lucratividade do grande capital. A opressão às mulheres no âmbito
da reprodução social possibilita que o sistema capitalista de produção mantenha
sua dominação sobre as distintas frações da classe trabalhadora. Isto se dá através
da retração do acesso às políticas públicas e tomando o trabalhador dependente de
salário como único meio para garantia das necessidades da família. Diante disso, a
desigualdade de gênero se adensa à medida que o neoliberalismo reforça a respon-
sabilização da família por sua própria subsistência e se interconecta com ideologias
que naturalizam a mulher ao âmbito da reprodução social.
Este é o contrassenso ao qual nos deparamos em que o Ministério da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos, calcado no pensamento conservador, tem como
mote principal a “defesa da família”, mas compreendemos ser subterfúgio da ordem
dominante para provocar restrições de direitos, através da responsabilização indivi-
dual da família por sua subsistência, o que resulta no adensamento da desigualdade
de gênero e um maior aprofundamento da exploração da força de trabalho.
Não nos restam dúvidas de que a reprodução social é um aspecto utilizado
pelo neoliberalismo como um meio de manutenção de lucros do sistema capitalista
de produção. Ainda segundo Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019), compreender a
centralidade da reprodução social na sociedade capitalista é ter uma lente que propi-
cia a expansão da visão em torno da luta de classes. Isto quer dizer que a chave para
compreender a realidade está conectada diretamente entre desigualdade de classe e
desigualdade de gênero em torno da reprodução social. Para as autoras, o confronto
contra o grande capital em prol de melhores condições de vida, como o acesso ao
sistema de saúde universal, à educação de qualidade, habitação digna e transporte
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público, são aspectos que giram em torno da reprodução social como um ponto crítico
na luta de classes e na opressão de mulheres.

4. Breves considerações finais


A apresentação desta conjuntura nos provoca a analisar que a sociedade bra-
sileira é subsumida às necessidades de base material da produção e reprodução da
vida, nas condições estabelecidas pela ordem capitalista burguesa. E diante disso, é
possível perceber o terreno fértil ao qual o pensamento conservador pôde ampliar-se
livremente no ideário sociopolítico brasileiro, pois sua capacidade ideológica de
ocultar a exploração da força de trabalho (dentre muitas outras formas de opressão)
através da entronização dos conceitos imprescindíveis do neoliberalismo – individua-
lismo, meritocracia e empreendedorismo – é de extrema relevância e funcionalidade
para a acumulação capitalista.
É neste sentido que a Teoria da Reprodução Social nos ajuda a perceber a rela-

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ção direta entre o âmbito produtivo e reprodutivo, em que compreendemos que o
neoliberalismo enraíza a responsabilização pelo cuidado da casa e criação dos filhos
às mulheres, contribuindo para que a ordem burguesa dominante possa ajustar a
quantidade de força de trabalho explorável no mercado. Esse processo tem um efeito
devastador para o gênero feminino, pois hierarquiza as condições de inserção da
força de trabalho – de forma que classifica uma importância desigual entre o âmbito
do trabalho produtivo e o âmbito do trabalho de reprodução social – e centraliza a
família enquanto uma responsabilização privada de cada indivíduo que a compõe.
Dito de outra forma, as mulheres perpassam condições desiguais no âmbito produtivo
do mercado de trabalho e condições desiguais de trabalho no âmbito da reprodução
social e, ainda assim, são responsabilizadas pelas condições de subsistência e provi-
mento da família, favorecendo a classe dominante que necessita da força de trabalho
para extração de valor.
Durante a vigência do governo do Presidente Bolsonaro, houve um incremento
à subalternização do gênero feminino na sociedade e, com isso, um retrocesso no que
diz respeito à discussão institucional dos direitos das mulheres que angariou uma
parcela significativa de apoio popular, pois com base no pensamento conservador,
discursava em favor da família e da religião como forma de arregimentar maior
base de apoio. Para isso, teve como aparato institucional o Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos, que tem por princípio uma pedagogia que conforma
o pensamento religioso ao neoliberal, angariando apoio popular através do pânico
moral de que as instituições sociais estão sendo erodidas e corrompidas – neste sen-
tido, principalmente a família.
Assim, percebemos que a família foi o principal escopo de intervenção delibe-
rada por parte do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em que
lança mão da religião e moralidade para interiorizar a ideologia da família patriarcal
na conformação das relações sociais das demais frações de classe. Este pânico moral
é relacionado à degeneração familiar e degradação das relações tradicionais de gênero
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 67

e, com isso, o conservadorismo seria a forma pela qual a família seria resguardada
das possíveis ameaças.
Compreendemos que o aprofundamento do neoliberalismo realizado pelo
governo do Presidente Jair Bolsonaro e robustecido em sua forma ideológica pelo
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos corrobora na família como
principal espaço de suporte social e subsistência e com a desresponsabilização e
apoio do Estado no suporte por melhores condições de vida da classe trabalhadora,
os aspectos de reestabelecimento da energia vital diária e renovação geracional que
envolvem a reprodução social são precarizadas, acarretando a sobrecarga e opressão
das mulheres que são as agentes ativas dessa processualidade no âmbito familiar.
Em vista disso, percebemos que essa centralidade na “defesa da família” presente
na disputa ideológica é uma forma concessiva acerca da precarização das políticas
públicas, pois promove a desresponsabilização do Estado nas condições de vida da
família, transferindo a atribuição estatal para o âmbito privado, que sobrecarrega
mulheres para garantia da reprodução social. A ideia de que a família é o suporte para
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as necessidades pode vir a naturalizar excesso de trabalho não remunerado ao gênero


feminino, além de legitimar a secundarização do trabalho no lar e validar possíveis
situações de restrições de direitos.
Concluímos que o governo do Presidente Jair Bolsonaro se utilizou do mote
“defesa da família” como uma estratégia de disseminação da ideologia da ordem
burguesa consubstanciada ao pensamento conservador, resultando no adensamento
da opressão às mulheres; em que pudemos perceber no trabalho executado pelo
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que atuou de forma a dar
uma maior centralidade no cuidado da família como condição natural e inalienável do
gênero feminino. Este Ministério teve por papel essencial o fortalecimento da famí-
lia patriarcal como um modelo, corroborando com a ampliação da naturalização do
trabalho não remunerado de mulheres despendido no âmbito da família. Percebemos
que isso se justifica pela necessidade de haver trabalhadores “livres” para exploração
à custa de mulheres que consomem suas vidas para a reprodução da força de trabalho
na família, fazendo com que o sistema capitalista reforce a imprescindibilidade de
uma ideologia que concentre suas necessidades a serem disseminadas nas distintas
frações de classe.
É de fundamental importância mencionar nestas linhas conclusivas sobre o
entrelaçamento dos âmbitos econômico e moral, garantindo o controle da dispersão
da ideologia pela classe dominante. Compreendemos que o pensamento conservador
se expressa enquanto ideologia de algumas frações de classe dominante na defesa da
manutenção da ordem capitalista, que somente é possível através da expropriação
do trabalho excedente de trabalhadores. Cabe retomar a centralidade da reprodução
social, em que sem o trabalho – não remunerado – de produção e reprodução da força
de trabalho despendido pelo gênero feminino, o capitalismo entraria em ruína, pois
não haveria a única mercadoria capaz de gerar valor: a força de trabalho. Portanto,
a ideologia do pensamento conservador é instrumentalizada pela ordem capitalista
dominante com a finalidade de garantir acumulação de capital, que só é possível pela
opressão/exploração do gênero feminino na “produção de pessoas”.
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Boston: Brill, 2013.
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EMANCIPAÇÃO POLÍTICA,
EMANCIPAÇÃO HUMANA:contribuições
a partir da Crítica da Economia Política
Morena Gomes Marques

DOI 10.24824/978652515909.6.71-86

1. Introdução
O objetivo deste texto é dialogar sobre o conceito de emancipação política e
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emancipação humana a partir de uma contribuição marxiana. É a partir da distinção


em Marx entre Estado político e sociedade civil que se torna compreensível tanto
o limite da emancipação política, como o conteúdo próprio da cidadania que lhe
é correspondente: centrada na propriedade privada e na figura do homem burguês
como o “homem verdadeiro e propriamente dito” (Marx, 2009, p. 66). Para tanto,
parte-se da hipótese que, diferente do que supôs Marshall (1963), a cidadania moderna
– assentada nos direitos civis, políticos e sociais – não é o seu estágio último e irre-
versível e nem mesmo o modo acabado da emancipação política. Ao contrário, é
uma experiência geográfica e historicamente datada. Atualmente o caráter predatório
assumido pela acumulação ampliada do capital impõe a flexibilidade ou até mesmo a
transitoriedade dos direitos políticos e sociais, aproximando, cada vez mais, a cida-
dania da sua conformação residual e originária como antes descrita por Marx (2009).
Este artigo está estruturado em três momentos: uma síntese das ideias centrais
de Marx sobre a emancipação política e a emancipação humana; e em segundo, a
análise acerca da relação entre Estado e cidadania no período contemporâneo, cujas
transformações societárias constituem mudanças drásticas na forma antes cunhada por
Marshall (1963). Para tanto, recorremos a compreensão de Estado e políticas sociais
a partir de autores como Mandel (1985) e Netto (2011); a análise das expropriações
contemporâneas em Fontes (2010, 2018) e Harvey (2004); e a discordância teórica
respeitosa com as polêmicas levantadas por Lessa (2007) acerca da funcionalidade
dos direitos sociais e da emancipação política.

2. Emancipação política e emancipação humana na Questão


Judaica de Marx
Pensar sobre o Estado e as políticas sociais no período contemporâneo supõe
uma dupla tarefa: de um lado, compreender a natureza burguesa da emancipação
política a qual, apesar de seus inegáveis avanços civilizatórios, possui por limite
72

histórico a sociabilidade capitalista. E, de outro, proceder a crítica ao fetiche que


envolve o sentido próprio desta forma de emancipação que, se muitas vezes idea-
lizado no conceito de cidadania, tem ganhado uma reinterpretação acrítica e nada
materialista, resultando numa equivocada equalização à emancipação humana.
A “Questão Judaica” é um texto da fase juvenil de Marx, a qual, segundo Netto
(2009) e Mandel (1980), ainda o constituía na passagem de um democrata radical à
socialista revolucionário e cuja análise teórica não teria alcançado a sua maturidade,
apenas vista com a sua Crítica da Economia Política1. Porém, Marx já apresenta
nesta obra uma diretriz central ao seu trabalho: a crítica da emancipação política a
partir da crítica à propriedade (e assim, da alienação e da forma dinheiro) e como
esta condicionou uma interpretação do Estado, da cidadania, dos direitos humanos
(ou direitos universais) e da sociedade civil:

Porque a emancipação política não é o modo consumado, o modo desprovido de


contradição da emancipação humana. O limite da emancipação política aparece
logo no fato de que o Estado pode libertar-se de uma barreira sem que o homem

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esteja realmente livre dela, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre, sem
que o homem seja um homem livre (Marx, 2009, p. 48).

O que se tem aqui, sob a forma acabada do Estado político, é a separação


entre a vida política (concebida como “universal ou genérica”) e a sociedade civil
(“mundana e egoísta”). O Estado político, ao suprimir à sua maneira as diferenças
de nascimento, cultura e ocupação dos homens, os tornou juridicamente iguais sob
a figura do cidadão: “homem verdadeiro” e partícipe abstrato do Estado político.
Entretanto, ao realizar tal feito, reproduziu como um dado natural o seu contradi-
tório – a propriedade, a cultura e a ocupação – e fez valer o caráter privado de tais
elementos. Muito distante da intenção de suprimir a diferença, o que se efetiva é a
universalidade de uma forma de igualdade que pressupõe, necessariamente, a desi-
gualdade material entre os homens. Se no Estado o homem “é o membro imaginário
de uma soberania imaginada”, “repleto de uma universalidade irreal”, na “sociedade
civil, é um ser profano”, personificado na figura do indivíduo egoísta da sociedade
civil (Marx, 2009, p. 51).
Para compreender tal duplicidade, retomamos a pergunta antes feita por Marx
(2009, p. 63): “Quem é o homem diferente do cidadão? Ninguém senão o membro da
sociedade civil”. Apenas na condição de um mônada social, remetido ao seu exclusivo
interesse particular, o indivíduo pode reivindicar os seus “direitos naturais”, inscritos
em lei e garantidos pelo Estado, os quais são: a liberdade, a igualdade, a segurança
e a propriedade.
Como é possível averiguar no artigo 4º da “Declaração dos Direitos Humanos
e do Cidadão” de 1789, o direito à liberdade diz respeito a “poder fazer tudo que não
prejudique a outrem”. Ou seja, numa sociedade cuja realização é um fato puramente

1 Mandel define a trajetória do pensamento do jovem Marx à sua maturidade a partir dos seguintes estágios:
“da crítica da religião à crítica da filosofia; da crítica da filosofia à crítica do Estado; da crítica do Estado à
crítica da sociedade, isto é, da crítica da política à crítica da Economia Política, que termina na crítica da
propriedade privada” (Mandel, 1980, p.13).
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 73

individual, o outro equivale a uma barreira à própria liberdade individual, o que


fatalmente conduz a uma relação de estranhamento entre homens; já a igualdade diz
respeito ao conteúdo da lei a qual, “deve ser a mesma para todos, quer se destine a
proteger quer a punir” (Artigo 6º). A aplicação desta liberdade consiste em nada mais
do que no “direito natural” à propriedade privada, dado que é um “direito inviolável
e sagrado, ninguém dela pode ser privado” (Artigo 17º).
Contudo, talvez possamos afirmar ser o direito à segurança o que melhor traduz
tanto a natureza da emancipação política, como a síntese desta duplicidade celeste/
mundana do indivíduo moderno. A segurança – “compreendida como a proteção
concedida pela sociedade a cada um dos seus membros para a conservação da sua
pessoa, dos seus direitos e da sua propriedade” (Marx, 2009, p. 63) – é, segundo
Marx, “o supremo conceito social da sociedade civil, o conceito da polícia” (Marx,
2009, p. 65). Fato que expressa a essência do vínculo que forma e mantém a relação
Estado – sociedade civil: o interesse privado e a conservação da propriedade. É sobre
esta essência particularista que se torna evidente tanto o sentido da emancipação
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política, como o seu limite claramente liberal.

É já enigmático que um povo que precisamente começa a libertar-se, a derrubar


todas as barreiras entre os diversos membros do povo, a fundar uma comunidade
política, é enigmático que um tal povo proclame solenemente a legitimação do
homem egoísta, isolado do seu semelhante e da comunidade [...], que portanto,
declara o citoyen servidor do homme egoísta; que degrada a esfera em que ele se
comporta como ser genérico à esfera em que ele se comporta como ser parcelar;
que finalmente, não é o homem como citoyen, mas o homem como bougeois que
é tomado por homem verdadeiro e propriamente dito (Marx, 2009, p. 66).

A emancipação política é um produto direto da revolução burguesa que, ao


suprimir a velha sociedade, suprimiu também o caráter político desta sociedade civil,
fragmentando-a em suas partes componentes simples: indivíduos independentes e
o Estado. Ao contrário de antes, agora os assuntos públicos – a própria atividade da
vida social determinada – tornou-se “assunto universal de cada indivíduo” e a vida
política, elevada aos assuntos gerais do povo, tornou-se a própria vida genérica. Mas,
como já identificamos neste artigo, tratando-se de um universal abstrato, aparente,
esse Estado é apartado apenas idealmente do cotidiano destes sujeitos.
Assim, nos questionamos: se a emancipação política é a redução deste homem,
limitado de sua autonomia original, o indivíduo egoísta da sociedade civil, do que se
trata então a emancipação humana? Qual a forma de revolução lhe é respectiva? A
emancipação humana deve ser compreendida a partir da crítica a este padrão burguês
e do limite próprio de revolução que lhe é respectiva. Segundo Marx (2009),

Só quando o homem individual retoma em si o cidadão abstrato e, como homem


individual – na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações
individuais – se tornou ser genérico; só quando o homem reconheceu e organizou
74

as suas forças próprias como forças sociais e, portanto, não separa mais de si a
força social na figura da força política – é só então que está consumada a eman-
cipação humana (Marx, 2009, p. 72).

Mas, tal feito não se realiza por simples desejo. Para Marx (2009, p. 54), somente
é possível o alcance desta vida genérica real, desprovida de contradição, explicitando
a contradição violenta com as suas condições de vida e declarando permanente a
revolução. Assim, deve-se prosseguir até o confisco, até o imposto progressivo, da
supressão da propriedade privada até o máximo, ao que compreendemos como a
supressão da atual forma de Estado/sociedade civil fundada no trabalho alienado.

2.1 Estado, Cidadania e contemporaneidade


Concordamos com Sérgio Lessa (2007) que o período contemporâneo leva às
últimas consequências a natureza do Estado político, qual seja a finalidade de asse-

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gurar a propriedade privada. Mas o curioso está na larga flexibilidade que assume
este “Estado Democrático de Direito”, cuja existência é plenamente compatível com
a redução de direitos democráticos e a criação de territórios de exceção acima de
regulações e controle jurídico, o que infringe pressupostos fundamentais dos ditos
“Direitos Humanos naturais”. Para o autor, em tempos de crise estrutural do capital, o
aparente paradoxo está em que “democraticamente abole-se planeta afora os direitos
democráticos sem que isso represente uma reversão ou revogação da emancipação
política; pelo contrário, é a realização histórica possível da própria emancipação polí-
tica, da cidadania e do Estado político” (Lessa, 2007, p. 46). Ainda que considerando
válido este paradoxo, precisamos refletir sobre alguns argumentos que o justificam.
Em sua formulação, Lessa apresenta duas abordagens fundamentais para pensar
a emancipação política: como a regência da propriedade privada sobre a reprodução
social; e, em segundo, as armadilhas impostas aos trabalhadores em torno da luta
por direitos, cidadania e um possível “Estado ampliado”. Ambos os pressupostos de
sua análise estão corretos. Contudo, este autor se equivoca ao minimizar a proces-
sualidade histórica e o papel civilizatório que adquire a emancipação política, a qual,
mantendo a sua essência burguesa, apresenta conotações distintas em conjunturas e
formações sócio-históricas determinadas. Da mesma forma, Lessa também se limita
a reduzir ao exclusivo benefício da acumulação capitalista a extensão dos direitos
sociais, em detrimento das demandas, reivindicação e secular organização operária.
Retomaremos ao final deste artigo o diálogo com as polêmicas levantadas por este
autor, mas, antes disso, se faz necessário o desenvolvimento sobre duas questões: as
transformações vivenciadas no conceito de cidadania a partir do século XX com a
emergência dos direitos sociais; e as mudanças na estrutura e atribuições do Estado
na fase tardia do capitalismo.
O século XX vislumbra mudanças significativas ao conceito de cidadania, em
especial na fusão entre “direitos humanos naturais”, os políticos e os sociais sob o
conceito único de emancipação política. Neste aspecto, Marshall (1963) vai estruturar
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 75

o conceito de cidadania em três partes: civil, política e social. O elemento civil é


expresso no direito à liberdade, cujo conteúdo em si contempla os direitos à igualdade,
à propriedade e à segurança antes mencionados por Marx, detendo nas instituições
jurídicas o principal instrumento para sua manutenção e garantia. Trata-se, portanto,
do direito à liberdade de ir e vir, de imprensa, pensamento e fé, direitos à proprie-
dade, justiça e de concluir contratos válidos. O elemento político – assegurado na
existência do parlamento e nas esferas de participação da democracia formal – retrata
o direito individual de “participar no exercício do poder político, como um membro
de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros
de tal organismo” (Marshall, 1963, p. 63). Já os direitos sociais – representativos da
significativa alteração nas atribuições antes designadas como de exclusiva respon-
sabilidade individual – são considerados em fórum público e compreendidos como
o direito a tudo que vai desde um “mínimo de bem-estar econômico e segurança ao
direito de participar por completo na herança social e levar a vida de um ser civilizado
de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (Marshall, 1963, p. 63).
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O marco para pensar os direitos sociais estaria no desenvolvimento da educação


primária pública ainda no século XIX. Porém, é apenas em meados do século XX,
a partir da experiência dos países centrais, que poderíamos efetivamente falar num
status de igualdade entre os direitos sociais e os demais elementos constitutivos da
cidadania – os direitos civis e os políticos. Todavia, esta cidadania, agora distinta de
sua face residual originária, não está isenta de contradições, dado que a sua natureza
fundada na dicotomia cidadania/classes sociais coincide historicamente o desenvol-
vimento dos direitos sociais com a expansão capitalista. Como corretamente sinaliza
Marshall, trata-se de um “conflito entre interesses opostos”. Afinal, pergunta este
autor: “como é possível que estes dois princípios opostos possam crescer e florescer,
lado a lado, no mesmo solo? O que fez com que eles se reconciliem e se tornem, ao
menos por algum tempo, aliados ao invés de antagonistas?” (Marshall, 1963, p. 68).
Ainda que não possamos falar em uma reconciliação propriamente dita, a chave
para relação entre proteção social e expansão capitalista está na pluralidade de funções
que o Estado adquire a partir do período monopolista, na condição de um “capita-
lista total ideal” (Mandel, 1985), responsável por organizar e agir intensamente na
vida econômica e social a partir das funções de proteção, consolidação e expansão
do modo de produção capitalista. Diante das dificuldades crescentes de valorização
encontradas na fase tardia do capitalismo (supercapitalização, superacumulação) e
da intensa suscetibilidade a crises econômicas e políticas, se impõe ao Estado mais
do que o planejamento econômico, mas, sobretudo, uma imprescindível socialização
estatal dos riscos. Segundo Altvater (apud Mandel, 1985, p. 336), sendo o capital
incapaz de reproduzir a sua própria existência, “necessita de uma instituição inde-
pendente, baseada nele próprio, mas que não esteja sujeita às suas limitações, cujas
ações não sejam determinadas por produzir a sua própria mais-valia”. Esta instituição
independente, “ao lado, mas fora da sociedade burguesa” e subserviente aos interesses
do capital é o Estado.
76

A socialização estatal dos riscos, como parte das funções superestruturais


imprescindíveis ao domínio do Estado, foi sistematizada por Mandel (1980) em
três aspectos: o de proporcionar as condições gerais de produção, as quais não são
de interesse do capitalista; a repressão aos setores insurgentes através do exército,
da justiça e do judiciário; e a integração das classes dominadas, cujo “consenso” e
aceitabilidade da exploração se dá, em especial, a partir de meios ideológicos. Dife-
rente das demais, a primeira função diz respeito diretamente à esfera da produção
e trata de assegurar os pré-requisitos gerais e fundamentais ao processo produtivo:
técnicos (matéria-prima e matriz energética em valor subsidiado, transporte, correios,
comunicação, sistema portuário, etc.); e sociais (legislação apropriada com vistas
a manutenção da ordem, sistema monetário, alfândega e mercado nacional), além
do fomento à ciência e a pesquisa necessários à produção de mercadorias (o desen-
volvimento das ciências naturais aplicadas à educação pública e a formação técnica
especializada da força-de-trabalho).
Mas, devemos dedicar especial atenção à capacidade mistificadora deste Estado:

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[...] pela combinação simultânea da função diretamente econômica do Estado
burguês, do esforço para despolitizar e do mito de uma economia onipotente,
tecnologicamente determinada, que pode supostamente superar os antagonismos de
classe, assegurar um crescimento ininterrupto, um aumento constante do consumo
e, assim, produzir uma sociedade pluralista (Mandel, 1985, p. 341).

A concepção mítica do Estado, enquanto “árbitro entre as classes, representante


do interesse nacional, juiz neutro e benevolente dos méritos de todas as forças plura-
listas” (Idem, p. 347), é operacionalizada pela burguesia de duas formas. Primeiro,
através da incorporação sistemática de poderosos partidos sociais-democratas e até
mesmo socialistas na democracia burguesa, via mandatos parlamentares próprios2.
Segundo, por meio da ampliação da legislação social, cuja razão de ser é oriunda de
diferentes inflexões, entre as quais destacamos: a concessão burguesa (sobretudo em
períodos de crescimento econômico) frente a crescente organização operária, de modo
a prevenir qualquer tipo de ação revolucionária; e a socialização para o conjunto das
classes e suas frações dos custos com a reprodução da força de trabalho.

2 No que tange a participação parlamentar operária deve ser considerada a proeminência, num mesmo período
histórico, entre a ascensão monopolista/imperialista e a organização de poderosos partidos de massas, o que
conduziu a uma forte incidência operária na vida política e em conquistas sociais, vide o desenvolvimento
do sufrágio universal e o modelo clássico de democracia. Em termos subjetivos, a ilusão da igualdade
formal enquanto cidadão ou eleitor dissimulou a natureza material própria à desigualdade entre as classes
sociais e favoreceu, em maior amplitude, a legitimidade do padrão burguês de dominação. Fato verificável
na experiência socialdemocrata, em especial a alemã. A integração operária às esferas parlamentares e
institucionais, via conselhos ou comitês mistos, não resultou numa processual transformação socialista
do Estado e, muito menos, a uma redistribuição de riquezas que conduzisse a uma “economia mista”. Na
verdade, o que se vislumbrou foi uma alteração da forma de gestão do poder político, em muito distinta do
capitalismo concorrencial: agora, a incumbência em manter e assegurar a dominação política do capital
foi paulatinamente transferida do parlamento para os escalões superiores da administração pública. Daí a
tendência de centralizar a gestão do poder no aparato administrativo da máquina estatal.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 77

Se no período concorrencial a república parlamentar burguesa constituía a


autoimagem desta classe – ao refletir tanto os seus objetivos comuns, como a parti-
cipação ativa dos diferentes grupos de capitalistas, numa unidade dialética “entre a
concorrência de muitos capitais e o interesse e a natureza social do capital em sua
totalidade” (Mandel, 1985, p.337) – o que vislumbramos no período monopolista é
uma significativa mudança subjetiva/objetiva na relação entre burguesia e Estado,
com vistas a manter o seu fim último: a promoção e a consolidação das condições
gerais de valorização do capital. Nesta fase, a máxima de Kautsky (apud Mandel,
1985, p. 336) adquire a sua plena realização: “a classe capitalista reina, mas não
governa. Contenta-se em dar ordens ao governo”.
A fim de compreender tal fenômeno, retomamos um importante questionamento
antes feito por Mandel (1985, p. 343): “onde e como os interesses das classes capi-
talistas se formulam e se transformam em objetivos no capitalismo tardio?” Paralelo
à concentração e centralização de capitais o que se vislumbra é um respectivo des-
locamento da esfera de negociação e decisão dos interesses burgueses, agora não
mais na arena legislativa e parlamentar, mas centralizadas no poder executivo via
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os escalões superiores do Estado3. Fato que pode ser facilmente ilustrado na atua-
ção da burguesia norte-americana, cuja maioria das decisões estratégicas globais e
formulação de interesses

[...] se desenrola fora da esfera de todas as instituições estatais oficiais (embora


haja líderes políticos envolvidos), e é mediado por fundações, “grupos de pla-
nejamento político”, “grupos de especialistas” etc.; até por “grupos de trabalho”
específicos que “propõem” ou “sugerem” essas decisões a setores particulares
do aparelho do Estado ou do governo (Mandel, 1985, p. 344 – grifos nossos).

O resultado deste processo é duplo: uma administração pública domesticada


às regras da divisão do trabalho4 e, no que tange a participação parlamentar dos

3 É interessante observar as reflexões de Ianni (2004) sobre este aspecto a partir da experiência brasileira.
Para este autor, o alargamento das funções econômicas do Estado e o seu comprometimento com o capital
implicam a expansão do executivo em detrimento do legislativo, numa forma de “bonapartismo” inerente à
contemporânea estrutura do Estado burguês. Deste modo, “o legislativo se forma e reforma como o lugar
das controvérsias, oposições, propostas alternativas. Mas esse legislativo não dispõe da faculdade de votar
ou influenciar decisivamente o orçamento federal. As suas comissões parlamentares de inquérito podem
chegar a qualquer resultado, mas estes não se tornam decisões que afetam o executivo. Não têm força
para tal. Além do mais, o legislativo é continuamente cooptado pelo executivo, por meio do empreguismo,
das concessões de recursos para atendimento de bases eleitorais, promessas de escolha para ministérios,
superintendências” (Ianni, 2004, p. 260). Por consequência, vislumbra-se tanto uma independência entre
os três poderes – legislativo, executivo e judiciário – dissolvidos na expansão e predomínio do executivo;
como, uma dissociação entre Estado e sociedade, onde os interesses de amplos setores populacionais
encontram-se à margem e apartados do poder.
4 Essa “reprivatização não oficial” dos interesses burgueses a partir da dominação financeira e econômica
direta da máquina estatal se constitui através de meios determinados, dentre os quais destacamos os cha-
mados “grupos de pressão” e o papel da burocracia. Os primeiros são identificados como representantes
dos interesses de determinados grupos específicos da indústria e do comércio, do capital financeiro e de
firmas exportadoras contra os produtores nacionais, responsáveis por emendas e novas medidas governa-
mentais, quando muitas vezes pela palavra final das decisões do Estado. No que diz respeito a burocracia, a
78

trabalhadores, uma atuação asséptica que, mesmo portadora de uma intencionalidade


progressista e numericamente representativa, tem por resultado último o reforço à
legitimidade do Estado burguês. As ilusões e otimismo que envolveram o caráter
distributivista do “Estado Social”, “baseadas numa extrapolação arbitrária desta
tendência, na falsa crença em uma redistribuição crescente da renda nacional, que
tiraria do capital para dar ao trabalho” (Mandel, 1985, p. 339), esmorecem diante de
uma análise mais atenta da natureza privada do Estado. Em linhas gerais, para viabi-
lizar a socialização dos custos com a valorização do capital, a burguesia “blindou” a
esfera político-administrativa do Estado, refuncionalizando a estrutura democrática
e preservando a sua aparência participativa.
Sem sombra de dúvidas, podemos afirmar que a cidadania e a dimensão jurídi-
co-política e material que lhe é referente – do sufrágio universal às garantias sociais,
políticas e serviços – são parte intrínseca da socialização dos riscos por parte do
Estado, impulsionadas em seu período imperialista. E é sobre esta natureza fun-
damentalmente econômica que podemos responder ao questionamento anterior de

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Marshall, acerca da “reconciliação”, ao menos por um tempo, entre direitos sociais
e a expansão capitalista, no período que se estende do pós-segunda guerra à primeira
metade dos anos 1970. O significado das políticas e serviços sociais está na desone-
ração do capital da responsabilidade exclusiva em arcar com o ônus da exploração
e com o conjunto de bens necessário à reprodução do trabalhador e de sua família
(a exemplo da seguridade social), transferindo ao Estado um papel preponderante
na mediação da relação entre classes sociais e na reprodução da força-de-trabalho.
Portanto, o objetivo último dos direitos sociais – materializados sob a forma
das políticas sociais – é a reprodução da força de trabalho ocupada e excedente. E
isso se dá a partir de alguns meios: mediante a regulamentação jurídica das rela-
ções entre capital/trabalho; através dos sistemas de seguro social, sobretudo, no que
tange às políticas de previdência e assistência social; e via a promoção de políticas
setoriais – a exemplo das obras públicas e de saneamento básico. Ao passo que a
seguridade social se constitui num poderoso instrumento para contrarrestar a ten-
dência ao subconsumo, o alcance das ações setoriais permite a reinversão de capitais
em dificuldades de valorização. Conforme nos recorda Netto (2011), só é possível
pensar em política social pública na sociedade burguesa, em suas características de
intervenção contínua, sistemática e estratégica sobre as sequelas da “questão social”,
com a emergência do capitalismo monopolista.
Apesar desta assertiva, não podemos reproduzir o equívoco de considerar os
direitos sociais um fato menor à reprodução da força-de-trabalho; ou mesmo negli-
genciar o papel educativo que a sua reivindicação e conquista representou para a

justaposição entre a articulação privada dos interesses burgueses e a forte concentração das deliberações no
âmbito técnico-administrativo do Estado levou a uma “síntese da aliança pessoal entre grandes empresários
e altos (os mais altos) funcionários do governo” (Mandel, 1985, p. 345). Ainda que não seja via de regra a
identidade dos funcionários estatais com a natureza do próprio Estado, é indiscutível o vínculo de classe
daqueles presentes nos altos cargos e nas ocupações estratégicas do executivo. Ou, como bem traduziu
Mandel (1985, p. 343) sobre a dinâmica dos escalões superiores do aparato do Estado: “os ministros entram
e saem, a polícia e os secretários permanentes ficam”.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 79

organização das massas trabalhadoras em sua constituição como “classe em si”. Eles
são produto do enfrentamento da classe trabalhadora ao capital, em sua luta histórica
por melhores condições de vida e trabalho e devidamente reconhecidos em legislação
social e trabalhista. O que Iamamoto considera por ser a sua “outra face” explicita-se
na sua execução. É através desta que “debilitam o componente autônomo e, portanto,
o caráter de classe das lutas operárias, esvaziando-as, como também reorientam a seu
favor o conteúdo e os ganhos da mesma” (Iamamoto, 1982, p. 100). Ao defrontar-se
com a organização operária e a radicalidade das suas pautas, a burguesia assume como
suas tais reivindicações, despolitizando-as a partir de uma atenção fragmentada e
individualizada. Assim, a luta de classes cede lugar à intervenção setorial através de
políticas específicas – assistência, saúde, previdência, educação, etc.
Deslocam-se as contradições da esfera pública da luta de classes para as vias
institucionais. E neste ínterim se apresenta a interessante contradição entre público/
privado no trato às refrações da “questão social”. Ao reconhecer como de responsa-
bilidade pública as sequelas da ordem burguesa, a organização monopólica rompe
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com a tradição liberal clássica e redimensiona o significado e o alcance das ações do


Estado. Mas, apenas o realiza recuperando e reatualizando sob novas bases o ethos
individualista típico a este mesmo ideário liberal. Assim, «a incorporação do caráter
público da ‹questão social› vem acompanhada de um reforço da natureza privada das
suas manifestações individuais.» (Netto, 2011, p. 36)
E sobre isso não há qualquer incompatibilidade. O capitalismo tardio não alterou
a natureza dicotômica entre Estado/sociedade civil que é própria da sociabilidade
capitalista. O sujeito beneficiário das políticas sociais continua sendo reconhecido
como um “mônada social”, o indivíduo egoísta e profano da sociedade civil. Desta
maneira, o caráter genérico desse Estado é condizente com o trato público às expres-
sões da “questão social”, tanto como o foi antes ao reconhecer de modo público e
universal os chamados “direitos naturais” – a liberdade, a igualdade, a segurança e a
propriedade. Não é por menos que na face moderna da cidadania o Estado transforma
rebeliões em reformas, a luta por socialização do poder em organismos de participa-
ção/integração, num ataque sistemático à consciência de classe.
Este é o caldo cultural da emancipação política em sua etapa madura. Porém,
cabe aqui uma breve observação. A emancipação política antes caracterizada por
Marx, própria ao período concorrencial, refletia uma forma temporal da cidadania:
consagrada ao espaço da sociedade civil e aos “direitos naturais”, fundados no direito
à propriedade. Como o sufrágio universal não era um fato ainda para a Europa, seja
pela formação arcaica de parte dos Estados – a exemplo da Alemanha e da Itália
– ou mesmo pela restrição nos Estados modernos ao exclusivo voto masculino, a
cidadania a que se refere Marx vincula-se diretamente à expressão dos direitos civis
e, apenas em parte, aos direitos políticos. Já a emancipação política a qual fazemos
referência nos dias de hoje trata da tríade entre direitos civis, políticos e sociais,
típica da cidadania moderna.
Todavia, ao contrário do que supunha Marshall (1963), não há entre esses
direitos uma relação de igualdade e nem mesmo de princípio inalienável. Mantém-se
tanto a lógica privada como a preponderância dos direitos civis, ainda concebidos
80

num plano ídeo-cultural como “naturais”. É a centralidade da propriedade privada


e do trabalho alienado na vida social que se impõem aos demais direitos, tornando
flexíveis ou até mesmo transitórios tanto os direitos políticos (vide as experiências
bonapartistas e autocráticas em diferentes conjunturas sob a fase monopólica) e,
principalmente, os direitos sociais.
Trata-se da relação paradigmática entre direitos sociais e valorização do capital.
Chamamos atenção para o limite da política de redistribuição do Estado e, em conse-
quência, do próprio conteúdo dos direitos sociais, cuja viabilidade material está em
dependência direta das condições objetivas do modo de produção capitalista. Neste
aspecto, o “calcanhar de Aquiles” deste modo de produção – as crises e a razão des-
tas, a queda da taxa média de lucros – demonstra o limite histórico da “humanidade
capitalista” e do seu “Estado Social”.
É a partir da crise deflagrada nos anos 1973/1975 que se encontra o exato
divórcio entre expansão capitalista e direitos sociais. A mudança na base material
da acumulação do capital – a transição do padrão rígido fordista-keynesiano ao

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padrão flexível toyotista – correspondeu a uma profunda ofensiva burguesa no pacto
social constituído nos últimos «trinta anos gloriosos». Trata-se do que Mandel (1985)
nomeou por uma «onda longa recessiva», cuja ação sobre o trabalho passou a atuar
em caráter predatório: desde a derrocada dos modelos de proteção social e uma
intensa restrição do fundo público aos interesses dos trabalhadores; até mesmo a
inépcia a que foi submetida a organização da classe trabalhadora, seu projeto socie-
tário alternativo e a sua respectiva identidade classista. Como bem sinaliza Behring
(2008, p. 46), a tentativa socialdemocrata de compatibilizar acumulação e equidade,
cidadania e desigualdade de classes é histórica e geopoliticamente situada. Nesta nova
quadra histórica, o conteúdo das políticas sociais é condizente à insegurança que se
instaura. Em muito distinto da concepção de reforma e de princípios como equidade
e universalidade, o que se oferta é um caminho dual e particularista no acesso às
políticas públicas: seja sob a forma de serviços privados aqueles que possam com-
prá-los; ou de políticas focais, seletivas e restritivas, ofertadas pelo Estado aos mais
acentuadamente pauperizados, cujo intuito exclusivo é a segurança e a compensação
ao subconsumo. Ao mesmo tempo em que se vislumbra uma intensa criminalização
da pobreza aliada ao encarceramento dos seus segmentos sobrantes5.
Diante da atual fase madura e destrutiva do capital, a dúvida que nos assola é se
ainda podemos relacionar políticas sociais (nesta forma dual – mercantil x seletiva/
focalizada) e os direitos sociais. A verdade é que a qualidade restritiva e compensató-
ria de tais políticas as torna incongruentes com a dimensão civilizatória dos direitos
sociais, ainda que considerados todos os limites destes à cidadania burguesa. Isto
posto, pretendemos sinalizar para uma mudança regressiva operada no conteúdo da
emancipação política, que a aproxima nos dias de hoje da caracterização antes reali-
zada por Marx na Questão Judaica. A razão desta regressão pode ser identificada no

5 Cf. WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. A Nova Gestão da Pobreza nos Estados Unidos. Rio de Janeiro.
REVAN/Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 81

processo de expropriações contemporâneas assumido pela reprodução expandida do


capital, voraz sobre a força-de-trabalho e as conquistas sociais.
Façamos um rápido parênteses para elucidar este tema emergente:
as expropriações.
O eixo estruturante do processo de produção e reprodução do capital está assente
nas condições que viabilizam a extração de mais-valor. Isto é, a disposição de uma
massa de força-de-trabalho crescentemente expropriada dos meios de trabalho e de
subsistência, dispondo única e exclusivamente da própria força de trabalho. Esta
condição primária e fundamental – a crescente proletarização da humanidade – é o
que torna possível a transformação do conjunto da vida social em simples instru-
mento de valorização. Sobre isto, Virgínia Fontes (2010) reconhece dois momen-
tos indissociáveis:

A expropriação primária, original, de grandes massas campesinas ou agrárias,


convertidas de boa vontade (atraídas pelas cidades) ou não (expulsas, por razões
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diversas, de suas terras, ou incapacitadas de manter sua reprodução plena através


de procedimentos tradicionais, em geral agrários) permanece e se aprofunda, ao
lado de expropriações secundárias, impulsionadas pelo capital-imperialismo
contemporâneo (Fontes, 2010, p. 42).

Diferenciando-se de autores como David Harvey (2004), para Fontes (2010,


2018) as expropriações não são um capítulo da “pré-história do capitalismo”, na
sequência da qual predominaria um “capitalismo normalizado”6. Ao contrário, inte-
gram a expansão deste modo de produção e acompanham a extensão das próprias
relações sociais capitalistas. Menos do que um retorno “a formas arcaicas, as novas
expropriações [...] demonstram que, para a existência do capital e a sua reprodução,
é necessário lançar permanentemente a população em condições críticas, de exaspe-
rada disponibilidade ao mercado” (Fontes, 2010, p. 47). Hoje esta disponibilidade
forçada de trabalhadores adquire proporções inéditas e um ritmo intenso de cresci-
mento. O que se vislumbra é uma crescente superpopulação relativa condenada à
ociosidade forçada7; e a criação de novas oportunidades de extração de mais-valor.

6 Para Harvey (2004), a “acumulação por espoliação” supõe a atual expansão do capital via caracteres típicos
da acumulação primitiva, cujas características arcaicas e bárbaras acreditavam-se superadas. Porém, Fontes
(2010) reconhece ser este raciocínio um tanto quanto “problemático”, advindo de uma leitura equivocada do
conceito como cunhado pelo próprio Marx. Segundo a autora, Harvey presume “que Marx trata a expropriação
como um momento original (primitivo), que desaguaria em seguida na acumulação ampliada, normalizada,
embora sujeita a crises. Por essa razão nomeia a situação atual de acumulação por espoliação, pois seria
qualitativamente diferente da forma tradicional. [...] No entanto, em inúmeras passagens d’O Capital, [...]
[Marx] reafirma que a expansão das relações sociais capitalistas pressupõe sempre sucessivas expropria-
ções, para além daqueles trabalhadores já “liberados” (inclusive mencionando a expropriação de capitalistas
menores). Além disso, a expansão histórica do capitalismo jamais correspondeu a uma forma plenamente
“normalizada”, pois nunca dispensou a especulação, a fraude, o roubo aberto e, sobretudo, as expropriações
primárias, todos, ao contrário, impulsionados.” (Harvey, 2004, p.63-64)
7 Hoje, de modo mais agudo que no passado, dada a elevação da composição orgânica do capital, defrontamo-nos
com a reprodução ampliada de trabalhadores sobrantes. Se a disponibilidade de força-de-trabalho é um advento
multissecular, “o processo jamais se interrompeu e volta a ter visibilidade em escala internacional na passagem
82

Este último aspecto é considerado por Fontes (2010) como o ponto mais “dramático”
das atuais expropriações, pressuposto para o violento (e ora silencioso) desmante-
lamento dos direitos:

De maneira surpreendente, uma verdadeira expropriação de direitos se realizou,


mantidas as instituições democráticas, conservados os processos eleitorais e
com a sustentação de uma intensa atuação midiática e parlamentar. Num duplo
movimento de coerção pela ameaça – de demissões, de deslocamentos de empre-
sas, de eliminação de postos de trabalho em geral – e de coerção concretizada,
pela efetivação parcelar de tais ameaças ou pelo enfrentamento de resistências
sindicais, intensificaram-se as formas de convencimento, em geral lastreadas em
táticas comuns empregadas em diferentes países [...]. Tratou-se de introduzir uma
nova “normalidade”: segmentar cada situação ou direito tornado alvo imediato
(como aposentadoria, serviços públicos como saúde e educação, direitos ligados
ao trabalho, ambiente, mulheres, racismo) e deter-se nela exaustivamente, por
todos os meios midiáticos (Fontes, 2010, p.55, grifos nossos).

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A novidade no fenômeno das expropriações contemporâneas está na mercanti-
lização da totalidade da vida social, o que impele à reprodução ampliada do capital
um caráter irrestrito e isento de qualquer barreira ou constrangimento civilizatório.
Não apenas é preservado o modus operandi da expropriação primária – a clássica
expulsão dos trabalhadores da terra ou território originário e a consequente alienação
aos recursos naturais e humanos – como o ritmo das atuais expropriações adquire uma
feição de intensa violência. Violência que é exercida para o controle de matérias-pri-
mas estratégicas; da biodiversidade e sobre os bens coletivos. Dentre as ameaças aos
bens coletivos estão as privatizações das empresas estatais, dos recursos naturais, e
a erradicação dos direitos sociais e trabalhistas.
Em termos históricos, a expansão deste padrão predatório se generaliza após
1975, enquanto o principal meio estratégico de compensação imperialista consiste
na liberação de um conjunto de ativos – a exemplo da força de trabalho, patrimônios
públicos e recursos naturais – a custos baixos ou até mesmo sem custos, para que o
capital sobreacumulado possa utilizá-los produtivamente8. Bens até então conside-
rados de domínio comum – a exemplo dos regimes de proteção social – tornam-se
um valioso lócus de atividade lucrativa.
A princípio, este caráter predatório foi equivocadamente considerado como um
atributo da acumulação primitiva, cujas características de fraude, roubo e violência

para o século XXI, com fluxos migratórios crescentes em proveniência de países devastados por guerras (levadas
a efeito por países europeus e pelos Estados Unidos, como a Líbia), por razões políticas ou econômicas [...]. A
presença e disponibilidade de tais imigrantes contribuem para disciplinar as massas trabalhadoras já estabelecidas
naqueles países, mas aumentam as tensões políticas, racismo, etc.” (Fontes, 2018, p.26)
8 Segundo Harvey (2004, p.119-124), por sobreacumulação compreendemos uma condição em que exce-
dentes de capital (por vezes acompanhados de excedentes de trabalho) estão ociosos sem ter em vista
escoadouros lucrativos. Como elemento intrínseco a este fenômeno está o surgimento do dinheiro “supérfluo”,
resultante do excesso de entesouramento que não encontra possibilidades de investimento produtivo dentro
das fronteiras dos Estados nacionais e nos lócus produtivos existentes.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 83

seriam específicas ao período colonial e neocolonial. Todavia, parte-se hoje de um


único diagnóstico entre os teóricos do campo crítico: as expropriações assumem um
papel imprescindível para acumulação do capital na contemporaneidade. Se alguns
dos mecanismos de expropriação ressaltados por Marx foram mantidos e intensifica-
dos – vide um proletariado “sem” (sem-terra, sem-teto, sem-emprego, etc.) – outros
são aprimorados e novos constituídos9.
Para isso, dois agentes cumprem um papel central: o primeiro é o capital finan-
ceiro – na condição de vanguarda da acumulação por expropriação, especulando e
potencializando a captura de novos ativos, com destaque à dívida pública (interna e
externa), principal responsável por aprisionar Estados e populações inteiras. E, em
segundo, o Estado.
O Estado reatualiza em novas qualidades a condição de “capitalista total ideal”,
orquestrando ao lado das agências multilaterais desvalorizações em setores públicos
com fins de garantir a reprodução do capital e contrarrestar as suas crises. Ainda que
o Estado possua um papel imprescindível na proteção da economia de um possível
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“colapso geral”, esse mesmo sistema produz intencionalmente crises como forma de
renovar o seu estoque de ativos, via desvalorização dos ativos de capital e da força
de trabalho, intensificando sobre esta última o desemprego e o barateamento do seu
valor-de-troca. Com este propósito cumprem papel fundamental os meios externos
de indução de crises (o imperialismo norte-americano e o sistema financeiro inter-
nacional sob o protagonismo do FMI), combinando a nível local, regional e global
desvalorizações, liberalizações financeiras e programas de austeridade fiscal. Apesar
dos graves riscos que este movimento implica, as crises podem ser “orquestradas,
administradas e controladas para racionalizar o sistema”, resultando na criação perió-
dica de um estoque de ativos desvalorizados fadados ao uso lucrativo de excedentes
de capital sobreacumulados (Harvey, 2004, p. 124-126).
O efeito do que Harvey (2004) compreende como a “expropriação de terras
comuns” – a entrega ao mercado de ativos de propriedade do Estado para que o capital
sobreacumulado possa expandir e realizar-se – é duplo: a privatização e a regressão
dos estatutos regulatórios. E, ambos os casos, dizem respeito à transição do papel
protetor do Estado. A partir do advento neoliberal, o objetivo principal das políticas
estatais reside na transferência dos ativos de propriedade pública à iniciativa privada.
Não é por menos que o fundo público se torna um lócus estratégico. Enquanto “no
capitalismo concorrencial o fundo público comparecia como um elemento a poste-
riori; no capitalismo contemporâneo a formação da taxa de lucro passa pelo fundo
público, o que o torna um estrutural insubstituível” (Oliveira apud Behring, 2008,
p. 53). Sob a tentativa de absoluto controle privado dos recursos estatais, o que se
impõe na ordem do dia é uma retórica ideológica: a farsa da “crise do financiamento

9 Dentre os novos mecanismos, Harvey (2004, p.123) destaca os chamados “direitos de propriedade intelectual”
(o patenteamento e licenciamento de material genético e do plasma de sementes); a biopirataria e a pilhagem
mundial de estoques genéticos; a escalada global de destruição de recursos naturais (terra, ar e água); a
mercantilização de formas culturais e históricas; e de bens até então considerados de direito público.
84

público”, a qual induz a dissociação do fundo público com os custos da reprodução


da força-de-trabalho.
Assim, a expropriação do fundo público estabelece mais do que o desmonte
das políticas sociais, como também a tentativa de um consenso ideológico via o
estigma sobre os direitos sociais – reduzidos à condição de “desperdício” e “estímulo
a dependência” – solapando as bases de solidariedade da cidadania moderna.
Em síntese, o atual estágio do capital impõe gravidades incontornáveis que,
tal como aponta Mészáros (2010) tem por fundamento uma crise estrutural. Crise
que é extensível a todos os complexos sociais e que não nos permite vislumbrar em
curto prazo nada além de uma maior e mais intensa reprodução de desumanidades.
É a partir deste ponto – o esgotamento de qualquer possibilidade civilizatória
desta ordem social – que gostaríamos de retomar o diálogo antes iniciado com Lessa
(2007). Em seu texto A emancipação política e a defesa de direitos o autor expõe uma
assertiva sobre a qual possuímos grande afinidade: a de que a emancipação política
não é necessariamente sinônimo de democracia e, diríamos mais, que nem mesmo
é sinônimo de direitos sociais. Em outras palavras, “o que significa que cidadania e

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miséria, cidadania e exploração do trabalho pelo capital, cidadania e desemprego,
cidadania e ditadura são rigorosamente compatíveis. A plena cidadania é o indivíduo
burguês” (Lessa, 2007, p.48). Crítico ao Estado de Bem-Estar Social e a política
de colaboração de classes que conduziu à domesticação do movimento socialista
internacional, o que o autor propõe é recuperar a contraposição entre emancipação
política e humana, tal como proposta por Marx:

[...] recuperar a perspectiva histórica do esgotamento da emancipação política e,


por isso, da urgência e da necessidade histórica da emancipação humana. Significa
colocar em primeiro plano a questão da transição para além do capital como a
única resposta historicamente viável para a democrática destruição dos direitos
democráticos a que estamos assistindo (Lessa, 2007, p. 55).

Se a emancipação política se constitui por meio do Estado político, a eman-


cipação humana supõe a ruptura violenta com este Estado e a base material que o
constitui: a propriedade privada. E, quanto a isso, é evidente (e um tanto quanto
grave) o equívoco, muitas vezes corrente na sociologia e entre profissionais de Ser-
viço Social, de supor a emancipação humana como a “radicalização da emancipação
política” ou, ainda pior, a “emancipação política da emancipação política” (Lessa,
2007, p. 49). Neste aspecto e de acordo com a crítica de Lessa, tornou-se lugar-co-
mum a mitificação do Estado de Bem-Estar Social e de uma “estratégia socialista e
democrática” de acúmulo de forças através do Estado burguês, cujo resultado último
nunca ultrapassou a fórmula socialdemocrata de amoldamento operário às esferas
institucionais e o reforço à ideologia “integradora” do Estado político. Como bem
afirmou Mandel (1980, p. 346), “imaginar que o aparelho de Estado burguês pode ser
usado para uma transformação socialista da sociedade capitalista é tão ilusório quanto
supor que seria possível dissolver um exército com a ajuda de generais pacifistas”.
Ainda que a burguesia quando confrontada possa realizar concessões por meio
do Estado, isto não altera a verdadeira natureza do Estado capitalista. Isto é, “o que
sempre foi, um grupo de homens armados contratados para manter a dominação
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 85

política de uma classe social” (Mandel, 1980, p. 349). Sendo a emancipação política
compatível a esta eterna forma de ser da sociabilidade burguesa o problema que se
apresenta aos trabalhadores neste momento é duplo: 1. como ultrapassar o horizonte
estratégico da emancipação política? 2. Qual o lugar dos direitos e das políticas
sociais neste processo?
E aqui se apresenta a nossa principal divergência com Sérgio Lessa. Reivindicar
a emancipação humana e uma estratégia socialista não é o suficiente quando não
dialogamos sobre como realizá-la. A emancipação humana não se resolve por mero
desejo ou de forma auto-proclamatória. Assim como Lessa não considera, sequer em
parte, as garantias sociais proporcionadas pelo Estado de Bem-Estar Social como uma
vitória dos trabalhadores, o autor restringe a sua análise a uma dimensão estratégica,
ignorando os meios táticos que conduzem a possibilidade efetiva da emancipação
humana. E apenas o faz porque não há como fugir do papel que desempenha a pauta
dos direitos sociais e das garantias democráticas fundamentais no processo de mobi-
lização que antecede qualquer processo revolucionário. Se formos ao exemplo da
Revolução Russa de 1917, o lema bolchevique “paz, terra, pão, liberdade e trabalho”
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poderia ser facilmente contemplado na perspectiva da emancipação política/cidadania


burguesa. Entretanto, foi o caráter permanente da revolução socialista ao transitar
da luta pelas condições materiais e imediatas de vida à ruptura com o Estado o que
permitiu o novo.
A classe trabalhadora não tem em si, na sua existência fatual, uma dimensão
teleológica. A consciência de classe apenas se constitui a partir da experiência ime-
diata da luta de classes, exercida coletivamente, e cujo elemento a primeiro pôr os
trabalhadores em movimento são as demandas próprias à reprodução imediata da
força-de-trabalho. Se no Manifesto Comunista o tema pujante aos trabalhadores
era o salário e a redução da jornada de trabalho, na Rússia Czarista era a fome. E,
em ambos os casos, tratava-se do acesso ao que consideramos hoje como direitos
sociais fundamentais (de um lado o trabalho e, de outro, a segurança alimentar). A
questão que aqui se apresenta é o de como, mantendo firme o horizonte estratégico,
as lutas por garantias típicas à emancipação política podem preparar futuras ruptu-
ras socialistas. Sobre isso, Marx (2009) escreveu, ainda que brevemente, sobre a
revolução permanente.
É a Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas escrita por Marx e
Engels em 1850 a que melhor nos auxilia a responder este impasse. Ao questionar as
medidas a serem propostas pelos operários alemães frente a posição pequeno-burguesa
no poder do Estado, os autores sintetizam em linhas gerais o caráter permanente da
luta revolucionária: os trabalhadores devem “exacerbar as propostas dos democratas,
que de qualquer modo não agirão de modo revolucionário, mas meramente reformista,
e transformá-las em ataque direto à propriedade privada” (Marx; Engels, 2010, p. 74).
E, para que isso seja possível, necessitam tanto constituir uma organização autônoma,
como ter clareza dos interesses de sua classe, de modo a não se deixar seduzir pelo
“fraseado hipócrita dos pequeno-burgueses democráticos” (Idem, Ibidem). A exemplo,
no que diz respeito ao imposto proporcional, os operários deveriam exigir o imposto
progressivo moderado ou, no caso da regularização da dívida pública, deveriam con-
duzir a bancarrota do Estado. Em síntese, nas palavras de Marx e Engels, o grito de
guerra operário deve ser: “a revolução em permanência” (Marx; Engels, 2010, p. 75).
86

REFERÊNCIAS
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tez, 2011.
QUESTÃO AGRÁRIA E RACISMO NA
FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA: um
estudo a partir do modo de produção escravista1
José Amilton de Almeida

DOI 10.24824/978652515909.6.87-100

1. Introdução
Diferentemente das bases do nascimento do modo de produção capitalista na
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Europa, cujo desenvolvimento, no século XVI, expulsava massas camponesas, no


Brasil, sob os mesmos desígnios econômicos do mercantilismo, se escravizava indí-
genas e africanos prendendo-os à terra como “escravos”2 e os aprisionando à condi-
ção de uma propriedade privada nas mãos dos senhores, produtores de mercadorias
agrícolas exportáveis.
São essas relações de produção entre donos de capital, de terras e de pessoas que
examinamos, visando apreender sua estrutura, as leis de desenvolvimento e contra-
dições a partir das quais existiu e erodiu o modo de produção escravista. Buscamos,
ainda, elucidar como tal processo foi interpretado historicamente, sua relação com o
fenômeno da alienação e algumas de suas expressões na sociedade contemporânea.
O presente artigo consiste num estudo daqueles que foram os principais elementos
da produção no escravismo, a terra e o trabalho escravizado, típicos de uma socie-
dade agrária, mas já voltada para as determinações do valor e do mercado, na qual
a cidade estava subsumida ao campo e aos desígnios dos senhores de “escravos” e
traficantes, proprietários de terras e de gente.
Hoje, no Brasil, as desigualdades fundiária e racial continuam a ser um dos
mais urgentes e degradantes problemas humanos, e um dos seus mais caracte-
rísticos traços socioeconômicos, evidenciando que, após a abolição, não houve
preocupação com reforma agrária, como tampouco com reforma social por parte
das elites que assumiram a hegemonia da direção econômica, política, jurídica e
ideológica daquele processo. Se, entre nós, terra e desigualdade racial são graves
problemas, temos de identificar como se constituiu o elo que os mantém conectados
e funde questão agrária e racismo no seio do capitalismo dependente brasileiro.
O que implica perscrutar sobre o lugar, o papel e a importância da associação
entre a exploração da terra e do trabalhador nas relações de produção escravista,

1 Esta pesquisa é fruto de minha tese de doutorado e contou com o apoio financeiro da Capes.
2 O uso das aspas na palavra “escravo” é devido a seu caráter mistificador e naturalizado, contra o qual o
movimento negro e antirracista contemporâneo tem convencionado substituir por “escravizado”.
88

as contradições que as levaram à ruína, e os traços mais características e prepon-


derantes de sua continuidade.
Assim, nosso objeto de estudo é o modo de produção escravista no Brasil,
também chamado de “escravidão moderna” ou “escravismo colonial” (Williams,
1975; Prado Jr, 2014; Gorender, 1983, 2016; Moura, 1994). A delimitação da pesquisa
focou-se nas relações de exploração da terra e do trabalho escravizado nesse modo
de produção, na respectiva alienação, mistificações e ideologias que daí advêm, e
em algumas expressões contemporâneas da relação entre divisão racial do trabalho
e questão agrária no Brasil.
Os pressupostos da investigação, ao partirem da crítica da economia política,
embasam-se nas determinações da renda fundiária, considerando as origens e o papel
da propriedade privada e do preço do solo no processo de valorização e criação de
capital, as características da propriedade da terra no modo de produção escravista
brasileiro e em sua transição, na qual interferiu de maneira crucial a lei de terras de
1850, e as consequentes desigualdades sociorraciais e fundiária daí resultantes. Com

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a transformação legal da terra em mercadoria, consolidava-se, mais uma vez, a lei
como o veículo do roubo de terras pelo Estado para vendê-las ou presenteá-las a
particulares; formava-se o principal impedimento para as massas acessarem o solo, a
separação entre trabalhadores e meios de produção, e as circunstâncias cruciais para
um processo de proletarização sanguinária na qual negros/as/es serão mantidos nas
camadas mais degradas, miseráveis e pauperizadas. Trazemos uma reflexão sobre o
lastro de continuidade do passado e do presente racistas no Brasil, suas formas de
manifestações contemporâneas, problemas que, desde a escravidão não sessaram e,
hoje, chocam-se com o tradicional modelo, atualizado com denominação de agro-
negócio, por sua vez submetido aos interesses do capital monopolista, imperialista
e financeiro, ao receituário neoliberal, à reestruturação produtiva e à modernização
conservadora da agricultura. Esta, por seu turno, combina concentração de terra e de
renda, proporcionalmente agudizando a “questão social” e a desigualdade racial que
a conota no Brasil. Por isso, destacamos a importância da democratização da terra,
consequentemente, da reforma agrária como mecanismos de reparação histórica e
combate ao racismo no Brasil.
Instrumentados pela dialética marxiana, o que pesquisamos é o modo de pro-
dução escravista e as correspondentes relações de produção e de circulação na escra-
vidão moderna. O objetivo foi apreender a lei econômica do seu desenvolvimento
na relação intrínseca com o fenômeno do racismo, justamente porque o racismo
transcende à “escravidão” e penetra o capitalismo. Com os fundamentos do método
em mãos e em mente, a metodologia de investigação baseou-se em pesquisa e revisão
bibliográfica, fichamentos de textos, análises teóricas, comparações de estudos e sis-
tematização dos seus resultados, dos quais relatamos, aqui, os mais notáveis, trazendo
à tona informações e dados que que buscaram se submeter aos critérios analíticos e
teórico-metodológicos da crítica da economia política. Com efeito, nossa referência
bibliográfica principal foram algumas obras de Karl Marx, as quais estabelecem as
bases seguras para fundamentarmos as categorias analíticas que perpassam o objeto,
aqui, expresso, e o método teórico-metodológico da pesquisa científica. Outros dois
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 89

autores merecem destaque por ajudarem a sustentar nossas principais elaborações,


são eles Jacob Gorender e Clóvis Moura, os quais produziram obras fundamentais.

2. O problema geral enfrentado no estudo do modo de produção


escravista
A discussão adensada nesse artigo é resultado de uma pesquisa de doutora-
mento, que teve como produto a tese cujo título é “Terra, capital e trabalho no modo
de produção escravista: bases agrárias do racismo brasileiro”, na qual buscamos
responder à seguinte ordem de questões: como se constituiu e qual era a importân-
cia da apropriação da terra no modo de produção escravista no Brasil? Como se
caracterizava a terra e o trabalhador escravizado enquanto categorias econômicas
nesse modo de produção, e qual sua função do ponto de vista da valorização do
valor? Quais as formas alienadas desse processo, suas expressões ideológicas e as
principais teorias sobre o mesmo na perspectiva da economia política? A sociedade
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contemporânea ainda é afetada por este processo de exploração racista do trabalho e


da terra? Pressupondo que sim, quais seus impactos para a questão agrária e social?
Foi quando, na construção do problema de pesquisa e suas hipóteses, dos estu-
dos iniciais e da reflexão sobre os primeiros textos lidos, surgiu uma desconfiança
e, dela, indagações como: o trabalhador escravizado tratar-se-ia de um “meio de
produção”? De uma simples “máquina de trabalho”? Ou, ainda, de “capital cons-
tante” ou “capital fixo”, conforme sugerem algumas teorias? (Oliveira, 1977; Ianni,
1978; Furtado, 2005; Prado Jr, 2014). Ao considerarmos os elementos constitutivos
do processo de trabalho (Marx, 2006) em sua dimensão ontológica, nossa hipótese
inicial frente as estas indagações, e que foi se confirmando ao longo do estudo, é a
de que não. Pois, em essência, trabalhadores escravizados não poderiam constituir
categorias como “meios de produção” ou “meios de trabalho”, nem “máquina de
trabalho”; nem “capital constante” ou “capital fixo” , haja vista a identidade destas
categorias com os objetos, com a matéria prima e os instrumentos da produção, que
são frutos do trabalho, mas não podem ser o próprio trabalho em si enquanto fonte
criadora, “atividade adequada a um fim” (Marx, 2006, p. 212), isto é, a ação que
resulta no produto que satisfaz necessidades humanas, “sejam do estomago ou da
fantasia” (Marx, 2006, p. 57), e que advém do elemento humano do processo de tra-
balho. Tinham razão José de Souza Martins (2010) e Jacob Gorender (2016, 1983)
quando recusaram a concepção de “escravo” enquanto elemento do “capital fixo”.
O caminho trilhado nos levou a uma outra tese vigorante no pensamento social
brasileiro, que defende a ideia de uma generalizada “passividade” do “escravo” nas
relações sociais com os senhores e na história, e a questionarmos esta ideia, julgando
que, do ponto de vista materialista, histórico e dialético, ela também não se sustenta.
Ao indagar a respeito de como se davam as formas de “alienação”, “fetichismo”,
“reificação” e “ideologia” naquela sociedade, tornou-se evidente que categorias como
“meios de produção”, “capital constante”, “capital fixo”, “máquina de trabalho” etc.,
quando identificadas com o “escravizado”, remetiam apenas à forma alienada das
90

relações escravistas, imediatas e aparentes, deixando oculta a essência da relação,


que é justamente o sujeito, a fonte original da riqueza e do valor. Ao contrário disso,
colocar-se-ia um paradoxo para a própria teoria do valor fundamentada no trabalho.
A natureza desta inversão está nas próprias relações sociais do modo de pro-
dução escravista, e sua alienação reproduz-se desde esta base, isto é, da estrutura
econômica, até às superestruturas jurídico-políticas e ideológicas. Nossa crítica
volta-se, contudo, não simplesmente às formas alienadas existentes na escravidão
moderna, mas a determinadas interpretações sobre as mesmas pelo pensamento
social, algumas das quais terminam por reproduzir estas formas alienadas, aparentes
e, portanto, superficiais da realidade como se fossem a essência revelada da mesma.
Como um trabalho de pesquisa científica deve incumbir-se, antes de mais nada, de
investigar um problema, ou um conjunto de problemas, o presente estudo tem como
foco não simplesmente os acertos ou as soluções elaboradas pelos intelectuais, aqui
referenciados – embora os apontemos em grande volume – , mas, sim, as questões
mal ou não resolvidos na teoria social sobre as relações de produção escravista,

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e que resultam na distorção do lugar e o papel do trabalhador escravizado no
seio daquele modo de produção. Nesta seara, o escravo é cultivado, conforme já
mencionado, ora como “capital constante” ora como “capital fixo”, ou é chamado
de “renda capitalizada” ou “imobilização de capital”, de “meios de produção” ou
“máquina de trabalho” etc., e os nexos destes debates resultam, algumas vezes, em
soluções minimalistas ou simplistas.
Daí depreende-se que, abstraído o processo e as formas de alienação da cons-
ciência em relação ao trabalho, o que resta é o próprio trabalho, simples e concreto,
como centro. Há uma centralidade do trabalho na ontologia do ser social. Mas esse
trabalho é ainda uma abstração geral, sua materialidade e objetividade vêm com as
formas específicas assumidas na história. Trata-se de uma totalidade na qual articulam-
-se as dimensões universais, particulares e singulares da realidade social, que podem
ser apreendidas pela ciência através de seus procedimentos teórico e metodológicos,
pela apreensão da contradição inerente no real a partir da mediação investigativa e
analítica, que tem o papel de revelar laços ocultos e substâncias escondidas por trás
da imediaticidade de um objeto. Entendemos que o trabalho é trabalho em qualquer
sociedade, seja no comunismo primitivo, na Idade Antiga, Média ou Moderna. Em
sua essência concreta, porém, ele pode ser fruto de homens livres ou pode ser rea-
lizado por trabalhadores escravizados, por servos, proletários ou camponeses; pode
ser produto da agricultura, da manufatura ou da indústria; pode produzir valor de
uso tão somente e pode produzir mercadorias, isto é, valor-de-troca, e, ainda, mais-
-valor e capital. No Brasil, a concretude do trabalho adquiriu, desde a colonização e
produção para exportação, um caráter étnico e epidérmico de exploração de classes
– que submeteu africanos e indígenas –, sobre o qual se constituirá o racismo, que
vigora até os dias de hoje.
No modo de produção escravista brasileiro há um papel combinado entre
a exploração da terra e da força de trabalho e as modalidades de alienação que o
perpassam, resultado de uma divisão racial do trabalho e desigual divisão da terra,
ambas concomitantemente operando na lógica da produção do valor e mais-valor
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 91

irradiadas dos centros colonizadores. Valor este que se formava nas fazendas escra-
vistas e ia parar no mercado mundial, como o açúcar, o café, o algodão, o ouro, o
diamante etc., enquanto os trabalhadores escravizados, ao contrário, ingressavam no
Brasil como mercadorias e iam parar nas fazendas escravistas como propriedades
privadas dos senhores, e produtores diretos daquelas outras mercadorias agrícolas
exportáveis. Um ciclo no qual importava-se mercadoria-escrava para exportar mer-
cadoria agrícola-tropical e minerais com sobrevalor. Geralmente, o mesmo navio
que levava mercadoria, trazia “escravos”, esta era a lógica predominante. Por isso,
buscamos reconstituir como era a vida do humano escravizado sob a condição de
uma propriedade privada, uma mercadoria humana tão somente, reduzido a uma
coisa ou a um instrumento de trabalho nas mãos e na mente da classe dominante.
Elucidamos como este humano reagia contra tal estado de coisas, mostrando-se,
ao contrário, não ser objeto nem instrumento, mas sujeito; não ser passivo, mas
ativo; rompendo as cadeias da exploração de classe e, consequentemente, com sua
alienação, material e ideológica. A dialética deve mostrar que se havia escravizados
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apassivados, também havia os rebeldes, e que, ainda, se havia resistência, lutas,


conflitos e táticas radicais, também havia táticas passivas e negociação. Contudo, é
o elemento antagônico, radial, isto é, a negação e não as zonas de afirmação e equi-
líbrio, que fazem girar o motor da história e com que determinadas formas sociais
possam ser superadas e substituídas por outras.
Uma hipótese que perpassa nossa tese é a de que, em alguns autores (Ianni, 1978;
Furtado, 2005; Prado Jr., 2014), há um acabamento quase perfeito entre “teoria” do
escravo como “capital fixo”, “máquina de trabalho” (meio de produção, objeto ou
coisa) e a “teoria” acerca da sua “passividade” na reprodução das relações sociais
e na história. Essas “teorias” descrevem a superfície do fenômeno, o classificam,
elucidam seus efeitos e aparências, mas deixam oculta sua profundidade e extensão,
suas causas e essência. Outra hipótese indica que a desvalorização do trabalhador
escravizado como escravo, e a desvalorização do negro como trabalhador, possuem
uma origem comum e cumprem um mesmo papel: dar condições para a produção do
sobrevalor, acumulação, lucro, concentração e centralização de capitais, e enrique-
cimento de uma classe social. No escravismo, o trabalho escravo é desmoralizado,
inferiorizado, pois é forçado e o executor do trabalho animalizado; no capitalismo,
o trabalho livre precisa contar com uma ética do trabalho, promotora da dignidade
humana, como uma faculdade natural do homem, e requisita ser elevado a uma escala
superior. Mas o negro continua preso às formas degradantes de exploração epidérmica,
excluído de uma ética do trabalho, sem proteção social, e sua aclamada dignidade
humana, como uma condição genérica e um “direito natural, inalienável do homem”
defendida pelos liberais ficam aquém. Apenas recentemente conquistamos algumas
políticas afirmativas. Mas estão longe da universalização.
92

3. Alienação no modo de produção escravista


Neste item apreendemos as relações fundamentais de produção no escravismo
colonial na perspectiva do papel do trabalho na produção do valor, compreendendo
o trabalho como o elemento subjetivo, ativo, criativo e necessário do processo de
produção do excedente escravista, ainda que esteja alienado em todo o processo de
produção e nas ideias dominantes sobre estas práticas dominantes como “meios de
produção”, alienado como pessoa e como força de trabalho.
Marx e Engels disseram: “a ideias dominantes são, em todas as épocas, as
ideias da classe dominante”. A ideia dominante era, assim, na época da escraviza-
ção, a ideia da classe dos senhores de “escravos”, da imprensa escravista, da Igreja
a da Monarquia (da estrutura e superestrutura), que tratava e imaginava os escravos
como simples instrumentos, meios de produção, objetos, animais, sub-humanos ou
coisas, naturalizando-os como tais. Algo que é admissível na ideologia e na expressão
alienada das relações sociais, logo, na consciência do senso comum, é inadmissí-

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vel, porém, na ciência ou na teoria social. É nesse ponto que nos deparamos com
algumas teses acerca do trabalhador escravizado o concebendo como elemento do
capital constante ou fixo, conforme já pontuamos na problematização acima acerca
do objeto, o que significa o compreender como simples instrumento de trabalho ou
meio de produção, constituindo um paradoxo teórico: pois se o trabalhador escra-
vizado é o meio de produção e não trabalho, isto é, atividade adequada a um fim,
como, então, produzir-se-ia o valor, haja vista que instrumento e meios de produção
transferem, mas jamais seriam capazes de produzir valor, que é uma propriedade, uma
faculdade, uma capacidade eminentemente humana? É assim que problematizamos
aquelas teses, oferecendo, em detrimento das mesmas, uma análise alternativa, mais
próxima das categorias concretas, que visam compreender o trabalhador escravizado
como sujeito ativo, e não simplesmente objeto passivo da produção e reprodução
das relações sociais. Se havia “escravos” “passivos” e resignados, também havia
rebeldes e contestadores (Moura, 1994), ao contrário, nós negros/as/es e indígenas,
seríamos “escravos” até hoje.
Constatamos, assim, como a alienação, uma condição real, objetiva, da existên-
cia do escravo, que é despojado de todas as condições materiais de livre existência
humana e tomado como uma propriedade privada, uma “coisa”, uma condição for-
mada desde a produção material, eleva-se acima dela até a formulações pretensamente
teóricas, donde umas “teorias” não foram capazes de penetrar a essência das relações
escravistas, havendo, com isso, para além da alienação propriamente dita, uma “teoria
alienada sobre a escravidão”. Sofisticada, rebuscada, porém, presa nas aparências
do fenômeno. Nossas analises evidenciaram que – ainda que esta característica não
esteja dada à primeira vista – à tese que reduz o trabalhador escravizado ao “capital
constante” ou “fixo” (Oliveira, 1977; Ianni, 1978, Furtado, 2005), à “máquina de
trabalho”, ao “instrumento” ou ao “meio de trabalho”, corresponde a tese da sua
“passividade” (Ianni, 1978; Prado Jr., 2014; Furtado, 2005) diante da história e da
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 93

própria escravização. Frente a esta suposta “passividade”, o que fica invisível, con-
tudo, é o sujeito e a contradição, sem os quais não há produção social, nem história.

4. Questão agrária e racismo na formação social brasileira


A adoção da renda fundiária nas suas determinações econômicas capitalistas
como categoria para analisar a sociedade escravista justifica-se pelo fato de que as
categorias da sociedade burguesa, atual, sem dúvida, mais complexa, ajudam a jogar
luz sobre as categorias da sociedade escravista e, em movimento recíproco, aquelas
sobre esta, num “caminho de volta” – conforme se afirma o método da teoria mate-
rialista crítica (Netto, 2011). Segundo já expôs Marx (2008, p. 262), numa alusão à
história, a “anatomia do homem é a chave para a anatomia do macaco”, assim como
“a economia burguesa fornece a chave da economia antiga” nela subsumida. Por isso,
nosso estudo da sociedade “escravista colonial” (Gorender, 2016; Moura, 1994), parte
das categorias mais desenvolvidas, complexas e concretas do mundo moderno, para
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chegarmos às suas determinações mais simples e históricas, buscando reconstituir


as principais mediações que implicaram na sua gênese e desenvolvimento. Nesse
sentido, o conceito de modo de produção escravista não é um conceito vazio, mas
compreendido na acepção marxiana de “modo de produção”, o qual mantém uma
relação de unidade, uma “unidade da diversidade”, com os demais momentos da pro-
dução social: o “consumo”, a troca e a “circulação”. A produção constitui, em todos
os momentos, “o momento predominante” (Marx, 2008; Luckács, 2018), os quais
são mediados pela mercadoria e pela lei geral da acumulação na sociedade burguesa.
Para a subjacente lei geral da acumulação e a consequente desigualdade social
se consolidarem e parecerem tão naturais às pessoas quanto o próprio ar que respiram,
houve uma “acumulação primitiva” (Marx, 1985) pautada no saque e da qual parti-
cipamos como colonizados e escravizados. Aqueles métodos violentos de acumula-
ção nunca foram abandonados em sua totalidade. Persistem ainda hoje e continuam
expropriando os trabalhadores do campo, remanescentes dos povos expropriados e
escravizados do passado, nossos ancestrais, e tal como eles, estes ainda são cruel,
sanguinária e violentamente tratados, devido ao fato de que o capitalismo, como
todo modo de produção baseado na exploração das massas, necessita do monopólio
da terra. Mas, aqui, até mesmo ela – a terra – terá de se submeter aos ditames do
capital, rendendo-se à forma social mercantil, tornando-se uma mercadoria através
da qual é possível enriquecer e acumular riquezas, obter lucro extra ou superlucro,
o que ocorre mediante extração de renda da terra absoluta ou diferencial (Renda
diferencial I e Renda diferencial II)3.
O estudo da apropriação fundiária no modo de produção escravista a partir dos
elementos da crítica da economia política pressupõe uma compreensão analítica da
renda fundiária, e exige a apreensão das especificidades de uma formação social que

3 Para um aprofundamento teórico preciso da renda fundiária, ver: MARX, K. O capital. Livro III. Seção VI.
São Paulo: Boitempo, 2017.
94

brotou por meio de uma divisão étnico-racial do trabalho e de uma reprodução racista
das relações social. Entendemos, assim, que revisitar a escravidão moderna implica
resgatar debates históricos, pois, nela encontramos elementos essenciais das contradi-
ções entre as relações de produção e as relações sociais escravistas que dão origem à
formação social brasileira, e à natureza socioeconômica do trabalho escravizado, em
cujo berço, tendo submetido indígenas e africanos, constitui um componente racial
e xenófobo real, mediado através de uma divisão racial do trabalho ou uma divisão
social racializada ou, se quiser, uma divisão sociorracial do trabalho, que sustentará
a economia, a política, a moral e a ideologia da sociedade içada sobre esse modo de
produção, gerador de um mundo livre e de riquezas para os colonizadores; e de um
mundo escravo e miserável para os colonizados.
Se, hoje, houvesse uma reparação histórica a ser feita com esses dois povos,
Americanos e Africanos, submetidos a um terceiro, aos Europeus, deveriam ser devol-
vidos aos negros e aos indígenas o solo, assim como a todos os seus descendentes
pobres e expropriados da terra a terra, no que implicaria, mais do que uma reforma,

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uma revolução agrária, e mais do que uma revolução agrária, uma revolução social,
haja vista a estrutura predominante da concentração fundiária como pilar fundamental
do capitalismo dependente brasileiro, tal como era do escravismo brasileiro.
A terra é uma propriedade privada essencial, seja para o modo de produção
escravista seja para o capitalismo, pois trata-se do monopólio sobre uma força pro-
dutiva pela classe dominante. No capitalismo, a propriedade da terra está em favor
da burguesia interna e externa, dos impérios monopolistas e financeiros, que lucram
com o agronegócio, com a mineração, o extrativismo predatório e com a especulação
imobiliária. Assim, ela é essencial para o processo de acumulação do capital, mas sem
a aplicação do trabalho a terra não serviria para nada, pois o trabalho é a verdadeira
fonte original da riqueza, do lucro e da acumulação. Por isso, como genialmente
sintetizou José de Sousa Martins (2010) acerca da lei de terras de 1850, no Brasil,
a terra podia ser livre se o trabalhador fosse “cativo”, mas se o trabalhador fosse
livre, a terra teria, então, de ser “cativa”. E assim, com a lei de terras, de 1850, e a
lei áurea, de 1888, formaram-se as bases da consolidação do trabalho formalmente
“livre” e proletarizado no Brasil, e da formação de uma classe de trabalhadores rurais
sem-terra, posseiros, pequenos arrendatários, moradores, quilombolas, indígenas e
ribeirinhas, a maioria esmagadora composta de negros, indígenas, mestiços etc.,
sempre objetos dos conflitos fundiário pela expropriação capitalista, constantemente
alijados seja pelas vias econômicas ou pelas vias da violência e terrorismo diretos,
que historicamente existiram contra as populações pobres do meio rural no país.
O capitalismo não seria possível se a terra, existente em abundância, estivesse
livremente acessível a todos, e não tal como se encontra, monopolizada e privada a
alguns poucos indivíduos, sendo essa uma das principais lições deixadas por Marx no
capítulo 24 de O capital, que versa sobre a “Assim chamada acumulação primitiva:
seu segredo”: o autor mostra como a expropriação do “povo do campo” se constitui
em um pressuposto da proletarização da classe trabalhadora, portanto, base do modo
de produção capitalista e condição sine qua non do mesmo, ainda que tenha sido
conduzida a sua forma mais acabada e generalizada com a consolidação da indústria
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 95

capitalista. Uma vez expropriado o povo do campo e consolidado o capitalismo, são


as próprias forças das circunstâncias que conduzem os trabalhadores às fábricas,
lavouras, serviços etc., no intuito de venderem a sua força de trabalho. Se encontram,
por isso, enclausurados em uma espécie de “segunda natureza” (Luckács, 2018), pois
não tem alternativa a não ser venderem sua força de trabalho, massa de trabalhadores
que é naturalmente compelida a competir no mercado de trabalho, ou amargar nas
fileiras do exército de reserva ou no submundo das informalidades; diferentemente
da escravização, nas quais, havendo ampla alternativas a populações originárias e
a populações forçosamente imigradas, inclusive antagônicas ao capital, estas só se
submeterão à exploração através da força.
Assim, duas condições eram fundamentais para que a empresa colonizadora,
tal como se apresenta, se tornasse viável: primeiro, que a terra fosse cultivada, e para
isso, vem a segunda condição, precisava imprimir nela o trabalho. Diferentemente
da Inglaterra, que, à época das invasões coloniais, produzia o êxodo das massas
camponesas que eram obrigadas a deixar o campo, e parcela significativa das quais
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foram parar no Novo Mundo, constituindo a Nova Inglaterra no norte do atual Estados
Unidos, fazendo com que atrasasse à sua adesão ao trabalho escravo nas plantations
em 150 anos (Prado Jr., 2014), em Portugal, essas condições inexistiam. Portanto, ou
se forçava as pessoas a produzirem através da escravização ou a empresa lucrativa
denominada colonização não poderia se realizar. Aos indígenas, as modalidades de
trabalho e de intercâmbio trazidos pelos invasores não interessavam, pois, prati-
cantes de uma economia natural, inexistia o mercado como condição da satisfação
das necessidades, nem contava com a propriedade privada individual como centro
das relações sociais, não fazendo o menor sentido intercambiar com mercadorias,
ou se submeterem a exploração do trabalho para produzir excedente para outro. O
mesmo vale para os povos da África, roubados para serem escravizados nas lavouras
do Novo Mundo. Que interesse teriam eles em migrar espontaneamente para um
outro continente e se submeter ao branco num regime de exploração como aquele
necessário à agricultura extensiva e monocultural? Essa é a verdade mais primária e
simples a respeito da economia que se formou nesta colônia de exploração denomi-
nada Brasil. Uma verdade pura e simplesmente econômica, sem nenhum elemento
moral e desvestida de qualquer “sutileza metafísica ou argúcia teológica” (Marx,
2006). Conforme já concluiu Eric Williams (1975, p. 12) acerca da relação entre o
racismo contra negros e a escravidão moderna, “a escravidão não nasceu do racismo:
ao contrário, o racismo foi uma consequência da escravidão”.
Ela marca a ruptura do desenvolvimento natural milenar de povos, que viviam
com outros modos de produção e outras modalidades de consciência, para impor o
modo de produção eurocêntrico, conforme as necessidades do mundo de onde vinha
o colonizador. As sutilezas metafísicas virão depois, no sentido do europeu con-
vencer a si mesmo e de se alienar em sua própria consciência sobre os negros, mas
também aos outros, persuadindo-os com a ideia que sua prática escravizadora “não
era, assim, tão ruim” (James, 2010, p. 28). Terá, para isso, de inferiorizar o negro
teológica, “cientifica” ou pseudocietificamente, entendê-lo e explicá-lo por meio
de conjecturas eugenistas, formulações higienistas, por determinismos geográficos,
96

apelo à frenonologia etc., como se o negro e o indígena fossem menos evoluídos,


ingênuos, irracionais e incapazes de tomar conta de si mesmos, tendo de ser tutela-
dos por seus senhores, para quem, além de necessária, era uma dádiva a escravidão.
Portanto, monopólio sobre a terra e sobre o próprio trabalhador, que era escravizado,
apropriado como um mercadoria e propriedade privada, enfim, ‘coisificado’ nesse
processo, foram as duas condições fundamentais da economia colonizadora, e sobre
esses dois execráveis pilares se edificou a nossa formação social em suas origens.
Daí vem nossa economia, a sociedade, a política, a ideologia dominante no senso
comum, e a natureza racista que estrutura todas essas dimensões da vida nacional.
Contudo, aquelas determinações primárias e simples vão adquirindo ornamentos e
maquiando-se no decorrer de sua existência para que essa sua existência possa per-
manecer antes de sucumbir, de tal maneira que adquire ela tantos adornos ideológicos
que, num determinado momento, se torna difícil distinguir entre o que é central e
objetivo do que é ornamental e idealizado, resultando, muitas vezes, num antirracismo
liberal ou ingênuo que se centra no ataque à ideia racista como se o racismo fosse

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simplesmente uma ideia preconceituosa e nada mais, deixando o conteúdo, ou seja,
as estruturas racializadas da sociedade burguesa, intacta e sem questionamentos. Mais
do que um “lugar de fala”, justamente reivindicado, negros, no Brasil, precisamos
de um lugar para existirmos com dignidade, reconhecendo o lugar de classe que
ocupamos; mais do que uma “nova narrativa”, precisamos de uma nova realidade
material: de terra e trabalho, moradia adequada, educação de qualidade – dos níveis
básicos à pós-graduação –, de transporte público, ampliação da saúde, serviços de
saneamento básico, proteção social, acesso à cultura, às artes, ao esporte e ao lazer,
enfim, acesso à riqueza socialmente produzida e apropriada por uma meia dúzia de
capitalistas, latifundiários, industriais e financeiros.
Em se tratando de combate ao racismo, o negro/a/e pode até ser formal e legal-
mente equiparado ao branco como seu igual e ser humanamente reconhecido como
tal – e essa é a maior conquista dos negros/as/es na sociedade moderna –, mas isto não
lhe será suficiente se não mexermos na estrutura na qual a verdadeira desigualdade
se materializa em condições degradantes reais de vida para nossa raça, isto é, para a
classe trabalhadora negra. Por isso, poderíamos até “parar de falar do racismo”, como
já foi sugerido e muitas vezes se defende no senso comum e na mídia hegemônica,
ou negar a sua existência, como no mito da “democracia racial”, mas ele continuaria
se propagando. O racismo não auto extinguiria por ser ignorado ou pelo desapare-
cimento das narrativas sobre ele. O racismo é uma força material e somente com a
força material poderá ser quebrado. Trata-se de uma relação social. Assim, ao repúdio
com o fato de o negro ser reincidentemente chamado de “macaco” e à reivindicação
de punições legais para este crime, deve alinhar-se o repúdio, a realização de ações
concretas e a reivindicação de medidas legais e estruturais para enfrentar o fato de
a raça ser historicamente exterminada, criminalizada e encarcerada, e com o fato
de o negro habitar barracos precários e estar na base mais miserável e pauperizada
da população brasileira, sem-terra e sem-teto, sem trabalho, sem possibilidades de
sequer ser explorada.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 97

O que isso tem a ver com a divisão de classes e com exploração racial do tra-
balho ou sua expressão genérica, o racismo? Em termos simples, do nosso ponto de
vista, tem a ver com quem foi expropriado e com quem se beneficiou da expropriação;
com quem são suas vítimas no campo, mas pelas mesmas circunstâncias, também se
tornam vítimas nas cidades, seja como superpopulação relativa latente ou estagnada,
respectivamente, como sem-terras ou sem-tetos ou congêneres. A hipótese que, como
pressuposto, atravessa nosso estudo, é que, no escravismo, o negro ocupava o centro
da produção, assim sendo, o trabalho era moralmente condenado, repudiado pelas
elites aristocráticas, escravagistas e monárquicas. Isto porque em sua plenitude, o
trabalho era realizado por escravizados, considerados inferiores e assim inferiorizados
em todas as escalas da vida social. Para que o trabalho adquirisse o sentido ético que
tinha no jusnaturalismo de John Locke4, por exemplo, e na “Ética protestante e o
espírito do capitalismo” de Max Weber, teria de desvencilhar-se do elemento negro
que desvalorizava este tipo de ética liberal do trabalho. Vale lembrar que, apesar da
abolição, nada mais houve como processo de reparação e, justamente nesta quadra
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histórica dos fins do século XIX, que a maioria dos elementos estruturais da “ordem
escravista e senhorial” é simplesmente transferida para a “ordem social competitiva”
(Fernandes, 1975), passando do escravismo para o capitalismo do século XX.
De tal modo que, se o ano de 1888 simboliza o fim da “escravidão” no Brasil,
ela não significa necessariamente o fim da prática escravizadora, que, em suas múl-
tiplas formas, serão chamadas de “condição análogas à escravidão” ou “escravidão
contemporânea”. De 1995 a 2022, a CPT (2023) registrou mais de 60.000 casos de
“trabalho escravo” no Brasil. Nem precisamos mencionar qual é a cor predominante
do “escravo contemporâneo”.

5. Brevíssima nota sobre as expressões contemporâneas da


combinação entre questão agrária, racial e social
A relação entre a exploração racial do trabalho e a desigual distribuição da pro-
priedade da terra no Brasil resulta em uma grave questão agrária e social, responsável
por grande parte das desigualdades econômica, racial, étnica e sexual vigentes no país
e que afetam os diversos segmentos da classe trabalhadora em diferentes níveis. A
mulher negra é informalizada, mal paga e desvalorizada como trabalhadora, o homem
negro, além de superexplorado, é o que mais morre ou é encarcerado, afirmando
“O genocídio do negro brasileiro” (Nascimento, 1978) na sua relação intrínseca
com o processo de formação e concentração de capital. Ao ter em vista a existência
de uma questão agrária racializada, constatamos que somente uma reforma agrária
anticapitalista e antirracista poderia pôr um fim ao problema.
Na sociedade burguesa do século XXI, no Brasil, a questão agrária continua
sem solução e cada dia mais grave, à qual já corresponde não apenas desigualdades
de cunho sociorracial, mas também socioambientais, apesar de ter sido ela dada por

4 John Locke que, aliás, era acionista da Royal African Company, empresa que traficava escravos pelos mares
e os vendia na América.
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resolvida e encerrada pelos representantes do latifúndio e extratores de trabalho


alheio. Indo na direção contrária de tal concepção, nosso estudo evidencia que a
questão agrária, ao ter sido germinada com o capitalismo, nele se desenvolvendo
e a ele impulsionando o próprio desenvolvimento, não se modifica sem a alteração
na base mesma das relações sociais estruturantes da ordem vigente. O que significa
questionar os supostos da propriedade privada nos quais sustenta-se o capital e os
quais permitem a exploração do proletariado e do camponês pobre, considerando
a particularidade de que, no Brasil, a maior parte deste proletariado urbano e rural
é negro, e sua negritude constitui um critério de exploração (ou superexploração)
do trabalho, na qual a força de trabalho é paga abaixo do valor, ou seja, abaixo do
salário, e a cor é um critério de expropriação fundiária e desigual distribuição de
terra e de renda.

Considerações Finais

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Essa estrutura agrária a serviço do capitalismo dependente brasileiro, que desdo-
brou-se da economia escravista colonial, combinada com a estratificação sociorracial
do trabalho, como há de se supor, forma as bases das manifestações da chamada
“questão social”, cuja aparição brotará no seio do capitalismo periférico brasileiro
como problemas da expropriação fundiária dos povos tradicionais, quilombolas, indí-
genas, ribeirinhas e camponeses, e da particular desvalorização humana dos negros
ou não-brancos como força de trabalho. Por isso, tanta resistência e tamanha desmo-
ralização por parte das elites e o uso do seu poderio ideológico para descredibilizar
a luta do negro por identidade e verdade histórica no país, acusando-o de identitário.
No capitalismo, o trabalho será revalorizado sem o negro, fazendo com que o
trabalho qualificado e mais bem prestigiado, combinado à meritocracia e ao racismo,
passe a ser realizado preferencialmente por trabalhadores brancos, ou pela classe
média e pequeno burguesa, enquanto que o negro é posto na periferia da produção
e, por ser negro, é desvalorizado como força de trabalho, parecendo natural que
tenha que se submeter a qualquer tipo de situação laboral, a qualquer pagamento ou
tratamento autoritário e violento. Motivo porque é o principal atingido pela precari-
zação contemporânea do trabalho e as respectivas contrarreformas do Estado, pela
compressão dos direitos trabalhistas e previdenciários, pelos cortes orçamentários na
política de saúde e educação e pelas péssimas condições de moradia e saneamento,
além de ser o principal alvo da política social seletiva, fragmentada e focalizada, e
de uma política de segurança pública truculenta, criminalizadora e autoritária.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 99

REFERÊNCIAS
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PARTE II:
SERVIÇO SOCIAL E RESISTÊNCIA
AO CONSERVADORISMO
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SAÚDE NO GOVERNO BOLSONARO,
LUTAS CONTRA A PRIVATIZAÇÃO
E CONTRIBUIÇÃO DO
SERVIÇO SOCIAL1
Maria Inês Souza Bravo
Juliana Souza Bravo de Menezes

DOI 10.24824/978652515909.6.103-118
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1. Introdução
A crise sanitária brasileira da covid-19 se insere no quadro de uma pandemia
mundial, no interior da crise estrutural do capital e da falência das medidas neoli-
berais e ultraneoliberais. Este texto tem como objetivo analisar a política de saúde
neste contexto pandêmico.
Os processos de privatização das políticas sociais e da saúde em particular não
começam a partir de 2016, nos Governos de Temer e Bolsonaro, mas se aprofundam
neste contexto. Tais retrocessos se inserem no quadro social, econômico e político
sintonizado com processos observados mundialmente e se concretizam com as media-
ções relacionadas às condições de inserção do Brasil no cenário político-econômico
mundial e ao seu particular desenvolvimento histórico.
Segundo Behring (2003), desde 1990 vivencia-se no Brasil o processo de
contrarreforma do Estado, resultando em inflexões no campo das políticas sociais,
impactando a saúde pública e o conjunto da Seguridade Social. Essas mudanças
estão em consonância com as orientações de transformações no mundo do trabalho,
por meio da reestruturação produtiva (Harvey, 1993) e de redefinição das funções e
responsabilidades do Estado com vistas à inserção do Brasil na economia mundia-
lizada (Chesnais, 1996).
Ao analisar o contexto atual de crise estrutural do capital, pode-se afirmar que
a saúde tem sido um espaço de grande interesse de grupos econômicos em sua busca
por lucros e em seu movimento para impor a lógica privada nos espaços públicos. O
seu caráter público e universal, tão defendido pelo Movimento de Reforma Sanitária
brasileiro dos anos 1980 e pelos lutadores da saúde, vem sendo ameaçado.

1 Este texto é uma versão revisada e ampliada do artigo publicado pelas autoras “Saúde em Tempos de
Pandemia da COVID-19 e as Lutas da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde”, na coletânea “Crise
Capitalista, Pandemia e Movimentos Sociais”, organizada por: CABRAL, M. S. R.; ASSIS, I. M.; SOUZA, G.
A. C., de novembro de 2021.
104

No item a seguir, iremos enfatizar a conjuntura de saúde do governo Bolsonaro


e a política de morte no combate ao novo coronavírus (covid-19)2.

2. A política de saúde no governo Bolsonaro e a pandemia da


covid-19
O governo Bolsonaro, eleito em 2018, representou a radicalização e a ofen-
siva da política ultraneoliberal, com fortes ataques aos direitos sociais e às liberda-
des democráticas.
A partir de 2019, tem-se o aprofundamento das contrarreformas iniciadas no
governo anterior, verificando-se a aceleração e a intensificação das políticas que
contribuem com o desmonte do Estado brasileiro.
O peso da crise de acumulação é transferido para os trabalhadores. Dessa forma,
tem-se a retirada dos direitos conquistados pela classe trabalhadora através de lutas
históricas, como as contrarreformas (Trabalhista, da Previdência Social, Terceirização

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Irrestrita, Novo Regime Fiscal – que congela por vinte anos os gastos públicos, entre
outras) bem como ameaças às liberdades democráticas.
Pode-se considerar algumas características básicas do governo anterior: extremo
liberalismo econômico; temor das mobilizações e desprezo pela participação da
maioria, ou seja, pela democracia com ataques às instâncias de participação e controle
social; conservadorismo, na forma de um moralismo exacerbado e o neofascismo.
Alguns analistas consideram que o governo tem três núcleos que se articulam: o
núcleo econômico liderado por Paulo Guedes, o núcleo militar e o núcleo moralista
ou ideológico articulado por Bolsonaro e sua família.
O Governo Bolsonaro teve quatro ministros da saúde. No início do mandato,
assumiu o Ministério da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Filiado ao DEM (Partido
Democratas), foi secretário municipal de saúde de Campo Grande (MS) e depu-
tado federal por dois mandatos. Mandetta ficou como ministro de janeiro de 2019
a 16 de abril de 2020. Posteriormente, assumiram a pasta Nelson Luiz Sperle Teich
(16/04/2020 a 15/05/2020); Eduardo Pazuello (16/05/2020 a 15/09/2020 como minis-
tro interino e 16/09/2020 a 23/03/2021 como ministro nomeado); e Marcelo Queiroga
(23/03/2021 a 31/12/2022).
Importante destacar os tensionamentos que levaram a sucessivas trocas de
ministros da saúde durante a pandemia de covid-19, bem como algumas medidas
da gestão dos respectivos ministros que favoreceram o setor privado, ou seja, a
privatização da saúde.
Mandetta, durante a cerimônia de transmissão do cargo de Ministro da Saúde,
defendeu o princípio da equidade e enfatizou que este não pode ser relativizado
em favor de um conceito de integralidade, que inspira ações judiciais individuais

2 Quando falamos de política de morte podemos trabalhar com o conceito de Necropolítica desenvolvido pelo
filósofo negro, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe que, em
2003, escreveu um ensaio questionando os limites da soberania quando o Estado escolhe quem deve viver e
quem deve morrer. Para maior aprofundamento com relação ao conceito de Necropolítica ver Mbembe (2018).
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 105

desrespeitando os direitos coletivos. Ao mesmo tempo, disse que desejava “um sis-
tema privado forte” e “solidário”. Afirmou ainda que o Ministério da Saúde tem um
orçamento muito grande.
Se por um lado, a afirmação de que não haveria retrocessos na máxima constitu-
cional do direito de todos e dever do Estado na saúde pode ser avaliada positivamente,
a defesa de um setor privado forte e a não proposição de mais recursos orçamentários
para o SUS são preocupantes, pois não contribuem para o fortalecimento do SUS e
seu componente público e estatal. Durante o período em que esteve à frente da pasta
foram apresentadas e executadas diversas propostas pelo seu Ministério no ano de
2019 e início dos anos 2020, que serão apresentadas a seguir:
A revisão da política de saúde para a população indígena, que foi alvo de críticas
por parte de representações indígenas. A carreira de Estado para médicos e não para
os demais trabalhadores da saúde; o fortalecimento das Santas Casas e a proposta
de “choque de gestão” nos seis hospitais federais e nos três Institutos vinculados ao
Ministério da Saúde, localizados no Rio de Janeiro.
Com relação à Política de Saúde Mental e a Política de Álcool e Drogas, em
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abril de 2019, Bolsonaro anunciou o Decreto nº 9761/2019, que estabeleceu uma


“nova” Política Nacional de Drogas, que tem como objetivo a construção de uma
sociedade protegida do uso de drogas lícitas e ilícitas a ser alcançada por meio da
promoção da abstinência e do fortalecimento de Comunidades Terapêuticas como
lócus de cuidado, tratamento e promoção da saúde, entre outros aspectos3.
A preocupação com a chamada eficiência dos hospitais está presente na pro-
posta de Reforma do SUS explicitada no documento do Banco Mundial denominado
“Propostas de Reformas do Sistema Único de Saúde Brasileiro”, apresentado na
Câmara dos Deputados no dia 4 de abril de 2019, em audiência pública requerida
pelo ex-ministro da saúde de Temer, Ricardo Barros4.
Merece destaque a proposta apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro na sole-
nidade comemorativa dos 100 dias de governo, ocorrida em 11 de abril de 2019. O
Decreto n° 9.759/2019 que extinguiu diversos conselhos e colegiados da adminis-
tração pública federal, estabelecendo novas diretrizes para estes. O que podemos
ressaltar é que o governo não valoriza a existência de conselhos e outros colegiados
de participação social e exercício do poder popular, que objetiva aproximar a popu-
lação do poder decisório sobre políticas sociais e públicas, de modo que as decisões
não sejam delegadas exclusivamente a técnicos e gestores.

3 A citada política desconsidera a Política de Redução de Danos propondo a abstinência. Na política de


saúde mental ao priorizar as comunidades terapêuticas- que nada tem de comunitária e terapêutica – não
se prioriza o modelo de atenção em saúde mental, ou seja, os serviços substitutivos como os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), previstos pela reforma psiquiátrica brasileira.
4 Uma das premissas do Banco Mundial é de que há espaço para o SUS obter melhores resultados com o
nível atual de gasto público, como se não houvesse necessidade de maior financiamento ou de revogação
da EC 95, que reduz os gastos em saúde e demais políticas sociais por vinte anos, aprovada no governo
Temer. O documento defende a cobertura universal de saúde, em substituição ao termo universalidade
como princípio do SUS, e deixa nítida, a cada recomendação, a concepção de cobertura universal como
um pacote básico de serviços e estratégia de focalização, afastando a perspectiva da atenção básica
ampla de acesso universal.
106

Outra medida que ocorreu foi a reformulação do Programa Mais Médicos com
o discurso de torná-lo “mais técnico e menos político”. O que de fato aconteceu foi
o desmonte do mesmo com a saída dos médicos cubanos deixando amplas regiões
do país descobertas de assistência médica.
No que se refere à participação social, em que pesem as medidas regressivas
ocorridas no governo, teve-se avanços na convocação e organização da 16ª Confe-
rência Nacional de Saúde, ocorrida de 4 a 7 de agosto de 2019, espaço democrático
de avaliação sobre a situação de saúde e de proposição de diretrizes para a política
nacional de saúde. Nesta Conferência, também denominada de 8ª + 8, o tema Demo-
cracia e Saúde retomou a perspectiva histórica e a mobilização popular presente
na 8ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 1986. Este avanço, entretanto,
decorreu da articulação do Conselho Nacional de Saúde com diversos movimentos
sociais e de sua autonomia frente ao governo. Importante destacar que houve pouca
participação do governo no financiamento da mesma.
Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declara que a
disseminação do novo Coronavírus em todos os continentes se caracteriza como

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uma pandemia. Em 31 de março de 2023, o mundo chega a 761.402.282 de casos
confirmados e a doença já havia causado 6.887.000 mortes. O Brasil, até esta data,
registrou 699.917 mortes por covid-19 e 37.204.677 casos, sendo o terceiro país mais
afetado no mundo em número de casos perdendo para a Índia e os Estados Unidos
e o segundo em número de mortes5.
Os dados demonstram que o Brasil está entre os países com os piores indicadores
relativos a óbitos e contaminações. Conforme afirma Calil,

a terrível situação em que o país se encontra é resultado de uma estratégia bem


definida, coerente e sistematicamente aplicada por parte do governo Jair Bolso-
naro, que, orientando-se pela perspectiva de atingir rapidamente a imunização
coletiva (ou ‘imunidade de rebanho’), se utilizou de distintos instrumentos para
estimular a intensificação da contaminação, recorrendo para tanto à disseminação
de dados incorretos ou mesmo inteiramente falsos e à demonstração exemplar de
comportamentos propícios à contaminação (Calil, 2021, p. 31).

Luiz Henrique Mandetta, médico e com vínculo com a Unimed e com as Ins-
tituições Filantrópicas foi demitido em 16 de abril de 2020. A troca do primeiro
ministro pelo segundo se deu devido a divergências no enfrentamento da pandemia.
O segundo ministro Nelson Teich teve uma passagem relâmpago no ministério (de
17 de abril a 15 de maio de 2020), se afastando da pasta também por discordar do
presidente acerca do uso da cloroquina (não comprovada cientificamente) para o
tratamento da covid-19. Após a saída de Nelson Teich, Eduardo Pazuello assume,
interinamente, o Ministério da Saúde, se tornando ministro efetivo da pasta apenas
em 16 de setembro de 2020.
A subnotificação, a ocultação dos dados da pandemia e a militarização do Minis-
tério da Saúde são algumas características desta terceira gestão do ministério e que
provocou o total descontrole da covid-19 no país. O General do exército, que ficou

5 Tais informações estão disponíveis em: https://covid19.who.int. Acesso em: 31 mar. 2023.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 107

como ministro interino por quase quatro meses à frente da pasta, avançou em uma
política que promoveu o negacionismo, a censura e o obscurantismo. Não existiu
um comando nacional para o combate a pandemia no país, nem mesmo um plano
com diretrizes orientadoras (Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, 2020).
Cabe destacar algumas outras medidas do General Eduardo Pazuello no Minis-
tério da Saúde:

• Publicação de portaria permitindo o uso da cloroquina e hidroxicloroquina para


pacientes com sintomas leves;
• Divulgação dos boletins com dados de infectados e mortos pela doença com atraso
pelo Governo Federal;
• Substituição de técnicos do Programa de Saúde da Mulher que estavam traba-
lhando para valorizar o Programa de Saúde Reprodutiva e a questão do aborto
legal, bem como a substituição dos técnicos do Programa de Saúde do Trabalhador
que estavam defendendo incluir a covid-19 como acidente de trabalho;
• Suspensão, em julho de 2020, do convênio com a Universidade Federal de Pelotas
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para o financiamento da Pesquisa EPICOVID19-BR, uma das mais abrangentes


pesquisas em nível nacional sobre a covid-19;
• Publicação do Decreto presidencial nº 10.530, de 26/10/2020, que permitia a
inclusão da Atenção Primária à Saúde no programa de concessões e privatiza-
ções, com foco em construção, modernização e operação de Unidades Básicas
de Saúde (UBS)6;
• Decreto nº 10.531/2020 que institui a Estratégia Federal de Desenvolvimento
para o Brasil, no período 2020 a 2031, sob comando do Ministério da Economia.
Linha mestra: reforçar a parceria com o setor privado. Menciona o espaço que a
saúde deve ter neste projeto. Este decreto salienta a importância do agronegócio
como referência na promoção da saúde e qualidade de vida.

Estes dois últimos decretos foram publicados em articulação com o Ministério


da Economia.
A situação da pandemia no país foi agravada devido à ação do Presidente da
República que, junto a grupos de empresários, incentivou a população a desobede-
cer às medidas de distanciamento e isolamento social recomendadas pela OMS. O
Governo Federal fez recrudescer a desigualdade social, já tão profunda em nosso
país, e tem empreendido esforços para estabelecer uma falsa normalidade em nome
do lucro, negando a Ciência e banalizando as milhares de mortes que ocorreram no
país. Ainda que o vírus tenha atingido diferentes estratos sociais, a pandemia desvelou
a desigualdade brasileira, os dados mostraram que a tragédia é maior para aqueles
com menor poder aquisitivo da classe trabalhadora e para os negros.
A partir de julho de 2020, diversos prefeitos e governadores também flexibi-
lizaram o distanciamento social. No período de setembro e outubro de 2020 houve
uma certa diminuição de casos, mas a partir de novembro de 2020 identificou-se a
sua ampliação no país. Os dados sinalizavam para uma nova onda se sobrepondo à

6 Depois de toda a repercussão negativa da publicação e da pressão de diversos movimentos, o presidente


Jair Bolsonaro anunciou a revogação do decreto.
108

primeira, fato que tornou o problema ainda mais grave e complexo, considerando
aglomerações desnecessárias e declarações públicas de autoridades governamentais
afirmando que não retrocederiam das medidas de flexibilização.
Tal situação tem gerado uma preocupação dos estudiosos da saúde pública.

Não bastassem as crises humanitária, sanitária e econômica, vivenciamos no


Brasil, dia a dia, uma crise política sem precedentes. Temos um governo que
desgoverna, que sonega dados e informações, que tripudia sobre o sofrimento e a
morte de dezenas de milhares de brasileiros [...], que promove uma necropolítica,
que extermina povos indígenas, assassina negros, destrói vidas. Aproveita-se da
pandemia para extinguir direitos, acentuar privilégios, destruir o meio ambiente,
afrontar a democracia (Giovanella, Medina, Aquino, Bousquat, 2020, p. 896).

Apenas em 1º de dezembro de 2020 foi apresentado pelo Ministério da Saúde


um plano nacional de vacinação contra a covid-19, o que demonstra a dificuldade
e a fragilidade na prioridade que deveria ser a proteção da população brasileira. Os

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limites no plano nacional de vacinação apresentado decorrem da falta de transpa-
rência, da debilidade na proposição de metas e da submissão da pasta à politização
do tema das vacinas realizada pelo presidente da república7.
Em dezembro de 2020 também o Ministério da Saúde com o apoio da Associa-
ção Brasileira de Psiquiatria (ABP) apresentou uma proposta de revisão da Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS) e propõe extinguir importantes serviços desta, inver-
tendo a lógica antimanicomial8.
Em 15 de março de 2021, o presidente Jair Bolsonaro escolheu o médico Mar-
celo Queiroga para substituir o General Eduardo Pazuello, sendo o quarto ministro
da saúde do governo Bolsonaro. Antes de escolher Queiroga, o presidente conversou
com a médica Ludhmila Hajjar, que não aceitou o convite por não ter “convergência
técnica” com Bolsonaro. A mudança do Ministério da Saúde ocorre no pior momento
da pandemia da covid-19, com recordes sucessivos de mortes e com a doença em
expansão em todo o Brasil. O quarto ministro da saúde, desde o começo da pan-
demia, é Presidente da Sociedade de Cardiologia, sendo indicado para direção da

7 A ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) lança um documento sobre o seu posicionamento
com relação a campanha nacional de vacinação contra a Covid-19. Ver a nota na íntegra em: https://www.
abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2020/12/Posicionamento-Abrasco-Minuta-final2.pdf.
8 Tal proposta significa um desmonte total da Política de Saúde Mental no SUS com a revogação de cem (100)
portarias sobre saúde mental, editadas entre 1991 a 2014, ameaçando diversos programas e serviços do
setor, tais como: os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs); os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
em suas diversas modalidades (CAPS I, II, III, CAPSi, CAPSAD, CAPSAD III); o Programa de Volta pra Casa
(PVC); as Unidades de Acolhimento adulto e infanto-juvenil e os Leitos em Hospital Geral; os Consultórios
de Rua; as estratégias de Saúde Mental na Atenção Básica junto às Equipes de Saúde da Família (ESFs)
e aos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs), entre outros. A Política Nacional de Saúde Mental
implementada desde a década de 1990 propiciou a inversão do destino de recursos financeiros públicos
de hospitais psiquiátricos para a rede substitutiva de serviços de base comunitária e territorial, garantindo
o cuidado em liberdade, com inclusão social. Várias entidades e movimentos sociais vêm repudiando, com
manifestos, notas e abaixo assinado, a proposta apresentada pelo Governo Federal de desmonte da RAPS,
reforçando a defesa do SUS, da Reforma Psiquiátrica, dos direitos humanos e do cuidado em liberdade.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 109

ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), mas ainda não tinha sido votado
no Senado Federal. Queiroga não tinha vínculo com o setor público e nem experiên-
cia em gestão. E todo o discurso foi de continuidade e não de rompimentos com o
trabalho desenvolvido.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia no Senado foi ins-
talada, em 27 de abril de 2021, com o objetivo de identificar os responsáveis por
ações e omissões no combate ao Coronavírus “SARS-CoV-2” e, em especial, no
agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os
pacientes internados; e as possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licita-
ções, superfaturamento, desvios de recursos públicos, assinatura de contratos com
empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros
ilícitos, se valendo para isso de recursos originados da União Federal, bem como
outras ações ou omissões cometidas por administradores públicos federais, estaduais e
municipais, no trato com a coisa pública, durante a vigência da calamidade originada
pela pandemia do Coronavírus, limitado apenas quanto à fiscalização dos recursos da
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União repassados aos demais entes federados para as ações de prevenção e combate
à pandemia da covid-19, e excluindo as matérias de competência constitucional
atribuídas aos Estados, Distrito Federal e Municípios.
A CPI se encerraria em agosto, mas foi prorrogada e seu Relatório Final foi
apresentado em outubro de 2021. A Comissão Parlamentar de Inquérito da Pande-
mia, após seis meses de intensos trabalhos, concluiu, a partir da coleta de provas,
que o governo federal de Jair Bolsonaro foi omisso e optou por agir de forma não
técnica, negacionista e desidiosa no enfrentamento da pandemia do novo Coronavírus,
expondo a população a risco concreto de infecção em massa.

Comprovaram-se a existência de um gabinete paralelo, a intenção de imunizar


a população por meio da contaminação natural, a priorização de um tratamento
precoce sem amparo científico de eficácia, o desestímulo ao uso de medidas não
farmacológicas. Paralelamente, houve deliberado atraso na aquisição de imuni-
zantes, em evidente descaso com a vida das pessoas. Com esse comportamento o
governo federal, que tinha o dever legal de agir, assentiu com a morte de brasileiras
e brasileiros” (Senado Federal, 2021, p. 1163).

O Relatório da CPI da Pandemia encerra propondo a criação de um memorial


em homenagem às vítimas da covid-19 “para que nunca nos esquecemos do que
aconteceu neste País e dos inocentes que pagaram com sua vida pela conduta irres-
ponsável do governo federal na condução da pandemia” (Idem, p. 1179).
O ano de 2021 termina e 2022 iniciou com novas ações e omissões do governo
federal no enfrentamento da pandemia, com o destaque para: o atraso e a insuficiência
na vacinação infantil; os ataques do Presidente da República aos técnicos da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e à vacinação da população adulta e
infantil; a insuficiência da política de testagem; e o apagão de dados do Ministério
da Saúde com as suas consequências no correto monitoramento da evolução da
110

pandemia. Observou-se também neste período o avanço no mundo e no Brasil da


nova variante Ômicron9.
O ano de 2022 foi marcado por um processo eleitoral muito disputado e por
uma polarização política do país muito intensa. O presidente Lula foi eleito com o
apoio de uma frente ampla democrática, derrotando a extrema direita. E tornou-se o
primeiro presidente da história do Brasil eleito democraticamente para um terceiro
mandato. Por outro lado, Bolsonaro foi o primeiro presidente desde a redemocrati-
zação a não se reeleger.
A vitória também apresenta uma inimaginável ressurreição política para Lula,
que passou 580 dias na prisão após ser condenado por corrupção em 2018. Três
anos mais tarde, o Supremo Tribunal Federal anulou as condenações de Lula por
erros processuais e por entender que o ex-juiz e hoje senador Sergio Moro, aliado
de Bolsonaro, agiu com parcialidade e motivação política.
Com a vitória apertada na disputa eleitoral, desde o seu início, o governo Lula foi
e continuará sendo um governo sob ataque da extrema direita. O novo presidente não
terá tranquilidade para governar, pois forças bolsonaristas conquistaram um espaço

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expressivo no Congresso e compõem uma importante oposição, considerando o
desafio que o atual governo tem pela frente de resgatar mais de 30 milhões de pessoas
ameaçadas pela fome e a miséria, impulsionar o crescimento econômico, fortalecer
a defesa do meio ambiente e recuperar o prestígio do país no cenário internacional.
Os primeiros 100 dias para o novo governo têm sido essenciais. O presidente tem
relançado programas, tais como: o novo Bolsa Família; o Minha Casa, Minha Vida; o
novo Programa Mais Médicos, entre outros. E terá o desafio de conseguir aprovar no
Congresso medidas econômicas como o novo arcabouço fiscal, a reforma tributária e
a nova política de preços dos combustíveis. Antes mesmo de assumir o governo, Lula
teve que negociar com o Congresso a aprovação da PEC da Transição para manter
as promessas de campanha, como, por exemplo, o valor do Bolsa Família em 2023.
A demora em aprovar a medida mostra que as negociações com os parlamentares
não serão fáceis, dado que o governo não tem a maioria dos assentos no Congresso.
No próximo item serão abordadas as lutas e as ações da Frente Nacional contra
a Privatização da Saúde que procuram enfatizar o SUS público, 100% estatal e contra
todas as formas de privatização da saúde fundamental nesta conjuntura de tensão
entre as diversas forças conservadoras e progressistas.

9 Em 26 de novembro de 2021, especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) batizaram de Ômicron a


nova variante da covid-19 identificada na África do Sul como B.1.1.529. Segundo a OMS, esta é uma variante
de preocupação e estudos preliminares já confirmam que a Ômicron tem um número muito maior de muta-
ções que as outras. Tais informações estão disponíveis em: https://news.un.org/pt/story/2021/11/1771762.
Acesso em: 17 jan. 2022.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 111

3. As lutas da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde10


A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde (FNCPS), criada em 2010,
retoma como fonte unificadora de lutas a mesma motivação que deu sustentação às
lutas travadas pelo Movimento Sanitário nos anos de 1980: o combate à privatização
da saúde. Tanto quanto este movimento, a frente também se opõe à tendência da
prestação de assistência à saúde como fonte de lucro, e tem como tática a forma-
ção de uma frente de esquerda anticapitalista, anti-imperialista, antimonopolista,
antilatifundiária, antirracista, antipatriarcal, antiLGBTQIA+fóbica, antifascista e
suprapartidária. Desde o início, vem se empenhando em um esforço coletivo para
articular as diversas lutas em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) de caráter
público, gratuito, 100% estatal, de qualidade e que atenda a todas as necessidades
dos trabalhadores. Vem se posicionando contra as formas de mercantilização da vida
e contra os processos de privatização pelos quais o sistema de saúde brasileiro tem
se constituído.
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Portanto, compreende-se que a determinação social do processo saúde-doença


é o ponto de partida para atuação crítica nessa área. Nesse sentido, é necessário
revelar o caráter de classe do adoecimento da população, contrapondo-se à ideologia
dominante de que a saúde é resultante da ausência de doença ou determinada por
fatores biopsicossociais que ocultam os processos de exploração aos quais a classe
trabalhadora é submetida. A defesa de um sistema de saúde com as características
apontadas acima é uma importante mediação para construção do direito à saúde.
Essa frente tem programado diversas atividades a partir de sua criação: como
audiências com os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF); atos estaduais em
comemoração ao Dia Mundial da Saúde (7 de abril); diversos atos e debates contra
a privatização da saúde; elaboração de documentos sobre a situação da saúde nas
variadas conjunturas (governos do PT, do ilegítimo governo Temer e do desgoverno
Bolsonaro); participação nas conferências de saúde nacionais e temáticas com docu-
mentos próprios; articulação com o Fórum dos Trabalhadores da Saúde (Fentas) –
constituído por entidades de trabalhadores da saúde que estão no Conselho Nacional
de Saúde (CNS), bem como com o próprio Conselho Nacional de Saúde.
Já realizou dez seminários em diversos estados, a saber: o 1º Seminário Nacio-
nal, em novembro de 2010, no Rio de Janeiro, que congregou 400 participantes de
todo o país e criou a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde; o 2º ocorreu em
São Paulo, em 2011; o 3º em Maceió (Alagoas), em 2012; e o 4º seminário ocorreu
em Florianópolis (Santa Catarina), em junho de 2013. O 5º seminário aconteceu no
segundo semestre de 2014, no Rio de Janeiro, e foi um seminário internacional que
teve a participação de 800 pessoas. O 6º ocorreu em Goiânia (Goiás), em 2016; o
7º, em Maceió (Alagoas), em 2017; o 8º em Porto Alegre (Rio Grande do Sul), em
2018; e o 9º em João Pessoa (Paraíba), em 2019. Estes últimos tiveram a participação

10 Este item está baseado no artigo publicado pelas autoras “Democracia, participação e controle social: as
lutas em defesa da saúde”. In: Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea. Nº 50. Rio de Janeiro:
UERJ/Faculdade de Serviço Social. jul/dez. 2022.
112

de aproximadamente 300 pessoas. O 10º seminário foi realizado em março de 2021,


on-line, e teve 750 pessoas inscritas.
Na conjuntura de barbárie social e de retirada de direitos que ocorreu até 1 de
janeiro de 2023, é importante e fundamental a defesa da saúde pública e do SUS de
caráter público e estatal, por meio da articulação e mobilização de diversos movi-
mentos sociais, sindicais e de partidos políticos em fóruns e/ou frentes estaduais em
defesa do SUS e na Frente Nacional contra a Privatização da Saúde. Esta frente é um
importante mecanismo de articulação dos movimentos contra hegemônicos na saúde.
Tem o caráter anticapitalista e suprapartidário, conforme já referido, e se articula a
23 fóruns ou frentes de saúde estaduais, além de entidades, movimentos sociais e
estudantis, centrais sindicais, sindicatos, partidos políticos e projetos universitários,
que objetivam defender o SUS público, estatal, gratuito e para todos, lutando também
contra a privatização da saúde e pelos princípios da Reforma Sanitária dos anos 1980.
A pandemia da covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde em
março de 2020, aprofundou a desigualdade estrutural brasileira determinada pela

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concentração de riqueza e propriedade. Identificou-se o aumento da pobreza e o reapa-
recimento agudo da fome, que atinge quase 20 milhões de brasileiros. O desemprego
no Brasil chegou a 14,4 milhões de pessoas, revelando a desigualdade de gênero,
classe e raça, sendo as mulheres negras residentes das periferias as mais atingidas. O
país se sustenta sob uma força de trabalho superexplorada e precarizada que ultrapassa
100 milhões de pessoas e, por outro lado, em 2020, onze (11) novos brasileiros se
tornaram bilionários (Boschetti, 2021).
Apesar do contexto de dificuldades e de complexidade vividos até o final de
2022, lutas, resistências e mobilizações ocorreram. Atos nos diversos estados e muni-
cípios contrários à política do governo federal aconteceram a partir de maio de
2021, bem como os panelaços, que expressaram o descontentamento com o mesmo.
Movimentos de esquerda, em várias lives, denunciaram o governo, e textos foram
veiculados nas mídias sociais. Na saúde, antes mesmo da pandemia, a Frente Nacio-
nal contra a Privatização da Saúde e seus diversos fóruns estaduais cumpriram um
importante papel crítico.
Durante a pandemia, a partir de 2020, a frente realizou reuniões on-line do
colegiado, inicialmente de forma semanal, depois quinzenal e, atualmente, mensal.
Neste período, aprimorou sua política de comunicação com a elaboração de diversos
cards e vídeos denunciando a política de saúde do desgoverno Bolsonaro e o não
enfrentamento à pandemia, bem como cobrando aprovação de projetos de lei que
protejam as diversas frações da classe trabalhadora.
Como outras atividades programadas, destaca-se a mobilização e comemoração
dos 10 anos da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, completos nos dias
22 e 23 de novembro de 2020. Foram elaborados três cards e dois selos de come-
moração, um pequeno vídeo histórico da FNCPS, além da realização de uma live
comemorativa ocorrida no dia 11 de dezembro com diversas atividades artísticas11.

11 A live comemorativa dos 10 anos da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=L8DIw50nqWs&fbclid=IwAR2mu7664dqB_ET4ol9oHk9ehHi4CqXZPxXuR-
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 113

Em função do contexto de pandemia da covid-19, o Seminário Nacional da


Frente, que ocorre anualmente, não aconteceu em 2020, mas em março de 2021, e o
10º seminário se deu de forma remota.
A frente elaborou, em 2020, quatro notas divulgadas no Facebook e em outros
mecanismos de socialização enfocando temas em defesa dos direitos sociais e do
direito à saúde, a saber: contra as atitudes do governo ultraliberal e conservador de
Bolsonaro, em março de 2020; manifesto em defesa da vida, contra a política de
morte, em maio; vida acima dos lucros assinado por 100 entidades, em julho; contra
a privatização da atenção primária do SUS, em outubro de 2020.
Em 2021 e 2022, a frente e os diversos fóruns de saúde estaduais participaram
dos atos nacionais e de manifestações de rua contra o governo Bolsonaro. Participa-
ram também dos atos contra a PEC 32 da Reforma Administrativa. A discussão da
Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) retornou na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e a frente tem se posicionado contra esta proposta,
participando de debates e das reuniões do Movimento Barrar a EBSERH na UFRJ.
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No segundo semestre de 2022 foi programado um ciclo de debates, iniciado em julho


e finalizado em novembro, constando de oito encontros sobre temas fundamentais
da conjuntura, com o título: “Saúde, lutas sociais e projetos societários” promovido
pela FNCPS e participação especial do Projeto Políticas públicas da UERJ. A FNCPS
esteve presente também na Conferência Livre, Democrática e Popular de Saúde reali-
zada nos Estados e nacionalmente em 5 de agosto de 2022, em São Paulo, coordenada
pela Frente pela Vida. Na conferência nacional foi distribuído um documento com as
propostas centrais da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde.
Outros eventos em que a Frente esteve presente, no segundo semestre de 2022,
foram: 13º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, promovido pela ABRASCO e
realizado em Salvador /Bahia, de 19 a 24 de novembro; XXIII Seminário da Asso-
ciação Latino-Americana de Trabalho Social ocorrido de 21 a 23 de novembro, em
Montevidéu/Uruguai; XVII Encontro de Pesquisadores em Serviço Social, promovido
pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa de Serviço Social (ABEPSS), reali-
zado no Rio de Janeiro de 14 a 17 de dezembro, além de Reuniões promovidas pelo
ANDES/Sindicado Nacional e FASUBRA. Em todos os eventos tem sido distribuída
notas com as propostas centrais da FNCPS e adesivos com a finalidade de mobilizar
novos participantes para a frente.
Outra atividade realizada pelos fóruns e frentes estaduais e pela Frente Nacional,
no ano de 2023, tem sido a participação em conferências municipais e estaduais de
saúde, etapas importantes para a 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada nos
dias 2 a 5 de julho de 2023, evento que a FNCPS também participou.

W1bp_eWkTiySin9AUd1d-4.
114

Considerações Finais: Algumas reflexões com relação à assessoria


realizada pelo profissional de Serviço Social aos movimentos
sociais12
Os países capitalistas enfrentam desde 2008 uma crise estrutural de propor-
ções relativas à crise de 1929 e cujas consequências não são totalmente conhecidas.
Segundo Boschetti (2010), com base na perspectiva marxista, trata-se de uma crise
estrutural do capitalismo na sua permanente busca por superlucros e superacumula-
ção. Para a autora, a crise não é conjuntural e não será superada em curto prazo com
algumas medidas de regulação econômica e social. Os efeitos da mundialização do
capital, nos termos salientados por Chesnais (1996), apontam para consequências
destrutivas no emprego, nos salários, nos sistemas de proteção social, na concentração
de riqueza e na socialização da política.
Na atualidade, Boschetti (2010) sinaliza como tendências no âmbito das políticas
sociais programas focalizados de combate à pobreza absoluta e a mercantilização

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de serviços públicos, como educação, saúde e previdência, de modo a criar novos
nichos de mercado. Dessa forma, cria-se espaço para a mercantilização de todas as
esferas da vida social, que passam a ser novos espaços de valorização para o capital
(Harvey, 2008).
Ao analisar o contexto atual de crise estrutural do capital, pode-se afirmar que
a saúde tem sido um espaço de grande interesse de grupos econômicos em sua busca
por lucros e em seu movimento para impor a lógica privada nos espaços públicos. O
seu caráter público e universal, tão defendido pelo Movimento de Reforma Sanitária
brasileiro dos anos 1980 e pelos lutadores da saúde, vem sendo ameaçado.
Este contexto pandêmico reforçou a necessidade e a importância de fortalecer
o Sistema Único de Saúde (SUS) em todas as suas áreas: de vigilância em saúde, de
cuidado em todos os níveis, promoção, prevenção e pesquisa. Um SUS público, com
acesso universal, 100% estatal, de qualidade, com financiamento efetivo, de forma
a produzir as melhores respostas possíveis no enfrentamento da atual crise sanitária
tem sido a luta dos Fóruns/Frentes estaduais e Frente Nacional contra a Privatização
da Saúde. As experiências desses fóruns são importantes na luta por direitos sociais e
se colocam como desafio na atualidade, na construção de uma frente anticapitalista.
Ressalta-se que, na atual conjuntura de crise do capitalismo, de barbarização
da vida social, com mudanças regressivas em todas as dimensões da vida social e
com um horizonte ainda mais desfavorável à classe trabalhadora, o desafio que está
colocado é o de ampliar a luta coletiva, fortalecendo as lutas sociais e a organização
das classes subalternas, na defesa da emancipação política, tendo como horizonte a
emancipação humana e um novo projeto societário anticapitalista.

12 Algumas reflexões presentes nessas considerações finais estão baseadas no artigo de BRAVO, M. I. S. &
MENEZES, J. S. B. Lutas pela Saúde: desafios à assessoria realizada pelos assistentes sociais. In: DUARTE,
M. J. O. (et al.) (org.). Política de saúde hoje: interfaces & desafios no trabalho de assistentes sociais.
Campinas, SP: Papel Social, 2014b.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 115

Diversos desafios estão postos para efetivar a participação social nas políticas
públicas na atual conjuntura. A retomada dos pressupostos que marcaram as lutas
sociais e que foram incorporados por diversas profissões, entre elas, a de Serviço
Social é de fundamental importância na atualidade para combater as tendências de
reforço do terceiro setor, de desresponsabilização do Estado e da participação cidadã13.
O Serviço Social brasileiro, nos seus diversos documentos legais que fundamen-
tam o seu projeto ético-político, ressalta a construção de uma nova ordem social, com
igualdade, justiça social, universalização do acesso às políticas sociais, bem como a
garantia dos direitos civis, políticos e sociais para todos. Os projetos profissionais,
segundo Netto (1999), são indissociáveis dos projetos societários que lhes oferecem
matrizes e valores e expressam um processo de luta pela hegemonia entre as forças
sociais presentes na sociedade e na profissão.
Os assistentes sociais no Brasil, desde os anos 1980 – período marcante de
releitura da profissão – incorporaram a temática dos movimentos sociais na formação
profissional, nas pesquisas e na produção acadêmica. Entretanto, a articulação do
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debate com análises empíricas e sua relação com o trabalho do Serviço Social foi
pequena, como identifica Durigueto (1996) em pesquisa realizada. A autora afirma
que os profissionais de Serviço Social têm dificuldade de tomar sua inserção frente
aos movimentos sociais como trabalho profissional. Essa questão também se expressa
pela falta de reflexões sobre a influência das instituições assessoras na organização
dos movimentos sociais (Durigueto, 1996, p. 145).
Na década de 1990, o debate do Serviço Social se desloca para os espaços de
controle democrático face ao esvaziamento dos movimentos sociais e a implementa-
ção dos conselhos de políticas sociais e de direitos. Considera-se, entretanto, que os
estudos e intervenções com relação aos movimentos sociais tornam-se fundamental
na atualidade.
Nesta direção, os profissionais adeptos do projeto ético-político da profissão
precisam qualificar suas ações a fim de contribuírem para a ampliação de uma cultura
política crítica e democrática e defender a garantia dos direitos humanos e sociais.
Diversos autores têm ressaltado a ação socioeducativa do Serviço Social como
fundamental para o trabalho com movimentos sociais e assessoria.
Iamamoto (2002) considera que é importante a ação dos assistentes sociais
nos movimentos sociais. Trata-se de reassumir o trabalho de base, de educação, de
mobilização e organização popular que parece ter sido submerso do debate teórico-
-profissional frente ao refluxo dos movimentos sociais. É necessária uma releitura
crítica da tradição profissional do Serviço Social, reapropriando-se das conquistas e
habilitações perdidas no tempo e, ao mesmo tempo, superando-as de modo a adequar
a condução do trabalho profissional aos novos desafios do presente.
Abreu (2002) faz um retrospecto da função educativa no processo histórico bra-
sileiro relacionando com as influências internacionais. Destaca três perfis pedagógicos

13 Há uma grande diferença entre a concepção de participação social na perspectiva marxista e a proposta
de participação cidadã que tem sido estimulada na valorização da participação colaboracionista, como já
foi ressaltado.
116

do trabalho dos assistentes sociais: da ajuda, da participação e da emancipação. As


duas primeiras têm como finalidade a adesão dos sujeitos sociais e vêm atualizando
a perspectiva de subalternização e controle dos trabalhadores. A emancipatória tem
como objetivo a dimensão da libertação na construção de uma nova cultura. Esta
perspectiva, entretanto, é um desafio para os profissionais, pois vai depender de outras
ações articuladas para que se consiga a mobilização dos sujeitos sociais visando o
fortalecimento e avanço da organização da classe trabalhadora (Bravo; Matos, 2006).
Dessa forma, considera-se que a participação dos sujeitos só poderá ser exercida
mediante amplo trabalho de mobilização para que ocorra uma intervenção qualificada
e propositiva no sentido de exigir direitos e exercer formas de pressão sobre o poder
público. Nas frações de classe com baixo poder de organização, as dificuldades são
ainda mais complexas. Para que a participação social se efetive é necessário que os
representantes da sociedade civil possam organizar-se nas suas bases e que tenham
consciência dos seus direitos e a quem reclamá-los. Reconhece-se a necessidade e
a importância da organização para a participação efetiva nas decisões públicas. O

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Estado aposta em manter o populismo regressivo, ou seja, a simpatia política difusa
desse setor popular pauperizado e desorganizado (Simionato, 2006).
É nesta tensão que os profissionais de Serviço Social podem atuar. É necessário
ter a clareza que a qualidade da participação não está definida a priori.
Os projetos de extensão universitária inseridos nos Fóruns e/ou Frentes estaduais
e na Frente Nacional contra a Privatização da Saúde (FNCPS) desenvolvem nesses
espaços uma assessoria direta, que exige atividades de formação técnica e política;
socialização de informações através da produção de textos; realização de debates,
seminários e pesquisas. Por meio da assessoria, busca-se contribuir para o fortale-
cimento dos movimentos sociais na construção de uma esfera pública democrática,
através da democratização das informações oriundas das investigações, relacionadas
às temáticas de interesse dos sujeitos coletivos. O assistente social deve ser um socia-
lizador de informações, desvelando com competência técnico-política as questões,
propostas e armadilhas que aparecem no cotidiano.
A partir das indicações pontuadas, considera-se que a assessoria às instâncias
públicas de controle democrático articulada aos movimentos sociais é um espaço
de trabalho que os assistentes sociais podem contribuir para o fortalecimento dos
sujeitos políticos na perspectiva da garantia e/ou ampliação dos direitos sociais, ou
seja, a emancipação política, tendo no horizonte a emancipação humana.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 117

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A REUNIÃO COMO DIREITO,
COMO ESTRATÉGIA E COMO
INSTRUMENTO NO SERVIÇO SOCIAL
Ana Maria de Vasconcelos

DOI 10.24824/978652515909.6.119-139

1. Introdução
A escolha dos instrumentos e técnicas a serem operados pelo assistente social
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está condicionada a referências ético-políticas e teórico-metodológicas do profis-


sional – explícitas ou implícitas –, as quais orientam o planejamento da atividade
profissional quando, ao utilizar a capacidade teleológica própria dos seres huma-
nos de antever os resultados desejados, nos colocamos como sujeitos da prática e
tornamos mais potente e poderosa nossa relativa autonomia e sua realização. Isto
posto, reafirmando a direção social anticapitalista e emancipatória contida no pro-
jeto do Serviço Social brasileiro, traço notas sobre reunião, objetivando desnudar
a importância desse estratégia/instrumento/espaço no cotidiano dos assistentes
sociais em busca de realização do compromisso com a humanidade e com a classe
trabalhadora expresso no projeto, considerando que nenhum instrumento pode ser
abordado isolado do projeto profissional/projeto de sociedade que orienta o assis-
tente social e do planejamento da atividade que orienta a definição dos caminhos
da prática, o que inclui definição de estratégias, ações, instrumentos de atuação e
sistematização, alianças etc.
Historicamente, os assistentes sociais são requisitados a atuar sobre/com indiví-
duos e/ou “grupos”, o que nos remete a dois dos nossos instrumentos técnicos funda-
mentais na comunicação que se estabelece entre assistentes sociais e trabalhadores/
usuários, como consequência da atividade profissional: a entrevista e a reunião1.
Antes de tudo, é preciso deixar claro que no contexto do Serviço Social, o
abordar entrevista nos conduz a pensar em indivíduos isolados e abordar reunião nos
conduz, quase que também mecanicamente, a pensar em “grupo”. Nesse sentido, é
preciso ressaltar como a noção de grupo, que atravessa o imaginário dos assistentes

1 Essas notas sobre reunião nada tem a ver com o “Serviço Social de grupos” como método do Serviço Social
tradicional, quando indivíduos isolados (Serviço Social de Casos) e os denominados “grupos” (Serviço
Social de grupo e comunidade) são tomados como objeto de controle/transformação/modificação, com
o objetivo explícito de manutenção do “bom funcionamento da sociedade capitalista” e “humanização” de
uma sociedade impossível de ser humanizada, estruturada que está na exploração da força de trabalho,
nas opressões de classe, etnia e gênero e na concentração de propriedade, riqueza e poder político.
120

sociais na história, tem nos levados a obscurecer a sociedade de classes, o que pode
estar mostrando que conservamos do “velho Serviço Social”, do qual partimos para
pensar e realizar práticas mediadas pelo projeto do projeto do Serviço Social, mais
do que gostaríamos.
“Grupo” é uma noção assimilada da psicologia e da sociologia que, a partir
de importantes e influentes estudos (a despeito de contribuições na apreensão do
movimento das relações sociais e da subjetividade humana no capitalismo), vem
favorecendo o obscurecimento da sociedade de classes e, atravessando a literatura do
Serviço Social, vem também alimentando os debates na profissão. Como podemos
aprender desses estudos que vêm orientando historicamente a formação e a atuação
dos assistentes sociais, o que fica e está ausente deles é a noção de classe. Como
mostra Mészáros (2015, p. 49), na sociedade do capital, no lugar de classe, temos a
vaga noção universal de “grupos”.

O resultado da adoção desse tendencioso “mínimo denominador comum” – através

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do qual os exploradores de classe capitalistas da classe do trabalho aparecem como
membros de uma “associação voluntária interessada no lucro”, e os trabalhadores
não aparecem em lugar nenhum – é a genericidade retórica relativa a “grupos”
que supostamente compõem a “sociedade nacional”.

Isso quer dizer que os segmentos da classe trabalhadora junto aos quais atuamos
– nas organizações socioassistenciais públicas e privadas – vêm sendo desarticula-
dos da perspectiva de classe, quando, em vez da denominação de trabalhadores e
trabalhadoras, são considerados, abstratamente, como grupos sociais autônomos que
passam a ser denominados como “comunidade”, família, vizinhança, vulneráveis, em
risco social, colaboradores, empreendedores etc., o que também deixa na sombra o
caráter de classe do Serviço Social e da atividade dos assistentes sociais, os quais são
requisitados pela burguesia e pelo Estado capitalista, desde a origem da profissão, a
atuar sobre a classe trabalhadora em busca de controle e manipulação, ora através da
ajuda, ora através da “atuação técnica qualificada”, objetivando um “bom funciona-
mento social” que garanta a exploração da força de trabalho necessária aos processos
de acumulação de capital e a manipulação e controle dos supérfluos para o capital.
Sendo assim, aqui abordaremos a atuação dos assistentes sociais junto a seg-
mentos da classe trabalhadora quando a escolha do instrumento reunião se torna
necessária e estratégica, mais ainda diante da recusa de grande parte dos assistentes
sociais em priorizar esse instrumento no contato com os trabalhadores. Escolha
estratégica significa que a reunião não é uma escolha tática que deve ser utilizada em
alguns momentos da prática profissional, mas uma escolha necessária e prioritária
que estruture a atividade dos assistentes sociais junto aos diferentes segmentos da
classe trabalhadora com os quais atuamos; atividade geralmente iniciada através de
atendimentos individuais (entrevistas) e coletivos (reuniões) com os trabalhadores/
usuários nas instituições privadas e do Estado capitalista. Essa é uma escolha que
reestrutura a prática do assistente social junto aos trabalhadores, na medida em que
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 121

a reunião em si funciona como força organizadora; ou seja, a reunião tanto organiza


como mostra a força que a organização tem e oportuniza a apreensão do caráter
de classe das demandas dos trabalhadores/usuários dirigidas individualmente às
instituições e ao Serviço Social.

2. A reunião como direito, como estratégia e como instrumento


no Serviço Social2
O direito de reunião e associação para qualquer sociedade não é uma coisa qual-
quer, na medida em que reunir-se e associar-se expressa a condição dos indivíduos
enquanto socialmente constituídos e expressa o direito de conversar, o que exige
a presença do outro/dos outros. Isso pelo fato de que a práxis tem como modelo o
trabalho que, na história, surge, se desenvolve e se realiza, em qualquer tempo, como
atividade coletiva. Como mostram Netto e Braz (2006, p. 34), no trabalho, “seu sujeito
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nunca e um sujeito isolado, mas sempre se insere num conjunto (maior ou menor,
mais ou menos estruturado) de outros sujeitos. Esse caráter coletivo da atividade do
trabalho é, substantivamente, aquilo que se denominara de social”.
A percepção da reunião como força organizadora vem sendo destacada ao longo
da história. No decurso da Revolução Francesa, seu valor como instrumento de orga-
nização e luta da classe trabalhadora não passa despercebido pela burguesia. Com a
derrota da ação revolucionária, seus líderes foram presos “e promulgaram-se leis que
proibiam reuniões populares e determinaram o fechamento de clubes democratas”
(Marx, 2011, p. 34, nota 8).
Ora, nos diferentes golpes de estado, atos e decisões dos dominantes na História,
as coisas não se deram de forma diferente, especialmente em se tratando de Brasil. No
episódio mais recente, nos direitos sequestrados nos 25 anos da ditadura civil/militar
iniciada em 1964, através de Atos Institucionais3, contraditoriamente, em nome de
“assegurar a autêntica ordem democrática”, temos que, em meio à autorização de
intervenções, cassação de mandatos políticos e muitos outros atentados à própria
democracia burguesa, fica proibido o direito de reunião. Historicamente – especial-
mente no capitalismo –, quem domina, necessita destruir os meios de autodefesa de
quem vai ser submetido à exploração, condicionada à opressão, dominação, con-
trole. Mas não podemos esquecer que são múltiplos os instrumentos de destruição
das formas de defesa individual e coletiva tendo em vista assegurar que contra o
poder econômico e político do capital não haja oposição. Para além da destruição

2 Recuperamos aqui reflexões iniciadas em 1982 e que podem ser acompanhadas no seu desenvolvimento e
aperfeiçoamento nas referências abaixo. Faço uma releitura, em especial, de parte do item 4.3: Capítulo 4,
de Vasconcelos, 2012. Um texto de base foi publicado em Horst e Anacleto; CRESS/MG, 2023. Disponível
em: https://cress-mg.org.br/wp-content/uploads/2023/06/Livro-CRESS-MG-_-A-dimensa%CC%83o-te%C-
C%81cnico-operativa-no-trabalho-de-assistentes-sociais-.pdf. Na falta de espaço para aprofundamento de
noções e argumentos, recomendamos a leitura de Vasconcelos, 2015.
3 Ver especialmente os Atos Institucionais nº 2 e nº 5. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm;
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-02-65.htm; Consulta: outubro de 2022.
122

dos sindicatos4, temos, dentre tantas outras estratégias, a cooptação dos partidos de
esquerda que, autotransformados em partidos eleitorais, estão esquecidos da luta
anticapitalista emancipatória e a cooptação de representantes da classe trabalhadora
em Conselhos, Comissões etc.
No contexto de mais farmácias e menos bibliotecas/livrarias, nos encontra-
mos submetidos a um “Sim às drogas, não às conversas”; sim à busca de soluções
individuais, não à busca de soluções coletivas; sim ao embotamento da consciência,
não à libertação. Isso porque, enquanto nos distraímos com drogas lícitas e ilícitas
e nos [aparentemente] isolamos, abdicamos do direito de conversar, que é por onde
brotam ideias, alternativas, esperanças com o resgate da importância da conversa
quando as pessoas se reúnem.
Na atualidade, ainda que como fruto do protagonismo dos trabalhadores e de
segmentos democráticos na luta de classes, o que está assegurado na denominada
Constituição Cidadã de 1988, como integrando os Direitos e Deveres Individuais e
Coletivos, no Art. 5º. -{o “direito de livre manifestação do pensamento” e a “invio-

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labilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas”, o
direito de reunir: ‘direito de fazer reuniões públicas, qualquer que seja seu objetivo,
sem armas, intervindo a polícia apenas para assegurar a ordem pública’}–, para
a maioria que tem a porta de casa aberta por um pontapé do Estado capitalista, o
direito, quando conhecido, parece poesia ou um mundo imaginário. Isso quer dizer
que não podemos ignorar que a importantíssima Constituição Cidadã, por mais que
possa significar certa garantia de regras na luta de classes, institucionaliza a explo-
ração da força de trabalho e a concentração de riqueza e de propriedade, através da
objetivação do que passou a ser denominando “sujeitos de direitos”, garantindo e
consolidando uma sociedade dividida em classes5. É essa realidade que nos impele
a utilizar como instrumento e justificativa das nossas ações a própria lei burguesa,
retirando e reiterando sempre o que ela própria assegura aos brasileiros, para além
de tantos outros, nos Artigos 6º e 7º, no plebiscito e no referendum, Título VIII ,
destacando os incisos do Artigo 5º relacionados ao direito de reunir e se associar
(XVI; XVII; XVIII; XIX; XX).
À vista disso, quando afirmamos a escolha da reunião como necessária, como
uma escolha estratégica, isso está posto como consequência da importância da reu-
nião para a vida em sociedade, principalmente na construção de homens e mulher
livres, autônomos, emancipados, ricos subjetivamente, na medida em que, em cada
sociedade, sejam garantidas condições emancipadas e emancipadoras de existência.

4 Os sindicatos se constituem como a mais odiada organização dos trabalhadores, entre a burguesia e seus
serviçais, principalmente os de “nível superior”, ainda que o sindicato, como instituição própria do capitalismo,
cumpra o papel de legalizar a disputa pelo preço da força de trabalho e o próprio controle dos trabalhadores,
quando suas lutas permanecem voltadas somente para a distribuição da pequena parcela da riqueza do
capital para o trabalho.
5 Não se pode negar que se o Artigo 5º diz respeito ao conjunto da população brasileira, os Artigos 6º, 7º e
Título VIII, por exemplo, têm endereço certo: a parte da sociedade a ser explorada pelo capital: a classe
trabalhadora constituída pelos operários, demais trabalhadores assalariados e os supérfluos para o capital.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 123

Como afirma Marx, “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas
necessidades. Ou seja, é a importância da reunião na e para a vida que condiciona
sua importância crucial na atuação do assistente social junto à classe trabalhadora.
Posto isto, como nos referencia o projeto do Serviço Social, para o assistente
social que pretende articular sua atividade profissional aos interesses e necessidades dos
trabalhadores, como caminho para a realização do seu compromisso com a humanidade
e com os trabalhadores, a reunião e a entrevista são utilizados, não na busca de apa-
rente solução para problemas de ordem psicológica e/ou social como requer o capital/
burguesia, mas como instrumentos de aproximação/comunicação/diálogo individual
e coletivo, o que pode resultar em condições psicológicas e sociais favoráveis para os
participantes, mediante apoio, orientação, acesso a conhecimentos, informações, bens
e serviços, mesmo diante de sua necessária negação como finalidade. Isso porque, é
exatamente esse espaço-tempo institucional que o assistente social pode aproveitar
para oferecer aos trabalhadores e trabalhadoras/usuários um espaço de debate, de
diálogo, onde, tendo como objeto de análise teórico-crítica suas manifestações e o
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contexto onde elas se dão, eles possam se colocar criticamente diante daquilo que o
capitalismo disponibiliza, oferece e fez deles (Ver Vasconcelos, 1997).
Na perspectiva do projeto do Serviço Social, os indivíduos não são tomados
como objeto de transformação psicológica e/ou social, o que exige do assistente
social a criação de espaços de atendimento individual e coletivo que tanto resga-
tem do movimento social práticas que aglutinem; que favoreçam a mobilização e a
organização; que oportunizem e favoreçam reflexão crítica, troca de experiências, de
vivências, de relações democráticas e horizontais, como possibilitem a identificação
de necessidades e interesses coletivos que expressem e articulem os interesses indi-
viduais – manifestados a partir das demandas dos trabalhadores/usuários dirigidas
individualmente às instituições e ao Serviço Social. Conectados às questões centrais
e relevantes para a classe trabalhadora e para a humanidade (o que exige do assistente
social teoria, ou seja, conhecimento da realidade), poderá vir à tona, dentre tantas
outras coisas substanciais, o fato de que não é o acesso a bens e serviços – o que
certamente contribui para manutenção da existência – que pode favorecer o protago-
nismo dos trabalhadores na luta de classes, mas a possibilidade do assistente social
contribuir na formação – desenvolvimento da consciência de classe-, mobilização e
organização da classe trabalhadora.
Isso significa que o assistente social participa com conhecimentos, informações,
questionamentos, sinalização de contradições, deixando claro que questionar não é
mostrar o que é proibido ou incitar a proibição. No processo de ética e teoricamente
favorecer a negação – aqui compreendida como uma das principais categorias do
método da teoria social de Marx – do que não favorece os próprios trabalhadores,
está embutida a esperança, quando encorajamos os trabalhadores a entender o que
se passa, consigo e à sua volta; encorajamos e favorecemos a busca de informações
e conhecimentos que desnudem o que está por detrás daquilo que é oferecido de
forma aparentemente fácil – não somente o acesso a bens e serviços, mas de solu-
ções fáceis, principalmente relacionadas à eliminação daqueles que somos levados
124

a compreender, não como diferentes, mas como inimigos, como vem acontecendo
com o ressurgimento da direita no Brasil e no mundo.
Assim, tanto os trabalhadores/usuários terão a oportunidade de aprender a essen-
cialidade de seu protagonismo nas lutas sociais (ao se verem e ou a serem conectados
a elas), para além da busca incessante e, na maioria das vezes, inglória de serviços/
recursos para manutenção da sua sobrevivência, como os assistentes sociais poderão
realizar seu compromisso com os trabalhadores objetivado no favorecimento da for-
mação, mobilização e organização da classe trabalhadora. Um processo condicionado
a permanente análise teórico-critica tendo em vista, numa espiral dialética, negar o
que desfavorece, conservar o que favorece, rumo a condições favoráveis de práticas
mediadas pelo projeto profissional.
O Serviço Social nesta direção não é uma psicoterapia e não se resume a acon-
selhamentos, apoio e alívio de tensão. Isso porque, na atenção aos trabalhadores/
usuários, o assistente social não tem como objeto, diretamente, a cura – seja de
doenças físicas e/ou mentais -, nem o trabalho das realidades internas dos indivíduos,

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como advogam os assistentes sociais que, abdicando do social presente nas demandas
dos trabalhadores, pleiteiam a Terapia de Família, a Terapia Comunitária, o manejo
dos conflitos na esfera das relações familiares. Outrossim, o assistente social não
tem o papel de “facilitador”6, quando, referendando a psicologização das diferentes
expressões da questão social, recusa e obscurece a existência das classes sociais e
principalmente a exploração da força de trabalho e das diferentes opressões – de raça,
etnia e gênero –, como próprias e necessárias ao desenvolvimento e manutenção da
sociedade capitalista. A psicologização da questão social por parte do assistente social
favorece o obscurecimento, para si e para os trabalhadores/usuários, da condição de
trabalhador oprimido e explorado no capitalismo através do assalariamento, o que
contribui mais para a confusão do que para o esclarecimento. Um caminho que, em
vez de iluminação e esperança, facilita a ambiguidade, a obscuridade, a imprecisão,
a dubiedade, o (auto)engano, a dúvida, a indecisão, em suma, a desorientação e a
submissão ao que está dado como natural na sociedade do capital.
Em sendo assim, na busca de realização do compromisso com a classe traba-
lhadora, como expresso no projeto do Serviço Social, o assistente social não busca,
prioritariamente, condições psicológicas ou físicas favoráveis – objeto/objetivo de
tantas profissões -, mas condições sociais necessárias e essenciais relacionadas ao
trabalho e à vida, as quais, no capitalismo, estão condicionadas à luta política coletiva
que necessita de correlação de forças potente e profícua, com relação aos interes-
ses e necessidades da classe trabalhadora. Como afirma Netto, a ““redefinição da

6 Se a tarefa do facilitador pode ser benéfica a uma prática conservadora, ela não tem relação nenhuma
com o perfil do assistente social referenciado pelo projeto do Serviço Social. Reivindicando neutralidade
e tarefas burocráticas de organização e facilitação de tarefas, esta velha novidade apropriada por tantos
profissionais na atualidade, o que requer do assistente social um papel de administração de conflitos e
criação de espaços favoráveis ao funcionamento social da sociedade do capital, em busca da garantia de
consenso e consentimento diante da exploração e das opressões, não guarda nenhuma relação com um
assistente social crítico, criativo e propositivo, rico ética e teoricamente, como requer o projeto do Serviço
Social brasileiro.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 125

democracia política”, cujos parâmetros não se esgotam no conjunto de direitos cívi-


cos tradicionais que, promovendo a generalização e a universalização dos institutos
cívicos, simultaneamente à ampliação do seu conteúdo, “situa-os no patamar de uma
participação social alargada que se exercita em todos os espaços da socialidade”
(Netto, 1990, p. 126, grifos nossos), desse modo, também, possível no Serviço Social.
Assim, enquanto para os analistas, psicoterapeutas, aconselhadores, terapeutas
de família, médicos nas suas diferentes especialidades, enfermeiros e alguns assis-
tentes sociais (realizando ou não cursos de terapia familiar), atingidos os objetivos
(extremamente importantes) de condições psicológicas e/ou físicas favoráveis, a tarefa
está cumprida, para os assistentes sociais compromissados com a classe trabalhadora,
a busca por condições sociais favoráveis para os trabalhadores na luta social é que
está em questão na operação das políticas sociais, busca condicionada ao protago-
nismo das massas trabalhadoras na luta de classes, com rebatimentos econômicos e
sociais, ainda que irrisórios, diante do desfinanciamento da políticas sociais. É nessa
direção que o instrumento reunião não é opcional, não é uma escolha ao acaso e nem
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dependente do gosto e/ou dificuldade do assistente social em “trabalhar com grupos”.


Na direção do projeto do Serviço Social, priorizar a utilização do instrumento reunião
torna-se uma escolha necessária e estratégica.
Assim sendo, no trato da “questão social”, é exatamente por ser um “pobre”
trabalhador “pobre” – material e espiritualmente -, que o atendimento aos trabalha-
dores e trabalhadoras nas instituições socioassistenciais públicas e privadas exige a
reunião, não no sentido de um atendimento acrítico e massificado, mas da criação de
espaços coletivos que permitam aos próprios trabalhadores captar e se defrontar com
o que há de coletivo nas suas demandas que, dirigidas às instituições e ao Serviço
Social como demandas individuais, obscurecem o caráter de classe dessas deman-
das. Demandas atendidas por um Estado que, reconhecido como “Estado Social”/
Estado assistencialista”, ao viabilizar políticas sociais que, se por um lado significam
a manutenção da vida – inclusive para lutar -, terminam por obscurecer o caráter de
classe do Estado capitalista e do próprio Serviço Social.
Ainda que tomadas individualmente pela maioria dos profissionais – tanto
os assistentes sociais como demais profissionais–, as demandas dos trabalhadores,
aparentemente individuais, nos remetem à busca de soluções para os sofrimentos
internos, individuais, na esperança do alcance da “felicidade pessoal” e mudanças
internas. Mas aos assistentes sociais, cabe o enfrentamento do sofrimento social,
fruto da organização social capitalista, quando a busca é por relações sociais que
desnudem, revelem o caráter e rejeitem as relações sociais que incitam e favorecem
o egoísmo, a manipulação, o sexismo, o individualismo, o racismo, a misoginia, a
homofobia, a despolitização, o consumismo, a falsa neutralidade .... Um estado de
coisas que, significando confronto com o capitalismo, requer, para além da petição
de princípios, ações teoricamente pensadas/antecipadas que apontem para proces-
sos de ruptura e transformação; ações que se frutifiquem em respostas concretas no
que tange à construção e à manutenção de uma correlação de forças que garanta
ganhos coletivos, o que, consequentemente, pode repercutir no sofrimento social, no
126

sofrimento individual, na subjetividade humana, onde a segurança de princípios e a


teoria torna-se fundante e indispensável. Desse modo, aqui fica clara a investida da
burguesia contra o Serviço Social, com a contestação das Diretrizes Curriculares da
ABEPSS e a aprovação das Diretrizes Curriculares do MEC para o Serviço Social,
em 1996, o que possibilitou o ensino do Serviço Social na modalidade EAD. Uma
realidade que vem exigindo dos nossos organismos de representação e da Universi-
dade pública, disponibilizar cursos/eventos/produção de conhecimento que atinja a
massa de assistentes sociais formados nessa modalidade.
As relações sociais solidárias, democráticas, que florescem na sociedade em
desenvolvimento em confronto com a sociedade do capital, ainda que só possam se
tornar hegemônicas numa organização social solidária, justa, livre, emancipada, fruto
de uma “comunidade dos indivíduos livremente associados”, como revela Marx,
na medida em que podem ser descobertas, desobscurecidas, podem ser exercitadas
numa participação social democrática e democratizante, também nos atendimentos
do Serviço Social. Certamente, nessa direção, o papel do assistente social não é o de

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“facilitador” – destacado entre as “novidades” apropriadas acriticamente por alguns
assistentes sociais –, na entrevista, na reunião, na Visita Domiciliar, na visita ao leito,
nem de um pesquisador que colhe dados que vão alimentar laudos e pareceres ou
sistemas de informação, mas daquele profissional/intelectual que, sustentado em uma
formação ética e teórica permanente, se põe tanto em uma reunião como em uma
entrevista como aquele que tanto fomenta a análise crítica daquilo que é relevante
na manifestação dos trabalhadores, como opera o acesso às políticas, orienta, apoia,
encaminha com segurança. Encaminhamento que requer romper com o círculo vicioso
de manutenção dos trabalhadores e trabalhadoras na rede de serviços do Estado
capitalista e das organizações privadas da burguesia, em favor da sua conexão com
os organismos que representem os interesses da classe trabalhadora – movimen-
tos sociais, partidos políticos, associações, sindicatos, Conselhos de Política e de
Direitos etc. – onde os trabalhadores podem contar com condições de se pôr, ai sim,
como segmentos organizados de classe, podendo vivenciar coletivamente tanto as
contradições que envolvem seu cotidiano, como a busca por enfrentamentos desse
estado de coisas, o que contém condições de potencializar a formação humana e a
organização de classe. Aqui sim, podemos nos referir como Iasi (2020, p. 40), a “um
momento de grupalização, de descoberta de uma força coletiva e da vivência de sua
potencialidade, de crítica dos limites de uma dada realidade e de busca de alternativas,
de descoberta de limites e de exigências, reivindicações”.
Quando o assistente social faz uma entrevista ou uma reunião e colhe dados
necessários para a confecção de um estudo social, laudo ou parecer social, ao não
dar oportunidade aos participantes, tanto de se voltarem criticamente sobre aquilo
que estão manifestando, como de participarem da elaboração daquilo que lhe diz
respeito e/ou vai decidir a sua vida, eles, trabalhadores/trabalhadoras, apartados da
sua condição de sujeitos do/no processo, são transformados em objeto de informação,
interditados que são de se questionarem a respeito daquilo que estão entregando
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 127

à instituição, via o assistente social.7 Para além da posse de bens materiais e/ou
acesso a um serviço ou submissão à lei do capital, fica claro aqui que somos nós,
os assistentes sociais que, mesmo assumindo como princípio e objetivo o compro-
misso com os trabalhadores, passamos a contribuir com a operação da interdição,
individual e coletiva, da necessária “posse8 do poder de tomada de decisão pelos
indivíduos sociais em um sentido substantivo, e não meramente formal, a respeito de
todos os assuntos de suas vidas” (Mészáros, 2021, p. 86). Posse do poder de tomada
de decisão pelos indivíduos sociais que condiciona a “socialização da participação
política e da riqueza socialmente produzida”; “a universalidade de acesso aos bens
e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão demo-
crática”; “o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discrimi-
nados e à discussão das diferenças” – e tudo mais que afirmamos como princípios
no Código de Ética do assistente social (1993). Diante disso, fica clara e evidente
a falsidade do “empoderamento” de indivíduos e pequenos grupos e do empreen-
dedorismo (que individualiza, responsabiliza e despolitiza), como também está em
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moda defender e objetivar, especialmente entre os assistentes sociais e partidos de


esquerda, no rumo de um anticapitalismo acrítico e conservador, que nós posiciona
cada vez mais distantes da vinculação do projeto do Serviço Social “ao processo de
construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe,
etnia e gênero” (CFESS, 1993).
Em sendo assim, se com a intervenção profissional no sofrimento psíquico
espera-se atingir as realidades internas dos indivíduos, cujo objeto central são com-
portamentos, emoções, sentimentos, desejos, no sofrimento social – resultado das
condições de vida e de trabalho na sociedade do capital –, muito além do acesso às
parcas e fragmentadas políticas sociais, está colocada a possibilidade – no lugar da
reprodução acrítica de relações sociais vigentes –, de o assistente social contribuir na
formação humana, na mobilização e organização que favoreçam aquela “participação
social alargada” necessária à posse do poder de tomada de decisão, o que contém
possibilidades de rebatimento no protagonismo coletivo dos trabalhadores na luta
de classes, forjando momentos de ruptura que possam impor, progressivamente – se
assim o desejar consciente e coletivamente os trabalhadores e trabalhadoras –, limites
ao capital e ao capitalismo.

7 São nossos levantamentos de dados em estudos sociais, preenchimento de cadastros etc. que vêm ali-
mentando sistemas que contêm informações extremamente relevantes para os trabalhadores, os quais,
geralmente, negligenciadas no planejamento das nossas ações e não democratizados/debatidos com os
maiores interessados, os próprios trabalhadores, são utilizados única e exclusivamente para a realização de
controle do Estado capitalista sobre o trabalho. Isso fica claro, por exemplo, quando o assistente social, no
âmbito do Judiciário, resume sua atuação à extração de informações e coleta de dados junto a indivíduos
e famílias para elaboração de laudos e pareceres que vão alimentar decisões de juízes, promotores na
aplicação da lei capitalista sobre o trabalhador/trabalhadora.
8 Para Mészáros (2021, p. 86), “o modo como as posses materiais são repartidas entre os indivíduos, bem
como pelas classes sociais, é necessariamente dependente de um conceito muito mais fundamental de
posse. E essa posse abrangente se afirma também como o poder capaz de distribuir a grande variedade
de posses materiais entre as pessoas”.
128

Mas a participação neste processo que contém possibilidades de favorecer a


classe trabalhadora não depende de boa intenção e da vontade de ajudar do assis-
tente social. Ela está condicionada à operação de um acesso a bens e serviços pelo
profissional que, superando a vontade de ajudar e a boa intenção, com clareza de
princípios éticos e teoria – ou seja, com segurança da direção social das ações e
com conhecimento da realidade – rechace, enfrente e combata a burocratização das
atividades que imobiliza e reprime assistentes sociais/demais profissionais e traba-
lhadores/usuários. Um processo que requer encaminhamentos técnico-operativos
mediados por informações/conhecimentos relevantes (teoria) necessários à realiza-
ção do acesso a bens e serviços como caminho para outra organização social, sem
exploração e opressão de classe, etnia e gênero, o que vai muito além da “realização
do acesso como direito social”. Ou seja, um processo de atendimento alimentado
com informações e conhecimentos que sustentem uma reflexão crítica das questões
relevantes manifestadas pelos trabalhadores, ou seja, daquilo que dá origem e define
os rumos de suas vidas.

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É preciso ressaltar que aqui não se trata somente da quantidade de informações
democratizadas – enquanto conhecimento adquirido pelo assistente social a respeito dos
temas relevantes contidos nas manifestações e demandas dos trabalhadores/usuários -,
mas, essencialmente, da qualidade e das formas de acesso à informação operadas pelo
assistente social. A torrente de informações e manifestações contidas nas entrevistas
e reuniões requisita do assistente social um papel ativo, critico, criativo e propositivo
– que confronta a neutralidade requisitada de um facilitador –, tendo em vista filtrar
o que é relevante para ser destacado para debate e reflexão críticas, quando cabe ao
assistente social, na entrevista ou na reunião, como ressaltamos em Vasconcelos, 1997,
dentre outras coisas: elaborar perguntas a partir das manifestações dos trabalhadores/
usuários; devolver perguntas que são dirigidas ao assistente social ou a outro partici-
pante; repetir o que foi manifestado pelo trabalhador/trabalhadora, para que possam
ouvir suas próprias afirmações; sumarizar e devolver manifestações/questões para o
indivíduo na entrevista ou para os participantes da reunião, propiciando instrumentos
e meios e criando condições de debate e reflexão críticos; usar de analogias e divisão
de questões para favorecer e colaborar com a reflexão; democratizar informações e
conhecimentos relevantes; sinalizar contradições, equívocos, preconceitos; observar
e captar a origem dos silêncios e garantir a participação no processo, com respeito às
diferenças, apontando para uma “participação social alargada”.
Assim, construindo as condições necessárias – cada vez mais pressionadas pelas
péssimas condições de trabalho dos assistentes sociais, condição próprias a todos
os trabalhadores no contexto de crise estrutural do capital – para a concomitância
do acesso aos direitos e reflexão crítica – o que está condicionado a uma prática
pensada, ou seja, uma prática planejada e avaliada nas suas consequências -, pode-
mos nos aproximar progressivamente da realização do compromisso dos assistentes
sociais com a humanidade e com a classe trabalhadora. Isso significa trazer para os
atendimentos do assistente social as questões relevantes da humanidade, em busca
de contribuir na superação de um movimento do capital que cada vez mais favorece
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 129

os processos de acumulação. A partir de prática planejada, o que exige estudos e


pesquisas, é que podemos avançar das afirmações abstratas da necessidade de um
assistente social crítico-criativo-propositivo, nos forjando como sujeitos de uma
prática que, permanentemente avaliada nas suas consequências (ver Vasconcelos,
2015, cap. 3), tendo em vista a distância que separa o planejamento da ação, ofereça
espaço/tempo institucional sustentado em experiências/vivências de relações sociais
sob bases democráticas, horizontais, onde flua informações, conhecimentos e crítica
necessárias à busca de realização substantiva dos direitos sociais, com difusão das
ideias fundamentais à radicalização democrática fundada na ampliação e universa-
lização dos direitos, o que confronta os interesses do capital, como sustentado nos
princípios do Código de Ética do assistente social.
É nessa direção que aqui retomamos a noção de “grupo”, não em substituição
a classe, mas como expressão do movimento dos trabalhadores que, na luta de clas-
ses, nas suas diferentes frentes de luta, se organizam em segmentos de classe que
se unem e se reúnem a partir do trabalho, do gênero, da orientação sexual, da etnia
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etc., os quais, sem cancelar a luta de classes, se mobilizam contra as investidas do


capital sobre o trabalho, em lutas que se universalizam na luta de classes. É assim que
podemos nos referir aos diferentes grupos e grupamentos9 de trabalhadores nas suas
lutas como um conjunto de pessoas interdependentes, uma “totalização em processo,
jamais acabada” que se universaliza na classe10, como podemos apreender em Sartre
(1979). Nesse sentido, os grupos não são estáticos, eles estão em construção perma-
nente, sendo a própria participação coletiva que dá aos participantes a dimensão do
grupo como força viva, revelando a força dos processos organizativos e a força que a
organização tem. Nessa construção permanente, os grupos/grupamentos, como parte e
expressão da classe trabalhadora, necessitam submeter à crítica permanente – refletir/
tematizar – as relações sociais que sustentam seu movimento, originadas no modo de
ser, pensar e viver capitalista, assim como submeter à crítica sua organização para
a realização das tarefas políticas, de lazer, de luta social, quando, neste processo,
podemos também dar nossa pequena contribuição; contribuição que tem início com
o conhecimento, reconhecimento, valorização e conexão com os movimentos sociais
e demais organismos de representação da classe trabalhadora, o que pode contribuir
ainda para frustrar a captura dos movimentos sociais e dos demais organismos de
representação dos trabalhadores pelo capital/capitalistas.
Neste processo, temos a formação de grupamentos como consequência das
requisições institucionais11, assim como por inciativa do próprio assistente social,

9 Com a noção de grupamento, chamamos a atenção para o fato de que nem sempre uma reunião de pessoas
com objetivos comuns resulta na formação de um grupo coeso e de longo prazo, como podemos observar
na escola, na família, no trabalho, no partido político, no sindicato, em diferentes movimentos sociais etc.
10 O mesmo se dá com relação à classe capitalista, com seus diferentes segmentos: urbano, rural, industrial,
comercial, financeiro; pequena e grande burguesia; burgueses homens, mulheres, hetero e homo; idosos,
adolescentes e crianças.
11 Em obediência à legislação, na política de Assistência Social, por exemplo, o assistente social reúne famílias,
com o objetivo de tanto apresentar o caminho da burocracia a ser percorrido para acesso a bens e serviços,
como, periodicamente, reúne aquelas famílias que precisam ser controladas com relação ao cumprimento
das condicionalidades impostas pela política e/ou participam dos programas institucionais. Ressaltamos
130

como os denominados “grupos de sala de espera”, os quais, mesmo guardando poten-


cial para o desenvolvimento de reflexões críticas, podem se reverter em perdas para os
trabalhadores, quando se resumem a cobrança de regras, orientações, aconselhamentos
baseados no senso comum e na experiência pessoal do assistente social, que tende,
sem teoria, reproduzir acriticamente o modo de ser e pensar capitalista.
É na perspectiva do projeto profissional que o espaço/tempo do assistente social
destinado aos trabalhadores na instituição pode se tornar um poderoso meio/ins-
trumento de veiculação de informações, conhecimentos e de reflexão crítica e de
participação social, o que pode favorecer que a teoria penetre as massas ao alimentar
e incrementar a formação, mobilização e organização dos trabalhadores/usuários, se
constituindo em força material que pode favorecer as lutas sociais emancipatórias.
Como vimos, neste processo, o papel do assistente social não é de “facilitador”,
mas é de um intelectual ativo, propositivo, crítico e criativo, com relação ao que é
manifestado pelos participantes, como vem sendo reiterado.
Desse modo, com segurança de princípios e conhecimento sobre a realidade
(teoria), tanto em uma reunião como em uma entrevista, o assistente social tem como

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tarefa criar condições e incentivar a análise, a crítica do que é manifestado individual
e coletivamente; possibilitar a revelação e o enfrentamento e o domínio dos precon-
ceitos e valores capitalistas presentes nos participantes, inclusive no próprio assis-
tente social; possibilitar a revelação e o enfrentamento dos conflitos intraclasse – de
gênero, geração, etnia, orientação sexual -, estabelecendo as mediações e conexões
necessárias com o conflito central na sociedade do capital – o conflito inconciliável
capital-trabalho, fruto da exploração da força de trabalho e da concentração de pro-
priedade, riqueza e poder político.
Nessa direção, o assistente social tem um papel decisivo na determinação dos
rumos da reunião/entrevista, o que ainda exige do profissional uma intervenção técnica
no manejo de subgrupos que se estabelecem no processo de atendimento; no incen-
tivo à cooperação e à solidariedade; no incentivo à liderança circular e democrática;
no respeito e na convivência com as diferenças que não estigmatizem. Isso porque,
estes são requisitos necessários e inadiáveis para que os trabalhadores, em confronto
com os interesses do capital, levem adiante a tarefa coletiva democrática e solidária
de formação/mobilização/organização na defesa de seus interesses e necessidades
individuais e coletivos, quando podemos dar nossa pequena contribuição no fortale-
cimento do protagonismo dos trabalhadores na luta de classes.
É comum o assistente social se manifestar preparado para realizar entrevistas,
mas não preparado para realizar reuniões. Ora, o assistente social parte dos mesmos
princípios e da mesma direção social na realização de uma entrevista e de uma reu-
nião. Por outro lado, independentemente de estar diante de um ou de um conjunto
de trabalhadores, o assistente social tem como objeto de atenção as expressões da
questão social. Desse modo, tanto uma entrevista como uma reunião que se resuma

que, como mostram nossos estudos, não é raro que o assistente social resuma sua tarefa na atenção às
famílias à operação da burocracia de constituição de reuniões, ao entregar sua coordenação a outro pro-
fissional – enfermeiro, psicólogo, educador etc. – abdicando do seu papel de trazer à tona e problematizar
o social presente naqueles processos.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 131

a perguntas e respostas pontuais ou a relatos de experiências sem fim (uma catarse


em que o papel do assistente social se resume a uma “escuta atenta e qualificada”)
não favorecem os trabalhadores nas suas demandas e nos seus interesses individuais
e de classe. O que quero ressaltar é que uma entrevista nunca pode ser considerada
como uma atividade mais fácil de ser coordenada pelo assistente social do que uma
reunião, na medida em que o que é essencial e substantivo em qualquer atividade
profissional não é o instrumento, mas a direção social – ética e teórico-metodoló-
gica – que orienta a utilização/manejo do instrumento. Desse modo, mesmo diante
de orientações claras de como manejar um instrumento – o que pode ser encontrado
em várias “manuais” que ensinam a fazer reunião e entrevista -, o que condiciona o
alcance dos objetivos é a segurança de princípios e conhecimento da realidade (ou
seja, as referências ético-políticas, teórico-metodológicas e técnico operativas) que
dão substância e conteúdo ao atendimento e asseguram a direção social da atividade
profissional, para além de atendimentos esvaziados de conceitos e ideias emancipa-
tórias, mas prenhes de ideologia dominante.
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Nesse sentido, o que diferencia uma entrevista de uma reunião no Serviço


Social, para além do objetivo de cada uma, é basicamente a quantidade de pessoas
envolvidas. A coordenação de uma entrevista ao envolver duas pessoas, aparente-
mente simplifica a coordenação do processo12 que é complexificada, na medida em
que uma reunião pode conter de 15 a 30 participantes e uma Assembleia – que no
fundo é uma reunião ampliada -, pode contar com mais de 100 pessoas. Indepen-
dentemente da situação e do instrumento, o papel do assistente social, a forma de
coordenar a atividade e o conteúdo veiculado no processo põe ao profissional as
mesmas exigências éticas, teóricas e técnicas.
Na luta de classes, os trabalhadores e trabalhadoras, como qualquer indivíduo
social na sociedade do capital, reproduzem relações sociais entre si, submetidos e
submissos (ainda que nem todos e nem sempre) às relações dominantes na socie-
dade capitalista, relações baseadas no mando, na obediência, no individualismo, na
competição, na disputa, no preconceito.... Dialeticamente, os momentos de partici-
pação social alargada, inteligente, instruída e informada, também produzem espaços
e vivências de resistência e ofensiva, solidários, democráticos, horizontais, quando o
exercício de relações sociais que contestam e confrontam as relações hegemônicas
na sociedade do capital dão visibilidade e concretude a outras formas de organização
social baseadas na livre associação de produtores, na democratização da riqueza
socialmente produzida, na liberdade, na igualdade, na justiça social, o que favorece
o desvelamento, a compreensão e o enfrentamento das diferentes relações sociais que
vicejam, germinam e se reproduzem em confronto na sociedade capitalista.
Ora, referenciados pelo projeto do Serviço Social, ao nos reunirmos com seg-
mentos da classe trabalhadora (através de entrevistas, reuniões, visitas domiciliares

12 Ressaltamos que coordenar um processo que envolve duas pessoas – a entrevista – favorece o coordenador
no sentido de, dentre outras coisas, recuperar as questões relevantes presentes nas manifestações do
trabalhador/trabalhadora, apontar e problematizar contradições etc., além de oferecer uma falsa segurança
diante daquele que institucional e socialmente é considerado hierarquicamente inferior: o trabalhador/usuário.
Ver Vasconcelos, 1997.
132

etc.) para dar respostas, individuais e coletivas às demandas da classe trabalhadora,


apresentadas por cada indivíduo isoladamente (respostas condicionadas às requisi-
ções do capital e do Estado capitalista, via instituições socioassistenciais públicas
e privadas), como sujeitos e/ou instrumento de dominação na luta de classes entre
capital trabalho, participamos ativamente, tanto da reprodução das relações sociais
capitalistas como contamos com oportunidades presentes na realidade de participar
da criação e exercício de relações socias que busquem superação da sociedade do
capital, podendo, a depender da direção social das nossas ações, condicionada a
princípios éticos e teoria, favorecer mais ao trabalho do que ao capital, como vem
nos iluminando Iamamoto, desde 1982. Tendo em vista buscar favorecer mais ao
trabalho que ao capital, mesmo não alterando, de início, o modo de participação nem
os atributos individuais, a presença simultânea e coletiva dos trabalhadores/usuários
nas atividades oferecidas pelo assistente social efetua uma alteração significativa nas
condições objetivas, não somente de participação na atividade oferecida, mas nas
condições objetivas que podem favorecer a formação, mobilização e a organização

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da classe trabalhadora. Para além disso, o espaço em que se reúnem, as informações
a que têm acesso e o profissional que os atende alcança muitos simultânea e alterna-
damente, ou seja, uma ação, um recurso, uma informação atinge e são vivenciadas
em comum no processo coletivo, o que tem potencial de expansão com a formação
de multiplicadores de informações, de instrumentos de indagação, instrumentos de
articulação e de crítica. Desse modo, informações, conhecimentos, instrumentos e
recursos que alimentam e enriquecem o atendimento de um trabalhador na entrevista
passam a atingir um número maior de trabalhadores na reunião, o que faz crescer a
escala das ações vivenciadas/utilizadas em comum.
Sendo assim, informações, conhecimentos, experiências, pressões, reivindica-
ções, críticas, denúncias, resistências, ofensivas, vivenciadas e realizadas em comum
com um assistente social crítico-criativo-propositivo, são potencializadas nos espaços
da reunião, seja porque enriquecem, ampliam e desenvolvem a participação indivi-
dual e coletiva – o coletivo em si, mostrando a força que a organização tem –, seja
porque amplia, vigora, potencia e politiza a participação dos trabalhadores/usuários e
o trabalho do assistente social. E este parece ser, de acordo com o projeto ético polí-
tico, o objetivo do Serviço Social e sua razão de ser: uma atividade profissional que,
como acontece com o próprio movimento de organização da categoria capitaneada
pelo Conjunto CFESS/CRESS/ABEPSS/ENESSO, aglutina, organiza, favorece a
solidariedade, a cooperação, a colaboração e o consenso. Não consenso entre desi-
guais, entre capital-trabalho, como nos é requisitado impor aos trabalhadores, mas
o consenso necessário ao protagonismo dos trabalhadores na luta de classes. Assim
podemos, com uma atividade profissional que dá visibilidade, valoriza e politiza o
espaço público, contribuir com a radicalização da democracia que, “enquanto socia-
lização da participação política e da riqueza socialmente produzida” – o vai muito
além da democracia burguesa que nos assegura votar de 4 em 4 anos – e como força
de pressão para a universalização de direitos, nos põe contribuindo na construção de
momentos de ruptura e de imposição de limites ao capital, em busca de superação
do capitalismo, muito além da sua impossível humanização.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 133

Nessa direção, a reunião, como espaço/tempo em que muitos participam organi-


zada e conjuntamente, a depender da qualificação ética e teórica do assistente social
e da forma como é planejada, coordenada e submetida permanentemente à avaliação
das consequências13, contem potencial de influenciar e trazer consequências favorá-
veis, não somente para os trabalhadores que participam do processo (o que inclui o
próprio assistente social), mas para a rede de organismos de representação da classe
trabalhadora (movimentos sociais, associações, sindicatos etc.), o que permite ao
assistente social, sem sair de uma instituição, extrapolar sua inserção institucional, ao
favorecer a gestão colegiada dos serviços, a presença do controle social na instituição,
a vinculação dos trabalhadores/usuários com movimentos sociais e seus organismos
de representação, tanto aqueles que desenvolvem ações com relação às demandas
dirigidas ao Serviço Social e à Instituição, como aqueles que empreendem lutas gerais
de interesse da classe14. O caráter politizante e formador – quando torna-se relevante
o caráter educativo da profissão que, a depender da direção social do profissional,
se põe como deseducativo – da democratização de conhecimentos e informações
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como instrumentos de indagação e crítica está exatamente no acesso coletivo ao


conhecimento crítico, na realização e ampliação dos direitos sociais garantidos na
legislação, aí sim, estes direitos adquirindo e adquiridos no seu caráter social, con-
tribuindo com a busca de generalização e universalização dos direitos, em contraste
com os direitos destinados e acessados de forma fragmentada, individualmente ou
por “grupos” eleitos, discriminados...
Dito isso, com a indicação da reunião como escolha estratégica pelos assistentes
sociais que buscam a realização do compromisso com os trabalhadores, não se trata de
incentivar a economia de recursos humanos institucionais – ainda que isto aconteça
–, na medida em que a reunião potencializa a força de trabalho institucional; aqui,
trata-se de favorecer a ampliação da consciência, a participação e a organização social.
Parafraseando Marx (1983, p. 260), não se trata aqui, apenas do aumento da força
de pressão individual por meio da cooperação, mas da criação de uma organização
social enquanto força de pressão que tem de ser, em si e para si, uma força de massas,
uma força que, mediada pela teoria, se torna força material. Diante disso, há que se
resgatar para a luta social o aspecto social do trabalho, na produção, utilizado pelo
capital única e exclusivamente para a acumulação.
Continuando com as indicações de Marx sobre o processo de produção capi-
talista, poderíamos afirmar que a força de pressão da classe trabalhadora sobre o
capital/burguesia está condicionada, não pela consciência e capacidade do trabalhador

13 Reiterando, para aprofundamentos dessa questão, sugerimos a leitura de Vasconcelos, 1997, 2015 e 2016.
14 Para Netto “trata-se de postular e de construir uma democracia de massas que se, desde já, não pode
ferir imediata e medularmente o caráter de classe do Estado constituído, é organizável de baixo para
cima, combinando a intervenção instituída com a instituinte” (Netto, 1990, p. 126). Nesse sentido, cabe
aos assistentes sociais interessados, assessorados e favorecidos pelos seus organismos de representa-
ção (Conjunto CFESS/CRESS/ ABEPSS/ ENESSO), o levantamento dos movimentos sociais, sindicatos,
partidos, representativos dos interesses dos trabalhadores e trabalhadoras, tendo em vista romper com o
círculo vicioso de encaminhamento interinstitucional público e privado, assim como identificar no movimento
social organismos que realmente se articulem com pautas que visem a superação do capitalismo.
134

individual, mas “da nova potência de forças que decorre da fusão de muitas forças
numa força global”. Assim, o mero contato social, ao provocar nos trabalhadores,
emulação e excitação particular dos espíritos vitais (animal spirits), pode favorecer
a ampliação da consciência de classe, de forma que a participação de uma dúzia de
trabalhadores/trabalhadoras em uma reunião, durante 2 horas, pode potencializar o
acesso a conhecimentos, informações, instrumentos de indagação e crítica, vivência
de relações solidárias, de cooperação e troca de experiências, muito mais do que
ocorreria com 12 trabalhadores/trabalhadoras sendo atendidos de forma isolada,
mesmo contando com uma hora para cada um. Ora, a luta social é complexa e árdua
e a participação coletiva permite distribuir as diferentes tarefas entre as diferen-
tes cabeças e forças a partir das experiências e possibilidades de cada trabalhador
envolvido, fortalecendo ao mesmo tempo cada indivíduo e o conjunto, o que agiliza
a realização das tarefas e potencializa e reforça a pressão coletiva de imposição de
limites ao capital.
É neste processo que o assistente social pode democratizar/disponibilizar, para

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os segmentos da classe trabalhadora que buscam as instituições socioassistenciais,
conhecimentos, informações e instrumentos de crítica e de organização social, adqui-
ridos na formação graduada e que diante do movimento frenético da realidade social
e da complexidade da formação de um intelectual crítico-criativo-propositivo na
sociedade, exige formação permanente. Deste movimento, como vimos, faz parte
a produção de conhecimentos pelo profissional – a partir de pesquisas, análises –,
a sistematização de conhecimentos, informações e dados, a partir de sua inserção
privilegiada15 no sistema público e privado e da sua própria condição de intelectual,
o que potencializa sua inserção na instituição, favorecendo que o conjunto de assis-
tentes sociais do qual é parte, também possa usufruir “da nova potência de forças
que decorre da fusão de muitas forças numa força global”.
Neste processo, se consideramos de suma importância o trabalho em equipe
– multi e interprofissional –, há que se dar a mesma importância na constituição do
Serviço Social como equipe. Diante disso, nos perguntamos: o conjunto de assisten-
tes sociais em uma instituição se põe no espaço institucional como um conjunto de
indivíduos que trabalha em um mesmo espaço ou como integrantes de uma equipe
que atua fundada em planejamento da inserção no espaço institucional e da atividade
profissional – o que exige projeto institucional do Serviço Social? Eles se constituem
como equipe através de um exercício profissional articulado junto aos usuários, atra-
vés da reciprocidade — o que implica troca, ampliada pela reunião — e interação
entre seus membros?
Buscando responder afirmativamente a essas e tantas outras questões, é que
podemos participar da construção de condições de superação de práticas conservadoras

15 A condição de profissional de nível superior do assistente social resulta em possibilidades concretas de


acesso/consultas a arquivos institucionais, programas, projetos, levantamentos estatísticos, propostas,
resoluções, recursos institucionais e dados referentes ao trabalhadores usuários, disponibilizados em sis-
temas, sites, plataformas, que revelam suas condições de vida, saúde, trabalho, cultura etc., dados que
frequentemente contribuímos na coleta, mas não os consideramos essenciais no planejamento das nossas
ações nem como de relevância a serem democratizados com os próprios trabalhadores/trabalhadoras.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 135

do sistema do capital, assim como de rompimento com a relação sujeito/objeto, na


relação com os trabalhadores/usuários, que somos instados a reproduzir, a partir das
requisições institucionais para os assistentes sociais, o que requer a busca permanente
de romper com relações sociais dominantes que apresentam o assistente social como
aquele que pensa e o trabalhador/usuário (individual e coletivamente) como o objeto
a ser estudado, orientado, transformado, ajudado, modificado, controlado, manipulado
..., quando não, assistido, ajudado. Uma superação e rompimento condicionados ao
exercício de relações democráticas, educativas, solidárias, onde se torne possível a
vivência e o exercício de ruptura com resquícios de subserviência e autoritarismo
resultantes de um processo de socialização capitalista; vivência e o exercício de crí-
tica e enfrentamento de conflitos, preconceitos, contradições, de democratização de
conhecimentos e informações relevantes e necessários a um processo que assegure
uma correlação de forças institucional e social favoráveis à classe trabalhadora.
Nessa direção, podemos afirmar que não cabe aos assistentes sociais – como
temos observado através de estudos e pesquisas da prática dos assistentes sociais16,
por exemplo, em setores de recursos humanos, nas empresas, nas ONGs, nos “traba-
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lhos comunitários” etc.- a realização de reuniões catárticas e esvaziadas de conteúdo


relevante, principalmente, por meio de “dinâmicas de grupo” que atravessam a vida
dos trabalhadores/usuários sem que eles tenham consciência e controle do que está
ocorrendo, impedidos que ficam de utilizar o tempo de vida que disponibilizam, na
instituição/Serviço Social, para uma reflexão crítica das questões relevantes para a
classe trabalhadora e para a humanidade. São reuniões entremeadas por dinâmicas
de grupo que amiúde resultam (sem que os próprios assistentes sociais tenham, com
frequência, consciência das suas consequências17) na manipulação de comporta-
mentos e informações, em controle, em manipulação de dados/histórias pessoais e/
ou coletivas. Assim, são reuniões que, a partir de condições propícias – geralmente
criadas por dinâmicas de grupo e de boa intenção e/ou compaixão por parte do assis-
tente social – resultam em circunstâncias em que os trabalhadores e trabalhadoras
desnudam suas histórias, comportamentos, valores, desejos, segredos, compulsiva e
compulsoriamente, sem consentir, pretender, demandar, perceber e/ou protestar. Um
contexto que, impossibilitando retorno crítico sobre aquilo que veio à tona através
da dinâmica de grupo, favorece a reprodução do consenso e do consentimento, a
assimilação de comportamentos, valores e princípios e informações de forma acrítica
e/ou compulsória e, assim, contrários aos interesses e necessidades individuais e de
classe. O constrangimento, a manipulação, a assimilação acrítica de princípios e valo-
res ocorrem em meio a trabalhadores que, distraídos do que é substantivo e relevante

16 Desde 1979, desenvolvo pesquisas junto a assistentes sociais objetivando contribuir na busca de práticas
mediadas pelo projeto do Serviço Social brasileiro. A continuidade dessa investigação se dá, desde 2002,
através do NEEPSS (Núcleo de Estudos, Extensão e Pesquisa em Serviço Social/FSS/UERJ, que conta
com vasto material empírico, que referencia este texto.
17 No contexto do projeto do Serviço Social brasileiro, uma prática planejada e avaliada nas suas consequências
exige um complexo processo de planejamento, sistematização e análise teórico-crítica, o que vai muito além
das manifestações de agrado ou desagrado dos trabalhadores sobre aquilo que realizamos. Diante disso,
propomos em Vasconcelos, 2015, capítulo 3, um Eixo de Análise da prática que busca problematizar essa
questão junto aos assistentes sociais e à categoria.
136

para eles, para a classe e para a humanidade, sentem-se “felizes” e gratos, contagiados
que ficam pelo clima agradável criado pelas dinâmicas de grupo e pelo “atendimento
respeitoso” dispensado pelo assistente social, um profissional de nível superior que,
mesmo na condição de pertencente à classe trabalhadora, é o representante da auto-
ridade institucional, ao fim e ao cabo, representante do capital/capitalistas.
É assim que um instrumento tão poderoso e rico para os assistentes sociais e
para a classe trabalhadora (um instrumento que agrega e favorece a organização;
um instrumento que reúne e une o que está disperso e fragmentado; um instrumento
tão poderoso que é garantido na lei maior do país como direito fundamental de todo
brasileiro e brasileira; um instrumento que expressando a união favorece a solida-
riedade de classe), quando é utilizado como um fim em si mesmo, ou seja, apartado
do fundamental instrumento teórico-crítico e de objetivos emancipatórios, revela-se
como espaço/tempo de manipulação e controle.
Em suma, operadas pelos assistentes sociais (frequentemente em conjunto com
outros profissionais de nível superior, quase sempre inadvertidamente diante da fra-
gilidade ético-política e teórica dos profissionais), reuniões reduzidas a aplicação de

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dinâmicas de grupo e/ou transformadas em palestras acabam por facilitar a exploração,
a manipulação e a opressão dos trabalhadores e trabalhadoras, fortalecendo o poder
do Estado capitalista e das instituições privadas sobre o trabalho, o que promove
não somente o rebaixamento do protagonismo dos trabalhadores na luta de classes,
mas a manipulação, controle e dominação das massas trabalhadoras, para além de
responder a exigências outras relativas às requisições institucionais.

Considerações finais
Enfim, o que fica claro com estas notas é que é impossível abordar um instru-
mento sem que se faça menção ao papel do sujeito da ação profissional e ao conteúdo
ético e teórico que o referencia e que ele veicula, o que nos remete a abordar o Serviço
Social, sua direção social, a organização e o planejamento da atividade profissional
– do que faz parte a definição de instrumentos de atuação e sistematização, tendo
em vista a análise teórico crítica de um processo que tem condições de favorecer a
superação de práticas conservadores no Serviço Social e nas diferentes instâncias
da vida social.
Outra questão que considero relevante destacar é que, em busca de realização
do compromisso dos assistentes sociais com a classe trabalhadora e com a humani-
dade, a atribuição central dos assistentes sociais não está centrada no planejamento
e na gestão das miseráveis políticas sociais miseráveis, pensadas e comandadas pelo
Estado capitalista, sem a participação dos trabalhadores, ainda que garantida em lei,
políticas que, ainda que necessárias aos trabalhadores – em alguns momentos fun-
damentais – , no limite, contribuem para diminuir a pobreza e a miséria. Em busca
de realização do nosso compromisso expresso no projeto do Serviço Social, tendo
como pressuposto o caráter educativo da profissão, é reunidos com e junto aos traba-
lhadores que poderemos contar com alguma possibilidade de participar e favorecer
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 137

a formação, a mobilização e a organização da classe trabalhadora; de estabelecer


relações e conexões dos trabalhadores/usuários com os movimentos sociais e demais
organismos que os representam, objetivando incentivar e favorecer o deslocamento
das lutas para o terreno extraparlamentar, como insiste Mészáros (2015). De quebra,
podemos contribuir para frustrar a captura, pelo capital, das lutas populares, processo
que alimentamos ao ignorar essas lutas no cotidiano da prática, o que contribui,
mesmo que indiretamente, para sua fragmentação e desidratação.
Desse modo, o trabalho do assistente social com indivíduos e grupos cen-
tra-se prioritariamente na análise e compreensão crítica da realidade social que se
desdobra em encaminhamentos e ações diversas e não na busca direta de solução
para problemas de ordem interna, comportamental e/ou psicológica; problemas
que podem ser atingidos de forma indireta como consequência da qualidade das
ações desenvolvidas. Não que a realidade interna dos indivíduos não necessite ser
considerada, nem influencie nestes processos, mas ela não é objeto para o assistente
social, ainda que, em determinadas situações – emergências, CTIs, doenças graves
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–, se faça mais presente o apoio e o alívio de tensão. É a partir da análise das pos-
sibilidades dos espaços ocupados pelo assistente social – o que está condicionado
ao planejamento da prática – que se pode avaliar o limite de cada um, o que torna
claro o nível de abrangência das ações profissionais em um CTI ou em um Posto
de Saúde, por exemplo; em uma empresa ou em uma entidade filantrópica; em uma
penitenciária ou em uma Vara de Família...
Nessa direção é que podemos compreender os espaços do Serviço Social “ser-
vindo mais ao trabalho do que ao capital”, na medida em que como espaços de
relações sociais, políticas, culturais e valorativas, sem abandonar o papel que temos
na operação de políticas e serviços socioinstitucionais, podemos favorecer diferentes
segmentos da classe trabalhadora a partir/através de práticas distintas da lógica da
mercadoria; práticas que tanto resgatem meios de mobilização e organização como
os favoreçam, desse modo, podendo resultar em nossa pequena contribuição ao
protagonismo dos trabalhadores na luta de classes.
Nesse processo, não podemos menosprezar o fato de que a transformação do
trabalho como mera mercadoria, com a subsunção real do trabalhador assalariado ao
capital no capitalismo, todos nós – burguesia e seus asseclas, trabalhadores, desem-
pregados e supérfluos para o capital – somos compulsoriamente formados/socia-
lizados e levados a reproduzir o modo capitalista/classista de ser, pensar e viver.
Mas, mesmo assim, das lutas sociais e da classe trabalhadora ao longo da história,
emergem práticas emancipatórias – democráticas, transformadoras, libertárias – que,
para se converterem em lutas transformadoras que superem a posição de resistência
e imposição de limites ao capital e ao capitalismo, necessitam, além de identificadas,
serem fortalecidas, democratizadas, universalizadas, vivenciadas, processo que não
se dá por desejo e boa intenção porque está condicionado a uma exigente formação
acadêmico profissional e humana, que favoreça uma análise social e uma prática
fundada na segurança de princípios emancipatórios e na teoria social que possibilite
uma análise social fundada na crítica da economia política, referenciada por Marx
e pelos marxistas.
138

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EXPRESSÕES DO CONSERVADORISMO
CONTEMPORÂNEO NO
SERVIÇO SOCIAL
Ana Luiza Avelar de Oliveira

DOI 10.24824/978652515909.6.141-157

1. Introdução
O debate sobre o conservadorismo no Serviço Social não é um tema novo,
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mas considera-se que na contemporaneidade ganha novos contornos e dimensão,


ampliando sua expressão na profissão. Nesse sentido, torna-se mais do que necessário
compreender esse fenômeno que, apesar de não ser novo, vem apresentando novas
facetas e representantes1.
O conservadorismo não é um desvio cognitivo ou moral, fruto de uma educação
malfeita ou de preconceitos vazios de significado, mas sim deve ser compreendido
como uma das expressões da consciência reificada, a partir dos termos de Lukács,
ou do chamado senso comum, a partir de Gramsci. Ou seja, o conservadorismo deve
ser compreendido como uma expressão da consciência imediata que prevalece em
determinada parte da sociedade e que manifesta, mesmo que de forma desordenada
e bizarra, os valores que têm por fundamento as relações sociais (Iasi, 2015).
Dessa forma, compreende-se que o conservadorismo não é o apego às tradi-
ções ou aos costumes, mas sim, que deve ser considerado como um fenômeno que
surge no contexto da moderna sociedade de classes, a partir das ideias de Burke em
reação à Revolução Francesa, com defesa dos valores aristocráticos e com um traço
anticapitalista. É possível afirmar também que o pensamento conservador de Burke é
irracionalista e reacionário, atuando numa perspectiva restauradora da ordem feudal.
Em seu processo histórico de desenvolvimento, observa-se que a partir de 1848
esse traço anticapitalista vai reduzindo e o pensamento conservador vai ganhando
outras feições. Considera-se então que este vai variando ao longo da história, a
depender da configuração da luta de classes, para cumprir a função de ser o modo
de pensar compatível com determinado momento econômico. Para além disso, é
possível observar também variações no pensamento conservador, de acordo com as
realidades nacionais dos países.

1 Baseado em: OLIVEIRA, Ana Luiza Avelar de. Reatualização conservadora: o conservadorismo con-
temporâneo no serviço social e a disputa por hegemonia no Brasil na atualidade. Tese (Doutorado em
Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
p. 421. 2021.
142

Segundo Iasi (2015), o conservadorismo sempre esteve presente nas relações


que constituem o cotidiano e na sua consciência imediata, que é delineada, segundo
Lukács, pelos aspectos da imediaticidade, da heterogeneidade e da superficiali-
dade extensiva. Nesse sentido, o pensamento conservador não se preocupa se antes
defendia uma ideia e agora defende outra, tendo em vista que não é feita a conexão
entre essas dimensões – para o pensamento conservador só existe o agora, um pre-
sentismo exacerbado.
Essa característica remete a outros dois traços do próprio pensamento conser-
vador: a preponderância das paixões e o irracionalismo. Por não existirem determi-
nações mais profundas para além da aparência dos fenômenos, bem como história
que articule formas passadas aos presentes, tudo se resume a reações instintivas e
animais, às paixões. Nesse sentido considera-se que o conservador é por natureza
violento e irracional (Iasi, 2015).
O conservantismo se configura então de modo estrutural, objetivo e dinâmico,
vinculado historicamente a determinadas situações. O pensamento conservador é

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tomado, portanto, de forma coerente em relação às situações históricas que sofrem
alterações ao longo do tempo.
Souza (2015) aponta quatro pontos na posição do conservadorismo moderno
em relação ao conservadorismo clássico. O primeiro deles indica que esse novo
conservadorismo dificilmente assume uma filiação teórica ou tradição ideológica,
atribuindo a estas uma ideia pejorativa, de dogma. O segundo ponto sinaliza que os
conservadores contemporâneos valorizam o presente, não são nostálgicos de formas
sociais passadas. O terceiro ponto trata de uma aproximação com o pragmatismo,
ou um acentuado empirismo, tendo em vista que esses movimentos valorizam “o
possível”. Por fim, indica que o conservadorismo na atualidade não significa oposição
a qualquer tipo de mudança, mas a algumas, mais precisamente aquelas que possam
ser desencadeadas pelas classes dominadas.
Considera-se então que o conservadorismo na contemporaneidade se apresenta
como defensor da ordem capitalista tardia, assim como em sua gênese, se apresentou
como defensor da ordem burguesa ou de restauração do antigo regime, conforme
análise de Burke. No momento atual, as principais referências do pensamento conser-
vador no Brasil concentram-se nos Estados Unidos e na Inglaterra, vertentes que se
apresentam como centrais para as análises políticas no país. Neste sentido, a fim de
se analisar a influência do pensamento conservador no Serviço Social nos dias atuais,
torna-se necessário, primeiramente, resgatar alguns elementos do debate conservador
contemporâneo anglo-americano e brasileiro, para, posteriormente, proceder uma
análise dos impactos no Serviço Social brasileiro.

2. O debate sobre o conservadorismo contemporâneo na corrente


anglo-americana
O pensamento conservador nos Estados Unidos, desde a Guerra Fria, apresentou
um programa anticomunista e antirrevolucionário. De acordo com Vidal (2013, p.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 143

264), a partir da década de 1950, a desintegração da família tradicional, o New Deal


e a violência se tornaram marcas no país. Nesse contexto, a ciência tomava lugar
de valores tradicionais, como a fé e a moralidade, e os autores conservadores nor-
te-americanos consideravam que tanto a ciência quanto à modernidade não tinham
efeitos benéficos para a sociedade, sendo necessária a busca dos valores tradicionais
norte-americanos, responsáveis por uma sociedade moral. O que unia os autores
nessa tradição era “no plano político, a aversão ao comunismo; no plano econômico,
a aversão ao Keynesianismo e às políticas liberais de bem-estar social; e no plano
social, a busca pela retomada da religião e de valores tradicionais norte-americanos”.
Vidal (2013) indica três pilares do pensamento conservador estadunidense que
se estruturou a partir de 1950, sendo o primeiro deles referente à política econômica,
com uma crítica às políticas keynesianas e ao Welfare State, área na qual os princípios
conservadores, como a “defesa de um governo limitado, segurança para a propriedade
privada e ênfase na liberdade econômica”, são mais homogêneos e representativos. O
segundo pilar apontado pela autora, a política externa, não deveria ser, na percepção
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dos autores conservadores, nem isolacionista, nem intervencionista, não lhe cabendo
intervir para impor um modelo de democracia, mas sim para instaurar a liberdade. Já
as guerras seriam permitidas, desde que norteadas por questões de interesse nacional,
e não por questões materiais. São considerados assim como princípios do pensamento
conservador nessa área a defesa do país e das tradições; a prudência; a tolerância e
a pluralidade; e a crença nos valores cristãos.
O último pilar que sustenta o pensamento conservador estadunidense refere-se
aos rumos tomados pela sociedade. As políticas liberais, baseadas na noção de direitos
humanos, o enfraquecimento das tradições e do papel da Igreja, seriam considerados
por eles como os responsáveis por uma sociedade corrompida. A percepção desses
autores a respeito da imigração, do aborto e da família deve ser entendida a partir
da relação com a religião e da tradição. A família, a comunidade local e a igreja
desempenham para eles papel fundamental para manutenção da ordem e da moral,
uma vez que possuem a autoridade e a hierarquia necessárias, para além da proteção
às liberdades individuais.
Um dos autores responsáveis pela reestruturação do pensamento conservador
no século XX é Russel Kirk. Segundo análise de Catharino (2014), Kirk possui, para
o pensamento conservador norte-americano, a mesma importância que Burke tem
para a formação do conservadorismo britânico.
Segundo Catharino (2014, p. 50), a proposta conservadora de Kirk deve ser
considerada como um “conjunto de conselhos prudenciais que nos alerta para os
riscos de desconsiderarmos totalmente os valores e costumes testados historicamente
pela tradição em nome da arrogância racionalista de erigir uma nova ordem social a
partir dos caprichos humanos”.
Durante toda sua obra, Kirk promove uma cruzada contra os erros ideológicos da
modernidade, que poderiam ser descritos por ele como o conflito entre três posturas
distintas nos últimos três séculos. A primeira delas seria a reacionária, que possui
uma visão idealizada do passado, buscando defender as tradições contra qualquer
forma de mudança. A segunda postura seria a liberal ou progressista, que baseada
144

em noções abstratas sobre a natureza do homem e da sociedade, ideologicamente vai


contra os costumes e as instituições, acreditando que a revolução é a melhor forma
de se implantar as mudanças necessárias. Nesta, incluem-se tanto os esquerdistas
moderados, liberais modernos e sociais-democratas, quanto os esquerdistas radicais,
diferentes tipos de socialistas e comunistas. A mentalidade conservadora seria para
ele a terceira postura, que busca preservar os princípios fundamentais apreendidos
pela experiência histórica e aceita mudanças culturais ou sociais inerentes à dinâmica
histórica, desde que orientadas pela virtude da prudência e feitas a partir de reformas
gradativas (Catharino, 2014).
Na crítica ao pensamento progressista, Kirk (1960) afirma que este tende a ata-
car a harmonia consagrada da sociedade a partir de quatro pontos. O primeiro deles
refere-se à “perfectibilidade” do homem e ao ilimitado progresso da sociedade. O
segundo item diz respeito ao desprezo pelas tradições, prezando-se o determinismo
materialista em vez de se privilegiar a sabedoria histórica. A partir dessa análise,
considera que a religião formal é rejeitada e uma variedade de sistemas anticristãos

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são ofertados como substitutos. O terceiro ponto refere-se ao contínuo nivelamento
político, que, segundo a análise do autor, condena-se a ordem e o privilégio, há a
exaltação da democracia total; por fim indica o desejo utópico pelo nivelamento
econômico e o fim das desigualdades.
Outra referência na atual discussão do conservadorismo no mundo é o conser-
vadorismo britânico. Segundo Garschagen (2015), o que o distingue é que mesmo
que sua ideologia e religião sejam ancoradas em preceitos eternos, sua abordagem
prática permanece empírica, ou até mesmo experimental, em busca de uma síntese
entre o antigo e o novo. Destacam-se, a partir da influência no Brasil, as obras de
Russel Kirk, Michael Oakeshott, Roger Scruton e Theodore Darymple.
O pensamento de Oakeshott (2016a; 2016b) possui uma tendência irracionalista,
aproximando-se das ideias pós-modernas de negação dos princípios da modernidade.
Em suas análises sobre a política, princípios racionais como a liberdade, a justiça
ou a igualdade não estão presentes, o que permite considerar que não há julgamento
político racional em sua análise, apenas o debate sobre princípios abstratos. Consta-
ta-se, nas problematizações colocadas pelo autor, uma aproximação ao pensamento
de Durkheim, como ao exemplificar que uma das funções do governo é manter a
paz entre os súditos, promovendo ajustes a fim de se evitar grandes conflitos. Apesar
dessa aproximação, nas obras analisadas do autor percebeu-se que este quase não
utiliza referências a outros autores ou obras para subsidiar suas ideias, o que pode
indicar uma tentativa de trabalhar somente com seus próprios termos. Constatamos
que na maioria das vezes a referência a autores e obras ocorre quando voltada para
a crítica ao racionalismo e às ideias destes.
Analisa-se nesse sentido que o pensamento de Oakeshott (2016a; 2016b) per-
tence a uma corrente conservadora irracionalista, que considera que todos os seres
humanos têm tendências conservadoras, tendo em vista que, para ele, todo e qualquer
apego às tradições torna um sujeito conservador, que busca construir, em sua con-
cepção, uma obra sem conceitos ideológicos, que para ele são conhecimentos falsos
produzidos pelos racionalistas, com o objetivo de manipular a verdade.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 145

Outro conservador britânico que tem se tornado referência na discussão é Roger


Scruton. Assim como Oakeshott, busca construir referências para a discussão sobre
o conservadorismo a partir da elaboração de princípios e argumentos, abordando
diversos temas da vida social. Em suas análises, é possível identificar que Scruton
referencia-se na obra de Oakeshott, mais precisamente quando trata da disposição
conservadora, termo cunhado por este. Percebeu-se também uma referência ao fun-
cionalismo de Durkheim, quando o autor compara a sociedade a um organismo e
quando indica que algumas mudanças devem ser feitas a fim de se preservar o bom
funcionamento da sociedade.
Para Scruton (2015) o conservadorismo implica a tentativa de se perpetuar
um organismo social em períodos de mudanças sem precedentes, e tem o objetivo
de encontrar conceitos e crenças que possam ser enunciados em termos modernos,
uma perspectiva que é muito sóbria e muito séria para que possa ser considerada
meramente moderna.
Um dos pontos da análise do autor refere-se à diferença entre liberalismo e
conservadorismo. Em sua análise, ela pode ser observada no valor da liberdade
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individual, que para os conservadores não é absoluto, mas sujeito a um outro valor
mais elevado que é a autoridade do governo existente. Nesse sentido, Scruton (2015)
considera que o conservadorismo não está relacionado à liberdade, mas sim à auto-
ridade, visto que a liberdade dissociada da autoridade não seria útil para ninguém,
nem mesmo para quem a detém.
Outro teórico do pensamento conservador de especial relevância, nos últimos
anos, é Theodore Dalrymple. Diferentemente do observado nos outros autores con-
servadores contemporâneos, Dalrymple (215a; 2015b; 2015c) não se identifica em
sua obra como conservador, no entanto, é possível encontrar nela alguns elementos
centrais do pensamento conservador. Apesar de o autor se propor a realizar uma
análise racional, o que foi possível constatar é a existência de uma obra construída
a partir de sua experiência pessoal e sua apreensão daquilo com que se defrontava,
elemento encontrado em várias passagens.
Observa-se então que há em suas análises uma exaltação de suas experiências
pessoais como verdades incontestáveis e tomadas como referências para promo-
ver análises sobre os temas. Desse modo, considera-se que a obra de Dalrymple
(215a; 2015b; 2015c) instaura um debate a partir do senso comum, por meio de
suas experiências individuais, e que é a partir delas que o autor irá teorizar sobre
temas cotidianos.
De modo geral, nas análises elaboradas pelos conservadores contemporâneos,
há centralmente a defesa da propriedade, que para eles encontra-se vinculada a defesa
da família, como na análise de Scruton. Essa centralidade ocupada pela propriedade e
pela família indica a vinculação desses valores com os pilares da sociedade capitalista.
Manter as estruturas sociais que lhes dão sustentação é o que garante à dinâmica da
sociedade do capital a ideia de imutabilidade. Para esses autores, as mudanças são
aceitáveis, no entanto, devem ser evitadas a todo custo, uma vez que, em todas as
análises realizadas, de forma geral levariam mais a prejuízos do que avanços.
Considera-se então o conservadorismo, em qualquer tempo histórico que se
apresente, como o projeto da burguesia, que se reinventa a partir das crises do capital,
146

mas que mantém como um de suas premissas centrais a manutenção da sociabilidade


capitalista, construindo uma imagem agregadora, que é aderida inclusive pela classe
trabalhadora, considerada como a única forma de sociabilidade possível.

3. O conservadorismo contemporâneo no Brasil


A crise do capital promoveu uma derrota política aos trabalhadores, culminando
no relativo sucesso do projeto conservador. Segundo análise de Miguel (2016), é
possível perceber, a partir de 2010, no Brasil, um avanço de vozes abertamente
conservadoras. Nesse período, é perceptível uma significativa presença de discursos
em que há a exaltação da desigualdade como fruto da meritocracia, são rechaçadas
quaisquer tentativas de desfazer hierarquias tradicionais, bem como ganha legitimi-
dade a ideia de que os direitos humanos concedem proteção indevida a pessoas com
comportamento antissocial.
De acordo com Alencar (2018), os grupos de direita emergem no cenário polí-

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tico brasileiro, assim como na Europa, reagindo a algo; contudo a forma como essa
reação ocorre no país é bastante diferente da observada nos países que consolidaram
um Estado de bem-estar social.
Devido à formação sócio-histórica brasileira, marcada por uma profunda desi-
gualdade social, não existe um passado a ser lembrado e rememorado. O passado
colonial brasileiro é escravocrata, e sua força na estruturação da sociedade brasileira
impede a lembrança de um momento de prosperidade vivenciado pela classe traba-
lhadora. O conservadorismo brasileiro “orienta sua reação à pluralidade de valores
e emergência de novas configurações culturais em crescimento, principalmente no
século XXI” (Alencar, 2018, p. 104).
Para Alencar (2018), os diagnósticos conservadores a respeito da realidade
percebem os problemas sociais como consequência de uma crise no campo da cultura
que afeta a integração das pessoas na sociedade, tornando-as incapazes de se orientar
no mundo que se encontra em processo de intensas transformações.
Miguel (2016) considera que no caso brasileiro discursos reacionários provêm
“de uma conjugação heteróclita entre o ‘libertarianismo’, o fundamentalismo reli-
gioso e o antigo anticomunismo. O libertarianismo, ideologia ultraliberal, defende
o menor Estado possível e que qualquer situação com origem nos mecanismos de
mercado é justa por definição, mesmo que pareça desigual (Miguel, 2016, p. 592).
O fundamentalismo religioso, que desde a década de 1990 vem se tornando uma
força política, principalmente devido ao investimento das igrejas neopentecostais
para eleger seus pastores, “se define pela percepção de que há uma verdade reve-
lada que anula qualquer possibilidade de debate” (Miguel, 2016, p. 593). Por fim,
o anticomunismo, que parecia ultrapassado com o fim da Guerra Fria, ganhou nova
roupagem na América Latina e no Brasil. O autor trata inclusive de uma análise que
relaciona anticomunismo e antipetismo no Brasil, tendo em vista que o Partido dos
Trabalhadores, quando esteve à frente do governo federal, foi representado como uma
encarnação do comunismo no Brasil. Tal divisão realizada por Miguel (2016) não
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 147

pode ser analisada como estanque, sendo considerada apenas didaticamente, tendo
em vista que na realidade brasileira os autores e defensores de pautas conservadoras
se enquadram em mais de uma dessas correntes.
Segundo Castro (2018), a extrema direita e os neoconservadores reproduzem
no Brasil os movimentos da Europa Oriental – como a luta contra o comunismo e o
antagonismo às minorias –, em um país que nunca teve um governo comunista ou
até mesmo esteve sob ameaça efetiva de um levante comunista. Do debate norte-
-americano, recuperam, com meio século de atraso, o discurso sobre a necessidade
de combater os “ativismos” presentes hegemonicamente nas universidades a partir
do “marxismo cultural” e que seriam responsáveis pela degradação dos valores da
verdadeira nação brasileira. Por fim, mas de encontro ao que propõem os partidos da
Europa Ocidental, o nacionalismo populista é neoliberal e cosmopolita, preterindo as
indústrias e o emprego nacional pelo regresso das relações econômicas de submissão
do Sul pelo Norte, principalmente aos interesses dos Estados Unidos.
Assim como o pensamento conservador brasileiro sofreu influências da literatura
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mundial, a difusão do conservadorismo contemporâneo no país também é influenciada


por autores que vêm difundindo suas teorias em nível mundial.
Na obra de Luiz Felipe Pondé (2010; 2014; 2018), observa-se que existe uma
interlocução com autores clássicos e contemporâneos do pensamento conservador,
o que garante a seu pensamento um aprofundamento teórico em determinadas dis-
cussões, como inclusive a que trata do conservadorismo. No entanto, constatam-se
também alguns elementos do senso comum, principalmente em pontos que tratam
da moral, com a presença de um discurso mais embasado em seu posicionamento
pessoal do que em discussões teóricas.
Sua crítica ao pensamento racional e ao racionalismo traz para o seu debate uma
postura empirista, e garante aos hábitos uma determinada centralidade. Ao afirmar
que os hábitos possuem uma quantidade de conhecimento e que estes se consolidam
por comportamentos repetidos que deram certo, Pondé (2010; 2014; 2018) garante
a estes um estatuto de fonte de conhecimento a ser perpetuada, e que não pode ser
contestada, visto que em sua análise as ciências humanas, ramo das ciências que
questionam a dinâmica da vida humana, não lidam com a vida como realmente é,
mas a partir de uma idealização de homens e mulheres.
A partir desse traço irracionalista, é que a obra de Pondé (2010; 2014; 2018)
se sustenta, colocando como fundamental para o pensamento conservador a defesa
do hábito e do afeto e não da razão discursiva. Dessa forma, o autor elenca que o
problema central do homem é sobretudo moral e deve ser resolvido a partir de um
olhar para o passado, de modo a se obter “dos mortos” as referências necessárias para
a construção da vida presente. Compreende-se então na obra de Pondé (2010; 2014;
2018) a existência de postulados básicos do conservadorismo, como a impossibilidade
do surgimento de uma nova sociabilidade, o papel da religião e das famílias como
instituições morais que garantem a difusão de valores na sociedade, bem como sua
análise sobre importância da falta de escolhas dos sujeitos, consideradas por ele como
necessárias para a vida comunitária.
148

É possível observar também a presença de obras vinculadas à ideologia ultrali-


beral, descendente da escola austríaca de economia, cujo principal expoente é Ludwig
Von Mises, que vem ganhando espaço no mercado editorial brasileiro. Influente nos
meios acadêmicos e ativistas do Estados Unidos, essa vertente é apresentada como
uma teoria intelectualmente sofisticada e capaz de enfrentar a hegemonia do pensa-
mento progressista nas universidades.
Por meio de vários think tanks, como o Instituto Millenium e o Instituto Von
Mises Brasil, com o financiamento de empresas nacionais e transnacionais, essa
vertente vem sendo popularizada no país por autores como Bruno Garschagen e
Rodrigo Constantino.
Constata-se que há, no pensamento de Garschagen (2019), várias contradições,
que dependendo do intento do autor no momento, ganham determinada conotação.
Traçando seus argumentos a partir de situações pontuais e individualizadas, a fim de
discorrer sobre temas gerais, o autor faz das exceções a regra, buscando convencer
o leitor do seu ponto de vista com situações únicas e absurdas. Outro ponto muito
presente na análise do autor refere-se ao individualismo para debater as questões.

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Tratada de forma individual e desconectada, Garschagen (2019) não compreende a
dinâmica da sociedade como uma totalidade composta por sujeitos, mas de modo
inverso, a considera como um todo de indivíduos que devem ser responsabilizados
por suas “opções” de vida, como hábitos de saúde, reconhecimento de gênero, dentre
outros. É então por meio de um discurso rasteiro que as questões são apresentadas
e a partir da constante referência a dados estatísticos, cuja interpretação pode ser
considerada como tendenciosa, é que o autor busca discorrer sobre sua posição.
Outro expoente dessa vertente é Rodrigo Constantino, que elabora sua análise a
partir da articulação entre liberalismo e conservadorismo. Constantino (2018) defende
uma articulação entre conservadorismo e liberalismo clássico, por compreender que
as atuais circunstâncias clamam por um regresso, em determinada medida, como
reação saudável aos exageros da era moderna, uma vez que o pêndulo extrapolou e
está tendendo para a esquerda. Compreende-se que o autor busca, por meio de suas
análises, promover mais um debate moral do que econômico, mesmo que se proponha
a princípio a debater o liberalismo. O autor se define como conservador, porém, não
como reacionário, uma vez que sua postura não é saudosista, moralista ou autoritá-
ria, no entanto, o que se constata é uma constante tendência em indicar os valores
tradicionais da sociedade, tais como a religião, a família e a diferença de gênero,
e a necessidade de mantê-los. Dessa forma, defende indiretamente o desmonte de
alguns direitos conquistados nas sociedades ocidentais, tal como a atual definição de
família. Por meio de uma narrativa que defende a liberdade de expressão, cerceada
em sua análise pela ditadura do politicamente correto, o autor apresenta um discurso
repleto de preconceitos.
Outro autor de destaque no mercado editorial brasileiro, autointitulado filósofo,
é Olavo de Carvalho. O que se observa é que, em diversas análises, o autor promove
uma deturpação do real a fim de atender a seus objetivos, provocando ao mesmo
tempo uma distorção dos fatos e uma tentativa de sustentação de seus argumentos.
Ler e analisar obras de autores a partir dos seus próprios argumentos, sem um diálogo
honesto com alguns de seus debatedores, é reduzir tais obras e autores a uma realidade
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 149

por vezes limitada. Dessa forma, considera-se que há na obra de Carvalho (2013) um
debate com alguns grandes nomes das Ciências Sociais, mas que é alimentado por
elementos do senso comum, e sem realmente se apropriar das discussões elaboradas
por eles. Sendo assim, considera-se que há uma grande fragilidade teórica nas análises
que buscam, a partir desse suposto diálogo, garantir uma conotação de conhecimento
científico a um discurso referenciado por elementos do senso comum.
Constata-se então que no debate conservador contemporâneo brasileiro atual é
possível encontrar os traços mais gerais do conservadorismo moderno, tais como a
dificuldade em assumir uma filiação teórica ou tradição ideológica; o presentismo;
a aproximação com o pragmatismo ou um acentuado empirismo; e a oposição às
mudanças propostas pela classe trabalhadora, assim como definidos por Souza (2015).
Afirma-se então, a partir dos autores analisados, que há hoje no mercado edi-
torial brasileiro dois “nichos” do conservadorismo que por vezes coexistem dentro
das obras de um mesmo autor: um dominado “conservadorismo teórico”, a partir do
qual os autores buscam teoricamente apresentar suas análises, e o outro, dominado
por certo “conservadorismo do senso comum”, em que os autores apresentam suas
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defesas a partir dos elementos mais básicos, citando autores e bibliografias no intuito
de referendar suas análises, sem no entanto compreender de forma clara o conteúdo do
trabalho, podendo-se considerar como meramente uma reprodução ipsis litteris deste.
Observa-se, a partir dos autores analisados, uma presença mais marcante desse
“conservadorismo do senso comum”, principalmente quando o debate versa sobre
pautas morais, assim como no embate com a esquerda. Avalia-se que esses são ele-
mentos centrais para se compreender a difusão do pensamento conservador no Ser-
viço Social

4. O conservadorismo contemporâneo no Serviço Social


A análise do conservadorismo presente no Serviço Social hoje traz alguns dile-
mas e distinções de períodos anteriores, tendo em vista que no tempo presente não
existe grandes publicações de obras que sejam abertamente conservadoras, assim
como pôde ser observado no debate do pensamento conservador anglo-americano
e brasileiro.
A escolha por analisar páginas do Facebook foi feita primeiramente devido a
abrangência das redes sociais na atualidade – acessadas diariamente por milhões de
pessoas em todo o mundo, é considerada como um espaço no qual há uma grande
participação da sociedade. Silveira (2015) aponta, a propósito, que a partir de uma
pesquisa realizada em 2012 pelo Comitê Gestor da Internet, 74% dos brasileiros
conectados à internet utilizavam redes sociais e consideravam o Facebook como o
espaço mais envolvente entre todos aqueles que promovem debates políticos.
Nesse sentido, optou-se por essa rede social, tendo em vista que, segundo infor-
mações do Facebook for Business (2021), é acessada diariamente por 1,79 bilhões de
pessoas, além do que as páginas são perfis públicos, nas quais todas as informações
estão disponíveis. Ali, a forma de interação é pública e os usuários podem seguir,
150

avaliar, comentar, curtir e compartilhar as publicações ou lançar mão de mensa-


gens privadas.
A escolha das páginas utilizadas na pesquisa partiu da página “Serviço Social
Libertário”, tendo em vista que, por ser mais divulgada entre os assistentes sociais, já
era conhecida. Posteriormente, realizou-se a pesquisa das palavras “Serviço Social”,
“Conservadorismo” e “Conservador” no campo de busca, filtrando a seleção por
páginas, na qual encontrou-se “Serviço Social e Pluralismo” e “Serviço Social Con-
servador”, delimitando assim os espaços nos quais a pesquisa seria realizada.
Todas as páginas, mesmo que apresentando elementos distintos, se propõem a
fornecer elementos que permitam aos assistentes sociais pensar para além do cha-
mado pensamento hegemônico, bem como promover discussões sobre temas que
são, segundo suas análises, marginalizados no debate profissional.
Postagens da “Serviço Social e Pluralismo” dão conta de que sua proposta é
olhar para o Serviço Social a partir de vários ângulos e internacionalmente, abor-
dando diversas teorias e modelos de intervenção utilizados no mundo, a fim de se

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construir um debate sobre a formação e a profissão no Brasil, bem como seu atual
estado teórico e metodológico, a partir da garantia de pluralidade teórica prevista no
Código de Ética profissional.
Segundo informações da “Serviço Social Libertário”, o movimento foi criado
com o intuito de lutar por melhorias no Serviço Social brasileiro, bem como pro-
pagar ideias que contribuam com a liberdade e integridade de atuação profissional.
Consideram que para a excelência e desenvolvimento de uma profissão ou área do
conhecimento, a liberdade de pensamento, de produção científica e de atuação é
imprescindível. Como defesas indicam a vida, a liberdade e a propriedade, sinalizando
que o movimento foi iniciado por alunas(os) e profissionais de Serviço Social insatis-
feitas(os) “com a doutrinação marxista” sustentada pelo curso e que “fundamentam
uma prática profissional político-ideológica” (Serviço Social Libertário, 2019, n. p).
Seu objetivo principal “é trazer a teoria liberal para dentro do Serviço Social,
apresentando outras propostas de soluções para os problemas econômicos e sociais do
país, que não sejam a ‘ditadura do proletariado’ e a utópica ‘revolução comunista’”,
bem como “evidenciar o quão prejudicial é a atuação desmedida do Estado que não
se limita às suas funções essenciais, de segurança e de proteção, mediante a lei, da
inviolabilidade dos direitos individuais”. Outro objetivo indicado é o de alcançar mais
pessoas que, assim como as editoras, “conseguem identificar a doutrinação do curso
e a grande armadilha que é o socialismo” (Serviço Social Libertário, 2016, n. p).
Dessa forma, consideram que os princípios basilares do “Serviço Social Liber-
tário” são: a “pluralidade teórica para a atuação profissional, para o ensino e produção
acadêmica”; o “fim do monopólio CFESS/CRESS e abertura de espaço para outras
entidades de representação”; a “abertura e/ ou ampliação de novos espaços de traba-
lho para além do Estado” e; a “propagação e desenvolvimento de ideias libertárias/
liberais para o Serviço Social brasileiro” (Serviço Social Libertário, 2019, n. p).
A página “Serviço Social Conservador” é apresentada como uma derivação da
“Serviço Social Libertário”, tendo em vista que seus conteúdos não estão em oposição
e que, na verdade, trata-se de “uma das correntes teóricas que pode ser adotada dentro
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 151

do Movimento “Serviço Social Libertário”, assim como a visão liberal ou mesmo a


crítico/científica” (Serviço Social Conservador, 2019, n. p).
Há a indicação de que um dos objetivos da página “Serviço Social Conservador”
é fomentar e fundamentar a criação de tecnologias inovadoras, capazes de emancipar
os sujeitos de suas vulnerabilidades e não os tornar dependentes delas, através da
difusão do pensamento conservador. Considera-se que essa afirmação se apropria de
algumas categorias presentes no debate da categoria profissional, sem, no entanto,
imprimir a elas a mesma conotação, deixando de relacionar a inevitabilidade da
revolução e de uma nova ordem societária, para indicar a necessidade de redução de
políticas sociais públicas. Ocorre que a partir da discussão acumulada pela categoria,
tendo como referência o marxismo, a emancipação dos sujeitos não é possível de
ser realizada individualmente ou pela ação de uma categoria profissional. A garantia
da emancipação humana não é mesmo uma possibilidade na sociedade capitalista,
mas sim será capaz de ser alcançada através da luta de classes e com o surgimento
de uma nova sociabilidade. Há também a afirmação de que seu objetivo precípuo
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é difundir e dialogar sobre o conservadorismo e como esse modelo de enxergar o


mundo pode fundamentar as ações assistenciais e criar tecnologias sociais inovado-
ras com o propósito verdadeiro de emancipar os sujeitos das suas vulnerabilidades,
e não o de torná-los dependente delas (Serviço Social Conservador, 2018, n. p).

Nesse sentido há a indicação de três dos conceitos fundamentais que nortearão


os debates, bem como a interação entre os seus seguidores: o conservadorismo, a
assistência social e o Serviço Social.
Defende-se que, por se tratar de páginas de Facebook, não há um maior apro-
fundamento teórico sobre as discussões, o que faz com que sejam apresentadas de
forma rasa, impossibilitando um maior aprofundamento ou acúmulo sobre os temas
abordados. Sendo assim, de modo geral, nas páginas considera-se que não há um
aprofundamento teórico das correntes indicadas, nem uma abordagem que trate de
forma mais densa os assuntos apresentados, o que indica que há uma grande fragili-
dade nas análises, impedindo que as discussões realizadas contribuam como um real
espaço de conhecimento para profissionais que as acessam. É importante sinalizar
que a página “Serviço Social Conservador” é, dentre elas, a mais frágil e contém
diversos equívocos, como, por exemplo, em relação à própria análise da profissão.
Essa incompreensão faz com que, em alguns momentos, não se saiba o que está
sendo defendido nas postagens.
Considera-se que as análises realizadas, em todos os momentos dos debates,
se vinculam às correntes do pensamento conservador, como o positivismo e o fun-
cionalismo. Essa vinculação, no entanto, não pode ser encontrada de forma explí-
cita nelas, visto que não há em nenhuma publicação referência ou sinalização de
que os debates apresentados naquele momento são norteados por essas teorias. Tal
movimento pode ocorrer devido a não apropriação da análise dos autores que são
referência dessas correntes de pensamento, o que indica como o pensamento conser-
vador é disseminado na sociedade e tratado inclusive ao nível do senso comum. Isso
152

reforça o que Iamamoto e Carvalho (2007) enfatizam sobre o modo capitalista de


produzir supor um modo capitalista de pensar, que expressa a ideologia dominante,
em sua forma e nas suas ambiguidades.
Dessa forma, é possível afirmar que o pensamento conservador presente ideo-
logicamente na sociedade pode ser encontrado nos elementos mais simples do senso
comum, de modo a ser considerado como um dos mecanismos de consenso utilizados
a fim de garantir a integração social e a redução das tensões causadas pelas relações
sociais antagônicas entre as classes.
Observa-se a vinculação das análises ao irracionalismo presente na obra de
Burke, trazendo a religião como um dos elementos centrais para o debate, princi-
palmente na “Serviço Social Conservador”. O traço do conservadorismo antipro-
letário bem como a garantia da propriedade privada e a moralização da sociedade
das análises de Comte também são observados, assim como uma aproximação ao
debate durkheimiano.
Do pensamento de Durkheim está presente, por exemplo, a compreensão da
sociedade como um sistema que depende da moral para que permaneça coesa, e

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qualquer alteração que gere perturbação é considerada como anomia. Considera
então que a moral contém a ideia do dever, da autoridade e da disciplina, sendo que
a família e a escola seriam os principais responsáveis para garantir a harmonia social.
Esses são alguns elementos das correntes teóricas observados nas análises das
páginas, mas, para além desses, é possível perceber outros, advindos de outras cor-
rentes, tais como o neotomismo, a pós-modernidade e o conservadorismo contem-
porâneo. Em relação à abordagem de Parsons, observa-se uma aproximação à sua
ideia de que o equilíbrio social deveria ser mantido a partir de um processo de não
modificação, elemento retomado pelos autores conservadores contemporâneos da
corrente anglo-americana e brasileira.
Nas análises de alguns autores que expressam o pensamento conservador na
contemporaneidade, foi possível constatar que, de forma geral, há a defesa de pre-
conceitos direcionados a pessoas de outras nacionalidades, outras religiões ou con-
cepções teóricas. Nas obras de autores nacionais, foi possível observar, como no caso
de Constantino, defesas que são provenientes do pensamento conservador europeu,
como a islamofobia, sendo incorporadas em suas análises como se fizessem parte
da realidade nacional, assim como a imigração ilegal, típica em países europeus e
nos Estados Unidos. Outro ponto observado nas obras é a crítica ao politicamente
correto e aos limites impostos, o que é considerado como uma alternativa utilizada
pelos autores para expressar seus diversos preconceitos.
De acordo com Iasi (2015), o preconceito no pensamento conservador deriva
tanto do nacionalismo, como do imediatismo e do racionalismo apaixonado. A maio-
ria dos conservadores tem que afirmar algum tipo de supremacia que justifique
sua ação, sendo necessário criar um estigma ou preconceito para que sua paixão
violenta se expresse. Nas defesas dos grupos conservadores do Serviço Social, o
preconceito é também um componente das análises, no entanto considera-se que o
nacionalismo não é um elemento que o justifique, visto que na realidade o que ocorre
é um movimento contrário, no qual se vê a exaltação da forma como a profissão
vem sendo analisada em outros países, principalmente em Portugal atualmente, em
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 153

detrimento do que vem sendo debatido no Brasil. No caso do debate conservador do


Serviço Social, o que se observa é o preconceito em relação ao que eles denominam
de setores marxistas da profissão.
Observa-se, no pensamento conservador brasileiro, tanto em autores do pas-
sado, quanto nos pensadores conservadores contemporâneos, uma estreita vinculação
com a religião, o que representa o reflexo da forma como o povo brasileiro enxerga
a vinculação da religião com seu cotidiano. Considera-se que as análises de autores
como Pondé (2010; 2014; 2018) e Carvalho (2013) reiteram essa forma de pensar do
brasileiro, fazendo uma articulação entre o moralismo cultural e religioso presente
na sociedade brasileira, e o liberalismo econômico e a defesa da redução do papel do
Estado. Essas também são as defesas indicadas nas análises conservadoras contem-
porâneas do Serviço Social, o que reforça a ideia de alinhamento dos setores conser-
vadores da profissão com o que vem sendo debatido atualmente de forma mais geral.
Ainda no que se refere a pautas morais, observa-se que de modo geral os autores
conservadores brasileiros e as páginas analisadas promovem uma defesa de valores,
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como a família tradicional e dessa forma se posicionam contrários aos movimentos


feminista e LGBTQIA+. De acordo com Iasi (2015), o moralismo e suas manifesta-
ções associadas, como a defesa da família, são um elemento constante no discurso
conservador, mas também é necessário a alteridade, um outro elemento que ameace
a ordem e a harmonia do padrão moral; nesse sentido, o discurso conservador associa
o nacionalismo, a irracionalidade e o moralismo com a homofobia.
Nas análises conservadoras recentes do Serviço Social, esses elementos também
compõem o debate, tendo em vista que se observa a defesa desses valores morais
tanto no que se refere à análise da sociedade, quanto da própria profissão. Esse fato
pôde ser constatado nas análises acerca de quais valores devem ser defendidos pela
profissão e quais estão sendo atacados, trazendo para os indivíduos a família e a
religião como “células centrais”.
Uma marca do conservadorismo atual, tanto na vertente anglo-americana, quanto
no debate nacional e no do Serviço Social, é o fortalecimento da moral religiosa e dos
costumes, colocando na moralidade um peso que na realidade diz respeito a questões
econômicas. Há uma tentativa de adequação presente nas reivindicações de caráter
econômico, mas trazendo do passado, elementos que garantem a continuidade dos
costumes e valores tradicionais.
Considera-se desse modo que existe na profissão um influxo do pensamento
conservador que é resultado tanto da não eliminação do conservadorismo no Serviço
Social, quanto da própria dinâmica do real, tendo em vista que nos últimos anos este
vem ganhando espaço em amplos setores da sociedade civil, o que permitiu, por
exemplo, a vitória eleitoral da extrema direita em diversos países do mundo, como
é o caso do pleito eleitoral brasileiro de 2018.
Analisa-se que a proposta conservadora presente nas páginas articula dois
elementos centrais: por um lado, resgatam-se alguns elementos da perspectiva da
“modernização conservadora” (Netto, 2008), a partir da incorporação dos debates
atuais e da tentativa de “readequar a profissão aos novos tempos”, por meio de um pro-
jeto tecnocrático, buscando uma melhor eficiência e eficácia na atuação profissional.
154

Por outro lado, é possível perceber também elementos presentes da perspectiva da


“reatualização do conservadorismo” (Netto, 2008), tendo em vista que os debates
realizados nas páginas podem ser considerados como esvaziados teoricamente, frag-
mentados e bastante ecléticos. Para além disso, nota-se a presença de outros elementos
inseridos na perspectiva, como a concepção de pessoa, de diálogo, bem como uma
tentativa de se resgatar elementos presentes no pensamento inicial da profissão, tal
como a tentativa de trazer a leitura de Mary Richmond para os dias de hoje. Outro
ponto que deve ser destacado refere-se à escolha de referências teóricas da profissão
de outros países e a quase ausência de referências nacionais, mesmo nas discussões
sobre o Serviço Social tradicional.
Essa análise, bem como algumas diferenças na elaboração das publicações da
página “Serviço Social e Pluralismo”, indica que apesar de existir alguns componentes
em comum entre os movimentos, há também diferenças entre eles, demonstrando
que não possuem apenas diferentes denominações, mas também propostas diversas
em alguns aspectos.

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A partir desses elementos, conclui-se que, apesar de haver diferenças entre as
páginas analisadas, um traço que garante unidade ao conservadorismo contemporâneo
no Serviço Social é a tentativa de retorno aos elementos presentes na gênese da pro-
fissão, como defendido também pela vertente da “reatualização do conservadorismo”,
atrelada a uma proposta de adequação ao que é requisitado pelo mercado de trabalho,
tal como na “modernização conservadora”, como pode-se apreender em Netto (2008).
Por fim, destaca-se que a análise efetuada compreende que existe um processo
dialético de ruptura e continuidade com o passado profissional; dessa forma, defen-
de-se que os elementos das vertentes encontrados nesta análise não representam uma
transposição destas para o tempo presente, mas sua reentronização nos debates mais
amplos elaborados pela categoria, o que leva à apropriação, intencional ou não, de
alguns de seus elementos.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 155

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EM NOME DO PROJETO ÉTICO-
POLÍTICO: evidências de ecletismos teóricos
e da heterogeneidade política no Serviço Social
Jonatas Lima Valle

DOI 10.24824/978652515909.6.159-176

1. Introdução
Indissociáveis da atividade concreta dos sujeitos sociais estão os projetos que
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a antecedem. Oscilando em níveis distintos de autonomia e de consciência, as inten-


cionalidades determinam, inclusive, aquelas ações que compõem os processos de
trabalhos das mais variadas profissões. Consequentemente, esses projetos profissio-
nais são impensáveis sem sua relação com as determinações causais que incidem
concretamente sobre a relativa autonomia dos profissionais, que lhes impõe limites
e possibilidades.
Isso ocorre porque, para que sejam atendidas, as atividades profissionais impli-
cam aos sujeitos “uma antecipação ideal da finalidade que se pretende alcançar, com
a invocação dos valores que a legitimam e a escolha dos meios para lográ-la” (Netto,
2007, p. 142, grifos nossos). De tal maneira que, em síntese, os projetos profissio-
nais, enquanto expressão teleológica, podem ser entendidos a partir de uma tríplice
articulação – composta por fins, meios e um conjunto de valores que os legitimam.
Assim, na particularidade profissional, esses projetos, além de indicarem uma
autoimagem e elegerem os valores que legitimam a profissão socialmente, delimitam
e priorizam seus objetivos e funções,

formulam os requisitos (teóricos, práticos e institucionais) para o seu exercício,


prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem as
bases das suas relações com os usuários de seus serviços, com as outras profissões
e com as organizações e instituições sociais privadas e públicas (ibid, p. 144).

Disso decorre que os projetos profissionais são, também, projetos propriamente


coletivos e, nesse sentido, o sujeito coletivo que elabora, reproduz, revisa e com-
põe um projeto profissional é, na verdade, uma unidade de sujeitos diversos. Uma
diversidade objetiva – no sentido de que não se restringe aos assistentes sociais
que atuam no campo interventivo das políticas sociais – e subjetiva – enquanto
coletividade que abrange experiências e concepções minimamente diferenciadas de
profissão e de mundo. Ou seja, há de se demarcar que, em função das singularidades
160

que especificam os sujeitos entre si e, consequentemente, da impossibilidade de ali-


nhamento absoluto entre os agentes que conformam um mesmo projeto profissional,
a margem de pluralidade de pensamentos no interior de um mesmo bloco histórico
não elimina o reconhecimento de um conjunto elementos essenciais, capaz de forjar
formas concretas de coesão em torno do futuro. Portanto, a diversidade registrada
entre os componentes de um mesmo projeto profissional não extrapola a relação de
unidade entre os membros (sua dimensão coletiva). Pelo contrário, do ponto de vista
histórico, essa marca ineliminável ajuda a movimentar as mudanças internas de cada
projeto profissional – tornando suas estruturas permanentemente flexíveis e cambian-
tes, que fazem com que manifestem sua essência histórica, se transformando e se
renovando de acordo com as diferentes conjunturas históricas e políticas (ibid, p. 143).
O reconhecimento dessa margem de flexibilidade, ao possibilitar identificar
certo nível de coerência entre os componentes desses projetos profissionais e, assim,
possibilitar sua sistematização como um projeto coletivo, também oportuniza a iden-
tificação de outro traço peculiar relativo a essa natureza de projetos. Ou seja, o fato

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de “se constituírem como projetos macroscópicos, como propostas para o conjunto da
sociedade” (ibid, p. 142). Isso permite a identificação de uma interface societária, na
medida em que esses projetos profissionais respondem, necessariamente, a projetos
societários. E, dada a natureza de classe de nossa sociedade, pelo fato dos projetos
societários também se caracterizarem por serem, “necessária e simultaneamente,
projetos de classe, ainda que refratem mais ou menos fortemente determinações de
outra natureza (culturais, de gênero, étnicas etc.)” (ibid, p. 143), revela-se também,
de maneira precisa, a dimensão política, intrínseca a qualquer prática/projeto numa
sociedade de classes. Conclui-se, assim, pela mediação dos projetos societários, que
os projetos profissionais estabelecem uma relação política com o âmbito macrossocie-
tário. E, assim, apresentam uma imagem de sociedade a ser construída, que reclamam
determinados valores para justificá-la e que privilegiam certos meios (materiais e
culturais) para concretizá-la (ibid, p. 142).
Assim, a própria estrutura de classes de nossa sociedade faz com que os projetos
societários atravessem todos projetos profissionais, de tal maneira que – volunta-
riamente ou não; conscientemente ou não, explicitamente ou não – os diferentes
perfis de projetos profissionais estabelecerão relações também distintas (no sentido
de serem mais ou menos funcionais/consonantes) com os projetos societários em
curso no âmbito da luta de classes (Netto, 2007). Assim, é necessário dizer que “é a
manutenção da direção social do projeto escolhido que influencia e repercute dire-
tamente na escolha das estratégias, na habilidade, na utilização de meios, recursos,
instrumentos” (Vasconcelos, 2015, p. 293).
Ao mesmo tempo, essas considerações também engatilham uma informação
complementar que é fundamental para este trabalho: a relação entre a própria natureza
de classe do projeto societário a que se vincula e a heterogeneidade de projetos no
âmbito de cada profissão. Ou seja, se por um lado é fundamental o reconhecimento
de uma margem mínima de diversidade entre os indivíduos que compõem um mesmo
projeto profissional, por outro, para não se incorrer num relativismo abstrato, há
de se demarcar o inevitável limite de diferenciações no interior de cada projeto.
Neste sentido, considerando que vivemos numa sociedade estruturada por classes
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 161

que mais que diferentes são antagônicas entre si; que estes projetos profissionais têm
uma dimensão política; e que, necessariamente, respondem a determinado projeto
societário; conclui-se ainda que é a partir da identificação daquelas diferenciações
que extrapolam o âmbito de um mesmo projeto profissional, que se torna possível
identificar a heterogeneidade de projetos no interior de uma mesma profissão. E,
consequentemente, dimensionar o complexo campo de tensões e de disputas incon-
ciliáveis que percorre, por vezes de forma silenciosa, a relação entre esses projetos,
já que todo corpo profissional é um campo de tensões e de lutas. Sempre existirão
segmentos profissionais que proporão projetos alternativos; mesmo um projeto que
conquiste hegemonia nunca será exclusivo (Netto, 2007, p. 145).
Isso impõe à reflexão em torno dos projetos profissionais, o reconhecimento de
uma diversidade de pensamentos que, por sua vez, expressa divergências e contra-
dições (mais ou menos abertas) na luta pela conquista da hegemonia no interior de
determinada profissão (Netto, 2007). E que, por sua vez, também respondem a proje-
tos de sociedade – cujas diferenciações estão baseadas na finalidade de conservação
ou superação deste status quo, mas também se diversificam a partir dos diferentes
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meios preteridos (estratégias) e valores que os legitimam.


Para pensar o caso específico do Serviço Social brasileiro na conjuntura atual,
é incontornável a consideração acerca daquele que, atualmente, se reivindica de
maneira mais explícita em nossa categoria. Refiro-me àquele projeto cujo sentido
é identificado a partir dos anos 70, quando uma fração da categoria “declara sua
organicidade aos interesses e projetos da classe trabalhadora, afirmando a dimensão
política da profissão” (Amaral; Mota, 2007, p. 1).1 Apesar das deficiências presentes
nas primeiras etapas deste processo, essa movimentação se mostrou capaz de forjar
um novo ethos profissional (Barroco, 2007), que permaneceu ganhando densidade e
espaço no âmbito da categoria ao longo da década de 80, favorecendo a superação
desses equívocos e sua reposição num outro patamar. Essa situação gerou o amadu-
recimento da recusa e crítica ao conservadorismo profissional, destacada por Netto
(2007) como a condição política, primeira e necessária, para a constituição de um
novo projeto profissional conscientemente vinculado a um projeto societário compro-
metido com as necessidades essenciais da classe trabalhadora. Seu desenvolvimento
estratégico, mais que concomitante, se mostrou determinante para o amadurecimento
e consolidação da profissão em linhas estruturais – como, por exemplo, na expansão
no ambiente acadêmico, na produção teórica, em suas entidades organizativas e no
escopo de legislações e normativas correlacionadas à profissão. De tal forma que se
tornou consensual no interior da profissão o entendimento de que esse projeto, que
ficou conhecido como Projeto Ético-Político, “conquistou hegemonia no Serviço
Social, no Brasil, na década de noventa do século XX” (Netto, 2007, p. 156).

1 Embora não haja condições de me aprofundar a respeito, vale destacar que este sentido não pode ser des-
colado de condições históricas específicas – que extrapolam o Serviço Social brasileiro (cujo entendimento
se remete ao legado proporcionado pelo Movimento de reconceituação latino-americano) e o contexto
geral da luta de classes (que coincidiu com o processo de organização dos trabalhadores brasileiro contra
a ditadura cívico-militar instaurada em 1964).
162

Com base nos supostos até aqui desenvolvidos, é possível dizer que, dentre
outras particularidades que especificam o projeto ético-político brasileiro, em Netto
(2007),2 cinco delas me parecem minimamente consensuais e evidentes3:
I) O reconhecimento de um vínculo específico ao projeto societário de cunho
transformador. Ou seja, propõe-se um projeto de profissão cuja interface societária
tenha como direção o favorecimento da construção de uma nova ordem social, sem
exploração/dominação de classe, etnia e gênero – que lhe assegura um caráter não
apenas crítico à ordem vigente (anticapitalista), mas também voltado para a eman-
cipação da classe trabalhadora (ibid, p. 155) – que, numa perspectiva de análise
marxista, como se propõe este estudo, só pode ter como horizonte o socialismo.

I. A dimensão política – inerente ao conjunto de fins, meios e valores – é


explicitamente enunciada (ibid, p. 155) e, negando a neutralidade, se dirige
às necessidades sociais específicas da classe trabalhadora;
II. A compreensão de que, mesmo tendo como ator central o assistente social
atuante no campo das políticas sociais, o “sujeito coletivo” que compõe

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o projeto profissional é enriquecido por outros agentes imprescindíveis –
como, por exemplo, docentes, pesquisadores, jornalistas, assessores polí-
ticos, advogados, auxiliares administrativos, estudantes de Serviço Social
etc. – que dão corpo às nossas entidades organizativas, as escolas de Serviço
Social, os programas de pós-graduação etc.;
III. Situa aquelas diferenças que não extrapolam a essência que particulariza
esse projeto como marcas inelimináveis e positivas – na medida em que
ajudam a movimentar suas estruturas de maneira permanentemente flexíveis
e cambiantes, de modo a permitir sua renovação de acordo com as diferentes
conjunturas históricas e políticas.
IV. O entendimento de que a condição atual, de projeto hegemônico na catego-
ria, não anula a multiplicidade de disputas simultâneas com outros projetos,
tampouco o caráter desvantajoso (que o status quo lhe impõe) e a perspec-
tiva de pluralidade que assume diante dessas relações de enfrentamento.

Quanto à última especificidade do projeto ético-político na atualidade, cabem


algumas considerações fundamentais para meu objetivo nesta discussão. Ocorre que
essa hegemonia não se manifesta de forma linear e igualmente robusta entre os distintos
campos da realidade concreta em que a profissão se desenvolve cotidianamente. Neste
sentido, se pode notar certo consenso acerca de seu vigoroso espraiamento no âmbito
da produção teórica, das entidades representativas da profissão e, ainda, de seu legado
normativo (Braz, 2007) – de tal forma que, mais que hegemônico, este projeto chega a
assumir uma aparência irrestrita. No entanto, quando pensamos em sua expressão no
cotidiano interventivo daqueles assistentes sociais que atuam no campo das políticas

2 A escolha de privilegiar a obra do autor em tela se justifica pelo entendimento de que, a meu ver, é o artigo
que melhor sistematiza o projeto ético-político e, não por coincidência, vem sendo regularmente utilizado
por parte expressiva das obras mais relevantes sobre o assunto.
3 O resumo aqui proposto visa apenas, a partir da pesquisa bibliográfica realizada, destacar elementos
indispensáveis e consensuais – sem, com isso, ter qualquer pretensão de esgotá-los, aventura que exigiria
uma pesquisa mais profunda e específica.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 163

sociais, a heterogeneidade de projetos profissionais (inclusive daqueles vinculados a


projetos societários explicitamente conservadores), se evidencia com maior nitidez.
Refiro-me, sobretudo, à existência de estudos rigorosos que apontam para uma
substancial persistência do conservadorismo entre aqueles assistentes sociais dedi-
cados ao atendimento direto da população usuária das políticas sociais.
Na verdade, as produções teóricas na área indicam que o relativo insucesso
de penetração da ruptura com o conservadorismo no campo de intervenção extra-
pola as particularidades espaciais de nosso país. Para ser mais preciso, essa questão
atravessa a história da profissão desde o contexto mais “germinal” do pensamento
crítico do Serviço Social brasileiro, ainda no interior do movimento de reconceituação
latino-americano.4 Santos (1983), em publicação já em 1982, já havia sinalizado esse
impasse nos países onde o movimento de reconceituação (inclusive sua vertente mais
crítica) se espraiou. Para ela,

apesar da adesão de frações relevantes dos assistentes sociais, há uma dificuldade


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circunstancial que se volta para a mediação dessas convicções no espaço insti-


tucional. [...] a Reconceituação não excedeu os limites de batalha “puramente
ideológica”, restringindo-se a opor à ideologia assistencialista outra concepção
ideológica que, segundo seu critério, devia fundamentar uma prática profissional
radicalmente diferente. Ou seja, a Reconceituação reduz-se a um movimento de
negação ideológica do Serviço Social, sem maiores consequências práticas (Santos,
1983, p. 171-172, grifos nossos).

Isso, na opinião da autora, se configurou num limite, pois não se tratava de


elaborar alternativas para uma “vanguarda minoritária de assistentes sociais”, mas
sim “para o movimento em seu conjunto” (ibid, p. 172). Tal constatação vem sendo
ratificada por uma série de autores que, comprometidos com a ruptura do conserva-
dorismo profissional, buscaram refletir sobre essa questão, não apenas na realidade
brasileira, mas, também, entre aqueles que buscaram discutir os impactos dessa
influência crítica em nível latino-americano de forma geral. Montaño, por exemplo,
analisando os impasses da reconceituação, destaca “sua incapacidade, até agora,
de penetrar solidamente nas dimensões da prática profissional de campo” (2008, p.
143). Molina (2008, p. 155), pensando a respeito do “trabajo social crítico” – que,
corresponde àquela fração da profissão na Argentina, mais próxima ao marxismo –
afirma: “hay un gran limite en la implementación de una metodología”. E Acosta
afirma que existe, também, entre os protagonistas, a percepção de que as mudanças
nos currículos e a ampliação do debate teórico não se refletiram na prática realizada
nas instituições (2008, p. 20). Essas considerações me permitem concordar com as
conclusões de Netto, ratificada por Acosta, a respeito do que chamou de vertente
de ruptura com o conservadorismo no Serviço Social: “a ‘ruptura’ com o Serviço

4 Na verdade, há indícios de que essa dificuldade de espraiamento de um projeto profissional vinculado às


necessidades essenciais da classe trabalhadora para o campo interventivo não se limite ao debate latino-
-americano. Essa problemática também é sinalizada em Corrigan e Leonard (1986) — ao tratarem do fazer
profissional na Inglaterra, ainda na década de 70, sob o suporte do pensamento marxista.
164

Social tradicional foi, na verdade, uma busca da ruptura” (Acosta, 2008, p. 20, grifos
nossos). Assim, é possível dizer que permanece atual o registro de Netto (1996),
quando refere que “se amadureceu, no campo profissional, um vetor de ruptura com
o conservadorismo, ele ainda não consolidou uma ‘nova legitimidade’ para o Serviço
Social junto às classes subalternas” (p. 108).
No entanto, além de extrapolar espacialmente a realidade brasileira, como se
pôde notar em parte dessas menções, essa fragilidade (ainda que não absoluta) no
que tange ao espraiamento dos supostos do projeto ético-político para o âmbito da
intervenção profissional, também apresenta uma dimensão temporal muito relevante.
Isso porque também pode ser identificada entre aquelas pesquisas que – tratando do
objeto em questão e recorrendo a pesquisa empírica –, no meu entendimento, podem
ser consideradas as mais elucidativas sobre o assunto sobre as décadas de 80, 90 e 00,
respectivamente: Mota (1998), Vasconcelos (2007) e Forti (2010).5 De tal forma que,
seja sob o suporte ou não de pesquisas empíricas, os estudos que tratam do espraiamento
do projeto ético-político entre aqueles assistentes sociais em atuação no campo das
políticas sociais, evidenciam sua fragilidade histórica não apenas ante à sua persistência

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temporal, como também do alastramento espacial. Ou seja, com a consistência de formas
conservadoras no campo de intervenção, evidencia-se, ante ao projeto ético-político,
uma heterogeneidade de projetos profissionais que uma análise superficial restrita aos
produtos teóricos daqueles situados na academia dificilmente poderia supor.
No entanto, apesar de, nas décadas seguintes, não se registrarem alterações
substanciais nas alternativas de enfrentamento assumidas por este projeto profissional
ante aos demais, é possível conceber certa transmutação na forma com que os demais
projetos profissionais se manifestam. Para me deter ao objeto aqui proposto, é impor-
tante registrar que, assim como outros estudos da década de 2000,6 minha dissertação
de mestrado (Valle, 2012), também identificou que as formas conservadoras no âmbito
da intervenção profissional se manifestam de forma predominante. E o mais curioso:
neste caso, identifiquei que os elementos conservadores persistem, inclusive, entre
assistentes sociais que se vinculam academicamente à formação continuada; e que
reivindicam não apenas a legitimidade e o compromisso com o projeto ético-político,
mas também o marxismo – como referência para sua análise da realidade.
Trata-se, na verdade, de um entendimento que se relaciona com os estudos
mais atuais de Ana Maria Vasconcelos (2015) que, em pesquisa da década seguinte
(de 2010), registra não apenas que o modo de fazer, “centrado na perspectiva con-
servadora hegemônica e dominante em todas instâncias da vida social [...] não foi
superado e tem predominado na categoria profissional até os dias atuais” (ibid, p. 326,

5 Vale mencionar que além do fato de buscarem identificar a ocorrência ou não de pressupostos que extra-
polam o conservadorismo no cotidiano profissional; são produções teóricas cujo conteúdo metodológico se
mostra alinhado aos supostos do projeto ético-político; de significativa disseminação no âmbito da categoria;
e que recorreram a pesquisas empíricas desenvolvidas entre três décadas-chave para o debate em voga,
ou seja, contemplam desde o período do amadurecimento dos elementos que condicionam sua condição
hegemônica até seu contexto mais consolidado.
6 Ver Moreira (2014), Mattos (2012) e Oliveira (2012) – que, mediante o suporte empírico de pesquisas na
década de 00 junto a assistentes sociais que atuam no campo, também concluíram a prevalência do conteúdo
conservador entre as profissionais pesquisadas.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 165

grifos meus), como também o caráter velado com que os projetos conservadores se
desenvolvem na atualidade. O que, segundo a autora, nos coloca diante de um desafio:

consolidar o projeto de formação na formação e na prática ou perder hegemonia no


campo ético-político e teórico-metodológico, para projetos que, às caladas, mas não
na ignorância, nunca deixaram de existir e continuam conquistando corações e mentes
de “boa vontade” e/ou de “boa intenção”, em defesa do capital/Estado (p. 335-336).

Se na pesquisa da década de 90 Ana Vasconcelos havia evidenciado, entre assis-


tentes sociais, uma explícita referencialidade a autores, correntes de pensamento e
valores conservadores, no debate mais atual a autora já passou a indicar, de maneira
categórica, que “não há uma reação que se coloque claramente contra a hegemonia
ético-política do projeto profissional, visto que a maioria dos assistentes sociais rei-
vindica sua referência” (Vasconcelos, 2015, 330-331, grifos meus).7 Noção essa que,
em seu entendimento, revela uma novidade no âmbito da persistência dos projetos
conservadores em nosso tempo, ou seja, a de que,
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obscurecida no âmbito da luta pela manutenção da luta pela hegemonia do projeto


profissional, fica por conta de segmentos da categoria que, afirmando tomar o
projeto profissional como referência, no que fazem ecleticamente, se põem em
aliança com perspectivas que negam não só seus princípios fundamentais, mas suas
referências teórico-metodológicas e, muito frequentemente, técnico-operativas.
É assim que, na análise concreta de situações concretas, podemos identificar
profissionais reivindicando referência/contribuições ao projeto profissional ao
vocalizarem objetivos favoráveis aos interesses dos trabalhadores, mas empreen-
dendo [...] práticas conservadoras (ibid, p. 318).

2. A diversidade de concepções de projeto ético-político enquanto


manifestação da heterogeneidade de projetos profissionais em
disputa no Serviço Social Contemporâneo
Por um lado, a tabela situada na sessão anterior nos remete, imediatamente, a
uma hipótese: nossos avanços teóricos não se fizeram suficientes para disseminar,
entre assistentes sociais, uma apropriação suficientemente rigorosa do marxismo
e, tampouco, universalizar uma noção coesa e inconteste de projeto ético-político.
Para traduzir em miúdos aquilo que dialoga com a proposta deste artigo, trata-se do
suposto de que, entre os assistentes sociais contemporâneos, podem existir concepções

7 De certa forma, os indícios dessa metamorfose conservadora – cuja atualidade é aqui sistematizada por
Vasconcelos (2015) e suas evidências já se manifestavam mais explicitamente em minha dissertação
de mestrado – já se faziam emergentes, ainda que de forma mais sutil, no estudo de Forti (2010). Nesta
pesquisa, apesar da maioria das profissionais pesquisadas não reivindicar, explicitamente, o vínculo com o
projeto ético-político (Forti, 2010, p. 214 – 216), contraditoriamente, em sua maioria, mencionaram (ainda
que formalmente) materializar os princípios do Código de Ética profissional em seu cotidiano interventivo
(ibid, p. 231).
166

distintas não apenas de “profissão”, mas também de “projeto ético-político”. Por


outro lado, se torna possível supor que, a partir dessa ideologização em torno do
conceito de projeto ético-político, para além daquela parcela de profissionais que
renega o “projeto ético-político” como referencialidade de alternativa profissional,
concorrem outras versões de projetos profissionais que, assumindo-o formalmente,
desenvolvem atividades a ele essencialmente diferenciadas e, portanto, particulares.

2.1 A diversidade de concepções de “projeto ético-político”


Para dialogar com essas duas hipóteses, me debruço, a partir de então, num con-
junto de dados colhidos em minha pesquisa de doutorado (Valle, 2023). Para tanto, se
faz oportuno partir das respostas de questionários respondidos por 30 assistentes sociais
em exercício na área. Nelas identifiquei que todas manifestaram ter acordo com o que
chamam de projeto ético-político8 e a ampla maioria (29/30 – 97%) indicou a convicção
de que o materializam em seu cotidiano de intervenção9.

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É preciso dizer que esses dados apresentam uma aparência de que a extensão e
a consistência dessa suposta hegemonia do projeto ético-político sejam não apenas
amplas, mas também absolutas – entre assistentes sociais que atuam no campo. Sem
ratificar sentido, antes de avançar, devo demarcar a existência de um parcial e proposital
“enviesamento” no âmbito desta pesquisa empírica – já que o público analisado, ainda
que, em alguma medida, possa se aproximar ao panorama geral de nossa categoria, não
foi recortado em torno da tentativa de buscar uma amostragem representativa. Pois,
apesar da ampla diversidade de campos de atuação, instituições de formação, vínculos
empregatícios etc., o público pesquisado foi extraído do banco de dados do Projeto de
Extensão Disseminando Direitos e Serviços Sociais (Peddss) do CEFET-RJ – mais
especificamente de um conjunto de questionários (de pré-inscrição, inscrição e avaliação)
desenvolvidos no curso “Serviço Social, projeto ético-político e a abordagem grupal”,
cujo título e emenda tendem a afastar aqueles profissionais que estão em desacordo fron-
tal com tal projeto.10 Dessa forma, a relevância da amostragem não está em sua relativa
aproximação ao panorama geral dos assistentes sociais que atuam no território brasileiro
na atualidade, mas sim em sua capacidade de representar aqueles assistentes sociais
que, inseridos nas instituições provedoras de políticas sociais, mais do que flagradas
exercendo o compromisso com a formação continuada, reivindicam a legitimidade do
projeto ético-político e, também por isso, compreendem estar vinculadas a ele.

8 Dentre essas respondentes, a variação se limitou ao grau de acordo – sendo que 27 manifestaram “acordo
integral” e 03 mencionaram possuir “algumas divergências” (com o projeto ético-político).
9 A profissional que não manifestou materializar o referido projeto profissional, por outro lado, não negou
materializá-lo – optando por uma resposta discursiva, onde se limitou a uma resposta abstrata: “Considero
difícil, mas é uma perspectiva e cotidianamente são necessárias refletir sobre o exercício profissional e criar
estratégia para enfrentar os desafios”. Dentre as demais, optaram por alguma dentre as alternativas dispostas
no questionário: “Sim. Em larga medida” (17/30 – 57%); “Sim. Mas apenas eventualmente” (3/30 – 10%; e
“Sim. Totalmente” (08/30 – 27%).
10 Trata-se de um curso voltado para assistentes sociais e estudantes da área que, na oportunidade, foi orga-
nizado por mim e outros/as assistentes sociais e parceiros/as: Aline Santiago, Felipe Gouveia, Fernanda
Ventura, Leticia Amed, Mariana Lopes, Rafaela Silva e Tamires Santos.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 167

Consequentemente, outros indícios trazem desafios ainda maiores para a tarefa


de discernir, neste mesmo bloco, outros projetos profissionais. O que se evidencia,
principalmente, a partir de dois dados privilegiados neste artigo.
O primeiro se refere à influência do pensamento marxista no modo de analisar
a realidade entre as assistentes sociais pesquisadas, que foi referenciado por 29/30
(97%) das respondentes – quando indagadas sobre que matrizes teóricas conside-
ram adotar na sua análise da realidade. Sendo que, em 27/30 (90%), o marxismo
é mencionado como a única matriz teórica que, no entendimento das profissionais
respondentes, as fundamentam. O que revela que a amostragem coletada ratifica o
processo de amadurecimento dos processos sociais responsáveis pela gestação do
projeto ético-político, cuja repercussão mais notável no âmbito da produção teórica e
formação profissional está na centralidade da influência marxista em nossa formação.
No entanto, esse quadro de espraiamento dos supostos do projeto ético-político
para o âmbito da produção teórica e da formação também se reapresenta a partir de
uma segunda variável: as pesquisas voltadas especificamente para o debate do Serviço
Social. Neste caso, observei que a ampla maioria de referenciais do Serviço Social
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não elimina a interlocução com relevantes autores de áreas como as ciências sociais,
história, filosofia e educação – como, por exemplo, Ricardo Antunes, Virginia Fonte,
Lukács e Paulo Freire. Da mesma forma, o predomínio de autores brasileiros não
exclui a marcante presença de autores internacionais de relevância mundial – inclusive
de clássicos como Marx, Mandel, Mészáros, Ângela Davis etc.

Tabela 1 – Referências teóricas mencionadas reincidentemente


entre as assistentes sociais em atividade
Marilda Iamamoto 14 Ney Almeida 6 Ivanete Boschetti 2 Ricardo Antunes 2

José Netto 12 Maria Bravo 4 Carlos Coutinho 2 outros 1

Ana Vasconcelos 9 Elaine Behring 2 Istiván Mészáros 2 — -

Yolanda Guerra 7 Rachel Raichellis 2 Maurílio Matos 2 — -

Legenda: Dados coletados a partir de questionários de confirmação das inscrições respondidos por 30
assistentes sociais em exercício inscritas no curso “A abordagem grupal do assistente social numa
perspectiva de ruptura com o conservadorismo / RJ”, ministrado em 2020.
Fonte: Jonatas Lima Valle; Estratégias e táticas pedagógicas no cotidiano do assistente social; Doutorado em
Serviço Social/FSS/UERJ, 2020.

Mas, a meu ver, o que parece central para esta exposição é que os questionários
analisados também transmite certo aguçamento do pensamento crítico no Serviço
Social, responsável pelo processo de gestão e conquista de hegemonia e do projeto
ético-político. De tal forma que a predominância, no que diz respeito ao marxismo
como matriz de pensamento e aos autores que referenciam o cotidiano interventivo
serem expoentes do projeto ético-político, se remetem (ainda que indiretamente) ao
dado anteriormente exposto: a reivindicação dessas profissionais pelo vínculo ao
projeto ético-político.
168

A esta altura, considerando-se os objetivos específicos deste artigo, duas ques-


tões me parecem legítimas para movimentar a discussão: entre essas assistentes
sociais, representativas daquela fração que se reivindicam vinculadas ao projeto
ético-político, há uma mesma forma de conceber tal projeto?
Para me aproximar de uma resposta satisfatória em torno destas questões, gos-
taria de partir da análise de dois conjuntos de dados: um voltado para dimensionar
a apropriação dos aspectos inerentes ao projeto ético-político; e outro, que trata da
mesma questão, mas de maneira indireta, ou seja, mediado pela apropriação dos
princípios do Código de Ética do assistente social.
A começar pelo trato do projeto profissional a partir dos princípios de nosso
código, vale resgatar o entendimento de Coelho (2013), para quem o documento se
constitui enquanto “referência primordial para assistentes sociais cuja prática pro-
fissional se orienta pela razão histórico-crítica” (p. 124).
Quando perguntadas sobre quais são os princípios do código de ética que mais
influenciam a prática profissional, apenas 01/30 (3%) das assistentes sociais não assi-

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nalaram nenhum princípio do Código de Ética; enquanto 08/30 (27%) demarcaram
todos princípios ; e 21/30 (70%) os indicaram apenas parcialmente (entre 01 e 10
princípios).11 Apesar do conjunto dos princípios do Código de Ética expressarem o
projeto ético-político que essas assistentes sociais manifestam identidade, na resposta
do questionário, apenas 27% das profissionais indicaram os princípios em sua totali-
dade. O que indica, principalmente, uma apropriação parcializada desses princípios e,
consequentemente, uma contradição efetiva com o projeto ético-político, já que, o que
particulariza sua apropriação por parte do projeto ético-político é a perspectiva da
totalidade com que eles são tomados, ou seja: de maneira organicamente articulada
e complementar. Pois, o movimento de seletivização de parte desses princípios, acaba
por fragmentar a totalidade e, assim, não apenas violar seu conteúdo, mas também
distorcer seu horizonte e inverter sua direção.12

Ou seja, nos onze princípios do Código de ética tomados como totalidade, em uni-
dade e associação com as referências teórico-metodológicas e técnico-operativas
contidas no Projeto de formação da ABEPSS/1996, é que podemos apreender os
aspectos socializantes, emancipatório, revolucionário e anticapitalista que pode
assumir o projeto do Serviço Social brasileiro (Vasconcelos, 2015, p. 297).

Para além da parcialização na apropriação do projeto ético-político, o estudo tam-


bém indicou uma acentuada desproporcionalidade/seletividade entre os elementos que o
compõem, visto que a pesquisa também indicou uma considerável margem de desequi-
líbrio com que os princípios foram distribuídos nesse público – já que, se considerarmos

11 Essa pergunta foi exposta de maneira fechada, ou seja: foram listados todos os princípios do Código de
Ética e foi mencionada a possibilidade de marcar quantas opções considerassem válidas.
12 É, por exemplo, analisada de maneira articulada à “nova ordem societária, sem dominação-exploração
de classe, etnia e gênero” que a “liberdade como valor ético central” pode assumir um sentido essencial,
verdadeiramente revolucionário. Tomada de maneira isolada ela tende ao esvaziamento, a se tornar uma
mera retórica – abstrata e inócua.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 169

o princípio mais mencionado (o “I” – assinalados 22 vezes) e os menos mencionados


(“VII” e o “IX” – apenas 12 vezes), se identifica uma distância de 10 menções.
A relativa marginalização de alguns aspectos contidos entre os princípios do
Código de Ética e a parcialização com que na maioria dos casos esses princípios são
apropriados, por uma via indireta, me permitem afirmar que, para uma proporção
importante dessas profissionais, a consciência identificada em torno do projeto éti-
co-político não é suficiente para subsidiar a elaboração de uma teleologia capaz de
torná-lo um guia efetivo da ação profissional.13
Ao tratar daqueles dados que abordam diretamente a apropriação destas profis-
sionais acerca do que chamam de projeto ético-político, utilizei como categoria de
análise aqueles 05 aspectos – extraídos, principalmente, a partir da análise de Netto
(2007) – que destaquei como sendo particularidades minimamente consensuais e
evidentes no esforço reflexivo de especificar o projeto ético-político brasileiro.
Neste sentido, cabe, de início, destacar que, partindo de respostas abertas do
questionário, dois desses aspectos não foram mencionados por nenhuma das 22
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respondentes: a concepção ampliada de agentes integrantes de um mesmo projeto


profissional (que reconhece a abrangência e diversidade dos sujeitos que o movi-
mentam); e o reconhecimento de que as diferenças que não extrapolam sua essência
são marcas inelimináveis e positivas no interior do projeto. Essas características
não foram negadas, mas o fato de não terem sido, sequer, assinaladas (ainda que
de maneira secundária) durante o esforço de conceitualização pelo conjunto dessas
assistentes sociais, demonstra que, de maneira geral, há um rigoroso desequilíbrio
de assimilação dos aspectos do projeto ético-político entre aqueles que entendem
tomá-lo como referência.

13 Um dado que, portanto, se contrapõe frontalmente àquele anteriormente indicado, referente ao fato de
que 29/30 (97%) das profissionais pesquisadas entendem que, em alguma medida, materializam o projeto
ético-político em seu cotidiano interventivo.
170

Tabela 2 — Eixos centrais do projeto ético-político


expostos pelas assistentes sociais
total de % de
Eixos do projeto ético-político:
marcações marcações

I – Reconhecimento de um vínculo específico como projeto societário de cunho transformador 13 59%

II – Compromisso dirigido às necessidades sociais específicas da classe trabalhadora 3 14%

III – Reconhecimento de que sua condição hegemônica não anula a condição objetivamente
2 9%
desvantajosa e o caráter plural de disputa em relação a outros projetos no interior da profissão

IV – Reconhecimento de que as diferenças que não extrapolam sua essência são marcas
0 0%
inelimináveis e positivas no interior do projeto

V – O reconhecimento de que, para além dos assistentes sociais, o projeto profissional também é
0 0%
composto e enriquecido por outros agentes – como docentes, pesquisadores, etc.

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Legenda: Dados coletados a partir de exercícios realizados por 22 assistentes sociais inscritas no curso
“A abordagem grupal do assistente social numa perspectiva de ruptura com o conservadorismo /
RJ”, ministrado em 2020.
Fonte: Jonatas Lima Valle; Estratégias e táticas pedagógicas no cotidiano do assistente social; Doutorado em
Serviço Social/FSS/UERJ, 2020.

A Tabela 2 também expõe que, além dos aspectos do projeto ético-político


serem apenas parcialmente reconhecidos por parte das respondentes, chama atenção
a relação dessas profissionais com os demais aspectos, marcada pela condição de
desequilíbrio com que são assinalados/assimilados pelas próprias profissionais que
verbalizam essa adesão. O que abre o entendimento de que, também neste mérito,
se trata de uma compreensão parcializada e seletiva em torno dessa concepção de
projeto ético-político – como se perspectivas diferentes pudessem se autoproclamar
signatárias deste mesmo projeto, mediante a negação de parte essencial das colunas
que sustentam sua estrutura.
Além disso, dentre as 22 assistentes sociais que responderam à questão em tela,
sete (7 – 31%) delas não enfrentaram, de maneira efetiva e concreta a indagação;
mesmo quando traziam elementos relacionados ao projeto ético-político, os fazia
de maneira genérica, expressando possuir uma leitura abstrata e evasiva acerca do
projeto específico em questão. Em outras respostas do exercício, cinco (5) delas,
simplesmente, apresentaram distorções e/ou equívocos, portanto não condizem com
as especificidades do projeto ético-político.14 Ou seja, além do caráter evasivo e

14 Para além de elementos evasivos e/ou abstratos, foram identificados 05 equívocos. Esses se deram, basica-
mente, por: uma tentativa de conferir sua identidade a uma especificação documental, expressa em palavras
escritas; por uma interpretação idealista do projeto – equalizando-o à própria erradicação de processos
que só ganham condições de serem efetivados pelo conjunto da classe trabalhadora que comunguem um
projeto societário de cunho transformador; e pela falsa suposição, centralmente debatida neste estudo, de
que haja uma homogeneidade no interior da profissão.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 171

abstrato como a noção de projeto ético-político é tratada por algumas assistentes


sociais (conforme exposto no último bloco de citações), o entendimento a respeito
do projeto ético-político também se faz, eventualmente, equivocado.
De forma geral, seja indiretamente (sob a mediação daqueles dados relativos
aos princípios de nosso código de ética), seja diretamente, o que a análise dos dados
revela de mais importante é que: houve, por parte de uma parcela das respondentes,
uma considerável pobreza no que tange à apropriação conceitual que especifica o
projeto ético-político. Do ponto de vista inequívoco do debate, cabe evidenciar certa
parcialização da apropriação do projeto ético-político e desequilíbrio/seletividade com
que se apropriam dos diferentes aspectos que compõem sua totalidade. Fatores que,
na verdade, dizem respeito à abstração de elementos genéticos do projeto ético-po-
lítico e, consequentemente, ao enviesamento e distorção de sua essência por parte
importante dessas assistentes sociais. Pois, para efeitos do andamento metodológico
da pesquisa, isso se traduz no seguinte entendimento: a despeito de se autodeclararem
de acordo com o projeto ético-político, uma fração expressiva das respondentes não
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apreenderam, com a devida propriedade, a essência do fenômeno que dizem con-


cordar.15 E, exatamente neste sentido, cabe, menção de uma das respondentes, que,
de forma inusitada, acaba por cumprir a função de síntese da análise aqui realizada
sobre o conjunto das respostas:

[...] [o projeto ético-político] é, contudo, significativamente desconhecido,


quase considerado uma marca ou aforismo, que uma parcela da profissão diz
reivindicar, sem entender. Creio que a formação profissional tem um papel
determinante nesta mistificação: reconhecer e atuar neste problema é tarefa
inadiável (assistente social).

2.2 A diversidade (oculta) de projetos profissionais: evidências


empíricas e contradições fundamentais
Este conjunto de dados, ao responder à pergunta enunciada anteriormente –
indicando haver mais de uma concepção de projeto ético-político entre os assistentes
sociais, me leva à uma segunda questão: por trás da heterogeneidade de concepções
de “projeto-ético-político”, também permeiam projetos profissionais qualitativamente
distintos entre si?
A pesquisa de doutorado também indicou que, mesmo diante de um público em
que todas as assistentes sociais manifestam certa homogeneidade no que diz respeito

15 Agora, uma curiosa e relevante ressalva: dessas conclusões, não se pode indicar que essas assistentes
sociais, na medida que for, não materializam o projeto ético-político – já que tal afirmativa apenas se tornaria
possível se pautada na análise da ação (e não do discurso acerca da teleologia) dessas profissionais. Por
outro lado, haja vista a relevância da teoria na conformação da teleologia e desta com a práxis profissional,
isso, de fato, aponta uma tendência maior à não materialização desse projeto por parte dessas profissionais
em específico – ou apenas o fazerem de maneira espontânea e, talvez, sincrética.
172

à concordância com o projeto ético-político do Serviço Social brasileiro, quando


questionadas a respeito do modo de produção capitalista, há certa heterogeneidade
qualitativa em termos de projetos societários. Vejamos:

Gráfico 1 — Projetos societários


15

10

13
5
9
6

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0
1 1
liberalismo reformismo reformismo reformismo outro/não
conservador revisionista revolucionário delimitado

Legenda: Dados coletados a partir de questionários de pré-inscriçãorespondidos por 30 assistentes


sociais inscritas no curso “A abordagem grupal do assistente social numa perspectiva de ruptura
com o conservadorismo / RJ”, ministrado em 2020.Fonte: Jonatas Lima Valle; Estratégias e táticas
pedagógicas no cotidiano do assistente social; Doutorado em Serviço Social/FSS/UERJ, 2020.

O Gráfico acima indica que, nesse plano teleológico (do nível societário), a não-
-homogeneidade observada extrapola o campo da margem mínima de diversidade,
agrupando projetos que, do ponto de vista qualitativo da teoria política, mais que
diferentes, são contraditórios entre si. Para me ater apenas àquelas categorizações
cuja proporcionalidade gera um mínimo de representatividade, se observam: I) um
grupo de 13/30 (44%) se mostra mais alinhado ao reformismo revolucionário e, por
isso, caracteriza-se por ser anticapitalista e revolucionário; II) outro grupo, classificado
como reformismo revisionista (que corresponde a um total de 9/30 (30%) profissio-
nais), encarna, de maneira conflituosa, uma qualidade cumulativamente anticapitalista
e antirrevolucionária; e um último, III) que agrupa 6/30 (20%) assistentes sociais que
demonstram maior aproximação ao reformismo conservador – que aponta para uma
projeção que, apesar de progressista (no sentido de pleitear reformas civilizadoras)
como os anteriores, é cumulativamente antissocialista e antirrevolucionária.
Seguindo, portanto, a sistematização proposta por Netto (2007), que supõe a
indissociabilidade entre projetos societários e profissionais, é necessário compreender
que esses diferentes projetos societários correspondem, na verdade, a projetos profis-
sionais proporcionalmente distintos. Logo, por trás da representação contraditória que
parte dessas profissionais têm acerca do “projeto ético-político”, impera não apenas o
formalismo de uma análise da realidade fetichizada da realidade, mas também uma
apropriação qualitativamente distinta em termos de projeto profissional. Ou melhor, há
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 173

diferenciações relevantes de objetivos (meios e fins) profissionais e, consequentemente,


de valores que legitimam esses objetivos. Diferenças essas que, na tese, se expressaram
em concepções particulares em termos de dimensão pedagógica do assistente social.16
Na medida em que algumas pesquisas mencionaram a reprodução de posturas
conservadoras, mesmo entre assistentes sociais que se dizem comprometidas com o
projeto ético-político, essa compreensão permite retornar à questão da escassez das
alterações proporcionadas pelo projeto ético-político para o âmbito da intervenção
profissional num patamar mais rico de determinações. Já que recoloca a questão das
inalterações do predomínio de práticas conservadoras no campo de intervenção de
maneira mais precisa: não tanto como uma manifestação da contradição entre o âmago e
a retórica das assistentes sociais em geral ou entre suas intencionalidades e ações (onde
o problema estaria situado na incapacidade de se executar o planejado); mas, sem excluir
a possibilidade de concomitância em relação a esses fatores, centrada numa tensão da
relação estabelecida entre meios e fins – ou melhor, como uma pobreza teórica que se
expressa desde o campo da análise teleológica. Por esse viés de análise, antecede à
própria atividade profissional no campo das políticas sociais uma contradição entre os
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supostos analíticos que compõem o âmbito da própria teleologia profissional.

3. Conclusão
É verdade, sim, que os dados aqui explorados expõem a necessidade de inves-
timentos filosóficos capazes de enfrentar, conceitualmente, as concepções genéri-
cas que, sob a aparência de amplitude, relativizam o projeto ético-político e, com
isso, evidenciá-las como uma força ideológica e política que busca tomá-lo abstra-
tamente. Para tanto, se faz necessário demarcar suas especificações/fronteiras com
os demais projetos profissionais e reafirmá-lo enquanto projeto cuja particularidade
passa por sua capacidade imprescindível de favorecer as necessidades essenciais da
classe trabalhadora.
No entanto, o conjunto analítico que compõe os achados da tese em questão
aponta esta problemática em sua inscrição num contexto maior, onde se registra,
mesmo que não de forma absoluta, uma defasagem da produção teórica no Serviço
Social no trato da dimensão teleológica da realidade – em primazia daquela dimen-
são referente às determinações causais da realidade posta. Por isso, a problemática
desenhada neste artigo não aponta, apenas, para uma incapacidade de apreensão
conceitual do que se convencionou chamar de “projeto ético-político”. Se tomado
isoladamente, esse dado não faria mais do que, simplesmente, discernir e categorizar
mentalidades diferenciadas no interior da profissão para, em seguida, classificá-las
em diferentes blocos de projeto profissional a serem, no máximo, valorativamente
hierarquizados entre si. Trata-se, inversamente, de reivindicar uma postura teórica
onde, o plano das determinações causais seja articulado aos investimentos no plano
da análise teleológica profissional como um todo. Ou seja: mais do que reivindicar,

16 Não será possível, aqui, me aprofundar acerca dessas distinções no plano pedagógico da intervenção
profissional – que, inclusive, compõe o eixo central da tese aqui mencionada. O que será socializado pos-
teriormente, em condições mais oportunas.
174

aprioristicamente, este projeto ou falar em seu nome, nossos estudos devem aprofun-
dar as discussões conceituais sobre ele, sem deixar de ressaltar de maneira concreta
suas particularidades.
No entanto, isso deve ser compreendido apenas como parte de um redireciona-
mento intelectual mais profundo que, analiticamente falando, não fracione determi-
nações causais e teleológicas. E que, não abstraindo este último plano da realidade,
a considere desde o debate em torno do projeto revolucionário (e suas distorções e
oposições) até as mediações mais minuciosas ao trato do cotidiano interventivo. Isso,
contudo, sem retroagir aos vícios ecléticos experimentados num passado ainda recente
da profissão – como o messianismo, o fatalismo, o metodologismo, o voluntarismo,
o partidarismo etc. Mas entendendo que, para superá-los objetivamente, mais do que
evitados, esses vícios – facilmente permeáveis às analises que se propõem a debater
o campo da teleologia profissional – devem ser enfrentados e exemplarmente supe-
rados. Mais do que satisfazer-se com a condição histórica de “petição de princípios”,
até aqui prevalecente entre assistentes sociais de campo e relativamente comum na

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academia, trata-se de mover todos os esforços que a conjuntura nos dispõe para ele-
var a autenticidade do projeto ético-político à condição de “guia efetivo de ações”.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 175

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A SAÚDE DO TRABALHADOR E
DA TRABALHADORA NO SUS E A
CONTRIBUIÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL
Debora Lopes de Oliveira

DOI 10.24824/978652515909.6.177-191

1. Introdução
Em tempos nefastos para a democracia, que ameaçam as conquistas e direitos
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da classe trabalhadora, a catástrofe sanitária da pandemia da covid-19 no Brasil evi-


denciou a centralidade do trabalho na vida social e expôs as contradições da relação
capital e trabalho, face ao adoecimento e morte dos (as) trabalhadores (as) decorrentes
da exposição à contaminação pelo vírus da doença. Nesse cenário, discutir a Política
de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora é fundamental e necessário, reconhe-
cendo que nos últimos anos o campo logrou um arcabouço jurídico legal e teve a
sua estruturação no SUS, porém muitos impedimentos e desafios a sua efetivação.1
No Brasil, a Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora2 (STT) se coloca como
uma ‘questão de saúde pública’, a partir do movimento reivindicatório e de luta
da classe trabalhadora, culminando na incorporação das ações de STT na proposta
gestada com o processo da reforma sanitária. O trabalho assume centralidade na
concepção ampliada de saúde, incorporada pelo novo paradigma sanitário concebido
pela determinação social do processo saúde-doença.

1 Esse artigo é resultado da tese de doutorado: OLIVEIRA, Debora Lopes de. Na cadência da Saúde do
Trabalhador: compassos e descompassos da trajetória do CEREST Duque de Caxias / Rio de Janeiro.
Tese (Doutorado em Serviço Social/PPGSS – orientação Maria Inês Souza Bravo) – Faculdade de Serviço
Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 327f, 2022.
2 Adotamos nesse artigo a linguagem inclusiva através da flexão de gênero feminino para a expressão ‘Saúde
do Trabalhador e da Trabalhadora’ por entender que: “A flexão de gênero carrega em si a potência de ser
um gesto de intervenção cultural com impacto simbólico no imaginário coletivo, ainda tão marcadamente
sexista e desigual. É importante destacar que a sociedade brasileira foi forjada sob o sistema patriarcal
e tal fato sustenta uma gama de manifestações de violência contra a mulher que assolam o país. Esse
imaginário simbólico da cultura machista se assenta sobretudo no campo da linguagem, veiculadora dos
sistemas de pensamento. [...] A prática de generalizar uma profissão, um cargo, uma ocupação a partir de
uma única designação de gênero (apenas substantivos masculinos) revela o preconceito contra as mulhe-
res na sociedade brasileira. É negar-lhes o direito de ter o mesmo espaço profissional e intelectual que os
homens, é relação de poder e interfere diretamente na construção imagética e cultural para atribuir papéis
de gênero que perpetuam as desigualdades e violências contra as mulheres.” (Kokay, 2021)
178

Partimos do entendimento que STT é campo que surge da questão social, ques-
tão que fere e mácula, que explora o corpo, dilacera a mente pela alienação. É questão
como Diego Souza (2016) traz à baila, mas também é campo como Minayo-Gomes
(1997) defende e fundamenta, e por se constituir como “questão” e como “campo”
está em constante construção e desconstrução. É um campo ameaçado pelas contrar-
reformas na saúde e trabalhista, mas também na Previdência e Assistência Social.
É uma questão agudizada pela supressão dos direitos e consolidação de um estado
penal, coercitivo e ultraneoliberal.
Este artigo tem por objetivo discutir a STT e as contribuições do Serviço Social
tanto para o debate quanto para as ações e práticas no SUS. Para tanto, está organizado
em três seções: a primeira discute a STT como questão de saúde pública, elucidando
sua origem como questão e como campo; a segunda traça os caminhos percorridos na
sua institucionalização no SUS, recuperando as tensões, limites e desafios; a terceira
tece considerações sobre a contribuição do Serviço Social para a incorporação das
ações de STT na saúde.

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2. A Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como questão de
saúde pública
A relevância da incorporação da STT como ação programática no SUS se dá
pelo reconhecimento de que há uma relação entre processo de trabalho na sociedade
capitalista e o adoecimento da população. A compreensão desta assertiva nos remete
ao debate acerca da “questão social” como fenômeno emergente na sociedade capita-
lista. Conforme caracterizado por Netto (2011), a expressão surge para dar conta do
fenômeno da pauperização absoluta da população trabalhadora na Europa ocidental,
que evidenciava o impacto do processo de industrialização iniciado na Inglaterra em
meados do século XVIII, que se constituiu no aspecto mais imediato da instauração
do capitalismo. Um fenômeno novo e sem precedentes na história onde a pobreza
crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas,
assim, quanto mais a sociedade se revelava capaz de produzir mais bens e serviços,
mais aumentava o contingente de pessoas que não tinha acesso aos bens e serviços,
bem como despossuídos das condições materiais de vida.
Da mesma maneira para pensar a “questão” da saúde dos(as) trabalhadores(as),
temos que apreender a “questão social” como fenômeno próprio da sociedade capita-
lista. Netto (2011) recorre à “lei geral da acumulação capitalista” para afirmar que o
capitalismo produz de forma compulsória a “questão social”, elucidando seu caráter
corolário, necessário. Os diferentes estágios capitalistas geram diferentes expressões
da “questão social”, assim sua manifestação e existência são indissociáveis da dinâ-
mica própria do capitalismo, estando a “questão social” determinada pela exploração,
o traço próprio e peculiar da relação capital/trabalho.
Assim, a questão social expressa o adoecimento e a morte associadas a uma
nova dinâmica de desgaste do(as)s trabalhadores(as), face o aumento da produ-
ção da riqueza material no capitalismo, produzindo a degradação da saúde dos(as)
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 179

trabalhadores(as). A equação sugerida por Maccacaro (1980) ilustra este processo


ao afirmar que “a mais-valia para o capitalista corresponde a menos saúde para o(a)
trabalhador(a)”, evidenciando a natureza contraditória do capital ao degradar a saúde
dos(as) trabalhadores(as).
A contribuição do debate de Souza; Melo e Vasconcellos (2015) sobre a ques-
tão e o campo da saúde do trabalhador guarda relação com o debate aportado acima
sobre a “questão social” no capitalismo. Para os autores, o ‘campo’ da saúde do(a)
trabalhador(a) advém da “questão” da saúde dos(as) trabalhadores(as) decorrente do
antagonismo que rege a sociedade do capital. A ‘questão’, portanto, é mais ampla
e ultrapassa o ‘campo’, tem relação com um processo social objetivo, é construído
nas relações sociais, tem relação com o conjunto de problemas de saúde da classe
trabalhadora advindos do processo de trabalho ou decorrentes de outros aspectos da
vida fora do trabalho, assim como as respostas demandadas sejam políticas, técni-
co-científicas ou sociais. Já o ‘campo’ da saúde do(a) trabalhador(a), “enquanto tal,
investiga e intervém sobre a ‘questão’ e, na medida em que o faz, passa a compô-la,
o que revela a indissociabilidade que possuem na realidade concreta”. Portanto,
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embora as expressões ‘questão’ e ‘campo’ estejam implicadas, envoltas numa indis-


sociabilidade, elas não são sinônimas. Assim, “o uso equivalente das duas expressões
reduz a dimensão da ‘questão’ e alça o ‘campo’ a uma dimensão inalcançável”
(Souza; Melo; Vasconcellos, 2015; Souza, 2016).
Ao longo da história, o capital lança mão de estratégias para garantir a reprodu-
ção da força de trabalho, conservando minimamente a saúde dos trabalhadores, sob
a égide da reorganização da esfera produtiva, com intensificação e sofisticação do
controle e exploração do trabalho, resultando em intensificação e maior complexidade
das formas de adoecimento.
Coadunada à perspectiva até aqui apresentada, o enfrentamento a questão da
saúde dos(as) trabalhadores(as) será abarcada num primeiro momento pelo direito
trabalhista, tendo por premissa a manutenção da força de trabalho e sua capacidade
de reprodução e, posteriormente, pelo direito previdenciário, que também é resultante
da luta dos trabalhadores pela expansão dos seus direitos, surgindo como resposta às
necessidades de reparação ao dano à saúde provocado pelo trabalho, especialmente
pelo fato de que as regras de preservação da saúde não eram capazes de impedir
os danos. Sendo assim, são estabelecidos um conjunto de normas protetoras no
âmbito do direito trabalhista e reparadoras no âmbito do direito previdenciário, que
vão se expandir e se legitimar política e juridicamente na maioria dos países, tendo
como escopo desta expansão a criação da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) em 1919.
É sob a influência da OIT que se institui um agir político, normativo e insti-
tucional alicerçado no binômio proteção-reparação, nos campos trabalhista e pre-
videnciário, respectivamente, vinculados às instituições estatais responsáveis pela
regulação do trabalho e da previdência social de caráter contributivo. O resultado
decorrente foi que na maioria dos países capitalistas as relações saúde-trabalho e
os problemas delas originados ficaram à margem das políticas de saúde pública, ao
longo de grande parte do século XX (Vasconcellos, 2007)
180

Importante constatação é observada por Oliveira e Vasconcellos (2011) ao afir-


marem o surgimento de uma “profunda contradição com o próprio conceito de saúde,
em que as situações de dano decorrentes do trabalho deixaram de ser alvo da saúde
pública, em seus aspectos normativos, epidemiológicos, institucionais e políticos”.
Observam, ainda, que ocorre a consolidação de uma saúde preventiva direcionada
a grandes contingentes populacionais de trabalhadores, sob responsabilidade legal
e política de setores dos aparelhos de Estado vinculados às áreas trabalhista e pre-
videnciária da maioria dos países, apartada e desvinculada das políticas de saúde
preventiva dos demais segmentos da população, consolidados no aparelho estatal
da saúde pública. Fato que pode ser percebido quando, na maior parte dos países, a
formulação das políticas das relações de trabalho–saúde, bem como sua execução,
fica a cargo dos Ministérios do Trabalho e da Previdência Social, sem que estejam
previstas responsabilidades formuladoras e executoras para os Ministérios da Saúde.
Considerando as questões postas até aqui, podemos afirmar que tanto a Medi-
cina do Trabalho quanto à Saúde Ocupacional decorrem da necessidade do capital

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de engendrar estratégias para garantir a reprodução da força de trabalho; os(as)
trabalhadores(as) são objeto e não sujeito, portanto, parte da engrenagem como as
máquinas e os equipamentos, sendo que a sua manutenção se dá no limite daquilo
que é necessário para o capital. Portanto, a intervenção para enfrentar a ‘questão da
saúde dos(as) trabalhadores(as)’ está sujeita aos interesses do capital e não dos(as)
trabalhadores(as), por isso, a ‘questão’ não é tratada na perspectiva do direito à saúde
e sim na perspectiva do trabalho, corporificando o binômio proteção- reparação.
De acordo com Minayo-Gomes e Thedim-Costa (1997, p. 25), no Brasil, a
“questão da saúde dos(as) trabalhadores(as)” se impõe no processo de democrati-
zação do país, à medida que é assumida sob uma nova conotação tanto no campo
teórico quanto das práticas. A mudança está associada à conquista de direitos sociais
e políticos mais amplos da classe trabalhadora, bem como pela atuação de novos
sujeitos políticos, tanto institucionais quanto de setores sindicais que expressam
compromisso com a luta dos trabalhadores(as).
Os alicerces para o surgimento do paradigma da STT são criados pela refle-
xão crítica acerca da limitação dos modelos vigentes – a Medicina do Trabalho e a
Saúde Ocupacional – utilizados historicamente para enfrentar a questão da saúde
dos trabalhadores e das trabalhadoras. Isto reflete uma nova forma de apreender a
relação trabalho-saúde, de intervir nos ambientes de trabalho e, consequentemente,
de introduzir na Saúde Pública práticas de atenção à STT.
O novo paradigma surge do alinhamento de interesses determinados historica-
mente, o que estabelece as condições para que as questões postas no plano da luta
de classes pudessem ser enfrentadas do ponto de vista científico e epistemológico,
apontando para o desafio da produção de conhecimento de acordo com as neces-
sidades dos trabalhadores(as). Decorre, também, a exigência de uma perspectiva
teórica dialética, interdisciplinar e multiprofissional. A premissa metodológica do
campo, oriunda da influência do Modelo Operário Italiano (MOI), está centrada na
interlocução com os próprios trabalhadores e no reconhecimento de que estes são
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 181

depositários de um saber emanado da experiência e sujeitos essenciais quando se


visa a uma ação transformadora (Minayo-Gomez; Thedim-Costa, 1997).
Mendes e Dias (1991, p. 347) afirmam que a STT surge da contestação dos
modelos tradicionais de resposta à ‘questão da saúde dos(as) trabalhadores(as)’ e
pode ser entendida como um campo em construção no espaço da saúde pública,
que tem objeto definido no processo saúde e doença dos grupos humanos em sua
relação com o trabalho,
Para Lacaz (2007), a configuração do campo da STT é composta por três vetores:
a produção acadêmica, a programação em saúde na rede pública e o movimento dos
trabalhadores. Podemos denominar estes vetores como um tripé fundamental na con-
formação do campo da saúde do trabalhador, responsável na sua origem pela mudança
no paradigma de enfrentamento à questão da saúde do(a) trabalhador(a) no Brasil.
Interessa destacar que é no campo da STT que as ações de enfrentamento à
“questão da saúde dos(as) trabalhadores(as)” estão em estruturação no SUS. Desta
forma, devem assumir a saúde como processo social e uma prática articulada ao saber
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técnico e ao saber operário, com o protagonismo do(a) trabalhador(a). Sem descon-


siderar que o “campo” não pode se colocar de fora, por estar circunscrito ao sistema
do capital, ele evidencia a “questão” expondo os limites tanto científicos como no
plano das práticas institucionais, sujeito às regras do Estado burguês ultraneolibe-
ral, dominado por uma elite agrária, escravista, sexista, machista, racista, etarista,
regida por uma institucionalidade estatal porta voz da classe dominante. Do mesmo
modo, a produção do conhecimento na academia reproduz a lógica patronal através
do produtivismo neoliberal, colonizado e conservador. Por seu turno, a questão da
STT pulsa pela subversão à ordem instituída, almejando a emancipação da classe
trabalhadora (Vasconcellos, 2023).
A apropriação de um debate teórico-conceitual de cunho ontológico sobre “a
questão da saúde dos(as) trabalhadores(as)” expressa no antagonismo da relação
capital e trabalho. A partir desse aporte teórico, é possível identificar as formas de
enfrentamento à “questão da saúde dos(as) trabalhadores(as)”, a saber: a medicina do
trabalho, a saúde ocupacional e a saúde do trabalhador. Tais questões serão abordadas
na próxima seção do artigo que apresenta uma reflexão sobre a institucionalização
do campo da STT no SUS no Brasil.

3. Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora no SUS: o caminho


percorrido
No marco histórico da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (STT) no Brasil,
a gênese das ações se encontra na década de 1970, quando o movimento dos(as) tra-
balhadores(as) assume a saúde como bandeira de luta, associada a uma preocupação
de pesquisadores e técnicos com a questão da relação entre saúde-trabalho-doença.
Enquanto campo de investigação/ intervenção a STT está, também, associada ao
ideário da Reforma Sanitária, no qual a questão da saúde passa a contar com a par-
ticipação de novos sujeitos no debate das condições de vida da população brasileira e
182

das propostas governamentais apresentadas para a área. Colaborando para a ampliação


do debate que envolveu a sociedade civil, a saúde deixou de ser interesse apenas
dos técnicos, sendo reconhecida numa dimensão política fortemente vinculada à
democracia (Bravo, 2007).
A significância da expressão “Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora” implica
na apreensão do seu sentido segundo a concepção da Saúde Coletiva, trazendo à tona a
questão saúde associada ao questionamento sobre em que condições de vida e trabalho
a sociedade vive seu desenvolvimento, possibilidade que se abre a partir da Medicina
Social Latino-americana, ao assumir um conceito de trabalho que incorpora a ideia de
processos de trabalho como uma “categoria” explicativa inscrita nas relações sociais
de produção existentes entre capital e trabalho, conforme a concepção marxista do
trabalho na sociedade capitalista (Lacaz, 1996).
É no andar a vida, imanente e transcendente às relações sociais, que o traba-
lho se apresenta como determinante do processo de produção e reprodução da vida
social. Assim, o referencial da STT tem como característica principal o reconheci-

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mento do(a) trabalhador(a) como sujeito, protagonista de sua história, valorizando
o saber operário em relação ao processo de trabalho. A saúde é a condição humana
para o andar a vida de forma plena produzindo e reproduzindo condições materiais
objetivas e subjetivas de existência, estas, por conseguinte, dependentes do trabalho
e da capacidade de trabalhar que depende da saúde. Desse modo, “como constructos
sociopolíticos do andar a vida, da forma mais plena (ou melhor) possível, conclui-
-se que sem saúde não se trabalha, sem trabalho não se tem saúde” (Vasconcellos;
Oliveira, 2011, p. 34).
No Brasil, com o processo de redemocratização e da constituinte que a STT
passa a ser reconhecida como uma função de saúde pública. Pois, até então, isto era
uma atividade ligada ao Ministério do Trabalho e/ou à Previdência Social. Desta
forma, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), as ações em STT são absor-
vidas como uma atribuição do SUS. A CF de 1988 estabelece a saúde como direito
de todos(as) e contempla a redução de riscos, doenças e agravos, bem como o acesso
à serviços e ações na perspectiva ampliada da promoção, proteção e recuperação,
alçando a saúde o patamar de direito social, o que implica na responsabilização do
Estado e no exercício do controle democrático pela sociedade civil.
O direito à saúde passa a ser compreendido sob um novo paradigma, abrangente,
não estando ligado apenas à questão da ausência de doenças, mas incorporando
novos elementos, determinantes sociais que possam vir a interferir no processo saú-
de-doença. Assim, pensar em saúde significa pensarmos nas relações que as pessoas
estabelecem com o meio físico, social e cultural.
O processo saúde-doença envolve múltiplos fatores que estão relacionados às
condições de vida, à maneira como nascem, vivem, morrem, bem como à inserção
no mercado de trabalho e na sociedade. Neste aspecto, ao tratar de STT, estes deter-
minantes são explicitados no conceito expresso na I Conferência Nacional de Saúde
dos Trabalhadores de 1986, enquanto condições dignas de vida; pleno emprego; tra-
balho estável e bem remunerado; oportunidade de lazer; organização livre, autônoma
e representativa de classe; informações sobre todos os dados que digam respeito à
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 183

relação vida/saúde/trabalho; acesso a serviços de saúde, com capacidade resolutiva


e em todos os níveis; efetiva participação em quaisquer decisões sobre assuntos
referentes à classe; recusa ao trabalho sob condições que não considerem este e
tantos outros direitos.
Tal definição demonstra uma visão integral de saúde, onde ter saúde é dispor
do direito ao trabalho, à informação, à participação, o direito à saúde é, então, uma
questão de cidadania. O artigo 200 da Constituição de 1988 inclui no conjunto de
atribuições do SUS a execução de ações em STT e a colaboração na proteção do meio
ambiente, nele compreendido, o de trabalho, incorporando uma dimensão social na
abordagem e na intervenção em STT.
Se antes a relação ‘trabalho e saúde’ era tratada como competência do Direito do
Trabalhista, coube a correção desta distorção à Constituição de 1988, ao incorporar a
STT como uma das atribuições dos SUS nas três esferas de governo. A CF de 1988
garante ao(a) trabalhador(a) o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por
meio da edição de normas de saúde, higiene e segurança como uma proteção especial.
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A STT se constitui como uma prática social que se propõe a contribuir para a
melhoria das condições de vida e saúde das(os) trabalhadores(as) e, por extensão, da
população em geral, a partir da compreensão das relações entre a inserção pessoas
em processos de trabalhos particulares, o consumo de bens e serviços e o conjunto
de valores crenças, ideias e representações sociais, próprios de um dado tempo e
lugar. Na condição de prática social, as ações de STT apresentam dimensões sociais,
políticas e técnicas indissociáveis, relacionadas à determinação social do processo
saúde-doença que possibilite abordar, conhecer e intervir no sofrer, adoecer e morrer
das classes e grupos sociais inseridos em processos produtivos.
Na Lei 8080, de 19 de setembro de 1990, a STT é definida como um conjunto de
atividades que se destina à promoção e a proteção da saúde dos(as) trabalhadores(as),
assim como visa a recuperação e reabilitação daqueles(as) submetidos aos riscos e
agravos advindos das condições de trabalho. Conjunto de atividades que se refere a:
assistência ao(a) trabalhador(a) acidentado(a), os estudos, a avaliação e o controle
de riscos e agravos potenciais à saúde existentes nos processos de trabalho; a nor-
malização e fiscalização das condições de trabalho relativas a substâncias, produtos,
máquinas e equipamentos que apresentam riscos à saúde dos(as) trabalhadores(as);
a avaliação do impacto das tecnologias sobre a saúde; a informação sobre os riscos
e os resultados decorrentes da fiscalização e das avaliações ambientais aos(a) traba-
lhadores(as), entidade sindical e empresa, e a revisão periódica da listagem oficial
de doenças originadas no processo de trabalho.
Com a criação do SUS, a STT conquista expressão normativa, ao passo que
inaugura a incursão para que a área possa se expandir e se espraiar dentro do SUS,
e de onde a intervenção sobre os fatores determinantes do processo saúde-trabalho-
-doença deve ter início (Vasconcellos; Aguiar, 2017).
A conformação do SUS, movimento vivo e dinâmico, remete a desafios expres-
sos no plano jurídico-formal, técnico-institucional e sociopolítico. Quanto a isso,
Bravo (2011) assinala para a incorporação das conquistas constitucionais no âmbito
das Constituições Estaduais, da necessária expansão da rede de serviços e elevação de
184

sua qualidade, bem como da incorporação de novas práticas institucionais no cotidiano


da estruturação do SUS e da formação da consciência sanitária e de maior organiza-
ção popular. Tais desafios impactam a forma como a STT foi incorporada no SUS.
O processo de institucionalização do campo da STT, enquanto política de saúde
pública, pode ser compreendido em três momentos diferenciados, conforme Lacaz
(2005): o primeiro, entre 1978 e 1986, como parte do movimento pela Reforma
Sanitária, tendo como marco 1ª Conferência Nacional de Saúde dos Trabalhadores
(CNST), que estabelece a inclusão da atenção à saúde do trabalhador como uma
prática de saúde pública. O segundo momento é compreendido entre 1987 e 1997,
tendo como marco a 2ª CNST, a institucionalização das ações na rede de assistência
à saúde e a consolidação do arcabouço legal do SUS. Já o terceiro momento se dá
a partir dos anos 2000 e se caracteriza pela criação da Rede Nacional de Atenção
Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), pela realização da 3ª CNST em 2005
e pela 4ª CNST em 2014.
A análise desse processo permite inferir que a institucionalização da STT no

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SUS não passou da emissão de uma carta de intenções, corporificada em instrumentos
normativos que não se mostraram suficientes para a concretização das ações de forma
sistêmica na rede. Embora a partir da década de 1990 as áreas técnicas de STT tenham
maior visibilidade no país, no entanto a sua institucionalidade é periférica e margi-
nal, em detrimento das dificuldades de intervenção sobre os fatores determinantes
do processo saúde-trabalho-doença (Coutinho, 2015; Vasconcellos; Aguiar, 2017).
No período que antecede a criação da RENAST, observa-se uma série de argu-
mentações críticas em relação à forma como a área foi incorporada ao SUS, mate-
rializada na ausência de uma política de caráter nacional para a área, o que só ocorre
com a publicação da Política de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT),
em 2012. Por outro lado, as políticas levadas a cabo, até os anos 2000, pelas áreas do
trabalho e previdência social, caracterizam-se pela proteção à saúde do(a) trabalha-
dor(a) de forma tutelada, considerando os agentes passivos na relação saúde-trabalho;
entendendo a preservação da saúde como exigência contratual de trabalho e não
como um direito pleno de cidadania, transferindo à corporações técnicas a decisão
final do que fazer para atenuar os riscos à saúde no trabalho, sem considerar a melhor
formulação técnica, culpabilizando o(a) trabalhador(a) pela perda da sua saúde e sua
vida; usando limites de tolerância biológicos e ambientais como padrões de saúde;
mascarando a responsabilidade do empregador através de um seguro de risco social;
impondo ao próprio corpo do(a) trabalhador(a) mecanismos de proteção contra os
riscos à sua saúde, remunerando “compensatoriamente” a manutenção das situações
de risco; e, entre outras variáveis, emudecendo as representações sindicais dos(as)
trabalhadores(as) nesta questão. (Oliveira; Vasconcellos, 2000)
A incorporação da STT como ação de saúde pública a partir da Constituição de
1988 e subsequentes legislações que a legitimam no âmbito do SUS tiram da clandes-
tinidade ações já desenvolvidas no decorrer da década de 1980. A sua incorporação
formalmente, através das referidas legislações, apontava, então, como já abordado,
para o desafio de implantar em todos os níveis de atenção e serviços de saúde a STT,
para tanto, era preciso dar visibilidade a área e propor mecanismos de articulação e
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 185

integração, considerando que enquanto parte do SUS deveria ser pensada e organizada
de acordo com os seus princípios doutrinários e organizativos.
Os desafios que emergem no período pós-constituinte, como já observado, não
são exclusivos da área da saúde do trabalhador, mas irão impactar com maior inten-
sidade nesta área por se tratar de um campo novo de atuação na saúde. As tensões e
os conflitos de interesse que perpassam os embates deste campo irão refletir na forma
como a STT foi se incorporando no SUS, como referem vários autores, destacando a
marginalidade com que ocorre a sua institucionalização como ação programática no
SUS. Deste modo, não seria incoerente afirmar que seja esta uma marca seminal deste
processo, decorrente também de uma concepção distorcida sobre suas atribuições,
como algo que não é do campo da saúde e sim do direito trabalhista e previdenciário.
Durante a década de 1990, considerada um divisor de águas entre as práticas
voluntaristas e periféricas do sistema e a necessidade dar respostas aos princípios
norteadores do sistema de saúde, de modo legítimo e não ‘clandestino’ (VASCON-
CELLOS; SILVA, 2004, p. 192), há um crescimento vertiginoso das ações de saúde
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do trabalhador no SUS, a partir da criação de Programas de Saúde do Trabalhador


e Centros de Referência, ação associada ao processo de municipalização da saúde3.
Neste compasso, alguns municípios e serviços passam a incorporar a saúde do tra-
balhador no âmbito de suas ações. Porém, sem estabelecer uma articulação entre os
serviços, caracterizando a fragmentação e dispersão das ações.
No entanto, contrariamente ao proposto e idealizado, o processo de institucio-
nalização da STT no SUS enfrenta diversos entraves. O principal deles é apontado
por Vasconcellos (2007) ao afirmar que o SUS em sua missão, enquanto sistema, não
incorporou a centralidade do trabalho como categoria nodal na determinação social do
processo saúde-doença das populações. Como vimos, se o enredar da rede no período
anterior ao golpe de 2016 já se colocava como uma situação que exigia enfrentamento,
no pós-golpe, a situação se torna mais crítica em face da agudização das expressões
da questão social, com o aumento da precarização do trabalho, com a ampliação dos
retrocessos em relação aos direitos e às políticas sociais. Situação agravada, na atual
conjuntura, face ao processo de desmonte do SUS, que tem no governo Bolsonaro
a sua face mais perversa, caracterizada pela radicalização e ofensiva da política
ultraneoliberal e por fortes ataques aos direitos sociais e às liberdades democráticas.
De acordo com este estudo, no processo de implantação da RENAST, foram
identificados avanços e limites. Impõe-se a contínua reflexão para formulação de
estratégias que ajudem na superação dos limites na sua efetivação. Por conseguinte,
pensar a RENAST criticamente não consiste na negação desta rede e nem tão pouco
ignorar seus possíveis avanços, porém é uma ação necessária à revisão das estratégias

3 Pestana e Mendes (2004, p. 7) afirmam que “A Constituição Federal de 1988 instituiu um federalismo
singular ao definir os municípios como entes federativos com competências tributárias e autonomia política
e administrativa. E deu as bases para a municipalização do SUS. A Lei nº 8.080/90 consolidou o aparato
legal de municipalização do sistema público de serviços de saúde. Mas foi a NOB SUS/93 – editada após
a realização de uma Conferência Nacional de Saúde que teve como lema “A municipalização é o caminho”
– que consolidou esse processo de descentralização do SUS ao instituir as formas de gestão municipal:
incipiente, parcial e semiplena.”
186

e dos caminhos percorridos, para entender, como afirma Vasconcellos e Leão (2011
por que a “rede não enreda”, levando em consideração elementos que decorrem
não apenas das práticas, da gestão direta das ações, mas também as questões estru-
turantes que estão relacionadas com a conjuntura dos retrocessos sociais, políticos
e econômicos desencadeados através das contrarreformas, em particular na saúde.
A perceptível manutenção das dificuldades, alvo de discussão e mobilização
no ordenamento das ações desde o final dos anos de 1990, mesmo após a criação da
RENAST, exibe a relevância de repensar, avaliar e construir proposições que cola-
borem para a efetivação das mudanças necessárias na perspectiva da integralidade.
O que deve incorporar todos os sujeitos políticos envolvidos com a STT, particu-
larmente os trabalhadores, de tal forma que os mecanismos utilizados oportunizem
uma ampla participação social, onde as necessidades, demandas e percepções dos
trabalhadores sejam reconhecidas.
Nessa mesma direção, Lacaz (1997) chamava atenção para a persistência de uma
dicotomia e a pulverização de ações concorrentes nos organismos da esfera federal

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que têm atuado no campo da saúde dos trabalhadores e nos órgãos do Ministério da
Saúde. E, também, a prevalência, a centralização administrativa e a atuação mediante
a delegação de atribuições que emanam a nível federal, as Delegacias Regionais do
Trabalho (DRTs) e Posto do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), contrariando
o princípio de descentralização e autonomia em nível local. Ocorre que superar esta
situação é crucial para que se avance rumo a políticas eficientes e eficazes no campo
da saúde dos trabalhadores.
No que tange à organização de um sistema voltado para a saúde do(a) traba-
lhador(a), percebe-se uma fragmentação de ações e responsabilidades, evidenciadas
pela existência de inúmeras instituições com atribuições nesta área. A multiplicidade
de ações provoca um resultado negativo, com fortes reflexos nesta área de atuação.
A formulação de uma política de STT, segundo Minayo-Gomez e Thedim-Costa
(1997), deveria abarcar uma ampla gama de condicionantes da saúde e da doença.
E, ainda, consolidar ações que abranjam da vigilância à assistência. A superação de
uma intervenção limitada no campo da saúde do trabalhador depende da colocação
deste como objeto central de preocupação, fato que nunca ocorreu. Pois devido aos
percalços da gestão financeira e de recursos humanos na implementação do Sistema
Único de Saúde há uma tendência de tratar como questão menor a atenção integrada,
mas diferenciada aos trabalhadores. As ações nesta área são reflexo do empenho de
alguns profissionais e não de uma política pública efetiva e assumida.
Fruto desse quadro de tensões e ações, a Rede Nacional de Atenção Integral à
Saúde do Trabalhador – a RENAST – emerge no Brasil como parte de um processo
histórico desencadeado no final dos anos 70 – e se estrutura através de três portarias
ministeriais. A primeira, Portaria 1.679, de 19 de setembro de 2002; a segunda,
Portaria 2.437, de 7 de dezembro de 2005, revogada pela terceira Portaria 2728, de
11 de novembro de 2009.
A constituição e formalização dessa rede no SUS foi permeada por desencontros
institucionais, disputas e dissensos, materializados nas críticas tanto de técnicos,
quanto dos movimentos sociais dos(as) trabalhadores(as) e de gestores, principalmente
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 187

em relação ao viés assistencialista enfatizado nas ações propostas. Por outro lado,
houve um apoio significativo pelos profissionais e técnicos da área da STT e setores
do movimento dos(as) trabalhadores(as), reconhecendo na formulação “uma opor-
tunidade de institucionalização e fortalecimento da Saúde do Trabalhador, no SUS”
(Dias; Hoefel, 2005, p. 821)
Enquanto uma estratégia para atenção à STT deveria integrar e articular as
linhas de cuidado da atenção básica, da média e alta complexidade ambulatorial,
pré-hospitalar e hospitalar, sob o controle social, nos três níveis de gestão: nacional,
estadual e municipal. O eixo central das ações são os Centros de Referência em Saúde
do Trabalhador – CEREST que assumem o papel: “de suporte técnico e científico e
de núcleos irradiadores da cultura da centralidade do trabalho e da produção social
das doenças, no SUS”. Sendo o “lócus privilegiado de articulação e pactuação das
ações de saúde, intra e intersetorialmente, no seu território de abrangência [...]”
(Brasil, 2002).
A próxima seção se dispõe a discutir, a partir das reflexões sobre a constituição do
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campo da STT no SUS, bem como dos desafios da apropriação da questão da STT de
forma central, a contribuição do Serviço Social na implementação das ações no SUS.

4. Contribuições do Serviço Social para a implantação de ações


de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora no SUS.
A inserção do Serviço Social no campo da STT remete à reflexão do papel
dos(as) profissionais da saúde na atenção aos trabalhadores(as), bem como a lógica
institucional para a intervenção no processo saúde doença. Freire (1998) destaca os
traços comuns entre a profissão e a STT, seja pela trajetória histórica de renovação
a partir da década de 1960, consolidada nos anos de 1980 e 1990, seja pela interlo-
cução crítica com as ciências sociais pela influência do materialismo histórico, bem
como pelos impactos negativos do processo de reestruturação produtiva e neoliberal,
a partir dos anos de 1990.
Mendes e Wünsch (2011) destacam que para o Serviço Social a STT se esta-
belece como uma exigência ética e política frente aos impactos das transformações
sociais na esfera do trabalho e seus desdobramentos sobre a sociabilidade humana.
No entanto, ressaltam que a área representa uma ‘dispersa demanda’ para a cate-
goria; embora em diferentes espaços sócio-ocupacionais o Serviço Social venha
incorporando essa demanda, ela ainda é difusa e integrada de forma incipiente na
agenda da profissão.
A Agenda Política do XIII CBAS, realizado em Brasília, no período de
31/07/2010 a 05/08/2010, aprova que a categoria profissional deve promover o
aprofundamento dos debates e da produção de conhecimentos sobre a inserção do
Serviço Social no campo da Saúde do Trabalhador, bem como contribuir para a sua
efetivação como política pública.
Cabe considerar que o exercício profissional é expressão das relações sociais
vigentes na sociedade, polarizada por estas relações e interesses sociais. Nesta
188

mediação, participa tanto dos mecanismos de dominação e de exploração, quanto


de respostas às necessidades da classe trabalhadora, participando de um processo
que tanto contribui para a continuidade da sociedade de classes quanto para criar as
possibilidades de sua transformação (Iamamoto, 2009).
Dessa forma, fica evidenciada as vinculações do Serviço Social com as propostas
do movimento da área da STT no Brasil, dado que projeto ético-político profissional
expressa um projeto de transformação da sociedade. Não há dúvidas de que o projeto
ético-político do Serviço Social brasileiro está vinculado a um projeto de transfor-
mação da sociedade; tal vinculação se dá pela própria exigência que a dimensão
política da intervenção profissional impõe: ao atuar no movimento contraditório das
classes, se imprime uma direção social às ações profissionais que favorecem a um ou
a outro projeto societário. Nas diversas e variadas ações efetuadas como plantões de
atendimento, salas de espera, processo de supervisão e/ou planejamento de serviços
sociais, das ações mais simples às mais complexas do cotidiano profissionais, nelas
mesmas, são embutidas determinada direção social entrelaçada por uma valoração

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ética específica (Teixeira; Braz, 2009)
O compromisso estabelecido com a classe trabalhadora, a explicitação de prin-
cípios e valores ético-políticos, a referência da direção social da profissão com uma
matriz teórico-metodológica marxista, a crítica a ordem social burguesa e as lutas
e posicionamentos acumulados pela categoria profissional nos últimos anos, são
elementos constitutivos do projeto profissional. Esses elementos marcam, também,
a aproximação da profissão com o campo da STT, traço relevante, tendo em vista
que a saúde do trabalhador se torna uma questão de saúde pública devido à luta da
classe trabalhadora.

4. Considerações Finais
A STT passa por mudanças significativas no cenário contemporâneo devido às
conquistas obtidas no plano jurídico-institucional, no entanto persistem entraves à
sua efetivação, postos pelo contexto da política neoliberal de desmonte do Estado,
a partir dos anos 1990. Destaca-se que a implementação da RENAST foi realizada
por um Estado que teve a sua atuação marcada pela restrição de direitos dos traba-
lhadores, bem como pela diminuição dos investimentos sociais e crescimento da
desproteção social.
No âmbito da saúde, temos como reflexo dos tensionamentos mencionados o
questionamento do Projeto da Reforma Sanitária e a consolidação do Projeto De
Saúde Articulado ao Mercado, pautado na política do ajuste cabendo ao Estado a
garantia do mínimo aos que não podem pagar, deixando para o setor privado o atendi-
mento aos cidadãos consumidores (Bravo, 2004). Nesta conjuntura, surge um terceiro
projeto, nomeado por Bravo como “Projeto da Reforma Sanitária Flexibilizada”, o
projeto do SUS possível apoiado por representantes históricos da Reforma Sanitária
que diante dos limites da conjuntura atual, abrem mão de algumas bandeiras que
marcaram a luta dos anos 80 e a essência da Reforma Sanitária.
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 189

O processo histórico e político mostra que a implementação da STT no SUS


ainda se coloca como um desafio, considerando a persistência dos limites que na
conjuntura atual são adensados pela contrarreforma do Estado, processo adotado nos
anos de 1990 pelos governos brasileiros, pela adesão ao neoliberalismo, e aprofundado
nos governos antidemocráticos.
Os efeitos das contrarreformas na saúde dos (as) trabalhadores(as), e no campo
da STT no SUS são deletérios, incidindo na ampliação da precarização do trabalho,
impactando negativamente na saúde dos(as) trabalhadores(as), na desarticulação
da organização coletiva e no desmonte e deslegitimação das instituições públicas
direcionadas à proteção dos(as) trabalhadores(as). E o campo da STT no SUS deve
contribuir para não só expor os seus efeitos nos adoecimentos, agravos e acidentes,
mas enquanto resistência dar visibilidade à questão da STT, oferecer suporte e sub-
sidiar a luta dos trabalhadores.
A construção de alternativas deve retomar os processos que deram origem ao
campo da STT na direção dos interesses da classe trabalhadora, buscando o seu pro-
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tagonismo, rompendo com o imobilismo, com a carapaça do tecnicismo, trazendo


à tona o paradigma da saúde do trabalhador para o SUS. Para tanto, deve-se ocupar
os espaços de controle social, existentes por dentro e por fora do sistema e ousar
construir novos caminhos, vias que possibilitem tornar a classe trabalhadora, nova-
mente, sujeito deste processo.
A urgência do agir em STT requer uma tomada de decisão em saúde pública
em relação às condições de saúde e as consequências na vida, no corpo e na mente
dos(as) trabalhadores(as). Uma urgência que se mostra no cotidiano, nos noticiários,
nas redes sociais. Embora os trabalhadores sejam atendidos majoritariamente pelo
SUS, há uma ausência de informações sobre o trabalho, suas condições e sua relação
com os adoecimentos. Persiste a dificuldade de reconhecer a centralidade do trabalho
na determinação social do processo saúde doença, desse modo, a realidade catas-
trófica dos acidentes, adoecimentos e mortes no/do trabalho é mascarada. A ruptura
requer uma tomada de decisão ostensiva, sistemática, cotidiana e transformadora,
comprometida com a dignidade e a preservação da vida e da saúde no trabalho como
direito humano.
190

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ÍNDICE REMISSIVO
A
Abordagem grupal 166, 167, 170, 172
Assistente social 11, 16, 48, 116, 118, 119, 120, 123, 124, 125, 126, 127,
128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 162, 167, 168,
170, 171, 172, 173, 175, 176, 197, 198
Autônoma 29, 85, 182
C
Compensatoriamente 184
Conservadorismo 10, 11, 12, 16, 18, 19, 20, 55, 62, 63, 67, 69, 101, 104,
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141, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155,
156, 157, 161, 163, 164, 167, 170, 172, 176
D
Determinação social 111, 177, 183, 185, 189
Direitos humanos 10, 11, 47, 55, 60, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 68, 69, 72, 74,
108, 115, 143, 146, 198, 199
Direitos sociais 18, 28, 71, 74, 75, 78, 80, 82, 84, 85, 104, 113, 114, 116,
129, 133, 180, 185, 190, 191
Direito trabalhista 179, 185
E
Ecletismos 12, 159
Estratégia 11, 45, 53, 60, 62, 67, 84, 85, 105, 106, 107, 117, 119, 121, 166,
187, 190
F
Fascismo 9, 10, 23, 24, 26, 27, 29, 30, 33, 34
Fatores determinantes 183, 184
Força de trabalho 10, 11, 27, 28, 29, 42, 44, 55, 56, 57, 58, 59, 64, 65, 66, 67,
76, 78, 81, 82, 83, 90, 92, 95, 98, 112, 119, 120, 122, 124, 130, 133, 179, 180
Frente nacional contra a privatização da saúde 11, 103, 107, 110, 111, 112,
113, 114, 116, 117, 118, 198
194

I
Imobilismo 189
Indissociáveis 81, 115, 159, 178, 183
Institucionalização 13, 38, 176, 178, 181, 184, 185, 187
L
Liberdades democráticas 104, 185
M
Marxista 10, 12, 39, 51, 53, 55, 57, 114, 115, 150, 156, 162, 163, 167, 175,
182, 188
Mecanismos 15, 62, 83, 88, 113, 146, 152, 184, 186, 188

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Modelos tradicionais 181
Q
Questão agrária 11, 87, 88, 89, 93, 97, 98
R
Racismo 11, 17, 19, 25, 32, 82, 87, 88, 89, 90, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 125
Reforma sanitária 103, 112, 114, 177, 181, 184, 188, 190
Riquezas 18, 76, 93, 94, 178
S
Saúde 11, 12, 30, 39, 52, 56, 58, 65, 79, 82, 96, 98, 103, 104, 105, 106, 107,
108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 116, 117, 118, 134, 137, 139, 148, 176,
177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191,
197, 198, 199
Saúde do trabalhador 12, 107, 177, 178, 179, 181, 182, 184, 185, 186, 187,
188, 189, 190, 191
Serviço social 3, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 20, 44, 53, 55, 69, 84, 86,
101, 103, 111, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 123, 124, 125,
126, 127, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 141, 142, 149, 150,
151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 159, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167,
168, 170, 172, 173, 175, 176, 177, 178, 187, 188, 190, 191, 197, 198
Setores sindicais 180
Suporte técnico 187
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 195

T
Táticas pedagógicas 167, 170, 172
Trabalhador 12, 33, 56, 65, 78, 87, 89, 90, 91, 92, 94, 96, 107, 124, 125, 127,
128, 131, 132, 133, 134, 135, 137, 177, 178, 179, 181, 182, 183, 184, 185,
186, 187, 188, 189, 190, 191
Trabalho não remunerado 11, 55, 56, 57, 58, 59, 64, 65, 67
U
Universidade do Estado do Rio de Janeiro 15, 44, 55, 68, 69, 141, 156, 175,
176, 177, 191, 197, 198
Urbano 10, 35, 37, 41, 42, 43, 44, 45, 48, 49, 51, 52, 53, 98, 129
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SOBRE AS (OS) AUTORAS (ES):

Ana Luiza Avelar de Oliveira


Assistente social. Professora Adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade
Federal de Serviço Social (UFJF). Mestre em Serviço Social pela UFJF e doutora em
Serviço Social pela UERJ. E-mail: analuiza_avelar@yahoo.com.br

Ana Maria de Vasconcelos


Assistente Social/UFF; mestre, doutora e Pós-Doutora em Serviço Social pela ESS/
UFRJ; professora aposentada da FSS/UERJ, Coordenadora do Núcleo de Estudos,
Extensão e Pesquisa em Serviço Social (NEEPSS/FSS-UER). E-mail: ana.data-
clima@gmail.com
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Debora Lopes de Oliveira


Assistente Social, Professora Adjunto da Faculdade de Serviço Social da UERJ. Espe-
cialista e mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional Saúde Pública da Fiocruz,
doutora em Serviço Social pelo Programa de pós-graduação da Faculdade de Serviço
Social da UERJ. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa: Gestão Democrática na Saúde
e Serviço Social/Pela Saúde. E-mail: deboralopes640@gmail.com

Jonatas Lima Valle


Graduado em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF/Niterói),
mestre e doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Já atuou como assistente social nos âmbitos da assistência social, saúde e
da educação – onde, no atual momento, exerce esta função no campus Maracanã do
Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ).
Contato: jonatas.hasta@gmail.com

José Amilton Almeida


Graduado (pela Universidade Federal do Rio de Janeiro), Mestre (pela Universidade
Federal de Juiz de Fora) e Doutor (pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
em Serviço Social. É Professor substituto no Departamento de Política Social e Ser-
viço Social Aplicado da UFRJ. Ex-bolsista da Capes (PROEX). E-mail: j.amilton.
servsocial@gmail.com

José Henrique Galdino


Graduado em Serviço Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), mestrando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista de mestrado pela Fundação
Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
198

Integrante do Programa de Estudos de América Latina e Caribe (PROEALC).


E-mail: galdinohenrique03@gmail.com.

Juliana Souza Bravo de Menezes


Graduada em Serviço Social pela FSS da UERJ, Especialista e Mestre em Saúde
Pública (ENSP/FIOCRUZ). Doutora em Serviço Social (UFRJ). Assistente Social
do Ministério da Saúde. E-mail: julianasbravo@gmail.com

Maíra Carvalho Pereira


Assistente Social. Especialista em Saúde da Criança e do Adolescente Cronicamente
Adoecido – IFF/FIOCRUZ. Mestre em Serviço Social pelo PPGSS da UERJ. Douto-
randa em Serviço Social pelo PPGSS da UFRJ. Endereço eletrônico: mai.carvalho@
outlook.com

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Maria Inês Souza Bravo
Professora Aposentada da UFRJ e UERJ. Integrante do Corpo Permanente do Pro-
grama de Pós-Graduação em Serviço Social da UERJ. Pós-Doutora em Serviço
Social pela UFRJ. Doutora em Serviço Social pela PUC/SP. Coordenadora do Grupo
de Pesquisa registrado no CNPq “Gestão Democrática da Saúde e Serviço Social”.
Pesquisadora do CNPq 1A. Integrante do colegiado da Frente Nacional contra a
Privatização da Saúde e do Fórum de Saúde do Rio de Janeiro. E-mail: msouza-
bravo@gmail.com

Morena Gomes Marques


Assistente social, Doutora em Serviço Social pelo PPGSS/UERJ. Professora Adjunta
da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). Pesquisadora do Núcleo Interinstitucional de estudos e pesquisas sobre
Teoria Social, Trabalho e Serviço Social – NUTSS. E-mail: morenaseso@gmail.com

Silene de Moraes Freire


Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora do
Programa de Estudos de América Latina e Caribe (PROEALC) e do Observatório
de Direitos Humanos da América Latina (ODHAL) do Centro de Ciências Sociais
da UERJ. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
Doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutora pela Escola
de Serviço Social da UFRJ. Bolsista de Produtividade do CNPq e Procientista da
UERJ. E-mail: smfmensagens@gmail.com

Thaís Lopes Cortes


Assistente Social. Doutora e Mestre em Serviço Social pelo PPGSS da UERJ. Inte-
grante do Programa de Estudos de América Latina e Caribe (PROEALC-UERJ).
DEMOCRACIA, POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL 199

Autora de capítulos de livros e artigos sobre temas ligados as políticas sociais,


questão urbana, expropriação e direitos humanos. Foi bolsista Capes (PROEX).
E-mail: thaislopescortes@gmail.com

Virgínia Fontes
Historiadora, com mestrado na UFF (1985) e doutorado em Filosofia – Université
de Paris X, Nanterre (1992). Atua na Pós-Graduação em História da UFF. Integra
o NIEP-MARX – Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o
marxismo. Trabalhou na Fiocruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio-
-EPSJV, onde também coordenou e participa de curso de Especialização. Em atuação
conjunta entre Escola Nacional de Saúde Pública-ENSP, a EPSJV e o Ministério da
Saúde, coordenou coletivamente e atuou no mestrado profissional “Trabalho, Saúde,
Ambiente e Movimentos Sociais”. Principais áreas de atuação: Teoria e Filosofia
da História, Epistemologia, História do Brasil República, História Contemporânea.
E-mail: virginia.fontes@gmail.com
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SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)

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