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Copyright©2023 Bacoachilles

SONHO DOURADO
1ª edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida
por qualquer forma, meios eletrônicos ou mecânicos sem consentimento e autorização do
autor/editor.

Revisão: Beatriz Góes (@beagoesc)


Capa: Ellen Sabrina Pereira Silva (@MOONROSE_25)
Design e Diagramação: obscuragraphixstudio (@obscuragraphixstudio)
Ilustrações internas: Bacoachilles e Loon (@bacoaquiles e @isno.ol)

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produto
da imaginação do autor. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência. Nenhuma
parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis e
intangíveis – sem autorização prévia do autor. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei n°9.610/98, punido pelo artigo 184 do código penal.
Sonho Dourado foi uma história que escrevi no final de 2020, o que significa que foi uma das
minhas primeiras obras finalizadas. Sonho Dourado foi postada anteriormente no Wattpad mas
eu particularmente não gostava daquela antiga versão, principalmente porque minha mentalidade
mudou muito desde aquela época, e por isso decidi reescrever e editar a história inteira!
Ainda sim, sei que Sonho Dourado não é perfeito, mas tem um grande peso em quem eu sou hoje
– principalmente como autora – por ter sido a minha primeira vez me comprometendo em
escrever e terminar de fato algo. E essa é uma das razões do porquê, apesar da minha
considerável insegurança com a história, decidi postá-la na Amazon também!
Espero que, acima de tudo, vocês possam aproveitar e se entreter com todos os perrengues do
Evan e do Ashton.
Boa leitura!
Sonho Dourado não é recomendado para menores de 16 anos. A história contém temas que
podem ser sensíveis para alguns, como cenas de violência descritiva.
Confira a playlist feita pela autora para melhorar ainda mais sua imersão no mundo de
Sonho Dourado! Acesse-a através do QR Code, caso esteja lendo pelo Kindle, ou pelo link que
está disponível abaixo, caso esteja lendo pelo celular.

Confira a playlist de Sonho Dourado


“E se um ônibus de dois andares
Colidir contra nós
Colidir contra nós
Morrer ao seu lado
É um jeito tão divino de morrer
E se um caminhão de dez toneladas
Matar nós dois
Morrer ao seu lado
Bem, o prazer, o privilégio é meu”

There Is A Light That Never Goes Out – The Smiths


ma vez me falaram que o cheiro da morte era inesquecível e eu não
U conseguiria explicar aquele odor nem se quisesse.
Ashton abriu o saco que libertou esse fedor, sem se importar com as
consequências. Ele ficou paralisado, encarando o que nós dois sabemos o que há ali dentro.
Não consigo não esconder meu nariz atrás do antebraço, mesmo que isso prejudique
meu equilíbrio com as muletas.
Quero ir para longe, para longe desse momento. Quero voltar para os dias em que,
embora as coisas não fossem fáceis, eu não conhecia o cheiro fúnebre de um corpo apodrecido.
Nunca achei que uma pessoa poderia feder tanto. Há um nó no meu estômago, uma
sensação de náusea que me deixa tonto. Quero fugir desse lugar, levar um choque e esquecer de
tudo isso. Esquecer das fibras de pele que restaram nos ossos amarelados, evidenciando o fato de
os membros terem sido cortados e separados antes de começarem a apodrecer.
Ash, ao meu lado, não se importa com o cheiro nem com o fato de não poder abraçar o
corpo todo de uma vez. Ele agarra um pouco de cada membro, embora não haja mais pele de
fato, apenas resquícios do que um dia esse ser humano pode ter sido. Contudo, o peitoral está
consideravelmente conservado, embora cheio de buracos tripofóbicos, comidos por larvas. Ele
não o solta, com o ouvido onde devia haver o coração, parecendo não acreditar que não existe
batimento; não aceitar que essa pessoa está morta.
Escutar suas lamúrias de sofrimento, seus gemidos dolorosos e miseráveis é como se
uma faca estivesse lentamente dilacerando a minha alma.
Meu coração pesa. Quero que ele pare, quero que se levante e diga que está na hora de
irmos embora. O cheiro, as bordas da pele repicada como papel cortado por uma criança, os
vermes amarelos comendo lentamente cada centímetro restante daquele pequeno corpo. Todos
esses detalhes nunca vão sair da minha mente.
O fedor é demais pra mim. Consigo ver o líquido que vazou do corpo no fundo do saco
plástico em que nós o encontramos. A luz não é muita, mas não é difícil imaginar alguns vermes
que caíram da pele, boiando.
— Nós precisamos sair daqui — sussurro. Minha voz não parece correta nesse
ambiente. Eu quero ir embora, eu preciso ir embora, senão irei enlouquecer.
— Eu vou matá-los — Ash murmura.
Meu corpo inteiro estremece. Isso é uma promessa feita para a pessoa agora cortada em
vários pedaços, e não para mim.
Eu poderia repetir que precisamos sair daqui, mas não repito, porque se fosse eu na
situação dele — se fosse Ash quem estivesse morto e eu achasse seu corpo — rodaria o mundo
para ir atrás de quem o matou.
Mesmo que isso signifique ir para prisão. Mesmo que isso signifique ir para o inferno.
E saber que ele faria tudo isso por essa pessoa já falecida e apodrecida mexe com uma
parte de mim que, embora eu tente ignorar, sempre resiste.
Mexe com meu ciúmes. Mexe com minha insegurança.
Ashton Wisnor é uma má influência

inha relação com Jasper é difícil de explicar. Nós nem sempre nos
M damos bem porque ele quase sempre é um otário, mas nunca achei que teríamos
uma briga tão séria ao ponto de eu dar o soco mais forte da minha vida bem no
nariz dele.
— Merda, Evan!
E quando me dou conta, um dos meus melhores amigos vem para cima de mim com
punhos fechados. E, porcaria, ele também acerta um soco no meu nariz. Consigo sentir o cheiro
de sangue quase instantaneamente.
Por sorte, Omar aparece. Max deve tê-lo chamado, porque ele é o único que consegue
acalmar Jasper, mas nem mesmo isso é o suficiente para tirar os punhos pesados do meu rosto.
Sei que isso me trará problemas. Quase consigo visualizar o rosto do meu pai por trás
das pálpebras, consigo imaginá-lo me trancando no porão até o barulho dos ratos começar a
mexer com a minha sanidade. Talvez seja por isso que amoleço os braços e deixo Jasper me
bater até alguém conseguir arrancá-lo de mim.
— Por que você fez isso?! — Jasper grita para mim.
Sei que é para mim, mas não consigo responder. Quando viro o rosto e encontro o olhar
assustado de Charlie, o peso da realidade cai sobre as minhas costas como uma bigorna.
E sinto, nesse exato momento, que um monte de merda está prestes a acontecer.

Quando o antigo diretor foi substituído por Donovan, realmente não me importei. Ele só
parecia um homem ordinário que com toda certeza subornou os professores para entregar a ele
um diploma, porque nunca encontrei uma pessoa tão estúpida exercendo um cargo tão
importante quanto ele.
— Você não vai me responder? — Ele tenta de novo, mas eu viro o rosto. Pelo canto do
olho, consigo ver o sangue seco no alto das minhas bochechas. Minhas costelas estão doendo, e
não sei se é porque meu coração bate nelas com força ou se Jasper me socou aí também. —
Evan-
— Olha, sei que não deveria ter feito isso, okay? O Jasper é meu amigo. Foi um
desentendimento. Vi ele provocando Charlie, e acho que Charlie não estava num bom humor. E
então, porque eu definitivamente não estava num bom humor, bati nele.
Donovan permanece imóvel, a não ser, claro, pela sobrancelha levemente levantada,
formando ondas de rugas em sua testa. Me pergunto como ele tem coragem de usar esse terno
num dia tão quente.
A sala do diretor é um local que visito com frequência. Alguns anos atrás, coloquei na
cabeça que queria ser o defensor dos indefensáveis. Me metia em brigas que literalmente não
eram da minha conta, porque sentia que era o certo a fazer. Eu gostaria de ter alguém para me
ajudar quando tivesse problemas com meu pai, e imaginei que aqueles que estavam passando por
algo semelhante a mim, também gostariam. Mas, depois que vi que não me rendia nada além de
dias na detenção e mais surras do meu pai, desisti.
Donovan diz que tem uma pasta apenas com brigas minhas. Não sei como ele ainda me
deixa estudar neste colégio, mas acredito que tenha algo a ver com o fato do meu pai ser médico.
Escorrego pela cadeira, bufando com o pensamento.
— Evan, você sabe que normalmente eu não faria isso, porque sei o motivo de você se
envolver naquelas brigas, mas dessa vez não tem como. Um monte de alunos estava em volta de
vocês no corredor, com certeza vão comentar sobre isso com os pais em casa. Se eu não tomar
uma medida, pode dar problema para o colégio.
Sinto uma repentina onda de raiva. É como se milhares de agulhas estivessem injetando
lava nas minhas veias.
— Suponho que Jasper vai ter uma punição também, então.
Ele se remexe na cadeira. Aposto que o terno está começando a incomodar.
— Ele com certeza terá. Mas foi você quem deu o primeiro soco, portanto…
— Claro. O pior vai ser empurrado para mim. — Não disfarço o sarcasmo corrosivo na
voz.
Isso parece finalmente acender uma faísca de irritação em Donovan, porque as rugas em
seu rosto ficam mais escuras. Ele parece um daqueles cachorros na qual eu não lembro o nome
agora, só que menos fofo.
— Claro, sabe por quê? Porque as merdas que você fez já não cabem mais naquela
maldita pasta — responde, parecendo tentar conter a voz. Nunca o vi falando um palavrão na
vida, e, por um segundo, é tão semelhante ao meu pai que eu me encolho. Donovan parece notar
minha hesitação, colocando dois dedos no meio dos olhos. — Eu não deveria ter falado assim
com você. É só que… tenho muitas coisas para resolver nos últimos dias e me irrita que você
seja um garoto tão esperto, mas estrague a própria reputação com idiotices como essa.
Quero pedir para ele enumerar o que o faz pensar que sou um garoto esperto, mas não
estou a fim de ouvir um sermão sobre fazer piadas autodepreciativas, então só aperto o maxilar.
Ele limpa a garganta antes de continuar:
— Você vai ficar de detenção nas férias de verão. Que, para o seu azar, começa daqui
uma semana.
Meu coração erra uma batida e tenho que apertar os braços da cadeira.
— Mas isso são quase… dois meses!
Donovan me ignora, e continua:
— Nós estamos sem muitos funcionários por causa das verbas e todas essas coisas,
então a escola está ficando uma bagunça. Seria um prazer ter você limpando as salas de música,
os laboratórios e a piscina.
— Eu tenho escolha?
— Não. — Ele sorri.
Arrependimento me consome por inteiro. Eu não deveria ter batido em Jasper. Se
pudesse voltar no tempo e resolver isso como o pacifista que gostaria de ser, teria feito. Mas agi
como o imbecil idiota que dizem que sou.
Acho que mereço tudo isso.
— A única coisa que eu te peço, Donovan, de verdade, é que você não conte para os
meus pais.
Isso é o suficiente. E aí está: a careta retorcida de dó. Parece com a primeira vez em que
ele me ouviu falando sobre meu pai, depois de eu ter aparecido com um vergão tão roxo no braço
que acharam que eu tinha literalmente me jogado da janela do meu quarto. E, como na primeira
vez, há algo a mais atrás dos olhos enrugados. Ele parece quase melancólico, como se soubesse
de algo que eu não.
— Prometo que vou falar com eles. Eu só preciso de… tempo — completo.
Ele solta um suspiro alto.
— Tudo bem. Okay, certo. Relaxa, garoto. Só… avise pelo menos sua mãe. Se você não
fizer isso, vou ter que fazer. É minha responsa-
— Sua responsabilidade, blá blá, sim, eu sei. Já disse que vou falar com ela, não disse?
— Tento forçar um sorriso para fora dos lábios, mas conversar com a minha mãe também não é a
melhor coisa do mundo. Pelo menos, não no momento. — Bem, as férias começam daqui uma
semana, então quando exatamente você quer que eu comece?
Atrás de Donovan, o vento balança as folhas da árvore. Embora eu goste do verão,
minha estação favorita sempre será o outono. É a única estação em que a morte se torna bonita. E
também por causa do halloween.
Minha pergunta chama a atenção dele.
— Como estou de bom humor por termos chegado a um acordo, não precisa começar
agora. Você obviamente não vai fazer tudo sozinho, porque sei que seria uma baita sacanagem,
então-
— Espera. O quê? — Engulo em seco. — Não vou fazer sozinho?
— Você realmente acha que vai conseguir limpar todas aquelas salas?
— Não, mas-
— Te arranjei um parceiro. — Ele empilha os papéis da mesa e as folhas fazem um
‘tum’ na madeira quando ele as solta de repente. — Um idiota teve a coragem de vender droga
na escola. Acredita? Achei que não existia ninguém tão idiota quanto você, mas sempre tem.
Talvez vocês formem uma boa dupla.
— Muito engraçado — respondo, mas sinto um puxão de curiosidade na barriga. —
Quem? Por que ele fez isso? Por ele não tá, tipo, preso?
— Não tenho que te explicar meus motivos. Só saiba que é complicado. Acredito que
ele estava desesperado para conseguir dinheiro de alguma forma e então foi atrás do jeito mais
burro de fazer isso. Alguns alunos viram e me contaram.
— Então você pegou leve com ele, mas não pegou leve comigo? — Me inclino sobre a
mesa, me aproximando o suficiente para ver a oleosidade da sua pele. Ele cheira à gente velha.
— Não. Enfim. Não é da sua conta, garoto. Deixa esse trabalho comigo. — Donovan fez
uma pequena pausa. — Ashton Winsor. Ele será seu par por dois meses. Ele, se Deus quiser, vai
se formar esse ano mas não conseguirá fugir da detenção.
Meu peito afunda numa rapidez tão rápida que de repente a respiração acelera.
A única vez em que vi Ashton foi quando esbarrei com ele no banheiro. Esse dia foi o
suficiente para eu nunca mais querer repetir a experiência. Ele estava lavando as mãos e me viu
observando pelo espelho, e, no momento em que nossos olhos se encontraram, achei que ele
sugaria minha alma para fora.
Toda escola provavelmente tem um Ashton. Um desses garotos que tem amigos muito
específicos, que pinta as unhas de preto e usa broches em jaquetas de couro caras. Já vi algumas
garotas colocando cartas no armário desse cara, mas ele literalmente não parece dar a mínima
para ninguém.
E agora vou ter que ficar trancafiado com ele na escola por dois meses.
O que pode dar errado?
Simplesmente tudo.
Donovan parece estar se divertindo com a minha reação.
— Escutei alguns garotos dizendo que ele é um daqueles punks de escola. Isso nunca
muda, não é? Na minha época, também tinha esses meninos que pareciam ter saído de um filme
do Grease. E o engraçado é que eles sempre parecem ser os que mais ficam com meninas. — Ele
faz uma cara pensativa. — Se bem que o Ashton parece…
— Entendi. Okay. Você quer que eu fique com esse protótipo dos anos 50 que vende
droga para os alunos?
— Você falando desse jeito parece ser uma péssima ideia.
— É porque é uma péssima ideia!
— Uma pena que eu já me decidi. Você vai ter que aprender a conviver com ele. — O
sinal toca. Noto só nesse instante que perdi um horário de aula inteiro falando com Donovan. Ele
espera o silêncio reinar novamente para continuar falando: — Tente não cair nas garras dele.
Esses garotos são sempre o pior tipo.
Deixem os pirralhos em paz

uando saio da sala de Donovan, a primeira pessoa que vejo é Max. Ela está
Q escorada na parede de olhos fechados enquanto as tranças grossas caem pelos seus
ombros.
Como de costume, Maxine Chase usa suas grandes argolas e batom escuro. Combina
com o tom marrom-escuro da pele negra, e ela sabe tão bem como fazer maquiagem funcionar
em seu rosto que até mesmo um desconhecido poderia saber que ela tem alguns dotes artísticos.
Quando Max me vê, preocupação enche seus olhos. Meu estômago afunda no mesmo
instante.
— Você está bem? — ela pergunta.
Me aproximo, apertando a alça da mochila. Meu punho ainda dói, o rosto está
machucado e há uma parte do meu cérebro que insiste em me lembrar que preciso conversar
sobre isso com minha mãe. Tirando esses pequenos detalhes, estou. Porém, quando digo isso a
ela, Max não parece acreditar.
— Um pessoal do terceiro ano está indo pro Crothers Woods fazer uma fogueira. Estão
comemorando a saída da escola e tudo mais. Eu… — Ela faz uma longa pausa e observo
enquanto seus olhos percorrem todo o meu rosto. Quando nossos olhares se encontram, Max
desvia rapidamente. — Eu disse que nós iríamos, mas se você não estiver com vontade, não
precisamos.
— Você quer ir, não quer? — pergunto. Max balança a cabeça e chego perto para
colocar a mão no topo de sua cabeça. Sei que ela não vai se eu não for. Max tem um jeito meio
maníaco em tentar me proteger a todo custo. Nunca contei a ela sobre os meus pais, muito menos
sobre o que meu pai faz quando fica com raiva, mas acho que há algo nela, um sexto sentido, que
sempre a faz desconfiar se eu estou realmente bem. E, na maioria das vezes, eu não estou. — Eu
vou com vocês.
Um sorriso caloroso brota em seus lábios, e, só por causa disso, tento afastar as
preocupações para mais tarde.
Max e eu saímos da escola e vamos direto para o Mitsubishi de Omar. Ele está
estacionado perto da saída, e, quando entramos, a mesma pergunta de sempre invade a minha
mente: como diabos esse carro ainda anda? No banco de trás, fico espremido entre Adam e Sally,
que está em seu colo. Sally é tão pequena que mal ocupa espaço nas coxas do namorado.
Charlie está do meu outro lado, com o queixo apoiado na palma da mão, olhando
distraidamente para a paisagem. Ele ainda parece estressado pelo o que aconteceu mais cedo, e,
quando toco seu joelho, ele se vira para mim com os olhos assustados.
— Tudo bem, cara? — sussurro, tão delicadamente quanto posso. Ele faz a mesma coisa
que Max: encara as feridas do meu rosto.
— Sinto como se isso fosse culpa minha — ele sussurra de volta. — Seus pais-
— Shhh. — Coloco a mão em cima dos lábios, calando-o de repente. Charlie é o único
que sabe razoavelmente do meu péssimo relacionamento com meus pais. Embora eu conheça
Adam, Omar, Max, Sally e Jasper há alguns anos, nenhum deles chega ao nível de intimidade
que tenho com Charlie. Eu não conto tudo para ele, nem ele para mim, mas acho que o nível de
amizade que temos nos permite ser íntimos mesmo sem isso.
Conheci todo o grupo, além do Charlie, há bastante tempo. Tínhamos acabado de entrar
no ensino médio. Max foi a primeira a se apresentar, porque, de certa forma, ela era uma nerd
igual a Charlie. Então, de brinde, veio Omar e Jasper. Eu genuinamente adoro Omar. Ele é uma
das pessoas mais gentis e calorosas que conheço, e, mesmo que Jasper tenha sido — e ainda seja,
às vezes — detestável quando nos conhecemos, tenho uma afeição a ele maior do que eu gostaria
de admitir.Quando o conheci, ele já tinha cabelo azul. Quando conheci Omar, ele já estava
apaixonado por Jasper. Quando conheci Sally e Adam, eles já namoravam.
Sinto, com bastante frequência, que somos um grupo de lobos abandonados. O pai de
Jasper sai da reabilitação a cada três meses, e volta para lá a cada duas semanas. Os pais de Max
a mandam dinheiro mensalmente para comida e luz, porque, de tanto que viajam por conta do
trabalho, ela vive praticamente sozinha naquele pequeno loft no centro de Toronto. Os pais de
Adam são religiosos obcecados e, às vezes, parecem tão malucos que me pergunto se não fazem
parte de uma seita.
Muita merda aconteceu na nossa vida, e acho que foi isso que nos tornou amigos tão
rápido.
De repente, a música eletrônica odiosa que Jasper adora começa a gritar nas caixas de
som atrás do banco. Sinto as ondas da música nas minhas costas, e olho feio para ele, que está
com os pés no parabrisa, exibindo suas botas enormes e sujas. Ele me pega olhando pelo espelho
para-brisa e me mostra o dedo do meio.
A porta do lado de Charlie abre e Max sobe no colo dele. O carro range mais uma vez,
como se suportar esse tanto de gente fosse acabar matando-o algum dia.
— Sabe, a gente devia ter ido com as bicicletas — Adam grita através da música.
Concordo com ele mentalmente, mas não faço nenhum comentário. Omar liga o carro e
saímos da frente da escola. É nesse instante que fecho os olhos e finalmente permito que minhas
feridas doam.
Antes, havia adrenalina no meu sangue e não tive tempo de experimentar a ardência do
corte nos lábios e na bochecha. Não sei se Jasper foi generoso em não acertar um soco no
piercing na minha sobrancelha, mas agradeço mentalmente por isso. Foi um sacrifício convencer
a minha mãe a me deixar colocá-lo.
Chegamos alguns minutos depois. Omar estaciona na frente da entrada das trilhas,
destravando a porta para nós.
— Aleluia! — Jasper grita, colocando um óculos de sol, passando a mão pelo moicano
azul. Está de noite, mas é claro que ele vai usar óculos. Típico. — Finalmente saímos do carro.
Minha bunda estava ficando quadrada. A gente devia ter vindo de bicicleta mesmo.
— Mal agradecido — responde Omar, trancando o carro quando Sally termina de sair.
Por um instante, sinto falta do inverno. Sinto falta de poder usar meus enormes moletons para
esconder algum machucado. Agora, mesmo que eu queira enfiar minha cara dentro de uma
touca, é mais provável que eu morra de calor antes de conseguir isso. — Se a gente tivesse vindo
de bicicleta, você reclamaria que suas pernas estariam doendo.
Consigo ouvir risadas distantes, junto com o som de uma música. Meu estômago
embrulha do jeito que sempre acontece quando estamos chegando em uma festa. Queria saber
por que diabos fomos convidados. Não conheço ninguém do último ano, a não ser…
Ah, merda. Não tinha pensado nisso antes.
Ashton com certeza vai estar aqui.
— Que cara é essa? — Adam me pergunta assim que começamos a entrar na floresta.
Jasper começa a rodear Max como uma mosca irritante, e sinto meu coração arder quando vejo o
rosto de Omar. Jasper é um cuzão egoísta às vezes. — O que rolou com o Donovan?
— Nada, ele só brigou comigo como sempre.
Adam faz uma expressão de que não está totalmente convencido, mas deixa pra lá
quando Sally o chama. Ele vai até ela e a abraça pela cintura, escondendo o rosto no seu cabelo
alaranjado.
— Você pode tentar enganar eles, mas não me engana. — Charlie surge do meu lado
como uma assombração. Esse lugar pode ser meio macabro de noite, principalmente quando todo
tipo de filme de terror envolvendo florestas surge repentinamente na minha memória. Há uma
placa no meio do caminho dizendo “this way, not this way”. — Talvez você não queira falar
sobre isso agora, mas vamos ter que conversar em algum momento.
— É só que…
As palavras desaparecem da minha boca quando finalmente vejo o local diante dos
meus olhos.
Pelo menos cinquenta pessoas estão em cima de um trilho de trem enferrujado,
sustentado no ar por vigas velhas de metal. Em meio a essa grande desordem de corpos, milhares
de garrafas estão espalhadas pelos trilhos e folhas mortas enchem os cantos das vigas
enferrujadas. A madeira do trilho parece tão frágil que o fogo logo faria o trabalho de destruí-la
por completo. É uma paisagem que ficará para sempre marcada na minha memória.
Atrás do trilho enferrujado, uma pequena ponta do sol alaranjado no horizonte está
quase desaparecendo em meio às árvores.
Sempre adorei momentos como esses. Me sinto dentro de um jogo, explorando um novo
cenário, e aqui, agora, é como quando uma nova investigação começa. Me sinto tentado em
cumprimentar todas as pessoas, em mexer em todas as coisas que possam ser mexidas sem
arranjar briga com ninguém.
Algumas pessoas estão segurando garrafas verdes de cervejas quando nos aproximamos.
Quero pedir uma ao ver Jasper sorrindo para todo mundo. Com os caras, ele dá um toque de
mão seguido por toquinho nas costas; com as garotas, Jasper as permite que lhe dêem beijinhos
na bochecha.
Então, algo atrai minha atenção: um pouco afastado de todas as pessoas, perto da borda
dos trilhos, alguém está distraído demais com o próprio cigarro para notar nossa presença. A
jaqueta de couro cai em seus ombros de uma forma ridiculamente bonita, quase tão bonita quanto
seu cabelo flutuando pelo vento de verão, assim como o nariz reto apontado para baixo e a boca
semi-aberta para deixar a fumaça escapar.
Como se sentindo meu olhar possessivo em seu rosto, Ashton Winsor vira o pescoço na
minha direção, e, por um segundo, tudo o que eu vejo são seus olhos através da fumaça que
escapa da boca.
Merda.
Desvio o olhar, tentando seguir Charlie de perto.
Há um homem perto da fogueira com um violão, cantando algo que eu não reconheço.
Tento me distrair com a melodia, mas meus olhos continuam sendo atraídos por aquela figura
afastada. Ashton não parece nem sequer ligar, e isso me faz querer sua atenção mais ainda.
— Você sabe quem está tocando? — pergunto para Max quando ela para ao meu lado.
Tento controlar a vontade de tirar uma foto desse lugar. — Ele toca bem.
— Mackenzie. Ele tem uma banda, eu acho. Com o Ashton e uma outra galera. Bem, na
verdade, pelo o que eu sei, Ashton não faz mais parte dela, mas…
Mais uma vez, olho na direção dele. Levo um susto quando o encontro já me olhando.
— Ashton está aqui — comento sutilmente, notando a queimação na minha pele, como
se, de alguma forma, a intensidade de seu olhar pudesse me causar reações espontâneas no corpo.
— Claro que está. Foi ele quem chamou a gente.
Tento pegar uma garrafa de cerveja, mesmo sabendo que não deveria. Não tenho idade
para isso ainda, mas quando penso no possível alívio que trará aos nervos de minhas costas, não
resisto.
Então uma mão arranca a garrafa antes de eu sequer abri-la.
— Foi mal, cara. Você é menor de idade, não é? Ashton vai me matar se eu deixar você
beber.E o garoto some com a minha diversão alcoólica. Fico encarando minha própria mão,
tentando entender em que mundo isso faz sentido. Como Ashton pode vender drogas para
estudantes, mas não pode deixar um menor de idade provar um único gole de cerveja?!
Ergo os olhos mais uma vez, à procura daquele que causou minha infelicidade
momentânea. Sei que, tecnicamente, ele está certo de não me permitir beber, mas é isso que irrita
mais. Porém, quando encontro nada além de um vazio escuro onde deveria estar a silhueta
pequena, começo a esticar o pescoço de um lado para outro.
— Suponho que você não tenha dezoito anos ainda. — A voz repentina chama minha
atenção ao surgir atrás de mim. Dou um giro, apenas para dar de cara com o rosto levemente
entediado de Ashton Winsor. — Não é?
— Não. — É a única coisa que tenho a capacidade de falar.
Não gosto quando meu corpo reage de forma errada. Isso é errado. Eu não deveria estar
tão afetado pela sua presença. É como da vez em que nossos olhos se esbarraram no espelho do
banheiro enquanto Ashton lavava as mãos: uma onda elétrica faz até a última célula dos meus
dedos estremecer ao perceber quão atentamente ele me encara.
Quase consigo contar os cílios em seus olhos.
— Você bebe suco, então. — E, sem mais nem menos, Ashton me estende um copo
plástico com o que parece ser suco de uva. Tento abrir a boca, mas nada além de resmungos
idiotas saem.
Um grupo de pessoas perto de nós solta gritos animados, chamando minha atenção, e
imagino que a maioria deles já esteja bêbado o suficiente para esquecer que podem cair dos
trilhos — embora sejam largos — a qualquer instante.
Estou completamente satisfeito em aproveitar meu suco ao lado de Max quando Jasper
se aproxima. Ele está sorridente, e tenho quase certeza que vai continuar me ignorando até achar
que eu estou arrependido o suficiente pela nossa briga, mas, para minha surpresa, ele passa um
dos braços pelos meus ombros, me fazendo tropeçar para o lado e tocar brevemente o braço de
Ashton.
Não sei o que acontece a seguir, mas sei que fico consciente de todas as fibras do meu
corpo. E não de um jeito legal. Consigo sentir meus braços se movendo de um jeito que
normalmente não conseguiria sentir. É como tentar falar uma língua estrangeira e ter que pensar
em todas as palavras antes de dizê-las em voz alta. Mas, o momento acaba tão rápido quanto
começou, porque Ashton se afasta, parecendo tão surpreso quanto eu.
Mal escuto o que Jasper tem para dizer porque ainda consigo ver as botas daquele punk
pelo canto de olho.
— …Quer ficar com você!
— O quê? — Meu amigo finalmente consegue minha atenção. — Jasper-
— É um jogo. Aquela menina — ele aponta para uma garota perto da fogueira. Ela nota
o dedo de Jasper e parece ficar tão constrangida quanto eu. — Recebeu um desafio de te beijar.
Tento encontrar algum maldito sentido nisso.
— Por quê? Eu nem conheço ela, seu idiota.
Jasper coloca a boca no meu ouvido, tão próximo que sinto calafrios terríveis.
— Perguntaram pra ela qual dos garotos, tirando Ashton, ela acha mais bonito. Foi você.
— Jasper deu um passo para trás. — Eu quase me sentiria ofendido se não tivesse Max!
Max dá um passo para longe dele.
As botas ao meu lado se movem. Quero olhar para ele, quero saber se ele está prestando
atenção no que está acontecendo, quero saber se ele está reagindo a mim como estou reagindo a
ele, mas me controlo, forçando meu olhar para frente, na direção da pobre garota que se atreveu a
jogar a porcaria de um “Verdade ou Desafio”.
— Ela não parece muito a fim — tento dizer, mas, meio segundo depois, Jasper está me
puxando para frente. Meu corpo esquenta enquanto nos aproximamos da fogueira, e, à medida
em que as pessoas me notam, mais assobios e gritinhos idiotas enchem o lugar.
Jasper até mesmo achou que seria uma boa ideia dar dois tapinhas na minha bunda.
Maldito demônio.
A menina, quando me percebe ao seu lado, fica tão vermelha que eu me sinto mal.
Tento olhar para Jasper uma última vez, pedindo misericórdia, mas meus olhos vão a caminho da
figura um pouco mais afastada, de braços cruzados, com uma ruga profunda no meio das
sobrancelhas. O encaro deixando meu pedido de socorro tão explícito quanto posso.
Quão idiota eu devo estar parecendo agora? Pedindo ajuda pra um quase completo
estranho!
Ashton, porém, não se move. Perco as esperanças como um balão perdendo ar, e,
quando olho para a garota ao meu lado, sinto que vou vomitar em cima da fogueira. A sensação
aumenta quando ela dá um passinho para perto.
— Ele não quer beijar ela e ela não quer beijar ele. Parem de ser cuzões e deixem os
pirralhos em paz.
A voz chama a atenção de todo o pequeno grupo à nossa volta e, como um dominó,
todos viram a cabeça, um após o outro. Ashton não mexeu um único músculo para perto de nós,
mas sinto como se sua voz tivesse sussurrado essas palavras em meus ouvidos.
Quando me viro para ele, o encontro já me encarando.
Ele me percebe olhando, mas não desvia. Cinco, dez, doze segundos se passam, e ele
continua segurando meu olhar. Em certo ponto, leva o gargalo da cerveja nos lábios, erguendo o
queixo para beber. Em seguida, observo o pomo-de-adão dele se movimentando, e, embora seja
extremamente discreto, reparo quando o canto direito de sua boca se levanta em um sorriso quase
imperceptível.
É como se estivesse dizendo um “de nada”.
Não vai embora

eu pai me puxa pelo cabelo. O couro cabeludo arde no mesmo instante e


M o cérebro bate no crânio repetidas vezes, a vertigem atingindo meus olhos. Meus
pensamentos não são mais conexos e me concentro apenas em segurar as
lágrimas.
Me recuso a chorar na frente dele. Posso chorar por qualquer coisa, com qualquer
pessoa, menos meu pai. Com ele eu tenho que ser forte, porque, se eu desabar, ele vai saber. Meu
pai vai saber como mexer comigo.
Pode ser coisa da minha cabeça, mas estou escutando passos. Talvez seja a minha mãe,
com aqueles olhos assustados e a boca aberta, como se fosse ela sentindo dor. Como se fosse ela
quem estivesse sentindo a sensação do próprio coração se destruindo. Como se fosse ela que
estivesse sentindo as mãos de quem deveria protegê-la, fazendo exatamente o contrário.
— É para o seu bem, Evan — a voz do meu pai parece tremer através dos meus
músculos, como um terremoto.
Aperto os olhos com mais força. Quero bater em algo, até destruir as minhas mãos.
Não chore, é pro seu próprio bem.
Se é pro meu próprio bem, não tem porque eu chorar. Se é para eu aprender algo, não
tem porque reclamar da dor. O que fiz dessa vez? Reprovei de ano, de novo? Não fui tão bom
quanto meu irmão?
Queria poder abrir a boca e dizer “por que você não pode me dizer? Por que tem que me
bater? Eu faria qualquer coisa, pra aprender algo que você quer me ensinar. Eu faria tudo-”
mas só o pensamento de dizer isso me faz morder a língua.
Eu posso ter feito tantas coisas. Eu sempre faço algo. Meu pai não me ama sem motivo.
Eu devia me esforçar mais, senão minha mãe vai deixar de me amar também.
Meu pai me arrasta até a portinha escondida atrás de um armário de pratos. Ele empurra
o armário com a mão livre e encara a parede por algum tempo. Meu estômago parece comer os
outros órgãos em nervosismo. A paralisia do meu pai só me deixa mais ansioso ainda, porque,
com a visão borrada que tenho da boca contorcida dele, sei que está naquele momento de
reflexão; como se estivesse sendo obrigado a fazer isso.
Mas, de repente, como se um estalo ativasse os sentidos dele, o aperto, que tinha
afrouxado um pouco, volta a puxar meu cabelo.
Sei o que está por vir. Já consigo sentir o cheiro de mofo e de como o ar de lá entra em
meus pulmões, pesado e abafado.
Ele abre a porta e me arrasta, dessa vez pela gola da camisa. Mesmo que aperte minha
garganta, é melhor do que puxar o cabelo.
Não resisto. Não movo um músculo. Me deixo ser trancado nesse lugar, de novo, e vou
deixar mais uma vez, no futuro. E mais uma, e mais uma, e mais…
Meu pai me larga no tapete, que levanta pó na mesma hora. Minha garganta seca, os
olhos ardem e o cérebro inteiro balança como uma gosma. Ele não deve saber que tenho alergia.
Não deve saber que tem ratos aqui embaixo. Se soubesse, não faria isso.
Ele não faria isso.
Então ele me olha da escada.
Meu coração é perfurado como se alguém tivesse enfiado uma faca em mim e girado.
De novo, ele está com aqueles olhos culpados, como se isso realmente fosse pro meu próprio
bem. Ele me olha como se pedisse que eu considerasse a opção de perdoá-lo um dia. Que um dia
vou entender tudo, entender os motivos dele, entender a dor dele.
A porta se fecha, e leva com ela a luz do lado de fora. Escuto o estrondo do armário
sendo empurrado para frente da portinha.
Então tudo fica um breu, tão silencioso que sinto e escuto meu coração, a adrenalina no
corpo aquecendo meus membros, mesmo que esse lugar seja frio.
É tão silencioso que quase escuto a bile subir segundos antes de um refluxo fazer meu
estômago apertar e a comida inteira sair, deixando um rastro ácido na minha garganta.
— Merda — xingo. Sei que vou ter que limpar isso depois, mas não ligo agora. Não
sinto nada.
Finalmente, a insensibilidade chega.
Escuto passos. Passos demais para apenas as duas pessoas que deveriam estar lá fora,
mas não me importo. Que venha quantas pessoas quiserem. Ninguém vai me achar aqui.
Ninguém vai me ajudar. Aquele armário me separa do mundo.
O porão é como estar na minha mente, de noite. É onde os pensamentos de não querer
morrer, mas também desejar não ter nascido, estão. É ter a perigosa esperança que um dia isso
vai parar. Que um dia meu pai vai cansar disso.
Vomito mais uma vez.
E então acordo.
Não estou no porão. Estou na minha cama, virado para cima. O vômito veio junto. Ou
talvez seja saliva. Estou me afogando. Tossir faz meu pulmão doer por dentro, mas não consigo
parar. Só tenho que fazer isso baixo e não acordar ninguém.
Quase espero que a minha mãe esteja aqui, me dizendo: “Você estava tendo um
pesadelo, então eu te acordei”.
Mas ela não está aqui. E isso não foi um pesadelo, foi uma lembrança.

Max e Charlie são, provavelmente, uma das pessoas mais importantes da minha vida. Eu
os amo de verdade, embora já tenhamos passado por maus bocados.
Foi com Charlie com quem aprendi a andar de bicicleta. Foi com Max com quem
comecei a aprender a gostar de quadrinhos, por conta da arte dela. Foi por conta dos dois que
parei de acreditar fielmente que ninguém seria capaz de me amar porque existiam eles, no fim
das contas.
Porém nem tudo são flores.
Os pais de Max são viciados em trabalho. Nenhuma das vezes em que fui na casa dela,
os conheci. Eles são materialistas e acham que oferecer à filha uma mansão vazia para passar a
maior parte do mês é uma forma de amor. Max dormiu inúmeras vezes na minha casa, soluçando
nos meus braços porque sentia que seus próprios pais não a amavam de verdade. E talvez tenha
sido isso o que tornou meu vínculo com ela e com Charlie tão forte: eles entendem meus
problemas, mesmo que eu não comente sobre eles.
Já Charlie tem pais que são conhecidos como Fundamentalistas, ou, de forma mais leiga
— como eu os chamo —, religiosos fanáticos. Eles acreditam que a bíblia deve ser seguida à
risca e exatamente da forma que está escrita, ou seja: sem interpretações ou pensamentos mais
profundos. Isso os levou a se tornarem tão radicais que posso ver que Charlie tem alguns dos
ensinamentos internalizados dentro dele. E, talvez, por essa razão ele tenha se tornado tão
próximo de Adam: ambos os pais são religiosos ao extremo e se conheceram em um domingo na
igreja.
Foi assim que Sally e Adam também entraram para o nosso grupo.
Então, de forma bem resumida: Charlie , Max e eu éramos o trio de ouro, só que… De
um jeito não tão legal.
Quando nossas brigas começaram a acontecer, foi como se a realidade tivesse me dado
um choque. Eles são tão complicados quanto qualquer outra pessoa que conheço e, depois de um
tempo, cheguei a conclusão de que isso é simplesmente a essência do Ser Humano.
Max consegue ser sufocante. É tão protetiva comigo que parece com a minha mãe,
sempre tão preocupada com tudo o que faço, que me agradeço mentalmente todas as noites por
nunca ter contado profundamente sobre nada do que acontece em casa para ela. Sei que isso é
uma demonstração de carinho e afeição, sei que isso é apenas uma reação à falta de amor dos
pais, mas isso não a torna menos difícil de lidar.
Já Charlie é como uma vozinha frequente na minha mente, sempre me lembrando de
pequenos erros que eu cometi no passado. De certa forma, o agradeço por isso porque já perdi as
contas de quantas vezes fui impedido de cometer os mesmos erros, mas ainda sim, é doloroso ter
suas falhas esfregadas na sua cara sem dó nem piedade.
E chegou a hora de falar para ele sobre a detenção.
Embora eu saiba que Charlie jamais usaria o passado contra mim propositalmente para
me humilhar, como meu pai, isso consegue me deixar ainda mais ansioso e preocupado de vez
em quando. Com meu pai, sei exatamente o que esperar. Sei de quase todos os seus truques, de
todas as suas respostas na ponta da língua, de quando está tão irritado ao ponto de explodir. Sei
como reconhecer bem os sinais do meu pai. Mas, com Charlie, não.
Ele é como uma bomba relógio e, se eu tiver sorte, posso tê-lo em um dia de bom humor
e agradecer aos céus por ter a melhor pessoa do mundo como melhor amigo e rezar muito, muito
mesmo, para que essa calmaria continue por tempo o suficiente.
— Me passe o molho de tomate — peço, estendendo a mão, sem tirar os olhos da panela
em que fritei o alho. Charlie faz o que pedi e, quando nossos dedos se tocam por um breve
instante, meu pulso aumenta de preocupação. — Acho que a gente deveria ter pedido pizza.
— Comemos pizza semana passada.
— E daí?
Esperei pacientemente pelo sermão: “Faz mal comer tanta massa, Evan. Não é porque
sua mãe ou seu pai não estão aqui que vou deixar você comer qualquer porcaria”.
Suspiro fundo, sem insistir nesse assunto. Não adianta me estressar por algo tão bobo,
então volto a remexer o caldo de tomate na panela até o macarrão estar molinho.
— Queria que Max estivesse aqui — comento. — Faz tempo que não ficamos só nós
três.
Ele também solta um suspiro enquanto observo sua expressão melancólica.
— Ela disse que tinha que terminar alguns desenhos e que os pais finalmente voltaram
pra casa. Você sabe como ela fica quando eles estão por perto.
— Eu sei, é só que… — Não sei explicar esse sentimento estranho de que Max está
lentamente se distanciando de nós. Ok, isso é normal para nossa idade: fazer amigos novos com
interesses semelhantes aos seus, mas tenho medo de perder ela. — Esquece.
— Hm, você está com a impressão que ela está meio distante? Eu percebi isso —
responde ele, provando um pedaço do macarrão. — Acho que já está bom. Pode colocar o
molho.
Faço o que ele pediu, segurando a panela do molho de tomate com dois panos grossos
para jogar o caldo no macarrão escorrido e encaro nosso trabalho com orgulho.
— Acho que é bom a Max estar fazendo novas amizades, né? Isso é saudável. É bom
para ela— embora uma dorzinha faça meu coração doer com o pensamento de passarmos menos
tempos juntos, contanto que ela esteja feliz, também estou.
— Não quero que ela troque a gente — Charlie responde, com um tom tão ácido e
acusador que me assusto. — Tipo, a gente se conhece há bem mais tempo, ela deveria levar isso
em consideração.
Minha boca coça para argumentar algo a favor de nossa amiga. Entendo ela, embora
também entenda Charlie. Por ter sido criado da forma que foi, ele não gosta que nada saia do seu
controle. Não gosta que sua rotina — e isso nos inclui — mude drasticamente, porque isso só
causa problemas. Mas, por mais que eu saiba que ele não faz isso por maldade, não consigo
deixar de me sentir incomodado.
Pegamos pratos e sentamos na mesa para comer. Minha mãe foi visitar uma amiga do
outro lado da cidade e sugeriu chamar Charlie ou algum dos meus outros amigos para dormir
aqui. Sei que ela não gosta que eu fique sozinho por muito tempo e sei bem o porquê. Sonhos
como os da noite passada começam a parecer realidade demais, o que me afeta mais do que
qualquer um de nós gostaria de admitir.
E meu pai… Bem, meu pai parece que só volta para casa quando é extremamente
necessário.
Quando eu e Charlie terminamos de comer e lavamos nossos pratos — Charlie não
comeu toda a comida dele, como sempre, então guardo o resto no microondas e não comento
nada —, vamos para a sala.
Agora éa hora: finalmente falar da minha punição envolvendo Ashton Winsor, férias de
verão e detenção.
— Hmm, Char?
Ele tira os olhos da TV e vira-se para mim no sofá. As cores do filme brilham em seu
rosto e abaixo a cabeça quando percebo que já estou antecipando a sua reação.
— O que foi? O que aconteceu?
Seu tom preocupado faz meu estômago afundar.
— Aquele dia, da minha briga com Jasper, lembra? — Faço uma pausa para vê-lo
concordar. — Então, tive que ir pra diretoria e toda aquela coisa que vocês já sabem. O
Donovan, ele… Me deixou dois meses na detenção. Com o Ashton.
Por um instante, o rosto dele está sem qualquer expressão, impassível e limpo. Até que
tudo muda, como se um artista tivesse jogado latas de tinta em um quadro em branco.
— Espera… O quê? As férias de verão inteiras por causa de uma briga?
— Uhum. — Não sei muito bem como reagir, então aceno. — Ele disse que o acúmulo
de brigas que eu já tive no colégio foram o que me levaram a ter uma punição tão severa.
— Mas… — Charlie parece prestes a arrancar os próprios cabelos, o que me deixa
preocupado. Por que diabos ele está tendo uma reação como essa? — Droga, isso vai manchar
feio o seu histórico, Evan! E esse é seu penúltimo ano. Faculdade nenhuma vai te aceitar com
esse tipo de coisa no currículo escolar. E o plano era nós dois entrarmos na mesma faculdade
juntos!
Quero dizer que esse é o plano dele e não meu, mas me detenho.
— Eu nem sei se quero fazer faculdade-
Dessa vez, ele mira um par de olhos furiosos na minha direção, como se eu tivesse dito
a pior idiotice do mundo.
— E como você espera ser alguém sem um diploma sequer?
E, simples assim, ele atinge um nervo na minha cabeça e, quando percebo, estou
levantando a voz na mesma altura que ele:
— Você quer dizer que a minha mãe é ninguém? Quer dizer que só é útil no mundo
quem faz faculdade? E a Max, que não planeja ter essa vida toda acadêmica, hein? Vai chamar
ela de ninguém, também?
Seu rosto fica descompensado e, por um pequeno instante, acho que ele vai perceber a
idiotice que disse e se arrepender, mas então ele começa a ficar cada vez mais vermelho.
— Você sabe muito bem que não foi isso o que quis dizer. Eu-
— Ah, é? Porque parece que foi exatamente isso o que você disse — respondo no
mesmo tom indignado, cruzando os braços e me afastado do seu corpo. Charlie deve perceber,
porque em um flash, sua expressão ganha um novo significado: culpa. — Você sabe muito bem o
que eu penso desse tipo de coisa, principalmente quando você parece com a porra do meu pai
tentando humilhar minha mãe por ela não ter uma graduação nesses cursos de merda.
— Evan-
— Não, me escute agora. Não tente impor os seus valores em mim. Ou melhor, dos seus
pais. A vida não é mais igual 1950 e embora eu concorde que faculdade é um ótimo lugar pra
aprender sobre cultura, arte e mais um monte de coisa, dizer que eu vou ser um ninguém porque
não tenho os mesmos objetivos que você é mesquinho e muito, muito mesmo, egoísta da sua
parte.
Meu peito está pesado, descendo e subindo profundamente. Talvez eu tenha sido um
pouco duro demais, penso quando vejo o quão assustado Charlie me encara. Não costumo rebater
o que ele diz, mesmo quando algo me incomoda ao extremo, mas ouvi-lo falar como meu pai é
uma sensação semelhante a ter meu coração esmagado pelas mãos de quem eu mais confiei.
— Ok, tudo bem. Eu não deveria ter dito isso. Desculpa, de verdade. Mas… Ashton.
Você vai ter que passar as férias de verão no colégio com Ashton Winsor? Se os rumores
estiverem certos, ele foi pego vendendo maconha.
— E daí? — a raiva ainda não passou e a minha voz sai mais ríspida do que eu
pretendia.
— Ele vendeu drogas na escola, Evan. E depois veio com todo aquele papo na festa da
fogueira que menores de idade não podiam beber. É muita hipocrisia da parte dele. E o Donovan
só puniu ele com uma detenção. Isso é ridículo. A gente deveria reclamar com ele-
— Não, nem pensar.
— Mas não é justo com você! — Charlie parece verdadeiramente magoado com isso e
me sinto um merda por não conseguir ser complacente à sua empatia. — Donovan deveria
expulsar ele.
— Talvez, Char, ele não tenha sido expulso porque a porra da maconha não é proibida
em Toronto.
— Mas deveria. Meus pais-
— Tô pouco me fodendo pros seus pais, tá legal? Não faço ideia do porquê o Ashton
vendeu maconha no colégio, mas acho que vou descobrir enquanto estivermos na detenção. Mas
será que você poderia, pelo amor de Deus, parar de citar seus pais como se eles fossem donos da
razão?
Charlie fica em silêncio por tanto tempo que penso ter exagerado novamente. E, depois
de mais de um minuto inteiro quieto, tenho certeza. Sei que ele quer rebater com algo ainda mais
rude, da mesma forma que provavelmente fez com Jasper quando ele o provocou. Mas talvez ele
pense que não vale realmente a pena discutir sobre isso agora, depois de já termos tido brigas tão
feias envolvendo esse mesmo assunto.
Ele sabe o quanto odeio os ideais dos pais dele, e, embora eu acredite que todo mundo
tenha o direito de ter as próprias opiniões, o que aqueles Fundamentalistas fazem deixa, com
toda certeza, o campo de opinião e começa a entrar simplesmente em uma pauta manipulativa e
muito, muito próxima mesmo ao que costumamos chamar de Culto.
Por isso, sim, não tenho vontade de ouvir porra alguma que saia deles. Por mais que eu
ame meu melhor amigo.
— Só… Fique longe desse garoto. Não tenho uma boa impressão sobre ele.
Queria ser capaz de dizer que não me importo com a impressão de Charlie sobre Ashton
— até porque tenho certeza que nós não nos envolveríamos tão profundamente de qualquer
forma — mas também tenho uma impressão sobre Ashton. Não é ruim. Apenas uma impressão.
Te vejo por aí?

stamos parados na frente da sala de música na qual eu e Ashton estaremos


E responsáveis em limpar. Donovan está ao meu lado, verificando algo no celular.
Assim que termina, vira o rosto para mim e sorri levemente, de um jeito que faz as
rugas do seu rosto parecerem ondas.
— Pronto?
Simplesmente dou de ombros.
Donovan empurra a porta da sala e vejo as costas do meu companheiro de detenção. Ele
está sentado na cadeira em frente ao piano, com a sua usual jaqueta de couro e concentrado
demais no que está fazendo. Eu o observo por tempo o suficiente para que, de repente, ele vire o
rosto para mim e seus olhos claros me encarem.
Por alguns segundos, espero que seu rosto repentinamente brilhe em reconhecimento
pelo nosso breve encontro na festa da fogueira. Mas nada acontece. Ele apenas me olha dos pés à
cabeça, devagar, parando no meu rosto por um tempo para entortar a cabeça e levantar uma
sobrancelha.
Meu estômago embrulha.
— Oi — É tudo o que ele diz e, mesmo assim, consigo sentir as pontas dos meus dedos
formigando. —Te vi na festa.
—É— rio de um jeito constrangido, o que faz a situação parecer mais vergonhosa ainda.
— Oi.
Um tapa forte nas minhas costas me tira desse… dessa… Dos olhos dele. Ashton desvia
a atenção para Donovan mas, dessa vez, franze as sobrancelhas.
— Que bom que vocês já se conhecem — o diretor sorri para mim. — Vocês irão limpar
aqui hoje. Daqui algumas horas eu volto para verificar o trabalho e liberar vocês.
Balanço a cabeça, observando quando Ashton solta um tsc estalado com a língua,
virando-se para o piano mais uma vez.
Tomando a breve distração dele como uma brecha, Donovan puxa-me pelo cotovelo e
diz, num tom três vezes mais sério:
— Não brigue com ele.
— Não vou.
Donovan me olha como se não acreditasse, o que quase me irrita. Não gosto da sua
desconfiança. Sei que já causei muitos problemas e que não mereço um voto de confiança, mas
estou disposto a tentar e não ser levado a sério nunca é divertido.
Bem contrário ao que o homem à minha frente provavelmente está pensando, eu, na
verdade, quero muito estranhamente causar uma boa impressão em Ashton.
Donovan assente na minha direção, soltando meu braço. Ele vai até a porta e me olha
uma última vez antes de sair, balançando a cabeça como se dissesse “estou contando com você”.
Assim que ficamos só nós, o silêncio é perturbador. Encaro meus pés por alguns
segundos e não sei o que fazer com o resto do corpo, então fico me balançando de leve para
frente e para trás, apertando os nós dos dedos enquanto meus olhos teimam contra a minha
vontade e encaram obsessivamente a nuca de Ashton.
Meu corpo congela quando ele vira ligeiramente o rosto para o lado, de modo que seu
nariz reto brilha com os raios que escapam pelas cortinas finas.
— Está curioso ou você gosta de olhar para as pessoas desse jeito?
Um raio parece levantar cada pelo dos meus braços. Me atrevo a dar um passo na sua
direção, para perto do piano. Com minha proximidade, ele arruma a postura e escuto o pigarro da
garganta.
— Curioso — respondo.
— Que pirralho curioso você é.
Os cantos de meus lábios sobem.
— Pirralho? — É um apelido idiota, mas por algum motivo, torce meu estômago. De
um jeito bom. Eu acho. — Achei que você tinha dezenove anos. Sou só um ano mais novo que
você, praticamente.
— Eu sei.
E isso é tudo. Quero lhe perguntar como sabe disso, por que me ajudou naquele dia, por
que vendeu maconha. É estranho o fato de eu querer conversar sobre qualquer coisa. Minha
língua coça para que eu faça isso, para que comece a tagarelar como normalmente faria, mas ele
é intimidante. E isso me faz apertar as pulseiras de couro com mais força ainda.
— Vou começar a limpar a sala. Você… Não precisa fazer nada, se não quiser —
murmuro, sentindo que estava humilhando a mim mesmo dizendo aquilo. — Sabe, como… —
coço a nuca porque de repente ele está girando na cadeira do piano e ficando de frente para mim,
os olhos tão focados no que estou tentando dizer que a minha boca seca. — Agradecimento. Por
ter me ajudado naquele dia.
Penso ter visto um sorriso no canto de seus lábios, mas ele desaparece tão rápido que
acredito ter imaginado.
— Não.
— Não?
— Não — ele repete. — Vou ajudar você, pirralho.
Ele levanta, tirando a jaqueta de couro, ficando apenas com a regata branca por baixo.
Meus olhos instintivamente vão em direção aos seus braços, que, apesar de não serem
gigantescos, são fortes. Ashton provavelmente não faz academia, mas com certeza pratica algum
tipo de exercício. Esses músculos não surgiriam do nada.
Acho engraçado o fato de não ter uma única gota de tinta na sua pele. Bom, pelo menos
até onde eu posso ver. As poucas vezes em que o vi andando pelos corredores com aqueles seus
amigos, Ashton sempre estava com a jaqueta de couro costumeira ou uma camisa flanela
vermelha escondendo a maior parte do corpo. Mas, sempre acreditei que ele seria um quadrinho
ambulante, ele tem cara de quem curte tatuagens.
Desvio o olhar rapidamente quando ele aproxima-se de mim, balançando a cabeça para
sair daquela nuvem de pensamentos. Pego a vassoura que ele me ofereceu sem contestar e tiro o
meu próprio casaco, colocando-o do lado do de Ashton em cima do piano.
— Pensei que você não iria querer limpar. Quer dizer, com certeza não quer, mas que ia
tentar empurrar tudo pra mim.
— Por quê? — pergunta ele enquanto começa a arrastar algumas caixas do lugar para
podermos varrer melhor.
— Porque, embora seja uma comparação muito específica, você não tem cara de quem
ajuda os outros a limparem salas em horário de detenção.
— Primeiro: já reparou que não tem ninguém cuidando do que a gente tá fazendo? Isso
é principalmente porque Donovan está pouco se fodendo, então se nós não quiséssemos fazer
absolutamente nada, ninguém daria a mínima. E segundo: mesmo se eu não ajudasse, não vou
embora. Então o que eu iria ficar fazendo?
Balanço os ombros, me concentrando na sujeira não-tão-imaginária que eu varro.
— É verdade.
Ele arrasta mais algumas coisas e meus olhos insistem em ficar indo de encontro a sua
silhueta. Sem a jaqueta, a definição do seu corpo fica mais evidente. O tecido da regata delineia
perfeitamente a cintura quase fina, caindo nos quadris e cobrindo o cadarço que serve como cinto
para segurar a calça. Não consigo me impedir de vagar o olhar por outros lugares e, quando
percebo, estou desviando a atenção para a calça que gruda em sua pele como cola, evidenciando
cada músculo que cobre.
Engulo em seco quando meus olhos encontram o caminho para seu traseiro, percebendo
que estou encarando demais.
— Achei que você teria tatuagens — digo, sem pensar ao notar que, se ficarmos sem
falar por muito tempo, acabarei encarando mais do que o necessário de novo.
Ele me olha de canto de olho, meio surpreso e meio… Envergonhado?
— Não gosto de agulhas.
— Então sem piercings?
— Sem piercings — Ashton responde, observando brevemente o que tenho na
sobrancelha.
Encaro minhas mãos. Silêncio. Ashton volta a fazer o que estava fazendo e me sinto
deslocado novamente.
Porra, isso nunca aconteceu comigo antes. Nem quando conheci Hazel, minha última
namorada — e provavelmente a única que fez eu conseguir me apaixonar por alguns meses —
me deixava nervoso desse jeito. O que é meio estranho, parando para pensar. Ou, pelo menos,
não faz muito sentido.
Não que eu possa controlar qualquer reação no meu corpo.
Assim que Ashton termina de levantar a maior parte das caixas possíveis, vira-se para
mim com as mãos na cintura.
— Você limpa do lado esquerdo para lá e eu do direito. Se fizermos assim acabará mais
rápido. — Embora tenha um tom mandão em sua voz, não é necessariamente rude como o do
meu pai.
— Tudo bem.
Ele vira de costas e decido me concentrar no que tenho para fazer também, me
preparando para sentir dores nas costas mais tarde. Há lugares no chão que formam um montinho
de poeira, quase como neve, só que cinza. Preciso abrir as janelas antes de tocar em qualquer
uma dessas montanhas de pó, caso contrário, não vou conseguir parar de espirrar.
Do mesmo jeito que acontece quando eu preciso ficar no porão.
O silêncio começa a incomodar mais uma vez, até que a repentina vontade de saciar a
curiosidade atinge meu corpo:
— Você vendeu mesmo maconha?
Não me atrevo a virar para ver sua reação, esperando apenas pela sua resposta. Mas,
quando ela demora demais para vir, não controlo a vontade de olhá-lo. Quando o faço, o
encontro já me observando.
— Só vou te responder se você me disser o que diabos fez pra vir parar aqui também.
Rio, apoiando a bochecha na ponta da vassoura e pensando no assunto.
— Um amigo meu estava brigando com meu melhor amigo. Não estava nos melhores
dos dias e me meti na briga deles e acabei levando um soco na cara.
— E o seu amigo? Vocês já se resolveram?
O fato de ele parecer minimamente interessado no assunto me deixa feliz.
— Acho que sim. Quer dizer, quando nos vimos depois da briga, ele estava agindo
normalmente comigo. Mas eu acho que… — a lembrança do breve encontro com Jasper naquele
dia, após a troca de socos, volta à minha mente. Apesar de ainda parecer um pouco irritado
depois de eu ter saído da sala de Donovan com Max, ele realmente parecia mais calmo.
Provavelmente por conta de Omar. — Acho que ele ainda está chateado.
Pensar na relação deles me deixa um pouco preocupado. Não conheço Omar e Jasper há
tanto tempo quanto Charlie e Max, que, assim que comecei o ensino superior, viraram meus
amigos, mas sei que Omar gosta de Jasper e Jasper, em certo ponto, gosta de Omar de volta —
mesmo que dedique muito do próprio tempo para perseguir Max.
Eles têm uma relação meio complicada e, por essa razão, a minha própria amizade com
Jasper é, até certo ponto, instável. Sei o que ele está fazendo com o coração de Omar, lhe dando
esperanças para no momento seguinte declarar amor eterno pela nossa amiga e esse foi um dos
motivos da minha explosão com ele quando o vi provocando Charlie.
Charlie é sensível. Ele é delicado e até um pouco carente. A cobrança eterna dos pais
para que seja perfeito a todo instante é um dos motivos. Talvez seja por isso que ele tenha alguns
problemas alimentares. Admito que sou leigo e me odeio por isso — por não saber nomear
exatamente o que Charlie tem, já que ele nunca confirmou nada de fato. Tudo o que tenho são
teorias e a atual é que o único aspecto que Charlie pode controlar da própria vida é o que come,
por isso às vezes fica horas e mais hora sem ingerir nada.
Contudo, assim como eu, meu melhor amigo tem falhas. Por ser tão influenciado pelos
pensamentos dos pais, acaba falando besteira pelos cotovelos de vez em quando. E uma das
coisas que ele costuma tentar fazer é convencer Jasper que seria mais fácil desistir de tentar tirar
o pai do vício da cocaína e simplesmente seguir em frente. E Jasper é um idiota de cabeça quente
que também diz besteira aos ventos.
Até agora não tenho total certeza do que aconteceu naquele dia, mas Charlie deve ter
dito algo a Jasper e Jasper devolveu a ofensa, o que fez Charlie chorar e, consequentemente, meu
sangue esquentar.
— Se ele continuar chateado, deixe ele. Se vocês fossem bons amigos de verdade, não
teriam saído no soco logo de cara, mas sim conversado — Ashton responde, voltando a varrer o
chão e dando o assunto por encerrado, mas suas palavras continuam na minha cabeça.
Quero lhe dizer que ele não sabe da situação, mas, mesmo que me deixe com um gosto
ruim na boca admitir algo assim, ainda é verdade. Se tivéssemos uma relação realmente
saudável, não teríamos brigado daquele jeito.
Solto um suspiro, decidindo deixar esse assunto de lado. Já tenho preocupações o
suficiente — como por exemplo, o que vou falar para minha mãe quando chegar em casa — para
queimar o cérebro pensando na minha relação com Jasper.
Foco em varrer o chão por tanto tempo que, quando percebo, as janelas do lado de fora
começam a mostrar um céu alaranjado.

Quando terminamos de limpar toda a sala — ou pelo menos tudo aquilo que
conseguimos — Donovan abre a porta da sala de música, interrompendo o silêncio confortável
que Ashton e eu encontramos para nos fazer companhia à medida em que varremos.
O diretor olha em volta, apoiando os pulsos fechados na cintura presa em um cinto que
parece empurrar sua barriga redonda para cima. Ele começa a assentir em concordância e então
vira-se para mim com um sorriso amarelo.
— Se divertiram?
Olho instintivamente na direção de Ashton e ele faz o mesmo, mas não mostra nenhuma
reação.
— Acho que da próxima vez seria bacana pensar na possibilidade de deixar a gente
trazer uma caixinha de música.
— Ha, ha, garoto — responde Donovan. — Você não colocou música no seu celular
porque não quis.
Dou de ombros.
— Não seria a mesma coisa.
— Aposto que não. Escutem — a postura de Donovan muda de repente, como se ele
estivesse carregando o peso do mundo nas costas. Ele leva o polegar e o indicador até o canto
dos olhos, provavelmente pensando no que dizer a seguir. — Ashton… Eu quero que você
espere Evan na frente da sala dele enquanto vocês estiverem na detenção. E que o traga direto
para cá.
Odeio a forma como ele fala sobre mim como se eu não estivesse aqui.
— O quê-
Donovan vira-se para mim e me calo. Sua expressão séria e autoritária lembra-me do
meu pai, o que faz meu corpo instintivamente se encolher. Odeio isso. Odeio muito.
— Para que você não brigue mais com Jasper, garoto. Sei que as coisas não estão fáceis
pra você, por conta do seu pai e todos aqueles assuntos, mas não posso te deixar causar
confusões no colégio por essa razão — responde ele, pacífico de um jeito agressivo.
— E por causa disso vai fazer esse cara me cuidar como se eu fosse um cachorro doido?
— Não… É bem assim. Você sabe o que estou tentando fazer, Evan. ei que sabe. Sei
que quando fica sozinho acaba sendo mais impulsivo porque pensa demais. Aposto que Ashton
ia adorar te fazer companhia. Acho que ele gosta de você, não é, garoto?
Viro-me na direção de Ashton, esperando que ele discorde ou que fique tão furioso
quanto eu em relação a essa decisão. Mas ele só continua lá, parado, nem concordando, mas
também não discordando.
Isso faz meu estômago dar outro giro.
— Só não posso nas quartas, como você já sabe — Ashton responde, com a sua voz
baixa e grossa na qual eu terei que me acostumar nos próximos meses.
— Tudo bem, nas quartas-feiras existe uma exceção — o velhote coloca os dedões no
bolso da calça formal. — Ashton, você já pode ir. Preciso conversar com Evan rapidinho.
Sinto minhas mãos começarem a suar. Sem perceber, meus dedos já estão apertando
minhas pulseiras de couro. Max me deu elas de presente alguns anos atrás, quando reparou que
eu apertava minha pele ao ponto de pintá-la de roxo. Fazia isso sem perceber, porque,
aparentemente, era uma forma de descontar o meu estresse ou nervoso em algo.
Ashton termina de juntar as próprias coisas — que basicamente são a jaqueta de couro e
a mochila cheia de bottons — e sai da sala sem hesitar, me dando um breve olhar antes de fechar
a porta.
— O que aconteceu? — pergunto para Donovan quando ele continua em silêncio,
olhando a porta por mais tempo do que o necessário. — Donovan?
— Preciso que você fique de olho nele, Evan.
Levanto as mãos como se para criar uma barreira entre nós quando ele se aproxima.
— Que papo é esse? Por que eu faria isso?
Minha respiração já está começando a ficar meio acelerada. Para ajudar, o meu celular
toca, vibrando no bolso. Meu corpo inteiro congela com esse choque de realidade, que eu preciso
voltar para casa e explicar o que diabos aconteceu nessa última semana.
Porém, quando pego o celular para atendê-lo, a ligação cai e a única coisa que vejo é
uma mensagem da minha mãe.
Mãe: onde vc tá??
— Escuta, Donovan, eu realmente preciso ir — respondo, pegando as minhas coisas no
chão.
Quando dou um passo em direção à porta, ele me impede. Uma onda de nervosismo me
atinge outra vez.
— Eu não estaria pedindo isso a você se não fosse realmente sério, Evan.
Seguro a vontade de revirar os olhos.
— Se é tão sério assim porque você não chama… Sei lá — jogo o peso do corpo de uma
perna para a outra. — Um assistente social de adolescentes ou qualquer coisa? O que poderia vir
de bom de mim cuidando dele?
Assim que termino de falar, a temperatura da sala parece cair. É como se Donovan
crescesse de tamanho, como uma presença onisciente no fundo da minha mente. Não consigo
parar de compará-lo nesse instante com o meu pai e mesmo que tente, não consigo não sentir
medo.
Jasper uma vez me chamou de cachorro assustado, aqueles que estão tão traumatizados
que, quando você levanta a mão para fazer carinho, choram de medo, achando que vão apanhar.
Quando ele me disse isso, fiquei irritado e gritei com ele. Não queria que as pessoas me vissem
dessa forma, mas acho que não posso dizer que é totalmente uma mentira.
— Eu não queria ter que falar isso, Evan, mas você realmente me deve uma. Por todas
as vezes em que se meteu em encrenca e não contei aos seus pais.
Aí está o veneno disfarçado em um acerto de contas. Sempre soube que ele algum dia
usaria isso contra mim, porque é assim que as pessoas são. É assim que você sobrevive nesse
mundo: descobrindo a fraqueza dos outros e as usando a seu favor.
E, mesmo que seja um blefe, não quero arriscar.
— Tudo bem. Você quer que eu fique de olho nele? Certo. Não sei porque caralhos quer
isso, mas muito obrigado por usar meus pais contra mim. Muito, muito obrigado mesmo.
— Evan-
Não consigo mais ficar aqui, nem que seja por um único segundo. Cedi mais uma vez,
cedi ao medo como sempre acontece e aquela sensação costumeira de vazio na boca do estômago
me atinge, me lembrando de todas as vezes que senti essa mesma sensação descontrolada de
estar fora dos eixos da minha própria vida.
Empurro Donovan e saio da sala, caminhando para a saída. Meu celular toca mais uma
vez, mas não consigo me importar. Só quero chegar à minha bicicleta logo e poder esquecer por
alguns segundos que estou saindo de um inferno para voltar para outro enquanto eu pedalo.
Enquanto o vento abafado da onda de calor que vem do verão se agarra a minha pele, enquanto-
— Até logo, pirralho.
Aquela voz me faz dar um giro tão repentino que quase perco o equilíbrio. Ashton está
escorado na frente da entrada do colégio e um cigarro pende entre seus lábios. Quando me vê,
leva os dedos ao cigarro e o traga uma última vez, franzindo o queixo e então o jogando no chão
para pisar em cima. Ele solta a fumaça lentamente pelo nariz. Observo tudo quase em câmera
lenta.
Existe algo nesse cara que sempre, sempre, me deu uma sensação muito forte. Max diz
que algumas pessoas estão destinadas a entrar em nossas vidas, hora ou outra, e que nós sentimos
quando encontramos alguém que, no futuro, terá um grande papel na experiência de quem
somos. Eu achava que era baboseira, até encontrarmos Omar, Jasper, Sally e Adam. Até eu
encontrar… Ashton.
É como se a minha atenção, quando estamos no mesmo ambiente, nunca conseguisse
sair verdadeiramente dele.
Ashton se aproxima de mim e tento arrumar a postura à medida que a distância entre nós
diminui. Ele esfrega o nariz e então esconde as mãos no bolso da jaqueta e é só nesse instante
que percebo que não havia lhe respondido.
— Desculpa, o quê?
— Já pensou no que vai fazer?
— Sobre o quê?
— Seus pais. O que vai dizer quando chegar em casa depois de ter ficado a tarde inteira
na detenção.
A lembrança disso é uma agulhada na nuca.
— Não sei — tento rir, mas o som que sai dos meus lábios mais parece uma lamúria do
que qualquer outra coisa. — Não sei mesmo.
— Não conte — ele diz, mirando as pupilas em mim. Não consigo segurar o olhar por
muito tempo. — Não vale a pena se estressar com isso.
— Se eu mentir, vai ser pior.
— Não se você mentir certo.
Finalmente me atrevo a olhar seu rosto, curioso.
— E como vou mentir certo?
Sendo bem honesto, nenhuma das minhas opções são realmente favoráveis a mim. Se eu
mentir e meus pais descobrirem, vai ser um desastre tão grande que já posso sentir uma dor de
cabeça se aproximando. Mas falar a verdade, na situação complicada em que nós já vivemos
diariamente, não é uma ideia muito agradável também.
— Você vai chegar em casa, dizer que estava com um amigo estudando e, caso eles
queiram saber que amigo é esse, você passa o meu número e diz que podem entrar em contato
comigo para confirmar.
— Mas eu não tenho o seu número.
Ashton não para pra pensar. Ele me olha e se vira para tirar a mochila das costas.
Quando vou perguntar o que diabos está fazendo, Ashton tira uma única caneta preta de dentro
da bolsa e se volta para mim.
Quando sinto o toque gelado das suas mãos tento me afastar por puro instinto, mas ele
segura a minha mão e abre a minha palma, de forma cuidadosa. Achei que ele escreveria na
minha palma, mas, na verdade, o que acontece é que tira um cigarro do maço do bolso.
E escreve o próprio número no cigarro, deixando-o cair na minha palma aberta.
Quando termina de anotar os números, guarda a caneta na mochila e, mais uma vez,
vira-se para mim. Minha palma formiga com a sensação do seu toque fantasma e só volto para a
realidade quando ele começa a falar novamente:
— Agora tem. — Penso ter visto um pequeno sorriso em seus lábios. — Te vejo por aí?
Abro a boca e depois a fecho, então a abro de novo, tão incerto do que fazer que,
quando percebo, a única coisa que consigo murmurar é um patético “uhum”.
— Legal — ele responde, acenando com o queixo antes de começar a se afastar.
Aperto a alça da mochila e respiro fundo, apertando o cigarro nas mãos. Puta merda,
meu corpo inteiro está formigando.
Quase caio quando tento subir na bicicleta.
Thomas Fisher

dam, Jasper, Omar, Charlie e eu estávamos andando de bicicleta quando


A o pai de Adam apareceu e quase nos atropelou.
O Sr. Spring bateu a porta tão forte quando saiu que pude ver o carro
tremendo. Ele nem nos olhou, foi direto para Adam com os olhos pegando fogo, o agarrou pelo
braço e o jogou no banco de trás. E, como se a humilhação não fosse o suficiente, se virou para
nós e disse:
— Se eu ver vocês com meu filho de novo eu-
Então Jasper decidiu que seria uma boa ideia jogar a bicicleta no chão e dar um passo
para frente. Tentei puxá-lo, mas ele se soltou com um balanço agressivo.
— Vai fazer o quê? Vai matar a gente? Isso não é pecado? Você-
Ele se calou quando recebeu um soco tão repentino que puxei Charlie para trás. O
segundo soco que Jasper recebeu em duas semanas. E dessa vez, o pai de Adam não foi gentil.
Consegui ver Adam fechando os olhos e se encolhendo dentro do carro quando sangue começou
a escorrer do nariz de Jasper.
Charlie pegou a minha mão por trás das costas e olhei para ele como se quisesse dizer
um silencioso “vai ficar tudo bem”. Sabia o quanto cenas como aquelas o afetavam, porque os
pais de Adam eram basicamente uma cópia dos de Charlie e ver Sr. Spring fazendo aquilo devia
ser como uma premonição desagradável.
Jasper já tinha se levantado do chão quando o Sr. Springer saiu derrapando com o carro,
tirando Adam de nós, de novo.
E foi assim que nós viemos parar numa farmácia às sete da noite desta terça-feira,
enfiando algodões no nariz de Jasper.
— Não consigo respirar, cara — ele reclama quando aperto o nariz dele. — Não
precisa de tudo isso. Foi só um soquinho.— Jasper tenta sorrir, mas o corte na boca deve ter
doído, porque ele para no mesmo instante.
— Você devia parar de desafiar o pai do Adam. Essa não é a primeira vez que ele te
bate e o Adam já tem coisas demais pra se preocupar — digo, porque Jasper é um idiota, mas
uma parte de mim secretamente gosta do fato de ele ser um idiota corajoso o suficiente para
peitar aquele otário.
— Ele deve estar chorando no banheiro agora — Charlie murmura pela primeira vez
desde que nós chegamos na farmácia. Olhamos para ele. — O quê?
— Isso foi muito específico — Omar cruza os braços, atrás de Jasper. Ele está como
uma mãe preocupada, como se pronto para bater em qualquer um que tente encostar em Jasper
de novo.
— Eu já vi isso, tá legal? Eu já vi ele chorando no banheiro depois de uma briga com o
pai dele.
Franzo a sobrancelha.
— Como?
— Eu já fui na casa dele e-
— Você foi na casa dele? — Jasper se surpreende.
— Se vocês não fossem tão doidos, o pai dele deixaria a gente ir lá.
Me levanto do chão e abano a sujeira dos meus joelhos. Limpei o sangue no nariz de
Jasper e preciso de um lugar para jogar os algodões, mas a balconista nos olha feio faz tanto
tempo que não me atrevo a chegar perto dela. Enfio os algodões sangrentos no bolso. Jasper me
olha como se eu fosse um alienígena quando faço isso.
— Você tá dizendo que a culpa é nossa? — pergunto, abraçando meus braços,
arrependido de não ter escutado minha mãe sobre trazer um casaco. Moro em Toronto desde que
nasci, mas nunca aprendi a prever o tempo como ela, e, mesmo no verão, o vento gelado é
impiedoso.
— Não, eu… não. A culpa não é de vocês, desculpa. O que o pai do Adam faz não tem
desculpa — ele desvia o olhar e encara os próprios pés. — Vamos sair daqui antes que o Jasper
tente experimentar aqueles óculos de sol de novo.
Saímos da farmácia e o frio parece ainda pior. Encaro os mosquitos em volta das
lâmpadas dos postes, enquanto os carros passam voando pela avenida. Estamos no centro e
minha casa fica no East York, entre a avenida Victoria Park, então vou demorar uns trinta
minutos para voltar, mesmo de bicicleta. Minha mãe reclamará de novo pela demora, mas não
quero ir embora ainda. São raras as vezes que todos nós podemos sair juntos, mesmo que o
desastre do pai do Adam tenha acontecido.
E é particularmente bom ficar com Charlie sem o peso na consciência de mentir sobre a
detenção. Desvio o olhar para ele, o analisando. As coisas que ele me disse quando dormiu na
minha casa alguns dias atrás voltam para a minha cabeça.
Ashton não deveria ter ido para a prisão? Maconha é legalizada no Canadá, mas não sei
se “vender maconha numa escola” se encaixa nessa categoria. Será que ele não poderia ir para o
reformatório, mesmo sendo de maior? Por que Donovan não expulsou ele da escola? Jasper usou
maconha uma vez antes de conhecer a gente e, de acordo com ele, foi expulso no mesmo dia.
Donovan está protegendo Ash?
Por quê?
Ashton precisa de dinheiro? Por isso Donovan está sendo compreensível?
Percebo que estou encarando Charlie enquanto penso. Ele está me olhando com as
sobrancelhas franzidas.
Merda. Eu ainda não consigo parar de pensar nesse cara.
— Vamos voltar para a quadra de skate? — Omar pergunta. Não percebi o quanto a
gente se afastou da farmácia.
Jasper sorri como uma criança maligna.
— Eu tenho uma ideia.
As ideias de Jasper normalmente não são muito boas. Mas dessa vez é terrível.
— Eu não vou roubar nada — Charlie diz. Ele dá um passo para trás quando Jasper
coloca a mão na maçaneta da loja de conveniência. Omar conhece a loja porque é perto da loja
dos avós dele, e sei que a forma que ele está se encolhendo não é teatral.
E o único motivo do porque não quero roubar essa loja é porque já vi a dona com um
revólver enfiado na calça. E eles me conhecem, e provavelmente também conhecem meu pai. Se
meu pai souber que eu-
— Certo. Evan e eu vamos. Omar não pode por causa dos avós dele. E você — ele
aponta para Charlie. — É um medroso.
Me sinto mal por Charlie, mas então noto que ele disse que terei que ir junto.
— Eu não vou, cara. Se meu pai descobre que eu pensei em fazer isso, ele me mata-
— Eu não sou medroso!Charlie e eu falamos na mesma hora.
Ele me encara com olhos arregalados, como se estivesse chocado por eu não negar pelos
mesmos motivos que ele.
— É errado roubar. Sabe quanto dano isso dá pros donos e funcionários da loja? Sabe
que o que a gente roubar vai sair do salário de alguém?!
Omar concorda discretamente e Jasper olha de soslaio para mim, esperando eu dizer
algo. Levanto os braços, me rendendo.
— Eu não vou, Jasper. Eles estão certos.
Charlie balança a cabeça para mim, em aprovação.
Jasper fica em silêncio por um tempo até pegar a mochila das minhas costas com tanta
força que eu quase tombo para trás.
— Me empresta sua mochila — Jasper pede, mesmo que já tenha pego ela. Não tento
protestar, porque é só uma maldita mochila suja e cheia de rabiscos azuis.
Jasper entra pela porta de vidro da loja com o peito estufado como o de um galo, pose
que ele normalmente faz quando está confiante. Espero que essa confiança nos salve de ser pego,
porque sei que ele vai dar um jeito de espalhar a merda para todos nós.
Felizmente Max não está aqui. Ela teria brigado tanto com a gente que nosso orgulho
seria apenas uma lembrança. Ou infelizmente. Talvez ela conseguisse colocar juízo na cabeça do
Jasper.
— Você tinha alguma coisa na mochila? — Omar me pergunta, tocando meu braço. Os
olhos dele estão esbugalhados, como um cachorro perdido. Aposto que o estômago dele está se
contorcendo, igual ao meu. É egoísta pensar isso, mas é tranquilizante saber que não sou o único
que está nervoso.
— Não-
— Eu não acredito que a gente deixou ele entrar lá — Charlie balbucia do meu lado.
Ele está tão encolhido que quase desaparece — A gente devia ter impedido. Mas deixamos.
Somos tão culpados quanto ele. Já viu cúmplice de assassinatos? Que sabiam que matar é errado,
mas-
— Ei, ei, cara.— Omar é mais rápido que eu em interromper Charlie. — Mesmo que a
gente tivesse tentado impedir, ia adiantar alguma coisa? Você sabe como o Jasper é-
Tudo acontece muito rápido. Em um segundo, pensei ter escutado um estrondo, e no
outro, tenho certeza. Jasper aparece como um demônio, empurrando a porta de vidro com tanta
força que ela bate na parede. Ele está sorrindo. Um sorriso selvagem, como uma besta. Usa o
capuz do moletom para esconder o rosto, e, antes de disparar para longe da porta, me joga a
mochila. Depois disso, ele corre tão rápido que em poucos segundos some no fim da esquina.
Charlie, Omar e eu demoramos para processar o que aconteceu. Mas, quando um
segundo estrondo surge, minhas entranhas apertam. Jasper provocou o balconista. E esse
balconista aparece na porta com vidro rachado um segundo depois de eu pensar isso.
Mas essa não é a maior surpresa. Eu meio que estava esperando Jasper fazer alguma
besteira. O que me fez ficar sem ar foi o fato de Ashton aparecer pela porta. Usando um avental.
E um taco de beisebol nas mãos.
Ashton mira os olhos diretamente para mim, depois para a bolsa, então as sobrancelhas
dele ficam tão franzidas que formam um V.
. Sem pensar, me torno a mesma besta que Jasper e corro.
Minhas pernas ardem quando piso na calçada com força. Alguma coisa dentro de mim
teve que explodir para eu disparar tão rápido.
Nem vi se Omar ou Charlie correram também, mas isso não importa, porque Ashton
decide vir atrás de mim.
Meu sangue está espesso, minhas veias começam a doer.
É claro que ele viria atrás de mim, estou com a maldita bolsa.
Corro vários metros, longe de onde Jasper tinha ido, desviando dos homens
engravatados e das bicicletas, com o peito ofegante. Penso em me enfiar na avenida, mas é muito
arriscado, porque, mesmo que a rua esteja calma, a chance de um carro surgir do nada é grande e
eu infelizmente não corria mais rápido do que aquelas máquinas de quatro rodas. Paro de pensar
quando esbarro em uma mulher sem querer. Não tenho tempo de olhar se ela está bem, mas grito
um pedido de desculpas.
Olho para trás por um instante.
Ele ainda está me acompanhando, como a merda de um jaguar atrás de um coelhinho.
Vejo um beco isolado. O encaro como se fosse um oásis e, quando me aproximo o
suficiente, largo a bolsa, não me importando em perder meus cadernos. Contanto que Ashton
pare de me olhar como uma fera, estarei feliz.
Meus pulmões começam a doer e minhas pernas estão trêmulas. Usei muita energia no
começo, então cansei muito rápido. Olho para trás e gemo quando vejo que Ashton não parou de
me perseguir. Meu corpo implora para eu parar.
Desvio o caminho, não fazendo mais ideia de aonde estou indo. Só quero achar uma rua
que não seja cheia de lojas para eu poder me esconder.
Por que ele não parou quando joguei a mochila? Jasper deixou Ashton com tanta raiva
assim?
No instante em que vejo um beco apertado que posso entrar para despistar Ash, todas as
minhas células agradecem. E estou quase comemorando minha vitória, quando algo pula em
minhas costas e me derruba no chão. Não preciso ser muito esperto para saber o que foi, mas,
mesmo assim, torço para ter sido qualquer coisa que não seja Ash.
— Seu pirralho maldito — Ashton rosna, assustadoramente parecido com um cachorro
raivoso. Ele torce meu braço e força meu corpo no chão. Grunhi de dor quando o joelho dele
aperta meu traseiro. O meio das minhas pernas fica espremido no atrito e é muito, muito difícil
segurar o berro de dor. — Não é porque nós estamos na detenção juntos que eu vou deixar você
me roubar.
— Desculpa, desculpa — balbucio no instante em que ele torce minha mão com mais
força. — Não fui eu que roubei-
— Mas você ficou esperando do lado de fora enquanto seu amigo roubava, hein? — O
joelho dele afunda o osso do meu traseiro. A dor deve ter enlouquecido minha mente porque
começo a rir de nervoso.
— Eu devolvi o que ele pegou, não devolvi? — Viro o rosto, deixando a bochecha no
chão sujo, para olhá-lo. Se fosse em qualquer outra situação, encarar os olhos de Ashton com
esse brilho raivoso e feroz teria me fascinado, mas não quando minhas bolas estão sendo
esmagadas.
Ashton levanta o punho e por um instante, tenho certeza que ficarei com um olho roxo
por semanas, mas ele hesita. Posso ver quando a pálpebra treme e então abaixa a mão. Meu
corpo relaxa quase que instantaneamente. Mesmo se ele me batesse, não sei se conseguiria deixar
de simpatizar com ele. Quer dizer, a culpa disso tudo é, querendo ou não, minha.
— Você- — Engulo a saliva. — Você poderia sair de cima de mim? Meu… minhas…
está doendo.
Não consigo dizer a palavra bolas, mas Ashton parece entender. Ele olha para o próprio
joelho, como se percebendo apenas agora. Quando ele sai de cima de mim, é como respirar
novamente.
— Se você ou qualquer um dos seus amigos roubarem qualquer loja por aqui, eu vou
atrás de vocês.
A ameaça faz minha nuca se arrepiar.
Ashton se vira para ir embora, mas, por algum motivo, não quero que ele vá ainda. Meu
coração está acelerado pela adrenalina, fazendo minha mente não raciocinar direito.
— Ei! — chamo. Ele vira o rosto por cima dos ombros e me encara com uma expressão
impaciente. — Por que você está trabalhando naquela loja?
— Isso é da sua conta?
Minhas orelhas esquentam.
— Não, mas… você quase me castrou agora pouco, então eu gostaria de saber.
Ele se vira totalmente. Dá alguns passos na minha direção e para perto. Sinto cheiro de
doces e cigarro, e lembro-me do primeiro dia da detenção, quando o vi fumando do lado de fora
da escola, me esperando, oferecendo ajuda para mentir para os meus pais. Não sei como nós
acabamos nessa situação, mas espero que o que aconteceu hoje não faça ele mudar de ideia.
Ashton fica em silêncio por algum tempo, fazendo uma expressão que as pessoas
normalmente fazem quando estão tentando decidir algo de última hora. Escondo as mãos atrás do
corpo. É patético a forma que fico nervoso quando esse cara está perto. Ashton é a pessoa mais
intimidadora que conheço.
— Donovan disse que não tiraria a minha única renda de dinheiro sem me dar outra.
Demoro um pouco para entender que Donovan tinha tirado as drogas de Ashton e
colocado ele para trabalhar na loja. Tudo o que Charlie disse fez sentido. Donovan está de fato
ajudando Ash, e Ashton está precisando de grana. Um trabalho não rende dinheiro para ele
instantaneamente, mas ajuda mais do que não ter nada.
— Você não mora com seus pais?
A expressão dele se torna fria. Me arrependo de ter perguntado.
— Não — Ashton balbucia, talvez um pouco rápido demais. — E tenho outras coisas
que precisam de dinheiro.
Balanço a cabeça, desistindo de insistir no assunto. A escuridão da rua me alerta que
está ficando talvez um pouco tarde demais e que a minha mãe realmente vai surtar quando eu
voltar, mas quero mais um pouquinho da atenção dele.
— Você quer que eu te ajude a levar as coisas de volta? — ofereço.
— Não. — Meu orgulho despenca quando o ouço. — Volte para casa antes que fique
mais tarde. É perigoso.
E depois disso, ele sai andando na direção oposta.
Quase gritei um “até amanhã”, mas amanhã é quarta, e ele não vai para a escola.

Quinta-feira me deixa estranhamente animado e não consigo parar quieto na sala.


Charlie do meu lado me dá cotoveladas de vez em quando, me avisando para ficar quieto.
— O que você tem?
Dou meu melhor sorriso. Um sorriso que pareça que estou preocupado.
— Não quero ir para a detenção, não depois do que aconteceu na terça.
Ele solta uma risadinha muito parecida com um esquilo.
— Mas você disse que Ashton não bateu em você. Por que está com medo, então?
Me remexo na cadeira.
— Ele pode me bater enquanto a gente fica naquelas salas isoladas. E ninguém saberia.
O verdadeiro motivo do porquê estou nervoso é porque quero saber se ele vai lembrar
que me deu o número dele, se vai dizer que posso mandar mensagem a qualquer hora ou se fará
alguma piada sobre terça. Sei que é muito improvável qualquer uma dessas coisas acontecerem,
mas não consigo deixar de imaginar.
O professor explica mais algumas coisas que me forço a anotar no caderno. Não estou
entendendo muito e quando Charlie me chama mais uma vez, é fácil desviar a atenção para ele.
— Vi a Hazel hoje — sussurra, inclinando-se sobre mim. Meu coração vacila. Mesmo
que eu não goste mais de Hazel desse jeito, ainda é difícil controlar algumas reações. — Você
não falou com ela?
— Por que eu falaria? Nós terminamos faz um ano — murmuro, tentando não olhá-lo
nos olhos. — Por quê tá me falando isso?
Ele limpa a garganta.
— Por nada. — Finjo acreditar quando Charlie sorri, tentando parecer casual. As
bochechas dele estão rubras. — Só queria saber se ela estava bem.
— Ela não parecia bem?
— Hm, não. — Ele coça a ponta da orelha. — Quer dizer, pode ter sido impressão
minha, mas ela parecia desanimada. Eu quase… tentei me aproximar mas achei má ideia.
Assinto, silenciosamente.. Eu a vi algumas vezes esse ano. Apenas duas, na verdade.
Charlie não sabe disso porque, para ser sincero, ninguém sabe. É nosso segredo, mesmo que nós
não nos encontrássemos para fazer algo parecido com o que fazíamos na época em que
namoramos. Hazel é uma ótima amiga, e falar com ela é calmante.
Então, se ela está desanimada, tem um motivo. E tenho quase certeza de que sei qual é.
— Você-
Não tenho tempo de continuar porque o sinal solta um grito estridente. Minhas
entranhas se contorcem de nervosismo.
Charlie levanta para guardar as coisas na mochila, me observando enquanto faz isso.
— O que ia dizer?
— Nada. — Balanço a cabeça.
Charlie sorri para mim como um coelho. Ao terminar de juntar as coisas, vou até a
porta da sala com ele.
— Te vejo amanhã.
O abraço, tão amigável quanto posso.
Cinco minutos depois, Ashton aparece na porta.
É difícil não lembrar de quando ele quase me espancou ou de quando nós nos vimos na
festa na fogueira. Tudo isso volta para minha mente como um rolo de filme. Mas quando ele
balança a mão na frente dos meus olhos, volto para a realidade. Ashton está com a mochila
pendurada nas costas e usa um moletom com uma estampa de flor. Parece com uma…
— Vagina.
O punk na minha frente levanta as sobrancelhas tão alto que quase encostam no couro
cabeludo.
— O quê?
Aponto o dedo para o peito dele. Ele olha para baixo, onde estou encostando. Solto uma
risada baixa quando Ashton torce a boca.
— Essa flor, ela parece uma vagina.
Ashton revira os olhos, mas espera eu juntar minhas coisas. Quando volto para a porta
da sala, ele me puxa pelo cotovelo. Nós estamos na metade do caminho na direção das escadas
quando ele decide me dar uma resposta.
— Você é a segunda pessoa que diz isso hoje.
— Você deve gostar muito de flores que parecem vaginas.
Ele balança os ombros.
— São bonitas.
Engasgo.
Ashton e eu chegamos na última sala do corredor. Essa não está cheia de cadeiras e pó,
mas sim de cavaletes e parece incrivelmente limpa, como se alguém tivesse limpado poucos
minutos antes de a gente chegar.
— A gente vai ter que limpar? — Coloco um pé para dentro. Por sorte, não tem pó. A
primeira vez que nós limpamos a sala das cadeiras, espirrei tanto que meus pulmões estavam
doendo quando cheguei em casa. — Não parece… suja.
— É porque não está — Ashton me responde. Escuto os passos dele atrás de mim, e,
quando ele para ao meu lado, torço as sobrancelhas. Ashton levanta as mãos que estão dentro dos
bolsos da jaqueta, com desdém. — Eu limpei antes. Na quarta de noite.
Dou um passo para trás.
— Mas a escola é fechada à noite.
A única resposta que ganho é um sorriso travesso.
Limpo a garganta, não sabendo lidar com isso por um instante.
— Por que… por que você limpou tudo sozinho? Eu podia ter ajudado.
— Porque tenho outros planos pra hoje. Coloque suas coisas aí. Nós vamos sair.
Faço o que ele pede sem questionar.
Sair do terceiro andar sem que ninguém note não é fácil, mas Ashton sabe como fazer
isso. Não pergunto o que nós faremos porque não quero parecer medroso, porém a ideia de a
gente sair para algum lugar ao invés de ficar limpando aquelas salas é muito melhor. Melhor até
do que imaginei.
— Você conhece a biblioteca do Thomas Fisher? — Ashton murmura para mim
quando nós descemos as escadas do segundo andar. A sala do Donovan fica no primeiro piso e
quanto mais nós nos aproximamos, mais meu estômago se revira. Alguns anos atrás, um
professor tentou convencer os alunos a assinarem uma petição para espalhar câmeras pelo
colégio inteiro e nunca me senti tão aliviado por não ter concordado. — Conhece? — ele repete.
— Sim. É aquela que tem os livros raros?
Ashton assente. Ele pega meu pulso para me puxar quando um funcionário com uma
vassoura na mão passa. Meu coração está na boca. Essa não é a primeira vez que fujo da
detenção, principalmente porque não tem ninguém para ficar vigiando a gente. Parece que
Donovan faz de propósito — mas dessa vez meu sangue está mais quente, como se a adrenalina
tivesse decidido encher meu cérebro.
— Já foi lá?
— Não — respondo. — Nunca tive muito interesse em livros, pra ser sincero.
Por um instante, a sobrancelha de Ashton se curva, como se ele achasse isso uma grande
ofensa.
— Mas você conhece Shakespeare? — ele diz enquanto a gente vira uma curva e
vamos até a porta de saída. Por sorte, a sala do Donovan fica do outro lado, então não tem como
ele nos ver pelas janelas.
— Não gosto de livros, mas vou pra escola. É óbvio que conheço Shakespeare.
O sorriso pequeno na curva do lábio dele faz meu estômago virar uma bagunça de novo.
— Hoje vai ter uma exposição do primeiro fólio — explica. — Trinta e seis peças.
Claro que eles não vão mostrar todas elas, mas vão ter algumas. E dá pra entrar no campus da
universidade.
— Não tenho dinheiro-
— Relaxa.— Ashton me interrompe. Ele tira do bolso uma nota de vinte dólares.
Levanto uma sobrancelha. — Recebi meu salário essa semana. Vem.
Sigo o passo apressado dele até Sheppard-Yonge, a estação de metrô mais próxima da
nossa escola. Ashton se move como se já conhecesse esse caminho inteiro. Ele desvia de
qualquer pessoa que está no caminho com tanta agilidade que parece estar em casa. Tenho que
me manter próximo dele quase a todo instante porque, mesmo que o metrô não esteja cheio, tem
gente o suficiente para eu sentir alguém me tocando a todo instante.
Um homem para do meu lado. A mala dele, rígida e dura, prensa meu estômago. Ashton
me puxa pelo cotovelo depois disso e me coloca encostado em uma das paredes. Ele para na
minha frente, afastando as outras pessoas de me empurrar de novo.
— Obrigado.
Ele balança a cabeça.
Descemos dezoito minutos depois. Metade do nosso tempo seria consumido pegando os
metrôs e o resto que sobraria para ver a exposição, seria apressado. Não me importo muito, mas
Ashton mexe o pé freneticamente, como se quisesse chegar logo.
Fomos da rua Wellesley East até a rua Yonge e pegamos um ônibus 94A Wellesley com
um arco-íris escrito “love is love” até à estação Ossington.
Quando nós entramos e Ashton deixa o banco para mim, ficando apoiado no vidro da
janela na minha frente, não aguento mais o silêncio, mesmo que ele não seja desconfortável.
— Nunca fui muito nessa parte da cidade.
O ônibus também está cheio, talvez um pouco mais que o metrô. Nunca peguei um
ônibus dessa região e talvez seja por esse motivo do porque meus olhos ficarem tão vidrados na
multidão de pessoas, de sons e do cheiro. Um cara ao meu lado, com uma mochila estufada e
fones de ouvido está tão firme com os pés no chão que nem os movimentos agressivos do ônibus
o derrubam, como se ele soubesse esse caminho de olhos fechados. A moça do lado de Ash, de
cabelo roxo e com uma maquiagem artística que parece terrivelmente complicada, está rindo de
algo com a outra menina, enquanto os ombros delas se tocam.
Pessoas. Pessoas distraídas são tão bonitas.
Ashton desvia o olhar da janela e daquela rua colorida e me olha. Church de Wellesley é
bem conhecida por ser uma vila cheia — cheia — de bandeiras coloridas. Até algumas ruas têm
as faixas do pedestre pintadas. Já tinha ouvido falar desse lugar na internet e através do Omar,
mas não me lembro de ter vindo ver eu mesmo.
Ashton abre a boca para me perguntar, como se tivesse entendido que eu não queria
ficar em silêncio, mesmo que pareça preferir a quietude.
— Por quê?
— Minha mãe não gosta muito do centro, mesmo que a gente more em York.
Ele arqueia uma sobrancelha, mudando o peso de uma perna para a outra.
— Você mora em York?
Assinto.
— Você mora onde? — pergunto .
Ashton só balança os ombros e volta a olhar para o lado de fora do ônibus, ignorando
minha pergunta.
Quando descemos do ônibus, na Hoskin Ave, na rua St George, caminhamos cerca de
dois minutos até a entrada da Thomas Fisher. Nunca a tinha visto, mas a estrutura é
estranhamente complicada. Ashton parece encantado olhando para ela, com um sorriso
orgulhoso nos lábios.
— Construção esquisita — tento puxar assunto.
Considerando o quanto ele deve gostar desse lugar, a chance de me dar uma resposta
longa é enorme… e vou ficar mais do que feliz em ouvir.
— Foi projetado por Mathers e Haldenby, uma empresa de Toronto, com três
consultores de design, Warner, Burns, Toan Lunde — Ashton recita como uma enciclopédia
humana enquanto, atrás dele, um mar de gente passa. — O antigo diretor da biblioteca
organizava algumas exposições de livros raros todos os anos, mas ele morreu em 2011. Não sei
quem organizou a de hoje, mas espero que seja tão boa quanto as dele.
— Você veio nas exposições dele?
Ashton balança a cabeça depois de apontar com o queixo para a entrada. Nós
caminhamos até às portas e, quando entramos, encolho os braços por causa do ar-condicionado.
Está cheio, consigo escutar os burburinhos enquanto subimos para o segundo piso.
No instante em que entramos, entendo imediatamente porque Ashton gosta tanto desse
lugar. Se eu gostasse de livros, talvez surtasse vendo tudo aquilo. Inúmeras colunas de livros
enchem um dos átrios, sob um mezanino com mais estantes na parte superior. Os estofados de
algumas cadeiras combinam com a madeira avermelhada que fica na plataforma dos mezaninos
iluminados por lustres retangulares no teto altíssimo.
O cheiro de livro nunca pareceu tão calmante como agora. Normalmente os livros em
quadrinho que leio têm cheiro de tinta, então nunca senti muito o cheiro de papel. Talvez eu
devesse começar a ler mais livros depois de hoje.
O burburinho ficou do lado de fora; aqui é como o céu. De todas as formas, consegue
trazer tranquilidade e animação de saber que está cheio de história, não só canadense, mas de
todo o mundo.
Meu coração está disparado e eu nem sei porquê.
— Você ficaria com raiva se eu dissesse que menti? — Ashton murmura do meu lado,
chamando minha atenção. Ele me olha como se estivesse me observando há tempo, apenas vendo
eu reagir àquele ambiente novo.
Demoro um pouco para entender o que ele diz.
— Mentiu sobre o quê? Isso na verdade não é uma biblioteca e sim uma armadilha?
Ele não ri da minha piada.
— Não. Não tem exposição nenhuma de Shakespeare. É de uma coleção chamada
Friedberg.
Entorto a cabeça. Por que ele mentiria sobre isso?
Ele continua, percebendo que não entendi:
— É uma coleção de manuscritos hebraicos. Achei que você ia achar muito chato se eu
falasse, e queria que você viesse. — Ele solta a bomba e sai andando.
O sigo, com um nó na boca do estômago pela confissão de querer que eu viesse.
As luzes alaranjadas iluminam o rosto de Ashton enquanto ele anda em voltas aleatórias,
como se quisesse fugir de mim. Continuo seguindo, com as orelhas quentes.
Quando percebo que não tinha dado nenhuma resposta, digo antes que ele entenda
errado.
— Eu não ia achar chato. Qualquer coisa é melhor do que ficar na detenção.
Ashton vira o rosto e me encara com os olhos frios.
Merda.
— Não! Eu não quis dizer que- — Respiro fundo, acalmando meus nervos para
formular uma resposta decente. — É interessante. Se você gosta, duvido que seja entediante.
Ashton volta o rosto para a frente, mas consigo ver o pequeno sorriso que varre a frieza
dos olhos dele.
— Bom.
Ficamos em silêncio depois disso. Me sinto um pouco mal de ter feito a pior escolha de
palavras possíveis, porque agora ele não está mais lançando fatos aleatórios como antes.
Quando nós nos aproximamos das vidraças que protegem os manuscritos, Ashton para
de andar e fica com os braços atrás das costas, não encostando no vidro. Ele se inclina de vez em
quando, tentando ler as letras complicadas nas folhas amareladas e velhas.
— Esse aqui,— Ele aponta para o livro tão desgastado que se tornou marrom — é o
códice do Halakhot pesukot¹ do século X, um dos primeiros códices hebraico que continua
intacto até hoje.
Ashton faz uma pausa, me dando espaço ao seu lado para olhar. Algumas pessoas atrás
de nós murmuram para andarmos mais rápido, então me espremo perto dele para dar espaço para
os outros verem também. Um garoto, de mais ou menos da minha idade, toca o vidro com os
dedos sujos e Ashton torce o nariz quando vê.
Seguro a risada.
Andamos mais um pouco. O próximo livro exposto está fechado. É grosso, eu chutaria
mais de quatrocentas páginas. A capa dura tem alguns detalhes dourados e está escrito “Zohar.”
— E esse? — Aponto com o queixo para o livro, querendo ouvir o que ele tem a dizer.
— Desse eu sei bastante coisa — o pequeno sorriso que ele abre me faz sorrir de volta.
— É uma cópia do século XV do Zohar, escrito em Creta por um escriba chamado Shabbetai
Balbo. É a principal obra de misticismo judaico. Esse Shabbetai Balbo foi chamado de o falso
messias místico do século XVII, eu não sei muito bem porquê, mas tinha algo a ver com um
colofão.
Assinto, fingindo fazer alguma ideia do que diabos é um colofão. Ao invés de fazer
alguma pergunta idiota sobre isso, fico quieto no momento em que ele começa a analisar o
Zohar.
Depois que saímos de perto das vidraças e começamos a caminhar pela biblioteca, volto
com minha curiosidade aguçada.
— Como você sabe de tudo isso?
Ashton tira os olhos de alguns livros que parecem ser de medicina e me encara.
— Gosto de história, e tinha um… uma pessoa próxima, que era judia. Eu queria
aprender mais pra ter assunto. Tentei aprender hebraico para ler a Tanakh com ele, mas era muito
difícil, e desisti de vez quando…
A voz de Ashton morre e quase ouço o som da saliva descendo amargamente pela
garganta dele. Uma parte do meu cérebro quer muito perguntar o que aconteceu, mas a outra
parte me impede. Ele está falante hoje e se quisesse mesmo que eu soubesse, não teria hesitado.
— Bom, é interessante. Você é mais… mais interessante do que eu achei — digo, sem
tirar os olhos das estantes, tentando parecer casual, mesmo quando minha boca seca ao reparar
que ele continua me encarando.
— Você é um bom ouvinte. Sabe quando perguntar e sabe quando ficar quieto. É bom.
E depois disso, ele sai andando mais uma vez, ignorando o fato de que a gente deveria
voltar. Não consigo dizer nada porque vê-lo distraído e confortável nesse lugar me faz feliz.
Calças apertadas

omo foi que você descobriu que estava apaixonado pelo Jasper? —
— C pergunto ao Omar, sentado ao meu lado na grama meio úmida enquanto
observamos Charlie e Adam andando em círculos com as bicicletas, rindo de
algo provavelmente idiota.
O verão realmente está começando a dar as caras. Ninguém consegue usar mais do que
uma camiseta fina e curta no período da tarde e, embora eu adore sair de casa sem camisa,
minhas costas enchem de bolhas tenebrosas depois.
Omar solta um suspiro, ainda olhando para os nossos amigos. Jasper, Sally e Max não
puderam aparecer, cada um por seus motivos. Mas noto que Omar ficou mais quieto do que o
normal sem a presença de Jasper, e isso é, infelizmente, uma coisa que acontece com muita
frequência.
Quando eles nos conheceram, já eram uma dupla. Jasper já tinha o cabelo pintado de
azul e Omar já era uma das pessoas mais doces que conheci na vida. Consegui me conectar tão
facilmente com Omar que foi até um pouco assustador, mas a sua compreensão quase fraternal
sempre me deixa com as bochechas quentes, como quando seu professor favorito da época da
creche te elogia por algo.
O problema nasceu quando, depois de mais ou menos dois meses conosco, Jasper
começou a investir na Max, embora ela nunca tenha devolvido o flerte. E, por algum motivo, eu
sabia que isso tinha algo a ver com Omar. Era quase como se Jasper estivesse tentando fugir de
algo que não quer admitir e, mesmo que eu não duvide que ele pode, sim, ter uma quedinha por
Max, acho impossível que os sentimentos daquele idiota em relação à Omar se resumam apenas
à amizade.
— Não sei, na verdade — Omar responde após um suspiro. A camiseta cai em seu
ombro e ele parece incomodado com o calor. — Acho que sempre senti algo por ele, mas, por
muito tempo, não reconheci, porque éramos amigos desde criança. E Jasper foi o primeiro garoto
a ser meu amigo de verdade quando cheguei no Canadá.
Os avós de Omar são de Bagdá, no Iraque. Ele vem de uma família tradicionalmente
muçulmana e por conta de inúmeros problemas, tiveram que primeiro tentar a sorte na Inglaterra
e então em Toronto. Omar atualmente mora com os avós e sempre os ajuda na lojinha de
verduras e frutas que eles têm. No verão passado, os avós dele fizeram uma feira para arrecadar
dinheiro para a faculdade do neto e nós os ajudamos trabalhando um mês inteiro nas férias de
verão.
Apesar de ter sido cansativo, foi uma das — senão a melhor — melhores férias que eu já
tive.
— Como você pode gostar dele, cara? O Jasper é tão… Bobo às vezes.
Não quero que pareça uma crítica, mas acho que Omar entende o que quero dizer. Ele
sabe que Jasper ainda é infantil demais para o nível de comprometimento que ele quer. Ou, pelo
menos, Jasper não tem noção dos próprios sentimentos envolvendo Omar. E é isso o que mais
me irrita porque, de tempos em tempos, pego Jasper olhando para Omar com aqueles olhos de
coração idiotas, mas ele nunca admite o que sente e Omar fica tão, tão triste com isso que me
quebra o coração.
Mas não posso me intrometer no meio desse caos. Jasper precisa perceber sozinho os
próprios sentimentos e forçá-lo não ajudará em nada.
— Sei que ele pode ser meio imbecil às vezes, e inconsequente e até meio burro, mas…
Ah, Evan, você não sabe o quão amável ele pode ser. Eu o odeio tanto por isso, tanto, tanto, que
você não faz ideia das loucuras que já tentei fazer para tentar esquecê-lo.
— Como o quê?
— Tentei suprir a falta dele com outros homens. Nunca funcionou, é claro — ele engole
em seco. — Até…
Entendo o que ele quer dizer nas entrelinhas e de repente fico mais ansioso para saber
quem diabos quase o roubou de Jasper que esqueço do sol torrando a minha pele.
— Quem?
— Quem o quê? — ele me olha de soslaio, com seus olhos escuros feito jabuticabas.
— Com quem você ficou?!
O efeito é quase instantâneo: por sua pele ser escura, não consigo ver o vermelho
tomando conta das suas bochechas, mas já o conheço bem o suficiente para saber que, quando
ele encolhe os ombros desse jeito, quer dizer que está envergonhado.
— Não foi ninguém importante.
Não vou desistir assim tão fácil:
— É da escola?
— Sim.
— Quem?
Dessa vez, Omar solta uma risadinha, como achando minha curiosidade divertida.
— Não é ninguém, Evan. Sério. É segredo — responde, e, quando estou para lhe dizer
que isso simplesmente me deixa com mais curiosidade ainda, Omar continua: — Não estou
querendo dizer que o que senti por ele foi algo tão forte quanto sinto por Jasper, mas foi…
Bastante. Foi como encher o peito com, não sei, mel, sabe? Fico me perguntando o que teria
acontecido se nós tivéssemos nos envolvido de verdade, caso não tivesse sido algo tão
passageiro. Esse cara era simplesmente… Bom demais pra ser verdade. Até que me deu um fora
e eu comecei a perceber que ele era um ser humano como todos nós. Então voltei a estaca zero.
Me penduro em seus ombros, tentando fazer chantagem emocional com uma voz
manhosa para ver se consigo extrair alguma informação sobre esse Cara Misterioso. Minha
mente vai automaticamente para Ashton, porque, depois daquele momento que tivémos no
Thomas Fisher, ele simplesmente aparece na minha mente, como um maldito intruso, sem
permissão.
Me pergunto se ele pensa a mesma coisa. Se pensa em mim. Se pensa em mim com
frequência, ou pelo menos a mesma frequência que penso nele. Se está pensando em mim agora.
— Ei — chamo a atenção de Omar, com a voz mais séria. Seu rosto vira na minha
direção e nós estamos tão perto que consigo sentir o cheiro do sol na sua pele. — Posso te pedir
uma coisa estranha, só pra ter a experiência?
Ele levanta as sobrancelhas.
— O quê?
— Posso te beijar?
Omar simplesmente sorri e se inclina sobre mim. É a primeira vez que beijo um garoto e
ele tem gosto de abacaxi.
E o que mais me assusta é que, quando fecho os olhos ao sentir a pele macia dos seus
lábios contra os meus, a memória de Ashton aparece atrás das minhas pálpebras.

Quando Ashton e eu terminamos de limpar a última sala do dia — a do laboratório —


saímos do colégio e caminhamos juntos até o meio-fio, onde sua moto está parada.
Depois do meu beijo com Omar e a imagem do garoto ao meu lado invadindo minha
mente, não consigo não ficar nervoso perto dele. Minhas mãos sempre estão meio úmidas e só
não é mais ridículo do que a sensação desnorteante na boca do estômago toda vez em que ele
mira aqueles olhos claros em mim.
— Até mais, pirralho.
É sempre um até mais. Nunca adeus, nunca tchau. Até mais. Como se já soubesse que
nos veremos novamente, como se certificando de que um próximo encontro acontecerá. Meu
estômago dá aquele giro novamente e preciso engolir o caroço que se forma no fim da garganta
antes de responder:
— Até mais.
Ashton vira-se e acena com a parte traseira da mão, montando na moto. Observo suas
costas, sua jaqueta de couro, os bottons na sua mochila preta. Observo por tanto tempo que,
quando percebo, um garoto insuportável de cabelos azuis está pendurado nos meus ombros,
próximo demais da minha orelha direita.
— “Até mais, pirralho” — Jasper sussurra, com um tom de zombaria que faz as minhas
bochechas esquentarem. — Cara, nunca vi uma despedida tão gay quanto essa. Já reparou nas
calças que ele usa? — Jasper cutuca minha bochecha com o dedo e tento mordê-lo, mas ele é
mais rápido e consegue se esquivar. — Seu safadinho, é claro que você já reparou, não é?
— Você não acha que repara demais nas calças que outro cara usa?
Jasper dá de ombros, mas percebo a forma que ele se afasta, calado. Cutuquei uma
ferida que ele nem fazia ideia de que estava aberta.
De longe, vejo Charlie aproximando-se ao lado de Omar. Meu coração batuca com a
visão de Omar, mas não do mesmo jeito que faz com Ash. Percebo que estou com medo de um
clima estranho surgir entre nós depois daquele beijo, principalmente porque Charlie e Adam
estavam juntos e viram tudo.
Mas, para meu alívio, quando estão próximos o suficiente, Omar sorri para mim como
sempre fez, acenando com uma mão, de forma tão doce que tenho vontade de apertar suas
bochechas.
— Ei, Evan.
— Ei — respondo, esperando que meu sorriso passe tanto conforto quanto o dele.
Mas então Charlie arruina o momento de calmaria ao dizer:
— Achei que vocês iam ficar estranhos depois daquele beijo, sério. Que bom que estão
como sempre.
Meu rosto esquenta tanto que desvio o olhar para os meus pés. Então, de repente, o ar
fica mais denso e, quando percebo, Jasper já serpenteou para o lado de Omar e enroscou os
braços de forma protetiva em volta dos ombros do garoto.
Quando seus olhos encontram os meus, penso ter visto uma luz vermelha saindo deles.
— Que beijo? — ele pergunta, sem tirar os olhos de mim.
Omar parece ficar ainda mais desconfortável.
— Evan estava curioso, eu quis ajudar. Mas de forma amigável. Não significou… Nada
— Omar me olha nos olhos enquanto fala, como se verificando se eu me chatearia com as suas
palavras. Quando tento sorrir em sua direção novamente, para mostrar que não me importo,
tenho a impressão de vê-lo soltando um suspiro.
— Ah, ele estava curioso? — a voz de Jasper está tão ácida que simplesmente sei que
ele está se corroendo de ciúmes por dentro, mas que nunca vai admitir. — Ainda está curioso?
Vem cá, me dá um beijinho-
Jasper esmaga as minhas bochechas de forma que meus lábios formam um bico. Ele se
aproxima de forma exagerada, fazendo sons estalados com os lábios enquanto também formava
um bico, enquanto tento afastá-lo, sem conseguir segurar a risada.
— Que nojo! Não quero beijar você.
Meu amigo idiota se afasta fingindo estar ofendido, antes de dar de ombros.
— Não sabe o que está perdendo.
Vamos até o carro de Omar conversando após isso, rumo à casa de Max. As garotas já
estão lá, nos esperando. Max comprou pizzas e nos chamou para dormir lá porque os pais saíram
para trabalhar de novo e, aparentemente, esqueceram do aniversário da própria filha.
Não comprei nada para Max, mas fiz algo à mão, porque ela gosta mais desse tipo de
coisa. Não me preocupei em embalar, e, quando chegamos, espero até que todos já tenham lhe
dado parabéns para ser o último. Ela vem na minha direção com um sorriso enorme, mas ainda
consigo ver a tristeza profunda escondida por detrás da expressão feliz.
— Não esquenta com isso, não, tá? — sussurro para ela quando nos abraçamos. — Você
tem a gente.
— Não me faça chorar no meio desses idiotas, Evan — ela tenta brincar, mas me aperta
com mais força, como se as minhas palavras tivessem sido flechadas no seu coração. —
Obrigada. Sério. Você e Charlie são as únicas pessoas que nunca me abandonaram nessa merda
de casa e eu amo demais vocês.
Não posso abandonar Max nunca. Sei que jamais vou, mas não posso lhe dar a
impressão que algo desse tipo poderia acontecer. Jamais. Porque senão ela quebraria em mais
pedacinhos do que já está quebrada.
— Ei, ei, ei, ei, esse abraço está durando demais já — Jasper aparece, insuportável como
sempre, me puxando de Max. Ela faz uma careta para ele, mas acho que ele é ingênuo demais
para perceber. — Te trouxe um presente, gatinha.
Todos entregam os próprios presentes a Max e eu também o faço, sentindo carinho se
alastrar por todo o meu coração quando ela sorri para a pulseira de pérolas que fiz com a inicial
do seu nome.
Depois de comermos a pizza, sentamos no sofá da sala de estar gigante e nos enrolamos
nas cobertas e travesseiros, mesmo que não esteja frio. A sonolência pós-comida bate, ainda mais
porque Max decidiu colocar um filme chatíssimo que eu já vi inúmeras vezes e desligou as luzes,
e quando percebo, meus olhos pesam tanto que me sinto grogue, quase adormecendo no ombro
de Charlie.
— Gente, eu descobri algo interessante hoje — Adam quebra o silêncio entre nós.
Minha mente parece voltar a funcionar com isso. — Aquele garoto que Evan tá tendo que passar
as tardes limpando as salas, tem ou tinha uma banda?
Todas as cabeças voltam para Adam como um efeito dominó. Não me dou ao trabalho,
mas estou mais atento ao que ele tem a dizer, porém sinto o corpo de Charlie tensionar contra o
meu com o novo tópico.
— Eu meio que já imaginava, mas não tinha certeza — respondo, puxando a coberta até
o queixo. — Qual o nome da banda?
— Não tem nome.
— O nome da banda é “não tem nome”?
— Não, cara — Adam balança a cabeça. — A banda não tem nome.
— Ah.
— Entendeu?
— Acho que sim — respondo. — Mas o que tem a banda dele?
— Sei lá, cara. Só achei que você ia querer saber, já que está ficando amigo dele-
— Evan não é amigo do Ashton — Charlie interrompe, antes que eu sequer possa
pensar em falar algo. Seu corpo está cada vez mais tenso ao lado do meu e algo grosseiro no seu
tom de voz me faz sair de perto dele. — Evan não é amigo de drogados.
Aí está ela, a parte terrível que os pais dele vivem enfiando na sua cabeça. Minha pele
formiga de desconforto, mas antes que eu possa dizer algo, a voz de Jasper, séria de um jeito que
raramente fica, me corta:
— Ei, cara, relaxa aí. — Mesmo rindo, é possível notar o desconforto em sua voz. O pai
de Jasper já foi viciado, saiu da reabilitação há pouquíssimo tempo e o assunto ainda é
extremamente delicado. Por mais que Jasper aceite, com muita dificuldade, todo tipo de piada
sobre ele, não gosta de ninguém zombando dos pais, principalmente do pai dele. — Até agora a
gente só sabe que Ashton vendeu droga, não que ele é viciado.
A sala fica em silêncios intermináveis por alguns segundos e, nesse meio tempo,
começo a refletir que essa é uma das partes que me impede de odiá-lo completamente: Jasper não
é burro e insensível, embora às vezes pareça. Ele só veio, como todo o resto de nós, de um lar
conturbado que nunca o ensinou a mostrar afeto de verdade. Então, quando ele o tenta fazer, é
por meio de piadas que frequentemente são idiotas demais para o próprio bem.
— Foi mal, Jasper — Charlie responde, com a voz tão pequena que sei que ele se
arrependeu de verdade.
— Tudo bem. Eu sei que você não falou com a intenção.
E isso me faz querer abraçar Jasper pela primeira vez no mundo: ele sabe que Charlie
fala merdas ofensivas às vezes por conta da criação dos pais. E perceber que, de alguma forma,
Jasper decidiu compreender e falar pacificamente para ajudar Charlie a se corrigir ao invés de
partir para o soco como da última vez é um tipo claro de amadurecimento.
Está acontecendo. Lentamente, mas está.
— Pelo menos meu pai não usa aquelas calças apertadas que Ashton usa — Jasper
continua, dando de ombros. Sei que ele está tentando amenizar o clima estranho e tenho que rir
da sua tentativa criativa. Ele vira na minha direção quando percebe o meu riso. — Não é
verdade, Evan?
— Claro, claro. São calças muito apertadas.
— Dá pra ver até as bolas dele!
— Credo, Jasper — Max responde, fazendo uma careta.
Jasper estufa o peito, muito contente consigo mesmo.
Woodbine Beach (parte 1)

iro o cigarro nas mãos, passando os dedos pelos números que Ashton
V escreveu há quase uma semana.
Ainda não tinha salvo o contato dele no meu celular porque minha mãe
ainda não tinha perguntado a razão de eu estar demorando tanto para chegar em casa
ultimamente — acho que está tolerando meus atrasos por causa das férias — mas, no instante em
que pisei no quintal de casa hoje, reparei que já passava das oito da noite.
Ashton e eu ficamos tempo demais para limpar uma das áreas da biblioteca porque ele
não parava de conversar comigo e eu não conseguia parar de conversar com ele. Ficamos tanto
tempo tagarelando que, quando notei, já passava das sete e meia. Tive que correr para casa.
Minha mãe não toleraria um atraso tão grande quanto o dessa vez, tenho certeza.
Por essa razão, tirei o celular do bolso e salvei o contato de Ashton antes de respirar
fundo e encarar a porta da entrada, pensando na sugestão sobre não contar sobre a detenção.
Nossa casa é tão quieta, tão sem vida, que nem mesmo o seu tamanho compensa. Na
verdade, acho que, pelo fato de ser um sobrado tão grande, me sinto mais solitário do que
certamente deveria sentir-me na minha própria casa. Meu pai mal fica conosco mas, quando fica,
a sensação que sinto é pior do que a solidão: um medo constante pinicando minha pele, como se
vermes se arrastassem por minhas veias, deixando-me em alerta a todo instante.
Respiro fundo uma última vez e então, engulo em seco ao pegar na maçaneta.
No mesmo instante em que a giro e escuto o click usual do trinco virando, a voz da
minha mãe invade meus ouvidos:
— Evan, é você?
Fecho os olhos quando percebo a nota de preocupação em sua voz, mas algo chama a
minha atenção: um par a mais de sapatos ao lado da entrada, significando que, ou meu pai já
está em casa — o que não é comum de acontecer, principalmente em dias de semana — ou
temos visita.
Um flash brilhante cruza a minha mente quando penso em um nome e a sensação de
enjoo é quase instantânea.
— Sou eu, mãe.
Então ela aparece na minha frente, com as sobrancelhas franzidas e um avental. Seu
rosto está um pouco sujo de farinha e de repente tudo o que consigo prestar atenção é o cheiro
doce de massa de bolo. Bolo que ela só faz quando quer agradar — ou impressionar — alguém.
Bolo que faz quando Randall aparece aqui.
— Onde você estava?
— Randall está aqui?
Perguntamos no mesmo instante e quando ela escuta o tom acusatório na minha voz,
desmancha a expressão raivosa. Ela sabe dos meus problemas com Randall, sabe do complexo de
inferioridade que tenho em relação ao meu meio irmão porque, porra, passei a vida inteira
ouvindo do meu pai que eu deveria ser inteligente e bem-sucedido como aquele mauricinho.
— Randall passou para falar com seu pai sobre algo. Por que você demorou tanto?
Fiquei preocupada. Não faça isso comigo, Evan.
Sei o que ela quer dizer com “falar sobre algo”. Significa simplesmente que ela não faz
ideia do que eles estão conversando naquele escritório mofado do meu pai, porque nenhum dos
dois a considera digna de saber de assuntos “sérios” como os deles.
Aperto o punho com força, tentando controlar a súbita onda de impulsividade que se
alastra pelo meu corpo. É uma sensação semelhante à de quando soquei o rosto de Jasper.
— Eu estava na casa de um amigo, estudando para o começo do ano — explico, porque
sei que é o que ela gostaria de ouvir: que vou começar o último ano do ensino médio me
dedicando aos estudos. — Se quiser, posso te passar o número dele pra ele te confirmar.
Minha mãe balança o rosto de um lado para outro.
— Não precisa, eu confio em você, sabe disso. Só gostaria que você tivesse me avisado
disso antes.
— Desculpa — peço, abaixando o rosto. — Não vou mais fazer isso.
— Ah, Evan, não se preocupe-
O som da porta do segundo andar abrindo-se a cala no mesmo instante e ela me olha
com aqueles olhos ansiosos, como se me pedisse silenciosamente para não fazer nenhuma
besteira envolvendo Randall.
Meu pai e Randall param no último degrau, conversando enquanto gesticulam, até que
vêem. Sinto seus olhares sobre mim. Nunca é uma sensação agradável ter nenhum dos dois por
perto, mas hoje realmente não gostaria de terminar o dia desta forma.
Ashton e eu passamos a tarde conversando sobre tantas coisas que, em certo ponto,
minha garganta começou a doer. Descobri que ele já havia lido A Ilíada e A Odisséia, mas que a
primeira das epopéias havia roubado seu coração. Os olhos de Ashton brilhavam quando ele
contou-me sobre Aquiles e o suposto romance entre ele e Pátroclo que os historiadores tentavam
apagar. Eu lhe disse que não tinha o costume de ler e não pude deixar de comentar o quanto
havia gostado de ir até a biblioteca de Thomas Fisher com ele. As bochechas de Ashton ficaram
vermelhas nesse instante, e ele desviou o olhar, mas disse que encontraria outro lugar para talvez
irmos no futuro.
Foi um dia tão, tão bom que a última coisa que eu quero é terminar tendo uma briga
com meu pai.
Mas sei que a calmaria está por acabar, já que ter Randall no mesmo lugar que eu
desliga todos os neurônios racionais do meu cérebro.
— Evan — a voz do meu meio irmão chama-me atenção e não consigo disfarçar o
incômodo quando ele se aproxima de mim, com um sorriso grotescamente parecido com o do
meu pai. Isso é algo que me assusta: Randall e Terry são muito parecidos, mas a diferença é que
olhar para o rosto de Randall é como ver a faceta do que meu pai poderia ter sido um dia, se não
nos detestasse. — Que bom te ver. Faz tempo que não venho aqui.
— Podia ter continuado sem vir.
O olhar que recebo do meu pai me deixa assustado e contente ao mesmo tempo.
— Cuidado com o que você fala, garoto.
Forço-me a dar de ombros, fingindo não me importar ao ponto de sentir uma queimação
característica no estômago.
— Tudo bem, pai. Adolescentes são assim — Randall responde, com seu sorriso
branco.
Odeio isso em Randall: ele tenta ser aquele amigão super descontraído que defende
adolescentes mal-educados como eu. Mas ele não sabe que, ao fazer isso, as cobranças do meu
pai para eu ser mais como ele se tornam maiores, porque, porra, Randall sempre, sempre, é
melhor em tudo, inclusive em educação.
Randall diz que ficará para o jantar e meu pai faz uma expressão estranha. Não penso
profundamente sobre isso e começo a subir as escadas para me trancar no quarto pelo resto da
noite, mas meu pai me impede.
— Você não vai se esconder naquele cafofo hoje, Evan. Tenha educação e faça
companhia para o seu irmão.
Não quero deixar minhas emoções tomarem conta de mim. Sério. Nunca quero, na
verdade, mas não consigo controlá-las. É o contrário, na verdade. E odeio principalmente quando
toda a frustração, raiva e angústia se embolam dentro de mim como o fio de fones de ouvido no
bolso. Odeio porque faço coisas irracionais, como me virar para meu pai, olhar bem no fundo
dos seus olhos e dizer:
— Por que você não vai à merda?
Acho que ele demora para captar o que acabo de dizer, porque continua estático por
tanto tempo, apenas me encarando, que, por um segundo, penso só ter dito isso na minha própria
cabeça, mas então, quando Terry começa a vir para cima de mim com os punhos fechados, tenho
certeza que disse em voz alta.
— Garoto de merda-
Terry está a dois passos de mim e meu corpo inteiro não se move, mesmo que eu queira.
Paraliso no meio das escadas, apenas esperando o impacto. Me pergunto se algum dia vou ter
coragem de impedi-lo de me machucar, mas sei que essa é uma realidade distante por enquanto.
Terry está a um passo de mim quando levanta o punho pesado e fecho os olhos instintivamente.
Mas a dor não vem. Espero, espero e espero. E nada acontece. Então, quando tomo coragem de
abrir um dos olhos, vejo que Randall estava segurando-o para longe de mim.
— Você é um pai de merda — é tudo o que digo quando consigo mover os músculos
novamente e passo pelos dois, em direção à porta.
Não posso ficar nesse lugar por nem mais um segundo. Mal consigo respirar.
Quando saio de casa, escutando a voz da minha mãe chamando meu nome, começo a
correr. Sei que se eu não correr, meu pai irá me alcançar, por isso corro o mais rápido que
consigo, ao ponto de sentir os pulmões começando a queimar no ar quente de Toronto.
Paro quando a realidade volta à minha mente no instante em que um carro passa
correndo por mim.
Sugo o ar o mais rápido que posso, embora meu rosto inteiro esteja ardendo, arfando
pelo esforço e a percepção de que, se eu não tivesse parado a tempo, o carro teria destruído o
meu corpo. Meus olhos estão ardendo, mas não quero chorar. Não quero ser sentimental, não
quero ser um idiota. Sinto-me uma criança enciumada dos pais, embora saiba que, no fundo,
tenho inúmeros motivos válidos para detestar Randall.
Quando meu pai surgiu com aquele garoto mais alto que eu, dizendo que eu tinha um
meio-irmão e que deveria me acostumar com a ideia, ninguém tentou me adaptar a isso.
Ninguém tentou explicar como diabos aquilo havia acontecido, já que Randall era mais velho do
que eu. E, após o surgimento dele, tudo o que parecia ser meu, foi transferido para ele.
Meu pai nunca foi um exemplo de ser humano, mas ele tinha certa doçura comigo
quando eu era mais novo. Ele me tratava como um filho e não um idiota qualquer que havia
saído do seu saco.
Tenho a teoria que meu pai também pisou na bola com Randall antes. Quando o vi pela
primeira vez, Randall não estava nada contente. Ele era diferente do que é agora, mais recluso,
fechado, quase parecido comigo. Não sei quando as coisas começaram a mudar, mas, por um
tempo, fiquei sem ver Randall.
A mãe dele casou-se e ele ganhou um padrasto que, aparentemente, lhe deu carinho e
amor o suficiente para consertar a sua mente fodida. É uma pena que eu não tive essa sorte.
Agacho-me e puxo os cabelos pro alto. Minha pele arde, mas é uma sensação boa: me
faz esquecer da vontade absurda de chorar. Fico nessa posição até que a tristeza passe e só me
reste a raiva e, quando ela começa a esquentar meu sangue, chuto uma lixeira perto de mim, sem
me importar com o lixo que se espalha pelo chão.
— Porra! INFERNO!
A garganta arde pelo grito e, por essa razão, grito novamente. A dor me lembra de quão
bem o dia havia começado, porque, poucas horas atrás, eu estava concentrado em cada letra que
saía da boca de Ashton. A sensação de impotência, de falta de controle — falta de controle da
minha própria vida — me inunda de tristeza novamente e caio no chão mais uma vez. Não
consigo mais controlar as lágrimas.
— Que inferno…
Pego o celular e, com a visão desfocada por causa das lágrimas, ligo para o primeiro
contato que encontro, torcendo para ter acertado o número de Charlie. Quando ele atende, no
terceiro toque, não lhe dou tempo para falar:
— Falei que meu pai é um merda e ele provavelmente quer me matar agora. Me
encontra na Woodbine Beach.
E desligo.
Woodbine Beach (parte 2)

ncho as mãos com um punhado de areia e deixo os grãos escaparem pelas


E vértebras dos dedos lentamente.
O mar está calmo, mas parei perto demais dele. A maré subiu o suficiente
para tocar a ponta do meu all-star sujo e, em certo momento da noite, os tirei, juntamente com a
meia, para deixar a areia tocar minha pele. Não consigo segurar uma risadinha toda vez que a
água salgada gela a ponta dos meus dois dedões.
Charlie está demorando, talvez nem venha. Em certo momento, observando os pequenos
pontinhos de luz no meio do mar, dos barcos que chegam perto — ou se afastam — da costa de
Toronto, comecei a lembrar-me da tarde com Ashton. E inevitavelmente uma sensação calmante
tomou conta do meu corpo e diminuiu a frequência enlouquecida do meu coração.
Não falamos nada em específico, deixando o assunto fluir entre nós como se fosse o ar,
mas descobri uma coisa muito interessante sobre ele: Ashton é apaixonado por Literatura — com
L maiúsculo, como ele mesmo disse.
Conheço poucas pessoas no mundo com um tipo de paixão tão intensa quanto Ashton
tem por histórias. Ele parece sedento só de falar dos livros que já leu, dando-me o privilégio de
escutá-lo contar por longos minutos sobre o enredo de um livro que eu nunca havia visto na vida.
Gostaria de ter esse tipo de fogo ou determinação interna. Agora, quando olho para
Ashton, quase consigo vê-lo vivendo uma história de livros; quase tenho a impressão de sentir o
cheiro de páginas complementando o perfume de lavanda. Gostaria que alguém pudesse me olhar
dessa forma e lembrar automaticamente de algo, como uma lembrança involuntária, mas, quando
paro para pensar, nem eu mesmo me conheço tão bem e isso é um pouco assustador.
Pego outro punhado de areia quando a minha linha de raciocínio começa a se
aprofundar.
Não sei quase nada sobre mim. O que quero fazer quando terminar o colégio? O que eu
gosto de fazer no tempo livre? Qual a minha comida favorita? Se eu fosse o personagem de um
livro, seria um daqueles que não tem desenvolvimento algum e que é nomeado como o “planta”
da história. No fundo, eu não poderia discordar.
Tento pensar, tento forçar a mente a procurar qualquer coisa que me dê um traço
bacana, mas a única coisa que consigo pensar é no fato de eu gostar de histórias em quadrinhos
e… Andar de bicicleta. Tenho problemas sérios com os meus pais, mas acho que não seria certo
me reduzir apenas a isso, certo?
Escuto uma música vindo de longe. Não entendo a letra, mas consigo ouvir o padrão das
batidas da música. Fecho os olhos, prestando atenção apenas no som distante, pensando em
como eu gostaria de parar de me sentir vazio.
Isso acontece com mais frequência do que eu gostaria de admitir.
Essa sensação perturbadora de que não estou aproveitando a vida como alguém da
minha idade deveria, de como eu estou sendo infantil por sentir amargura demais em relação ao
meu meio-irmão, de que se, em um toque de mágica, eu desaparecesse, ninguém notaria de
verdade — talvez eu esteja sentindo tanto, que essas coisas se misturam e viram… Uma sensação
oca.
Detesto quando me torno hiper-consciente dos meus sentimentos, porque começo a
notar o quão insignificante e indiferente posso ser. Lembro de Charlie dizendo que eu usei Hazel
e sinto a bile machucar as paredes do estômago, porque, no fundo, sei que tem uma pontada de
verdade. Não foi proposital, mas eu sabia que usava todas as minhas namoradas para ter um
pequeno momento daquela sensação segura de que alguém se importava comigo.
Sei que realmente gostei de todas elas em algum nível, principalmente Hazel — que foi
provavelmente a única que me fez sentir de verdade o que deveria ser a famosa paixão — mas o
problema era que… Quando nós terminávamos, eu não conseguia sentir nada. Nada além de uma
mágoa passageira que em menos de dois dias ia embora e não voltava.
Elas sempre terminavam comigo, dizendo que eu era confuso. Em um momento, as
tratava como se fossem donas da minha vida e, no outro, sumia por dias sem razão. E me
conheço bem para saber que fazia merda com frequência, mas a maioria das vezes em que eu
sumia repentinamente era por conta do meu pai e seu costume paternal de me trancar no porão.
Ele nunca me deixava lá embaixo por mais do que um dia, às vezes nem isso, mas quando saía
daquele lugar era difícil voltar ao normal como se nada tivesse acontecido.
Eu precisava de alguns dias para colocar minha cabeça em ordem, mas, por nunca
contar a nenhuma delas sobre os meus reais problemas, elas não faziam ideia do que realmente
estava acontecendo.
Solto um suspiro frustrado quando a água na minha pele me traz de volta para a
realidade.
As gavinhas de ansiedade já começaram a se arrastar pelo meu estômago e não consigo
deixar de sentir-me preocupado com o que vai acontecer no momento em que eu precisar voltar
para casa, já que, embora pareça uma ideia agradável à primeira vista, não é muito seguro dormir
na praia.
De repente, escuto passos.
Não me dou o trabalho de olhar para trás, mas é impossível segurar o ar que escapa dos
meus pulmões, aliviado, quando percebo que não preciso mais conversar comigo mesmo.
— Achei que você não viria — digo, alto o suficiente para Charlie ouvir.
— Eu não vinha — a voz grossa que me responde, no entanto, definitivamente não éde
Charlie.
Viro em um flash, tão rápido que os ossos da minha coluna estalam.
— Eu… —" começo, sem saber ao certo o que dizer quando Ashton Winsor, o mesmo
garoto que não saiu da minha cabeça a tarde inteira, senta-se ao meu lado na areia, com sua calça
jeans rasgada e botas militares sujas.
— Você…? — instiga ele, encarando o mar. Observo seu perfil, deixando meus olhos
escorrerem por todo o seu rosto, desde o pescoço até a franja loira e molhada, perguntando-me
como pude ser tão idiota ao ponto de ligar para o número errado.
— Eu liguei pra você?
Ashton levanta uma sobrancelha antes de puxar e acender um cigarro, deixando a
fumaça escapar pelo nariz. Ele finalmente me olha e não consigo manter o olhar, abaixando o
rosto, cheio de vergonha. Ashton parece ter acabado de sair de um banho quente. Tenho certeza
que ele estava, não sei, a segundos de ler um livro quando esse idiota — eu — ligou,
praticamente chorando, para ele.
Por que você veio?, quero perguntar, mas estou com medo da minha voz soar adocicada
demais.
Puxo as pulseiras de couro do meu pulso, tentando aliviar o nervosismo que pesa no
fundo do estômago. Ashton me observa por alguns segundos e então puxa o celular do bolso do
moletom preto e mexe na tela por alguns segundos antes de enfiar o aparelho na frente dos meus
olhos, mostrando-me a minha evidente e bem clara ligação de meia hora atrás.
— Sim, ligou — responde, guardando o celular logo em seguida. Ele faz uma pausa
para tragar mais fumaça e então continua: — Mal tive tempo de sair do banho e você me ligou.
Desvio o olhar, perguntando-me o quão irritado ele possivelmente está nesse momento.
Porém, quando levanto os olhos para dar uma espiadinha, não encontro o vinco no meio das
sobrancelhas que sempre se forma quando acontece algo que Ashton realmente não está
gostando. Ele parece… Calmo. Principalmente ao olhar a espuma do mar.
— É, acho que liguei. Foi mal.
Ficamos em silêncio. Um silêncio razoavelmente desconfortável.
— Então você brigou com os seus pais?
— Sim.
— Você briga bastante.
Rio, empurrando o seu ombro logo em seguida. Quando percebo o que fiz, meu corpo
congela, porque, por um segundo, esqueço que ele não é um dos meus amigos, mas sim um cara
que conheço há menos de duas semanas.
Encolho instintivamente o corpo, esperando por uma repreensão, mas, quando ela não
chega, tento relaxar novamente.
Ashton parece estar com um pequeno sorriso levantando o canto dos seus lábios.
— Olha, eu realmente sinto muito por ter feito você vir até aqui. Achei que tinha ligado
para um dos meus amigos, mas devo ter clicado errado e-
— Então quer dizer que eu perdi meu tempo vindo aqui? — provoca ele, mas não há
uma gota de irritação na sua voz, o que desarma lentamente a barreira de medo que levantei em
volta de mim no momento em que ele chegou.
Dou de ombros.
— Não… Foi perda de tempo. Gostei que veio. Você é legal — murmuro a última parte,
tão baixo que só tenho certeza de que Ashton ouviu porque ele vira-se para mim, parecendo
levemente surpreso.
— Eu sou?
— É, sim.
— Legal.
Olho para as minhas pulseiras novamente, sem apertá-las. Lembro-me do dia em que
Max me presenteou com elas, duas tiras grossas de couro que agora rodeiam meu pulso todos os
dias. Ela fez isso após ver os cortes profundos nos meus pulsos, avermelhados e recentes.
Lentamente, por conta das pulseiras, fui deixando o costume de me machucar de lado,
porém, em momentos como esse, quando minha ansiedade ataca de uma forma que meu cérebro
mal pode aguentar, é inevitável não passar a ponta dos dedos pelas cicatrizes já curadas, com a
necessidade de reabri-las.
Quando levanto o rosto, pego o olhar de Ashton no meu pulso. Sei, por puro instinto,
que ele está olhando meus machucados. Mas então, como se sentisse meus olhos, levanta a
cabeça e me observa por alguns segundos, antes de tragar o cigarro mais uma vez. Agradeço
silenciosamente por ele não ter dito nada embaraçoso em relação a isso.
— Sinto muito que você esteja passando por isso, seja o que for — ele diz, observando
o mar, como se não querendo me deixar constrangido. Suas palavras me atingem como uma
flechada e dói, mas não de um jeito ruim. Dói porque, de repente, percebo que essa é uma das
coisas que eu mais gostaria de ouvir. — Um dia te vi chorando atrás da escola. Não estou
tentando te dizer isso para te envergonhar, mas pra… Dizer que está tudo bem em não estar bem.
Seus problemas não te definem. Esses momentos ruins não te definem como uma pessoa ruim e
está tudo bem não conseguir controlar tudo isso dentro de si mesmo a todo instante. E sinto
muito que você sinta que precisa.
Meu peito começa a pesar e não sei o que dizer. Ao mesmo tempo que Ashton
realmente parece querer me dizer essas coisas, também parece estar se autoafirmando.
Lembro-me do único dia em que chorei no colégio. Foi quando tudo pareceu pesado
demais e eu não sabia como aguentar mais todo aquele turbilhão de sentimentos. Então corri
quando percebi que não conseguiria mais segurar as lágrimas, porque não queria que Charlie ou
Max ou qualquer um dos meus outros amigos vissem.
Mas Ashton viu.
E, surpreendentemente, isso não me incomoda como talvez devesse.
— Não sei como é a sua relação com seus amigos — ele continua, apagando o cigarro
na areia e apoiando o queixo nos joelhos, inclina a cabeça na minha direção. Alguns fios caem na
frente dos seus olhos claros e me pego completamente desprevenido com a necessidade
desesperadora de não desviar nem por um segundo a atenção do seu rosto. — Mas saiba que
você pode confiar em mim. Eu… não posso prometer que vou estar sempre bem, que poderei
ajudar a todo instante, mas eu realmente gostaria de, pelo menos, tentar.
E isso me fisga como uma minhoca presa numa lâmina a fim de capturar um peixe.
Minha garganta seca como se houvesse fumaça dentro dela e preciso tossir de um jeito meio
constrangedor.
— Obrigado.
Ashton não sorri, mas balança a cabeça de um jeito que acalma.
— Sabia que essa praia não era para banho em 1950? Apesar de ser uma das maiores
praias de Ontário — ele começa e não consigo controlar o sorriso que se espalha por meus
lábios porque lembro do dia do Thomas Fisher, em que ele soltava essas curiosidades aleatórias.
— A área ao redor daqui já foi uma comunidade de chalés.
— Ás vezes acho que você é uma Wikipédia humana.
— Eu tenho muito tempo livre e acesso à internet. Ao invés de vocês, pirralhos, que
ficam vendo pornô o dia inteiro, faço coisas úteis com ela.
Abaixo o rosto, com o estômago doendo pela vergonha das lembranças do que Jasper
me fez passar quando teve a ótima ideia de roubar cerveja. Também quero dizer para não me
chamar de pirralho, mas há algo estranhamente afetivo no seu tom. E, de fato, sinto-me um
pirralho. Um pirralho de trinta minutos de idade, porque parece que a vida foi dada de volta para
mim no momento em que Ashton chegou aqui.
É um pouco assustador a forma como gosto de ouvi-lo falar.
Até que me lembro de algo:
— Nossa, eu nem te perguntei. Eles te mandaram embora?
O silêncio dele é a resposta. Meu corpo inteiro tensiona.
— Me desculpa, de verdade — continuo, porque realmente sinto muito. — Você disse
que precisava de dinheiro, eu posso tentar te ajudar.
Por uma pequena fração de segundos, lembro-me da conversa que tive com Charlie, na
qual lhe disse que não me aproximaria demais de Ashton. Então olho para o maldito Ashton, na
minha frente, com a pele refletindo a luz da lua e me desculpo mentalmente com Charlie, porque,
droga, me aproximei tanto ao ponto de me preocupar.
— Eu não preciso da sua caridade. A última coisa que eu quero de você é o seu
dinheiro.
— Então o que você quer?
Seu silêncio faz as minhas mãos começarem a suar. Tento não pensar muito no assunto,
pensando em como quebrar o clima repentinamente pesado — mas não de uma forma
desconfortável — que se formou entre nós.
— Fiz o que você disse — digo. — Não contei à minha mãe sobre a detenção. Até
ofereci passar seu contato, caso ela quisesse confirmar, mas nem precisou.
— Bom garoto.
Os pelos da minha nuca se levantam.
Mais silêncio.
— Seria intrometido demais da minha parte perguntar o porquê você brigou com seus
pais? — Ashton pergunta, cruzando os braços. Embora já estejamos no verão, a brisa da praia é
inegavelmente gelada.
Hesito em responder.
— Resumidamente, tenho alguns problemas com meu meio-irmão. Meu pai idolatra ele
de um jeito que não consigo entender, enquanto me trata como… Lixo. Não suporto Randall. Só
de olhar a cara dele, me sinto enjoado, mas não, tipo, de nojo, sabe? É como se meu corpo
reagisse às lembranças que o rosto dele me trás. Então eu perdi a cabeça e falei que meu pai era
um pai de merda e saí correndo porque sabia que ia apanhar.
Ashton solta um suspiro, com o olhar distante.
— Lidar com família é uma droga. Irmãos são complicados.
— Meio-irmão — corrijo.
Ele me olha de um jeito engraçado.
— Foi o que eu disse.
Rio e, quando Ashton devolve-me a reação com um sorriso pequeno, me sinto vitorioso,
por algum motivo.
E então, em um pulo, Ashton levanta-se da areia e limpa o traseiro da calça com
palmadas. Por um pequeno segundo penso que ele está indo embora e a minha boca coça para
pedir que fique por apenas mais alguns minutos, até que ele me oferece a mão.
— Levanta daí. Vamos comprar alguma coisa para beber.

Quando Ashton disse que iríamos comprar bebidas, achei que ele finalmente aceitaria
que, infelizmente, muitos adolescentes bebem — embora eu deva admitir que não deveriam — e
compraria uma mísera cerveja para mim. Em vez disso, o que ganho é uma caixinha de suco de
uva.
No entanto, ao andar do seu lado devagar, com uma caixinha de suco nas mãos, sinto-
me bêbado, mas acho que isso tem a ver com a sua companhia, então não reclamo.
De vez em quando, nossos ombros esbarram um no outro e sinto meu estômago se
contorcer. Não consigo parar de pensar em como gosto de qualquer pequeno toque repentino
vindo dele, mesmo aqueles que acontecem involuntariamente.
O silêncio, dessa vez, é menos estranho. Parece haver algum tipo muito incomum de
companheirismo entre eu e ele, de um jeito frágil, como um recém-nascido. É bonito, delicado,
mas muito fácil de danificar.
— Por que você tá cheirando a merda? — ele pergunta após um tempo, fazendo meu
rosto esquentar.
— Eu chutei uma lixeira antes de te ligar. Acho que cai no meio do lixo em algum
momento, também.
— Seus vizinhos devem te amar.
— Nossa, sim, com certeza. — Espero que minha voz soe irônica o suficiente e, quando
ele solta uma leve risada, sinto que concluí meu pequeno objetivo. Mas então, por algum motivo,
continuo: — Achei que você me compraria uma cerveja.
— Não. Não gosto de pessoas bêbadas perto de mim — ele fala, em um tom tão
cortante, que simplesmente sei que sua resposta tem história. E, agora que coloco meu cérebro
para funcionar, talvez ele simplesmente não goste de ter que aturar gente bêbada perto dele num
geral, o que é compreensível, porque é uma chatice sem fim.
Mas, de alguma forma, sinto que há algo mais pesado aí. Algo no seu passado que o fez
responder a minha pergunta tão duramente.
Não insisto no assunto, observando ele verificar algo no celular. Suponho que seja o
horário e não consigo controlar a onda de decepção que me atinge.
— Você não está indo agora, não é? — pergunto em vez disso, revirando a caixinha de
suco na mão, fingindo estar interessado nos ingredientes minúsculos do lado de trás do papelão.
Quando viro para olhá-lo, não me surpreendo de estar já me analisando. O que me
surpreende, na verdade, é o fato de, gradativamente, um sorriso divertido colorir seu rosto,
mostrando um pouco das suas gengivas.
— Por quê? Não quer que eu vá?
Meu estômago dá aquele giro aterrorizante novamente, porque algo no ar muda e de
repente sinto que estou me esforçando para… Atrair alguém. Não penso muito sobre isso quando
balanço meus ombros, com uma falsa timidez.
— Não. Não, quero não.
O sorriso dele se desfaz, mas não totalmente. Ashton olha para frente depois de limpar a
garganta.
—Já são quase dez da noite. Já esgotei minha cota de boas ações do dia.
— Sua cota de boas ações é passar duas horas na rua com um moleque que só arranja
confusão e está, atualmente, cheirando a merda?
— Sim.
— Que bom que me encaixo nesse perfil — respondo. — Parece que você vai ter que
passar muitos dias comigo para encher suas cotas, então.
E, simples assim, consigo vê-lo abaixando o rosto para, também, fingir que as instruções
miúdas da caixinha de papelão é a coisa mais interessante do mundo. Consigo ver um sorriso
distraído nos seus lábios, antes que ele suma naturalmente.
— Você deveria voltar para casa. Sua mãe vai ficar preocupada — ele diz, estragando
um pouco a leveza do ar anterior.
Rio amargurado, tentando disfarçar o quanto suas palavras me atingem. Eu deveria
voltar para casa, sei disso. Mas Ashton… Ashton está me fazendo esquecer do futuro por alguns
segundos e faz muito tempo que não sinto essa falta de preocupação.
— Não quero voltar.
Não me peça para ir embora. Não diga que tem que ir embora, é o que quero dizer.
— Vamos, levante. — Ele cutuca a lateral do meu all-star remendado com a bota.
— Não quero.
— Vou te largar aqui, acredite ou não.
Sei que ele não vai embora — ou pelo menos é o que eu espero — mas, mesmo assim,
entro na onda.
— Eu acredito.
Sinto seu pé me cutucando novamente. É engraçado o fato de Ashton estar se
esforçando tanto para me fazer ir para casa. Me comove.
— Estou indo — ele avisa, embora esteja claramente sentado ao meu lado. Quero
estender a mão e agarrar um pedaço do seu moletom, apenas para me assegurar de que ele não
vai mesmo, mas não faço isso, embora tente me arrastar discretamente para mais perto.
— Não quero ir para casa porque tenho medo do meu pai — digo, tão repentinamente
que até mesmo eu me assusto. Me arrependo logo em seguida, querendo dizer que era apenas
uma brincadeira, mas eu já sabia que ele conseguiria notar que não era. Ashton é tão observador
que dá arrepios.
— Enfrenta ele, então.
O riso que escapa de mim não é alegre. É simplesmente triste. Me sinto impotente, da
mesma forma que me senti quando saí correndo de casa. Mas, diferente de antes, não sinto uma
necessidade dolorosa de me esconder.
— Se eu fizer isso, pode ter certeza, vou ficar sem um lugar para morar. Vou ter sorte se
ele me aceitar de volta depois do que eu disse hoje.
— Se ele te ama de verdade, não vai te pôr para fora.
Viro o rosto, surpreso. Nunca imaginei que uma coisa dessas sairia da boca de um cara
como ele. É tão… Inocente?
— Esse é meu medo.
— Mesmo se ele não te amar, sempre vai ter alguém para fazer isso — ele me responde
e a reação do meu coração é instantânea. Meus olhos ardem, mas eu controlo com toda a minha
alma a vontade de chorar.
Sorrio novamente. Suas palavras soam tão doces, tão puras, que parecem estar vindo de
uma criança que ainda tem esperança no mundo.
É estranho o quanto Ashton já parece ter entendido tudo. Não contei muita coisa, mas
me sinto despido, como se eu lhe tivesse dito todos os detalhes da minha vida.
O toque maluco do seu celular me traz de volta à realidade. Ele o pega e, quando vê a
tela, sua expressão muda para algo que não sei como descrever. Meu estômago se revira no
mesmo instante quando tenho a premonição das suas próximas palavras: preciso ir, é o que ele
vai dizer. E eu desesperadamente queria que ele ficasse.
— Tenho que ir.
— Eu sei. — Mas continua sendo uma droga.
Ele não se move por mais um segundo, me analisando. Seguro seu olhar, com as mãos
apertando as pulseiras de couro com tanta força que minha pele começa a doer.
Quando quase cometo o erro de abrir a boca para lhe pedir para não ir, para ficar comigo
mais cinco minutos, Ashton já se levantou.
Ele é legal

epois do Ashton realmente me largar na praia sozinho, voltei para casa,


D com o rosto vermelho. Me imagino como um cachorro com o rabo entre as pernas
quando abro a porta da casa e minha mãe vem correndo para me abraçar. Ela não
diz nada por minutos e isso me deixa com a culpa maior ainda.
Meu pai me olha com aquele olhar de quem comeu e não gostou. Pelo menos o outro
filho dele não está mais presente, mas não sei se isso é bom ou ruim porque terei que aguentar o
esporro completamente sozinho.
Ele abre a boca.
Meu corpo gela.
— Você está de castigo — diz, friamente, enquanto me encara. Não sei que tipo de
coisa se passa na cabeça do meu pai, mas a expressão de desgosto me deixa amortecido. E não de
um jeito bom. — Por tempo indeterminado. Não pode sair com seus amigos, não vou te dar mais
dinheiro. Você tem que estar em casa todos os dias antes das-
— Terry… — minha mãe sussurra, tão baixinho que penso ter imaginado a sua voz.
— A culpa é sua. Você passa a mão na cabeça dele pra tudo — meu pai se vira para ela.
Ela abre a boca, mas não solta nada além de um gemido sofrido, abaixando o rosto. — Se eu
tivesse ensinado esse moleque, ele seria igual ao-
— Igual ao seu outro filho?! — berro, sem conseguir mais controlar a queimação no
fundo da garganta. Meu sangue esquenta como a merda de um vulcão em erupção. — Esperto?
Bom em tudo? Por que você não ficou com a porra da sua outra mulher, então?!
— Evan-
Meu pai me encara com as sobrancelhas franzidas. Quase não há raiva nos olhos dele,
só surpresa. O peito dele desce e sobe, como um touro. Imagino que ele nunca pensou que um
dia eu responderia de um jeito tão agressivo. Talvez nem Randall se atreva a fazer isso.
Isso me dá um fôlego de coragem. Pela primeira vez na vida, consegui causar qualquer
reação no meu pai que não seja decepção. Mas como se um raio atingisse minha cabeça, percebo
o que fiz. Ele dá dois passos na minha direção e me encolho. Não é a primeira vez que apanho,
mas será a primeira vez que eu talvez mereça.
Quase fecho os olhos quando sinto a quentura de um corpo perto de mim. Meu pai me
olha de novo, com um tipo de tom zombeteiro na voz.
— Se você quer se fazer de homem, aguente as consequências.
Então de repente…
SLAP.
Choque e horror passam por meu corpo quando a mão pesada do meu pai dá um tapa no
meu rosto.
Minha pele não dói no primeiro momento. O que dói mesmo é meu peito, cercado por
decepção e tanto ódio que não consigo reconhecer a pessoa na minha frente como meu pai. É um
monstro. Um monstro disfarçado.
Minha mãe fica olhando, horrorizada, com a boca aberta. O homem vira os tornozelos e
eles se olham. Por um instante, penso se terei que pular nele. Uma luz cruza meus olhos e a
imagem dele apertando o pescoço da minha mãe faz meu sangue bombear. No entanto, quando
pisco, isso some como fumaça.
Meu pai não está mais aqui.
— Evan… — ela aproxima-se e toca meu rosto. Não dói mais, mas o toque dela me faz
lembrar do que aconteceu. — Me desculpa… —seus ombros tremem. — Eu devia ter feito
alguma coisa…
— Ele te bateria se você fizesse — me surpreendo com o tom de voz que sai da minha
garganta. Tão baixo, tão mórbido, que não parece sair de mim.
— Você não devia ter dito aquilo. Você… — ela começa a chorar. Me seguro para não
achar tudo isso uma grande idiotice. Sei que é um pensamento terrível, mas não quero ter que
consolá-la. Queria que ela me pegasse em seus braços e me aninhasse como quando eu era
criança. Queria alguém para me consolar, e não alguém para chorar nos meus ombros. Queria
que Ashton tivesse me dito que podia ligar para ele caso eu quisesse. — Você sempre diz coisas
que não tem que dizer, Evan… você é tão irracional às vezes, meu filho.
Queria implorar pra ela parar de falar. Que eu já estou machucado o suficiente;
quebrado o bastante pra parecer um espelho inútil em mil pedaços.
Os olhos dela tem um brilho sombrio. Não sei se por minha causa ou por causa do meu
pai, mas independente disso, me sinto nauseado ao ponto de parecer que tem alguém comendo
meu intestino vagarosamente, para me fazer sentir todo o desgosto que um dia já causei nos
meus pais.
Encaro meus pés. A culpa no peito cresce mais ainda. Óbvio que toda essa situação é
por causa da minha irresponsabilidade. Seria ingenuidade minha achar que qualquer pessoa
ficaria do meu lado. Talvez Ashton estivesse errado. Mesmo tendo quase oito bilhões de pessoas
nesse mundo, ninguém parecia disposto a me amar.
— Vou dormir — aviso. — Estou cansado.
Ela assente e sai de perto de mim. Murmura um “boa noite” e depois sobe as escadas.
Com a sala totalmente vazia, o único som é o grilo do lado fora de casa e a minha respiração.
Minha cabeça está um caos.
Pego o celular no bolso. Mordo a bochecha.
Queria falar com ele. Queria mandar um boa noite. Agradecer por hoje. Dizer que ele é
mais legal do que eu achava. Que ele está sendo mais compreensível comigo do que meus
próprios pais.
Mas talvez ele não goste da ideia de um estranho forçando intimidades.
Suspiro fundo e guardo o celular. Vou pro meu quarto e a última coisa que penso antes
de fechar os olhos é em como quero que amanhã chegue logo.
Lembrar de tudo isso é como por álcool numa ferida. Dói mais do que desinfeta.
***
O café da manhã foi um inferno silencioso. Meu pai agiu como se nada tivesse
acontecido, checando seu celular de minuto em minuto como se estivesse esperando o momento
exato para sair de casa e só voltar quando estiver anoitecendo. Minha mãe, por outro lado, tentou
lhe agradar de todas as formas, sempre oferecendo mais de alguma comida do outro lado da
mesa, como se ela não lembrasse do que aconteceu noite passada.
Acho que é isso o que mais me machuca: ela lembra muito bem, consigo ver pelas
olheiras. Mas minha mãe pensa que tem a obrigação de agradá-lo porque ele é seu marido e isso
o torna alguém muito próximo do título de dono.
— Evan. — A voz melodiosa de Charlie me chama de repente. Olho para ele e observo
enquanto a expressão do meu amigo vai de dó para raiva até chegar em preocupação. Ainda
faltavam alguns dias para as férias de verão e ter que ficar naquela sala de aula até o último
segundo (por conta das minhas faltas no restante do semestre) é o pior tipo de castigo — Por que
você está assim?
— Assim como? — Deito a cabeça na mesa.
— Assim.
— Por nada. — Esfrego os olhos.
Charlie continua me encarando. Sei que ele está esperando uma descrição detalhada do
que aconteceu nesses últimos dias, mas, falando a verdade, não sei se quero que mais alguém
saiba que eu liguei pro Ashton Winsor para tomar suco de caixinha e reclamar dos meus pais.
Também não quero que ele saiba do tapa e de como minha mãe parece uma entidade
distante. É humilhante demais. Charlie tem problemas mais sérios do que os meus e ele consegue
aguentar tudo calado e raramente reclama.
Isso me preocupa às vezes. Charlie é tão quieto na mesma medida em que é carente. Sei
que seu cérebro nunca para de analisar cada situação porque foi assim que ele foi criado: para
pensar em todas as possibilidades e não cometer erros.
Eu queria verdadeiramente poder desabafar mais com ele, mas parece perda de um
tempo precioso. Quando estou em casa é como um estado de alerta constante, mas quando estou
perto dele, é como estar perto do mar, embora ele também me deixe muito ansioso de vez em
quando. Não quero gastar meu tempo com Charlie reclamando sobre as coisas.
Franzindo o cenho, ele não vai falar mais nada sobre isso, mas provavelmente vai
comentar sobre o meu humor com a Max.
— E como foi na detenção? Você ainda não me contou. — Aí está, finalmente, a
pergunta que eu sabia que ele estava se agonizando para fazer.
Me espreguiço antes de responder.
— Normal. Ashton é mais legal do que eu achava.
Charlie olha para mim com aquele olhar julgador e com um sorriso maldoso que
raramente aparece no seu rosto.
— Ashton é legal? — A ironia dele me deixa confuso. — Não consigo imaginar esse
cara sendo legal.
— Ele é — insisto.
— Ele vende drogas, Evan — Charlie continua dizendo, como se fosse óbvio. Franzo a
testa. O jeito que ele está falando é tão irritante e idiota que parece uma das amigas metidas da
Max. — Como uma pessoa que vende drogas pode ser legal?
— Tem um motivo pra ele ter feito isso — retruco. Por um instante, fico surpreso
comigo mesmo. Por que estou protegendo aquele cara?
Respiro fundo e estalo os dedos, tentando manter a calma, mas a sobrancelha erguida do
meu amigo me irrita mais ainda. Normalmente sou bom com Charlie. Ele é provavelmente uma
das pessoas que eu mais trato bem. Ficar irritado por esse tipo de coisa me faz parecer um mal-
humorado. Ou no mínimo um…
Amigo? Eu sou amigo do Ashton? Eu não iria querer ouvir alguém falando mal de
Charlie ou Max, mas eles são meus amigos há seis anos, ser protetor é compreensível. Agora
com um garoto que eu nem conheço direito?
Limpo a garganta. Sinto culpa quando Charlie solta uma risada ácida.
— Ah, é? E qual é o motivo? — ele pergunta. Meu silêncio aumenta o sorriso irônico
dele. — Viu? Você não sabe sobre ele. — Charlie vira para a frente de novo. — Esse menino não
presta. Não fique muito próximo dele. É capaz disso até piorar suas notas.
Meu corpo gela.
— Eu não…
— Qual é, Evan. Até você sabe que quando uma pessoa nova entra na sua vida e você
gosta demais dela, o resto do mundo some pra você — quase posso ouvir raiva na voz dele. —
Igual a Hazel.
Meus cílios tremem com a menção a ela. Abro a boca e fecho. Meu rosto está quente.
Por algum motivo, parece que fui pego fazendo algo errado.
— A Hazel era diferente.
Charlie larga o lápis e me encara. Os olhos vermelhos dele fazem meu coração tremer.
— Diferente? Por quê? Porque você transou com ela? — ele diz, mais alto do que
deveria. Arregalo os olhos, olhando em volta. Algumas meninas que sentam perto de nós nos
encaram por algum tempo, fazendo meu rosto esquentar cada vez mais.
—Charlie-
— Você usa as pessoas e quando cansa, descarta elas como se fossem lixo, Evan.
Meu peito se agita.
— Eu não faço isso — respondo, ofendido. — Por que você tá falando disso do nada?
Charlie me encara atentamente por um instante. Observo a mágoa encher os olhos dele,
o que me deixa confuso. Por que desenterrar uma coisa que aconteceu um ano atrás?
Ele aperta os lábios. O rosto fica gradativamente vermelho.
— Por nada.
Levanto uma sobrancelha.
— Ashton não é a mesma coisa que ela.
— Não quero mais falar sobre isso.
O ignoro.
— Eu e ele mal nos conhecemos, mas ele não é tão ruim quanto parece ser. Só isso —
suavizo a voz. — Ouviu?
Ele não responde.
— Charlie-
— Eu entendi.
Assinto e viro para frente. Agora há um clima estranho entre nós. Sei que, se eu não
tentar falar alguma coisa, ele não vai falar comigo pelo resto do dia, ou pior, da semana. Abro a
boca pra dizer mais alguma coisa, mas o sinal toca.
Meu pulso aumenta. Por um segundo minha consciência pesa por eu estar mais nervoso
por ver o mau-humorado-das-calças-apertadas-amigo-recém-feito do que lidar com Charlie.
— Escuta — chamo o loirinho, mesmo que eu esteja olhando para a porta à procura da
sombra pequena. — Você é meu melhor amigo. Sempre vai ser. É uma das pessoas mais
importantes da minha vida… — Viro o rosto e encaro os olhos azuis dele. Ao contrário do que
eu achei, isso não deixa ele mais calmo. Na verdade, ele parece cada vez mais frustrado, como se
isso não fosse exatamente a coisa que quer ouvir. Isso dói um pouco, mas não ao ponto de me
preocupar. — Eu amo você.
Os cílios dele tremem. Finalmente, ele tem uma reação, mas muito diferente da que eu
achei que teria.
Charlie não me olha antes de levantar-se da cadeira, com uma careta de quem está
fazendo uma força horrenda para não chorar. Ele enfia tudo na mochila apressadamente e sai da
sala. Encaro a porta aberta e abro a boca.
Percebo que uma garota sentada perto de mim está me olhando. Nunca falei com ela
além das vezes que pedi um lápis ou borracha emprestada, mas dá pra notar que ela está me
julgando. Os olhos marrons me encaram como se querendo me dizer algo óbvio, mas que a
minha cabeça oca não entende.
Levanto uma sobrancelha, ainda olhando. A garota não pestaneja ao me encarar de volta
e torcer a boca preguiçosamente.
Minha cabeça dói, como se tivesse um alarme ali dentro, me avisando que tudo deu
errado de novo. Sempre tem alguma coisa que não está sob meu controle e me faz querer morrer
por causa disso.
Uma vez comentei isso com a minha mãe. Falei que sinto que preciso ter o controle de
tudo sob as minhas mãos, caso contrário, minha mente não me deixa em paz, principalmente
envolvendo relacionamentos. Ela me disse que pessoas são diversas e imprevisíveis e tentar
prever o imprevisível é a maior forma de tortura que uma pessoa pode fazer consigo mesma. O
problema é que já se tornou um processo automático, o qual eu não sei como parar.
E quando algo sai do esperado, o mundo inteiro desaba nas minhas costas.
Minha garganta arde. Quero dizer alguma coisa, mesmo que Charlie não esteja mais
aqui. Meu estômago dói como se estivesse sendo arrancado à força por mãos ásperas.
Levanto os olhos e encaro a porta. Ashton ainda não está aqui e não sei se isso é bom ou
ruim. Queria que ele chegasse logo para ocupar minha cabeça, mas, ao mesmo tempo, sinto meus
olhos ardendo.
Respiro fundo e esfrego os olhos. Levanto, pego as minhas coisas e desvio o olhar para
as janelas. Max e Charlie estão conversando perto dos bancos. Não vejo nenhum dos nossos
outros amigos. De repente, Max abraça Charlie e dá uns tapinhas nas costas dele. Não sei porque,
mas sinto que eles estão falando sobre mim. Óbvio que é sobre mim. Só de observar o jeito que
Charlie tenta não olhar na minha direção, dá para perceber isso.
Saio da sala, com a mochila pendurada num único ombro e me encosto na parede.
Algumas pessoas parecem olhar para mim, com aqueles olhos curiosos, mas, bem no
fundo, sei que é apenas meu cérebro ansioso me fazendo enxergar problemas onde não existem.
Ainda tem bastante gente conversando e se despedindo. Observo um casal dar um beijo
e depois encostar as testas antes de revirar os olhos.
Atrás deles, há o grupo do último ano. Aqueles garotos que são amigos do Ashton.
Conheço o garoto alto e a menina morena de óculos, porém, o resto ainda é um mistério, por
mais que todo mundo faça palpites sobre a vida deles.
Pego meu celular do bolso querendo falar alguma besteira no grupo de mensagens que a
gente tem, mas paro quando vejo as mensagens de Max. Minhas pernas tremeram.
Max: por que você brigou com o Charlie?
Um caroço se forma na minha garganta.
Ele brigou comigo. Ele se afastou e correu de mim. Ele não quis me ouvir e começou a
falar de um assunto que morreu há anos.
Digito rápido, com as minhas mãos tremendo, tentando me segurar pra não fazer nada
irracional.
Eu: não briguei com ele. Charlie falou do Ashton e eu só disse que ele não era tão
mal assim
Encaro a tela até minha visão ficar turva e desisto quando vejo que Max não vai me
responder agora. Guardo o celular e tento respirar fundo.
Essa não é nossa primeira briga, nem provavelmente a última, mas com certeza é a que
tem o motivo mais bobo. Meu celular vibra. Tento esquecer isso por enquanto. Não vou me
estressar com Charlie se ele continuar fazendo esse drama, por mais que doa.
De longe, avisto uma sombra pequena vindo na minha direção. Não penso
primeiramente em Ashton. Na verdade, por um segundo, esqueço o motivo do porquê eu estou
aqui. Mas aquela silhueta baixinha era Ashton realmente, e eu só percebo isso quando a cara
carrancuda dele chega perto.
Ele não parece estar num bom humor.
— E aí — diz Ashton.
— Oi.
Achei que ele deixaria escapar algum sorriso, mas a única coisa que eu ganho é um
silêncio parecido com o primeiro dia de detenção, como se aquele momento na praia nunca
tivesse existido. Tem alguma coisa estranha nos olhos dele. Alguma coisa desfocada, fazendo as
pupilas dele ficarem foscas.
Ashton não fala mais nada antes de se virar e caminhar em direção às escadas. Sigo ele
em um silêncio nervoso. Quero conversar, quero lhe contar tudo o que está acontecendo, tudo o
que estou sentindo, mas não parece uma boa hora. Todas as palavras formam um bolo na minha
garganta enquanto percorro a minha memória à procura de algum assunto que ele goste para que
eu possa simplesmente ouvir sua voz.
Quando chegamos ao estádio aberto da piscina, meu peito começa a encher de uma
sensação que não consigo descrever. O dia está meio nublado mas extremamente abafado; um
dia típico de verão. Se eu ainda fosse criança, iria gostar da ideia de correr na chuva e não ficar
resfriado, mas agora, esses tempos em que a euforia de ver uma grande nuvem carregada
passaram e, quando dou uma olhada no céu, não sinto muita coisa além de uma pequena
animação pelo fato de estar com Ashton.
Está escurecendo, como se fosse chover granizo. Não duvido que isso aconteça.
Ashton me encara de soslaio e eu sinto que ele também quer dizer alguma coisa. Por
analisar demais as situações em que estou, acabo sendo observador demais. Porém, ao mesmo
tempo em que isso é uma benção, também é um castigo. Sei que Ashton quer falar alguma coisa,
sinto, de alguma forma, que ele não odeia estar aqui comigo hoje, embora esteja
consideravelmente de mau-humor. Mas, ao mesmo tempo, não consigo deixar de sentir a
sensação de que a culpa de tudo aquilo é minha e que eu, inconscientemente, fiz algo.
Talvez esse seja um dos sinais para que eu pare de pensar demais em uma situação antes
de ela acontecer de fato, para evitar decepções desnecessárias.
— Temos que tirar as folhas da piscina — ele explica, deixando a mochila de lado e
seguindo o próprio caminho ao redor da piscina.
Assinto e tiro a mochila das costas. Sem o peso nos meus ombros, me agacho para pegar
uma das redes jogadas e vou para o lado contrário da piscina. Donovan só quer que a gente limpe
por limpar, sei disso. Ninguém usa essa piscina desde que uma garota morreu há uns anos aqui.
Não sei se é porque os professores são supersticiosos ou porque simplesmente acham que a ideia
não é mais tão boa. Mas, de qualquer forma, há tantas folhas quanto cadeiras empilhadas na sala
de música.
Ashton pega outra rede e fica bem longe de mim. Notar isso me faz franzir as
sobrancelhas. Parece que estamos na estaca zero e é uma sensação tão desagradável que meu
estômago contorce dentro de mim.
— Você chegou em casa bem? — arrisco perguntar, quase me arrependendo em
seguida.
Ashton levanta aqueles olhos cortantes e me encara. Não consigo fazer nada além de
manter o olhar. É muito bonito.
— Sim.
— Legal.
Me movo. Discretamente, tento chegar perto dele. Espero que não seja tão óbvio quanto
eu acho que parece ser.
— Obrigado por ir lá na praia. Só aconteceu merda esses dias e… — paro para soltar
um suspiro. Não sei o que estou fazendo. Só quero que ele fale alguma coisa.
— De nada.
Suspiro. Então hoje não terei fatos repentinos.
Ele não quer falar. Não tem brecha nenhuma para dizer nada. São só frases de duas
palavras. Me sinto frustrado, irritado e chateado. Por causa disso, minha mente viaja de volta
para Charlie.
Eu uso as pessoas, como ele disse? Por que eu faria isso? Não usei Hazel. Não é culpa
minha ter parado de gostar dela. O que eu deveria ter feito? Casar e ter filhos com ela só porque
nós namoramos por alguns meses?
Imagino se Ashton descobrir isso, se ele ainda gostaria de mim. Quer dizer, a questão a
princípio é: ele gosta de mim?
Saio dessa rede de pensamentos quando escuto o som de passos. Levanto os olhos e vejo
que ninguém entrou aqui; na verdade, para a minha surpresa, Ashton quem veio parar do meu
lado.
Abro a boca e depois fecho. Não consigo fazer nada além de levantar os olhos e encarar
mais. Ashton ainda está com aquele corte na boca e com olheiras marcadas. Franzo as
sobrancelhas, pensando se isso é por causa de ontem. Eu o fiz ficar acordado além do tempo que
ele está acostumado…
— Pare de me encarar assim — ele diz, de repente, pegando-me desprevenido. Uma
sensação quente se alastra por todo o meu corpo, até a última célula dos dedos.
— Assim como?
— Assim.
Meu pescoço fica quente.
Tiro os olhos do garoto do meu lado e tento ignorar o constrangimento. Ainda sinto o
corpo formigando, como se gotas de água estivessem escorrendo pela coluna. Talvez seja
vergonha.
De repente, escuto o som de um isqueiro. O cheiro do fósforo queimado me atinge no
instante em que uma brisa bate em nós, e, consequentemente, o seu cheiro de lavanda encontra o
caminho para os meus pulmões. Me pego inspirando com força, procurando mais desse odor. É
tão único que, embora eu já tenha sentido o cheiro de lavanda em inúmeras pessoas antes,
nenhum deles tinha aquelas características. É como se a lavanda tivesse combinado com a sua
pele e formado esse perfume único.
— Você já fumou maconha? — ele pergunta, puxando-me de volta para a realidade.
Desvio o olhar, tentando decidir se o que ele está falando é sério. Encaro os olhos dele e
ele me encara de volta, pacientemente.
— Não — respondo. — Não é proibido fumar aqui?
Ashton dá de ombros, tirando o baseado grosso e firme do bolso. Parece novo e o papel
marrom que o cobre é como os das cartolinas que eu usava quando criança.
— Quer fumar? — pergunta ele, balançando o baseado. — Fui eu quem bolei. Não está
muito bom porque não tinha uma tesoura para cortar a maconha então tive que picar com uma
faca, mas deve dar pro gasto.
Não respondo, mas estendo o braço. Surge uma sombra de sorriso nos lábios dele que
me fazem desviar o olhar. Pego o baseado e só encaro, inseguro.
Penso na minha mãe. A voz dela, dizendo “você é irresponsável” repetidas vezes. A
culpa começa a se alastrar dentro de mim mas, quando levanto os olhos e pego Ashton me
olhando com aquela pitada de expectativa, sei que não vou conseguir recusar.
Coloco o baseado na boca, sendo recompensado por um breve sorriso seu. Ashton se
aproxima de mim e levanta o isqueiro, acendendo o baseado.
— Não sei se já fumou cigarro, mas você inspira, segura o ar e depois solta. Deixa o ar
entrar no pulmão antes de soltar. Vai arder, mas depois passa.
Minha garganta realmente arde quando faço o que ele disse, deixando um gosto ruim na
minha língua, mas me recuso a tossir.
Levanto os olhos mais uma vez para olhá-lo, puxando o ar mais uma vez. Ashton
estende o braço e pega o baseado antes que eu possa fazê-lo pela terceira vez seguida. Quase
engasgo quando ele coloca na boca, segurando o ar como disse para eu fazer. Ele solta a fumaça
pelo nariz, tão concentrado em mim que odeio o fato de não poder esconder meu
constrangimento quando ouço suas palavras:
— Nós nos beijamos.
— O quê?
— Um beijo indireto.
Meu cérebro demora um pouco para reagir. Fico estático por segundos inteiros até
perceber que estou encarando ele fixamente.
Ele me passa o baseado novamente, mas dessa vez, hesito em colocá-lo na boca. Antes
de aproximá-lo dos lábios, verifico se ele ainda está me observando e, quando percebo que sim,
está, meu corpo inteiro fica consciente do fato de que estou dando um beijo indireto. E tento
ignorar o outro fato de que meu cérebro está tão contente com isso que as pontas dos meus dedos
começam a formigar.
Ashton joga a vara na água e se senta na beira da piscina e faço o mesmo. Nossos
joelhos se esfregam de vez em quando e, Deus, eu não sei se a maconha está começando a fazer
efeito, mas cada toque, até mesmo os das roupas, contra a minha pele, parece infinitamente mais
intenso do que provavelmente deveria.
Deixo o meu joelho contra o dele, começando a sentir meu corpo amolecendo. Então me
aproximo mais, até que a lateral das nossas coxas se encostem por completo.
Ficamos quietos por segundos. Minutos. Talvez horas. Não sei. Não sei de nada.
— Eu gosto da sensação — ele murmura, de repente, virando o rosto. Os olhos dele
encontram os meus de novo. Ele me encara e eu encaro de volta. Os cílios fazem uma sombra
nas bochechas dele, e os lábios estão meio entreabertos. Alguma coisa nessa pose é muito bonita.
Ashton é muito bonito e quero lhe dizer isso, mas tenho a impressão de que talvez ele já saiba.
—Parece que tudo para de existir. Ou melhor, parece que nada realmente importa além do aqui e
o agora.
Minha cabeça gira e eu caio de costas no chão. Preciso fechar os olhos para fazer as
bolhas roxas pararem de atrapalhar minha visão. Minha pele ainda formiga e é uma sensação
deliciosa.
— Não devia ter feito você fumar — ele diz, depois de um tempo, fazendo-me virar o
rosto na sua direção.
— Provavelmente, não —respondo.
— Você vai ter que ir na minha casa tomar banho.
Abro os olhos. Quase caio de novo.
— O quê? — franzo a testa. — Por quê?
— Seus pais vão sentir o cheiro — ele coloca o baseado na boca de novo e traga pela
última vez antes de arrastar a chama pelo chão e apagá-la. Percebo que ele também fecha os
olhos e meu coração dispara quando ele cai de costas ao meu lado, deixando a sua cabeça a
poucos centímetros da minha.
— O cheiro não vai sair? Quer dizer, qual o sentido de tomar banho e vestir as mesmas
roupas?
— Eu te empresto as minhas — responde. — Fala que teve que trocar, sei lá, com um
dos seus amigos.
— Seus pais não vão achar ruim?
Ele não diz nada de primeira, mas me olha, as pupilas ainda nubladas, mas tão… Tão
focadas em mim que seguro a respiração.
— Não.
— Tudo bem, então.
Ashton se levanta, muito mais estável que eu e pega nossas mochilas. Tento puxar a
minha, mas ele não deixa, segurando meu antebraço para me manter firme.
— A gente nem limpou aqui ainda — murmuro, olhando em volta.
— Eu sei.
— E não vamos limpar?
— Não.
Assinto. Cambaleio até a porta de saída, com Ashton atrás de mim, até que sinto aquela
leveza que ele falou. Meu corpo flutua. Me sinto feliz. Muito feliz. E formigante. Meu corpo
queima e apita como uma panela de pressão.
— Estou com sede. E fome.
— Hm.
Ele me empurra e nós saímos do estágio, parando no que era o vestiário de natação em
desuso.
— Como a gente vai embora?
— De moto.
— Eu não tenho uma moto — encaro o seu rosto. Talvez eu devesse parar com isso,
tenho a sensação de que ando o encarando demais.
— Eu tenho uma moto.
— Você tem dezenove anos e não tem dinheiro. Como você pode ter uma moto?
Ashton dá de ombros.
Ele coloca a minha mochila nas minhas costas. O sigo pelos corredores, tentando ficar o
mais quieto possível. Não acredito que vou na casa dele. Não devia ter fumado essa porcaria. Eu
estou ferrado.
Nós corremos até a moto dele e começo a rir. É terrível correr com uma mochila nas
costas e me sinto um pato por fazer isso, o que me dá ainda mais vontade de rir.
Acho que está escuro, não consigo abrir os olhos direito. Aquela Hornet que está perto
do meio fio, é dele? Como eu nunca reparei que esse cara tem uma moto? Principalmente uma
moto igual àquela?
— Eu preciso comer. De verdade — balbucio.
— Você vai comer — responde ele.
— Eu quero comer macarrão — sinto-me irritado, por algum motivo. Esse desânimo
dele me lembra de algo morno. Não gosto disso. — Você não vai me matar, vai?
— Se eu quisesse te matar, podia ter te matado na praia.
— É verdade.
Ashton monta na moto e me entrega o capacete. Fico encarando seja lá o que ele está
fazendo, até perceber que eu vou ter que sentar ali atrás. Ali atrás.
Jesus Cristo.
Ashton vira o rosto e me olha, com uma sobrancelha levantada.
— Sobe logo.
— Não gosto de motos.
— Você pode ir pra casa andando, então. Reze pros seus pais não sentirem o cheiro —
ele diz num tom rude.
— A minha biciclet-
— Ninguém vai roubar aquela coisa enferrujada.
Meu corpo treme. Não sei se é por causa da brisa do anoitecer ou por causa da imagem
do meu pai com os punhos fechados me socando até desmaiar. Meu estômago simplesmente
embrulha.
Talvez tenha sido a maconha, mas tive a impressão de ver um sorriso nos lábios daquele
punk quando eu coloco o capacete.
Quebec

inha visão está meio borrada quando entro na casa do Ashton, mas todos
M os músculos do meu corpo relaxam quando sinto aquele cheiro de lavanda e de
casa — cheiro que percebo que não existe mais na minha própria.
Ashton tranca a porta atrás de mim e tira as botas e faço o mesmo, imaginando que ele
não queira que eu suje aquele chão de madeira estranhamente limpa.
Então lembro-me de uma coisa, como se um clarão repentino tivesse invadido a minha
mente: estou de castigo.
Um arrepio atravessa minha coluna, como se um gelo escorregasse pelas minhas costas.
A percepção me deixa enjoado e minhas mãos encontram naturalmente o próprio caminho para
as pulseiras de couro nos meus pulsos.
— Você está bem? — escuto a sua voz. A mão dele toca as pontas dos meus dedos e eu
quase me derreto. Isso me deixa mais nervoso ainda e Ashton repara, porque o fantasma de um
sorriso puxa o canto direito dos lábios dele.
— Eu estou de castigo. Preciso ir embora — digo, com pesar, observando o sorriso
sumir dos seus lábios. Ashton aperta meus dedos nos dele e eu quase abro a boca para pedir
misericórdia, porque, se ele continuar fazendo isso, não conseguirei ir.
As mãos dele são tão macias que não consigo evitar de ficar surpreso. Nunca imaginei
que uma pessoa com a cara de Ashton pudesse ter mãos suaves, como essas. Encaro os dedos
dele nos meus, minha pele contra dele e então respiro fundo.
Dane-se.
Mesmo se eu for embora agora, vou chegar tarde. Keelesdale Eglinton West é longe de
York e eu não trouxe minha bicicleta. Não tenho dinheiro para pegar um ônibus e não quero
pedir para Ashton me levar de volta, logo agora que ele acabou de chegar.
Fecho os olhos, tentando afastar a ansiedade de imaginar como será quando eu chegar
em casa. Espero que eu não receba um esporro muito intenso.
— Se você quiser eu posso te levar — a voz de Ashton está do meu lado, baixinha,
como se não quisesse falar isso. — Não é muito tempo de moto.
— Não, eu… — limpo a garganta antes de ajustar a coluna, tentando parecer mais
confiante. Ashton levanta uma sobrancelha. — Eu não quero ir embora.
A resposta dele vem depois de longos segundos, talvez me dando tempo para repensar.
— Ótimo. — Os dedos dele se afastam dos meus e estou quase pronto para reclamar,
mas fecho a boca quando Ashton entra na cozinha.
Uma prateleira em cima da TV está cheia de livros. Sorrio ao imaginar ele lendo aquilo
tudo e depois me contando o que aprendeu. Aproximo-me do sofá cinza, passando as mãos pelo
estofado. Duas mesinhas ao lado da TV estão cheias de coisas: mini esculturas, quadros e notas
em papel, de uma forma arrumada-bagunçada.
As janelas da casa de Ashton não têm cortinas. Pergunto-me como ele é capaz de
suportar esse tipo de falta de privacidade, porque sei que exibicionismo não faz muito o perfil de
Ashton mas, novamente, talvez isso seja uma das coisas que preciso começar a aprender melhor
sobre ele.
Aproximo-me da vidraça da janela e olho o lado de fora. Há um prédio idêntico a este,
de tijolos vermelhos e quadrado como uma caixa de fósforo. Apesar de provavelmente ser
horrível ter que lidar com os vizinhos fofoqueiros, deve ser uma imagem incrível quando o céu
está começando a ficar escuro, naquele meio tom laranja, azul e roxo.
— Achei macarrão — escuto a voz de Ashton. Ele aparece da cozinha com um pote nas
mãos. Meu estômago se contorce com a lembrança da fome que eu estou. — Você quer? Ele é de
ontem.
— Quero — respondo, com um sorriso. Ele assente e some para a cozinha de novo.
Me concentro mais uma vez nos detalhes da casa. Esse tipo de lugar é aquele que,
quanto mais você olha, mais você encontra coisas que te dão dicas de como é a personalidade de
quem mora aqui.
Eu já sabia disso, mas não é difícil de notar o quanto esse lugar ressalta o fato de Ashton
gostar de livros. Ou de chá. Ele deixou algumas canecas cheirando a camomila na mesinha entre
o sofá e a TV.
Me aproximo das prateleiras com livros. Alguns deles sou capaz de reconhecer. O
Grande Gatsby, O retrato de Dorian Gray, O Mar Sem Estrelas, Cem Anos de Solidão, e… um
sem nome. Na verdade, é apenas uma capa de couro sem detalhe algum. Está numa posição
diferente, como se fosse tirado do lugar várias vezes. Pergunto-me se Ashton o tira com
frequência da prateleira e o porquê disso.
Naturalmente, curiosidade é uma das imperfeições humanas, então puxo o livro. O peso
nas minhas mãos não é muito, mas é mais do que eu esperava. A capa de couro provavelmente é
mais pesada do que as páginas em si.
Quando o abro, minha respiração se perde no meio do caminho.
Está escrito em outra língua, uma na qual eu não conheço. Sei dos ideogramas chineses
e russos, mas nunca vi nenhum igual a esse.
Até que eu me lembro do dia na biblioteca.
— O que você está fazendo? — Ashton aparece atrás de mim. Mal tenho tempo de me
virar antes que ele arranque os livros da minha mão. Quando vejo suas sobrancelhas franzidas e a
boca torcida de raiva, percebo que acabei de cometer um erro. Um erro bem grande. — Quem
disse que você podia mexer?!
Me afasto, surpreso com o quão feroz a voz dele está.
— Eu não-
— Você vai estragar o livro. Não sabe como deve pegar — Ashton faz uma pausa e eu
espero lentamente por alguma reação de arrependimento, mas ele continua na mesma posição,
com o peito subindo e descendo profundamente, tão diferente do garoto calmo que me ofereceu
maconha algumas horas atrás.
Minha boca abre-se e procuro pelas palavras certas, mas antes que eu consiga dizer
qualquer coisa, Ashton me interrompe:
— Você não pode mais mexer em nada, entendeu? Não pode tocar nesse livro.
Assinto, querendo fugir desse assunto, agradecendo silenciosamente quando percebo
que sua postura relaxou um pouco.
— Eu sinto muito — sussurro, odiando a forma como a minha voz soa, tão pequena e
frágil. Não recebo nenhuma resposta, apenas a visão dele abraçando o livro contra o peito como
se eu fosse um monstro que queria jogá-lo no fogo. Meu coração ainda está acelerado pelo susto
e a tristeza dele ter sido tão defensivo comigo, mas não digo mais nada, porque se eu não me
engano, aquele livro dele é um-
— Tanakh. São escrituras sagradas judaicas. Do… do meu amigo.
— Eu sei.
Escuto um riso ácido e sinto como se tivesse colocado sal em uma ferida. Não consigo
nem mesmo levantar os olhos para olhar ele.
— Você não sabe de nada.
— Você me contou quando nós… Nós fomos à biblioteca. Você me disse sobre seu
amigo.
Levanto as pálpebras para verificar a reação de Ashton e alívio enche meu peito quando
percebo que toda a pose defensiva se desfez. Há, se não for impressão minha, até mesmo uma
pontada de culpa na expressão dele.
Ashton abre a boca e puxa uma lufada de ar e, quando acho que ele vai dizer algo, o
apito do microondas o interrompe. Ele coloca o livro na mesa longe de mim, com relutância,
como se ainda estivesse com medo de eu chegar perto. Parte de mim quer xingá-lo por isso.
Ele some para a cozinha de novo, mas eu continuo na sala. Diferente de antes, não mexo
nenhum músculo, com medo de que isso faça Ashton explodir de raiva mais uma vez.
Um minuto depois, enquanto estou concentrado em apertar minhas pulseiras, Ashton
reaparece Paro no mesmo instante de me mexer, observando o momento em que seus olhos
culpados analisam a minha posição petrificada, deixando o ar entre nós ainda mais
desconfortável.
Tento não olhar para o Tanakh de novo, como se um mísero olhar fosse capaz de
engatilhar outra onda de raiva nele.
— O macarrão está pronto — sussurra. A voz dele é como um sopro na minha nuca, e
não faço nada além de balançar a cabeça e segui-lo em silêncio até a cozinha.
Diferente do resto da casa que tem um ar mais familiar, a cozinha cheira a desinfetante e
produtos de limpeza. Penso, soltando um riso, que aquela provavelmente é a cozinha mais limpa
que um dia eu irei pisar. Isso atrai a atenção de Ashton que me olha no mesmo instante,
parecendo carregar um pouco de esperança no meio daqueles olhos culpados.
— Você quer alguma coisa para beber? — ele pergunta e eu balanço a cabeça. O
macarrão na minha frente está com cheiro delicioso. Charlie sempre disse que sou a pessoa que
ele conhece que mais gosta de massa, e não é mentira. Desde que o macarrão tenha algum
tempero, para mim, sempre será minha comida favorita.
— Tem calabresa? — atrevo-me a perguntar.
Quase não reparo que Ashton torce a boca. Quase.
— Não. Eu não como carne de porco.
Levanto os olhos do macarrão, tentando encontrar qualquer sinal de que é brincadeira,
mas a expressão dele estava séria, sem hesitação.
Não tinha parado para pensar sobre isso até agora, mas talvez o próprio Ashton seja
judeu.
Como se lesse minha mente, Ashton diz antes que eu pergunte:
— Eu não sou judeu. Eu só… morei com ele por tanto tempo que peguei os costumes.
Coloco mais macarrão na boca, balançando a cabeça. Morou com ele? Por que não mora
mais? O que aconteceu? Minha boca coça de curiosidade e de repente, uma onda de
formigamento atinge meu corpo, me impulsionando a questionar. Quero saber mais sobre ele,
realmente quero, mas, ao mesmo tempo, tenho medo de falar algo errado.
Decido não perguntar.
Ashton é na verdade muito bom em esconder o que está sentido. Às vezes é difícil
adivinhar o que ele está pensando ou o que quer fazer. Mas há uma falha: os olhos. As pupilas
dele, pretas como petróleo, no meio daquela nuvem cinza que as íris formam, são muito
comunicativas. Elas te olham como se implorassem para você notá-las.
— Está bom? — pergunta ele, depois de um tempo, no instante em que falta apenas uma
última garfada.
— Uh-hum.
— Bom. — Ashton me oferece um sorriso minúsculo, como se sabendo que eu não
consigo ficar bravo se ele fizer isso. Meus olhos ficam vidrados. Mas ele abaixa o rosto, tentando
se esconder. Desvio o rosto, com medo de ter feito alguma coisa errada mais uma vez, até que
reparo que o alto das bochechas de Ashton estão vermelhas. — Para de fazer isso.
— O quê? — Me engasgo com o macarrão. Devia ter pedido água. Fico como uma foca
passando mal por um minuto inteiro, até que consigo me acalmar.
— Isso. Me encarar desse jeito.
Afasto o olhar, sentindo minhas próprias orelhas quentes.
Estou prestes a respondê-lo quando meu celular treme no bolso. Pego no tempo de uma
batida do coração, com medo de ser minha mãe dizendo que tenho que estar em casa em um
segundo, mas o que leio é pior do que isso.
Meu estômago aperta, a comida que acabei de comer ameaçando sair.
— O que aconteceu? — Ashton pergunta, antes que eu possa tentar disfarçar. Max me
tirou do grupo que nós tínhamos juntos. Eu noto o quão bobo deve parecer para ele, mas depois
da briga que eu tive com Charlie, eu sei o que isso significa. Significa que nós estamos
oficialmente sem nos falar. — Seu pai disse alguma coisa?
— Não. Eu… — A bile atinge minha garganta, deixando um gosto tão amargo que
nunca esquecerei. — Meus amigos. Eu te falei que eu briguei com um deles? — Ashton balança
a cabeça, olhando-me atentamente. — Ele ficou… hm…. com ciúmes de você? Eu não entendi
direito, mas foi meio que isso — molho os lábios. — E todos os meus amigos ficaram com raiva
de mim depois disso. Quer dizer, você não tem uma fama muito boa, eles acham que você vai,
não sei, me apresentar ao mundo das drogas e nós vamos roubar alguns ricos e morar na Itália
numa mansão.
Escuto uma risada. O laço apertando minhas entranhas se alivia, e é assustador pensar
que eu preciso de apenas um riso desse cara sentado na minha frente para me sentir melhor.
— Seus amigos são meio idiotas.
Demoro para concordar, o macarrão ficando repentinamente travado na minha garganta.
— Sim…— Me impeço de abrir a boca e falar qualquer coisa rude em defesa deles, mas
Ashton parece notar. Ele não desvia o olhar dos meus lábios por segundos inteiros.
Termino de comer, forçando-me a sentir um pouco melhor. Sei que quando eu voltar
para casa e deitar sozinho no quarto, sem nada para me distrair, isso irá me corroer, mas não
quero perder esse momento. Não quero que nada ocupe minha cabeça. Não agora.
— Evan — Escuto meu nome. Levanto os olhos e encontro Ashton já me olhando. —
Desculpe por ter falado com você daquele jeito.
Meu peito se alivia tão rapidamente que quase murcho na cadeira. É a primeira vez que
alguém me pede desculpas após uma briga — aquilo que aconteceu poderia ser classificado
como uma briga? — por isso, sinto a mágoa anterior direcionada a Ashton se esvaziar.
— Me desculpa, também, por ter mexido sem pedir.
Uma hora deve ter se passado. Ashton e eu ficamos sentados no sofá conversando
enquanto a TV ligada abafa o som das sirenes do lado de fora. Não estamos tão perto do centro,
mas é movimentado. Há uma farmácia numa esquina próxima, Ashton contou no meio da
conversa. E um mercado.
— Um dia eu vou fazer um charuto de folha de uva pra você — as palavras saem da
minha boca sem eu deixar. Sinto-me bêbado, sem filtro nos lábios. Alguma coisa nos olhos de
Ashton está diferente: ele está falando mais, quase como se quisesse conversar de fato comigo.
Me sinto importante e é uma sensação estranha, que impulsiona ainda mais a minha vontade de
continuar tagarelando. Quero guardar esse momento num pen-drive e colocar para rodar toda vez
que estiver triste. — Espera — me sento com a coluna reta. Ashton acompanha meus
movimentos com os olhos. — Você come carne de cordeiro?
— Não. — Ele torce o nariz do mesmo jeito de quando eu perguntei sobre calabresa. —
Mas isso é mais uma preferência pessoal.
— Por quê?
— Um dia eu vi meu tio matar uma cabra pra gente comer quando nós morávamos em
Quebec. Ela estava grávida e quando ele abriu a barriga dela, o bebê saiu — ele não mexe um
músculo do rosto ao falar disso, parecendo ter se acostumado com a lembrança. — Nunca mais
comi carne de cordeiro depois desse dia.
Torço o nariz, tentando afastar a imagem da pobre cabra e o filhote mortos da minha
mente.
— Não gosto de Quebec.
Ashton levanta os olhos na minha direção, parecendo achar uma grande ofensa eu não
gostar daquela cidade.
— Por quê?
— Meu pai me levou pra ver o Château. A gente andou de carruagem em Place
D'Armes, fomos às praças com os bistrôs e ver os canhões. Ele disse que Quebec era a cidade
mais europeia das Américas. Foi um sonho. — Meus olhos se desviam para Ash. Ele continua
me olhando com atenção, como se eu estivesse falando uma coisa muito importante. — Mas eu
descobri que meu pai só tinha me levado pra disfarçar. Ele queria ver uma mulher que morava lá,
uma amante. — Espero pelos olhos cheios de pena, mas eles não aparecem. — E então todas as
memórias de Quebec ficaram manchadas… Por causa do meu pai.
O movimento que Ashton faz no estofado deixa meu corpo em alerta. Todos os meus
nervos ficam conscientes de si mesmo e eu não sei o que fazer com as mãos.
É vergonhoso ter que contar que meu pai traiu minha mãe e me usou como álibi.
— Você já foi no Carnaval de Inverno? — Ashton pergunta. Sei que ele não está
mudando do assunto por dó, mas sim para continuar escorregando entre palavras, para não deixar
a conversa acabar e algo dentro de mim aquece por saber disso.
— Não.
— É bem frio, mas acho que todo mundo do Canadá já está acostumado com isso. —
ele começa. A lembrança do frio de Quebec é algo que eu nunca mais quero experimentar. Quero
dizer, é verdade que todo canadense está acostumado com o frio, mas não quando você vai viajar
para uma cidade e, ao invés de ficar quentinho no hotel, tem que ficar andando pelas ruas
geladas. — As pessoas programam arreadas pro jubileu. Tem feiras, arenas de patinação e
corridas de caiaque que se rema no rio congelado de São Lourenço. — Ashton faz uma pausa. Os
olhos dele estão vidrados na parede, como se tudo isso que sai pela boca dele também passasse
igual a um filme em sua mente. — O Château Frontenac, o castelo que você disse, é
possivelmente a pousada mais movimentada do planeta. — Ele desvia o olhar e me olha como
um gato travesso. — Um dia nós podemos ir lá, apagar as memórias ruins do seu pai e criar
novas boas. Eu tenho memórias ruins de Quebec que eu também gostaria de apagar, com você.
Lembrar do que eu vivi em Quebec é doloroso, porque é uma prova de quando meu pai
deixou de amar eu e a minha mãe. Às vezes, eu me pergunto o que fez a mãe de Randall querer
se separar do meu pai: se ele traiu ela com a minha mãe, se a minha mãe sabia. Mas não gosto de
pensar muito sobre isso porque é doloroso admitir que uma pessoa que eu amo tanto não é tão
inocente quanto acho ser.
Ninguém é preto ou branco. Todos nós somos cinzas, porque pessoas boas fazem coisas
ruins, e pessoas majoritariamente ruins podem fazer coisas boas de vez em quando. Pensar nesse
tipo de coisa me tranquiliza, porque assim parece que eu posso ter algum tipo de perdão. Que,
apesar de tudo de errado que eu fiz, meu propósito nunca foi ser perfeito e ninguém pode me
julgar por não ser.
Mas, por outro lado, é agonizante pensar que meu pai não é ruim. Talvez imoral, mas
não diabólico. Seria mais fácil classificá-lo como mal, que não merece perdão e como alguém
que eu não sinto mais nada além de raiva. Mas seria mentira. Meu pai é uma pessoa terrível na
maioria das vezes, porém minha cabeça insiste em me lembrar de como ele era antes disso tudo.
De como ele parecia gostar, nem que fosse minimamente, de nós. E por isso ele não é mal. Ele é
cinza. Tem atitudes merdas.
Talvez seja por isso que doa tanto.
Encosto as costas no sofá e levanto os olhos para encarar o teto, pensando em como
seria ir para Quebec com Ash e se isso realmente apagaria as memórias ruins do meu pai. Então
meus olhos baixam-se do teto para as paredes até as coisas de Ashton nas prateleiras escondidas
pelas sombras, antes de chegar naquele livro. O Tanakh chama minha atenção mais uma vez.
Antes que eu possa me controlar, a curiosidade invade meu corpo.
— O seu amigo, o que aconteceu com ele?
Ashton segue o meu olhar e encontra o livro na prateleira. Observo suas sobrancelhas
franzindo-se dolorosamente, aborrecido com alguma lembrança.
— Quando eu cheguei de Quebec, eu não tinha amigos. Nunca existia ninguém que me
conhecesse em Quebec e não soubesse das coisas que eu fazia. Eu estava sozinho, meu tio me
largou e meus pais… Nunca fui muito apegado a eles — Ashton faz uma pausa. — Quando eu
vim pra cá, meu inglês era ruim. Meu tio só falava em francês comigo e eu mal ia pra escola.
Fraser foi meu primeiro amigo, e me ensinou inglês de verdade, além do verbo to be e algumas
palavras aleatórias. A primeira pessoa que se importou comigo. Mas eu estraguei tudo quando-
A voz de Ashton é cortada de repente pelo alarme do celular atrás dele. Ashton desliga o
despertador estridente e se vira para mim, parecendo aliviado por ter sido interrompido.
— Eu já volto. — Então se levanta e desaparece para a cozinha.
Fico um minuto inteiro ponderando se deveria espiar. Seria uma atitude merda da minha
parte, mas aquela onda de curiosidade se instala sobre mim novamente, fazendo-me levantar do
sofá. Encontro Ashton de costas para mim, com um dos armários da cozinha aberto e uma sacola
esparramada pelo balcão, enquanto ele segurava alguma embalagem em caixinha de remédio.
Quando ele termina de engolir a pílula, volto correndo discretamente para o sofá.
Se ele foi capaz de ouvir meus passos, escolheu fingir que não.
— Vou pegar uma roupa para você.
Espero enquanto Ashton vai até o que deve ser o seu quarto. Meu coração ainda está
vibrando no peito por ter quase sido pego. Meus pés não conseguem ficar parados e, mesmo
quando Ashton aparece na minha frente e me estende uma muda de roupa, não consigo parar de
batê-los no chão.
Pego a roupa e as afago contra o peito. Ashton levanta uma sobrancelha, como se eu
estivesse sendo estranho num nível além do aceitável.
Seria a segunda vez que Ashton me pegaria bisbilhotando, e eu não quero que ele fale
daquele jeito comigo de novo. Mordo o interior da bochecha quando ele abre a boca, tentando
pensar em alguma desculpa caso Ashton me pergunte porque eu me escondi pra ver o que ele
estava fazendo.
— O banheiro é a segunda porta — é tudo o que ele diz, apontando para a porta do
corredor. Alívio enche meu peito.
— Você pode guardar meu celular para mim? Não quero que ele estrague com o vapor
— estendo meu celular para ele. Ashton o pega e o guarda no bolso, sem nenhuma palavra.
Me levanto para ir até onde sinalizou, mas antes que eu possa me mexer mais uma vez,
outra coisa passa pela minha cabeça. Uma coisa mais urgente.
— Você fala inglês tão bem agora. Esse garoto deve ter sido um bom professor.
O fantasma do sorriso que adorna os lábios dele embrulha o meu estômago.
— Ele foi.
— Por que seu tio não falava em inglês com você?
Ashton não responde imediatamente e nós ficamos no silêncio barulhento da casa; não
da casa exatamente, mas da rua, que a todo instante parece ter alguma coisa acontecendo. O lado
de fora borbulha de gente como água quente em uma chaleira e eu posso escutar o som de uma
voz raivosa gritando.
— Ele não falava por questões políticas. Não fez muita falta porque lá tudo é em
francês. Não é igual aqui que a maioria das pessoas só sabem Bonjour e Au Revoir. — Um
arrepio eletrifica meus braços quando o escuto falando. Sempre achei francês uma língua incrível
e quando descobri que meu francês era carregado de um sotaque ridículo, foi uma grande
decepção. Mas ouvi-lo falando, mesmo que sejam duas pequenas frases, me enche de alegria. —
Eu sei que algumas pessoas de Toronto sabem um intermediário de francês, mas isso é a minoria.
— Não prestei atenção sobre as coisas estarem em francês quando fui para Quebec —
digo enquanto observo Ashton se movimentar pela casa atrás de alguma coisa. A resposta não
vem de imediato, mas quando ele aparece de novo, com uma toalha nas mãos, diz:
— Porque você provavelmente ficou em lugares de turismo. Em qualquer lugar do
mundo, onde há turismo, há inglês.
Balanço a cabeça antes de pegar a toalha das mãos dele. Ashton também me entrega um
sabonete de lavanda.
— Você tem saudades de lá? — faço minha última pergunta. Os olhos dele se esbarram
com os meus e a minha boca seca por estar sendo o centro das atenções das pupilas escuras.
— Às vezes sim, mas na maioria das vezes, não. Eu gostava de ouvir os adolescentes no
ônibus. Eles alternam entre inglês e francês como se fosse nada. Quase como se uma linguagem
capturasse um pensamento melhor, enquanto a outra captura outro melhor. E do castelo, das
comidas, das pessoas e até dos pináculos, mas não do meu tio. E não do que eu precisava fazer
para sobreviver.
— E o que você precisava fazer para sobreviver?
É como se a temperatura tivesse caído em volta de mim quando os olhos duros de
Ashton encontram os meus. Ele aproxima-se e eu faço o mesmo, como se meu corpo soubesse
exatamente o que fazer. Ash, mesmo sendo menor do que eu, consegue ser mais intimidador,
principalmente de perto. A mão dele pousa no meu ombro e meu peito tensiona. Sinto os dedos
dele apertando minha pele, talvez me preparando para me segurar quando sussurra no meu
ouvido, como se soubesse que eu oscilaria estando tão perto dele.
— Eu roubava. Matava alguns animais para comer. Machucava algumas pessoas que
tentavam me impedir, mesmo estando faminto.
Dou um mini passo para trás, sentindo algo no meu coração arder. Parte de mim sabe
que isso tudo é passado, mas é impossível não sentir compaixão ao imaginar ele numa situação
tão miserável.
Ashton afasta-se de mim e eu resmungo de aflição por não ter mais nenhuma quentura
me cercando.
Ele olha-me, parecendo contente com a minha reação. A ponta das minhas orelhas
esquenta e, antes que Ashton possa dizer alguma coisa, viro os calcanhares e entro no banheiro,
encostando as costas na porta fechada para enfim me permitir relaxar.
Eu nunca tive um amigo igual a Ash. Isso tudo é normal? É a forma dele demonstrar
amizade? Será que é assim que ele era com Fraser?
Fico surpreso comigo mesmo quando percebo o ciúme escondido nesse tipo de
pensamento. É como um gosto amargo no fim da língua e que quanto mais você toma água para
tentar se livrar dele, pior ele fica.
Termino meu banho não muito tempo depois. Apesar de eu apenas querer tirar o cheiro
da maconha, foi bom poder me limpar. Ainda mais com o shampoo de Ash.
As roupas dele ficam um pouco apertadas em mim: um pouco das minhas canelas fica
para fora da calça. Tem cheiro de amaciante e a imagem dele lavando aquelas roupas parece
muito doméstico na minha mente.
Saio do banheiro depois de enxugar o cabelo. Espero ver Ashton na sala, mexendo na
TV ou em alguns dos livros, mas ao invés disso, sou a única pessoa viva nesse lugar.
— Ash?
Ninguém responde.
Caminho até uma das portas, a que presumi ser o quarto dele, mas, quando tento girar a
maçaneta, ela não abre.
— Ash? Você tá bem aí dentro? — Tento chamar ele mais uma vez. Nenhuma resposta.
Meu estômago começa a embrulhar. O nervosismo se forma no fundo do meu ventre.
— Não — falo comigo mesmo. Pouco adianta fechar os olhos, mas eu faço isso mesmo
assim. — Está tudo bem. Ele deve ter saído pra comprar alguma coisa.
Procuro meu celular. Também desapareceu. Ashton deve ter levado com ele,
provavelmente esquecido de tirá-lo do bolso.
Quando eu me conformo que não adianta tentar impedir o nó que está se formando no
fundo da minha garganta, me sento no sofá e decido esperar. É a única coisa que posso fazer no
momento.
Duas horas e meia se passaram. Minha mente nem consegue mais se preocupar com os
meus pais. O alerta no fundo da minha cabeça está direcionado completamente a Ashton agora.
Se ele tivesse saído para comprar alguma coisa, já devia ter voltado.
Não consigo mais ficar parado. Bisbilhotar pela casa não ajudará em absolutamente
nada, mas, em certo ponto nessas horas em que eu fiquei parado sem nem me mexer, minha
mente insistia em lembrar do remédio que Ashton havia tomado.
Me levanto, desistindo da pouca decência que ainda me resta. Parte de mim, a parte
lógica, me diz que posso descobrir coisas que me deixariam mais nervoso ainda. A outra parte, a
irracional, me implora para fazer algo, como se não mexer os músculos para procurar respostas
fosse como ser cúmplice do desaparecimento de Ash.
Por um segundo, paro no meio da cozinha. O prato de macarrão que eu comi mais cedo
ainda está na pia e olhar para ele forma um nó na minha garganta. E se aconteceu alguma coisa
com ele? O que vou fazer?
Meus pés descalços congelam minhas pernas. Todos os nervos do meu corpo estão
alarmados, a preocupação quase se tornando uma dor física. Queria poder xingar Ashton por me
deixar nesse estado.
Procuro pelo armário que o vi mexer. Encontrar a sacola não foi difícil; o complicado é
arranjar coragem para mexer nela. A sensação de ver esses remédios se assemelha a apunhalar
Ashton pelas costas. Ele não sabe que estou olhando e com certeza não queria que eu o fizesse.
Fecho os olhos e me dou mais alguns segundos para pensar. Saber disso realmente vai
me ajudar agora ou eu estou apenas fazendo isso para saciar a minha curiosidade? Por que os
remédios que Ashton tomou me deixaram tão… Tão…
Guardo a sacola no lugar, do jeito mais arrumado para parecer que eu nem sequer toquei
nela. Meu estômago ainda está nervoso, como se meu corpo não quisesse me deixar esquecer que
Ashton simplesmente sumiu e me deixou sozinho na casa dele.
Não vou embora até ele aparecer, mesmo que isso signifique mais tempo ainda de
castigo.
Sento no sofá. Pelo menos o som da TV impede uma parcela da minha mente de pensar
em imagens terríveis de todos os tipos de formas de como o corpo de Ashton pode aparecer no
jornal de amanhã, morto.
Mãos geladas

uando tenho a sensação de estar sendo observado, é impossível não sentir


Q a necessidade de abrir os olhos.
Então tudo volta como um flash para a minha mente. Mas, antes que eu
possa sequer me incomodar com qualquer uma das lembranças, dou um pulo no sofá ao ver o
rosto de uma mulher encarando-me profundamente, tão próximo ao meu, que quase podia ver
seus poros.
Ela usa óculos e sorri de um jeito que eu apenas poderia descrever como maníaco.
— Quem é você? — pergunto, olhando ao redor. O cheiro de lavanda me atinge e meu
coração dispara, então começo a olhar ao redor, a procura de uma cabeleira loira e brilhante, mas
não o encontro. — Como você entrou aqui? Vou chamar a polícia-
É apenas um blefe, afinal, nem sei onde está o meu celular, mas quando ela o joga no
meu peito, dando de ombros ainda com aquele sorriso, sinto minhas bochechas esquentando.
— Relaxa, garoto. Eu sou amiga do dono da casa.
Não sei se acredito muito, a olhando com desconfiança. Porém decido lhe dar um voto
de confiança, já que ela está com meu celular, o que significa que encontraram Ashton. Certo?
— Onde ele está?
A mulher olha por cima dos ombros, em direção ao corredor que leva aos quartos.
Enquanto ela faz isso, reparo na coberta que me cobre até os ombros, macia e pesada. Cheirando
a lavanda. Luto contra a vontade de aproximar o tecido no rosto e a jogo para longe de mim de
supetão quando a mulher vira-se para mim novamente.
— Está no quarto, dormindo. O vizinho avisou a gente que ele saiu de casa e não voltou,
mas que parecia haver alguém aqui dentro. Então nós viemos ver o que tinha acontecido e você
estava aqui! Você deve ser o Evan, não é?
Me encolho com a forma que ela diz meu nome, simplesmente porque a ideia de Ashton
falando de mim para seus amigos me agrada tanto que sinto um giro no estômago.
— Sou, sim. Como ele está?
Nem sequer consigo me importar em lhe perguntar o nome. Meu coração dispara com a
menção a Ashton e apenas quero saber como ele está, por que saiu, se está bem, se precisa de
alguma coisa.
Mas não digo nada disso. Não com essa veracidade, pelo menos.
— Bem. Com dor de cabeça e sono, mas está bem.
Assinto, processando as informações.
— Quem, hm, quem me cobriu?
— Eu, tecnicamente. Mas quem pediu foi Ash — ela revela, parecendo esperar uma
reação de mim. Não sei como me sentir sobre isso, então abaixo o rosto. — Vocês são amigos?
A pergunta me pega desprevenido.
— Acho que somos. Estamos na detenção juntos.
Ela continua me olhando, com os lábios virados para cima.
— Conhecendo Ash como eu conheço, se ele teve o trabalho de te trazer aqui, gostar um
pouquinho de você, ele gosta.
Não consigo controlar o sorriso que se esforça para escapar dos meus lábios com a
informação.
— É, talvez.
— Você parece contente com isso.
— O quê? — meu rosto queima. — Não-
A mulher dispara em uma risada escandalosa, jogando a cabeça para trás de forma quase
teatral. Um segundo depois, se joga ao meu lado no sofá e aperta meus ombros, fazendo todo o
meu corpo tensionar com a firmeza das suas mãos. — Relaxa, Evan. Só estou te provocando.
— Ah…— limpo a garganta, apertando minhas pulseiras. Há algo no fundo da minha
mente, chamando a minha atenção. Uma pergunta mortal que não vai me abandonar caso eu não
a faça. — O que aconteceu com ele? Por que… Por que ele fez isso?
Ela me encara com os olhos ilegíveis.
— Ele está aqui, não é? Não precisa mais se preocupar.
Uma sensação angustiante de raiva me enche porque sei que ela está escondendo algo.
Algo sobre Ashton, algo sobre o garoto que, nos últimos dias, não saiu da minha cabeça; o garoto
que sabe tudo sobre a história de Toronto; o garoto que costuma ser quieto mas, se você estiver
disposto a escutá-lo, vai descobrir que ele tem muito a falar; o garoto que me ajudou quando eu
precisei, na praia; o garoto que quero poder ajudar, caso ele precise.
A olho mais uma vez, esperando por qualquer informação que ela tenha a oferecer, mas
ela continua quieta, apenas me observando através de seus óculos sujos. Ao mesmo tempo em
que me irrito, fico feliz por saber que Ashton tem amigos que não contam seus segredos por aí.
Só balanço a cabeça depois de um tempo, finalmente cedendo. O silêncio recai sobre
nós, como um manto fino, mas não dura muito tempo, porque a voz dela volta a encher o
cômodo:
— Aliás, vocês fumaram alguma coisa?
Meu corpo paralisa de um jeito muito parecido como quando meu pai se aproxima de
mim. A mulher parece reparar.
— Não vou contar para ninguém, garoto. Não que isso importe tanto assim.
Levanto os olhos.
— Se não importa, por que está perguntando?
Finalmente consigo causar alguma reação nela, a desnorteando por um segundo, mas ela
logo se recupera, me oferecendo outro sorriso cheio de dentes amarelados. Deve ser por causa do
café. Os meus são um pouco assim também.
— Com ele… É um pouco diferente.
— Por quê?
O seu sorriso se desfaz quando ela coça a nuca, levantando-se do sofá em um pulo.
— Foi mal, Evan. Mas não sou eu quem deveria te falar sobre essas coisas. Se Ashton
quiser te contar mais tarde, ele vai. Só… dê um tempo a ele.
Levo alguns segundos para absorver suas palavras. Ela realmente acha que ele, alguma
hora, me contará sobre isso? Será que Ashton conseguirá confiar em mim a esse ponto? Ele sabe
muito sobre a minha vida e, apesar de gostar disso, também gostaria de saber mais dele.
Mas entendo que algumas pessoas não conseguem falar tão facilmente sobre seus
problemas. Sou assim com Charlie e Max, embora, estranhamente, esse tipo de bloqueio não
pareça me impedir de contar muito sobre mim ao Ashton. Talvez eu apenas goste do fato de
alguém totalmente novo, sem conhecer meu eu do passado, poder me conhecer apenas através do
que eu tenho a contar ou o que me sinto bem em contar.
Acho que posso dar um tempo a Ashton, se é isso o que ele precisa. Posso lhe dar
quanto tempo precisar.
— Sim, nós fumamos maconha, mas ele não parecia mal no momento.
A mulher desvia o olhar, repentinamente silenciosa, parecendo pensar. Uma pontada de
culpa me atinge quando a vejo suspirar, preocupada.
Quando estou prestes a abrir a boca novamente, para implorar a ela que conte pelo
menos um pouco mais sobre Ashton, escuto vozes e passos abafados e, no mesmo instante, sei
que há mais gente na casa. Essa percepção faz meu corpo se encolher no sofá e acabo
encontrando o olhar da mulher novamente. — Eu nem perguntei o seu nome. Desculpa.
— Ah, não tem problema — ela diz, aproximando-se outra vez ao meu lado. Dessa vez,
seu sorriso me passa tranquilidade. — Meu nome é Zya. Zya Stewart.
Ofereço a minha mão, mostrando meu melhor sorriso — embora ainda esteja tímido.
Zya pega a minha mão, a balançando firmemente. A sensação repentina de estar em um jogo de
múltiplas escolhas me atinge em um jorro de euforia. É algo que me agita por dentro, de uma
forma boa.
— Você já sabe meu nome, mas me chamo Evan.
— É um prazer finalmente te conhecer, Evan.
— Eu digo o mesmo — respondo. — Já te vi no colégio, andando com Ashton. Mas
acho que nunca falei com você.
— É claro que nunca falou — Zya dá de ombros. — Se tivesse falado, eu com certeza
me lembraria destes seus olhos.
O elogio me deixa tão alegre que me sinto idiota ao desviar o olhar, coçando a nuca.
O som das vozes volta, mas nenhuma delas parece ser de Ashton. Meu olhar é atraído na
direção do corredor, perguntando-me como ele está.
— Ashton só precisou tomar um ar, por isso saiu — explica ela, atraindo minha atenção.
— A maconha afeta muito ele, mais do que afetaria qualquer outra pessoa. Às vezes, Ashton faz
coisas desse tipo. Os vizinhos já sabem, nós os avisamos. Sempre que algo do gênero acontece,
corremos para cá. Mas nunca houve ninguém na casa além dele, por isso foi uma surpresa te ver
aqui, principalmente depois de… Você sabe, ele falar tanto sobre você.
Não consigo evitar o calor que se alastra por dentro de mim com a nova informação.
— Ele falou sobre mim?
Zya balança os ombros, mostrando-me um sorriso malicioso.
— É claro que falou. Conheço ele, sei que Ashton pode parecer meio rude às vezes, mas
é porque ele não sabe demonstrar, porém acredite em mim quando eu digo: tenho certeza que ele
gosta de você.
Dou toda minha atenção quando ela começa a contar um pouco mais sobre o grupo de
amigos deles. Zya zombou do fato de Oliver ter cortado o cabelo igualzinho ao de Ashton para
agradar Philly — ou, como Zya também a apresentou, Poppy — então muda de assunto e
começa a me contar detalhadamente como ela e Ethan ficaram o dia inteiro tentando arrumar o
pneu do carro, mas que nenhum dos dois fazia a menor ideia de como fazer isso.
Não faço ideia de quem são as pessoas que Zya cita. São nomes sem rosto, mas, mesmo
assim, gosto de como ela me explica as coisas de forma espalhafatosa e animada. Não consigo
desviar a atenção dela por vários minutos, e a única coisa que me interrompe de absorver cada
uma das suas palavras é o barulho da porta do corredor se abrindo.
Meu coração acelera.
No mesmo instante, meu celular começa a berrar descontroladamente. Quando o pego e
vejo o nome da minha mãe no visor, tenho certeza de que vou vomitar. O giro violento que meu
estômago dá não é normal.
Nem sequer sei em que prestar atenção primeiro, mas, quando vejo o horário no celular,
sei que é melhor resolver com a minha mãe primeiro.
— Oi. — Minha voz treme tanto que Zya me olha com uma sobrancelha levantada. —
Mãe?
— Onde você está? — a voz dela soa como uma rocha e, ao mesmo tempo, tão
preocupada que tenho que me apoiar no braço do sofá. — Evan, pelo amor de Deus, são uma da
manhã. Onde diabos você se meteu?
— E-eu vim na casa daquele amigo, lembra? Que te disse que estava me ajudando a
estudar. Mas eu acabei dormindo, merda. Mãe, me desculpa, vou voltar agora-
O silêncio do outro lado da minha me deixa preocupado. Meus olhos começam a arder e
sinto uma vontade humilhante de me encolher tanto ao ponto de desaparecer.
— Falei ao seu pai que você tinha ido dormir na casa do Charlie. Ele não gostou por
causa do castigo, mas acho que poderia ter sido pior —, ela soa tão cansada, tão preocupada, que
a sensação de culpa me atinge como uma onda nauseante. — Por que você faz isso comigo,
Evan?
Quero derreter, quero abraçá-la e pedir desculpas por sempre causar problemas.
— Desculpa, mãe. Eu sinto muito, de verdade. Me desculpa.
— Você- — ela solta um suspiro. Meus olhos ardem cada vez mais. — Não faça isso de
novo, Evan. Não pelo seu pai, não por medo dele, mas por mim. Eu me preocupo com você.
— Eu sei, me desculpa —, o arame farpado imaginário que parece envolver minha
garganta faz a minha respiração ficar limitada e sei que estou com os olhos vermelhos e
esbugalhados, pela forma que Zya me olha. — O pai fez alguma coisa com você?
— Não — ela responde-me rápido e decido acreditar. É uma merda, mas é mais fácil.
Não consigo lidar com mais do que já está acontecendo no momento. — Não se preocupe com
isso. Venha para casa amanhã e tente se resolver com ele. Peça desculpas por ter saído do
castigo.
— Mas eu-
— É isso o que ele quer ouvir, filho. Se você contrariar ele demais, só vai piorar a
situação para nós dois.
É verdade. Não tenho medo por mim. Consigo aguentar qualquer coisa dele, mesmo que
doa na minha alma como o inferno, mas saber que ele faz a minha mãe pagar por coisas que
considera serem minha culpa é um tipo de dor que eu não desejaria nem para meu pior inimigo.
— Tudo bem. Me desculpa.
— Me atenda quando eu te ligar. Por favor, não faça mais isso comigo. Achei que algo
tinha acontecido com você.
As palavras dela parecem um canhão na boca do meu estômago. Apesar de eu não ter
feito de propósito, o fato de ela ainda se preocupar comigo ilumina meu interior com um pouco
de esperança. Significa que pelo menos minha mãe não desistiu completamente de mim.
— Vou atender, sim — respondo. — Amanhã depois da aula vou direto para casa e falo
com o pai. Não se preocupe.
— Vá dormir, Evan — minha mãe diz, com a voz doce que usava quando eu era
criança. Um sorriso escapa dos meus lábios. — Está tarde.
— Tudo bem.
— Eu te amo muito, meu garoto.
A força que eu preciso tirar do meu interior para segurar o choro é imensurável. Ela
quase nunca me diz isso. Ninguém quase nunca me diz isso.
— Eu… Também te amo.
No mesmo instante em que desligo a chamada, o som de passos começa a surgir do
corredor e, quando levanto o olhar, acabo encontrando pelo menos quatro pessoas com um estilo
de roupa muito parecido com o de Ashton.
Na frente, está o único que eu reconheço: Ethan. Ele é ainda mais alto de perto, com o
cabelo meio espetado de um jeito que lhe dá uma aparência selvagem. Um par de argolas
consideravelmente grandes enfeitam suas orelhas e as botas militares de cano alto o fazem
parecer ainda mais alto.
O olhar que Ethan me dá é estranho, encarando-me de cima a baixo, principalmente a
coberta que me cobre. O restante deles, que logo começam a reparar e se importar o suficiente
com a minha presença para me olharem, me dão aquele mesmo olhar de estranhamento. Parecem
estar olhando para algo familiar, um ambiente que já estão acostumados, mas com algo fora do
lugar.
Esse algo provavelmente sou eu.
Procuro por Ashton e seus cabelos loiros, mas, para minha decepção, ele não está ali.
Quero abrir a boca e lhes perguntar como ele está, se eu posso vê-lo, mas não tenho coragem. É
intimidante demais vê-los assim, de perto.
Encolho meus joelhos, encostando-os no meu peito e abaixo o olhar, sentindo-me
pequeno. A repentina urgência de ir embora me atinge, mas não tenho para onde ir. Charlie ainda
está com raiva e Max praticamente acabou de me tirar do maldito grupo que tínhamos juntos.
Jasper e Omar não gostam de visitas nas próprias casas porque sei que, em certo nível, eles têm
seus próprios problemas lá e não quero incomodar. Os pais de Adam me odeiam e jamais me
deixariam entrar na sua casa e simplesmente não parece certo ir até Sally.
Quanto mais penso, mais pesado meu peito se torna. Além de Ashton, não tenho mais
para onde correr à procura de refúgio.
Antes de encarar aqueles caras na minha frente, decido tentar a sorte e mandar uma
mensagem para Max.
Eu: por que você me tirou do grupo?
Eu: cara, eu literalmente não fiz nada. Só tive um desentendimento com o Charlie
Ela me responde quase no mesmo segundo.
Max: Ele ficou muito chateado
Max: você podia pelo menos ter pedido desculpas. Sempre tenta fugir dos seus
problemas
Eu: O que foi que ele te disse?
Max: que você defendeu Ashton como se fosse melhor amigo dele há anos
Max: que foi grosso sem necessidade
Eu: Você devia saber que o Charlie faz isso sempre, Max. Você conhece ele tão bem
quanto eu e sabe que Charlie leva tudo à sério demais e entende as coisas erradas. Ele já fez
isso antes
Eu: e você sempre fica do lado dele
Max: Porque eu entendo ele. Se fosse eu, também ficaria chateada
Eu: Por que eu sempre sinto que vocês dois não querem me contar algo? Já
pensaram que eu também me chateio, igual a vocês?
Max: Você também esconde um monte de coisas de nós. E ficou pior ainda depois que
terminou com a Hazel. Mas acredita no que você quiser, Evan. Não quero discutir com você
esse horário
Max: Aliás, sua mãe me mandou mensagem perguntando se eu sabia
onde você estava. Você saiu com ele?
A força que aperto o celular faz meus dedos esbranquiçarem.
Eu: Sim. Vim pra casa dele
Max: Como o esperado.
Max: cuidado pra não virar drogado igual a ele
Tenho que desligar o celular e respirar fundo depois de ler essa mensagem. Meu sangue
esquenta cada vez mais e a racionalidade do meu cérebro está quase desaparecendo — e sei que a
minha impulsividade me faria mandar uma mensagem bem, bem infeliz para Max — mas, por
sorte, algo chama minha atenção:
— Temos que ir, Zya — é Ethan quem fala, num tom de voz baixo, mas firme. Quando
levanto os olhos, assusto-me ao encontrá-lo já me olhando. — Ashton pediu para eu passar aqui
amanhã te buscar. Te levo para o colégio.
— Ah, eu não quero incomodar-
Ethan simplesmente abana a mão, fazendo-me cair em silêncio.
— Ashton não pode te levar. Amanhã é quarta e você já deve saber que as quartas são
os dias ocupados dele.
Balanço a cabeça, lembrando-me da conversa que ele teve com Donovan no outro dia.
Minha boca coça para perguntar o que há de tão importante nas quartas-feiras, mas me contenho.
— Sim! As quartas são da Itha-
Alguém limpa a garganta, interrompendo. Quando procuro quem havia lhe impedido de
saciar um pouquinho da minha curiosidade, encontro o olhar firme daquele cara com o mesmo
corte de cabelo de Ashton.
— Ah, eu esqueci — pela primeira vez na noite, Zya parece sem jeito. — Foi mal,
Oliver — então volta sua atenção para mim, sorrindo como se nada tivesse acontecido. —
Viremos te buscar amanhã, Evan.
Eles já estão na porta, sem me dar um único olhar de despedida quando Zya aproxima-
se de mim e me abraça com tanta força que quase me arrasta para fora do sofá.
— Não liga para eles. É ciúmes. Ashton demorou meio ano para finalmente nos mostrar
a casa, mas acho que você é especial.
Sorrio contra seu ombro, não sabendo como descrever exatamente a sensação que
aquece por dentro.
— Até amanhã, Evan!
Zya fecha a porta e fico sozinho com a minha mente.
Depois de um tempo encarando o chão, decidindo o que fazer, me levanto e desligo
todas as luzes, voltando a me cobrir e me aconchegar no estofado.
Fecho os olhos, sentindo as batidas do meu coração nas costelas. Estão rápidas, fortes, e
é quase difícil de respirar. Por um segundo, sinto vontade de chorar por tudo o que aconteceu não
apenas hoje, mas meu corpo endurece quando eu, de repente, escuto o barulho de uma porta
sendo aberta. Minha mente clareia por um instante e tudo o que consigo pensar é nos passos
fracos de Ashton aproximando-se.
O cheiro de lavanda invade meus sentidos. É como um alarme que eu, a partir de hoje,
jamais esqueceria.
Espero alguns segundos e então um arrepio percorre minha coluna até meus pés. Sinto
os dedos de Ashton tocarem suavemente a minha nuca. A mão dele está gelada e quando a ponta
dos seus dedos desliza pela minha pele, tento me convencer que é por essa razão que minha
respiração quase vacila.
Meu peito agita-se quando um leve afago na minha pele me faz amolecer. Quero virar-
me, segurar seu pulso e perguntar o que diabos ele está fazendo.
Os dedos dos meus pés se apertam. É difícil não se mexer, já que eu não sei se quero me
afastar ou… Chegar mais perto? Isso é loucura. Por que eu iria querer chegar perto? Por que ele
está fazendo isso?! É estranho. É muito estranho.
— Me desculpa. — Meu sangue gela quando a voz dele soa atrás da minha cabeça, tão
frágil quanto vidro. Sinto vontade de me virar e abraçá-lo, mas algo me impede.
Mal tenho tempo de prestar atenção na mão dele subindo para o topo da minha cabeça
quando Ashton se afasta brutalmente. Escuto ele grunhido furioso, muito parecido com o rugido
de um leão. Abro uma fresta do olho e tento ver o que ele está fazendo, mas no mesmo momento
Ashton me olha de volta. Não é difícil de notar que ele está com raiva, e isso me faz encolher o
corpo.
Então ele sai de perto de mim. E a quentura desaparece.
Meu coração volta a bater feito um louco, machucando minhas costelas.
Mal consigo respirar.
Will

epois de uma carona silenciosa e ao mesmo tempo extremamente


D barulhenta — por conta de Zya —, desço do carro de Ethan e caminho até a
entrada do colégio.
Não vi Ashton ao sair de casa, mas havia uma chave no braço do sofá quando acordei. A
usei para trancar a porta quando saí, totalmente indeciso se deveria ou não entregar ela a Ethan
ou Zya, para que algum deles entregassem a Ashton mais tarde, porém não faria sentido, já que
eu — se tudo der certo — o verei novamente amanhã.
Minhas mãos estão suando quando aperto a alça da mochila. No fim do corredor,
consigo ver Jasper, Adam, Max, Charlie, Sally e Omar conversando normalmente. Uma pitada
de esperança me preenche e, antes mesmo que eu perceba, estou caminhando na direção deles.
— E aí? — eu digo, no tom mais casual que consigo. O sorriso que havia surgido nos
meus lábios começa a desaparecer à medida que o silêncio se estende. — O que foi?
— Oi, Evan! — o único que me responde é Omar. Ele olha-me com seus doces olhos de
sempre e o seu sorriso me deixa menos agonizado. — Nós estávamos-
— Omar. — O tom de Jasper o cala no mesmo instante e observo enquanto eles trocam
um olhar silencioso. Há algo quase azedo no semblante de Jasper. Isso me machuca mais do que
eu achei que qualquer sinal de aversão de Jasper em relação a mim me machucaria.
No instante em que Omar abaixa o rosto, mirando os olhos uma última vez para mim,
como se dissesse ”me desculpa”, entendo o que eles estão fazendo: tratamento de silêncio. Já
tivemos algumas brigas antes, mas nenhuma que se tornasse o tratamento de silêncio.
Os quinze milhões de sentimentos que me inundam fazem uma mistura terrível no meu
interior e só tenho três segundos para virar os calcanhares e sair andando antes que meus olhos
comecem a arder. De raiva. De tristeza.
Aperto a pequena chave nos dedos, desejando que Ashton estivesse aqui.

Quando o sinal da última aula grita por todo o corredor, limpo a boca da baba que
escorreu enquanto eu dormia. Minha mente leva alguns segundos para se acostumar novamente
com a consciência e, quando olho ao redor, percebo que a maioria dos alunos já saiu.
— Droga — murmuro comigo mesmo enquanto tiro a mochila do apoio da cadeira.
— Seu companheiro fiel não veio hoje, Evan — aquela voz chama minha atenção e
viro-me em direção a porta, dando de cara com Donovan.
— Que susto, Donovan — coloco a mão no peito. — Eu percebi que ele não veio.
Ele aproxima-se de mim, apenas me dando tempo de pegar a minha mochila e engatá-la
nas costas. Donovan me tira da sala, levando-me em direção às escadarias. Vejo de relance o
cabelo espetado de Zya e ela também parece me notar porque acena para mim com seu sorriso
enorme.
Praticamente sinto os olhos curiosos de Donovan em mim.
— Você ficou amigo dos amigos dele?
Levanto a mão para devolver o aceno à Zya.
— Não.
Donovan volta a me guiar escadas acima, mas, diferente do que achei, não vamos em
direção a alguma nova sala para eu limpar — sozinho! — ao invés disso, paramos na frente da
porta da diretoria. Meu corpo inteiro congela.
— O que estamos fazendo aqui?
Ao contrário do que eu esperava, Donovan não responde: ele simplesmente abre a porta
e me dá espaço para entrar. Quando o faço, ele caminha até a mesa e eu o imito, indo até aquela
mesma cadeira que estive há pouco mais de uma semana.
— Você descobriu alguma coisa?
A pergunta me pega desprevenido, até eu lembrar da minha conversa com ele no
primeiro dia da detenção.
Tento pensar cuidadosamente em qualquer coisa suspeita em relação à Ashton, mas
nada me alarma. Donovan espera, estranhamente paciente, mas, quando vejo suas sobrancelhas
levantadas, decido que não é uma boa ideia lhe contar sobre o fato de Ashton ter sumido no meio
da noite ou sobre o Tanakh.
Ainda me é muito estranha a ideia de Donovan se intrometer na vida pessoal de Ashton.
Parece errado contar a ele, agora, sobre qualquer coisa que Ashton me revelou e, no fundo, não
gosto da ideia de compartilhar os segredos dele com Donovan.
Tenho apenas migalhas de revelações e, se possível, irei manter essas migalhas apenas
para mim.
— Descobri que ele tem uma moto.
— Só isso? — Donovan parece saber o que estou tentando fazer.
— E que cheira a lavanda.
O velhote fecha os olhos por alguns segundos, levando dois dedos para baixo do queixo.
Ele me olha como se pensando no que deve fazer a seguir.
Até que algo estala na minha mente.
Lembro-me da breve menção de Zya sobre uma tal de “Itha”. Seja quem for, parece ser
importante, já que Ashton lhe dá um dia inteiro da semana. Percebo, ao apertar as pulseiras de
couro, o quanto esse fato me incomoda sem nenhum motivo aparente.
Então, antes que eu sequer pense no que estou fazendo, abro a boca:
— Também tem uma pessoa chamada Itha alguma coisa. Aparentemente, ele não vem
nas quartas-feiras por conta dela — as palavras escorregam dos meus lábios tão facilmente que
quase me assusto.
Porém, o que me assusta de verdade é notar o quão amargurada minha voz soa ao citar
isso.
— Ele te contou isso? Ele disse onde ela mora? — o rosto de Donovan está
praticamente brilhando.
Seu interesse me deixa ainda mais nervoso.
— Não? Por que ele me diria isso? — não consigo controlar a vontade de cruzar os
braços de um jeito quase infantil. — Eu nem gosto dela. Quer dizer, não faz sentido ele dar tanta
exclusividade-
Donovan limpa a garganta.
— Sim, sim. Claro — ele balança a cabeça como um daqueles bonecos com pescoço de
mola. — Mas por que você não gosta dela? Você a conheceu?
— O quê? Não, claro que não. Por que eu não gosto dela? — a vontade de revirar os
olhos é mais forte do que eu. — Eu nem a conheço, nunca a vi. Escuta, isso não é por ciúmes ou
qualquer coisa do tipo-
— Não. — Ele me interrompe. Sinto vontade de continuar vomitando palavras, mas o
seu sorriso nervoso que enruga o canto dos seus olhos deixa evidente que ele não quer ouvir mais
das minhas desculpas. — Por que ele te contou isso? Achei que o Ashton era bem reservado em
relação a vida pessoal…
Não consigo disfarçar o incômodo que sinto com a sua estranha insistência.
— Não é querendo ser rude nem nada, mas por que você quer saber disso tudo?
Seu silêncio me oferece algum tempo para pensar.
Muitas possibilidades passam na minha cabeça, mas a menos pior é que, talvez,
Donovan sinta algum tipo de sentimento fraternal em relação a Ashton. No dia em que Jasper
decidiu roubar a loja em que ele estava trabalhando, Ashton disse que Donovan lhe ajudou a
arranjar aquele emprego. Isso faria sentido, já que Donovan me pediu para ficar de olho nele,
embora isso ainda seja bem estranho.
— Eu me importo com os alunos do meu colégio — responde ele, ajeitando a postura.
Olho desconfiado para suas mãos cruzadas em cima da mesa. — Você sabe o nome completo
dessa pessoa?
— Não. Mas deve ser Ithaly ou algo do tipo — dou de ombros, querendo sair logo desse
questionário, porém, quando olho na direção de Donovan, sei que esta conversa está longe de
acabar.
Essa é a primeira vez que o vejo tão animado. Nem quando nossa escola ganhou o
campeonato de soletração Donovan pareceu tão feliz quanto agora. Isso me deixa preocupado.
Posso estar escondendo algumas coisas dele, mas ele também está claramente evitando me contar
algo.
— Você não precisa ficar na detenção hoje, Evan. Em nenhuma das quartas, na verdade
— ele diz, de repente. Minha boca abre de surpresa.
— Mas…
— Não seria justo deixar ele faltar a detenção e você não, garoto — seu tom solidário
não me comove. — Eu sei que você está se esforçando para melhorar seu comportamento dessa
vez.
Engulo em seco, balançando a cabeça. Tento meu máximo mostrar que fiquei feliz com
o que ele disse, mas, no fundo, se não for na detenção, ficarei trancado em nada. Então não faz
muita diferença.
— Pode ir para casa então, garoto.
Levanto-me em silêncio, pegando minha bolsa enquanto ainda penso no assunto. Só é
quando estou virando a maçaneta que tenho coragem de verbalizar meus pensamentos:
— Ashton falta todas as aulas nas quartas?
— Não. Não todas. Algumas vezes ele vem, mas sai mais cedo.
— Ele… Pode fazer isso?
Donovan levanta os óculos que estava escorrendo pelo seu nariz oleoso.
— Não, na verdade. Mas ele me explicou mais ou menos a situação.
— E o que ele disse?
— Algo relacionado a uma criança, mas não me lembro com muita exatidão — ele me
olha por cima dos óculos. — Por quê?
— Por nada — aperto a alça da mochila com mais força. — Tchau, Don. Ah, e valeu
por ter me liberado hoje.
Ele não me responde, mas sorri e levo isso como uma deixa para finalmente sair dessa
sala úmida e quente. Sinto-me pesado no instante em que coloco o pé para fora, como se um
pedaço de chumbo estivesse amarrado no meu coração por um fio e sei que essa sensação
agonizante é por estar começando a me envolver demais com o espiral de problemas que Ashton
tem. Por um minuto, tento pensar na razão daquilo me incomodar tanto, mas então desvio dessa
onda de pensamentos, imaginando que, talvez, seja culpa do estresse dos últimos dias.
Preciso conversar com alguém. Com alguém que não esteja envolvido em toda essa
merda.
Pego o celular e ligo para Hazel.

Uma das coisas que sempre gostei na Hazel é o fato de ela sempre fazer o que tem
vontade de fazer. Um dos seus maiores lemas é ”melhor se arrepender do que passar vontade” e,
num geral, eu não poderia concordar mais.
Há pouco mais de um ano, Hazel trombou comigo propositalmente no meio do corredor,
com um pirulito nos lábios e o cabelo loiro curto puxado para trás com gel. Seu rosto era firme,
quase masculino, com bochechas altas e olhos ameaçadores como uma fênix. Eu enlouqueci por
ela no primeiro segundo, mas achei que nunca teria chance, até que a própria Hazel me chamou
para sair.
Nosso relacionamento foi melhor do que os antigos. Ela é uma pessoa incrível e, se eu
pudesse escolher, nunca teria deixado de gostar dela. Jamais teria feito isso. Mas, quando percebi
que nosso relacionamento estava cada vez mais parecendo com uma amizade, percebi que era
melhor terminar antes que tudo piorasse. Hazel disse que sentia o mesmo e, por conta disso, hoje
em dia continuamos amigos.
Raramente nos encontramos: Hazel me liga quando quer falar sobre Will Hubert, um
cara de quase dois metros de altura por quem começou a nutrir uma paixão gigantesca há quase
um ano. O problema é que Will nunca nota suas investidas e, quando ela se frustra demais, me
liga e nós passamos a tarde falando sobre tudo e nada ao mesmo tempo.
Hazel sabe muita coisa sobre mim, coisas que não consegui contar nem mesmo a
Charlie ou Max. Por conta disso, simplesmente sei que conversar com ela sobre o que estou
sentindo nesse instante é a melhor coisa que posso fazer no momento.
Quando avisto seus cabelos loiros, ainda mais curtos do que da última vez que nos
vimos, sinto meu coração aumentar de batida. Sempre me sinto estranhamente animado toda vez
que a vejo, embora saiba que esse é um sentimento totalmente platônico. Dessa vez tenho a
impressão de que meu nervosismo tem algo a ver com Ashton e o quanto eu preciso falar sobre
ele com alguém.
— Hazel! — chamo, fazendo-a se virar para mim. Meu corpo inevitavelmente se
arrepia quando seus olhos me encontram. Como sempre, ela usa uma maquiagem escura,
delineando seus olhos com sombra preta e pintando seus lábios com um batom bordô. Hazel não
é alta, então simplesmente sei que está usando botas plataformas quando me aproximo para
abraçá-la. — Quanto tempo, garota.
— Muito tempo, Evan — ela responde com seu tom sério de sempre, embora saiba que
ela também gostou de me ver pela forma que me aperta. — Estava te esperando para entrar.
Hazel guia o caminho até o bar que costumamos vir. Bar do Hughes. Acho que ele é tio
de Hazel e por isso sempre ganhamos desconto.
Conto brevemente sobre como andam as coisas com meus pais — e ela me mostra uma
careta de desaprovação — enquanto bebemos Coca-Cola. Hazel não costuma beber nada com
açúcar ou qualquer coisa que possa ter calorias demais. Sei que ela ainda está à procura de uma
agência de modelos e sei que a maioria dessas agências é o escrúpulo da humanidade quando
envolve peso e qualquer coisa que considerem gorduras, mas um sentimento quente me atinge
quando percebo que ela está se permitindo ter alguns momentos de prazer com comida.
— Mas então, por que você me ligou? — pergunta ela, bebericando a Coca por um
canudo. — Você só costuma me ligar quando acontece algo sério com seus pais, mas pelo jeito
está tudo na medida do possível com eles.
Não consigo controlar a quentura de atingir minhas bochechas.
— Como está Will?
É vez dela de parecer envergonhada.
— Não fuja do assunto, garoto.
— Eu não… — Suspiro. — Tudo bem. Então, você quer que eu resuma ou conte tudo?
— Tudo, é claro.
Sorrio com sua resposta, lembrando dos bons tempos em que passávamos a noite inteira
fofocando sobre a vida dos outros.
— Lembra do Jasper? Aquele garoto esquisito de cabelo azul que anda comigo? —
pergunto, esperando ela concordar. — Então, briguei com ele. Nada novo sob o sol. Sempre
soube que nós brigaríamos, mas o problema é que eu soquei a cara dele no colégio e então
Donovan me deu detenção… Adivinha com quem?
— Ah, Evan, pelo amor de Deus-
— Ashton Winsor!
Hazel fica em silêncio por alguns segundos, olhando para o copo de Coca, como se
estivesse tentando atribuir um rosto àquele nome. E, quando ela parece se dar conta de quem eu
estou falando, seu rosto brilha de surpresa.
— Nem fodendo. Aposto que você apanhou dele.
— Não. — Me aproximo, balançando os ombros. — Eu consegui o número dele. Ou
melhor, ele me deu o número dele.
Seu sorriso aumenta, mostrando os dentes escondidos pelos lábios pintados.
— Agora ficou interessante. Ele te deu o número dele? O Ashton Winsor? Aquele cara
que pelo menos meia dúzia de gente tem uma quedinha?
Minhas orelhas esquentam quando percebo a malícia em sua voz. Meu estômago dá um
giro de forma desconfortável, mas então de repente reparo o quanto pareço afobado com essa
realização. Ashton Winsor me deu seu maldito número, coisa pela qual metade do colégio
mataria para conseguir.
— Tem mais coisa, calma — digo, tentando controlar a respiração. Quero contar tudo
de uma vez, quero ser capaz de dizer mais de uma palavra de uma única vez para poder ver sua
reação, mas, como isso é impossível de acontecer, decido me acalmar. — Aconteceram mais
algumas coisas. Nós fumamos maconha e ele começou com um papo de ”demos um beijo
indireto” e depois me disse que, para tirar o cheiro de maconha de mim, eu teria que tomar banho
na casa dele e-
— Que espertinho! — Hazel exclama, rindo. — Cara, ele tá muito na sua.
— O quê? — meu coração dá um pulo. — Tá maluca? É óbvio que não. Por que ele
ficaria a fim de mim?
— Porque, Evan, você é uma gracinha. E, pelo jeito, tem poder de atrair loiros.
Não consigo segurar a risada nervosa que borbulha para fora dos meus lábios,
remexendo nas minhas pulseiras. Nervosismo começa a se alastrar por dentro de mim conforme
penso em tudo o que aconteceu com Ashton nesses últimos dias e quero continuar contando tudo
a Hazel, mas não sei por onde começar.
— Como você se sente sobre isso? — ela pergunta ao invés disso, chamando minha
atenção. — Sobre ele possivelmente estar a fim de você?
Demoro um pouco para entender o que ela quer dizer:
— Eu… Não sei. Não por ele ser um cara, realmente não me importo com isso. Mas é
que… Ele é tão… Tão demais para mim que parece impossível uma pessoa como aquela sentir
qualquer sentimento romântico por mim.
Os olhos de Hazel ficam repentinamente sérios e sei que disse algo que ela não gostou.
Não consigo evitar a vontade de abaixar o rosto para me esconder, mas sua mão me impede antes
que eu consiga.
— Não é culpa sua achar que nunca é o suficiente, é culpa dos seus pais, dos seus
amigos que eu sempre te avisei que eram um pouco idiotas. Mas não é porque eles não veem seu
valor que qualquer outra pessoa não vai ver, Evan. Talvez Ashton seja igual eu e perceba o
quanto você é… Simplesmente incrível em meio àquela multidão cheia de babacas espalhados
pelo colégio.
Não sei o que dizer, por isso aproveito o calor da sua mão por mais alguns segundos.
— Eu… Não sei nem qual é a minha cor favorita. Eu só tenho problemas e pareço uma
criança egoísta com ciúmes do próprio irmão. Como é que alguém como eu pode ser incrível?
Não era minha intenção encher Hazel da minha merda novamente. Sempre que a vejo,
esses tipos de pensamentos guardados no fundo da minha mente vêm à superfície e não consigo
controlá-los, mas é bom falar. Os deixo tanto tempo guardados que, quando eles finalmente
saem, é como se uma pequena parcela daquelas inseguranças se desgrudasse do meu interior.
— Eu sempre te disse que você deveria procurar ajuda profissional. Eu sei o que você
está pensando. Que, em comparação aos seus amigos ou qualquer outra pessoa no mundo, seus
problemas não são merda nenhuma, mas isso não é verdade. Você pode sentir o que estiver
sentido. Todo mundo têm problemas, Evan. Isso não faz os seus menos válidos. E isso não te faz
menos digno de carinho ou coisa do tipo.
Essas palavras me atingem com tanta força que não consigo manter os olhos em seu
rosto. Um sentimento irreconhecível me atravessa. Nunca pensei dessa forma. Nunca pensei que
poderia sentir o que estava sentindo, então ouvir isso de outra pessoa é como se uma caixinha
tivesse finalmente se aberto dentro de mim, mas ainda odeio o fato de precisar que outra pessoa
me diga isso para os meus sentimentos parecerem válidos, como se a minha própria palavra não
valesse.
— Obrigado, Hazel.
Ela tira a mão do meu rosto, mas toca o meu joelho, o apertando.
— Você pode sentir o que estiver sentindo, seja com seus pais, seus amigos e Ashton
principalmente. E eu tenho a impressão de que ele te enxerga como você é, Evan. Mas, se a
minha impressão estiver errada, então ele que se foda —, há uma última pressão na minha perna
antes que ela se afaste completamente. — Só… Tome cuidado com você e esse seu coração, tudo
bem? Faz pouco tempo que você conhece o cara.
Concordo, terminando de tomar a minha Coca.
— Tem mais uma coisa meio estranha que preciso te contar. Donovan, o diretor, me
pediu para ficar de olho no Ash. No começo eu pensei, “okay, tudo bem. Vai ser um saco mas
acho que consigo fazer isso”, até que, antes de te ligar, Donovan me puxou para a sala dele e
começou a fazer um monte de perguntas estranhas.
Os olhos afiados de Hazel passam pelo meu rosto atentamente.
— Ele não deveria fazer isso — ela diz. — Entendo caso ele queira que um amigo fique
de olho nele, caso Ashton esteja fazendo algo errado, mas pedir para alguém totalmente aleatório
como você não faz sentido.
Processo suas palavras, pensando no quanto elas são verdade. Faria muito mais sentido
se Donovan tivesse pedido para Zya ou Ethan ficar de olho nele, não eu, um garoto que mal o
conhece.
— Você acha que ele pode estar escondendo algo? Donovan, quero dizer?
Hazel permanece em silêncio por alguns segundos, pensando sobre o assunto. Ela se
remexe no banco, cutucando as unhas longas e afiadas.
— Talvez? Mas o quê?
Dou de ombros.
— Não sei. Não se quero descobrir, inclusive.
— De qualquer forma, não conte muito sobre Ashton para ele. Não por enquanto, ou até
você perceber que pode confiar nele, pelo menos.
Ficamos conversando por mais alguns minutos até eu me lembrar que tenho que voltar
para casa. Meu pai provavelmente ainda não está lá, o que facilita a minha vida em relação a
chegar atrasado por conta das detenções, mas minha mãe com certeza está me esperando. E ela,
com certeza, deve estar querendo me dar uma bronca por ter dormido fora de casa sem avisar na
noite passada.
Hazel acompanha-me até à saída e ficamos esperando pelo táxi. Enquanto isso, lembro-
me de algo importante que ela ainda não havia respondido:
— E como vão as coisas com Will?
Ela continua olhando para frente e a observo enquanto joga o peso do corpo de uma
perna para a outra, como se pensando nas melhores palavras para me responder.
— Acho que estou parando de gostar dele. Eu… Encontrei outra pessoa. Não é nada
sério, é só que… Ainda é meio complicado —, ela responde, em meio a suspiros.
— Isso é muito bom, El. De verdade. Você estava gostando dele há tanto tempo que
talvez tenha sido melhor seguir em frente por enquanto.
— O problema é que a pessoa que estou interessada agora meio que tornaria a situação
pior ainda.
Levanto uma sobrancelha.
— É o Robert?
Robert é um dos melhores amigos dela, juntamente com Will.
— Eca. Não. É pior.
— Meu Deus, garota, você se apaixonou por mim de novo?
A risada que vem dela soa como uma pequena vitória.
— Para sorte do seu garoto, não. Não é por você, Evan, mas eu poderia facilmente me
apaixonar de novo. Você é amável demais.
Minhas bochechas esquentam e por sorte o táxi estaciona no meio fio no mesmo instante
em que não sei o que responder. Hazel bagunça meu cabelo, abraçando-me uma última vez.
— Me chame mais vezes. Sinto saudades de passar tempo com você — sussurra ela,
pela última vez no dia.
— Também sinto saudades suas, El.
Depois disso, Hazel entra no táxi e parte, deixando-me sozinho, novamente, com os
milhões de pensamentos frenéticos na minha mente.

Conforme pedalo em direção à minha casa enquanto escuto Red Roses in the Cold
Winter Ground, do The Dig — música que Ashton me mandou mais cedo — uma notificação
chama minha atenção.
Ashton: Acho que passei de ano. Minhas notas estão boas, mas obviamente eu não
tenho dinheiro pra pagar a formatura
Ashton: Zya, Ethan e aqueles outros esquisitos estavam pensando em sair para
algum lugar para comemorar
Ashton: Quer vir com a gente?
Quase caio da bicicleta. Preciso me encostar em um poste para ler as mensagens
novamente, para ter certeza de que não li errado.
Eu: É sério???
Eu: Eu quero. Mas não sei se meus pais vão deixar… Castigo, lembra?
Ashton responde mais rápido do que eu espero:
Ashton: Damos um jeito. Você tem que vir
Ashton: Não vai ter graça sem você
Sorrio para o celular, como um completo idiota.
Nunca pedalei para casa tão rápido, rezando para conseguir convencer meu pai.

É agora.
Minha mãe, eu e meu pai estávamos sentados naquela mesa que eu odeio, jantando
juntos pela primeira vez… Em algum tempo. Meu pai chegou mais cedo por algum motivo e não
parece de mau-humor, o que é um bom sinal. Mesmo assim, minhas mãos não param de suar
conforme eu repasso as palavras que pensei em dizer mais cedo.
— Hm, pai? — eu chamo, quase surpreendendo até a mim. Faz muito tempo em que eu
não o chamo em voz alta dessa forma e ele também parece ter notado, porque me olha com o que
deve ser uma microexpressão de surpresa. — Posso… Posso te pedir uma coisa?
O silêncio dele parece me consumir lentamente, mas sei que ele está prestando atenção.
Consigo sentir seus olhos em mim, mesmo que eu não me atreva a levantar o olhar.
— Eu… Eu…
— Olhe para mim enquanto estiver falando, garoto.
A reação do meu corpo é automática: faço o que ele manda, encolhendo-me quando
encontro seu olhar severo. Seu maxilar está mexendo conforme mastiga a comida que minha mãe
preparou, mas ele não parece prestar atenção em nada além de mim e isso chega a ser
perturbador.
Às vezes me pego olhando meu reflexo no espelho. Sou assustadoramente parecido com
meu pai, sendo a única diferença entre nós o fato de ele ter cabelo comprido, embora sempre o
deixe amarrado em um coque firme. A única coisa que não consigo encontrar dele no meu rosto
são os olhos, porque eles são inegavelmente parecidos com os da minha mãe.
Gosto do fato de não ser totalmente parecido com ele. Gosto dos olhos da minha mãe.
Eles me tranquilizam de uma forma que ninguém nunca conseguiu tranquilizar antes.
Procuro por eles de forma automática, os encontrando. Minha mãe olha-me como se me
incentivasse a continuar, mas não daquele jeito quase ameaçador que meu pai costuma fazer.
— Queria saber se posso ir na formatura de um amigo meu essa semana — a pergunta
sai meio atropelada e eu quase engasgo com a minha própria língua, mas no fim, um sentimento
de orgulho me enche por ter conseguido dizer a frase completa sem me atrapalhar. — Fiz um
novo amigo nesses últimos dias. Ele está me ajudando a estudar e-
— Qual a parte do fato de estar de castigo você não entendeu?
A pequena chama de confiança se apaga de supetão. Abaixo o rosto, como uma criança
amuada.
— Terry, mas esse novo amigo parece ser um bom garoto- —, minha mãe tenta dizer,
mas um único olhar dele a cala. Ela se encolhe daquela forma que eu odeio ver e de repente
quero gritar com ele de novo. Quero espancar ele até que se arrependa por cada vez que fez
minha mãe se encolher dessa forma.
— Não. Você não vai.
— Mas-
— Não. — Ele repete, dando-me aquele olhar novamente. Minha garganta parece pegar
fogo quando aperto os punhos embaixo da mesa. De um segundo para o outro, perdi
completamente a vontade de comer. — Você não vai. E nem se atreva tentar me pedir isso de
novo.

Eu: Não vou poder ir


Ashton: Você vai
Ashton: Já disse que vamos dar um jeito
Ashton: A não ser que você não queira vir
Eu: Eu quero
Eu: É só que, tipo
Eu: Me senti idiota por nem conseguir enfrentar ele
Ashton: Tem coisas que nem merecem o esforço, pirralho
Ashton: Não esquenta
Ashton: Me passa seu endereço
Ashton: Deixa comigo. Vou dar um jeito.
Pelo menos a noite não terminou tão mal. Estávamos, oficialmente, de férias.
Allan Gardens

eus pais já estão dormindo quando Ashton me manda mensagem:


M Ash: Tô aqui na frente
Ash: Do outro lado da rua
Como meu pai não me deixou sair por conta do castigo tosco, sair escondido foi a única
alternativa que encontramos, e algo no meu interior se aquece imensamente quando lembra do
fato de Ashton ter dito que, caso eu não fosse com eles, não seria divertido. Eu não recusaria esse
convite nem em mil anos.
Me olho uma última vez no espelho do banheiro, conferindo se meu piercing na
sobrancelha não está torto ou se não há sujeira nos dentes. É meio idiota admitir isso, mas
escolhi uma roupa parecida com o estilo de Ashton, então uma camisa flanela vermelha e preta
enfeita meus ombros e uso a única camiseta de banda que tenho — a do Red Hot Chilli Peppers.
Eu: Tô descendo
Abro a janela do quarto o mais lentamente que consigo, fechando os olhos quando o
trinco enferrujado geme mais alto do que eu gostaria. Meu coração batuca nas costelas de uma
forma boa e não consigo parar de sorrir, respirando pesado. A sensação de adrenalina nas veias
quase me deixa tonto e sei que metade desse sentimento tem a ver com o fato de eu estar indo
encontrar Ashton.
Passo pela janela, pisando no telhado. Meu tênis escorrega e um estrondo soa pelo
jardim, mas não consigo me importar tanto porque vejo uma silhueta baixinha aproximando-se.
Minha respiração fica mais pesada ainda. Fecho a janela e aproximo-me da borda do telhado.
— Cuidado, pivete — Ashton diz, baixo o suficiente para apenas eu ouvir.
O pequeno sorriso no som da sua voz faz as minhas mãos formigarem.
Agarro o galho da árvore que invade o espaço do telhado e praticamente arranha o vidro
da minha janela. Provavelmente não irá aguentar meu peso, mas é melhor do que simplesmente
me jogar em direção ao chão e passar a maior vergonha da minha vida na frente daquele garoto.
Consigo me apoiar no galho por tempo o suficiente até alcançar o tronco mais grosso, o
qual faz as minhas mãos arderem quando o agarro para pular na grama.
Quando levanto, observando minhas palmas, Ashton aproxima-se, pegando-as entre as
próprias mãos. Ele as observa por alguns segundos antes de passar gentilmente a manga da
jaqueta, limpando-as.
— Valeu — é tudo o que consigo dizer antes de levantar o olhar e dar de cara com seu
rosto. Ashton pintou as pálpebras de preto, fazendo com que suas íris azuis fiquem ainda mais
chamativas. Meu coração machuca as costelas com a força que ele começa a bater. — É… Sua
maquiagem ficou massa.
Ashton não responde, encarando meu rosto por mais alguns segundos, ainda com as
mãos nas minhas.
— Posso fazer em você qualquer dia desses — diz ele, finalmente me soltando.
Um flash de sentimentos me atravessa.
— Sério? Será que ficaria bom em mim?
Ele dá de ombros.
— Provavelmente qualquer coisa ficaria bom em você.
É a minha vez de não saber o que responder conforme Ashton me dá as costas e esconde
as mãos no bolso da jaqueta de couro, afastando-se. Tenho que correr para alcançá-lo.
— Aonde vamos? — pergunto quando paro ao seu lado. — Você disse que seus amigos
queriam comemorar a formatura de vocês.
— Zya quer ir para a praia, mas Ethan quer ir à uma discoteca. Eles queriam que eu
decidisse.
— E qual você decidiu?
— Qual você prefere?
Adoraria ir à praia, mas por algum motivo a discoteca parece mais interessante. Acho
que é porque nunca fui em uma.
— Não sei, qualquer lugar que você quiser ir tá bom. — Dou de ombros, porque não
quero que pareça que estou tentando decidir por eles. Afinal, a formatura não é minha. — Mas
acho que a discoteca seria bem legal.
— Discoteca, então.
E, simples assim, Ashton decide nosso destino da noite.
A lua acima de nós ilumina melhor a rua do que os postes de luz e talvez seja por isso
que não tenha reparado na moto estacionada no meio fio, afastada da minha casa. Não parece
com a moto daquele outro dia em que fui parar na casa dele, por isso não consigo controlar
minha curiosidade:
— É sua?
— Ethan me emprestou.
Ele sobe antes de mim. Depois de Ashton se ajeitar, sento na garupa, praticamente
cobrindo seu corpo com as minhas coxas. Ele me entrega um dos capacetes e liga a moto, saindo
do meio fio.
Conforme atravessamos Toronto no meio da noite, começo a sentir meu corpo
relaxando e finalmente tomo coragem de agarrar sua cintura. Seu corpo tensiona por alguns
segundos e volta a relaxar. Isso me faz lembrar da conversa com Hazel e a possibilidade de
Ashton estar interessado em mim. A ideia me agrada, me agrada tanto que não consigo evitar de
apertá-lo com mais força.
— Tudo bem aí, pirralho? — pergunta ele.
— Uh-um. Só estou pensando. Como você se sente?
Paramos em um sinaleiro. Ashton vira levemente o rosto na minha direção e tenho um
vislumbre dos seus olhos pintados.
— Sobre o quê?
— Sobre ter se formado.
Ele faz uma pausa, pensativo. Nesse meio tempo, o sinal abre e voltamos a correr. Meu
estômago se revira de forma agradável.
— Acho que não senti nada diferente. Não tenho dinheiro para pagar uma faculdade
nem um bom histórico para mandar uma carta.
— Mas você gostaria de fazer uma?
— Não sei. — Mal consigo ouvir sua voz por conta do vento. — Acho que sim. Gosto
de livros, histórias. Acho que gostaria de fazer algo que envolvesse literatura para me
especializar, mas não gosto de me iludir com isso — ele faz uma pausa; uma pausa que me causa
certo incômodo no peito. Ouvir Ashton falar sobre o fato de querer fazer uma faculdade, mas não
poder por causa das circunstâncias da vida dói mais do que provavelmente deveria. — E você?
Já decidiu o que quer fazer?
— Não, mas meu pai com certeza vai tentar decidir por mim. Ele quer que eu curse
Medicina, como ele, por mais que eu nunca vá ter confiança em mim mesmo para cuidar de
outro ser humano. O problema é que ele nunca pagaria uma faculdade para mim se eu quisesse
cursar, sei lá, Gastronomia, sabe? E eu… Eu não sei o que eu quero. Isso é um pouco assustador,
por isso tento não pensar muito.
Penso ter escutado um riso.
— A gente paga, quando você descobrir o que quer.
Sorrio.
— A gente?
— Sim, a gente. Nós daremos um jeito. Sempre tem um jeito.
Assinto, com aquela sensação desconhecida no peito novamente. Consigo sentir o
cheiro de lavanda, mesmo com o capacete e tenho que lutar contra a vontade de não enterrar meu
rosto na sua nuca e procurar mais desse odor.
Deuses, o que esse garoto está fazendo comigo?
Depois de um tempo em silêncio, Ashton volta a falar:
— Só te avisando que você não vai tomar nada alcoólico.
— E você vai?
— Não. Vou tomar suco com você.
Depois de mais alguns minutos finalmente chegamos. Ashton estaciona no
estacionamento da discoteca. Não avisto nenhum dos seus amigos, por essa razão que, quando
ele tira o celular do bolso e começa a digitar, presumo que esteja contando a localização de onde
estamos.
— Você já veio aqui antes? — pergunto.
— Algumas vezes — responde, sem tirar o olhar da tela por um tempo. Quando ele
finalmente termina de fazer o que tinha para fazer, guarda o aparelho no bolso da calça outra vez,
olhando-me. — Ethan gosta muito daqui porque parece um lugar retirado de um filme dos anos
70. Ele adora esse tipo de coisa.
Acho um pouco inusitado Ethan gostar disso em específico. É fofo.
Ashton decide esperar do lado de fora, então continuamos conversando por mais um
tempo. Aquele frio agradável no meu ventre nunca me deixa e simplesmente adoro o fato de ele
estar me dando toda a sua atenção, como se bebesse cada uma das palavras que tenho para dizer.
Acho que nunca conheci alguém tão interessado em ouvir o que tenho a falar, por mais idiota que
possa parecer e essa percepção só faz o peso no meu coração aumentar mais ainda.
Quando eles finalmente chegam em um carro com uma música em um volume
ensurdecedor não consigo controlar a vontade de sorrir. Sinto que essa será uma daquelas noites
em que você se lembra antes de dormir: uma daquelas noites em que algo que jamais sairá da
mente acontece.
Zya é a primeira a me cumprimentar, dando-me dois beijos estalados na bochecha.
Ethan parece menos hostil do que da última vez, me oferecendo um toque de punhos. Poppy
também se aproxima, com um sorriso que quase rasga suas bochechas. O único que se recusa a
sequer olhar na minha direção é Oliver, que nem sequer aproxima-se.
— É muito bom te ver de novo, Evan — Zya diz, se pendurando nos meus ombros
conforme andamos em direção à entrada. — Não conta para ninguém, mas o Ashton estava
doidinho para te ver.
— Eu escutei isso, idiota — Ashton retruca, ainda de costas para nós; para minha sorte,
já que tenho certeza que todo o meu rosto começa a esquentar.
— E não discordou!
Ashton não se dá o trabalho de retrucar novamente e nem precisa porque, quando
passamos pelo segurança mal-humorado e entramos na discoteca, não consigo mais ouvir nada
além das músicas antigas que a minha mãe escutava quando ficávamos sozinhos em casa assando
bolo quando eu era criança.
A sensação de nostalgia me atinge como uma onda e não consigo parar de sorrir ao
olhar para o mar de gente pintada de roxa por conta das luzes coloridas no ambiente.
De um segundo para o outro Zya some, junto com Ethan, Poppy, Mackenzie e Oliver,
deixando-me sozinho com Ashton outra vez. Ele se mantém por perto, provavelmente para não
nos perdemos no meio daquela multidão e espero que meu rosto não entregue a imensidão de
sentimentos que sinto ao ver seu rosto colorido pelas luzes.
— Isso me lembra o dia em que te liguei sem querer — digo, usando isso como
desculpa para aproximar-me bem perto e falar no seu ouvido.
Sinto sua mão tocando meu ombro quando é a sua vez de se aproximar para dizer algo.
— Por que uma discoteca te lembraria daquele dia? São ambientes totalmente
diferentes.
Alguém esbarra em mim, me empurrando. Meu corpo bate no de Ashton e consigo me
estabilizar quando ele segura brevemente meus quadris, antes de se afastar como se eu tivesse lhe
queimado.
— Não sei. Acho que é porque penso muito naquele dia.
Consigo capturar o momento em que ele levanta uma sobrancelha.
— Por quê?
Sua pergunta me deixa nervoso. Como posso explicar a ele o porquê sem entregar
completamente a confusão de sentimentos que estou sentindo desde o dia em que ele entrou na
minha vida — e que, no entanto, só fui ter consciência deles depois de uma conversa com a
minha ex-namorada?
— Não… Não sei.
Ele vira-se na minha direção e observo o momento em que seus olhos percorrem todo o
meu rosto, parando por alguns segundos nos meus lábios. No entanto, antes que eu possa ter
certeza de que isso realmente aconteceu, Ashton desvia o olhar e a única coisa que posso
observar sem muita nitidez é a sombra que seus cílios fazem nas bochechas.
— Você sempre fica tão nervoso quando fala comigo — diz ele.
O choque que se alastra pelo meu corpo quase me faz dar um pulo para longe.
— Eu… — atrapalho-me com a minha própria língua, querendo sumir na multidão.
Aperto as pulseiras de couro com toda a força que tenho. — Eu não fico nervoso quando falo
com você.
— Não? — A entonação da sua voz parece tão… brincalhona que meu estômago dá um
giro tão severo que preciso dar outro passo para trás. — Viu?
Onde está Zya quando mais preciso dela?!
— Eu não fico nervoso, fico constrangido. Você está me constrangendo de propósito.
— Eu estou? — ele dá um passo na minha direção e de repente tenho a impressão de
que estamos tão próximos que mal consigo respirar. Seu pequeno sorriso some e, conforme
Ashton continua aproximando-se, menos sinto a vontade de recuar. — Evan-
— Ash! — A voz de Zya soa e nós nos afastamos em um pulo. Limpo a garganta,
apertando as pulseiras outra vez, pensando no que diabos quase acabou de acontecer. —
Consegui comprar uma Margarita! Você tem que provar.
Ele se vira para ela, encarando a bebida com tanto desgosto que sinto vontade de rir.
— Se quiser beber, não tem problema — digo, pensando que, talvez, Ashton esteja se
privando de aproveitar a noite por minha causa. — Eu chamo um táxi para ir embora-
A única coisa que ele me oferece é um daqueles seus olhares cortantes, calando-me no
mesmo segundo. Zya passa o braço pelos ombros dele, começando a arrastá-lo pela multidão
enquanto grita alguma coisa que não consigo entender por conta da música. Ashton agarra a gola
da minha camiseta e me fez caminhar ao seu lado, mantendo-me firme.
Zya nos conduz até uma área aberta, nos fundos da discoteca, que parece ser feita para
os fumantes. A música fica abafada quando nos aproximamos de um amontoado de arbustos e
local está tão cheio quanto o lado de dentro.
Avisto Mackenzie e parece ser na direção dele que Zya nos leva. Poppy e Oliver estão
ao lado de Mackenzie, cada um com um copo de plástico na mão.
— Onde está Ethan? — Zya pergunta quando nos aproximamos o suficiente para eles
ouvirem.
Poppy aponta com o queixo para aquele homem enorme que está conversando com uma
garota. Tenho que desviar o olhar, envergonhado quando o vejo ajeitar uma mecha do cabelo
dela.
— Já? A gente mal chegou!
Mackenzie dá de ombros.
— Você sabe como ele é.
Um silêncio recai sobre o grupo, de forma confortável. Zya se desprende de Ashton,
embora ele ainda não pareça nenhum pouco com vontade de soltar a minha camisa. Não digo
nada quando nossos olhos se encontram após eu verificar se seus dedos ainda apertam a barra na
minha roupa, sentindo que, de alguma forma muito idiota, Ashton está tentando me proteger com
isso.
— Você falou para ele do nosso show? — a voz de Mackenzie quebra o silêncio. Ele
olha diretamente para Ashton quando fala e o sinto endurecer ao meu lado. — A gente vai cantar
um cover do The Dig. Conhece?
— Já ouvi falar. Ashton me mandou uma música deles. Red Roses in the Cold Winter
Ground, né?
Os olhos de Mackenzie pareceram brilhar com essa informação — embora Ashton
pareça cada vez mais desconfortável ao meu lado.
— Se você aparecer, quem sabe esse carinha aqui não decide cantar com a gente de
novo? — diz Mackenzie, dando uma breve cutucada na cintura de Ashton.
Tenho a impressão, apenas de ouvi-lo falar, que essa banda No Name é muito
importante para Mackenzie. A forma que sua voz soa ao simplesmente falar sobre esse tal cover
parece tão apaixonada que quase sinto inveja. Gostaria de ter algum tipo de vocação a esse nível.
— Então é verdade que você já fez parte de uma banda? — dirijo minha pergunta para
Ashton. — Eu adoraria ver o cover de vocês, cara. Vocês devem tocar bem pra caralho.
O sorriso de Mackenzie parece com o de uma criança após ser elogiada por algo que
fez. Sinto-me contente por ser capaz de causar esse tipo de reação.
— A gente manda demais! Vou arranjar ingresso na primeira fila para você.
Arregalo os olhos.
— Vocês são tão famosos assim?
— Não. — A voz de Ashton quebra a atmosfera. Há algo de errado. — Ele só está
brincando. Você não precisa de ingresso para entrar. Nossa banda é uma merda.
— Ei, não fale assim. — Mackenzie se apressa em dizer.
— Nossa banda? — indago. — Então você quase foi um astro do rock mesmo.
O olhar que Ashton me oferece é acusador, com uma sobrancelha levantada. Ele tira a
mão da minha camisa, cruzando os braços.
— Eu fazia parte dela, mas larguei há alguns meses — responde. — Não estava indo a
lugar nenhum, só atrapalhava.
— Não atrapalha, não — Mackenzie defende a banda como uma mãe defendendo um
filho. — É você quem estava obcecado demais com aquela garota depois de tudo aquilo-
Ashton tira o olhar do chão e encara Mackenzie com aquele olhar mortífero que me faz
arrepiar. Ele parece a alguns segundos de estrangular o próprio amigo.
— O que tem de errado com você hoje? — Mackenzie pergunta, após Ashton bufar pela
segunda vez seguida.
— Nada. — É tudo o que Ashton nos oferece.
Observo a rápida interação que Mackenzie tem com Poppy, Zya e Oliver. Sinto que, de
alguma forma, eles todos conseguem se entender com apenas um olhar silencioso e é quase
engraçado ver isso acontecendo pessoalmente. Gosto do fato de que o vínculo entre todas essas
pessoas é tão forte ao ponto de nem uma única palavra ser necessariamente dita. E, quando Zya
balança a cabeça e desvia o olhar para a direção de Ashton, sei que eles tomaram uma decisão,
igualmente silenciosa.
— Vamos deixar vocês dois a sós — Zya é quem fala, balançando os ombros. — Vocês
deviam, sei lá, ir para algum lugar? Tenho a impressão de que esse astro do rock aqui não está se
divertindo muito — nesse instante, ela olha fixamente para Ashton, que devolve o olhar que me
passa a impressão de um aviso iminente.
— Até mais, E. — Poppy é quem diz antes de todos eles saírem, deixando-me para trás
com Ashton.
Ele me olha como se esperando por algo, tão paciente e, ainda assim, desesperado. Seus
olhos não conseguem parar em um único lugar do meu rosto, mas, como antes, eles sempre
parecem voltar para os meus lábios. Gosto da forma que ele me observa, provavelmente mais do
que deveria, então não consigo encontrar palavras e mantenho o silêncio. Porém, isso não parece
ser o que Ashton quer:
— Aonde você quer ir? — pergunta ele, começando a andar em direção ao mar de gente
outra vez.
Dou de ombros.
— Não sei. Qualquer lugar está bom.
O que quero dizer, nas entrelinhas, é que qualquer lugar com ele está mais do que bom.
Ashton continua andando, sem dar uma resposta. Ele se enfia no meio da multidão,
caçando a minha mão e a apertando, para não nos perdermos. Meu coração começa a bater
desenfreado outra vez e, quando penso que ele irá soltar a minha palma após termos saído da
discoteca, Ashton não o faz.
Na verdade, ele só me larga quando temos que subir na moto. E, como se pudesse ver
um ponto de interrogação estampado na minha cara, finalmente me oferece uma resposta:
— Você gosta de plantas exóticas, Evan?
— Eu nunca pensei muito sobre isso. — Quero dizer que gosto de lavanda, por mais que
não seja uma planta exótica. Quero dizer que gosto de lavanda por causa do seu cheiro. — Por
quê?
— Vamos ao Allan Gardens Conservatory.
***
Eu nunca me interessei muito por botânica, para falar a verdade. Nunca nem sequer
pensei muito sobre o assunto mas, quando Ashton estaciona a moto na frente do Allan Gardens
Conservatory, é impossível não suspirar com a visão da estufa.
Porém minha animação despenca no instante em que noto que tudo está apagado e
fechado. Não há uma única alma viva também.
— Está fechado — digo, como se não fosse óbvio.
Ashton desmonta da moto e me ajuda a fazer o mesmo, embora não seja realmente
necessário. Ele tira o capacete logo em seguida, o deixando embaixo do braço.
— E daí?
Quando percebo a entonação na sua voz, uma entonação de quem realmente não se
importa se o lugar em que ele quer entrar está fechado ou não, um arrepio congela minha coluna.
Desde o episódio com Jasper e sua terrível ideia de roubar cerveja na loja em que Ashton
trabalhava aconteceu, achei que nunca mais teria que passar por qualquer situação que implicasse
em uma ação ilegal.
No entanto, vendo Ashton aqui na minha frente, me olhando com apenas a luz da lua
iluminando seu rosto, noto que estou definitivamente na merda, porque sou atingido pela
percepção de que farei qualquer coisa que ele pedir.
— Ash…
Um pequeno sorriso cresce em seu rosto, fazendo suas bochechas inexplicavelmente
rosadas aumentarem. Não consigo nem sequer desviar o olhar.
— Não se preocupa, pirralho — diz, dando-me as costas. Levo um tempo até acordar
para a realidade e segui-lo, percebendo que ele caminha em direção ao fundo da construção. O
sigo, perguntando-me aonde ele está indo.
Quando somos barrados por um portão de ferro alto, porém aparentemente frágil, mal
tenho tempo para piscar quando Ashton começa a escalá-lo e em seguida pula do outro lado.
Faço o mesmo quando ele me chama. Posso sentir o cheiro das plantas, da umidade, da noite,
daqui.
— A história de Allan Gardens está ligada com a história da Toronto Horticultural
Society, fundada em 1834, que é o mesmo ano do nascimento de Toronto — diz, contando-me
esses fatos que se tornaram mais uma das coisas que adoro nele.
Ashton parece saber o efeito calmante que suas palavras têm em mim: o simples fato de
escutá-lo consegue me acalmar do secreto medo de ser pego fazendo o que não deveria.
Caminhamos — lentamente e meio curvados — por um corredor de plantas em vasos enormes
que têm flechas vermelhas sinalizando o caminho. Um caminhão branco está estacionado na área
cercada por pequenas grades que conduzem até a entrada de uma das três estufas e meus olhos
paranoicos pensam ter visto a silhueta de alguém, mas, como Ashton continua a trajetória sem se
importar, decido que não é nada a se preocupar. Por enquanto.
Meu coração começa a batucar nas costelas por conta da adrenalina e me pego
observando sua nuca quando ele para na frente de uma das portas, começando a —suponho —
mexer no trinco. Ashton parece propositalmente manter-se à minha frente, como não querendo
que eu veja o que ele faz
— A história de Allan Gardens tem alguma ligação com George William Allan, décimo
primeiro prefeito de Toronto de 1854 a 1856 — ele continua. Então um click estala no ar, mas
não consigo me forçar a me importar porque Ashton olha para os dois lados antes de virar para
mim e sorrir de forma tão convencida que não consigo fazer nada além de sorrir de volta,
empurrando a porta agora destrancada.
— Seu merdinha. — As palavras escapam da minha boca. — Como você aprendeu a
fazer isso?
— Eu era uma criança muito, muito perversa.
Dessa vez — esquecendo completamente do fato de estarmos invadindo uma estufa —
uma gargalhada me escapa. Ashton reage rápido e tampa meus lábios com sua palma, olhando ao
redor, em alerta. Ele mal parece notar o que está fazendo, ou talvez não se importe, porque
mantém a palma quente contra a minha mão até lentamente começar a virar-se para mim.
— Embora eu goste muito da sua risada, garoto, tente controlar ela por enquanto para
não sermos presos.
E, com isso, ele vira e caminha lentamente entre as plantas. O cheiro de terra e umidade
fica mais forte e provavelmente nunca na vida vi tantos tipos de plantas e flores. Algumas estão
penduradas no teto, algumas são espinhentas, umas não têm um único broto de flor e outras são
completamente cercadas por pétalas e cores. É um mar de verde, de cheiros, de sinestesia. E, em
meio a tudo isso, a minha cor favorita é o tom dourado como o Sol quente que compõe os fios de
Ashton.
— Está nervoso? — ele pergunta, ainda de costas, quebrando o silêncio.
Encaro sua nuca.
— Um pouco.
— Por causa de mim ou pelo que estamos fazendo? — diz, virando-se levemente para
mim. Seu rosto está sereno, embora pareça um pouco sério por conta da pouca luz. Me permito
observar seu rosto, enquanto ele me observa de volta, sem medo dessa vez. Gosto da forma que
seus olhos deslizam, novamente, para os meus lábios quando sorrio. Gosto da forma como ele
lambe os próprios lábios, como se estivesse pensando em…
Beijar-me.
— Pelos dois, provavelmente — respondo. — Mas mais por você.
Ashton finalmente sorri, mas, diferente de antes, há algo nessa expressão que quase me
assusta: é um sorriso beirando o maníaco, de forma que eu nunca vi nele antes. A surpresa me
faz recuar um passo, mas Ashton parece notar, o que faz um peso de culpa ocupar-se do meu
coração. Ele anda na minha direção, parando frente a frente comigo, entortando a cabeça para o
lado direito.
— Eu te deixo nervoso? — Suas mãos tocam as minhas, serpenteando lentamente pelos
meus pulsos tão lentamente que não consigo segurar o suspiro que escapa dos meus lábios
quando Ashton aperta meu antebraço, sem tirar os olhos de mim. — Ah, Evan. Nós dois
poderíamos conquistar Toronto juntos. O Canadá inteiro. O mundo todo — sussurra.
Suas palavras parecem fazer cócegas no meu interior, causando uma necessidade de tê-
lo embaixo das minhas palmas também.
Faço o que meu instinto manda e ergo as mãos para tocar levemente na sua cintura, de
forma tão delicada que só sei que Ashton nota minha ação — mesmo sem tirar os olhos de mim
— pelo pequeno suspiro exasperado que sai dos seus lábios.
O som repentino de uma música do lado de fora da estufa — provavelmente por conta
de algum carro passando pela rua — me assusta, mas não o suficiente para me afastar dele. Na
verdade, o clima entre nós parece se tornar ainda mais denso e minhas mãos começam a tremer
de antecipação. Olho para seu rosto sentindo a sensação explosiva no peito novamente, quase
como se eu soubesse que algo está prestes a acontecer, como se eu quem tivesse que dar o último
passo e que ele só está esperando.
Ashton está esperando.
Por um beijo? Pouco provável.
— Pare de pensar tanto — sussurra ele, tão baixo que penso ter imaginado suas palavras
por um segundo. Ashton permite que suas mãos continuem subindo e encontrem naturalmente
seus lugares em meus ombros. — Seu coração sabe o que quer. Por que lutar contra ele?
O mundo parece sumir dos meus pés. E meu coração, como se ele próprio estivesse
completamente apaixonado por Ashton, o responde com batidas agressivas. Mal consigo respirar.
— Porque…
— Não faça como eu, Evan — sua voz fica repentinamente melancólica. — Não perca
tempo pensando demais nas consequências. Quando você notar, vai ser tarde demais. E você vai
se arrepender para sempre.
Há algo escondido nas suas palavras, algo que engatilha a minha memória e me faz
lembrar do Tanakh, das quartas-feiras em que ele some, de toda a incógnita envolvendo os
remédios. Seus olhos azuis voltam para mim, mas, subitamente, não há nada de flerte neles,
como minutos atrás. Eles estão desfocados, desviando de lugar a todo instante e, quando ele sai
daquela redoma que havia se formado entre nós, sinto frio, mesmo que seja verão.
— Não deixe que ninguém tome algo que ama de você.
Uma bola de chumbo parece despencar no meu estômago.
— Do que você está falando? Você está bem?
Ele continua em silêncio, dando cada vez mais passos para trás. Há algo de errado.
— Ash?
— Sim.
Assinto, de repente nostálgico do momento quente que aconteceu há segundos. Só tenho
um pequeno instante antes que Ashton vire os calcanhares, parando quando nota que o estou
seguindo.
— Evan. Me deixe um pouco sozinho. Por favor. Eu já volto.
E, com isso, Ashton some para dentro da estufa, deixando-me paralisado e sem saber o
que fazer com as minhas próprias mãos, que formigam de saudades da sua pele macia.

Ashton só aparece quando mando uma mensagem para ele, avisando que, talvez, esteja
ficando tarde demais. E, quando o vejo depois do que pareceu uma infinidade — mas que, na
verdade, foram apenas quinze minutos — seus olhos estão inchados e vermelhos. Sinto que
deveria perguntar o que aconteceu, como ele está se sentindo. Sinto que deveria fazer alguma
coisa, mostrar que me importo, mas a forma que ele recusa a minha preocupação me faz hesitar e
deixar o assunto momentaneamente de lado.
— Vamos indo — diz ele, entre uma fungada e outra. Não me olha, parecendo me
evitar. — Não quero que você chegue tarde demais e- — então, apalpando os bolsos, parece se
dar conta de algo. — Merda, deixei meu celular lá. Espere aqui.
Nem sequer tenho tempo para falar nada antes que ele se vire e entre na estufa com
pressa, sumindo em meio às plantas, me deixando sozinho mais uma vez. Aperto as minhas
pulseiras quando a única coisa que escuto é o som momentâneo dos grilos ou da folhagem das
árvores se movendo, repentinamente hipersensível ao mundo ao meu redor.
Então sinto uma sensação estranha. Aquele tipo de sensação de quando alguém te
observa de longe, escondido em uma multidão, mas de forma tão obsessiva que é impossível não
sentir um calafrio por todo o corpo. Olho para trás, pensando que, talvez, seja apenas Ashton,
mas não há sequer uma sombra dele.
— Ashton? — chamo seu nome, mas a minha voz parece tão solitária no silêncio que
não tento outra vez.
E tudo acontece muito rápido.
A sombra que deveria ser apenas uma sombra começa a se mover, vindo na minha
direção. A silhueta grande e humana demais me paralisa e quando percebo, a pessoa está
próxima demais para eu sequer poder tentar correr.
Parece ser um homem, alto — mais alto do que o comum —, vestindo preto dos pés à
cabeça, escondendo, inclusive, metade do seu rosto com uma máscara. Por um instante, tenho
certeza de que vou ser roubado, que vou perder meu celular e a nota de um dólar que guardo
como sorte há quatro anos na carteira, mas então o homem para na minha frente, respirando
pesado, como um touro e há algo familiar em seus olhos escuros.
Abro a boca, para perguntar o que ele está fazendo, mas então o homem pega a minha
palma. Tento me afastar de seu toque, ainda paralisado demais para me afastar de verdade, até
que algo leve caí em cima da minha pele. O homem fecha meus dedos em volta do que parece
ser um pedaço de papel e me olha uma última vez. E é nesse momento que tenho certeza de que
eles não me são estranhos, mas não consigo lembrar de onde os vi antes.
Como se esse fosse seu único objetivo, o homem mascarado se vira e encontra seu
próprio caminho, sumindo na sombra das árvores até que não consigo mais sentir sua presença
ou seus olhos assustadoramente familiares.
Só volto a me mexer quando sinto um toque no meu ombro, afastando-me bruscamente.
— Não toque em mim!
— Evan- — O rosto de Ashton aparece na minha frente e sua expressão preocupada me
faz cair de volta na realidade. Meu peito desce e sobe freneticamente. Quando parece notar a
minha brusquidão, Ashton prende minhas bochechas em suas palmas quentes, fazendo-me olhá-
lo. — Respire pelo nariz. Me imite. Assim — ele começa a inspirar profundamente, antes de
soltar, devagar. O imito, até que, depois da quinta vez, consigo começar a me acalmar. — O que
aconteceu?
Empurro o bilhete para ele, limpando o suor das minhas mãos na barra da calça.
— Um cara apareceu e me entregou isso antes de ir embora. Sem dizer nada.
O vinco que se forma entre as sobrancelhas de Ashton é quase assustador, mas de uma
forma protetora.
— Você leu? — pergunta, desdobrando o pequeno papel. Seu rosto perde a cor quando
seus olhos deslizam pelas palavras. Ele amassa o papel, apertando o maxilar de forma que o
músculo saltava naquela região. — Você leu?
— Não. O que está escrito?
— Não é nada. Não…— Ashton parece lutar consigo mesmo para continuar a frase
antes de me devolver o bilhete.
“Vejo que encontrou outro garoto bonito para substituí-lo.”
Agridoce

— M — Randallinhadiz,mãeestacionando
queria te conhecer, mas achei que não seria uma boa ideia
na frente do prédio em que ele mora.
Aceitei visitá-lo porque Mia, minha cunhada, me mandou mensagem dizendo que estava
com saudades. Ainda não entendo como alguém tão bacana quanto ela acabou casando com meu
irmão, mas talvez o amor realmente seja cego. E, por sorte, ela compensa o quão irritante ele
pode ser.
Quando vi Mia pela primeira vez, foi quando meus pais me forçaram a ir na casa do
meu irmão — como agora. Nunca gostei muito de visitá-lo e a razão tinha nome e sobrenome:
Terry Shiravari. Meu pai, antes de se casar com a minha mãe, envolveu-se com a mãe de
Randall, que acabou engravidando. O problema é que eu só fui descobrir que tinha um irmão
muitos anos depois do que deveria ser considerado o normal e, por essa razão, pensei que meu
pai havia traído minha mãe com a de Randall — embora ele tenha feito isso com outras
mulheres. Ninguém me explicou exatamente o que havia acontecido até meus dezesseis anos.
Por essa razão, nem sequer meu primeiro encontro com Randall foi bom e, ao decorrer
do tempo, conforme meu pai demonstrava uma clara preferência por ele, muitos sentimentos
foram se acumulando no meu interior até chegarem aonde estão hoje.
Com Randall, meu pai costuma chamá-lo por apelidos que o fazem parecer muito mais
importante do que eu considere que seja. Randall trabalha como principal gerente em uma
empresa que nem sequer me dou o trabalho de recordar. Essa empresa em questão parece agradar
muito as expectativas do meu pai então, com isso, ele subiu no nível de importância do meu pai.
Isso foi há alguns anos, quando Randall nos visitava com mais frequência. Quando ele
disse que havia sido promovido, meu pai quase saltou da cadeira. Minha mãe se comoveu com a
notícia e lhe parabenizou de um jeito tão maternal que a ignorei por uma semana depois disso,
tão enciumado que quase engasguei no meu próprio veneno.
Porém… Sempre há um porém.
Depois de algum tempo, Randall começou a aparecer menos. Ele e meu pai, embora
ainda mantenham um relacionamento próximo e talvez até carinhoso, se distanciaram de uma
forma que apenas uma pessoa obcecada por cada passo de Randall — como eu — seria capaz de
notar. É como se uma muralha de ferro, — contudo de alguma forma transparente — fosse
colocada entre eles. E, embora notar isso tenha agradado uma parte egoísta de mim, é impossível
não me perguntar frequentemente o que aconteceu.
Primeiro achei que poderia ser algo a ver com a mãe de Randall. Ela não parece gostar
muito do meu pai e, honestamente, nem a culpo por isso. Quando ela engravidou, Terry a
abandonou do jeito mais filha da puta do mundo, deixando-a sozinha no mundo. E — quando ela
apareceu em nossas vidas com outro bebê, implorando para que meu pai ajudasse com o mínimo
— Terry apenas fez o que lhe foi pedido e a deu apenas o mínimo. Nada mais.
Mas, depois de algumas semanas, comecei a esperançosamente criar outra teoria: talvez
Randall tenha descoberto o que Terry fazia comigo quando se irritava demais e decidido que não
concordava com isso. Foi nessa época que precisei admitir a mim mesmo que sentia algo além de
ódio por meu irmão, embora tenha parecido que eu havia engolido uma bola de fogo. Porém, se
meu irmão realmente se importasse, por que não tomava uma atitude verdadeira? Assim, acabei
descartando essa teoria.
Então cheguei a minha mais nova teoria: houve um desentendimento. Algo que criou
uma fissura entre eles, algo eterno, porém que nenhum dos dois admitiria porque pensam ser
homens sérios demais para qualquer coisa envolvendo sentimentos.
Sempre soube que meu pai investiu muito dinheiro em Randall, talvez para se redimir
por tê-lo abandonado quando era mais novo. Quando Randall, sua mãe e seu irmão — ou será
irmã? Depois de certo tempo, nunca mais vi — apareceram na nossa porta pela primeira vez,
descobri, pouco tempo depois, que meu pai havia se oferecido para pagar a faculdade do seu
filho primogênito. Então, mais tarde, o ajudou a procurar o apartamento dos sonhos e, ainda mais
tarde, a pagar seu casamento, quase como se sentisse uma culpa eterna envolvendo Randall.
E, por essa razão, minha terceira hipótese parece a mais certeira. E se Randall estiver
devendo dinheiro ao meu pai? Nós nunca passamos necessidade, e vivemos, graças ao título de
médico do meu pai, uma vida confortável em um bairro consideravelmente privilegiado de
Toronto. Mas, ainda assim, conheço meu pai melhor do que ninguém: ele é o ser humano mais
mesquinho, egoísta e quase narcisista da Terra. Dever dinheiro a ele é pior do que dever a
própria alma ao diabo.
E meu pai sempre precisa de dinheiro para continuar a fazer seja lá o que raios ele faz
naquele porão e a sua maldita pesquisa envolvendo ratos.
Com esses pensamentos entro na casa de Randall, sem prestar atenção no caminho.
Passo por meu irmão, tirando a jaqueta jeans dos ombros. O apartamento não é gigante,
mas também não é pequeno. Há um lustre no meio da sala, uma enorme TV e um sofá cor de
creme. Exala riqueza, mas de um jeito discreto, como se Randall tivesse medo de ofender quem
tem menos dinheiro do que ele.
Como não vejo Mia, não me forço a sorrir, saindo de perto de Randall. Há algo em
especial que eu gosto no apartamento: a vista. De lá, é possível ver a CN Tower perfeitamente,
com toda a sua glória e espírito canadense.
Tiro o celular do bolso, mandando uma foto do gigantesco prédio para Ashton.
Eu: Adivinha onde me forçaram a vir? :p
Antes que eu possa esperar por uma resposta de Ash, Randall aparece ao meu lado, com
as mãos no bolso. Guardo o celular antes que ele se sinta confortável o suficiente para perguntar
com quem estou conversando.
—The Six — diz, soltando uma risada cheio de orgulho. The Six é um dos apelidos de
Toronto, assim como Big Apple é um dos apelidos de Nova York. — Você gosta dessa vista, não
gosta?
Balanço a cabeça em concordância, sentindo seus olhos em mim.
— Você deveria vir mais vezes aqui, então. Temos dois quartos vazios. Um deles pode
ser seu, se quiser.
— Não precisa — respondo, usando o tom de voz que costumo usar com Randall. Odeio
o sentimento de infantilidade que me enche e de um segundo para o outro, só quero que essa
conversa acabe para poder voltarmos a ficar em silêncio. — Já tenho um quarto.
— Eu sei que você já tem um quarto. É só que- — Randall se interrompe, como se
percebendo que não vale a pena insistir no assunto. Quase sinto culpa no fundo do meu estômago
e preciso controlar a vontade de pedir para que continue pPara que me peça para vir morar aqui
mais uma única vez e que eu virei; porque, no fundo, sair da casa em que meu pai mora parece
uma ideia muito agradável, mas seria injusto com Randall, já que eu nunca o tratei bem. Não de
verdade. — Deixe para lá. Mia logo irá aparecer. Espero que você esteja com fome.”
Quase me sinto envergonhado quando o vejo sair do meu lado e sumir dentro de um dos
quartos.
Mia aparece na sala após um tempo, com o cabelo preto feito azeviche preso em um
coque que puxa a pele do seu rosto. Ela sorri para mim e me abraça como se fosse a primeira
vez. Fico tão feliz com a sua chegada que sinto vontade de tagarelar sobre tudo o que aconteceu
nesses últimos dias, porque, de alguma forma, ela é muito mais minha irmã do que Randall.
Quando a vi pela primeira vez, no casamento, achei que a odiaria, afinal, quão maluca
tinha que ser a mulher que decidiu se casar com meu irmão? Eu tinha cerca de quatorze anos na
época, e estava naqueles dias em que tentava fingir que odiava tudo e todos — embora, em
relação à família do meu pai, esse sentimento não tenha sido nem um pouco fingido — então não
foi difícil mirar aquele olhar sério de um adolescente que se acha adulto em direção a Mia.
Ela foi a primeira adulta que não se importou com a minha arrogância jovial e, ao invés
de me ignorar como a maioria faz, sorriu para mim de um jeito que desarmou todo o muro que eu
havia decidido construir em volta de mim quando recebemos o convite do casamento.
Quando toda aquela baboseira cerimonial acabou e os adultos começaram a encher a
cara, me deixando esquecido em uma mesa enquanto as luzes escuras dificultavam a minha visão
ao ponto de não saber mais onde meus pais estavam, alguém sentou-se ao meu lado, me forçando
a tirar os fones de ouvido que estavam conectados no MP3, ouvindo Complicated, da Avril
Lavigne — embora eu nunca vá admitir isso na vida.
— Evan, não é? — ela disse naquele dia, sorrindo para mim em seu vestido branco. Mia
era linda e meu irmão tinha muita, muita sorte mesmo de ter se casado com ela. Por sorte, ele
nunca vai fazer o que nosso pai fez com as nossas mães. — Acho que somos cunhados agora,
não é?
Dei de ombros, desinteressado no que ela tinha a dizer.
— Acho que sim.
— Bom, podemos ser amigos, além de cunhados. O que você acha?
— Não sei — respondi, honestamente. — Você é esposa do meu meio-irmão. Nem ele é
meu amigo, como vou ser seu amigo?
Mia pareceu pensar no que responder e, nesse meio tempo, perguntei-me
silenciosamente por que ela estava perdendo tempo comigo justo na sua festa de casamento.
Nem sequer minha mãe, que provavelmente era quem mais se importava comigo no mundo,
estava ligando para mim naquele dia. A verdade é que, nas festas, eu estava acostumado a ser
deixado de lado. Era novo demais para a maioria das pessoas e velho demais para correr pelo
salão com as outras crianças. Normalmente, eu ficaria conversando com a minha mãe, mas
quando ela bebia, não havia como trocar sequer duas palavras com ela. Ficava insuportável de
um jeito que eu detestava me aproximar.
— Sabe, eu tinha uma relação complicada com a minha irmã também — para minha
surpresa, Mia continuou. — No fim, eu descobri que ela só estava passando por muitas coisas.
Coisas que eu nem sequer imaginava.
A risada que escapou dos meus lábios foi ácida.
— Está protegendo seu marido.
Porém, sua resposta séria demais me calou:
— Não — disse. — Só não quero que você se arrependa quando for tarde demais. Essa
é uma amargura que nunca sai da sua vida.
Foi como se ela tivesse jogado água na minha barreira feita de papel. Não consegui
controlar a pergunta que surgiu na minha mente:
— Por quê? O que aconteceu com ela?
— Bianca, minha irmã, teve uma overdose. Ela morreu. Eu nunca tive a chance de dizer
que a amava, porque só fui notar isso depois que não a tinha mais comigo.
Embora eu quisesse ter continuado aquela conversa, Randall a chamou para uma dança.
Mia levantou-se, despedindo-se de mim com um sorriso tão doce que, depois daquele momento,
decidi que gostava dela.
E ainda gosto dela, mesmo depois de tanto tempo.
Suas palavras são o principal motivo do porquê eu tento, às vezes, ser civilizado com
meu irmão. Embora eu não possa dizer que consigo controlar essa vontade maluca dentro de
mim de gritar para meu irmão como eu gostaria de ser amado pelo meu pai como ele é, são as
palavras de Mia que me contém, muito mais do que as ameaças camufladas de Terry.
— Como andam as coisas, Evan? — Mia pergunta quando nos sentamos na mesa juntos,
enquanto Randall ainda não voltou. Ela fez feito macarrão com molho branco, minha comida
favorita da vida. — Fez algum amigo?
Às vezes, me assusto com o sexto sentido de Mia. É quase maternal, de um jeito
assustador.
— Conheci um garoto novo nesses últimos dias. Ashton, o nome dele. Ele é… — limpo
a garganta quando percebo que estava prestes a começar uma explosão de elogios. Ashton é
lindo, é inteligente, é mal-humorado, mas é isso o que torna cada risada que ele deixa escapar
mais especial. Ashton é incrível e é tão interessante que parece um sonho… Dourado. Não digo
nada disso. — Ele é legal.
Mas seus olhos, mais uma vez, parecem conseguir ver através de mim.
— Ele é legal? — ela solta uma pequena risada que faz meu rosto esquentar. —
Interessante.
— Podemos falar sobre outra coisa? Acho que eu…— não preciso terminar a frase
porque Randall surge do quarto, vestindo algo bem mais confortável, embora ainda seja
apropriado.
Com a chegada do marido, Mia se serve e em seguida, Randall faz o mesmo. Quando
chega a minha vez, meu celular vibra no meu bolso e minha ansiedade vence meu autocontrole
de não verificar se não foi… Bem, Ashton.
Ash: Você tá na casa do seu irmão??
Ash: Me passa o endereço.
Sorrio para o aparelho, sentindo um dèjá vú agradável, lembrando da vez em que fomos
à formatura dele.
Eu: Passa pela Chinatown e vem na rua 196 Wellington. Fica perto da CN.
Eu: Tô jantando. Se você for vir aqui, espera um pouco.
Ashton responde alguns segundos depois:
Ashton: Quem disse que eu quero te ver?
Ashton: Eu tô indo roubar esse seu irmão rico
Ashton: Valeu pelo endereço
Ashton: Idiota.
— Com quem está falando? — Randall pergunta, com macarrão na boca. — Está
vermelho.
— Deixe ele, Randall — Mia aparece em minha defesa e sinto raiva. É bobo, mas às
vezes acho terrivelmente irritante quanto tentam, a todo instante, me proteger de qualquer
pergunta. Seja Charlie, que tomava a frente por mim em uma quantidade assustadora de vezes;
seja Max, ou Mia. Entendo a motivação altruísta, mas não consigo perder a sensação de que me
veem incapaz de lidar com qualquer situação estressante. E, bom, talvez eu os tenha dado muitos
motivos para acreditar nisso. — Não ligue para seu irmão, Evan.
Depois que terminamos de comer, Mia pergunta se eu não gostaria de passar a noite
aqui e eu gentilmente tento recusar, mas quando ela me encara com aqueles olhos enormes de
cachorrinho, não consigo recusar por muito tempo. E, quando eles vão deitar — depois de Mia
deixar o quarto de hóspedes pronto para mim — os aviso:
— Um amigo meu está passando aqui por perto e me chamou para irmos à uma…—
Nem sequer sei como terminar essa mentira. — Feira noturna. Comprar geleias. Ultimamente
ando sentindo muita vontade de comer geleia, sabe? E ele… Ele me chamou para ir e, mesmo
que meu pai tenha me colocado de castigo, realmente queria vê-lo então…
— Evan — para minha surpresa é Randall quem me responde primeiro. — Relaxa, está
tudo bem. Não vou contar nada ao Terry — então ele anda até uma mesinha de canto, abre a
gaveta e joga uma pequena chave para mim. — A chave reserva para você entrar mais tarde.
Quando chegar dê um grito para sabermos que é você, a menos que queira levar uma panelada na
cabeça.
Pela primeira vez em muito, muito tempo, me permito sorrir para ele, sentindo algo
além de amargura. Os ombros de Randall relaxam e ele me devolve outro sorriso, mostrando-me
todos os dentes.
Reparo que, talvez, se eu conseguir colocar todos os anos de ressentimento sobre ele,
por conta do meu pai, nós consigamos ter uma boa relação.
Eu: Sei que disse que não quer me ver, mas só para a sua informação, estou descendo
o prédio nesse instante e vou ficar lá embaixo por uns vinte minutos, só esperando para ver se
um loiro mal-humorado aparece.
Ashton: Ainda bem que eu sou um loiro bem-humorado.

Quando eu namorava Hazel, embora tenha verdadeiramente gostado dela, sempre tive o
pensamento de: “Isso não é para sempre. Um dia, logo, provavelmente, acabará”. E tenho
certeza de que, ao se entrar em um relacionamento, não se deveria pensar essas coisas.
Com todas as pessoas que namorei, sempre soube que acabaria. Nunca consegui ver um
futuro distante entre nós e talvez tenha sido muito egoísta da minha parte me envolver com
alguém mesmo sabendo que não havia um futuro sólido. Mesmo com Hazel, nos melhores dos
dias, após termos passado a tarde inteira rindo juntos, quando eu colocava a cabeça no
travesseiro e fechava os olhos para dormir, esses pensamentos invadiam minha mente.
Porém — e é muito assustador que eu tenha finalmente encontrado um porém —
quando vejo Ashton aproximando-se a distância, com as mãos no bolso da jaqueta e olhando
apenas para mim, percebo que, se entrássemos em um relacionamento, eu faria de tudo para ver
nosso futuro; faria de tudo para construir um futuro com ele, um futuro bom, aconchegante, onde
nós dois encontraríamos sossego na companhia um do outro e no qual ele poderia finalmente
compartilhar suas dores comigo, permitindo-me conhecê-lo melhor.
E isso é assustador, porque, droga, meus sentimentos em relação a ele são mais fortes do
que qualquer coisa que eu já senti antes e nós nem sequer nos beijamos ainda.
Quando reparo que Ashton está na minha frente, uma onda de náusea me invade, como
se eu tivesse sido teletransportado do futuro para o presente rápido demais. Solto um gemido
frustrado.
Então noto algo: Ashton não cheira a lavanda, ele cheira a leite.
Meu corpo inteiro se encolhe em uma sensação pavorosa que reconheço como um
sintoma de ciúmes. Automaticamente, lembro-me de que hoje é quarta-feira e que, nas quartas,
ele visita Ith-seja-lá-o-que e seu bebê.
Alguns dias atrás ele acabou comentando sobre ela para mim. Disse que ela era alguém
que precisa de ajuda e uma parte — a parte particularmente bondosa — aqueceu-se de orgulho
por Ashton se encarregar de oferecer essa ajuda. Ele disse que ela tinha um bebê e nenhuma rede
de apoio e, inevitavelmente, pensei em Randall e sua mãe e, como consequência, me enchi mais
ainda de orgulho. Contudo, ainda há uma parte — a que eu tento afundar o mais profundo dentro
de mim — que sentiu uma amargura indecente no fim da língua ao ouvi-lo falar sobre ela.
Talvez tenha sido por isso que, sem querer, torci a boca ao cheiro evidente de leite vindo
dele, o que o fez franzir as sobrancelhas.
— O que foi, pirralho?
— Nada. — Dou de ombros, pensando em um assunto, porque sei que ele não me
deixará em paz se lhe der tempo para refletir sobre o que acabei de fazer. — Aonde vamos?
Depois de me observar por alguns segundos em silêncio, Ashton parece desistir do
tópico e se aproxima, puxando-me pelo ombro. Ele coloca o braço em volta da minha cintura,
forçando-me a caminhar. Meu corpo inteiro parece soltar fogos de artifícios com o seu toque.
— Vamos a um mirante particular.
Nós serpenteamos pelo centro de Toronto até chegarmos à estação de metrô. Em
nenhum momento Ashton soltou a minha cintura e aquele sentimento de pertencimento me
invade com tanta força que tomo coragem de passar meu braço por seus ombros. Ficamos assim
até descermos em outra estação e, em certo ponto, percebo que não faço ideia de onde Ashton
está nos levando mas que, mesmo assim, continuo a segui-lo.
Quando paramos em frente a um prédio aparentemente abandonado, Ashton finalmente
larga a minha cintura.
— Descobri esse prédio há muito tempo, quando morava na rua ainda — explica,
adentrando mais a fundo na construção. — Pelo que parece, era para ser um prédio residencial,
mas a prefeitura nunca continuou com o projeto porque era caro demais e ninguém parecia
realmente interessado.
— Tem certeza de que não é porque descobriram, tarde demais, que havia sido
construído em cima de um antigo cemitério?
Ashton vira para mim com um sorriso tão caloroso que preciso me apoiar em uma das
paredes antes de continuar a segui-lo.
Ele continua andando até às escadas e então sobe incontáveis degraus até chegar ao que
parece ser o terraço. Não há grades nas bordas e o chão tem uma aparência meio suspeita,
pichado em todos os cantos possíveis, mas, quando ele se aproxima da aresta, as luzes da cidade
que brilham em seu rosto são tão convidativas que não consigo impedir meus pés de me
mexerem para mais perto.
— Sempre fui muito fascinado por mitologia grega — começa, conforme senta-se na
beirada da construção. Meu peito erra uma batida com o repentino sinal de perigo na minha
mente e sento-me ao seu lado, próximo o suficiente para nossos joelhos se tocarem… ou para
agarrá-lo, caso ele deslize. — Gosto muito da Ilíada. Minha vida mudou depois que li essa
epopeia.
— Por quê?
Seu rosto continua olhando a vista deslumbrante de Toronto à noite.
— Não sei. Tem algo na forma que Homero escreveu sobre Aquiles que me encantou.
Foi como se a minha vida tivesse finalmente começado e uma coisa nunca saiu da minha cabeça
— agora, vira-se para mim. — ,Acho que tenho ambições mais fortes do que imaginei. Por muito
tempo, só me preocupei em sobreviver. Não havia nada de filosófico nisso, mas, quando Fraser
apareceu na minha vida, percebi que tinha sonhos. Não apenas instinto, que me movia a acordar
todo dia para continuar sobrevivendo, mas sonhos de verdade. E foi um alívio tão grande quando
notei que queria me envolver com algo sobre arte que pareceu que eu tinha renascido.
Sorrio para sua voz apaixonada. Aquela chama quente dentro de mim, uma chama que
Ashton havia acendido e que está mantendo acesa, brilha com mais força.
— Gosto de gente assim. Ambiciosa.
Seus olhos não desgrudam dos meus.
— Sabe o que mais gostei no Aquiles?
Rio.
— O quê?
— Sua devoção pelo Pátroclo. Em O Banquete, livro do Platão, Fedro, um dos seus
personagens, diz que não fazia sentido Aquiles ser o amante e Pátroclo, o amado, já que Aquiles
era mais viril, mais moço, mais bonito em um geral. — Percebo a forma discreta que ele começa
a se mover em minha direção, mas finjo não notar. Meu coração pula como uma pipoca. — Mas
que era o amante quem era mais abençoado, porque era nele que o deus do amor, Eros, estava.
— Nunca parei para pensar nisso — sussurro, temendo que qualquer som alto demais
estrague o momento, prendendo a respiração quando os olhos de Ashton desviam dos meus e
vibram em cima dos meus lábios.
— O deus do amor já se apossou de mim duas vezes — continua. — A primeira vez
achei que finalmente tinha encontrado o Pátroclo, já que, para mim, eles seriam o nirvana da
definição dos relacionamentos. Mas eu estava enganado.
Sua mão aperta a minha coxa e um suspiro exasperado escapa dos meus lábios. Ashton
abre a boca mas nenhum som sai dela a não ser uma breve lamúria.
— E a segunda vez?
— Foi quando encontrei um garoto no colégio, antes que ele sequer prestasse atenção
em mim — responde, virando o rosto levemente para o lado, quase que o encaixando
perfeitamente em relação ao meu. Em poucos segundos, se ele continuar a se aproximar,
finalmente o beijaria. Finalmente saberia qual seria seu gosto, sua textura. Finalmente
experimentaria a sinestesia do seu corpo. — Ele sempre andou pelos corredores como se fosse o
dono do mundo, rodeado de gente. Todo mundo gostava dele. Como ele gostaria de mim?
Parece uma pergunta retórica, mas respondo mesmo assim:
— Quem não gostaria de você?
— Não sei. Você acha que ele gosta?
Passo a língua pelos lábios, sentindo um arrepio no ventre quando Ashton desvia o olhar
para eles mais uma vez.
— Se eu fosse ele, diria que sim. Ele gosta muito de você.
Não preciso dizer mais nada. Os lábios de Ashton se chocam com os meus e, meu Deus,
é muito melhor do que imaginei.
São redondos e macios como um par de abelhas, tão doce quanto mel. Quando abro a
boca, lhe dando espaço para fazer o que quiser, sinto sua língua molhada encontrando a minha, o
que causa outra onda de arrepios que me faz soltar um som atrevido e ao mesmo tempo agarrar
os fios curtos da sua nuca, puxando-o ainda mais para mim.
Mal consigo respirar, mal consigo entender completamente o que está acontecendo, mas
sei que nunca irei experimentar esse tipo de prazer outra vez. Ter os lábios de Ashton nos meus,
ter suas mãos me agarrando com tanto ardor, como se eu fosse a única coisa que ele precisa no
mundo, me faz ter certeza de que não queria estar em nenhum outro lugar, com nenhuma outra
pessoa. Quero viver essa vida, essa vida de merda que sempre se volta contra mim, caso isso
signifique que acabarei embaixo das palmas de Ashton, conforme ele prende minhas bochechas
com tanto cuidado que me atrevo a não pensar nas consequências e mordo seu lábio inferior,
extasiado com o som que escapa dele.
— Evan…— meu nome escapa entre seus lábios e ele soa tão apaixonado que não
consigo pensar em mais nada além da forma como ele diz meu nome. Evan, Evan, Evan. Soa tão
apaixonado que me sinto derreter. — Evan.
— Ash.
— O garoto que estava falando era você — sussurra Ashton, entre um beijo e outro.
Quando percebo que está tentando falar, afasto-me o suficiente para que ele consiga fazer o que
quiser, mas não consigo me manter longe dele por muito tempo e volto a beijar seu rosto, suas
bochechas, seu maxilar, seu pescoço. — Estou a fim de você há tanto tempo que é vergonhoso.
— Você devia ter vindo falar comigo — digo antes de beijá-lo perto da orelha. O cheiro
de lavanda fica mais forte aí e sinto que irá me consumir. Esse sentimento arrebatador irá me
consumir. — Desde a primeira vez que te vi, te vi de verdade, naquela festa da fogueira, fiquei
fascinado.
— Fascinado, hm?
Finalmente me afasto, colocando seu rosto entre as minhas palmas. Seus lábios estão
vermelhos e suas bochechas, rosadas. Sinto-me contente por ter sido responsável por deixá-lo
dessa forma e dou-lhe um último beijo antes de observar todo seu rosto. De perto, ele é ainda
mais lindo.
— Talvez o deus do amor não esteja só em você.
Seu sorriso tímido faz cores explodirem dentro de mim.
— Não quero estragar o momento, pirralho, mas tenho mais algumas coisas para te
dizer.
— Elas podem esperar até voltarmos para a casa do meu irmão — respondo, na
esperança que ele não recuse meu convite disfarçado. — Nunca mais quero parar de te beijar.
Não consigo parar de rir quando chegamos ao apartamento, quase como se estivesse
bêbado. E Ashton, por sua vez, não consegue me largar nem por um segundo.
— Cheguei! É o Evan! — grito, lembrando do pedido de Randall. Ashton se esgueira
pela porta atrás de mim, tirando os sapatos ao entrar. Rio com isso, abaixando o tom de voz outra
vez: — Eles não têm esse costume aqui.
Ele simplesmente dá de ombros, seguindo-me quando desvio do sofá para entrar no
quarto que Mia arrumou para mim. É nesse instante que eu agradeço o fato de ele ter tirado os
sapatos, pois seus passos são tão silenciosos que parece que o único andando pela casa, de fato,
sou eu.
— Tenho uma notícia para você — digo, quando entramos no quarto. Está tão escuro
que coloco a mão na cintura dele para guiá-lo. — Não sei se é algo bom ou ruim, mas só tem
uma cama — respiro fundo. A ideia de dormir a noite toda com ele ao meu lado me faz sorrir
como um idiota. — Se for demais para você, posso dormir na sala-
— Ah, sim, porque dormir do seu lado é mais íntimo do que me beijar.
Minhas mãos sobem pela sua cintura até a lateral das suas costelas, então deslizam
como água pelo seu peito até o pescoço, chegando às bochechas quentes de Ashton. Sorrio
quando noto que ele prende a respiração, parecendo ansioso.
— Não sei, talvez seja. Passar a noite toda com você ao meu lado, sentindo seu corpo,
parece bastante íntimo para mim.
Meu sorriso aumenta quando Ashton inclina o rosto em direção à minha palma
esquerda, procurando mais do meu toque.
— Preciso tomar banho antes de dormir — diz, prendendo meu pulso com as suas mãos.
— E temos que conversar, mas não é nada que tenha muita importância.
— Tudo o que você tem a me dizer tem importância.
Ashton desprende-se de mim e tomo a oportunidade para ligar a luz do banheiro para
que possamos, pelo menos, ver onde estamos pisando. Porém, no mesmo instante que a luz
ilumina brevemente o quarto, Ashton está terminando de tirar a camiseta branca, a jogando em
cima da cama, ao lado da jaqueta.
Tento me forçar a desviar o olhar das suas costas, da sua pele, mas não consigo. Não
quero parecer intrometido, mas não consigo. Não consigo tirar os olhos dele e me odeio por isso,
porque não quero deixá-lo desconfortável, mas, quando vejo a sequência de pintinhas espalhadas
e as linhas brancas de cicatrizes perturbando a perfeição da sua pele, não sou capaz de controlar a
vontade de aproximar-me.
Sem me dar conta do que estou fazendo, levanto a mão, tocando o começo da sua
coluna.
— Quem fez isso com você?
O sinto enrijecer sob a minha pele e quase me afasto, mas então, Ashton se vira,
segurando meu pulso sem muita força, apenas mantendo-me parado.
— Em geral, muitas coisas. Mas principalmente meu tio.
— Por quê?
A luz alaranjada vindo do banheiro brilha em seu rosto quando ele desvia o olhar de
mim, imperturbável, parecendo pensar em uma resposta.
— Para me ensinar como a vida não é gentil com ninguém, eu acho.
Ashton dá um passo para trás, como se retirando da conversa. Ele caminha até o
banheiro, olhando uma última vez antes de fechar a porta.
Eu o espero, pensando nas suas cicatrizes, na sensação da sua pele contra a minha e em
como estou desesperadamente apaixonado.

Ashton reaparece alguns minutos depois, enquanto eu mexo no meu celular. Quando o
vejo saindo do banheiro sem camiseta nenhuma, largo o celular na escrivaninha no canto da
cama, o olhando com expectativa quando sobe em cima da cama, engatinhando até o meu lado
esquerdo. Ele ajeita o travesseiro para encostar as costas e cruza as canelas.
— Então — começa, como se já tivesse pensado muito no que vai dizer. — Sei que
nunca te disse muito sobre mim, Evan. E posso ter te passado a impressão errada sobre isso,
como se não confiasse em você, mas na verdade eu estava… Eu estava assustado. Com medo de
que você me deixasse se eu contasse a você o que estou prestes a contar.
— Eu nunca faria isso, Ashton. Eu nunca… — assusto-me com o peso das palavras que
quase falei, porque sei que elas são a verdade absoluta. — Eu nunca te deixaria.
Ele fica em silêncio por tanto tempo que só sei que está acordado porque os dedos dos
seus pés continuam a se mexer freneticamente e é assim que noto que Ashton está tão nervoso
quanto eu. Talvez mais do que eu. Definitivamente mais do que eu. Então tomo coragem para
pegar sua mão, fechada em um punho apertado, cheia de tensão, e a entrelaço com a minha.
— Quando eu tinha nove anos — começa, finalmente. — De repente, eu quis raspar o
cabelo, no meio da noite. Minha mãe disse que não, que talvez pudéssemos fazer isso na manhã
seguinte, mas eu não queria na manhã seguinte: queria naquele instante. Então eu… — Nesse
momento, seus olhos parecem perdidos em lembranças, mergulhados em um passado distante. —
Lembrei de algo que vi em um filme mais cedo, em que a protagonista se cortava com algo
afiado. Aquilo ficou na minha cabeça e fiz a mesma coisa, mas cortei de um jeito que fez o
sangue não parar de sair. Era tanto, tanto sangue, que em certo ponto minha cabeça começou a
ficar tonta. Eu não queria me matar, nem sabia de verdade se a morte existia na época, mas
queria fazer minha mãe se sentir culpada.
— E o que aconteceu? Ela te achou?
Ashton solta um suspiro antes de responder:
— Eu simplesmente acordei e nós estávamos no pronto-socorro. Meu braço estava todo
enfaixado e minha mãe não parava de chorar. Senti tanta culpa que prometi à ela que nunca mais
faria isso. E agora estou cumprindo o que prometo.
O silêncio cai sobre nós como uma manta fina por alguns segundos, quase como se ele
estivesse me dando tempo para absorver o que havia dito.
— Mais tarde, descobri que o que aconteceu naquele dia era por conta de um episódio
maníaco. Na minha cabeça, nada tinha consequências, nada podia acontecer de verdade. Eu nem
sequer me importei de verdade com como faria minha mãe se sentir. E…
Uma pequena pausa.
— Eu fiz a mesma merda naquele dia em que invadimos o Allan Gardens. Que eu
invadi, você não tinha culpa. E, por causa disso, te coloquei em perigo porque não pensei nas
consequências, mesmo sabendo do risco de sair de noite, principalmente para um lugar tão
isolado. Se aquele… Se aquela pessoa fizesse algo com você, Evan, eu nunca me perdoaria.
— Mas ele não fez-
— Foi por essa razão também que eu sumi da minha casa, naquele dia em que você teve
que tomar banho lá. Não tomei os remédios, estava há dias sem tomar. Não estava conseguindo
pensar direito, eu fiquei tão nervoso e feliz por você estar lá que… Não pensei em nada — ele
respira com pesar. — Estou há dias em um episódio maníaco, mas os sintomas estão diminuindo
um pouco agora. Um episódio desses pode durar semanas, até meses. Também terão dias em que
vou passar pelo contrário desse e ficar tão isolado que você mal vai conseguir conversar comigo.
O mundo se inclina um pouco, como se ele estivesse fazendo muito mais sentido e, ao
mesmo tempo, se estilhaçando. Sinto-me feliz em ele estar finalmente se abrindo comigo,
finalmente confiando em mim para falar sobre seus problemas. Mas, ao mesmo tempo, a
sensação de impotência me atinge porque percebo que não sei absolutamente nada sobre…
— Você é bipolar? — pergunto.
— Sim. — Ele aperta a minha mão e, ao mesmo tempo, permito-me fazer um breve
carinho em sua pele com os dedos. — Terão dias que eu vou estar bem e dias que não. Meu
humor pode mudar de um dia para o outro, de uma forma quase drástica, e posso ficar desse jeito
por dias, semanas, meses, quem sabe. Diferente do que as pessoas acham, essa mudança de
humor não acontece de um segundo para o outro. Não mudo de emoções aleatoriamente. Um
episódio, maníaco ou depressivo, seja o que for, costuma durar muito mais do que pensam e é
por isso que pode ser perigoso. Ficar tempo demais em um episódio depressivo é… Pior do que o
inferno. E terão momentos que vou dizer besteira, que vou querer fazer besteira, que vou fazer
besteira. E que, provavelmente, vou acabar te machucando em algum desses momentos, mesmo
que sem querer. Por isso queria te avisar sobre isso agora, porque, caso você não queira lidar
com isso, é melhor se afastar. Agora. Porque vai ser doloroso demais depois.
— Eu não-
— É sério — ele me interrompe. — Não é todo mundo que aprende a dar conta de tudo
isso. É algo tão estressante que, às vezes, nem eu mesmo consigo me suportar. Oliver não
consegue, por exemplo. Ele simplesmente não fica perto de mim quando tenho um desses
episódios.
A ideia de ter que me afastar dele é quase sufocante. Não faço ideia de com o que terei
de lidar daqui para frente, mas se eu puder passar mais tempo com ele, ter momentos como o que
tivemos mais cedo naquele prédio abandonado, ou na praia, semanas atrás, ou comer macarrão
juntos, ou falar de um futuro melhor, vale a pena. Afinal, relacionamento nenhum é feito de
apenas momentos bons e existem momentos feios, momentos que não são românticos, momentos
sérios.
— Não quero me afastar de você, Ashton. Nem agora, nem no futuro.
Sem aviso, ele me beija outra vez. Mas, diferente de antes, é calmo, doce, salgado e
agridoce. Me deixo levar pelos seus lábios, deixo-me por tudo o que aconteceu hoje e toda essa
sensação crescente de carinho que tenho em relação à ele, que apenas reforça uma das maiores
certezas que já tive: não quero me afastar dele.
— Você está suado — ele diz, em meio aos beijos. — Está salgado também. Deveria
tomar um banho, pirralho.
Faço o que ele sugere, voltando minutos depois.
Ashton já está deitado, encolhido embaixo das cobertas. Passo a mão no cabelo molhado
uma última vez antes de me deitar, encaixando meu corpo com o seu.
— Não vamos ficar estranhos um com o outro depois de hoje, não é? — pergunto,
porque essa dúvida é algo que não desgruda da minha mente.
— Não. — É tudo o que ele me responde e fico contente com isso.
Beijo as cicatrizes em seus ombros, passando os lábios por cada um dos relevos
esbranquiçados em sua pele, não deixando nenhum de fora. Espero que ele entenda o peso do
que estou tentando dizer sem falar: vou estar aqui para você nos momentos bons e ruins. Vou
estar sempre aqui, por você.
É como se eu desenhasse estrelas em suas cicatrizes.
Você mal o conhece

into Ashton levantar-se ao meu lado. Não sei quando acabei dormindo,
S mas a falta do calor de seu corpo me acorda quase imediatamente. Me apoio com
os cotovelos, que afundaram no travesseiro, o assistindo trocar de roupa, colocando
a mesma camiseta escura e calça jeans que estava vestido quando chegou aqui.
Nem amanheceu ainda. O desejo de que ele fique me atinge de maneira quase violenta.
— Ash. —Minha voz sai rouca ao chamá-lo, como se eu estivesse implorando por algo.
Ash olha-me por cima dos ombros. Os olhos dele estão vazios, de forma opaca e sem
brilho, o que me faz franzir as sobrancelhas. Talvez seja o sono, mas ele não parece ele mesmo.
Não com aquela sombra no rosto, nem descabelado como está. Então, de repente, ele sobe na
cama de novo, aproximando-se de mim. Penso que vai me beijar, mas ele só encosta o nariz no
meu e respira em cima da minha boca.
— Dorme de novo. Tá cedo — ele diz enquanto a única coisa que consigo fazer é notar
a forma como seus cílios tocam a minha bochecha. Me inclino para frente para beijá-lo, mas ele
me afasta com um empurrão no ombro, que me faz cair de costas na cama. O encaro, quase
perplexo, enquanto ele tenta suavizar a expressão com um sorriso. Não gosto disso. Não gosto de
ele ter me afastado. Não dessa forma, pelo menos. — Preciso resolver uma coisa.
Mas, mesmo que tenha me incomodado com a sua atitude, prefiro não deixar esse
empurrão me afetar. Não agora que ele está indo embora.
— O quê?
Ashton veste a jaqueta antes de se virar para mim e se inclinar de novo. Dessa vez eu
sou mais rápido e beijo o canto da boca dele. Ele não parece surpreso, nem incomodado, mas
tampouco mostra qualquer reação além disso, o que faz meu estômago girar. A ideia de que,
talvez, eu tenha imaginado tudo o que aconteceu noite passada me atinge e a possibilidade me
deixa nauseado.
— Não é da sua conta — sei que Ashton está brincando, embora eu tenha demorado
muito tempo para aprender a diferenciar o tom levemente agudo em sua voz de quando ele usa
sarcasmo. Num geral, é muito difícil diferenciar suas brincadeiras e sua voz séria, levando em
consideração apenas o seu tom: é preciso considerar o seu contexto para entender melhor o que
ele quer dizer.
— Eu vou poder falar com você ainda?
— Por que não poderia?
— Porque agora eu gosto de beijar você.
Ele sorri. Um leve e fraco sorriso, que contorna o canto de seus lábios, fazendo com
que, por um lapso de segundo, seus olhos finalmente se encham de vida novamente.
Sorrio.
— Pirralho —ele sussurra, e, apesar da palavra não ter uma conotação muito positiva, é
como se ele dissesse “meu bem”, ou “meu amor”.
— Você também é um pirralho — respondo. — É praticamente só um ano mais velho
que eu.
Ashton aponta pra própria têmpora.
— Eu sou mais velho aqui.
— Na cabeça — concluo.
— Na mente — corrige.
— Mesma coisa. Cabeça e mente.
Ashton dá de ombros e pega a mochila. Me levanto e caminho pela cama até ele, dando-
lhe um beijo na nuca. Ele não se vira, mas o sinto estremecer com o meu toque e gosto disso:
gosto de saber que ainda posso arrancar reações inusitadas do seu corpo, mesmo que ele esteja
agindo meio estranho.
— Ashton, você não vai parar de me ver quando a detenção acabar, vai? Quer dizer,
você já se formou, mas Donovan com certeza não vai te liberar da detenção — a dúvida escapa
por meus lábios antes que eu possa me interromper e, quando percebo, ele vira para mim,
encarando-me com uma pequena expressão de surpresa.
— Não — responde e gosto como a sua voz sooa decidida. — Te vejo na escola —
sussurra após plantar um rápido beijo em meus lábios e se afastar. Seu gosto molhado fica na
minha boca por um tempo, tão agridoce quanto a noite passada. — Tchau.
— Hm.
Então Ashton sai e me deixa sozinho, com o coração batendo forte.
***
Acordo pela segunda vez no dia quando Mia encosta sua mão gelada no meu pescoço.
Quase pulo da cama e, ao mesmo tempo, noto algo: a corrente, que frequentemente estava
pendurada ali — embora nem sempre — sumiu. A sua falta faz meu estômago dar um giro
porque a repentina ideia de ter perdido o maldito colar me assusta mais do que provavelmente
deveria.
— Bom dia, Evan. — É Mia quem diz, embora eu não consiga notar sua voz de fato.
Passo a mão por debaixo dos edredons e não encontro em lugar nenhum.
— Bom dia, Mia.
— Sua mãe me ligou mais cedo — comenta, finalmente conseguindo chamar minha
atenção por alguns segundos. Ela começa a andar pelo quarto até sair do cômodo e sua voz
parecer abafada: — Se arrume que preciso te levar para casa. Estou quase saindo para o trabalho.
Faço o que ela pede e levanto da cama em um pulo, olhando cada pequeno centímetro
daquele quarto e, a cada segundo que se passa e a minha aflição aumenta, mais me odeio por
isso, porque quem havia me dado aquele colar havia sido… Meu pai.
Muitos anos atrás, antes de ele começar a me trancar no porão de fato, Terry não era um
excelente pai. Ele nunca foi, não é e jamais seria. Mas, em certos momentos, em certos dias
extremamente específicos, meu pai conseguia mostrar um pequeno pedaço de carinho. De amor
paterno. E era isso o que piorava tudo porque, nesses momentos, ele inevitavelmente plantava
uma muda de esperança no meu coração, apenas para logo em seguida destruí-la.
Quando fiz dez anos, meu pai ainda me levava à Quebec. Eu não sabia das suas
amantes, não sabia que o nome da minha mãe não era Mãe e nem sequer sabia que os adultos já
tinham sido algo além de adultos um dia. Eu era um garoto, tão inocente e quase burro como
qualquer garoto da minha idade e não entendia a razão do meu pai parecer me detestar de vez em
quando.
Apesar de ser inocente, sabia muito bem o que significava não gostar ou gostar de algo.
Eu não gostava da cor verde e adorava a azul. Sabia que minha mãe gostava de assistir novelas
mexicanas na TV e sabia que ela não gostava dos pombos que faziam cocô no jardim. Sabia
disso porque a ouvia xingá-los de “pragas imprestáveis” quando pensava que eu não estava
ouvindo. Por isso presumi que meu pai não gostava de mim quando o ouvi dizer “garoto
imprestável” para mim certo dia.
Terry parecia ter sentimentos complicados em relação a mim. Ao mesmo tempo em que
eu tinha certeza de que ele frequentemente me culpava por algo — algo que talvez estivesse
muito além do meu controle — sabia que, em certo grau, se importava comigo.
Quando apanhei pela primeira vez na escola — mesmo que eu tenha sido o primeiro a
levantar o punho — foi ele quem me buscou depois de ter saído mais cedo do trabalho. Terry
parou em uma farmácia e comprou band-aids do Homem-Aranha — que eu nem sequer gostava
tanto assim — e limpou meu rosto com algodão em frente à pia do banheiro. Ele não disse nada,
mas estava com uma careta que fazia meus ombros se encolherem esperando pelo sermão.
— Você não deveria brigar… Sua mãe fica preocupada — foi tudo o que ele disse. E,
talvez seja apenas uma miragem da minha mente esperançosa, mas lembro-me exatamente do
olhar em seus olhos. Era um semblante cansado, exausto e preocupado. Ele me olhava como se
soubesse uma infinidade de coisas das quais eu não fazia ideia e, às vezes. gosto de pensar que
também havia culpa. Culpa pela forma como me tratava, culpa pela forma que tratava minha
mãe, culpa pelo que fez com a mãe de Randall, culpa por tudo o que viria a fazer comigo no
futuro.
Quando ele terminou de limpar meu rosto, levantou-se e tirou algo do bolso. Era um
colar de bronze com um forte cheiro de metal. Ele o estendeu para mim e o deixou cair nas
minhas palmas quando me aproximei. No fim do colar havia um pingente redondo e brilhante —
apesar de ter deixado de ser brilhante conforme eu o usava. Nele, havia algo enrustido, mas
atualmente eu só notava quando passava o dedo e sentia o seu relevo. Sua forma nítida havia
sumido há muito tempo.
Perdê-lo era como perder a única prova de que um dia meu pai poderia ter me amado. E,
por mais que eu odeie admitir, não quero ter que abrir mão disso.
Por isso que, quando não o encontro no quarto em que dormi, saio de fininho e começo
a vasculhar o resto da casa. Nada. Então o desespero começa a me fazer ir para lugares
totalmente ilógicos a fim de achá-los e noto, tarde demais, que entrei no quarto que Randall
chama de escritório.
Procuro pelas estantes, entre os livros grossos e cheios de pó, mas não encontro nada
além da minha própria alergia, que me faz começar a espirrar desesperadamente conforme mexo
naquelas coisas que não são tiradas do lugar há muitos anos. Só então, depois de uma
investigação pouco profunda na estante, aproximo-me da escrivaninha, sentando na cadeira
giratória de Randall e tentando abrir todas as suas gavetas. Nenhuma delas está aberta.
Começo a bisbilhotar as folhas espalhadas na escrivaninha, pensando que, talvez, o
pingente possa estar escondido embaixo de alguma delas, até que minha mão esbarra no mouse e
faz a tela do monitor acender, brilhando de tal forma que não pude desviar a atenção.
Está na tela do gmail. Parece uma conta nova, uma vez que não há um único e-mail
recebido que não seja do próprio Google — uma daquelas mensagens padronizadas que sempre
aparece quando você cria uma conta nova. A única coisa que parece minimamente interessante é
a bolinha vermelha no ícone dos “enviados”, que grita pela minha atenção de um jeito quase
violento. Porém, quando minha mão se aproxima do mouse para clicar em cima, escuto a voz de
Mia, assustadoramente perto.
— Evan? Você está pronto? — ela pergunta e consigo ouvir o som estalado dos seus
saltos pelo chão de madeira.
Desisto da minha procura por aquele maldito pingente, achando que, talvez, aquilo seja
um sinal do destino para que eu pare de carregar aquela porcaria por aí, como se algum dia meu
pai fosse se lembrar daqueles momentos minimamente bons que tivemos no passado.

Quando Mia estaciona na frente da minha casa, estou terminando de enviar uma
mensagem para Ashton.
Eu: Você por acaso viu um pingente quando estava comigo?
Eu: Perdi ele. Era muito importante pra mim :(
Ele responde alguns segundos depois:
Ash: Tá comigo, pirralho
Ash: Ele caiu ontem quando estávamos no metrô e eu peguei e esqueci de te entregar
Ash: Foi mal. Tô indo aí te devolver.
Mia se despede de mim com um beijo na testa e a afeição que sinto por ela parece estar
prestes a fazer meu peito explodir de carinho.
— Apareça lá em casa com mais frequência, tudo bem? Sei que você não gosta muito
do seu irmão, mas eu adoro sua companhia.
Sinto vontade de abraçá-la, mas não quero amassar sua roupa recém-passada.
— Pode deixar. Vou fazer esse esforço por você.
Mia solta uma piscadela na minha direção antes de destravar a porta. Desço do carro e
espero que ele esteja longe o suficiente do meu campo de visão para virar em direção à casa,
soltando um suspiro pesado apenas de saber que terei que ver meu pai mais tarde.
Mas meu corpo congela completamente quando vejo Charlie sentado nos primeiros
degraus de madeira da varanda, de olhos fechados e com a cabeça encostada no corrimão. Ele
parece sentir minha presença — ou talvez tenha sido os meus passos na grama? — porque abre
os olhos e, quando se dá conta de que estou na sua frente, levanta-se da escada em um pulo.
— Evan… Sua mãe disse que você não estava em casa — a forma como a sua voz soa,
fraca e calma, desarma toda e qualquer rigidez que se formou no meu corpo. Mas, ao mesmo
tempo, sinto que há algo de errado. Quando brigamos, Charlie raramente me procura primeiro.
— Dormi na casa do Randall.
— Ah. — É tudo o que ele diz, dando alguns passos tímidos na minha direção. Seu rosto
está abaixado como se ele sentisse vergonha. — Eu queria… Conversar com você.
Prendo o ar nos pulmões.
— Estou ouvindo.
Charlie aproxima-se mais, de modo que para na minha frente. Encaro seu cabelo cor de
areia, porque ele ainda não se atreveu a levantar o rosto. e começo a me sentir tão nervoso quanto
ele.
— Tem muitas coisas que eu queria dizer mas a principal delas é que… Eu sinto muito.
Sério. Eu… Não deveria ter surtado daquele jeito com você porque virou amigo do Ashton. É
que eu fiquei tão… Tão…— Quase consigo ouvi-lo engolir em seco. — Enciumado por você
estar aparentemente confiando mais nele do que jamais confiou em mim que não pensei direito.
— Charlie-
— Eu entendo que você possa ter mais pessoas importantes na sua vida além de mim. É
óbvio que entendo, é só que foi doloroso ver aquilo. Te conheço há tantos anos e mesmo assim
parece que não sei nada sobre você. Sei que tem problemas, é claro. Isso todo mundo sabe.
Mas… Você não conversa comigo como antes, não conseguimos passar um dia inteiro juntos
sem brigar e tenho a impressão de que muito da culpa disso é minha.
— Charlie-
Ele me interrompe mais uma vez.
— As coisas com meus pais não andam fáceis e decidi vir falar com você porque…
Conversei muito com Max. E ela me aconselhou em ser honesto com você. Totalmente honesto.
Dessa vez, não tento chamar seu nome. Charlie finalmente levanta o rosto e me olha nos
olhos, tão intensamente que minha boca começa a secar.
— Nunca te contei sobre isso porque queria que você me visse como alguém… Não
perfeito, mas alguém que… Merda — ele limpa o canto dos olhos e é apenas nesse instante que
noto que está prestes a chorar. — Alguém que você pudesse gostar além da amizade. E não
queria que me visse como alguém fraco ou idiota ou qualquer merda. O problema é que a coisa
ficou feia dessa vez, Evan. Tão feia que decidi me internar voluntariamente para poder ficar
longe dos meus pais e ter controle da minha vida nem que seja por um segundo.
O peso das suas palavras me atinge como se uma onda enorme estivesse me puxando
em direção ao mar. Tento encontrar palavras para dizer, qualquer coisa, mas Charlie continua
vomitando frases em mim, finalmente tirando todo aquele peso das costas de uma forma
aparentemente tão desesperada que não encontro coragem para interrompê-lo.
Charlie funga uma última vez e continua:
— Sinto que a única coisa que tenho controle na minha vida é o que eu como. E, às
vezes, fico com tanta raiva dos meus pais e suas crenças idiotas que fico sem comer, para ver se
eles notam ou reparam o pequeno protesto que estou fazendo contra eles, para ver se percebem
que há pelo menos uma única coisa que não podem controlar sobre mim. Mas não notam. E
fiquei muito tempo sem comer esses últimos dias, tanto tempo que fui parar no hospital. Meus
pais disseram que preciso procurar mais ajuda de Deus, porque maltratar o corpo que Ele me deu
é um pecado e, porra, eu fiquei tão puto que decidi me internar, porque sei que se ficar naquela
casa por mais tempo, vou fazer tudo de novo.
Ele respira fundo, desviando o olhar para um ponto atrás de mim, piscando repetidas
vezes.
— Por isso vou tomar coragem para fazer o que sempre quis fazer, porque não sei
quanto tempo ficarei lá.
Isso é tudo o que Charlie diz antes de dar um último passo na minha direção, prender
minhas bochechas contra suas mãos e chocar os lábios contra os meus.
No mesmo instante, sinto uma terceira presença e, quando percebo, Charlie é arrancado
dos meus lábios com uma força tão grande que até mesmo eu cambaleio para trás.
— Que porra é essa? — a voz de Ashton me traz de volta para a realidade e minha
cabeça dá um giro. Quando pareço capaz de observar o mundo ao meu redor, vejo Ashton
encarando Charlie como se estivesse prestes a cuspir fogo nele e me apresso em puxá-lo para
longe do meu (ex?) amigo, mas ele se solta do meu toque com tanta brusquidão que meu peito
se contorce. Porém nada me prepara para a visão que tenho a seguir, tampouco para a sensação
de dor que come meu coração vivo quando vejo seu estado.
Suas pálpebras estão inchadas, tão vermelhas que por um segundo penso que ele
apanhou. Mas, no segundo seguinte, reparo que seus olhos também estão vermelhos, assim como
suas bochechas, e sei, através disso, que ele andou chorando. Muito.
A expressão em seu rosto é uma das piores que já vi desde que o conheci. Ele está
abalado, provavelmente por algo muito além do fato de ter pego Charlie me beijando. Aconteceu
algo; algo tão sério ao ponto de deixá-lo desestabilizado dessa forma e de um segundo para o
outro, tudo o que quero fazer é abraçá-lo.
Mas, quando me aproximo para tentar tocá-lo no rosto, tão intimamente que nem tenho
ideia do que estou fazendo, Ashton se afasta do meu toque mais uma vez, empurrando algo em
direção ao meu peito. Quando pego o pingente antes que ele caia, só tenho tempo de olhar para
Ash mais uma vez antes que ele se vire e vá embora.
A vontade de ir atrás dele é quase selvagem, mas quando Charlie chama meu nome —
com a sua voz tão pequena e frágil — meus pés fincam no chão e tudo o que posso ver é Ashton
se afastando cada vez mais. E, com ele, levando meu coração.

Fizemos as pazes. E isso é tudo o que me consola pelas últimas horas, conforme Max,
Jasper, Omar, Sally e Adam aparecem na minha casa, em uma repentina reunião de resolução de
problemas. E uma despedida temporária, já que Charlie ficará na clínica — a princípio — por
uma ou duas semanas.
— Então vocês estão juntos? — Jasper pergunta depois que eu lhes conto o que
aconteceu noite passada. Ele, especificamente, parece muito interessado no que tenho a contar
mas, depois do que aconteceu com Charlie, decido deixar os detalhes de fora. — Eu meio que
sempre soube que ele sentia algo por você. Os olhos não mentem, cara.
Tenho que rir do que Jasper diz, mesmo que pareça um enorme esforço. Ninguém além
de mim e Charlie sabe o que aconteceu mais cedo e não conto a ninguém que Ashton e eu não
estamos em bons termos porque isso significa que teríamos que explicar a razão — e Charlie não
parece querer isso. Na verdade, toda vez que abro a boca para falar, ele se encolhe como se
temendo que eu vá contar a todos eles o que havia acontecido e que iremos zombar dele.
Max compra pizza e, quando ela me chama na cozinha para ajudar a pegar os pratos, sei
que quer conversar sobre algo.
— Ele te contou? — Max diz, sem me olhar, concentrada demais em cortar as fatias de
pizza e encher os copos de Coca-Cola. Sei instintivamente do que ela está falando e, por um
pequeno segundo, me sinto deslocado por ter ficado de fora do assunto por tanto tempo.
— Contou.
Max assente, ainda sem me olhar. Ela balança a cabeça, como se pensando nas suas
próximas palavras.
— Sabe, nenhum deles vai te dizer isso abertamente então acho que sou eu quem vai ter
que fazer isso — começa. Ela faz uma pausa para lamber o molho de tomate que suja seu dedão,
encostando a cintura à mostra, por conta da calça jeans de cós baixo e a mini-blusa verde
tomara-que-caia que cobre apenas seu colo na bancada da cozinha. — Mas nós sentimos muito.
Por tudo o que aconteceu. Eu sempre soube que Charlie gostava de você e tomei as dores dele
quando ele… Bem, quando ele disse que tinha a impressão que você e Ashton podiam estar se
gostando e nem sequer faziam ideia.
Encosto a minha própria cintura na bancada, apertando as pulseiras.
— Era assim tão perceptível que nós… Você sabe.
Max faz uma expressão pensativa.
— Não vou mentir pra você: acho que Ashton gostava de você há mais tempo do que
você imagina. Sempre o vi de olho em você, Evan. Sempre que passávamos por ele, você nem
sequer notava, mas ele não desviava o olhar. Acho que Charlie também sempre soube.
Suas palavras inevitavelmente me fazem sorrir. A ideia de Ashton estar a fim de mim há
tanto tempo é agradável como um abraço quente em um dia frio e aquele puxão no ventre — que
frequentemente me atinge quando penso nele — tira minha atenção de Max por alguns segundos
conforme imagino a cena: eu passando pelos corredores do colégio, totalmente alheio à Ashton,
enquanto ele vira o pescoço para me ver. É quase surreal.
— De qualquer forma — sua voz me chama atenção e sou puxado de volta a realidade
quando sinto um toque gentil no meu ombro. — Nos desculpe. De verdade. Principalmente
Omar. O pobre coitado estava se sentindo tão culpado esses últimos dias que teria vindo falar
com você hoje de qualquer forma, mesmo se Charlie não tivesse aparecido.
— Obrigado, Maxine — a chamo pelo nome inteiro, porque é algo que costumávamos
fazer quando éramos mais novos e havíamos acabado de nos conhecer. — Vocês são muito
importantes para mim.
— Você também é muito importante para gente, Evan. Não tem noção do quanto Jasper
sentiu sua falta. — Ela ri, daquela forma que nunca falha em me fazer rir junto. Por alguns
instantes, gosto da forma como consigo esquecer dos meus problemas, mesmo que eles voltem a
minha mente como uma enxurrada logo em seguida.
Voltamos para a sala e nos sentamos no chão, na pequena roda em que eles formaram.
Percebo, em uma repentina epifania, o quanto senti falta de cada um deles: de Jasper e das suas
piadinhas tão ruins que às vezes conseguem me fazer rir; de Omar e a sua doçura e voz; de
Charlie e a forma como ele pode gargalhar quando não tem nada para se preocupar; de Max e de
seus olhos observadores, sempre se certificando que estamos bem; de Adam e a forma como
consegue juntar seu terrível senso de humor com as horríveis piadas de Jasper e criar um monstro
de piadinhas de velhos; e de Sally e como ela sempre consegue acrescentar algo nas conversas
que sempre nos faz rir.
Sinto-me bem, conseguindo esquecer momentaneamente o problema que terei que
resolver com Ashton mais tarde — ele não responde nenhuma das minhas mensagens e tenho a
impressão de que seria muito humilhação enviar mais do que as que eu já enviei — então decido
deixá-lo sozinho por enquanto, porque talvez seja isso o que ele queira.
Quando todos começam a levantar-se, avisando que precisavam ir embora, preparo-me
para ficar sozinho com meus pensamentos mais uma vez, pensando em qual filme eu poderei ver
para me distrair o suficiente dos acontecimentos do dia. Mas, antes que eu comece a rascunhar
obsessivamente o futuro, Jasper me puxa para um canto conforme nossos amigos terminam de
ajeitar as próprias coisas para irem para casa.
— Omar está estranho — é o que ele diz. — Ele não… Não sei explicar, Evan, parece
que ele não gosta mais de mim — Jasper puxa os cabelos azuis para trás e então me olha, como
se esperando que eu arranje uma solução mágica para seus problemas.
Uma pena que não sei nem o que fazer com os meus próprios.
— Achei que era isso o que você queria — respondo, encostando o ombro no batente da
porta. Jasper olha para algo atrás de mim, provavelmente verificando Omar. — Quer dizer, você
sempre pareceu gostar dele mais como amigo do que qualquer outra coisa. Achei que ia preferir
assim. Que ele seguisse em frente, quero dizer.
— O problema é que eu acho que sempre gostei dele — a revelação não me surpreende.
Jasper provavelmente é o único alheio em relação aos próprios sentimentos. — Tipo, há alguns
anos, nós nos beijamos. Não foi meu primeiro beijo mas foi o primeiro que eu gostei, mas eu já
ouvi meu pai dizendo coisas horríveis sobre… Gays, lésbicas, toda essa coisa. E eu me assustei
pra valer e achei que ia conseguir seguir em frente depois que conheci Max, porque fiquei a fim
dela de verdade, mas agora… A ideia de perder Omar é desesperadora.
Meu coração se aperta por meu amigo. A quantidade de problemas internalizados dentro
dele é enorme e eu sempre soube que Jasper tem uma admiração enorme pelo pai, mesmo depois
de ele começar a se envolver com as drogas, então leva muito a sério o que ele diz. Não sei o que
responder porque, se eu estivesse na situação dele, estaria tão desesperado quanto, mas tento
encontrar as palavras para dizer algo, uma vez que conheço Jasper o suficiente para saber que —
embora ele finja ser todo durão — ele precisa de conselhos para tomar decisões arriscadas e que,
estranhamente, sempre recorre à mim quando precisa deles.
— Acho que você devia resolver o que está sentindo dentro de você antes. Resolver essa
sua homofobia internalizada. Que não é sua culpa, não entenda errado, não é sua culpa, Jasper.
Mas você não tem direito de impedir Omar de seguir em frente depois de passar tantos anos
colocando os sentimentos dele de lado.
Seus ombros despencam com a minha resposta.
— Eu queria que ele pudesse esperar mais um pouquinho. Só mais um tempo, até eu me
entender melhor e poder ser alguém melhor para ele. — Seus olhos desviam para a figura
distante de Omar atrás de mim. Será que eu também olho para Ashton daquele jeito?
— Por que você não diz isso a ele?
— Porque… Não sei. É assustador. Não quero perder meu melhor amigo. Eu o conheço
há tanto tempo, Evan… Perder ele seria como perder uma parte de mim.
Mordo o interior da bochecha.
— Ainda acho que você deveria conversar com ele. Sério. Omar é uma pessoa muito
madura e sei que ele também não quer perder sua amizade. Comunicação, em qualquer relação, é
muito importante.
Quão irônico é dizer isso enquanto estou em uma situação totalmente complicada
envolvendo uma falha de comunicação com Ashton?
Jasper solta um suspiro, fechando os olhos. Sinto pena dele, embora saiba que ele
odiaria isso. É inevitável. Todos nós estamos tão cheios de problemas, em um emaranhado de
fios e mais fios a serem resolvidos, que a sensação é semelhante a se afogar em água densa. E é
nesses momentos que tenho total consciência que existem outras pessoas no mundo, além de
mim. É estranho pensar que cada um dos meus amigos têm vidas muito mais complexas do que
eu imagino e que, a cada dia que passa, eles passam por tantos — senão mais — problemas do
que eu, que cada um deles também sente coisas semelhantes às que eu sinto e que cada um deles
também pensam em um futuro melhor.
E não apenas eles, mas como qualquer outra pessoa na Terra. São bilhões de vidas,
histórias e realidades totalmente diferentes da minha.
Minha linha de raciocínio é quebrada quando Jasper me dá um forte tapa no ombro e me
assusto quando ele me puxa para um abraço.
— Foi mal por aquele soco. E por ter te ignorado nesses últimos dias. Nós…— nesse
instante, ele limpa a garganta, como se dizer aquelas palavras lhe doessem fisicamente. —
Sentimos sua falta.
Retribuo com dois tapinhas fracos em suas costelas.
— Também senti falta de vocês, até de você, acredita?
Poucos minutos depois, todos já estão prontos para partir. Eu me despeço de cada um
com um breve abraço e, quando finalmente fecho a porta de casa e o silêncio me atinge, arrumo a
sala e lavo os pratos, evitando que qualquer pensamento significativo passe por minha mente.
Quando termino, subo para meu quarto e aquela sensação de vazio finalmente me atinge, tão
forte que só consigo cair na cama e soltar o suspiro que estive segurando o dia inteiro.
Gosto de ficar sozinho em momentos como esses, mas odeio o fato de não ter nenhum
som de verdade — de vozes, risadas, de carros ou da cidade se movimentando ao meu redor —
que abafem o barulho ensurdecedor dos meus pensamentos que, apesar de nem sempre serem
ruins, nunca falham em me fazer sentir um intruso no meu próprio corpo.
Solidão

a primeira vez em que me sinto verdadeiramente sozinho desde que


É conheci Ashton.
Lembro-me das vezes em que meu pai me trancou no porão. Nunca
durava muito tempo, mas isso não fazia aquelas horas menos aterrorizantes. Podia ouvir o som
aterrorizante dos ratos que viviam lá embaixo e, quando minha alergia tomava a melhor de mim,
era quando o terror realmente começava. Parecia que meus pulmões eram tomados por pó, de
dentro para fora. Minha respiração trancava de um jeito tão preocupante que eu precisava contar
carneirinhos para ver se conseguia parar, nem que por um único segundo, de espirrar e tossir —
embora, analisando melhor a situação, consiga reconhecer agora que o que sentia naqueles
momentos não eram um simples ataque de alergia, mas uma crise de pânico.
Não era solidão naquela época, pelo menos não inteiramente. Era, em sua grande
maioria, medo, mágoa e decepção. Minha mãe sempre me preparou mentalmente para quando
alguém — um estranho, suponho — tentasse me ferir, seja mental ou fisicamente. Mas ela nunca
me preparou para o fato de quem mais é capaz de te machucar — daquela forma em que seu
coração parece virar estilhaços que jamais se juntariam novamente — são as pessoas que você
mais ama, ou que pelo menos confia.
Por isso reviro-me na cama pela tarde inteira pelo resto da semana, até chegar o sábado.
Mal saí do quarto, pensando em que diabos faria para me reatar com Ashton. Passo os últimos
dias sentindo qual é a sensação de estar solitário, muito embora eu saiba não estar sozinho de
verdade. Finalmente me resolvi com meus amigos. Conversamos como nunca antes e é isso o
que me deixa mais enraivecido ainda: sem Ashton, sem sua constante presença ou pelo menos a
certeza de saber que estamos bem, parece que há algo fora do lugar, como se uma peça de
quebra-cabeça estivesse tentando se encaixar onde não deveria.
É só no domingo que, após maratonar todas as músicas baixadas no meu MP3 pelos
últimos dias — especialmente as que Ashton me mandou, dizendo que se lembrava de mim com
elas — saio do meu quarto. E, quando termino de descer as escadas, usando nada mais do que
um samba canção e meias vermelhas, dou de cara com a última pessoa que pensei que veria
nesse instante:
Will Hubert, melhor amigo da minha ex-namorada e o cara no qual ela tinha uma
quedinha, sentado no meu sofá, de pernas cruzadas como quem fica na recepção folheando
revistas ao esperar seu nome ser chamado.
Ele está mais forte do que da última vez que o vi: os músculos saltam na camiseta
branca que gruda em sua pele marrom. Ele raspou a cabeça também, algo que, estranhamente,
combina muito com seu rosto. Ao notar minha presença, levanta a cabeça e sua expressão acende
em reconhecimento, olhando-me de cima a baixo. Meu corpo encolhe quando me torno ainda
mais autoconsciente da pouca roupa que estou usando.
— Evan — diz ele, levantando-se do sofá. Pergunto-me se ele consegue perceber meus
olhos inchados. — Quanto tempo. Andou falando com Hazel nos últimos dias? — a pergunta soa
quase acusatória, o que me faz franzir os olhos.
— Na verdade, até que sim. E como andam as coisas entre vocês?
Will coça a nuca, acanhado. Tenho a impressão de que ele sempre soube que Hazel
tinha uma quedinha por ele e que, embora não queira admitir, o sentimento é recíproco. Certa
vez, ouvi de um amigo deles que eles haviam se beijado quando eram mais novos, nos seus
quatorze anos e, quando perguntei a Hazel se era verdade, ela ficou em silêncio, como se, caso
admitisse, eu passaria a ter uma crise de ciúmes em relação a qualquer interação que os dois
tivessem.
Antes que ele possa responder, escuto o som que faz meu corpo inteiro se contorcer: a
porta do porão — que meus pais tentam esconder atrás de uma estante de prataria, alegando que
ela estraga o resto da casa — sendo aberta soa por todo o cômodo, e preciso de um esforço
enorme para não sair correndo antes que meu pai se aproxime.
— Bem, Will- — meu pai começa, parando abruptamente quando me vê. Ele levanta as
sobrancelhas, como se não me reconhecesse. — Finalmente saiu daquele quarto.
Seu tom me faz encolher, hesitando um passo nas escadas. Quase tropeço, mas, em um
ato estranho de bondade, Will me segura, ajudando-me a firmar os pés no chão. Viro-me para
ele, esperando que meus olhos transmitam meu agradecimento silencioso.
— Como está seu braço? — a pergunta é dirigida a Will.
— Está tudo bem, Sr. Shiravari. Apenas um pequeno incômodo mas nada muito grave.
Terry solta um suspiro, assentindo lentamente, como se precisando de algum tempo para
pensar no assunto. Minha cabeça entorna com a conversa estranha e de repente meu sentido
fofoqueiro é aguçado e quero perguntar o que diabos está acontecendo. Mas, antes que eu sequer
possa pensar em uma pergunta que soe menos invasiva, meu pai vira-se para mim, sem mais
nenhum resquício da expressão contemplativa.
— Evan —diz. — Sua mãe saiu antes de Will chegar. Quando ela voltar, você não vai
comentar nada sobre isso. Entendido?
Abaixo a cabeça, tentando controlar aquela onda de pirraça que me atinge. Com mais
frequência do que eu gostaria de admitir, sinto-me uma criança por dentro, pronta para gritar e
fazer birra, apenas para irritá-lo cada vez mais. Mas não quero fazer fiasco na frente de Will.
Will, por sua vez, me olha com algo que reconheço ser pena. Quando ainda namorava
Hazel, acabei lhe contando alguns fragmentos da minha conturbada relação com Terry e é
provavelmente isso o que me dá uma estranha sensação de ser traído. No fim, o lado racional do
meu cérebro diz que isso não se trata de uma coincidência, afinal, meu pai é médico mas, ainda
sim, é como se Will tivesse pegado uma faca e me apunhalado por trás — ainda mais pelo fato
de Terry estar falando com ele de maneira tão… Calma.
— Acho melhor eu ir indo — Will diz, depois que o silêncio se estende por tempo
demais e começa a ficar desconfortável. — Obrigado pela… Por tudo, Sr Shiravari. Evan, te vejo
por aí? — soa como uma pergunta, mas não sei como responder, então não o faço.
Quando Will vai embora e meu pai fecha a porta, me apresso para subir as escadas
novamente — esquecendo-me por completo do motivo de tê-las descido, para início de conversa
— e me preparar para passar pelo menos mais dois dias trancado no meu quarto.

Domingo é quando preciso sair mais uma vez do meu muquifo porque, de acordo com
uma tradição não dita, os domingos são os dias em que eu e minha mãe vamos ao mercado fazer
as Compras da Semana™. Meu pai não está em lugar nenhum quando caminho pelo primeiro
andar da casa e, como se percebendo o que estou fazendo, minha mãe sorri para mim e passa a
mão carinhosamente por minha nuca.
— Não se preocupe, ele está no escritório fazendo as coisas dele. Não vai sair de lá tão
cedo.
Naturalmente, vamos ao mercado em uma tediosa sessão para descobrir qual tipo de
papel higiênico é o melhor para limpar a bunda. Minha mãe se empolga mais do que deveria,
porém fico feliz em saber que tudo o que ela quer comprar — provavelmente — vai caber nas
ecobags que trouxemos.
Embora seja meio tedioso, ainda assim, gosto de passar o tempo com ela. É silencioso,
mas não é um silêncio pesado, como com meu pai. É apenas calmo e, quando eventualmente
encontramos algum assunto para discutir, é tão interessante quanto.
— Faz tempo que não vejo mais Charlie — ela diz, como quem não quer nada, mas sei
bem o que está tentando fazer. — Vocês andaram brigando?
— Estávamos brigados, mas já nos resolvemos.
Ela começa fingir estar olhando o preço do pão fatiado, embora eu saiba que está
tentando ganhar tempo para decidir se fará ou não a pergunta que não sai da sua cabeça.
— Então por que você anda tão triste nos últimos dias?
Passo a mão por uma das prateleiras, gostando do sentimento nostálgico que me trazem.
— Ah, mãe. É complicado.
Consigo sentir seus olhos em mim, me analisando.
— Conheço esse tom apaixonado. Voltou a namorar com Hazel?
— Não, na verdade. É só que… — engulo os nós que se formam na minha garganta
quando tento falar. — É complicado.
Minha mãe solta um suspiro, decidindo, momentaneamente, focar em escolher o pão —
dessa vez, sem encenações. Agradeço por isso, embora sinta um tipo de decepção que me faz
parecer um idiota porque sei que quero conversar sobre o assunto e também sei que, se ela
insistir mais um pouquinho, acabarei lhe contando sobre tudo o que está acontecendo. A vontade
é quase absurda e meus lábios começam a coçar por conta disso.
Diferente dos meus amigos, posso dizer que tenho uma boa relação com minha mãe. Ela
é compreensiva, engraçada e só de vez em quando careta, o que é muito bom, já que ouvi
inúmeras histórias sobre como muitas mães são o tempo todo caretas. Gosto também do fato de
ela sempre prestar atenção no que eu falo, sempre dar-me sua total atenção quando quero lhe
contar algo. Me sinto importante quando estou com ela.
Embora eu não ache isso uma característica ruim, muitas pessoas — meus amigos e eu
incluso — gostam de falar sobre si mesmos. É algo natural do ser humano, suponho, então,
naturalmente, quando nos reunimos, é costume que cada um de nós conte uma história do que
havia aconteceu conosco na semana. Às vezes, tenho a impressão de que ninguém realmente se
importa com a história do outro, mas que adora quando chega seu próprio momento para falar —
sei que isso não é totalmente verdade porque Charlie ou Max frequentemente me lembram de
algo que lhes contei, rindo por causa disso.
“Ainda não consigo acreditar que você fez aquilo, Evan”, Charlie me diz, com um riso
em sua voz que me faz sorrir de orgulho. Gosto de contar as coisas banais que acontecem no meu
cotidiano porque elas são fáceis de serem ditas, fáceis de serem aumentadas — para deixar a
situação mais engraçada do que realmente foi — e fáceis de serem esquecidas ou lembradas
apenas em momentos oportunos.
Por essa razão, reservo as conversas sérias, em sua maioria,, para a minha mãe.
Depois de ajudá-la a passar as compras no caixa, colocamos tudo nas sacolas ecológicas
e saímos do mercado, apreciando o bom tempo. Ela gosta de caminhar quando é verão e eu gosto
de ficar algum tempo a sós com ela, sem meu pai para nos irritar.
— Sobre o que nós estávamos conversando antes, me lembrei de uma coisa engraçada
— começa, parecendo um pinguim ao andar com duas duplas de sacola em cada ombro. Tento
ajudá-la, oferecendo-me para carregar mais algumas das que já levo, mas ela se afasta de forma
quase brusca. — Quando eu era mais jovem, antes de conhecer seu pai, havia um homem que
parecia um sonho. A primeira vez que o vi foi num desfile militar e fiquei encantada. Ele parecia
um príncipe em cima de um cavalo branco. Tinha a pele dourada, um pouco mais clara que a sua,
e olhos verdes.
— Ah, é? Você nunca me contou sobre isso.
Minha mãe dá de ombros.
— Não gosto de pensar nas coisas que não posso ter porque minha eu do passado
achava que eu não era o suficiente para nada além do que tenho hoje — diz, sem se dar o
trabalho de se explicar. Sei que minha mãe não se arrepende de ter me tido. Ela já me disse
inúmeras vezes que sou o maior amor da sua vida, embora as atuais circunstâncias não a deixem
feliz. O que minha mãe quer dizer, sei bem, é que ela se arrepende de ter subjugado a si mesma a
aceitar um destino medíocre ao lado do meu pai porque pensou que não era boa o bastante para
ter algo melhor. — Eu era uma garota pobre, de uma família pobre, sem muitos sonhos para o
futuro. Quando conheci seu pai e ele me disse que queria ser médico, fiquei encantada. É
horrível admitir isso, Evan, mas pensei nele puramente como um bilhete premiado para ter uma
vida melhor. O problema é que isso veio com consequências.
Ela solta um suspiro, ajeitando as sacolas no ombro.
— O que quero dizer, filho, é que eu te conheço. Você não quer me contar, mas está
louco de amor por alguém. E provavelmente brigou com essa pessoa, pela forma como está
agindo. — Engulo em seco ao ouvi-la dizer. Acho que nunca serei capaz de me acostumar com o
quão facilmente minha mãe consegue me ler. — Não sei se você vai acreditar nisso, mas, se esse
relacionamento for para dar certo, ele vai dar certo de qualquer forma. Deixe o destino trabalhar
um pouco e-
As palavras que saem da boca da minha mãe começam a soar ofuscada com o que vejo:
do outro lado da rua, carregando um bebê em um moisés contra o peito e esperando o sinal abrir,
está Ashton Winsor, parado ao lado de uma mulher ruiva com olheiras profundas.
Meu coração tropeça dentro do peito e preciso puxar o ar com força. Meus olhos estão
vidrados na sua figura, com o bebê e tudo. Ashton parece cansado, as olheiras quase tão
profundas quanto as da mulher ao seu lado, mas está calmo, quase sereno, como se estivesse
seguro, de alguma forma.
Como se tudo o que ele mais ama estivesse protegido em seus braços. Meu olhar desvia
para o pequeno corpinho do bebê, que balança as pernas contra as costelas de Ashton. Ele olha
para baixo, em direção ao neném e diz algo, deixando um pequeno sorriso escapar dos seus
lábios. Meu peito parece prestes a explodir em uma repentina onda de afeição, mas Ashton
repentinamente levanta o rosto e — por pura coincidência ou não — seus olhos caem
diretamente em mim.
Então, para o meu azar, ele entrega o bebê a mulher ao seu lado e vem na minha
direção, se enfiando entre os carros sem o menor medo. A ideia de me virar e sair correndo é
tentadora, embora eu tenha passado os últimos dias querendo vê-lo desesperadamente.
— Mãe, será que eu… Eu já venho.
Dou um passo para trás, afastando-me da minha mãe o suficiente para podermos
conversar, caso esse seja o intuito de Ashton. A esperança começa a florear dentro de mim, como
uma muda regada, mas ela morre no instante seguinte em que ouço sua voz tão fria que é como
se um balde de água gelada tivesse acabado de ser despejado em cima da minha cabeça:
— Você está me seguindo?
— Ficou maluco? — eu digo, soando tão incrédulo quanto me sinto. — Não viu a minha
mãe ali? Por que eu iria te seguir com ela?
Ele demora para responder, como se analisando a minha resposta. Seus olhos viajam por
todo o meu rosto e então sua expressão começa a suavizar, e aquela pequena ruga entre suas
sobrancelhas desaparece.
— Ninguém te mandou aqui? Você está tentando nos vigiar?
Suas acusações conseguem acertar meu coração como uma flecha envenenada. E a
pergunta que parece ser a fincada final me atinge:
— Tem certeza de que você é o Evan? Você-
— Ashton. — Uma voz aguda e quase beirando o irritante chama seu nome, calando-o
no mesmo instante. Atrás dele, a mulher ruiva aproxima-se, com o bebê no colo. Minha mãe nos
observa com atenção, porém agradeço por ela não tentar se juntar na conversa. — Me desculpe.
Você o conhece?
Ela coloca uma mão no ombro dele e é um gesto que parece ter efeito imediato. Seus
olhos voltam a parecer menos vidrados.
— Eu… Nós estudamos juntos. Me chamo Evan.
Seu rosto passa de surpresa, para reconhecimento então ela me oferece um pequeno
sorriso.
— Então você é o Evan — porém, sua expressão quase feliz desaparece em meio a um
suspiro. — Eu disse para não sairmos hoje. Ele não está muito bem. Não sei quanto Ashton já te
contou, mas…
— Eu sei. — É tudo o que digo, embora me arrependa no segundo seguinte, porque não
sei de tudo. E se tiver algo a mais que Ashton não me contou? Ela balança a cabeça e, mesmo
que ela não esteja fazendo nada errado, me irrito um pouco com o fato de estarmos falando sobre
Ashton, como se ele não estivesse bem do nosso lado.
— Ouvi dizer que vocês tiveram uma briga — ela continua e pesco a reação de Ashton
no ar, principalmente a forma como seu rosto abaixa e ele evita meu olhar. — Espero que se
resolvam logo.
Dessa forma, ela se aproxima de mim — mais do que seria considerado aceitável para
duas pessoas que acabaram de ser ver pela primeira vez na vida — e sussurra, sem tirar os olhos
de Ashton:
— Ele realmente gosta de você. Está com raiva e eu não sei o motivo, e sinceramente há
um monte de coisas acontecendo ao mesmo tempo agora, mas logo as coisas vão se resolver.
Como se ela fosse o próprio Universo sendo misericordiosa pela primeira vez na
eternidade ao ponto de me contar um pouquinho do meu futuro, sua voz se impregna no meu
cérebro de forma brutal, o que estranhamente me acalma. E, antes que eu possa perguntar mais
sobre o que está acontecendo com Ashton, os dois se viram e começam a se afastar, com ela
guiando Ashton pela rua.
— O que diabos acabou de acontecer? — a voz da minha mãe me traz de volta para a
realidade.
— Não faço ideia.
Por quê, por quê, por quê

alvez a principal razão por eu ser fascinado por gente ambiciosa é porque
T eu mesmo não faço parte desse grupo.
Minha mãe sempre foi alguém que pode ser caracterizada como
sonhadora. Ela não tinha um emprego dos sonhos — já tivemos essa conversa antes —, nunca
sonhou em casar-se e, por incrível que pareça, em ter filhos. Mas simplesmente sei que ela
rascunha o futuro na própria mente, um futuro melhor, embora sem um rumo exato. Um futuro
idílico. E sei que seu maior sonho é encontrar a felicidade absoluta, embora ela mesma tenha me
dito que isso é algo positivo demais para se imaginar.
— Sempre veja o lado positivo das coisas — ela costuma me dizer. — Mas nunca se
iluda com situações impossíveis.
São essas palavras que continuam em minha mente conforme os dias se passam e
Ashton falta nas detenções. Eu nem sequer me importo com o fato de ter que limpar as salas
sozinho ou pelo quão suado e exausto eu fico depois de uma sessão de varrição, mas a falta de
Ashton — a falta da sua companhia que eu perigosamente comecei a me acostumar— me deixa
mais aflito do que qualquer outra coisa.
É como se ter um som constante atrás da minha cabeça, lembrando-me que algo está
fora do eixo, algo a ser reparado. Lembro das suas palavras no dia em que dormimos no
apartamento do meu irmão: dos seus problemas e de como eu disse que passaria por eles, com
ele. Porém, desde o fiasco na frente da minha casa, Ashton não respondeu nenhuma das minhas
mensagens e o meu sexto sentido me alerta que, o que quer que tenha acontecido para deixá-lo
aflito daquele jeito — e com aqueles olhos melancólicos —, vai muito além de um episódio
maníaco ou depressivo.
Tem algo acontecendo bem debaixo do meu nariz, porém eu, com toda a minha
ignorância, não consigo enxergar.
Consegui ignorar Donovan nos primeiros dias em que Ashton faltou e precisei limpar as
salas sozinhos. Mas, no quinto dia, é impossível.
Acabei de colocar o primeiro pé no chão vazio do colégio quando o vejo no final do
corredor, de braços cruzados, apenas me esperando. Tento controlar o coração embora seja óbvio
que nunca vou conseguir e — para minha sorte ou não — antes que minha mente comece a se
autossabotar de todas as formas possíveis, Donovan me chama com o dedo.
— Nós precisamos conversar — ele diz quando estou perto o suficiente para ouvi-lo.
— Sobre o quê?
— Precisamos conversar — repete, de um jeito tão irritante que a única coisa que
consigo fazer é concordar com a cabeça.
O sigo, encarando sua cabeça calva por alguns segundos. Ele se apressa quando subimos
as escadas e, mais uma vez, me pego pensando em que diabos Ashton está fazendo nesse
instante, já que não está comigo, e uma pitada ciumenta de mim faz meus lábios se contorcerem
quando a ideia de ele estar com Itha-alguma-coisa me atinge.
Donovan abre a porta para mim, deixando-me passar. O escritório fede a mofo e…
Álcool. Meu olhar cai instintivamente no diretor, que abana com a mão como se dispensasse
minha preocupação antes de fechar a porta e caminhar para o próprio assento. Faço o mesmo.
— Sei que não gosta muito de ficar aqui, por isso não vou tomar muito do seu tempo.
Quero que me escute atentamente. É sobre Ashton.
Ele parece saber exatamente quais botões ligar dentro de mim para obter minha total
atenção. Quando escuto esse nome, minhas costas desgrudam do assento e sei que ele gosta da
minha reação, porque não tenta disfarçar o sorriso em seus lábios enrugados.
Donovan continua:
— Estou preocupado com ele. Por isso pedi para você ficar de olho nele. Ashton não
tem muito dinheiro e por isso estava vendendo drogas-
— Eu sei de tudo isso.
O diretor olha-me de cima a baixo. De alguma forma, conforme seus olhos atentos
passavam por mim, simplesmente sei que ele nota a mágoa na minha voz. Não consigo disfarçar
o peso crescente na minha consciência desde a nossa — suposta? — briga, mas não quero dar
munição à Donovan para começar a fazer uma enxurrada de perguntas sobre a vida particular de
Ashton. Não enquanto não sei suas intenções. Não depois do que aconteceu na estufa e aquele
cara mascarado.
— Aconteceu alguma coisa?
Odeio como meu corpo não consegue se controlar com a vontade quase física de
desabafar sobre tudo o que aconteceu com alguém. Bato as mãos nas coxas, limpando o suor no
tecido jeans, tentando ganhar tempo para decidir se permitirei que as minhas emoções tomem o
melhor de mim.
— Não é nada. Nós… Acho que nós brigamos. Não sei. Mas logo vamos voltar a nos
falar.
Consigo pegar o exato instante em que um brilho atravessa os olhos de Donovan.
— Será mesmo?
Não gosto do seu tom de dúvida que consegue plantar a questão de forma certeira na
minha mente. Faz meu corpo se retrair e tenho vontade de gritar com Donovan e gritar que ele
não sabe nada sobre a minha relação com Ashton.
— Você não o conhece como eu — digo, sentindo meu lado racional se contorcer dentro
de mim quando fico autoconsciente do quão defensivo estou soando. — Nós dois viramos
amigos, bons amigos, como você queria, não é? Então, sim, nós vamos nos resolver.
Donovan espera e, como se sabendo que é melhor não confrontar esse mantra que eu
comecei a dizer a mim mesmo nos últimos dias — vamos nos resolver, vamos nos resolver,
vamos nos resolver … — ele encosta as costas no assento e me olha, passando a língua nos
dentes amarelados, parecendo pensar nas suas próximas palavras.
— O que quero dizer é que você está certo. Certamente não o conheço melhor do que
você. Mas isso não me impede de ficar preocupado, Evan. É meu dever como diretor interferir
em uma situação que envolva algum dos meus alunos caso eu perceba que há algo de errado —
ele faz uma pausa. — E nós precisamos trabalhar juntos para continuar mantendo ele bem.
Meu coração palpita quando percebo que suas palavras têm algum sentido.
— Você parece se importar mais especificamente com ele — agora, com essa pergunta,
sou eu quem consigo deixá-lo desnorteado, enquanto tenta, de forma nada discreta, desviar o
olhar de mim. — Por quê?
Há uma pausa. Minha pergunta paira no ar, tão densa quanto uma bigorna em cima de
nós. Tenho medo da resposta e tenho, principalmente, medo do quanto está levando para pensar
em uma.
Donovan puxa o ar profundamente, o deixando estagnado nos pulmões por alguns
pequenos segundos. Logo em seguida, finalmente começa:
— Vai soar careta para você, mas eu vejo Ashton como um filho. Meu filho… Pródigo.
Já ouviu essa história, não é? — ele espera que eu balance a cabeça, mas demoro para absorver
suas palavras, principalmente por elas carregarem um tom de tristeza tão profundo que é quase
como um soco no estômago. — Ashton não sabe muito bem como lidar com os próprios
sentimentos, é fácil notar isso. Ele não tem histórico familiar e a única pessoa responsável por
ele… Sumiu. E, por muito tempo, essa Itha-alguma-coisa, como você a chama, pareceu ser a
única âncora dele, mas isso não significa que ela seja uma boa pessoa. Ashton precisa de pessoas
em volta dele, como eu e você — outra pausa. De repente, não sei mais o que pensar. — Ela tem
um filho. Ele já comentou comigo sobre isso, porque teve que pedir autorização para não
permanecer nas aulas nas quartas-feiras. Ela se aproveita do trabalho dele para conseguir
sustento, está o usando. Ashton está sofrendo por causa disso e é por essa razão que se mete em
encrencas como aconteceu da última vez.
Engulo em seco, com um nó na minha garganta impedindo-me de respirar. Eu a vi há
alguns dias. Vi o quanto Ashton parecia cansado, provavelmente por tudo o que anda
acontecendo, por ter que tomar conta dela e do bebê. Engulo em seco outra vez, em um repentino
ataque de raiva. E se ela realmente se aproveita dessa bondade?
E se Donovan estiver certo?
— Por que você vê Ashton como seu filho?
Escuto o som da cadeira de couro ao ranger. Donovan coloca as mãos cruzadas sobre a
mesa, seu rosto ficando instantaneamente sério.
— Eu perdi um filho, alguns anos mais novo que você. Era meu primeiro filho e o
segundo da minha esposa. Ele foi atingido por uma bala perdida em um tiroteio da polícia contra
uma gangue. Nunca foi feito nada sobre isso. A polícia investigou porcamente o caso e quando
tentei entrar na justiça, não havia promotoria nesse mundo que convencesse o juiz. E… Ficou
por isso mesmo. É como se meu filho nunca sequer tivesse existido.
Ele desvia o olhar para um ponto atrás de mim. Viro o pescoço, seguindo o seu olhar em
direção à estante de livros, recheada de uma coleção de enciclopédias. Sempre negligenciei
aquela parte do cômodo, desinteressado demais, mas, agora, a moldura em cima de uma das
prateleiras cobertas de pó chama minha atenção como nunca.
Meu estômago embrulha.
— Meu filho tinha a personalidade parecida com a de Ashton, sabia? Era meio mal-
humorado como ele, mas, no fundo, meu filho era uma doçura com quem o conhecia melhor.
Ashton deve ser assim também, não é? — sua voz chama minha atenção e me viro para ele
novamente, sentindo meu coração cada vez mais pesado. — Não posso deixar nada acontecer
com Ashton, Evan. Ele é a única coisa que ainda parece existir do meu filho no mundo, por isso
não posso ficar de braços cruzados enquanto vejo alguém como essa Itha-alguma-coisa se
aproveitar dele. — Uma pausa, tão rápida, mas que ainda sim parece demorar uma eternidade. —
Precisamos descobrir onde ela mora, mas ele nunca vai se abrir comigo sobre isso, Evan. Você
terá que fazer isso.
É como se um raio atingisse a minha cabeça. Descobrir onde Itha-alguma-coisa mora?
Como diabos farei isso? Ashton é sempre tão sorrateiro e distante quando o assunto é essa
garota, como se, caso fale demais, algo muito ruim fosse acontecer. E, embora eu não possa dizer
que gosto dela, não quero que nada de ruim aconteça, principalmente com o bebê. Afinal, no fim
de tudo, ela jamais fez algo para mim.
Naturalmente, outra dúvida entra na minha mente: eu deveria contar a Donovan que os
vi no outro dia, andando por aí?
Quando volto minha atenção para o diretor, o encontro já me olhando, como se me
analisasse tendo essa linha de raciocínio. Meus ombros se encolhem em desconforto.
— O que você quer exatamente? Por que quer achar onde ela mora? Que diferença isso
faz?
— Evan — ele diz meu nome como alguém diria “escute com atenção”. — Nós
poderíamos conversar com ela. Fazê-la entender o quão errado é usar Ashton dessa forma.
Talvez, se ela parar de entrar em contato com ele, Ashton note que fica melhor sem ela por perto.
— Eu… Eu não sei. — É tudo o que consigo dizer. Não consigo pensar em qualquer
outro tipo de resposta e minha mente está tão confusa, bagunçada, que simplesmente quero voltar
para casa, deitar na cama e esquecer de tudo o que está acontecendo. — Vou pensar sobre isso.
Ashton é superprotetor em relação a essa garota, mesmo se eu quisesse descobrir… Seria difícil.
Mas vou tentar e talvez eu te diga.
Donovan sorri como aquele gato no País das Maravilhas. Um arrepio cruza minha
coluna, mas não tenho muito tempo para pensar sobre isso porque ele levanta-se em um claro
sinal de que nossa conversa terminou. Suspiro de alívio.
— Lembre de Ashton, Evan. Ele é seu foco. Ele tem que estar bem, não ela. Pense: se
não descobrirmos onde ela mora, ele continuará sofrendo.

Hazel está na minha frente novamente.


E, enquanto observo seu rosto conforme ela retoca o batom escuro pela terceira vez, me
pego pensando em que futuro nós poderíamos ter tido. Teríamos filhos, com certeza, e eles
seriam lindos — teriam a minha pele marrom, os fios claros como os dela e uma mistura quase
estranha entre nossos olhos. Então nossa casa seria no Upper Manhattan, em Nova York, porque
Hazel seria uma modelo famosa e nós moraríamos, ricos, com filhos e cachorros, na cidade das
pessoas ambiciosas. Seria um futuro quase que perfeito, a não ser pelo fato de que não consigo
imaginar-me feliz de jeito nenhum nessa fantasia.
— Por que me ligou dessa vez? — pergunta ela, em sua voz firme como sempre.
Quando meus pais conheceram Hazel — ela foi a primeira namorada que apresentei a
eles — soube que ela naturalmente agradaria meu pai. Eu não descreveria Hazel como fria, ou
sem coração. Ela é apenas quieta e reservada, e não há nada de errado com isso, porque, em
contrapartida, quando confia o suficiente em alguém, pode ser gentil e estranhamente amorosa e
é dessa forma que sei, pela entonação em sua voz e seu olhar fixado em meu rosto, que ela está
preocupada.
— Sabe, seria tão mais fácil se nós tivéssemos continuado juntos. Tão menos
complicado.
Ela me dá aquele olhar estranho de reprovação, abaixando o batom e suspirando
profundamente. No mesmo instante, a garçonete aparece com o seu pedido, deixando-o na mesa
e se afastando para onde deve ser o balcão.
O tempo não está muito bonito: nem um único raio de sol consegue escapar daquelas
nuvens cinzas e o vento assovia como um fantasma do lado de fora, fazendo a estrutura de vidro
— que faz o lugar parecer com uma estufa — em volta de nós balançar. Tumbérgias cercam as
paredes e algumas heras estão penduradas no teto baixo, balançando de um lado para o outro.
Uma abelha não sai de perto de mim, mostrando o traseiro robusto amarelo-e-preto na minha
frente, parecendo muito orgulhosa de si mesma.
— Valeria a pena viver uma vida menos complicada e, ainda assim, não ser feliz? —
Hazel puxa minha atenção para si novamente. — Não me leve a mal, Evan, mas nós não
daríamos certo como um casal, não para sempre pelo menos — faz uma breve pausa para provar
seu café. — Sabe, tem uma lenda que nós, seres humanos, éramos grudados com nossas almas
gêmeas, quase como um ovo cozido. Então, por algum motivo que não me lembro qual, Zeus se
enfureceu conosco e nos separou da nossa outra metade. Por essa razão, vivemos procurando
nossa outra metade do ovo cozido e…eu tenho certeza disso… duvido que seja uma boa escolha
tentar forçar outro ovo cozido que não serve em você.
Tenho que rir do que ela falou. É quase cômico Hazel — a sempre séria e centrada
Hazel! — falando de uma lenda boba como essa para me animar. Mas, em poucos segundos,
meu sorriso começa a desaparecer à medida que reparo que Ashton também diria algo do gênero.
E, de repente, odeio ovos cozidos.
— Você quer dizer que Ashton pode ser meu ovo cozido? — a pergunta soa tão ridícula
mas, ao mesmo tempo, a faço de forma tão séria que, de algum modo, Hazel continua
impassível.
— Isso é algo que apenas você pode saber, Evan. Você acha que ele é?
Dou de ombros, como se não me importasse. A pergunta pesa como uma bigorna na
boca do meu estômago porque desejo que Ashton seja a outra metade do meu ovo cozido de
forma quase brutal.
Prefiro mudar de assunto:
— E como vão as coisas com Will?
É a vez dela desviar o olhar, parecendo de repente exausta.
— Nós… Tivemos alguns problemas sérios nos últimos dias — entre uma palavra e
outra, faz uma pausa, ajeitando-se na cadeira ornamental, desconfortável. — E, bem, parece que
Will tem uma síndrome chamada Riley-Day. Ele não nos contou sobre isso antes porque…
Sendo bem sincera, não tenho ideia do porquê. Will parecia bem alguns meses atrás, realmente
bem, talvez até demais, sempre dizendo que as coisas começariam a finalmente melhorar. Mas
então tudo de repente mudou e ele ficou tão… Distante de nós, como se não fosse mais nosso.
Suas palavras encontram um lugar no meu peito e pergunto-me se foi por essa razão que
o vi na minha casa naquele dia, conversando com meu pai. Apesar de Terry ser um clínico geral
em um hospital respeitado de Toronto, não seria melhor ter ido diretamente a um hospital ao
invés de aparecer em nossa casa? A dúvida paira na minha mente por alguns segundos, mas não
tenho tempo para refletir sobre ela por muito tempo antes que Hazel continue:
— Descobrimos quando Will jogou óleo quente na própria perna. Levamos ele ao
pronto socorro e, quando a enfermeira voltou, dizendo que ele alegava não sentir dor alguma e
que, principalmente, não mostrava nenhum sinal de dor de fato, eles fizeram alguns exames e
depois de poucos dias lá estava.
— Eu… Eu… — não sei o que dizer. Fico como um idiota, esperando encontrar as
palavras certas para expressar qualquer sentimento verdadeiro até que reparo em algo assustador:
apesar de gostar de Will e de ter convivido com ele por um tempo quase cotidiano quando
namorava com Hazel, não consigo sentir nada muito mais intenso do que pena. E essa percepção
me deixa nauseado comigo mesmo. — Sinto muito, El. De verdade.
Quando comecei a namorar Hazel, precisei me apresentar para ele em vez dos pais dela.
Hazel mal falava com eles após uma briga decisiva que colocou um fim no relacionamento e laço
filial — que sequer existia direito — deles. Em uma família de advogados que trabalhavam para
uma firma privada e faziam o trabalho sujo, protegendo aqueles que moralmente não deveriam
ser protegidos, a ideia de a filha única querer ser modelo era risível e, quando ela me contou de
tudo isso, foi como se meu sangue tivesse sido substituído por lava. Então, quando Hazel decidiu
que seria uma boa ideia apresentar-me para Will, não contestei.
A partir do nosso primeiro contato, decidi que gostava dele. Will Hubert era alguém que
se passa facilmente despercebido se você não olhar com cuidado, porém extremamente cativante
caso você decida se esforçar um pouquinho para descascar suas camadas.
“Hazel tem sorte de ter encontrado você, Evan”, ele me disse certo dia, fazendo meu
rosto esquentar. Naquela época — e até hoje — não estava acostumado a receber qualquer tipo
de elogio, e quando ouvi suas palavras, um tipo de alegria que eu sempre sentia quando alguém
me dizia algo do gênero me atingiu. “Você é um garoto muito esperto e tem um futuro enorme
pela frente. Tudo bem não saber o que você quer fazer com dezesseis anos, garoto. Ou com
vinte, trinta, quarenta anos. Sempre existe tempo para se redescobrir ou recomeçar.”
Essa foi uma das várias conversas que tive com Will que jamais saíram da minha mente.
Eu lhe contei muitas das minhas incertezas sobre o futuro e sobre como pensar nele era
assustador. E, em troca, ele me confidenciou que também tinha problemas, embora todos lhe
enxergassem como alguém totalmente tranquilo — ou, como comumente conhecido, o amigo
terapeuta. Will raramente entrava em detalhes sobre sua vida particular, mas eu sabia, pela forma
como seus olhos sempre pareciam distantes, que ele também carregava um fardo pessoal, tal qual
Atlas.
— Espero que ele melhore — volto a dizer, porém, dessa vez, mais sinceramente
conforme as lembranças começam a me atingir. — Will é uma pessoa incrível e ele tem sorte de
ter amigos como vocês, principalmente você, El. Então vai tudo dar certo.
Ou assim eu espero.
Os olhos são as janelas da alma

omo uma forma de castigo que impus a mim mesmo, fico pelo menos
C uma hora inteira olhando as fotos que tirei de mim e Ashton.
Quando comecei a conviver mais com ele, principalmente, passar mais
tempo na sua casa, tive a ideia de carregar comigo a câmera antiga que estava guardada em uma
caixa no fundo do meu guarda-roupa. O cartão de memória não estava cheio — havia apenas
algumas fotos de mim e da minha mãe na praia — então consegui registrar alguns momentos que
passei com Ashton.
A maioria das fotos são compostas por mim o pegando desprevenido. Ele sempre fazia
uma careta assustada quando ouvia o “click!” da câmera disparando, mas nunca me repreendia.
Na verdade, Ashton abaixava o rosto, levemente corado, e perguntava:
— Por que você gosta tanto de tirar fotos minha?
Naqueles dias Ashton e eu não passávamos de nada além de amigos. Eu não poderia lhe
dar a resposta que realmente queria — que seria “porque você é a pessoa mais linda que eu
conheço” — então simplesmente dizia: “Gosto de registrar bons momentos.”
Ashton não sorri em nenhuma delas, mas não parece arisco como pensei que pareceria.
E há uma em específico, que nem sequer lembro de ter tirado, e que, quando a vi pela primeira
vez, depois de dias, fez meu coração disparar de um jeito vergonhoso. Ele está deitado na cama,
com a camiseta levemente levantada, mostrando a pele da barriga. Ashton percebeu que eu havia
mirado a câmera na sua direção e tentou esconder o rosto atrás do antebraço, mas consegui
capturar seu sorriso.
Ele sorria ao ponto de mostrar o dente; ao ponto de mostrar um pouco da sua gengiva.
Ashton tinha um sorriso doce e seus dentes eram pequenos como os de um gatinho, o que lhe
dava uma aparência inocente. Me pego encarando seus lábios e, à medida que o tempo passa,
mais meu coração pesa dentro do peito.
Virar-me na cama com a câmera em mãos não adianta. Meus pensamentos não trocam
de direção como meu corpo e não consigo parar de pensar no som raro da sua risada e em como
meus joelhos amoleceram quando a ouvi pela primeira vez.
— Você diz cada coisa idiota, Evan. Sério — falou ele naquele dia, depois de, com a
maior casualidade, soltar o melhor som que eu havia ouvido em toda a minha vida. Não consegui
parar de sorrir e acho que ele percebeu, porque virou-se para mim, mais sério. — O que foi?
— Nada. Eu só… — foi como se tivesse tentando engolir uma colherada de farinha pura
de uma única vez. Minha garganta fechou. — Você devia rir mais vezes.
Percebi quando suas costas tensionaram. Ele hesitou um segundo antes de voltar a
atenção para o filme que estávamos assistindo — aquela versão de Orgulho e Preconceito feita
em 2005.
— Minha mãe costumava dizer que os olhos são as janelas da alma. Mas que essas
janelas só se abrem quando você sorri.
— É uma teoria interessante.
Ele deu de ombros, ainda sem me olhar.
— É boba, não faz o menor sentido. Mas… Acho que por eu ter ouvido isso dela
enquanto ainda era pequeno, nunca consegui esquecer. Parece que se enraizou em mim e por
conta disso-
— Você não sorri — concluí. Ele assentiu, cutucando a cutícula das unhas. Por ter
começado a passar mais tempo com ele, me tornei um absoluto gênio em notar suas manias:
quando ficava nervoso, Ashton costumava mexer nas cutículas até elas às vezes sangrarem.
Quando ficava envergonhado, desviava o olhar e franzia as sobrancelhas, como se elas fossem
lhe dar uma aparência mais rude para disfarçar a timidez. E, embora não acontecesse com muita
frequência, Ashton de vez em quando pegava a minha mão e mexia na ponta dos meus dedos,
antes de notar o que estava fazendo e afastar-se bruscamente. — Você não quer que ninguém
tenha a visão da sua alma.
— É só uma superstição idiota.
— Mas você acredita.
Seu silêncio foi a resposta: Ashton acreditava.
Seria injusto dizer que ele não tinha profundidade. Ele tem muita, muita profundidade,
como uma trincheira de Mariana infinitamente alinhada com pontas afiadas e envenenadas. O
problema é que essa profundidade é viciante como cocaína. Faz-me delirar ao imaginar quando
poderei usá-la de novo.
Viro-me para o outro lado com o queixo tremendo.

A angústia nos olhos da minha mãe me machuca.


Sei que não sou o único que está sofrendo. Sei que ela percebe minha dor e pega para si
mesma parcela dela. Mas, por mais que eu tente evitar de me sentir assim, nada funciona.
Como Ashton pode ter feito isso comigo em tão pouco tempo? Não sei dizer se o odeio
ou o amo por isso.
O café queima minha boca.
— Merda.
É o segundo dia que eu lhe fazia a mesma pergunta. Faz mais de uma semana desde a
minha briga idiota com Ashton. Naturalmente, um lado egoísta de mim espera que ele tenha ido
ontem para a detenção e que tenha reparado que não fui.
Levanto os olhos em direção a minha mãe, que praticamente dança em movimentos
desorganizados pela cozinha à medida que parece fazer dez coisas ao mesmo tempo. Se fosse
qualquer outro dia, teria me oferecido para ajudá-la — ainda mais ao ver o cabelo oleoso preso
em um coque tão forte que sua pele está esticada para cima, evidenciando que ela não teve muito
tempo para cuidar de si mesma nos últimos dias — mas nem sequer consigo encontrar ânimo em
mim mesmo para tomar esse maldito café.
Um refluxo atinge meu corpo. Culpa é um sentimento horrível. É pior que a tristeza,
pior que a decepção. Essas duas têm algo que te faz refletir, te fazem crescer e evoluir. Porém a
culpa apenas te come vivo e, olhar para minha mãe desse jeito, parece muito com ser afogado.
Quanto mais eu tento me debater, mais me afundo.
Minha mãe tem um corpo frágil. Não é difícil ver isso. Ela é pequena, menor que
Ashton. E magra. Meu pai uma vez me disse que ela tinha mais cor nas bochechas quando não
tinha que tomar os remédios antidepressivos e eu gostaria de conhecer aquela versão da minha
mãe.
Lembro-me vagamente dessa versão quando era mais novo. Minha mãe sempre pareceu
carregar um fardo muito maior do que qualquer um pode imaginar, mas, antigamente, ela parecia
mais leve, mais livre. Talvez com mais esperança de que as coisas pudessem melhorar de
verdade.
Ocasionalmente, minha mãe desabafava comigo quando eu lhe perguntava o que havia
de errado. Ela costumava dizer: “Só estou cansada de ter que resolver tudo o que há de errado
com os outros” e, embora eu ainda fosse novo, sabia o que queria dizer. Minha mãe é a mais
velha de uma família grande e pobre. Quando seus pais começaram a ter muitos filhos, minha
mãe teve que parar de estudar para ajudar a cuidar deles e, embora agora todos os irmãos tenham
crescido, eles ainda correm para ela quando algo terrível acontece.
Normalmente é para pedir dinheiro. Dinheiro que temos — e meus tios sabem disso, por
isso pedem — mas que minha mãe não sente nem o cheiro dele. Meu pai é quem administra
tudo. Por isso, sempre que ela quer ajudar algum dos seus irmãos que estão passando por
qualquer tipo de necessidade, há todo um processo para convencer meu pai de que eles não estão
mentindo para arrancar dinheiro dos outros, já que (leia-se com uma voz grossa): “são
preguiçosos demais para trabalhar ou fazer qualquer coisa de útil”.
Uma das piores brigas que já presenciei entre eles foi quando minha tia — a irmã
favorita da minha mãe — descobriu que estava com um tumor no útero e que precisava fazer
uma cirurgia com urgência. Infelizmente, essa irmã em específico também era uma das que
nunca havia saído realmente da pobreza e, por isso, precisava de ajuda para pagar a cirurgia,
medicamentos e tratamento. Meu pai tentou driblar minha mãe, dizendo que se dependesse dele,
não ajudaria com nem um centavo sequer, e aquela foi a única vez que vi minha mãe gritar com
ele de volta.
De repente, escuto um estrondo. Em um piscar de olhos, minha mãe está no chão, com a
chaleira se movendo rápido demais para eu poder pará-la.
Água quente se espalha pela pele da minha mãe. Sua perna inteira fica molhada,
fumegando como cera derretida.
— Mãe! — Eu grito, enquanto ela não faz isso. Desespero pinica meu coração enquanto
revisto a perna dela de cima para baixo e, imaginando sua dor, meus olhos começam a arder de
agonia.
— Mãe-
— Está tudo bem. — A falta de dor, desespero e ansiedade na voz dela me paralisa.
Como ela pode estar tão calma? A água que caiu da chaleira estava no fogo, deve estar tão
quente que… —Está tudo bem. Não dói.
Meus olhos ardem. Sinto medo por ela.
— Como pode estar tudo bem? Água fervendo caiu na sua perna!
Ela revista a própria pele com tanta casualidade que parece não entender minha
afobação. Quando seus olhos levantam-se e encontram os meus, percebo que não está mentindo.
Nem um único centímetro da sua pele está contorcido em uma careta de dor.
— Não dói. Está tudo bem.
Então ela simplesmente se levanta. E permaneço no chão esperando o grito de dor que
ainda não ouvi.
— Está tudo bem — ela repete, como se lesse a minha mente.
— Você precisa ir pro médico-
— Não. — A rapidez com que ela responde faz sua voz soar quase ríspida. — A água
não estava tão quente. Vamos terminar o café da manhã.
— Mas-
— Por favor.
Olho mais uma vez na direção onde a água caiu enquanto ela passa lentamente um pano
para secá-la. Sua pele está começando a ficar vermelha, mas, embora pareça doer, no rosto da
minha mãe não encontro nenhum sinal de dor.
Em vez disso, há um assustador tom de tranquilidade.
Sinto que vou vomitar.
Volto para meu lugar lentamente, assustado demais para pensar em qualquer coisa.
Minha mãe continua cozinhando como se nada tivesse acontecido, colocando mais pães na
torradeira.
Depois de minutos que parecem horas, minha mãe volta a falar:
— O que você está fazendo?
O sorriso no rosto dela quase cobre as manchas escuras de cansaço nos olhos.
— Pensando.
— Pensar exige astúcia. Você está fazendo um beicinho.
— Mãe!
Ela solta uma risadinha antes de virar a panqueca na frigideira.
— E em que você está pensando?
Limpo a garganta. Meu rosto fica quente.
— Em-
De repente, um celular berra de algum lugar. Procuro nos meus bolsos para saber se é o
meu, mas não o encontro.
— Já volto — aviso ao me levantar e procurar pelo sofá. O encontro embaixo de uma
almofada.
— Alô? — respondo. A respiração do outro lado da linha é como um fogo incendiando
minha imaginação. Pode ser Ashton.
Eu nem verifiquei o número, mas pode ser ele. Pode ser ele.
— Evan?
Minhas pernas tremem. Uma tontura cruel atinge o meu corpo quando reconheço a voz
de Omar.
— Evan? Você está me escutando? — ele chama mais uma vez, esperando uma
resposta.
Ainda não me recuperei da surpresa, mas consigo abrir a boca e murmurar um baixinho
“sim.”
Deus, como eu gostaria de ter lágrimas para chorar agora. Esperança me encheu como ar
num balão… Consigo sentir o olhar da minha mãe em mim. Tento relaxar o corpo, mas todos os
meus músculos estão tensos demais para isso.
— Por que você não veio hoje?
Viro o pescoço na direção da minha mãe. Ela me observa imediatamente, rodando os
olhos pelo meu rosto, como se conseguisse saber sobre o que estou falando apenas pelas
expressões que faço.
Quando franzo a sobrancelha, pedindo ajuda para uma resposta, ela faz um sinal que
talvez ninguém mais entendesse, mas que eu por hábito reconheço na hora. Minta.
— Eu estava mal do estômago.
— Você vomitou de novo? — A voz do meu amigo está cheia de preocupação.
Isso pega-me como uma emboscada. Ele se lembra do quão frágil eu sou com comida,
que qualquer coisa diferente — ou qualquer coisa que eu coma numa quantidade exagerada —
me faz mal.
Omar consegue ser tão amável que a onda de afeição que me atinge é quase uma dor
física
— Não, eu só estava um pouco mal. Não quis ir hoje por precaução. — Limpo a
garganta, esperando que ele fale algo. Mas ele não diz nada. Continuo, desesperadamente
tentando encher esse silêncio esquisito. — Aconteceu alguma coisa?
— Não! Quer dizer, não-
— Você não é muito bom em disfarçar.
A risada do outro lado da linha enche meu coração de mel. Não consigo não sorrir junto.
— Eu estou bem. Aconteceu algumas coisas, mas não foi por isso que eu te liguei.
Encosto-me no sofá. Minha mãe ainda presta atenção em mim, mas posso sentir o cheiro
de mais uma panqueca sendo feita.
— Bem, sou todo ouvido. Pode falar.
— Não surte, ok? Fique calmo.
Meu coração erra uma batida no mesmo instante, mas eu me forço a soltar outra risada,
alta o suficiente para Omar ouvir e saber que eu estou calmo. Eu estou extremamente calmo.
— Fale.
— Você promete que vai ficar calmo?
— Meu Deus, Omar. O Jasper morreu, foi isso? — digo, impaciente. O outro lado da
linha fica em silêncio. Meu estômago embrulha. — O Jasper morreu!?
— Não! — Ele diz. Alívio enche meu corpo, mas logo em seguida, esvazia. O curto
silêncio da voz de Omar me deixa nervoso mais uma vez. — Escute, o Ashton veio falar comigo.
Ele-
— Ashton? Aquele Ashton? Aquele, aquele? — Eu o interrompo, porque não consigo
acreditar… O batimento dentro do meu peito está tão forte que pareço ter dois corações. Nem
sequer me dei o trabalho de perguntar como diabos Ashton havia conseguido o número dele.
— Sim. Ele veio perguntar se eu te vi nos últimos dias e eu respondi que havíamos
conversado por mensagens algumas vezes, mas que não te vi pessoalmente fazia mais ou menos
uma semana.
Meu peito desce e sobe tão bruscamente que não consigo ficar sentado. Eu pulo algumas
vezes, tentando fazer alguma coisa com a energia que atinge meu corpo. Ele perguntou de mim.
Ele perguntou de mim. Ele perguntou de mim.
— Ashton falou mais alguma coisa?
— Ele disse que era pra eu te avisar pra encontrar ele na Woodbine. Mas como você não
foi ontem, não consegui te avisar. Eu… eu não tive coragem de te contar até agora.
Merda.
Merda, porcaria.
Quero gritar de frustração
Não acredito que logo quando ele tentou falar comigo, eu não fui. Eu sou um idiota. Um
imbecil.
Quero me espancar.
— Você tem o contato dele? — pergunto. As palavras saem entrecortadas da minha
boca. Não consigo respirar direito. — Por favor, me diz que sim.
— Sim, eu tenho-
— Ótimo. Avisa ele que é pra ele ir na Woodbine. Sete horas. Hoje. Diga pra ele não
esquecer. Sete e meia.
— Mas-
— Obrigado, Omar! Você é incrível.
Então eu desligo, com o coração na boca.
***
Fui sincero com a minha mãe: lhe contei algumas coisas sobre Ashton. Ela não pareceu
surpresa e, apesar do fato de saber que minha mãe não é homofóbica seja aliviante, fiquei
ofendido por ter habilidades de atuações tão ruins.
Ela até me deu dinheiro pro táxi.
— Volte antes do seu pai. Você sabe o horário que ele chega — foi o que ela me disse
antes de eu entrar no carro.
Porém, quando chego na Woodbine, arrependo-me de ter começado tudo isso. Quero
dizer, eu estou sozinho nessa vasta praia, cheia de lembranças, apenas com o cheiro salgado do
mar e o barulho das ondas. É melancólico demais para o meu estado atual de humor deplorável.
Caminho até o lugar em que eu me sentei da última vez. Não é nada parecido como
quando eu liguei para Ashton. É quase solitário, mas num cenário onde ser solitário não é
necessariamente algo ruim.
Conforme o vento bagunça meu cabelo para todos os lados, pego um punhado de areia e
a deixo escorrer entre os vãos dos meus dedos.
Meu peito pesa.
Não escuto passos. Não escuto nada além da minha própria respiração e a água. E,
quando deito de costas na areia, com os braços abertos, a sensação de frieza nos meus pés
entrega que a água está chegando perto.
Meus cílios batem na sobrancelha quando abro as pálpebras para olhar o céu. O tom
azul escuro exalta os pingos brancos das estrelas, como se fossem pinceladas de um artista. E um
sorriso travesso que brilha como uma tocha lunar, parecido com o do gato da Alice no País das
Maravilhas.
A areia esquenta minhas costas, depois de ter ficado horas no sol. Sei que eventualmente
a maré subirá e eu precisarei me mover caso não queira encher outra roupa de água salgada, mas
estou me sentindo tão calmo que não consigo me importar o suficiente. Meu coração bate como
o ponteiro de um relógio; regular e calmamente. É quase como se a angústia que eu senti essa
semana inteira não existisse.
Fecho meus olhos em algum momento. O cheiro da água entra nos meus pulmões e os
faz arder, mas a ardência me deixa extasiado.
Sorrio. E então paro. Escuto passos.
Quase esqueço do porquê estou aqui. E quando lembro, levanto num pulo. Meu corpo
todo volta a arder. A queimar, a doer.
Ashton.
Ele está na minha frente. Está aqui. Ele veio. Ele…
De um segundo para o outro, estou chorando.
Lágrimas esquentam minha bochecha e antes, que eu possa controlá-las, Ashton dá um
passo para frente e me puxa pelo braço. Meu peito se choca contra o dele, como água se
chocando contra uma rocha. Causa uma explosão — quase consigo sentir faíscas saindo do meu
coração.
Meu peito desce e sobe como uma montanha russa. Aperto os dedos contra sua blusa,
me prendendo nele como se, caso eu não o aperte com força, ele vá sumir. A mão de Ashton
escorrega para a minha nuca antes de empurrar minha cabeça contra o próprio peito e é nesse
instante eu escuto o coração dele batendo insanamente. Não. Eu sinto o coração dele.
Um soluço escapa da minha boca. Ele beija minha têmpora; beija meu pescoço; beija
minhas bochechas.
Não tenho certeza se o amor é mais como voar ou cair, mas estou no ar de qualquer
maneira.
— Eu- — Engasgo com outro soluço. Minhas mãos oscilam nas costas dele, mas eu me
recuso a afrouxar o aperto.
— Shh…
É a primeira vez que eu escuto a voz dele depois de nosso último desentendimento. É a
primeira vez que realmente presto atenção nos detalhes dela. A primeira vez que eu noto como
ela entra nos meus ouvidos como uma música nostálgica. A primeira vez que noto o quanto meu
coração palpita em ouvi-la.
— Ashton-
— Sh.
— Eu amo você.

— Você fez exatamente o que eu temia que você fizesse.


Ashton vira o rosto ligeiramente para cima. O sorriso travesso da Lua faz suas íris azuis
brilharem.
Não me importo com mais nada quando o vi. Quando ele me abraçou, o tempo parou de
passar, mas agora que a adrenalina saiu do meu corpo, começo a reparar na aparência dele.
Ashton parece estar mais cansado do que o comum e uma parte de mim torce para que ele tenha
sentido minha falta tanto quanto eu senti a dele.
O mar está mais raivoso. As ondas se tornam ousadas o suficiente para chegar perto da
plataforma de madeira em que nós estamos. A ponta dos meus all-star raspa na água quando ela
vem e volta.
— O que eu fiz? — digo, inocente como uma criança.
— Você- — Ele engasga com as próprias palavras. Posso ver o seu pomo de Adão
subindo e descendo. — Você disse que me ama.
— Você está corado?
Sinto como se meu peito tivesse sido derramado em mel quando vejo as bochechas
vermelhas de Ashton. Ele vira o rosto para o outro lado e uma risada se desenrosca da minha
garganta.
— Por que você tem medo que eu te ame? — pergunto. Meu tênis roça na água mais
uma vez.
— Porque… — Ashton faz uma pausa. Nada de respiração acelerada, nem vozes falhas.
Apenas silêncio. Ele tem todo o meu foco agora. — Eu não sei se conseguiria fazer da maneira
correta… Ou ao menos da maneira que você merece.
Meu peito desacelera.
Não quero parecer tão chocado com isso, mas um tiro teria doído menos.
O que eu estava esperando, afinal? Que nós nos casaríamos e teríamos vários gatinhos,
numa casa em Quebec, onde eu aprenderia francês para fazer piadas perversas com ele?
Afasto-me um pouco dele. Quase sinto um refluxo no estômago quando uma pequena
vozinha diz na minha cabeça, “saia de perto dele. Ele não te ama, então não poderá mais
encostar em você.” Encosto os joelhos no peito, os apertando com força.
Que patético, mostrar minha decepção tão fácil assim.
— Evan-
— Tudo bem. Eu nunca disse com a intenção de você me dizer o mesmo.
Ashton me encara agora. Consigo ver a dor nos olhos dele, como se eles estivessem se
desculpando comigo. Como se sentissem dó.
Patético. Por que eu fui abrir minha boca?
Queria dizer que havia sido uma brincadeira. Mas fazer isso só provaria o quanto eu
fiquei chateado e eu quero que ele pense que eu não me importo quando…
Merda. Eu me importo. Muito. Mais do que meu coração pode suportar.
A água volta, mas dessa vez eu não deslizo meu pé sobre ela.
— Evan-
Não quero mais escutar a pena na voz dele.
— Eu posso te beijar? — pergunto.
Os olhos de Ashton topam com os meus e quase vejo a confusão rolando para dentro da
sua mente.
Meu corpo entra em combustão mais uma vez. Dedos deslizam pelo meu braço,
deixando um rastro por onde passam; uma marca no meu corpo que ficará ali para sempre. Meu
corpo se emociona, e antes que eu tente me impedir de me entregar a ele, Ashton já encostou o
nariz no meu.
Ele está tão perto que eu poderia contar seus cílios.
— Eu não posso dizer que te amo, mas não porque não sinto nada por você — ele diz,
em um sussurro feito para mim, e apenas para mim, ouvir. — Se eu te disser isso e acontecer
alguma coisa com você, meu amor — Ashton faz uma pausa. Não consigo respirar. Meu amor.
— Eu não vou conseguir-
Eu o calo. Meus lábios se chocam com os dele como se a lua beijasse o sol.
Como uma explosão. Um eclipse.
— Não vai acontecer nada comigo — lhe digo, como se soubesse de qualquer coisa
sobre o futuro. Seus lábios deslizam pelos meus enquanto faço isso e, em seguida, Ashton
balança o nariz no meu, igual a um felino. — Eu amo você.
Beije meu anel, Heféstion

len Stewart Ravine.


G Eu já vim aqui uma vez, quando era pequeno. Algumas pessoas dizem
que é um oásis no leste de Toronto, um pequeno refúgio escondido no meio de
uma floresta, onde não precisam sair da cidade para poder caminhar em um calçadão arborizado
de madeira que passa por um desfiladeiro e um córrego.
Apesar de estar no extremo leste de Toronto — no bairro Beaches — e ser a vinte e sete
minutos de distância da praia, Ashton conseguiu um jeito de nos fazer chegar rápido. Sua moto
era tão barulhenta que parecia que iria acordar toda a vizinhança e, antes de entrarmos nas
trilhas, ele gentilmente me ofereceu comida de um restaurante da rua Kingston Road.
Sendo sincero, eu não sabia se gostava da ideia de trocar o mar pelas árvores do Glen
Stewart, mas Ashton ficou muito animado com a ideia de vir para cá. Nunca imaginei que ele
seria o tipo de cara que gostaria de natureza, mas quanto mais eu paro para pensar, mais percebo
que ainda tenho muito a conhecer sobre ele.
Talvez seja a culpa falando mais alto, mas Ashton está dócil. Não há mais aquela ruga
na testa e, embora eu goste de pensar que é porque ele está feliz de ter voltado a falar comigo,
prefiro manter os pés no chão dessa vez.
Ele até se oferece para carregar um refrigerante, para eu poder comer melhor, erguendo
a mão para o canudo alcançar minha boca toda vez que eu inclino a cabeça para frente. Se eu
ainda não estivesse ligeiramente magoado por ter sido o único que disse aquelas três palavras
estúpidas com tanta adoração, teria ficado alegre como um cachorro vendo o dono.
— Você está pensando em quê? — a voz dele soa como um sussurro nos meus ouvidos.
O vento está forte, apesar de não estar tão frio quanto a brisa do mar. As folhas balançam em
volta de nós como velhas fofoqueiras que nem se preocupam em abaixar o tom enquanto
passamos.
— Em nada e em tudo ao mesmo tempo.
Ashton levanta a mão. O canudo entra na minha boca. Sugo o refrigerante. Ashton
abaixa a mão.
— Você faz um biquinho quando pensa.
— Não, eu não faço.
A risada que escuto quase me faz desistir de ficar ressentido com a pessoa ao meu lado.
Apesar de eu não gostar muito de florestas, é uma boa forma de escapar da cidade, já
que, não importa a direção para que olhe, não consigo ver o brilho das ruas movimentadas. É
bom para espairecer, como quando você está cansado de seres humanos e quer apreciar a
presença de plantas.
Logo à nossa frente, o calçadão de madeira acaba e uma trilha de terra toma conta do
caminho. Ashton está um pouco na minha frente e o som das pedrinhas embaixo dos pés dele
preenche a floresta silenciosa. E o sigo de perto.
Talvez seja porque realmente estou muito acostumado com a cidade, mas quase posso
sentir a textura do ar, como se as folhas tirassem a poluição de mim e o ar se tornasse mais
limpo. Mais fresco.
— Você está fazendo de novo — diz.
O olho de relance. Ele ainda está olhando para frente, com uma expressão firme, mas
encontro uma surpresa agradável que fez meu pulso palpitar: há um sorriso erguendo o canto dos
lábios finos.
— Tem certeza de que você não quer? — pergunto, porque não parece certo comer tudo
isso sozinho. — Tá uma delícia.
— Eles colocaram calabresa aí — Ashton para ao meu lado. Sinto sua atenção em mim
— Não quero sentir o gosto do porco.
Pode ter sido impressão minha, mas em um relance, consigo ver as sobrancelhas finas se
curvarem para cima. Ele parece estar tão machucado. Um tipo de machucado que ainda tem
tempo de ser curado, mas que ninguém nunca se ofereceu para ajudá-lo a melhorar.
Um gosto ruim surge na minha boca.
Sei que Ashton sofre. Ele está constantemente sofrendo com alguma coisa. Ashton tem
muitas travas e ele parece não querer se livrar delas. Talvez esse tenha sido o mecanismo de
autopreservação que ele encontrou, mas saber disso não acalma a aflição em meu peito.
Eu faria qualquer coisa para ajudar, porém eu não sei por onde começar. Preciso de um
guia, mas não sou estúpido o suficiente para acreditar que exista um.
— Vem aqui.
Ashton me puxa antes que eu possa continuar a pensar. Penso por um instante que ele
me daria outro beijo, mas quando ele me pega pela cintura e me desvia da trilha para o meio do
mato, resmungo de frustração.
— Onde você está me levando? — Coloco outra batatinha na boca, estreitando os olhos
para tentar enxergar algo. O mato que toca todo o meu corpo como línguas ásperas me deixa
desconfortável ao ponto de precisar arrastar Ashton para perto.
Alguns galhos arranham minha pele enquanto andamos. Solto um grito de dor me viro
para o lado contrário de onde ele está me levando, tentando sair desse lugar.
— Ei. — Ashton me chama, me puxando mais uma vez. Escorrego para trás, mas antes
que eu perca o equilíbrio, mãos tocam meus ombros e me mantêm firme no chão. — Aonde você
está indo?
— Sair daqui.
— A gente tá quase chegando. — Não consigo ver no escuro, mas sinto o quão perto ele
chegou através do toque no meu nariz. Um toque molhado. — Vem comigo. Eu quero te mostrar
uma coisa.
Acabei de receber um beijo no nariz.
Nós entramos mais fundo na floresta densa. A pressão das folhas fica cada vez mais
forte, e em alguns momentos, bato em troncos farpados com tanta força que folhas caem. Mas
Ashton continua intacto, como um soldado em um campo de batalha.
O céu está coberto por muitos galhos e folhas para que a luz da lua possa iluminar o
caminho. Não faço ideia de como Ashton sabe para onde estamos indo, desviando como uma
dança macabra de qualquer coisa que pareça perigosa. Tenho dificuldade de caminhar, tentando
tomar o máximo de cuidado possível com as plantações de flores espinhosas.
— Na verdade, nós não deveríamos sair da trilha. As plantas são delicadas e, com
certeza, a gente já estragou algumas. Tome cuidado onde pisa, seja o mais gentil possível, já que
nós vamos fazer isso de qualquer forma — a voz de Ashton parece como a de um professor me
ensinando a não arrancar as rosas do jardim da escola. — Existem mais de 100 espécies de aves
migratórias que se abrigam nessa floresta e constroem ninhos dentro das árvores. — Ele conta, a
voz tão suave como a de uma mãe tentando acalmar o bebê. — Mas também existem alguns
pássaros que vivem o ano todo por aqui. Por exemplo, o cardeal do norte, o chapim-preto e o
pica-pau felpudo.
Não consigo segurar a risada que se forma na minha garganta. Sinto o aperto na minha
cintura aumentar.
— Eu realmente queria saber de onde você tira essas coisas. Você fica vendo sobre
pássaros na internet? Que sexy-
Antes que eu tenha tempo para pensar, dou um passo em falso e meu pé desliza pelo
chão. As batatas caem da minha mão e um galho rasga minha bochecha, mas, antes que eu acabe
caindo em cima do pé e o torça, aquelas mãos na minha cintura me seguram.
— Não zombe de mim. Eu estou tentando te acalmar.
Meu coração flutua como se estivesse no ar.
— Eu não estou zombando- — Levanto a mão para tapar a boca, mesmo que outra
risada já tenha escapado dos meus lábios. — Quero dizer, você tem dezenove anos. É difícil
imaginar uma pessoa de dezenove anos interessada nesse tipo de coisa.
— E você esperava que eu estivesse interessado em quê? — Ao invés de uma mordida,
um beijo encosta na minha pele. Meu corpo entra em combustão. — Visse porn-
— Não!
Sinto o peito dele tremeluzir contra o meu quando ele ri.
— Tudo bem ficar com ciúmes.
— Por que eu sentiria ciúmes? — Saio do aperto de Ashton, mas ele não me deixa ir
muito longe antes de se aproximar de novo. — Eu sinto zero ciúmes de você. Nem um
pouquinho.
— É mesmo?
Só então eu noto. A voz dele está tremendo. Esse tempo todo, desde o momento em que
nós descemos da moto e eu corri para alcançar sua mão, a voz de Ashton nunca deixou de
tremer.
Ele me puxa mais uma vez, me mantendo próximo. Reparo também no barulho que a
respiração dele faz em meio ao barulho das folhas se movimentando e da água do córrego não
muito longe. Está agitada, exatamente como a minha segundos antes de ele me abraçar.
O que poderia deixar Ashton tão nervoso?
Seja o que for, eu quero saber.
Seiva continua lambendo a ponta dos meus dedos enquanto nós andamos. Em algum
momento, começo a suspeitar que tudo isso é brincadeira, mas de repente Ashton para.
Ele para tão abruptamente, como alguém possivelmente morto para ao ver o próprio
assassino.
Eu teria me preocupado se não tivesse visto o que eu vi.
Um pergolado.
Mas um pergolado abandonado.
— Ashton…
Uma imensa árvore cresce ao lado do pergolado. Reconheço algumas heras mortas
penduradas no canto das vigas de madeira. Galhos se apoiam nas colunas para subir até o topo e
formar um teto de folhas escuras. Do lado contrário de onde nós estamos, tecidos finos descem
da base até o chão, como uma parede.
Nunca vi algo tão lindo e tão assustador ao mesmo tempo.
— Esse lugar. — Ashton diz de repente. Fiquei tão admirado com o pergolado que não
notei que ele saiu do meu lado. Prendo a respiração antes de dar um passo para frente, sentindo
um galho rachando debaixo do meu pé. — Ele é muito importante para mim.
O vento faz o tecido apoiado nas vigas de madeira flutuar como uma terceira presença.
Meu peito se aperta, mas não sei o porquê.
Algo no fundo da minha mente continua sussurrando lembranças que não são minhas;
lembranças que provavelmente não existem.
Todo esse lugar, o jeito que Ashton está se movendo com tanta hesitação, a forma como
o matagal cresce como um parasita em volta do pergolado… Tudo isso é tão melancólico.
Alguém deixou uma marca aqui. Se eu me concentrar, consigo sentir a sensação de
outra pessoa. Não misticamente falando, não. Eu consigo sentir através dos passos fracos de
Ashton. Da forma como ele segura o tecido flutuante e fica parado feito uma estátua olhando o
chão vazio, como um amante fica vendo seu amado sorrir como um nobre magnífico.
Meu estômago aperta.
Deus, esse lugar é recheado de outra pessoa.

Ashton joga-se no divã branco. Fico alguns segundos observando-o.


Como uma pintura muito detalhada, Ashton é terrivelmente encantador. Eu odeio. Odeio
como o cabelo dele se mexe com o vento, como ondas fracas. Odeio como os olhos dele
combinam com qualquer cor. Odeio a pele da boca dele, por ser tão macia. Eu odeio tudo. Odeio
porque é nojento a forma como eu gosto tanto de tudo isso.
Eu o reconheceria na escuridão.
— De novo. — Ele zomba. Desvio o olhar, parando de encarar.
É difícil não revirar os olhos.
Jogo-me no divã ao seu lado, apoiando a lateral do meu corpo no seu.
Ashton ficou dez minutos inspecionando o pergolado, mexendo nas flores mortas e
tirando o pó de alguns móveis. Não me atrevi a perguntar como diabos ele conseguiu trazer todas
essas coisas aqui, porque, por algum motivo, senti como se não fosse gostar da resposta e decidi
ser mais útil e ajudá-lo a limpar.
— Não posso ficar na sua casa hoje — murmuro enquanto minhas pálpebras levantam
para o teto de folhas que nos cobre. O corpo dele se move embaixo de mim e eu o escuto
soltando um grunhido decepcionado. — Minha mãe quer que eu volte antes do meu pai. —
Desvio o foco, sentindo o calor atingir minhas bochechas. — Eu contei sobre você pra ela.
Não é difícil ver Ashton levantando as sobrancelhas.
— O que você falou?
— Expliquei algumas coisas, mas nada com muitos detalhes.
Silêncio.
O único barulho que eu consigo ouvir são os grilos e a minha garganta engolindo a
saliva. Não parei para pensar em como Ashton se sentiria com isso, e, caso ele fique bravo e
brigue comigo de volta, eu não-
Um toque carinhoso no meu calcanhar acalma meu coração.
— Que bom.
Fecho os olhos, sentindo o pânico sair do meu corpo. Decido aproveitar aquele carinho
um pouco mais.
— Se você fosse Aquiles, eu poderia te matar agora.
Uma risada se desenrola da minha garganta.
— Que bom que eu não sou.
Um dia, quando eu dormi na casa de Ashton, ele passou duas horas me explicando do
porque tinha certeza que Aquiles e Pátroclo eram uma casal e que os historiadores diziam que
eles eram apenas amigos porque era mais conveniente. Quer dizer, faz sentido, eu também digo
para os outros que eu e Ashton somos apenas amigos, mas nós…
Nós nos beijamos. Várias vezes. Aquiles e Pátroclo eram amigos assim?
E agora a fascinação de Ashton por esses dois me contagia. Nunca admiti isso em voz
alta, mas eu já procurei muito sobre a Guerra de Tróia por causa disso. No começo foi porque
queria ter mais assunto com Ashton, mas depois que li tudo o que li, consegui entender o porquê
de tanta gente acreditar na mesma coisa que ele.
— Você seria meu Pátroclo. — A voz de Ashton soa no silêncio da noite. Até os grilos
ficam quietos para ouvi-lo dizer aquilo.
É difícil controlar meu coração quando ele diz esses tipos de coisa.
— A gente é uma cópia do Heféstio e do Alexander, que são uma cópia do Aquiles e do
Pátroclo.
Ashton se vira para mim com os olhos brilhantes.
— Você conhece o Heféstio e o Alexander?
O sorriso travesso que eu dou corta os meus lábios.
Estendo a mão, em um ato de falsa elegância. Ashton franze as sobrancelhas para a
minha atuação, mas quando parece entender o que eu estou fazendo, um sorriso molda seus
lábios.
— Beije meu anel, Heféstio — digo.
A covinha na bochecha dele aumenta, assim como o peso no meu coração. Meu corpo
se arrepia quando os lábios dele encostam na minha pele.
Nós ficamos em um impasse por alguns segundos, sem saber quem deveria se afastar
antes. Decido que seria melhor eu fazer isso, e quando faço, tenho que limpar a garganta para
disfarçar o quanto eu me sinto tonto de excitação.
Depois de um momento em silêncio, ele volta a dizer:
— Esse lugar sempre me faz ter boas memórias.
— Eu sou uma boa lembrança?
Ashton empurra meu pé para fora do colo bruscamente. Mesmo fingindo rudez com
aquelas mãos ásperas, o sorriso carinhoso nos lábios dele não me engana.
Ergo a mão mais uma vez, não conseguindo me controlar. Preciso tocá-lo. Minha palma
para com delicadeza sobre a bochecha de Ashton e sorrio satisfeito quando vejo arregalar os
olhos discretamente.
— O que você está fazendo? — Ele pergunta.
— Te admirando. — respondo. — Como o Pátroclo faria com o Aquiles.
O brilho que corta os olhos de Ashton faz meu coração pular de alegria.
Ficamos assim por um tempo, sem desviar o olhar, mesmo que a cortina voe como
fantasmas por nós. Meu foco é todo dele e apenas dele.
Até o silêncio se tornar tenso. Pelo tremeluzir dos lábios de Ashton, noto que ele quer
dizer algo e um pequeno pânico de ansiedade se infiltra no meu peito enquanto eu espero.
— O que nós somos? — ele pergunta.
Minha mente fica em branco.
Não sei o que responder, mas sinto que Ashton quer uma resposta. Que ele precisa de
uma. Essa urgência me assusta.
Meus dedos deslizam delicadamente por sua pele, abaixando para o queixo. Ashton
torna-se morno embaixo da minha palma.
— Eu não sei. O que nós somos?
Ele levanta uma sobrancelha.
— Eu perguntei antes.
Paro para pensar. Não pensar realmente, mas para ganhar tempo antes de dizer as
primeiras palavras que vierem na minha mente. Os olhos turbulentos que me encaram fazem meu
estômago embrulhar e depois de ter se passado quase um minuto inteiro, me arrependo de não ter
pensado em uma resposta de verdade.
— Eu acho… Que a gente pode ser o que você quiser.
Essa não devia ser a resposta que Ashton queria ouvir, e meu coração começa a martelar
forte contra o peito por causa disso.
— Então nós somos algo.
Meu dedo percorre o caminho para o canto dos lábios dele.
— Pode ser.
— Já que nós somos alguma coisa, eu posso te contar o que eu quiser. — Ele parece
estar falando mais para si mesmo do que para mim, mesmo assim eu concordo. — Não é como
se eu estivesse quebrando a promessa que fiz, certo?'
Quando noto o tom de ansiedade naquela voz que normalmente é tão controlada, a
percepção me atinge como um soco. Ele está prestes a me falar alguma coisa; alguma coisa
importante, alguma coisa do próprio passado.
— Claro.
Ashton balança a cabeça, afastando o rosto da minha mão. Ele abaixa os olhos e encara
as próprias mãos por vários segundos, apertando os lábios com tanta cólera que eu sinto o
instinto de tentar tocá-lo novamente. Mas, quando eu faço isso, ele se afasta.
Parece que os gremlins do pensamento estão no comando do meu cérebro, e eu me
mantenho afastado, como ele quer.
— Eu tinha um amigo. Um pouco alto, magro e o cabelo mais claro que o seu. Ele… —
Seu rosto começa a ficar gradativamente mais pálido. — Ele era lindo. Dolorosamente lindo.
Quando eu vi Fraser pela primeira vez, senti como se eu finalmente descobrisse o significado de
beleza. Ele… Ele era incrível.
Ashton faz uma pausa, para respirar fundo, como se as palavras que saem da sua boca
fossem espinhos que machucam seus lábios.
Ele não é o único ferido. Meu coração arde enquanto ele diz isso. Porque eu nunca o vi
dizer algo tão afeiçoado sobre alguém.
Fraser.
Será que Fraser escutou o “eu te amo” de Ashton?
Aperto os dedos contra a palma. A dor das minhas unhas entrando na carne alivia o nó
na minha garganta.
— Fraser sempre me ajudava. Mesmo que eu tenha sido um idiota com ele no começo,
ele nunca desistiu. — Uma pausa. — Mas quando Fraser decidiu que ia me ensinar inglês é que
as coisas mudaram de verdade. Foi quando eu notei que… estava errado. — Ele respira fundo
antes de mirar os olhos intensos sobre mim. — Por muito tempo eu achei que não era capaz de
amar. Tirando a minha mãe, ninguém nunca me mostrou um ato singelo de carinho e
preocupação, e quando ela morreu e eu fui morar com meu tio, eu achei que nunca encontraria
ninguém que faria eu me sentir amado de novo.
Minha mão voa para o joelho de Ashton, antes mesmo que eu possa me controlar.
— Você não-
— Eu sei. Hoje em dia é diferente. — Ele desvia o olhar para a própria mão, enquanto
aperta a pele do braço, com o alto das bochechas rosadas. — Mas tudo isso aconteceu quando eu
era mais jovem. Talvez se a gente tivesse se encontrado naquela época-
— Uma sorte que nós não nos encontramos.
Recebo um olhar questionador. A timidez atinge meu corpo.
— Eu não era um pré-adolescente muito normal. — Explico. — Meus pais quase se
separaram muitas vezes, então eu me meti em muitas brigas na escola porque queria atenção. E
eu… Fiquei com muita gente nessa época — limpo a garganta. — Eu era inseguro e precisava
que as garotas fossem muito carinhosas comigo para eu me sentir bem.
— Então você é um garoto romântico, hum?
É difícil impedir que minhas orelhas não fiquem vermelhas. Aperto as pulseiras de
couro e desconverso:
— Continue o que você estava falando.
Divertimento pinta o rosto de Ashton.
— Como eu disse, eu não acreditava muito em amor e essas coisas. Mas então Fraser
apareceu e, quanto mais a gente se encontrava para as aulas de inglês, mais eu comecei a me…
Apaixonar.
Levanto a sobrancelha.
Ele me dá um olhar incógnito. Pela primeira vez em muito tempo, é difícil imaginar o
que ele está pensando.
— E então? — incentivo.
Escuto o barulho de tecido se movendo. Não tenho tempo de olhar para baixo e
descobrir o que Ashton fez quando sinto um frio na ponta dos dedos e a pele dele se choca contra
a minha. Por mais estranho que pareça, é bom finalmente sentir alívio de poder tocá-lo.
— Minha mãe morreu quando eu era muito novo — ele começa. — Problemas de
coração, hereditário. Ela infartou na minha frente, enquanto nós estávamos sozinhos em casa. Eu
não tenho pai, ele desapareceu quando descobriu minha bipolaridade, porque achava que minha
mãe tinha traído ele, já que não tinha como um filho legítimo dele ser doente mental. — A voz
de Ashton sai amargurada e eu sinto nos ossos a raiva dele através do toque das nossas mãos. —
Eu não sabia o número para chamar as ambulâncias. Por um tempo eu achei que ela
eventualmente ia acordar de novo, mas quando começou a feder eu-
Balanço a cabeça, o encorajando a continuar.
Ele entende meu recado e recupera o ar.
— Então eu chamei um vizinho. Quando me falaram que ela estava morta, perguntaram
se eu tinha algum parente para onde ir e disse que não, eu dormi na delegacia. Mas na manhã
seguinte, um tio que eu não fazia ideia que existia apareceu. Ele tinha ficha criminal, e eu não
consigo imaginar de como ele conseguiu minha guarda, mas conseguiu.
— Ficha criminal?
— Cohen trabalhava com uma gangue em Quebec. Eles tinham conexões com a França,
mas não eram igual a máfia italiana ou a mexicana. Era só uma gangue de um bando de garotos
que precisavam de dinheiro e traficavam para conseguir. Cohen devia parecer um bom… Como
é a palavra?
— Chefe?
— Não exatamente isso, um…
— Guia?
— Isso. — Ele assente. — Cohen era um bom guia para adolescentes que precisavam
que alguém os ajudasse, principalmente em uma situação de abandono como a deles. E ele queria
me pôr nisso, é claro. Foi então que eu comecei a passar mais tempo na rua do que na casa dele.
— Mas por que vocês vieram pra Toronto?
As sobrancelhas dele se juntam e as rugas aparecem. Os olhos de Ashton se tornam
sombrios quando ele continua:
—A gangue se envolveu com um escândalo. Um assassinato. Meu tio não queria nada
disso, aparentemente, então nós fugimos. Quando perceberam que meu tio os abandonou para
salvar a própria pele, se aliaram com uma outra gangue menor e formaram algo enorme. Cohen
jamais daria conta daqueles pirralhos. — Uma pausa. Ashton puxa a respiração. — Acho que ele
queria ir para o oeste do Canadá. Nós paramos em Toronto por um dia, pra descansar. E
brigamos. E eu fugi. Ele não veio atrás de mim. E então eu tive mais uma confirmação que
ninguém me amava. Ninguém vivo, pelo menos.
— Seu tio… Te abandonou?
— Não acho que tenha sido uma coisa ruim. — Mesmo que a voz de Ashton esteja
indiferente, ainda posso sentir o ressentimento que ele guarda em relação a isso. — Eu conheci
Fraser por causa disso. Conheci você por causa disso.
Não consigo controlar o sorriso que escapa dos meus lábios.
Silêncio se infiltra no pergolado mais uma vez. Sei que Ashton precisa desse tempo para
se recompor e respeito isso. Mas, quanto mais deixo minha mente absorver o que escutei, mais
indignado eu fico. Como o tio dele pôde fazer isso? Largar um adolescente numa cidade
estranha, que fala uma língua diferente? Como alguém pode ser tão cruel assim?
Levanto os olhos e me permito observá-lo. Meu coração palpita contra as costelas. Não
sei se é de raiva ou de paixão. Talvez sejam os dois. Talvez, quando se trata de Ashton, os dois
sempre estejam entrelaçados. Eu não consigo apenas amar ele, eu tenho que ter raiva também. E
juntar dois sentimentos tão fortes quanto esses nem sempre dá um bom resultado.
— E… — Limpo a garganta, não querendo mais ouvir meus pensamentos. — O que
aconteceu com Fraser?
Uma cortina fina, porém mortal, parece nos separar de supetão. A temperatura cai
alguns graus quando meus olhos esbarram com os de Ashton, cortantes.
— Eu não sei.
Solto uma risada. O som soa errado pelo tipo de conversa que nós estamos tendo. Tenho
que coçar a nuca para disfarçar meu constrangimento quando percebo que ele não estava
brincando.
— Você… Não sabe?
Ashton balança a cabeça. A ruga que o faz parecer vinte anos mais velho volta a marcar
a pele dele e eu sei por causa dela que o humor de Ashton despencou.
— Mas-
— Ele desapareceu. — Ele me interrompe. Fecho a boca, apertando os lábios. Ashton
está com a voz instável. Os ombros dele estão tensos demais para que ele se mova e a velocidade
que o peito levanta e abaixa me deixa consideravelmente preocupado. — Por minha culpa.
Pigarreio.
— A não ser que você tenha feito ele desaparecer, não tem como isso ser sua culpa.
Seu rosto se contorce como se ele estivesse lutando para não chorar. Palavras ficam
estranguladas na minha garganta, enquanto uma pontada de dor agarra meu coração.
— Eu briguei com ele, Evan. Disse que ele teria que escolher entre mim e Ithaly. Eu
disse que eu iria embora se ele ficasse com ela- — Ashton inclina a cabeça para trás, como se
fazer isso pudesse fazer as lágrimas voltarem para dentro de seus olhos.
O leve tremor no queixo dele deixa um gosto amargo em mim.
Culpa.
Sei reconhecer esse sentimento muito bem.
— Ashton-
— Eu corri de casa quando ele não me respondeu. Nem dei tempo pra ele responder, eu
só… Fugi, como uma criança. E ele veio atrás de mim. — O silêncio enche meus ouvidos. Não
sei o que é pior. A voz insegura de Ashton ou o silêncio profundo que me faz escutar as batidas
do meu coração.
— Eu tenho certeza de que ele sabe que você não fez de propósito. Tenho certeza de que
ele sabe sobre suas impulsividades e que você é grato a ele. Você estava apaixonado e deve ter
doído ver ele com outra pessoa. Se Fraser é tão bom quanto você diz, então ele sabe.
Ashton levanta os olhos molhados, como se outro sentimento o tivesse invadido. Quase
sinto a esperança atravessando o peito dele, como se uma parte corajosa da alma dele tivesse
decidido acreditar em mim, quando ele estica a mão para me tocar.
Meus olhos topam com os dele e nós temos uma conversa silenciosa. Ele me encara
como se querendo encontrar certeza em mim, como se a verdade estivesse nos meus olhos. Uma
esperança que ele poderia acreditar. Era como uma conversa particular. Um sentimento quieto,
talvez não tão forte quanto o de Fraser, mas o suficiente para acalmá-lo por enquanto.
Alívio me envolve.
— Ele é. Fraser é até melhor do que eu digo. — A voz de Ashton é cheia de carinho.
— Então, é isso o que importa. Onde quer que ele esteja-
O aperto na minha mão me fez fechar a boca mais uma vez. Alguma coisa na postura
dele me diz que ele ainda não terminou.
Antes que eu possa abrir a boca para tentar perguntar o que há de errado, Ashton me faz
perder o ar quando encosta a testa na minha. Estando tão perto, posso ver os cílios enfeitando os
seus olhos azuis denim.
Meu nariz esbarra com o de Ashton e o ar quente da boca dele se aproxima dos meus
lábios, como uma promessa de que mais tarde ele me dará um beijo. Meu coração começa a
palpitar como pipoca estourando em uma panela de pressão.
— Fraser estava envolvido com algumas coisas não muito… Legais. Ele nunca mentiu
sobre isso pra mim e sempre deu a escolha de me afastar caso eu quisesse — um curto silêncio
prolonga a fala de Ashton. — Então ele me contava o que descobria. Pelo que eu sei, tinha um
cara, um homem com experiência em química e essas coisas, que estava criando algo para o
chefe do Fraser. Ele nunca me contou quem era esse chefe, sempre disse que, para minha própria
proteção, era melhor eu não saber, porque, caso eu soubesse, eu iria me meter nisso tudo e…
Ashton faz outra pausa, mais longa dessa vez. Eu consigo ver as engrenagens da sua
mente se movendo.
— E? — Incentivo. Com isso, Ashton parece ter levado um choque que o trouxe de
volta para a realidade.
— Esse homem, o cientista, estava fazendo uma droga para o chefe de Fraser. Eu nunca
consegui adivinhar o porquê de ele querer uma droga nova. Essa droga era como um vírus, mas
um que você escolhia ter. Fraser disse que o chefe dele queria que ele usasse, mas ele se recusou,
e foi aí que as coisas começaram a dar errado.
— Você sabe os efeitos da droga? — pergunto. Por algum motivo, isso parece muito
importante para mim.
— Mais ou menos. A única coisa que nós sabíamos era que te ajudava a ficar… Mais
forte? — Ashton faz uma careta ao dizer isso, como se tivesse experimentado o gosto da palavra
e não tivesse gostado. — Fazia os homens ficarem muito animados. Como a metanfetamina foi
usada nos soldados de Hitler na Segunda Guerra Mundial. Ficavam dias sem comer, sem dormir,
e não sentiam dor. A droga os fazia pensar que eram reis, invencíveis. Mas essa… Essa que o
chefe de Fraser mandou fazer era pior. Ela era irreversível. Não sei como um ser humano
consegue fazer isso, mas uma vez que você tome, seu cérebro corrói. Então você precisa de mais,
senão surta. E seu cérebro corrói mais um pouco. É um ciclo.
Engulo em seco mais uma vez. Minhas mãos ficam pegajosas e eu tenho que soltar as de
Ashton para ele não notar.
— Ashton eu… hm, preciso te falar uma coisa.
Ele me olha atentamente, e eu não consigo segurar o olhar por muito tempo.
Eu devo falar? Deveria falar sobre o que Donovan me disse sobre nós precisarmos
afastar Ithaly? Agora entendo que ela parece ser a única coisa que sobrou de Fraser no mundo e
eu não sei se tirar ela de Ashton o fará algum bem. Quer dizer, ele claramente a ajuda porque
quer e eu duvido muito que algum dia Ashton faça esse tipo de favor a alguém sem querer
realmente fazer isso.
Limpo as palmas da mão na minha calça.
Eu não posso fazer isso. Não posso contar. Isso só vai deixá-lo paranoico. Ashton vai
começar a suspeitar de Donovan, sendo que Donovan é só um velho intrometido que perdeu o
filho e agora está tentando achar outra pessoa para substituí-lo.
Ajeito-me mais uma vez, sentindo picadas no meu coração. Ashton ainda me olha com
atenção, esperando pacientemente para eu começar a falar.
— É por causa disso que aquele cara deixou aquele bilhete?
Respiro fundo, tão aliviado por ter desviado o tópico, que a minha boca seca.
Mal reparo na linha que se formou na testa de Ashton.
— Sim. Por causa disso. Eles me conhecem, porque eu era próximo de Fraser. Muita
gente queria matar ele porque ele pegou algo que não devia. Sempre achei que fosse dinheiro,
mas talvez seja outra coisa. — O aperto no meu joelho, coisa que eu não tinha notado até agora,
aumenta. — Achei, primeiro que fosse pelo dinheiro, porque a gente precisava por causa do
bebê. Uma casa maior. Um quarto, berço, comida, fraldas, mamadeira, leite… Estava uma
loucura. Ele estava tentando manter o próprio filho vivo.
Só de ouvi-lo falar, eu consigo dizer o quanto ele sente raiva desse assunto. Das pessoas
que fizeram isso com Fraser.
Estou pronto para abrir a boca, tentar confortá-lo mais uma vez, mas Ashton diz antes:
— Como eu disse, Fraser se recusou a deixar o chefe usar ele como uma das cobaias e
ele tentou se afastar disso tudo. Mas não é fácil sair dessa vida quando você já está há tanto
tempo nela.
— Você acha que… O ex-chefe dele que fez isso?
Ashton balança a cabeça enquanto concorda.
— Sim. — Ele esfrega as mãos. — Esse cientista também se afastou de tudo isso. Fraser
me contou que o chefe dele quis mais. Ele queria que o cara colocasse a droga no próprio filho. E
quando o homem obviamente não quis, esse chefe começou a perturbar ele também.
Meu sangue gela.
— Você, hm, você sabe o nome desse cientista?
O dar de ombros dele me deixa tonto de alívio. Se Ashton não está preocupado com
isso, não tem porque eu ficar.
— Não faço ideia. Não sei se isso importa muito agora. O que importa é que Fraser
desapareceu e eu, — ele afasta o olhar, encarando as próprias mãos abertas, como se elas
tivessem os segredos do universo. — Eu acho que eu sei por onde começar.
Não consigo controlar a vontade de levantar uma sobrancelha.
— Começar o quê?
— A ir atrás do que aconteceu com Fraser. — A voz determinada e fria é totalmente
diferente da quebrada de minutos atrás. — Lembra de quando estávamos na casa do seu irmão?
Assinto, sentindo minhas bochechas ficam vermelhas contra minha vontade.
— Naquele dia, alguns minutos depois de você ter dormido, eu recebi um e-mail
estranho me falando que iria me ajudar a ir atrás de Fraser. Eu achei que era, não sei, uma
brincadeira de alguém, mas além de Ithaly e de algumas outras pessoas, ninguém mais sabe que
eu era amigo dele. Ninguém desde que ele desapareceu, pelo menos.
— E você respondeu? Podia ser uma armadilha.
Ashton balança os ombros mais uma vez, olhando as árvores em volta de nós.
— Respondi.
— E?
— Não sei. Escuta, essa pessoa parecia estar muito desesperada. Não respondia
nenhuma das minhas perguntas, só mandava coisas aleatórias. Eu fiquei muito confuso no
começo, mas notei que eram pistas. Depois disso, perguntei por que ele ou ela, se supostamente
sabe onde Fraser está, não poderia me dizer de uma vez onde achá-lo, mas fiquei sem respostas.
A pessoa sumiu depois disso.
Um silêncio pensativo nos preenche.
— Você não consegue rastrear o IP dele? Não tem como ver um tutorial na internet de
como fazer isso?
Ashton solta uma risada baixa, e eu sinto um tapa na perna.
— Você acha que uma pessoa que possivelmente está envolvida com o desaparecimento
de alguém vai ser tão descuidada? Provavelmente está usando VPN.
— Provavelmente?
— Eu não tentei rastrear ninguém. Não entendo muito desse tipo de assunto. Oliver é
técnico de informática, mas eu não quero ter que explicar a situação pra ele, e se eu pedir esse
tipo de coisa, ele vai querer saber o porquê.
Mordo o couro do dedo, pensando em alguma outra pergunta para fazer. Alguma
pergunta que dê uma informação útil. Dois cérebros trabalhando são melhores do que um.
— Você não reportou pra polícia o desaparecimento dele?
Dessa vez a risada que escuto é tão corrosiva quanto ácido.
— E você acha que eles vão fazer o quê? Fraser era envolvido com gangue, tiras não se
envolvem com desaparecimento entre esse pessoal. Desde que não afete civis normais, não é da
conta deles.
Esfrego os olhos, ficando sem muitas opções. Ashton parece ter tentado de tudo.
— Então o que você quer fazer agora?
O som dos grilos e do vento são as únicas coisas que ouço por um longo período, até
Ashton decidir voltar a falar. A voz dele está carregada de firmeza, e eu sei que o que quer que
saia desses lábios, acontecerá.
— Eu vou atrás da verdade. — Ele levanta os olhos para mim. O brilho perverso das
pupilas de Ashton me deixa sem ar. — Quer vir comigo?
Eu não consigo segurar o sorriso.
— Eu vou aonde você for.
Você deveria se casar comigo

recisamos decidir o que vamos fazer — Ashton diz, fechando a porta


— P do apartamento. Ele joga a chave na ilha da cozinha e tira os sapatos. Faço o
mesmo. Quando tento segui-lo em direção a sala, Ashton repentinamente para. Ele anda fazendo
muito isso nos últimos dias e as palavras que vêm a seguir já me são conhecidas: — Você não
precisa fazer isso se não quiser, Evan. De verdade-
O encaro.
— Você tem que parar de me perguntar isso tantas vezes — digo, não realmente com
raiva. — Eu te disse naquela noite que te ajudaria com isso. Então eu vou.
Os lábios dele se curvam para cima de forma discreta e, apesar de eu gostar muito do
seu sorriso, o que realmente me emociona é o fato de Ashton puxar-me pelos ombros para um
abraço. Ele enlaça minha cintura, colocando a orelha no meu peito. Ele provavelmente consegue
escutar o quão rápido meu coração começa a bater.
Empolgo-me com a ideia de que ele gostou do que eu disse.
— Então — começa. — Você tem alguma ideia?
Fico em silêncio, pensando em uma resposta.
Desde a última vez que falamos sobre isso no pergolado, inúmeras dúvidas, perguntas e
teorias começaram a rodar minha mente, mas nenhuma faz sentido — não de verdade, pelo
menos. Além disso, a volta às aulas está se aproximando e o verão lentamente chega ao seu fim.
Um alerta pisca na minha mente toda vez que lembro-me disso, porque há algo que não sai da
minha mente nem por um segundo:
O que diabos eu e Ashton somos e como ficaremos quando a detenção acabar? Vamos
continuar nos encontrando? Ele quer continuar me encontrando? E a nossa recém decisão de
começar essa investigação?
Um lado altruísta dentro de mim gosta da ideia de que estou fazendo tudo isso apenas
para ajudá-lo, sem pedir nada em troca — o que, por um lado é verdade, embora seja uma
verdade incompleta. Já a outra metade do meu cérebro sabe que o verdadeiro motivo para eu ter
decidido prosseguir com essa ideia maluca é bem egoísta: não quero que Ashton não tenha
motivos para me ver.
Porque sinto que ele cansará de mim caso não haja uma força exterior nos juntando.
— Talvez devêssemos tentar esperar por mais dicas da pessoa do e-mail? Ou, não sei,
montar um quadro com todas as informações que temos e que não temos. Acho que isso nos
daria um norte, principalmente para sabermos onde começar.
Quando termino de falar, espero que Ashton diga algo, mas conforme seu silêncio se
estende, uma sensação inquieta toma conta do meu estômago. Ele solta-se de mim e caminha até
o sofá, pegando o pequeno notebook da mesinha de centro e mexendo nas teclas com uma
velocidade absurda.
— Só tem um problema — ele diz, virando a tela para mim. Me aproximo, interessado.
— A mensagem que foi enviada está codificada. Eu perguntei a Oliver se ele conhecia a
característica da sequência, mas ele disse que a única coisa que poderia me dizer com certeza é
que se trata de um código chamado Código Playfair. — Ashton engole em seco ao continuar: —
Tentei descodificar sozinho, mas não consegui entender muita coisa.
Viro meus olhos para a tela, olhando com atenção.
O primeiro parágrafo está legível, sem códigos e em inglês: ”Sei onde ele está.” É tudo
o que diz. Após isso, há uma sequência de letras que parecem totalmente aleatórias para mim.
TA OP CG ND PB HN BG CT NF HC SN CE GH DI OB BC SP PD OQ AH GH QV
WP SP AP AL OQ PR GH AA.
— Que merda — digo, sem esperanças. — Como a gente pode…
É como se uma lâmpada acendesse em cima da minha mente. Charlie.
Apesar do meu amigo nunca ter feito nenhum curso sobre o assunto, ele é genial quando
se fala sobre tecnologia em geral. Charlie já me ajudou inúmeras vezes a tirar vírus do
computador após eu ter entrado em sites suspeitos para ver filmes de graça. Além disso, já o vi
programado algumas coisas para modificar e personalizar o próprio computador. E, embora a
chance de ele saber sobre este código não seja muito grande — afinal, quem diabos sabe sobre
isso? — decido arriscar e lhe mandar uma mensagem.
Eu: Ei Charlie. Deixa eu te perguntar uma coisa.
Eu: Ashton e eu estávamos jogando um jogo de enigmas e veio um código para nós.
Não estamos conseguindo resolver. Será que você pode me ajudar? :(
Ele não demora muito para responder:
Charlie: Claro. Manda aí.
Envio o código, copiando letra por letra. Logo em seguida, mando uma breve
explicação.
Eu: A única coisa que sabemos é que se chama Código Playfair. Você conhece?
Charlie: Conheço. Usaram ele na segunda guerra mundial. É bem interessante.
Charlie: Vou dar uma olhada. Espera um pouquinho.
Sorrio para o celular, satisfeito comigo mesmo e com a obsessão de Charlie por eventos
históricos. Quando nos conhecemos, ele praticamente vomitou palavras e mais palavras,
descrevendo todas as artimanhas que foram usadas na Primeira e Segunda Guerra Mundial.
Aprendi sobre fogões portáteis, palavras que nunca ouvi antes e mais inúmeras coisas que não
consigo nem sequer me lembrar.
Apesar de Charlie ser um tipo de “esperto matemático”, ele também sempre foi
apaixonado por História, o que lhe torna um camaleão entre Humanas e Exatas. Nessa questão,
Charlie lembra-me um pouco de Ashton: ambos têm uma certa fascinação por história e tomar
consciência disso me faz sorrir mais ainda.
Recordo-me de todas as conversas que tivemos sobre o que diabos ele faria na
faculdade. Matemática pura — algo que até hoje não consigo entender direito, mesmo que ele já
tenha tentado me explicar — ou História? Eu lhe disse para fazer as duas, não simultaneamente,
mas uma primeiro e depois a outra.
“Sim, mas aí entraremos em uma conversa sobre qual delas eu prefiro mais ao ponto de
escolher para ser a primeira”, ele respondeu para mim, naquele dia. “E eu não consigo decidir.”
— O que ele disse? — a voz de Ashton me traz de volta para a realidade e encontro seus
olhos me observando. — Você está encarando o celular faz uns dois minutos.
— Ah. — Tiro aquele sorriso nostálgico do rosto. — Charlie disse que conhece o
código. Acho que ele consegue decifrar, só teremos que esperar um pouco.
Ashton assente, voltando a atenção para a tela do notebook. Seu semblante parece
pesado, como se olhar aquele e-mail fosse uma lembrança dolorosa de que ele ainda não
encontrou Fraser.
— Ei — chamo, sentando ao seu lado. Minha mão encontra seu próprio caminho em
direção às costas dele. — Nós vamos descobrir o que aconteceu. Vai dar tudo certo.
— Eu sei, é só que… — Ashton solta um suspiro. Acho que é a primeira vez que o vejo
fazer isso. — Não parece certo te trazer para essa bagunça. Você já tem um monte de coisa para
se preocupar e não quero ser mais um peso nas suas costas.
— Você nunca vai ser um peso para mim, Ashton. — Minha mão acaricia suas costas.
— Eu… Na verdade, queria falar com você sobre uma coisa. — Engulo em seco conforme ele
vira-se para mim, esperando. — Como a detenção vai acabar, queria saber… Como nós vamos
ficar.
O silêncio que repentinamente cai sobre nós parece um soco no meu estômago.
— Você acha que eu vou te ignorar depois que a gente não tiver mais na deteção juntos?
— sua pergunta soa quase acusatória, como se ele não acreditasse nas próprias palavras. — Você
acha que eu não gosto de você?
Desvio o olhar, apertando minhas pulseiras. A pergunta me pega totalmente
desprevenido.
— Acho que talvez eu goste mais de você do que você gosta de mim.
É algo idiota de se dizer, no fundo sei disso, mas as palavras escapam dos meus lábios
antes mesmo que eu possa perceber o que estou dizendo. O rosto de Ashton se contorce de uma
forma dolorosa e de repente ele está se movendo para cima do meu colo, com seus olhos afiados
iguais aos de uma fênix, prendendo minhas bochechas com seus dedos.
— Você não faz ideia do quanto eu gosto de você — diz ele, quase severo, como se
estivesse me dando uma bronca. — Eu não estava brincando quando disse no dia em que fomos
ao prédio abandonado. Quando disse que estava a fim de você há mais tempo do que você
imagina.
Levanto as sobrancelhas.
— O que quer dizer?
— Pelo amor de Deus, Evan — bufa, soltando minhas bochechas, porém permanecendo
em cima das minhas coxas. — O que eu quero dizer é que estou de olho em você desde o
começo do ano.
— Mas…— Isso parece bom demais para ser verdade. — Então por que nunca veio
falar comigo?
Ashton cruza os braços.
— Talvez porque você ficava se agarrando com aquela garota loira por todos os cantos
do colégio? Como você queria que eu me aproximasse assim? Ela ia me dar um chute antes que
eu tentasse sequer falar um oi.
Um riso abafado escapa do meu nariz quando percebo que ele tem razão. Hazel
provavelmente faria isso.
— Desculpa, eu não devia ter dito isso-
— Sabe o que mais? Eu nem sequer sabia se você gostava de garotos e só fui saber disso
quando te vi dando um beijo em Omar.
Minhas orelhas esquentam.
— Você viu aquilo? Eu não te vi!
— Você estava concentrado demais beijando seu amigo.
— Em minha defesa — engasgo com a própria saliva, mal percebendo quando minhas
mãos pousam em cima de suas coxas. — Eu fiz aquilo por sua culpa. Depois que nós fomos ao
Thomas Fisher percebi que… Que… Merda, que vergonhoso é dizer isso — cubro os olhos,
tentando esconder o quão vermelho meu rosto provavelmente está ficando, mas Ashton me
impede, segurando minhas mãos.
— Continue. Quero saber.
— Que eu… Estava a fim de você também.
— E aí, em vez de me beijar, você foi lá e beijou Omar?
— Foi um teste-
— Tudo bem. — Ele me interrompe. Levanto uma sobrancelha.
— Tudo bem?
— Sim. Eu também fiz isso.
Um enorme ponto de interrogação surge na minha mente.
— Fez o quê?
— Fiquei com Omar. Na época em que Fraser não estava desaparecido.
Jesus, é como se eu tivesse acabado de levar um soco no estômago. A informação me
pega tão desprevenido que descolo as costas do estofado do sofá, arrumando a coluna.
— Espera aí — digo. — O quê? Como assim?
Uma onda irreconhecível de ciúmes me atinge e me sinto tão idiota por isso que não
consigo olhá-lo nos olhos. Então, como se tudo se encaixasse, lembro-me da conversa que tive
com Omar naquele outro dia, em que ele me contou que uma certa pessoa quase havia lhe feito
esquecer dos seus sentimentos por Jasper. Outra onda de ciúmes se choca contra mim.
— Porra, Omar quase se apaixonou por você. Como foi que…— Nem sei mais o que
estou dizendo, imaginando mil e uma coisas.
— Eu sei que ele gostava de mim e sei que fui um otário com ele, Evan. Não me
orgulho disso. A verdade é que eu estava carente e sabia que Omar também estava, então usei ele
como escape — ele responde, não parecendo tão afetado com a minha reação, mas sim com os
próprios pensamentos. — Naquele dia em que fugi da casa de Fraser, fui parar na casa de Omar.
Nem percebi o que estava fazendo, quando vi, já tinha tocado a campainha. Conversei com ele,
pedi desculpas e disse que sabia que eu havia agido igual a uma criança. Não expliquei para ele a
razão de agir tão impulsivamente, embora, na época, eu estivesse sem meus medicamentos por
pura… Birra minha.
Absorvo suas palavras lentamente, prestando atenção em tudo o que ele tem para me
dizer. Como nunca reparei no envolvimento dele com Ashton? É um absurdo notar isso, mas
então percebo que, provavelmente na mesma época, eu ainda estava tão apaixonado por Hazel
que meu campo de visão me deixava enxergar apenas ela.
Coloco a mão na sua coxa, sentindo todos os seus músculos debaixo da calça apertada.
E então, como se não fosse o suficiente, aperto com mais força para ter certeza de que ele é real e
não apenas mais uma figura dos meus sonhos.
— Esquece isso, já passou — digo, mesmo que ainda haja um gosto amargo na minha
língua. — O que aconteceu antes não tem importância. Nem sei se tem agora porque no fim das
contas a gente…— dizer essas palavras parece ter a mesma sensação do que deve ser esmagar o
próprio coração… e ego. — A gente nem namora.”
Ashton permanece em silêncio, mas consigo sentir seus olhos — sua total atenção —
em mim.
— É bem fácil de resolver isso.
Meu coração dispara como um louco.
— Ah, é?
Ele sorri, daquele jeito travesso que eu gosto, sem mostrar os dentes.
— Você quer namorar comigo?
Na mesma hora, meu celular treme, chamando nossa atenção. Ashton olha com
desespero para ele e sei que é melhor verificar rápido.
— É o Charlie — digo.
— O que ele respondeu? — ele tenta olhar meu celular, mas, quando leio a mensagem
de Charlie, prefiro lhe entregar o aparelho para que ele mesmo veja.
— Não posso escrever diretamente porque acho que estou sendo vigiada” — ele lê em
voz alta. — Mas acho que posso ajudar você. Logo virei com mais informações.
A única pessoa que você deve pedir desculpas é
a si mesmo

m trilho de trem abandonado. É este o lugar que Ashton me trouxe para


U comemorar a oficialização do nosso namoro. E, apesar de não ser algo
convencional e muito menos romântico, adoro esse lugar ainda mais por isso:
porque é a cara de Ashton.
Ele me ajuda a passar por moitas espinhosas conforme subimos no vagão de um dos
trens abandonados. Suas mãos ainda seguram as minhas, levemente suadas. Ele não parece se
importar, então também não me importo, gostando da sensação da sua pele na minha.
Acima de nós, um único poste ilumina o local, cheio de mariposas em sua volta. A luz
amarelada me dá a visão do cenário a nossa vista e rapidamente entendo o porquê do cheiro
desagradável: além de ser abandonado, também parece ser o local onde muita gente joga restos
de carros velhos, latinhas de bebida, pizzas e… Mais um monte de porcaria.
— Um beijo por um pensamento seu — ele diz, atraindo minha atenção. Tiro os olhos
da iluminação e o encaro, enxergando apenas sua silhueta por alguns segundos por causa da
sensibilidade.
— Me dê o beijo antes.
Ashton aproxima-se, se inclinando sobre mim. Seu nariz toca o meu e quando abro a
boca, esperando pelo toque, não sinto nada. Abro os olhos e o encontro me olhando com um
sorriso. Meu estômago dá um giro com o quão bonito ele está.
— Não. — sussurra. — Me conte o que está pensando antes.
— Tudo bem — um suspiro escapa dos meus lábios. — Tem uma coisa que não sai da
minha cabeça…
— Lá vem…
— É sério — aperto sua mão, que permanece colada na minha. — Quando acharmos
Fraser, se acharmos ele com vida, o que eu espero que aconteça, como… Como nós dois
ficaremos?
Essa dúvida não saiu da minha mente desde o dia em que descobri sobre Fraser. Pelo
que parece, levando em consideração o que Ashton me contou, Fraser havia sido seu primeiro
amor e algo nesse sentido não é fácil de se esquecer. Então um medo — talvez até mesmo
irracional — não deixa a minha mente com o pensamento de que nossa relação — que eu mesmo
— seria jogada de escanteio.
Ashton fica em silêncio por um tempo assustador, mas pelo menos ele não se afasta,
como achei que faria. A lateral da sua coxa está completamente colada com a minha e sua mão
não me solta, então tento acalmar o medo que se apossa do meu coração à medida que mais e
mais pensamentos começam a entrar na minha mente.
— Eu não… Acho que ele está vivo —é o que ele responde, como se jogasse óleo
quente na minha pele. Meu corpo inteiro começa a pinicar porque sei que há mais coisas para ele
dizer. — Mas, se o encontrarmos com vida, Evan, aquelas coisas já são passado. Não só porque
ele me rejeitou, mas porque sentimentos passam. E eu encontrei você. Você… — ele engole em
seco e observo seu pomo de Adão subindo e descendo. — Você já tomou conta de todo o meu
coração.
Acho que vou derreter. Por sorte, estou sentado, porque a traseira dos meus joelhos
amolece tão repentinamente que nem sequer sei o que responder. Talvez seja por essa razão que
Ashton decide continuar:
— Eu vou sempre amar Fraser, mas não do mesmo jeito que amava antes. Agora eu
entendo que muitos dos meus sentimentos em relação a ele foram confundidos porque eu não
sabia o que estava sentindo direito. Eu o admirava muito, mas acho que sempre foi algo mais
platônico do que romântico, embora eu acredite de verdade que tenha me apaixonado por ele.
Balanço a cabeça para ele saber que estou prestando atenção, embora não saiba como
responder.
— Isso me lembra de outra coisa que não consigo parar de pensar sobre.
— O quê?
— Omar e Jasper… Jasper veio falar comigo há alguns dias. Ele está tão apaixonado por
Omar, mas tão confuso, que acaba machucando os dois. Gostaria de poder ajudar mais, de poder,
não sei, iluminar o caminho certo para ele saber aonde ir.
Ashton parece pensar um pouco.
— Talvez isso tenha muito a ver com homofobia internalizada.
Dou de ombros.
— Provavelmente. O pai de Jasper… É complicado. Toda aquela situação é complicada
e é por isso que às vezes eu agradeço a mim mesmo por ter conseguido lidar com as coisas tão
tranquilamente.
— Com a sua sexualidade?
Assinto.
— É. Antes de você, só namorava garotas, mas não é como se eu nunca tivesse
suspeitado de meu interesse por garotos também. O problema é que eu simplesmente me
apaixonava pelas minhas ex antes e aí o mundo parecia sumir.
— Acho que é assim que as coisas deveriam ser — ele responde. — Naturais. Porque é.
O silêncio nos cobre como uma manta fina, confortável. Inclino-me sobre ele,
encostando minha cabeça em seu ombro. No mesmo instante, Ashton move-se e sua mão toca o
inferior da minha bochecha, puxando-me para cima. O permito fazer o que deseja, suspirando de
satisfação quando seus lábios se chocam com os meus.
— Seu prêmio.
Sorrio.
— Você ainda não disse porque a gente veio aqui, exatamente —, digo. Ashton me olha
por vários segundos, com uma sobrancelha curvada, fazendo uma ruga na testa. Estou prestes a
falar algo, mas então ele abre a boca.
— Vamos jogar um jogo — diz, soltando minha mão para mexer em algo nas costas.
Tento curvar-me para ver, mas Ashton é mais rápido em se esquivar. Então, quando ele levanta a
mão e mostra-me o que está segurando, meu coração dispara. Uma arma. Oh, merda. — Ganhei
de Fraser. Ele colocou meu nome nela.
Ele mostra o cano da arma, que está marcado com A. W. Meu corpo treme. Eu nunca vi
uma arma pessoalmente. O cheiro de metal e pólvora, mesmo que ninguém tenha a usado ainda,
começa a me enjoar.
— Ashton-
A falta de resposta dele me deixa mais nervoso ainda. Ashton estende a arma e me olha
com atenção. Não me mexo por vários segundos, com as costas suando gelado. Não quero tocar.
Realmente não quero.
— O jogo é o seguinte. — Ele começa, depois de eu não ter me mexido por algum
tempo. — Eu vou te ensinar a atirar e você responde o que eu perguntar.
— Quem disse que eu quero aprender a atirar? — a pergunta soa mais rude do que eu
gostaria.
Ashton não se afeta pelo meu tom. Seu rosto permanece branco como um fantasma,
parecido com o que ele fazia quando eu o vi pela primeira vez.
— Você precisa, Evan. Esse tipo de coisa… essa investigação que a gente tá fazendo…
é perigosa.
Balanço a cabeça, levantando as mãos, fazendo parecer que estava me rendendo.
— Que tipo de pergunta você vai fazer? — quero saber.
Ele sorri.
— Eu só quero saber sobre você. Você sabe demais sobre mim, e eu só sei o-
— Eu não sei quase nada sobre você — o acuso, dessa vez sentindo meu peito queimar.
Isso me irrita mais do que deveria, provavelmente. Apesar de eu definitivamente saber mais
coisas sobre ele do que antes, não considero esse tanto “demais”. — Eu só sei dos seus
problemas, mas eu não sei nada realmente sobre você.
— Meus problemas realmente são sobre mim.
Nós ficamos quietos, num impasse.
— Então a gente troca perguntas e eu te ensino a atirar. Ok? — Ele diz depois de um
tempo.
Não consigo relaxar meu corpo, por mais que tente.
— Precisamos mesmo…? Quer dizer, atirar? — sussurro.
Sua expressão suaviza, fazendo as linhas escuras em cima de seus olhos sumirem. Os
olhos dele encontram os meus e seguro o olhar por alguns instantes antes de ele descer do vagão
abandonado e parar na minha frente, mal alcançando a minha cintura por conta da sua altura. Ele
aproxima-se e para entre as minhas pernas e rodeio sua cintura com os joelhos. Ashton deixa a
arma de lado por alguns segundos, colocando-a na madeira ao meu lado, e começa a fazer um
carinho de vai-e-vem pela lateral das minhas coxas.
— Está tudo bem.
Não quero ter um ataque de pânico logo agora, mas isso foi repentino demais. Posso
lidar com revelações, posso lidar com períodos maníacos, posso lidar com o fato do meu pai ter
algo naquele maldito porão, mas não sei se posso lidar com isso. Essa… Coisa — essa arma —
torna tudo mais real. E não achei que seria tão perigoso ao ponto de precisarmos de uma para nos
proteger.
Minha garganta começa a arder. Quanto mais eu penso, mais horrível tudo isso se torna.
Não é difícil lembrar daquilo que eu quero esquecer: de que meu pai pode estar
envolvido nisso. Não é preciso ser um grande gênio para juntar as peças. Eu só não quero
acreditar.
E se for alguém para quem meu pai trabalha?
Minha visão fica embaçada.
— Evan. — A voz dele me traz de volta a realidade. Meus braços se arrepiam quando
percebo as mãos dele nas minhas bochechas, o rosto mais perto que antes. — Você não precisa,
se não quiser, mas eu não te pediria pra fazer isso se não achasse realmente necessário —
observo o pomo-de-Adão dele descer, então subir de novo.
— E o que as perguntas têm a ver com isso? — murmuro numa voz pequena, que só faz
Ashton se aproximar mais ainda.
— É pra você não ficar tão tenso.
Sorrio. Ele sorri de volta, como se estivesse contente por isso.
— Não é perigoso não-ficar-tenso enquanto eu seguro uma arma?
— É mais perigoso ficar-tenso enquanto você segura uma arma. — Ashton espera um
minuto antes de continuar, provavelmente me dando tempo de me acalmar. — Você confia em
mim?
— Confio. — digo, apressado. — É claro que eu confio.
— Mas?
Desvio o olhar.
— Mas eu não confio em mim mesmo. E é a primeira vez que eu vejo uma arma. É
como ter a possibilidade da morte na minha frente.
— Você sempre tem a possibilidade da morte na sua frente. — Ashton dá de ombros, se
afastando. Encaro suas costas, tentando adivinhar o que ele está pensando quando seus ombros
ficam rígidos. — Eu sei que você não quer se envolver com essas coisas e acredite, eu preferiria
que você nunca tivesse, mas eu tenho que fazer você aprender a se proteger. Eu não sei se eu vou
estar sempre perto de você pra te proteger. Evan, se eu perder mais alguém-
Ele deixa a voz morrer. Meu coração despenca dentro do meu peito. Ashton não precisa
terminar a frase para eu saber exatamente o que ele quer dizer, e só de saber que me tornei um
alvo de preocupação para ele, faz meu estômago retorcer.
Não quero ser um estorvo. Não quero que… Quem quer que nós tivermos que enfrentar
para achar Fraser me use como refém.
As coisas não deveriam ser desse jeito.
— Eu aprendo — sussurro. Ashton levanta o rosto e me analisa. Percebo as pupilas dele
percorrendo meu rosto, a procura de uma chama de incerteza ou de medo. — Eu vou aprender a
atirar. Não vou ser um estorvo pra você. Você não tem que se preocupar comigo.
A delicadeza do rosto dele some em um segundo.
— Eu não estou pedindo pra você fazer isso porque acho que você é um estorvo. É
exatamente o contrário. — Ele aponta o dedo no meu peito. As sobrancelhas franzidas fazem a
ruga aparecer na testa de novo. — Não ache que eu não te protegeria em alguma situação porque
eu não quero. É só porque infelizmente eu não posso estar com você o tempo todo.
Desvio o olhar, encarando os carros enferrujados que brilham por causa do poste
amarelo. Não sei exatamente o que dizer, mas minha garganta arranha para que eu fale algo.
— Sei disso… Eu só… eu só não quero incomodar, nem poder ser usado contra você.
Seus olhos suavizam novamente, como se ele entendesse o que quero dizer. No mesmo
instante, pulo do vagão, parando a sua frente, mas então, para minha surpresa, seus braços
envolvem minha cintura e me apertam. Não consigo esconder minha satisfação em apertá-lo
contra mim com ainda mais força.
— Tudo bem. — ele diz.
E eu ecoo: Tudo bem.
Não quero parecer tão horrorizado quanto eu realmente estou.
Ashton me entrega a arma de novo. O metal gelado arrepia meu corpo inteiro e minha
mão quase despenca porque estava mole demais para receber tanto peso repentino. É estranho
quão pesada é, como se quisesse te lembrar a todo custo do mecanismo complexo feito para
atirar. Para matar.
Ele estuda meu rosto enquanto eu encaro a coisa nas minhas mãos.
— Qual é o modelo? — pergunto. Não sei nada sobre armas, nem se existe essa coisa de
modelos, mas se eu falei alguma coisa errada, Ashton prefere ignorar.
— É revólver. Para usar um revólver, é útil saber em geral como as armas funcionam.
— Ele me olha de relance, se aproximando. Sinto o calor do corpo de Ashton aquecer o meu,
mas diferente das inúmeras vezes que isso me deixou contente, agora sinto meus ombros
tencionarem como ferro. — Quase todas as armas são baseadas no mesmo conceito simples:
você aplica pressão explosiva atrás de um projétil para lançá-lo pelo cano. A arma mais antiga
que se aplica nisso é o canhão.
Mãos circundam meus cotovelos.
Não sei se quero aprender. Se eu aprender, não vou ter uma desculpa para não atirar. Se
eu não aprender, eu não tenho que tirar.
Mas se eu não aprender, eu provavelmente vou acabar morrendo. Quem sabe?
Preciso respirar fundo. Preciso me acalmar.
— Ashton — Eu o chamo. Ele inclina a cabeça para o lado, como um cão curioso. —
Por quê?
Ele sabe do que eu estou falando. A arma é para me proteger, mas de quem exatamente?
Em quem eu vou ter que apontar esse cano e disparar, antes que esse alguém dispare em mim?
Quero saber dessa pessoa. Quero saber de quem eu vou tentar… me proteger.
Pensar nisso embrulha meu estômago.
Um suspiro longo enche a noite.
— Fraser era envolvido com gangues, você sabe disso. É burrice bater de frente com
esses caras sem ter uma única proteção-
— Não foi isso que eu quis dizer. — Coço minha nuca com a mão livre. Não aguento a
pressão de olhá-lo nos olhos. — Quer dizer, foi, mas eu quero saber… se tem mais alguém além
dos caras da gangue. Aquela pessoa que nos entregou aquele bilhete, no dia em que saímos para
comemorar sua formatura… fazia parte de uma gangue ou era alguém pior?
Minhas palavras parecem ter finalmente encontrado um caminho para o coração dele.
Ashton aperta o maxilar tão forte que eu quase vejo suas veias do pescoço.
— Não. Aquilo foi planejado. Aquilo foi- — Ele não fala por um longo minuto, com as
mãos na têmpora. — O chefe do Fraser, lembra dele? — Quando balanço a cabeça, Ashton
continua: — Ele se recusou a participar do experimento da droga. Ithaly me contou que ela já
tinha notado que estava sendo seguida. Eles não gostam de mim porque estou protegendo ela.
Fraser me dizia para protegê-la caso algo acontecesse com ele. E eu não quero que eles a usem
como uma forma de me chantagear. E nem que usem… — Aqui, as bochechas dele se tornam
rubras, enquanto ele abaixa a cabeça para escondê-las. Por algum motivo, as minhas também
ficam. — Você.
— Eu? — Aponto para mim mesmo. — Mas-
— Você é uma ótima forma de me ameaçar, pirralho. Imagina se alguém te sequestra?
O que eu iria fazer? — Aquele fio de desespero e veracidade na voz de Ashton paralisa meu
corpo com um arrepio. — Por isso você tem que se proteger. Entendeu? Não pode acontecer
nada com você.
— Você… — Pigarreio, controlando a vontade de me aproximar e beijá-lo nas
bochechas. — Você sabe quem é esse chefe?
— Não. Ele nunca veio pessoalmente me encontrar. Às vezes eu recebo cartas com
ameaças, às vezes alguns capangas dele aparecem. — Ashton encara um ponto fixo no chão. O
vejo apertando o couro do braço. — Um dia, veio um homem que tinha usado a droga. Eu nunca
senti tanto medo igual senti quando isso aconteceu. Dava pra ver pelo jeito que os olhos dele
estavam, que aquele homem não estava mais lúcido. A mente dele tinha… Sido completamente
destruída.
Engulo uma lufada de ar, antes de abrir a boca de novo.
— Tudo bem. Desculpa ficar fazendo tantas perguntas. Me ensine a mexer nessa coisa.
Não recebo uma resposta direta e o silêncio me preocupa por alguns segundos. Levanto
os olhos para checar Ashton, achando que talvez eu tenha insistido demais no assunto, mas
encontro outra coisa em vez disso.
Um meio sorriso curvando os lábios dele.
— Certo.
Ele aproxima-se de mim mais uma vez e o sinto colar o peito contra minhas costas. Foi
difícil não soltar um suspiro.
— Arrume a postura. — Ashton força minha coluna. — Precisamos arrumar a forma
que você segura a arma, e como deixa seu corpo. — A boca dele se aproxima da minha orelha
direita. — Separe as pernas.
Faço o que ele manda. Meus joelhos se distanciam um dos outros e mantenho a coluna
arrumada. Me sinto patético.
— O pé correspondente a mão que você vai disparar deve ficar um pouco para trás. —
Ashton, com o joelho, empurra minha perna esquerda para frente, deixando minha perna direita
um pouco atrás. Respiro fundo. — Dobre os joelhos para dar sustento para o peso do corpo e se
incline para frente.
Ainda sinto o seu corpo contra o meu enquanto ele me guia no que fazer. Quando
levanto a mão, com a arma entre os dedos, começo a tremer. Meu dedo não consegue chegar
perto do gatilho e seguro a arma como se fosse um bebê com fralda suja, deixando o mais longe
possível de mim.
Estou perto de sair da pose, mas Ashton me impede. As mãos dele pressionam as
minhas contra a arma e ele força o corpo contra o meu para me manter parado.
— Respire. Você está segurando a respiração. Isso só vai te deixar com mais medo
ainda. — Ele sussurra, sabendo que isso me acalma. — Feche os olhos e respire. Não tem
ameaça nenhuma aqui. Nós estamos apenas treinando. Eu estou com você.
— Essa arma-
— Não pense nela. Feche os olhos. Escute minha voz.
Inclino-me para trás. Isso parece pegá-lo desprevenido, porque, quando viro meu rosto
para olhá-lo com um sorriso condescendente, a boca de Ashton está meio aberta, em confusão.
— O que você está fazendo?
Meu sorriso aumenta.
— Me acalmando. — Meus lábios se chocam com os dele. E eu finalmente solto o
suspiro que estava preso no fundo da minha garganta. Mas, para a minha infelicidade, Ashton
não me deixa ficar por muito tempo assim e se distancia.
— Pronto? — Ele tenta fingir um tom rude, porém posso adivinhar, pelas orelhas
vermelhas e as pupilas comendo as íris azuis, que ele gostou.
— Pronto.
— Ótimo, então vamos continuar.
Volto para a posição antiga, dessa vez mais relaxado. Mas, independente de quantos
beijos eu ganhe, ou de quão perto ele chegue, minhas mãos se recusam a parar de suar e tremer.
— Não toque no gatilho. A arma está com balas e nós não temos proteção pra cobrir os
ouvidos. Mesmo que quando a gente tiver que usar ela nós também não tenhamos proteção, é
melhor não se machucar antes do tempo.
— Como você sabe tanto? Sobre as armas, quero dizer.
Sinto seus músculos tensionando.
— Cohen. — Ele diz. E isso é o suficiente para eu entender.
É claro que Cohen o ensinaria sobre armas.
Com a testa franzida, Ashton continua:
— Esse revólver é .22. É melhor porque, para iniciantes, normalmente não é muito bom
usar um revólver grande, como um Magnum .357. — Ashton diz enquanto levanta meus braços
até certa altura. Ele força meu antebraço a esticar e eu seguro a arma como já vi policiais em
filmes fazendo. — Essa é a pose. Você está calmo agora, então seus reflexos não estão, como
posso dizer, no melhor dos momentos. Pelo menos, é assim que funciona para mim. Mas quando
for uma situação de perigo você tem que pensar rápido. — Ele pega a arma das minhas mãos.
Relaxo meus ombros, como se finalmente tivesse me livrado de um peso. — Precisa agir por
instinto. Provavelmente não vai lembrar de tudo isso o que eu te ensinar agora, você só vai agir.
Assim.
Antes que eu tenha tempo de notar o que está acontecendo, Ashton já cercou meu
pescoço com o cotovelo dobrado. Minha garganta falha em respirar e eu levo as mãos para o
corpo de Ashton atrás de mim, dando tapas para ele afrouxar o aperto.
Ele o faz, mas não me solta.
Ashton é realmente forte.
— Se você fosse um inimigo, eu poderia estourar seu cérebro nesse instante.
Tenho que lhe dar os créditos. Ashton nesse tipo de situação deve ser assustador.
Mesmo que a voz dele esteja suave, como é quase na maioria das vezes que fala comigo, não
consigo deixar de imaginar caso eu fosse esse inimigo.
É difícil não sentir admiração, inveja e orgulho. Mesmo que a fonte dessa força e
conhecimento não seja a mais agradável possível, ainda serve para alguma coisa.
— Tente se soltar. — Ashton desafia. Ele coloca a arma em uma das caçambas de lixo.
Percebo que o jogo não vai mais envolvê-la, e uma parte de mim fica agradecida, mas a outra se
sente frustrada. — Acho que fui rápido demais. Você não está pronto para ela ainda. Vamos
testar o quão ruim você é de briga. — Ele força o aperto. Noto que Ashton mantém um espaço
entre minha pele com a dele, como se não quisesse me machucar. — Se você se soltar, eu te
respondo uma coisa. O que você quiser.
Quase sinto a perversidade entrando no meu corpo quando escuto isso.
Mas então ela some, porque eu não faço ideia de como sair dos braços dele. Já lutei com
muitos garotos de rua, porém isso foi quando eu tinha quatorze anos e queria atenção dos meus
pais. Os meninos com quem eu lutei também não deviam ter mais de dezesseis, com os braços
magrinhos e quase nenhuma experiência.
Com Ashton é diferente. O aperto dele é o aperto de alguém que sabe o que está
fazendo. Se eu fizer um movimento errado — e se ele quisesse de fato me machucar — na
melhor das situações, eu ficaria com um torcicolo cruciante por dias, se não semanas.
E, claro, na pior das situações, ele acabaria quebrando meu pescoço.
— Você está pensando demais. — Dedos se enroscaram no meu cabelo e os puxam,
forçando meu rosto para cima. De uma maneira totalmente vergonhosa, um gemido escapa por
meus lábios. — Imagine que eu quero te matar. Que eu detesto seu lindo rosto. Que eu não quero
te ver nunca mais. Imagine essa situação. Agora pense: eu teria te dado todo esse tempo para
pensar em uma estratégia, caso eu quisesse tudo isso o que eu disse?
— Não? —respondo, perguntando ao mesmo tempo.
— Não?
— Não. — Minha voz soa mais forte dessa vez. Sem aviso, meu cérebro manda o
comando para meu corpo. E eu me mexo. Eu me mexo para frente, ignorando a dor de ter alguns
fios de cabelo arrancados e mordo o antebraço de Ashton.
Escuto um gemido fraco.
Não foi forte, apenas o suficiente para deixar um rastro de onde meus dentes afundaram
a pele dele. E se fosse em outra situação…
Mas, para o meu azar, ainda não consigo me soltar. O aperto afrouxou e Ashton hesita,
mas se recusa a me livrar.
— Boa estratégia. — Ele começa, depois de um tempo em silêncio, me ajeitando como
uma mãe faz para ajustar um bebê no colo. — Mas se você quer me morder, tem que fazer com
força-
Eu me aproximo e coloco a ponta da língua pra fora. E lambo a marca da mordida.
Dessa vez ele me solta, para minha surpresa. Deixo o sorriso orgulhoso encher meu
rosto.
— Evan. — A voz de Ashton está carregada de aviso, mas isso ainda não é capaz de me
desanimar. — Não faça nada com a boca com esses homens, ok? Eles são sujos.
Dou de ombros.
— Agi por instinto, como você falou. Eu não tenho força física contra você, e
provavelmente não tenho contra esses caras de que você fala. Tentar bater neles seria um
desperdício de energia.
Ashton considera minha resposta por um tempo antes de me responder. E, quando ele
faz, suas sobrancelhas estão franzidas.
— Ok, está certo. Mas tente fazer alguma coisa antes de tentar morder ou… Lamber
outra pessoa.
Um sentimento de êxito enche meu peito.
— Você ficaria com ciúmes?
Aquela ruga em sua testa aumenta. Meus dedos fervilham de excitação.
— Faça sua pergunta. — Ashton muda de assunto, desviando o olhar de mim, mesmo
que seja tarde demais para me impedir de ver o tom rosado de suas bochechas.
Ele corando é diferente de qualquer outra coisa que já vi. Minhas antigas namoradas
ficando vermelhas eram adoráveis, mas ele corando é de outro mundo.
Faz meu ventre ferver.
— Por que você gostou de mim depois de ter me visto beijando o Omar?
O rosto dele perde um pouco da euforia, ficando confuso, mas ainda rubro.
— Você não devia perguntar coisas do tipo: minha comida favorita, meu animal
favorito, o que eu queria ser quando era criança…?
— Essas coisas são desnecessárias. Eu prefiro descobrir isso com o tempo em que a
gente passa junto, sem você dizer, só reparando nos detalhes. Por exemplo, sua cor favorita é
obviamente preto, mas roxo também, porque a capinha do seu celular é roxa, você usa um colar
roxo, e tem uma foto no seu MySpace que você está usando sombra roxa nos olhos.
Ashton levanta uma sobrancelha.
— Eu não sei sua cor favorita. Você está me fazendo sentir mal.
Aperto as pulseiras, forçando o sorriso mais verdadeiro a aparecer nos meus lábios.
— Não fuja da pergunta.
Então ele solta um suspiro e espero, pacientemente, enquanto Ashton se senta na
caçamba de lixo um pouco afastada de nós, para encarar os próprios pés.
Ele abre a boca, e eu sinto meus cílios baterem nas sobrancelhas quando meus olhos se
arregalam levemente.
— Você é… Bonito.
Meu peito murcha.
E então desmurcha.
— Foi por causa disso?
A lua reflete nos olhos de Ashton quando ele me olha.
— Você esperava o que? Que eu tinha sentido minha alma se conectar com a sua?
— Algo assim — admito.
Um pequeno sorriso surge nos lábios dele.
— Se contente com a realidade. E a realidade é que você é bonito, como um sonho
dourado.
Meu coração palpita tão rapidamente que é quase assustador. Minha mão se move para a
bochecha dele.
— Eu amo você.
Essas palavras escorregam dos meus lábios sem permissão. O sorriso de Ashton não
diminui, como eu esperava, mas ele não consegue segurar o olhar no meu depois disso.
— Eu sei.
E nós continuamos nosso jogo.
Ashton me pede para eu tentar soltar-me mais uma vez, sem usar a boca. Ele aperta meu
pescoço com mais força agora e, dessa vez, se torna impossível sair da chave de braço dele.
Desisto na terceira tentativa, sentindo meu pescoço doer mais do que eu posso lidar.
— Faça sua pergunta. — Bufo. Meu cabelo está grudando na testa e não consigo parar
de espetá-lo para cima por causa disso. — Qualquer pergunta.
— Por que você não gosta do seu irmão?
Não esperava por isso. E talvez tenha sido pela surpresa que repentinamente meus
pulmões começam a arder.
Não há uma única resposta para isso. Não é como se… Eu odiasse Randall. Não de
verdade, pelo menos. Ninguém nunca me perguntou uma coisa dessas, e por muito tempo,
presumi que era porque essa era uma parte desinteressante da minha vida, então também nunca
me esforcei para tentar contar a ninguém. Nem mesmo Charlie.
E por isso eu não sei o que dizer.
Minha boca falha em encontrar palavras para descrever minha relação com meu irmão.
A sensação de ter um nó na garganta me sufoca, mas sei que em alguma hora eu vou ter que falar
algo. Nem que seja uma curta resposta.
— Por muito tempo eu… Cresci na sombra do Randall — começo calmamente. Ashton
se ajeita na caçamba mais uma vez, olhando-me com atenção. Seus olhos vidrados em mim não
falham em deixar-me nervoso. — Meus pais, quando eu tinha uns dez anos, começaram a brigar
muito, você sabe porquê — dou uma espiada em sua direção. — Meu pai, depois de um tempo,
parou de tentar disfarçar as traições e simplesmente não se importava mais. E então nós
descobrimos sobre o Randall, filho do primeiro casamento dele. Depois disso, só aconteceu
merda.
— Ele escondeu o próprio filho de vocês? Que filho da puta.
Nem sinto vontade de tentar proteger a imagem do meu pai. Ele é realmente um filho da
puta.
— A mãe do Randall veio cobrar meu pai, porque ela não tinha dinheiro e precisava,
sabe, alimentar o filho dela. Quer dizer, quando eu descobri sobre isso eu pensei “ela não pode
simplesmente trabalhar?” mas então minha mãe me disse que ela tinha dois filhos. Um deles era
um bebê, e que, na verdade, ela já trabalhava. A mãe do Randall era jardineira, arrumava o
quintal de alguns ricos por uns trocados. Mas nem isso estava sendo o suficiente.
Ashton se remexe na caçamba e eu consigo sentir o desconforto exalando do corpo dele.
Não deve ser fácil ouvir sobre a experiência de alguém tão parecida quanto às suas e saber como
essa pessoa se sente.
— Então Glen decidiu ir à nossa casa. Ela berrou e esperneou e disse que meu pai era
um monstro que abandonou o próprio filho e… Então eu vi Randall. E eu vi o bebê no colo dele,
chorando. — Engulo em seco. Os fantasmas daquela lembrança arrepiam meu corpo, mas eu
consigo me sentir incrivelmente aliviado por saber que alguém finalmente está me ouvindo. —
Eu não era mais tão pequeno, e sabia o que aquilo significava. Sabia que meu pai tinha traído
minha mãe mais uma vez, só não entendia como ele tinha conseguido fazer um filho mais velho
com a amante que ele conhecia há poucos dias.
— Você não sabia que ele tinha se casado com ela antes de conhecer sua mãe?
— A princípio, não. Pra mim, era só mais uma amante. E eu comecei a odiar Randall, a
bebê e a mãe deles. Nenhuma das outras amantes tiveram filhos, nenhuma delas veio atrás do
meu pai. Então por que essa tinha que se intrometer? — Aperto as pulseiras no meu pulso,
sentindo meu sangue correr pelas veias. — Eu acho que uma criança da idade que eu tinha
naquela época não deveria sentir tanto ódio quanto eu senti.
— A culpa não é sua por se sentir assim. É do seu pai.
Eu sorrio com os olhos baixos, como se melancolia tivesse entrado no meu corpo.
— A culpa em parte também é minha. Até pouco tempo atrás, eu realmente odiava meu
irmão. Eu ainda não sou muito… Apegado àquela parte da família, muito menos a Glen, mas
entendo o porquê dela ter vindo atrás do meu pai. Entendo que, se eu estivesse no lugar dela,
teria feito a mesma coisa.
O silêncio tenso que nos separa não me incomoda. Tensão é algo que eu estou me
acostumando a sentir, e em algumas situações — como essa — ela é boa.
A atmosfera nem sempre tem que estar tranquila e suave.
— Mas — pigarreio. Ashton volta a atenção para mim de novo. Ele deve estar
mordendo a bochecha, pelo bico que está fazendo. — Você está certo. A maior parte da culpa é
do meu pai. Pode ter sido eu que odiei Randall pela primeira vez, mas foi meu pai quem nutriu o
ódio. Eu provavelmente não odiaria Randall por tanto tempo, se não fosse por ele.
Sinto minha garganta arranhar para dizer essas palavras.
Para ser sincero, eu nunca pensei em Randall como algo além do meu meio irmão que
arruinou minha adolescência. Mas, desde o dia do pergolado, depois de Ashton ter me contado
sobre o que passou por causa do tio, eu comecei a pensar em Randall. Muito. Pensar que meu pai
se parecia com o tio de Ashton, e que eles tinham feito exatamente a mesma coisa, de formas
diferentes: abandonado crianças quando elas mais precisavam.
Eu sei que eu sempre vou sentir uma amargura no coração por pensar nas coisas que eu
tive que passar depois que Glen e Randall entraram em nossa vida, mas pelo menos agora
consigo ver algo além. Consigo ver que, embora eu não seja obrigado a gostar da antiga família
do meu pai, não tenho direito de odiá-los por algo que eu também faria.
Pedir ajuda.
Algo que Ashton faria.
O escuto limpar a garganta, trazendo-me de volta para realidade. Encontro seus olhos já
me encarando.
— A minha vida toda eu escutei que não era tão bom quanto Randall. Antes de ele
aparecer, eu me lembro de ter uma vida até que boa. Eu não era uma criança perfeita, mas meus
pais não me pediam pra ser. Mas depois de Randall, eu nunca me senti tão inútil. Tudo o que eu
fazia, nunca era bom o suficiente. — Aperto os punhos para dizer isso. Por causa do meu pai,
todas as minhas memórias que envolvem o nome do meu irmão são terríveis. Meu coração arde
com ressentimento. — E ele… Randall era perfeito. Tinha notas boas, tinha uma boa aparência,
tinha um bom comportamento, tinha boas namoradas, tinha bons amigos.
Preciso fazer uma pausa. Parece que meus pulmões estão cheios de água, e meu peito
desce e sobe como a maré da Woodbine Beach. Ashton não me força a falar, mas continua me
olhando, com aqueles olhos curiosos.
— Minha mãe sabia do Randall. Ela sempre soube, mas nunca me contou nada até o dia
em que eles apareceram lá — respondo. — E depois que conheci, por algum motivo, quanto
mais o tempo passa, mais eu sinto que estava sendo injusto com ele.
— Talvez você estivesse. — Ashton coloca a mão no meu ombro. — Porém o que
importa agora é reconhecer isso. Seu pai é quem te fazia sentir essas coisas, ele te inferioriza e
em troca coloca o Randall em um pedestal. E, apesar de eu não achar certo jogar a culpa dessa
sua amargura no seu irmão, você ainda tem direito de se sentir como está se sentindo, porque é
uma reação a algo que te foi imposto.
Meu peito infla tanto que eu sinto que vou flutuar.
Ninguém nunca viu o meu lado da história, nem mesmo a minha mãe. Ninguém nunca
me disse que não era apenas minha culpa. Ninguém nunca me fez sentir menos mal por poder
desabafar. Ninguém nunca me fez sentir como se eu não fosse um incômodo.
Meu queixo treme, mas eu não estou triste. Um peso sai da minha alma, um peso que eu
nunca tinha reparado que existia, porque eu estava acostumado com isso, como um caroço no
fundo da minha garganta que me impedia de respirar.
Ashton me faz sentir importante. Me faz sentir que ele se importa. Me faz sentir coisas
que eu nunca senti antes.
O amor que eu sinto por Ashton um dia me mataria.
Meus olhos ardem, mas não percebo até que uma lágrima tenha escapado. Limpo ela
antes que fique óbvio demais, me sentindo um idiota por tentar esconder minha fragilidade de
Ashton.
O vento balança nossos cabelos e eu deixo que sua força me empurre para perto dele.
Meu coração está mais leve, como se todo o ódio que eu nutri por Randall esses anos tivesse
livrado meu corpo da dor.
Randall nunca mereceu o jeito que eu o tratei. Ele também foi uma vítima do meu pai,
mas meu egoísmo não me deixava…
Meus dedos formigam. Eu quero pedir desculpas.
Meu coração bate mais forte do que antes. Tenho quase certeza de que Ashton consegue
senti-lo.
— Ashton? — chamo. Ele levanta os olhos, deixando as pupilas dilatadas encontrarem
as minhas. Eu encosto a testa na dele, fechando os olhos. Sinto os braços dele rodearem minha
cintura. — Desculpe por te fazer ouvir tudo isso. Você me faz uma pessoa melhor.
— Você gasta todo o seu tempo se desculpando, mas a única pessoa a quem você
precisa se desculpar é você mesmo-
Ele não tem tempo de terminar antes que meu celular toque. Gemo em me afastar dele
para poder atender, um pouco feliz por não ter que ouvir o final daquela frase, que
provavelmente entraria na minha cabeça e nunca mais sairia.
Quando estendo o celular na minha frente, sentindo os olhos arderem por causa do
brilho, meu sangue gela.
Randall.
— É meu irmão —eu o aviso.
Atendo a ligação, sentindo como se tivessem vermes no meu estômago. Ashton deve ter
notado minha reação e me olha de canto, levantando o queixo como se me perguntasse o que
aconteceu. Sussurro um “não sei”, mas isso só o faz franzir as sobrancelhas em confusão.
— Evan. — Randall chama meu nome. Sua voz tão instável que sei que alguma coisa
séria aconteceu. Randall nunca me liga, mas, nas poucas vezes que liga, ele nunca diz meu nome
como se estivesse pronto para me contar que alguém tinha morrido.
Por um segundo, tenho quase certeza de que eu vou vomitar.
Eu provavelmente ia, se Randall não tivesse dito antes:
— Evan, sua mãe está internada.
Ele é nosso principal suspeito

into o gosto metálico de sangue na ponta da minha língua quando termino


S de arrancar o couro da cutícula do dedo — o último pedaço de pele que sobrava
para uma explosão de sangue sair lentamente. Lambo o sangue, torcendo o nariz
com o gosto terrível.
Minhas mãos não param de tremer. Nem minhas pernas, ou os pés. Meu coração batuca
nas costelas com tanta força que respirar tornou-se uma tarefa trabalhosa de repente.
Não como nada há tantas horas que meu estômago não para de fazer aqueles barulhos
chamativos, sempre fazendo Ashton me olhar com aquela atenção preocupada.
— Você quer que eu compre alguma coisa? — A voz de Ashton é a única coisa que eu
me preocupo em reparar no meio de todo esse caos. Ele está com a mão no meu ombro, falando
tão suavemente que quase sinto raiva. — Você não come desde ontem.
Pensar em ontem à noite faz meu estômago revirar. Estou nesse maldito hospital há
horas o suficiente para o dia que eu fui com Ashton até aquele trilho abandonado já ser ontem.
Minha cabeça dói com o barulho do hospital. As pessoas não param de cochichar e a
cada segundo que se passa, mais eu tenho certeza de que elas estão me olhando, julgando-me,
condenando-me. Por quê?
Eu não sei. Não sei. Não sei. Não sei.
Talvez por não ter ajudado minha mãe quando ela precisava. Ao invés disso, estava com
Ashton, brincando com uma arma e compartilhando segredos, como a merda de uma criança de
doze anos.
O barulho das ambulâncias e dos telefones me faz querer vomitar. Minha barriga
embrulha por dentro como se eu tivesse comido algo envenenado, quando provavelmente é
apenas a bile ácida corroendo as paredes do meu estômago.
— Evan-
Afasto-me do seu toque, sem me atrever a olhar ninguém nos olhos. Ashton deve estar
fazendo uma expressão que o faz parecer feroz, mas sei que seus olhos vão traí-lo ao mostrar o
quão preocupado ele está, mas não quero receber nenhum tipo de olhar de ninguém.
Só quero ver minha mãe.
Estou ficando com falta de ar de novo, contando até três como a enfermeira que veio me
acalmar quando cheguei pediu para eu fazer. Eu queria mandar ela se foder. Um, dois, três não
resolveria minha preocupação. O que resolveria seria eles me deixarem ver a minha mãe.
Escuto passos se aproximarem. Não parecem ser de Randall, porque meu irmão anda
com tênis macios e que não fazem barulhos, e ele disse que não voltaria até anoitecer. Então esse
tec-tec-tec irritante deve ser do-
— Evan. — A voz do meu pai me faz levantar o rosto imediatamente. Antes que eu
possa me controlar, o pego pelos ombros, nervoso demais para ter qualquer senso. Ele franze a
testa quando eu faço isso, mas não se afasta. — Sua mãe…
— Por que você está aqui? —grito. É difícil ignorar o jaleco com o nome “Dr.
Shiravari” bordado em preto na região do peito. Sinto a presença de Ashton atrás de mim, se
movendo calmamente, como se querendo me lembrar que estamos num hospital. Para o inferno
com isso. — Por que você não me deixa ver ela?
— Primeiro, — meu pai faz uma expressão amarga, dividindo a atenção para Ashton. —
Quem é esse?
Abro a boca.
— Ele é-
— Eu sou amigo do seu filho.
Um ar gelado passa pelo meu coração.
Viro-me bruscamente. Meu olhar encontra o de Ashton e eu franzo tanto as
sobrancelhas que chega a doer. Ele nota minha expressão, me encarando de relance com um
aviso silencioso.
Então entendo que ele está pedindo permissão para poder continuar. Eu nunca disse
muito sobre as opiniões do meu pai em relação ao nosso relacionamento, e por um pequeno
segundo, fico feliz por ele não ter dito nada que possa piorar a situação.
Agora não é hora de eu contar esse tipo de coisa para o meu pai.
— Ele estava na minha casa quando seu outro filho ligou. — Ashton coloca as mãos no
bolso. De soslaio, vejo meu pai hesitar. É a primeira vez que isso acontece. — Evan está
preocupado com a mãe e ninguém responde nenhuma das coisas que ele pergunta. Ele está sem
comer desde ontem e quase desmaiou umas duas vezes. Quase sedaram ele. — Ashton se
aproxima de mim, perto o suficiente para seus ombros encostarem o meu. Ele olha para o meu
pai com tanta firmeza que me deixa atordoado. — Então você pode por favor responder o que ele
perguntou?
Tenho a sensação da mão de Ashton roçar com a minha, mas é tão leve que, se não fosse
o olhar cúmplice que recebo dele, não teria acreditado ser verdade.
Meu pai abre e fecha a boca incontáveis vezes. Acho que ninguém nunca falou dessa
maneira com ele. Quando sorrio por pensar nisso, meu pai aperta o maxilar. Não é difícil de
perceber que ele respirou fundo silenciosamente para manter a calma.
— Sua mãe está em coma. — Uma pausa. Ele umedece os lábios. — Eu estou cuidando
dela e não te deixei ver porque…
Me afasto da segura presença de Ashton para me aproximar dele, como se meus ouvidos
tivessem escutado errado. Minhas pernas começam a formigar quando escuto um suspiro vindo
meu pai. Ele parece preocupado.
Se ele está preocupado, então eu também deveria estar.
— Por quê? — pergunto, ansiedade enchendo minha voz.Nem sei o que tinha
acontecido, mas meu coração já está disparado.
— Ela teve várias convulsões seguidas, parece ter sido por causa de mal epilético — ele
engole em seco, não deixando seus olhos encontrarem os meus. Aperto os lábios, sentindo
minhas veias doerem como se o sangue tivesse se tornado espesso. — Ela caiu da escada por
causa disso, bateu o rosto nos degraus e está muito inchado. Por sorte ela…
Paro de escutar.
O mundo paralisa um instante e tudo ao meu redor vira um zumbido irritante.
Minha mãe teve uma convulsão?
Isso nunca aconteceu antes. Eu nunca nem soube que ela tinha mal epilético. Como isso
aconteceu de repente? O que ela viu para ter ficado desse jeito?
Meu corpo está congelado. Não quero engolir a saliva que se formou embaixo da língua
porque sei que irá arranhar minha garganta. Mal consigo respirar e, se não fosse pelo meu
coração batendo loucamente, poderia achar que morri.
Meus olhos deveriam estar enchendo de água? Eu não sei. Não tenho vontade de chorar,
e não tenho vontade de gritar.
Eu já vi em alguns filmes sobre essa “calma assustadora”. Não estou calmo; não de
verdade, pelo menos. Por dentro, meu corpo derrete como se eu estivesse no inferno. A
preocupação corroeu meu coração como um câncer, e minhas mãos tremem tanto que, se eu
estivesse segurando algo, essa coisa teria caído há muito tempo.
Na verdade, estou tão chocado que não consigo expressar.
Convulsões. Convulsões. Convulsões.
Várias convulsões consecutivas.
Quanto mais eu penso nessa palavra, mais enjoado fico.
Um puxão me traz de volta para a realidade, com um zumbido agudo no meu ouvido
direito, parecendo que alguém está enfiando uma furadeira na direção do meu cérebro. A dor me
faz perder o equilíbrio e cambaleio para o lado, tapando os ouvidos.
— O que foi? — Uma voz soa baixa, como se eu estivesse embaixo de litros de água.
Abro um olho para ver quem me segura com tanta força, e, para minha surpresa, Ashton
está na minha frente. Ele tira uma mecha de cabelo que está nos meus olhos, e, como se notando
que estou tentando esconder os ouvidos, as mãos dele pousam sobre as minhas, aquecendo minha
pele.
Quero mandá-lo para longe, para que ele não me veja nesta situação. Se ele não
conseguia dizer que me amava antes, como poderá dizer isso depois de tudo o que está
acontecendo?
É culpa dele. Uma voz cruel soa na minha mente. Se ele não tivesse te distraído, você
teria ficado em casa e poderia ter ajudado sua mãe.
— Evan. — A voz cheia de preocupação faz uma onda de fúria rugir na minha mente.
É culpa dele.
— Me solta.
Ainda consigo senti-lo me tocando. Eu sinto uma pontada de irritação.
— Me solta! — grito.
Ando para trás até encontrar algo que me impeça de continuar. Minhas costas se chocam
contra a parede, e o toque gelado finalmente me traz para a realidade.
A primeira coisa que encontro são os olhos esbugalhados de Ashton. Nunca vi sua
expressão tão contorcida. Tão… ferida.
Viro para procurar meu pai, e, quando encontro olhos curiosos de desconhecidos na
minha direção em vez disso, não consigo mais conter aquele fogo dentro de mim.
— O que vocês estão olhando?!
Ashton tenta se aproximar de novo e, dessa vez, permito que o faça, porque ele é o
único que não está me olhando como se eu fosse um maluco. Estou surtando, sei que estou.
Minha cabeça está borbulhando com pensamentos, eu não faço ideia do que está acontecendo.
Ashton não se mexe pelo que parece horas. Ele está próximo o suficiente para me tocar,
mas hesita como se me tocar pudesse feri-lo. Um balançar começa por meu peito e se espalha por
todos os meus membros, em arrependimento por ter gritado.
Não aguento a distância. Estendo os braços como um bebê faz para pedir colo e ele joga
a cabeça para o lado, com confusão enfeitando seu rosto. Ele não se mexe rápido o suficiente.
Puxo os ombros dele e nós nos chocamos tão forte que eu solto um resmungo.
— Me desculpa. — Encontro forças para sussurrar. — Não queria falar com você
daquele jeito. Me desculpa, desculpa-
— Shh. Está tudo bem, meu amor.
Mas minha satisfação não dura muito. Meu coração afunda no instante em que noto um
leve tremor vindo dele. Sinto o cheiro de lavanda no mesmo instante em que eu coloco o nariz
sobre o pescoço dele e agarro sua camiseta.
— Desculpa. — Minha voz treme tanto que eu mal consigo formar uma frase direito.

Meu pai não aparece até anoitecer novamente. Estou sozinho porque Ashton foi pegar
roupas para mim na casa dele, e, quando meu pai para na minha frente, com um sorriso
impetuoso nos lábios, ansiedade infiltra meus sentidos. Não sei se isso é pior ou melhor do que
vê-lo com raiva.
— Seu amigo é bem corajoso.
Balanço a cabeça. Sua voz me faz apertar as mangas do meu moletom. Gelados. Essa é
a única característica dos olhos do meu pai.
— Ele é.
Seu sorriso falha.
— Qual o nome dele? — pergunta, com certa amargura.
Tento manter a calma. Pode ser paranoia da minha cabeça, mas as chances do meu pai
estar envolvido com o desaparecimento de Fraser ainda existem.
O encaro, pedindo para todos os deuses, do A até o Z, que isso seja tudo coisa da minha
cabeça.
— Ashton.
Observo um sorriso presunçoso tomar conta da expressão do meu pai. A única coisa boa
das nossas conversas curtas são que nem eu nem ele jogamos conversa fora. Ele perguntava
diretamente o que queria, e, quando eu estava no auge da rebeldia dos meus quatorze anos, as
perguntas do tipo “onde”, “quando” e “por quê” me deixavam aterrorizado, porque eu não tinha
brecha alguma para mentir.
Minha mãe sempre perguntava, “o que você foi fazer lá?” e eu sempre respondia algo
enfeitado, descritivo e mentiroso. Ela levantava a sobrancelha, mas não dizia nada. Talvez ela,
por me conhecer melhor que meu pai, não precisava que eu dissesse a verdade para saber da
verdade.
— É um belo nome. Os pais dele tem bom gosto.
Um sorriso forçado escapa dos meus lábios. Não sei se há algum tipo de ironia, mas não
tenho muito tempo para pensar sobre isso quando meu pai se vira. O sorriso ainda está no rosto
dele, me deixando de estômago embrulhado por imaginar quando essa gentileza dará lugar
àquele homem assustador novamente.
Decido que não quero esperar para ver isso acontecer.
Meu pai acena para mim, tão vagarosamente que presumo que ele queira que eu diga
mais alguma coisa. Não me atrevo a fazer isso porque a cada dez palavras que saem da minha
boca, nove poderão ser usadas contra mim.
Quando ele foge do meu campo de visão, solto um suspiro tão longo que fico sem ar.
Jogo-me na cadeira de espera, sentindo meus olhos pesarem. Não durmo há quase dois dias, mas,
mesmo quando fecho as pálpebras e tento me forçar a adormecer nessa cadeira gelada, a
imaginação da minha mãe convulsionando me assombra.
Não vou conseguir dormir até vê-la, mesmo que seja com ela em coma.
A ideia de que eu nunca soube sobre as convulsões é como um soco no estômago. Sinto-
me o pior filho do mundo. Deveria ter notado isso antes, não deveria? Quem não nota que a
própria mãe não está bem?
— Eu, pelo jeito — murmuro para mim mesmo.
— Você o quê?
Dou um pulo para longe. É o tipo de coisa que Ashton faz, aparecer de repente assim.
Mas, para minha surpresa, a voz não é dele.
Randall está sentado do meu lado com as sobrancelhas curvadas para cima. Ele parece
um cachorro com essa expressão de pena, e eu tenho quase certeza de que pareço um sem-teto na
situação que estou agora.
— Você está bem? — Ele pergunta em uma voz suave que me dá calafrios.
Esfrego meus olhos para tentar aliviar a dor, mas fazer isso piora tudo. Deus, eu só
quero ir para casa, com a minha mãe bem, dormir e comer.
Não aguento mais ver pessoas andando de um lado para o outro, com uniformes
brancos, parecendo cavaleiros de Deus, que me ignoram e me olham com pena toda vez que eu
pergunto sobre a minha mãe.
— Eu pareço bem? — Minha voz sai mais rude do que eu gostaria.
Randall não se afeta com isso. Ele aperta minha bochecha e dá uns tapinhas na minha
testa. É estranho. Eu não tenho raiva de ele estar perto de mim. Nem de sorrir para mim. Nem de
me tratar como um irmão mais novo.
— Não. — O sorriso continua onde estava. — Por isso eu acho que você deveria ir para
casa, tomar um banho, comer alguma coisa e dormir.
Balanço minhas pernas, mas elas são grandes demais para eu fazer isso sem o chão me
atrapalhar.
— Mesmo que eu queira ir para casa, tenho que esperar meu amigo voltar.
É tão fácil mentir que Ashton é meu amigo. Talvez nós realmente sejamos como
Aquiles e Pátroclo.
A expressão de Randall finalmente vacila. O sorriso para de chegar aos seus olhos e eu
queria poder dizer que isso não me deixa preocupado.
Devo estar tão acostumado com isso que nem noto mais, mas talvez para o meu pai e
para Randall seja um choque de realidade. Ashton estava com as unhas pintadas de preto quando
me trouxe pra cá, além da sombra preta e meio borrada nos olhos.
Quero dizer, para mim tudo aquilo é maravilhoso. Combina tanto com ele que é difícil
imaginá-lo de outro jeito, mas meu irmão parece não ter gostado tanto quanto eu.
Meu coração queima para dizer algo na defesa de Ashton.
— Eu sei que ele tem uma aparência diferente, mas-
— Não é pela roupa. Eu sei como é ser jovem e querer ser diferente. — A risada alta
dele acalma meu nervosismo. Rio junto só para ele não ficar constrangido. — É que… Sua mãe
me contou sobre ele.
Meu coração palpita de novo. Merda.
Se meu pai descobre sobre isso, estou ferrado.
Me arrependo de tudo o que fiz com Randall. É egoísta pensar nisso, mas agora minha
culpa aumenta porque, caso ele queira se vingar pela forma que o tratei ao longo desses anos, ele
poderia fazer isso com algumas palavras. Na melhor das situações, meu pai me proibiria de ver
Ashton. E no pior, eu ficaria trancado naquele maldito porão por dias, talvez semanas.
— Evan. — A voz do meu irmão me suga de volta para a realidade. — Relaxa, eu não
vou falar nada pro pai. Eu sou seu amigo, além de ser seu irmão.
Meu estômago revira. Tenho que afastar o rosto porque por um segundo o refluxo
parece tão real na minha garganta que eu acho que realmente vou vomitar.
Amigos.
Como ele consegue me chamar disso, depois de tudo o que eu fiz?
Randall parece ter percebido meu nervosismo. O sorriso dele aumenta mais do que suas
bochechas podem suportar.
— Mas eu preciso te pedir um favor.
Não penso antes de falar, apenas sinto a culpa fazendo meu corpo agir.
— Claro.
A expressão do meu irmão fica vagarosamente mais obscura e ele endireita a coluna
enquanto se afasta. Molho os lábios, com a língua, checando mais uma vez o final do corredor
para ver se Ashton não está se aproximando. Depois disso, sou capaz de dar toda a minha
atenção para Randall.
Então, antes de falar, ele estende o braço e aperta meu ombro, me preparando para o que
quer que viesse em seguida.
— Seu pai trouxe ela pra cá, porque ele trabalha aqui — Randall levanta uma
sobrancelha, enigmático. — Ele foi o único que teve autorização para entrar no quarto dela.
Nenhum outro médico pôde examinar a sua mãe.
— Por que não? Isso-
— Escute, — sua voz fica mais silenciosa, me guiando para fazer o mesmo. — Nosso
pai tem poder aqui. Ele pode fazer isso, caso queira. Dinheiro faz tudo. O ponto é que ninguém
além dele viu ela. Por isso nenhum outro funcionário te responde. Eles… — aqui, Randall solta
— Eles têm medo do Terry Shiravari.
Quem não tem medo do meu pai? Esse é o verdadeiro ponto. Ashton, quem sabe. Mas
ainda estou procurando por alguma coisa que Ashton tenha medo. Talvez de Fraser. Talvez da
ideia de ter perdido Fraser.
— Mas por que você está me falando isso?
Randall olha para os lados.
— Acho que ele tem algo a ver com o fato da sua mãe aqui. — Ele diz sem um pingo de
ironia na voz, para minha surpresa.
— Essa é uma acusação bem… Intensa. Eu nem sabia que tem como fazer alguém ter
uma convulsão. Quer dizer, fazer alguém ter uma convulsão propositalmente, pelo menos.
Randall muda sua expressão para algo amargamente perverso.
— Tem, se você souber medicina.
Isso me atinge como um raio.
Não, não, não, não.
Não.
— Como assim?
O aperto no meu ombro se intensifica.
Randall olha para os lados mais uma vez, como se realmente temendo que meu pai
apareça do nada para pegá-lo no flagra.
— Ele pode ter mentido o motivo. Ela teve uma convulsão, pelo menos isso eu sei, mas
o porquê de ter acontecido, já é um mistério. Sua mãe nunca teve sintomas de epilepsia… O que
quer dizer que, o que quer que tenha acontecido, foi propositalmente induzido. Algumas drogas
são capaz de fazer isso e…
Por um instante, uma onda raivosa de irritação se choca contra mim.
— Por que você não pode… Simplesmente dizer o que você quer dizer? Eu estou tão
cansado de todo mundo usando metáforas para falar comigo, como se eu não fosse aguentar a
verdade.
— Evan-
— Eu não sou mais uma criança — minha voz não está firme como eu pretendia que ela
estivesse.
— Me escute antes de tirar conclusões. Não acho que você seja uma criança. Você é
quase maior de idade, e sabe tomar conta de si mesmo. Eu só não posso te contar a verdade
porque eu não sei o que ela é. O que eu quero dizer é que nosso pai não é confiável. Ele é
narcisista, manipulador e psicótico. Ele faz de tudo que está ao seu alcance para conseguir o que
quer e se ele precisava testar um dos seus experimentos em algo maior do que aqueles malditos
ratos-
— Ei. — Uma terceira voz o interrompe. Eu me viro, furioso por não poder escutar a
parte mais importante, dando de cara com Ashton. — Peguei suas coisas e trouxe comida — diz
ele, alheio a minha careta.
— Você-
Eu paro antes que diga algo que me arrependa. Meus punhos se fecham quando solto um
suspiro e tento me acalmar. Ashton me encara por alguns segundos, como se eu estivesse sendo
esquisito demais para ele lidar. Pego a blusa dos braços dele e a visto, sentindo o cheiro de
lavanda me envolver.
Meu peito se acalma.
— Eu interrompi alguma coisa? — Ashton olha desconfiado para Randall.
— Não. Eu só estava conversando com o meu irmão.
Nós três ficamos em silêncio por mais alguns segundos até Ashton sentar-se ao meu
lado. Ele me estende um pacote de bolacha.
— Obrigado.
— Bem — Randall suspira, se levantando como um velho depois de ter ficado quatro
horas seguidas sentado jogando baralho. — Eu vou indo. Preciso resolver algumas coisas com
Mia. — Sinto cinco dedos envolverem meu ombro novamente. — Ah, eu estava quase me
esquecendo. O meu pedido é para que você vá ver sua mãe e que tome cuidado com nosso pai.
Quando Randall vira-se para sair, Ashton olha na minha direção, com um olhar
interrogatório. Espero até que meu irmão tenha se afastado consideravelmente de nós para poder
saciar a curiosidade dele.
— Randall acha que de alguma forma meu pai fez a minha mãe ter convulsões.
Ashton levanta uma sobrancelha, tirando os olhos de mim, talvez para processar as
informações.
— Tem como alguém fazer isso?
Dou de ombros, tentando disfarçar o quão nervoso estou.
— Pelo jeito, tem.
Assentindo, Ashton não diz mais nada.
Penso se devo dizer sobre o que Randall me disse.
— Ele também me contou algumas coisas — sussurro enquanto meus dedos apertam as
pulseiras. Vejo de soslaio Ashton olhar-me mais uma vez, me esperando continuar. — Meu pai é
médico e tem conhecimentos químicos. Ele fazia testes em ratos no porão, sabe Deus o que ele
tentava criar lá embaixo. Mas… Talvez seja pura coincidência, mas… — engulo em seco,
tentando não deixar meu nervosismo transparecer. — Eu… eu acho que- — Respiro fundo, como
se doesse fisicamente falar uma coisa dessas. — Acho que nós deveríamos investigar meu pai.
Eu disse isso. Finalmente disse isso.
Meu coração está batendo forte contra as costelas e sinto que vou vomitá-lo a qualquer
instante. O peso das palavras machuca minha língua e começo a me arrepender de ter feito isso.
Ashton me encara por todo o processo. Sua expressão passa de confusão, para choque
até parar em raiva.
— Investigar sobre o quê?
— Ele… Ele… — Minha garganta fecha. Eu quero chorar e implorar para que ele não
fique com raiva, mas sei que pedir esse tipo de coisa é impossível. — Ele é muito suspeito. Meu
pai tem conhecimentos médicos, ele tem um porão na nossa casa, que tem como se fosse uma
passagem secreta, que é onde ele faz experimentos. É complicado. Ele nunca deixou ninguém
entrar lá. Ele… Ele me tranca de vez em quando com os ratos lá embaixo e- — Aqui, eu não
deixo minha voz falhar. — Mesmo que ele não tenha nada a ver com o Fraser, eu quero tirar isso
da minha consciência.
Ashton não me responde de imediato.
Um silêncio tenso paira sobre nós e desejo ter esperado mais um tempo para contar
sobre isso. Agora foi uma péssima hora.
— Você está dizendo que talvez ele seja o cientista que criou aquela droga? — A voz
dele está tremendo, mas eu sei que não é de medo. É de fúria.
— E-eu não sei. Eu disse que quero investigar-
— Ótimo. — Ele aperta o maxilar. — Porque agora ele é nosso principal suspeito. E se
eu descobrir que ele tem qualquer coisa a ver com isso, vou matá-lo.
Essas são as últimas coisas que eu ouço sair da sua boca antes de ele se levantar e sair.
Fico sozinho no hospital mais uma vez. Queria poder chorar, mas lágrimas não querem
molhar meus olhos.
Cigarros e bandas

inha mãe se recusa a abrir os olhos.


M Ela está em coma há dois dias. E posso dizer que esses foram os piores
dois dias da minha vida. Minha casa está solitária. Meu pai não sai do quarto
quando eu estou lá. Nós apenas nos vemos quando ele tem que me levar ao hospital. Ele examina
minha mãe, então me deixa entrar.
Em algum desses dias, me cansei de ficar naquele lugar. Não era como estar na minha
casa. Não tem o conforto da presença da minha mãe andando em algum canto, para lá e pra cá.
Quando é só eu e meu pai, fica tão silencioso que escuto os ratos do porão andando pelo
encanamento.
Estou doente de tudo isso. Essa casa sem a minha mãe não é nada. Meu pai nem se
esforça. É como se ele zombasse de mim. Como se ele quisesse me dizer “o que você vai fazer
agora?”.
Acho que nunca me senti tão solitário. Nem mesmo Ashton consegue preencher o vazio
que ver minha mãe daquele jeito criou dentro de mim.
— Sinto muito. — Minha voz sai como um fiapo.
Ela não me responde, não passa a mão pela minha bochecha como faria quando me via
prestes a chorar. Ela não se mexe.
Algo rasga meu peito. Dilacera meu coração.
Nunca senti nada como isso. Como se mãos cruéis pegassem meu intestino e o
apertasse. Nunca senti tanto desespero. Nunca achei que a minha mãe poderia realmente morrer.
Dói tanto ver ela nesse estado que é difícil respirar.
Deslizar minha mão trêmula para encostar no seu braço e tocar uma pele gélida é com
certeza a pior sensação do mundo.
— Se ele fez isso com você, de algum jeito — meu peito pesa como uma bola de canhão
e, quando minha testa encosta na mão dela, tenho que tirar autocontrole do fundo do coração
para não soluçar. — Eu vou descobrir. Não vou perdoar ele dessa vez, mãe. Não depois de tudo o
que ele fez você passar.
Quero que ela abra os olhos. Quero que ela me conte porque nunca conseguiu me
proteger do meu pai, porque nunca impediu ele de me arrastar para o porão.
Quero dizer que a amo. Mais do que tudo na minha vida. Mais do que a mim próprio.
Quero pedir para ela me dar mais um pouco de tempo. Ela tem que acordar e me ajudar
com a verdade. Ela tem que acordar e ser feliz.
Saio do quarto depois de arrumar a margarida no vaso de vidro ao lado da cama dela. O
pi, pi, pi, pi, constante da máquina que mede os batimentos cardíacos da minha mãe me deixa
enjoado. Preciso fazer alguma coisa para me acalmar.
Minhas mãos tremem enquanto caminho pelo caminho do lado de fora do hospital. Meu
coração pinica de ansiedade quando eu cruzo a rua para a loja de conveniência. Minhas mãos
continuam tremendo no instante em que dou o dinheiro para o vendedor e pego a carteira de
cigarro em troca.
Quando eu trago a fumaça para os meus pulmões, imagino que é a vida que estou
tirando de mim mesmo e dando para minha mãe. Isso faz meus olhos pararem de ameaçar a arder
e eu me desculpo mentalmente por ter feito isso.
Me desculpo para minha mãe, que ficaria decepcionada ao descobrir que eu fumei.
Mas não sei se ela vai acordar. Então isso não importa mais

— Eu não acredito que você está fumando. — diz Ashton, arrancando o cigarro da
minha boca e jogando-o no chão.
Eu não reclamo. Em vez disso, pego outro.
E Ashton faz a mesma coisa.
— Para!
— Desde quando você virou um covarde? — ele grita.
— Desde o dia que a minha mãe teve a merda de uma convulsão e ficou em coma por
isso. Ah! — Eu pego outro cigarro. Ashton me encara com os olhos pegando fogo de fúria. — E
que meu pai virou um criminoso.
As sobrancelhas dele estão tão franzidas que formam um V em sua testa. Ele parece tão
decepcionado que sinto meu estômago se revirar. Desvio o olhar antes que meus olhos ardam de
raiva e frustração.
Ele é a última pessoa que eu quero brigar no momento, mas nesses dois dias, Ashton
não me procurou uma vez sequer. Ele não atendeu nenhuma das minhas ligações e fingiu que eu
não existia por dois dias inteiros. E agora, quando finalmente desistiu de achar que é o único
machucado com a situação, a primeira coisa que escuto sair da sua boca é que virei um covarde.
Um cigarro não me faz covarde. Nada do que eu faça agora vai me tornar um covarde,
por tudo o que eu aguentei minha vida inteira. Ninguém pode me dizer o contrário, nem mesmo
Ashton.
Meu pai é um covarde. Por fingir que está tudo bem. Por mal me deixar vê-la. Por trair
minha mãe.
Sinto meu peito descer e subir rápido demais para eu aguentar. Meus pulmões ardem
quando eu trago novamente.
Eu quero fazer alguma coisa. Não posso ficar parado e fingir que nada está acontecendo
quando alguma coisa grande está sendo feita bem embaixo do meu nariz.
— A gente não sabe disso ainda — ele murmura.
— Você diz isso depois de me ignorar por dois dias inteiros — a risada amargurada que
sai dos meus lábios soa errada. Eu nunca ri dessa forma com Ashton.
— Ithaly precisou de mim-
— E eu?! — Me viro tão bruscamente que meus braços ardem. O cigarro cai da minha
mão, mas eu não consigo me importar com isso agora. Fúria fluiu por mim como lava. — Eu
também precisei de você. Minha mãe está na merda de um coma! Ficar naquela casa com o meu
pai foi pior do que ficar no inferno. Eu fiquei achando que você estava com raiva. De mim! Por
que você- — Meu dedo toca o peito dele com uma agressividade que eu não consigo conter. —
Você nem atendeu a porra das minhas ligações.
— É melhor você se acalmar-
— Senão o quê? — Umedeço os lábios. Minha garganta está pegando fogo, mas de
alguma forma eu ainda consigo forças para abrir os braços em um gesto descarado. — Você vai
me bater? Igual meu pai fazia com a minha mãe?!
Ele não me responde imediatamente e isso só me deixa com mais raiva ainda. Quando
me aproximo, Ashton segura meus pulsos para me impedir de tocá-lo. Estou tão dominado por
sentimentos abomináveis que mal noto a quentura das lágrimas descendo por minha bochecha.
— Não. Eu nunca te bateria, você sabe disso. Mas eu sei que se você continuar, você vai
falar coisas que vai se arrepender. — Estou perto o suficiente para ver o pomo de Adão de
Ashton descer e subir bruscamente. — Igual eu me arrependi quando disse esse tipo de coisa pro
Fraser.
— Você- — Não tenho mais forças para lutar. Deixo meus braços caírem, e tenho
certeza de que se Ashton não tivesse sido rápido o suficiente para me segurar, eu também teria
caído. — Você só fala de Fraser, Fraser, Fraser. Acho que você ainda ama ele. Como antes.
Eu nem tenho mais noção do que a minha boca está fazendo. Meu cérebro está uma
bagunça.
Meu pulso dói como se meu sangue tivesse se tornado espesso. Ashton na minha frente
não faz nada para aliviar o buraco no meu peito, com suas sobrancelhas curvadas como se tivesse
se machucado mais do que seu corpo poderia aguentar.
Quando engulo, um gosto amargo surge na minha boca.
Culpa.
Eu sei bem como é essa sensação.
Dou um passo para frente, cedendo. Ele, em contrapartida, não luta em aceitar meus
movimentos.
Escuto um soluço. Tenho certeza de que não é meu, porque se fosse, eu teria sentido
minha garganta arder como sempre arde. Então quando levanto o rosto e o encontro com a ponta
do nariz vermelha, meu coração se quebra.
Eu o envolvo nos meus braços, o mergulho no meu peito.
Escuto outro soluço, e então dedos agarrando minha blusa.
E meu coração se quebra mais um pouco.
— Me desculpe por fazer você pensar que eu só falo sobre ele. — A voz dele fica
abafada contra meu peito. Agora os pequenos dedos da mão de Ashton agarram minha blusa com
tanta força que eu sufoco com a gola. — Não fique com raiva.
Ashton chora. Bem, não chora exatamente. Lamenta.
Não foi isso o que eu quis fazê-lo sentir. Nunca. Sempre quis fazê-lo feliz, mais feliz do
que nunca. E aqui estou eu, sendo o único que continua o machucando.
Minhas mãos encontram o caminho. para a sua nuca.
Eu devolvo o aperto com tanta força que sinto como se nós fossemos nos fundir e
sussurro, com todo o meu coração:
— Eu te amo. Me desculpa.
O som de ambulâncias do lado de fora me dá calafrios. Minha pele se arrepia toda vez
que eu lembro de hospitais; toda vez que eu lembro da minha mãe deitada naquela maca sem
mexer um único músculo do corpo; sempre que me lembro da possibilidade de que a qualquer
segundo ela pode morrer.
E, se não fosse pelo carinho que estou recebendo no braço pelas pontas do dedo roçando
minha pele, sobrepondo os calafrios gélidos por arrepios e suspiros de satisfação, eu
provavelmente enlouqueceria de novo.
O cheiro de Ashton está por todo o lugar. Em mim, nele, nos cobertores, nos
travesseiros, no ar. Talvez seja por isso que eu tenha me acalmado, como se meu coração
reconhecesse de imediato o odor de lavanda e soubesse que, desde que sentisse esse cheiro,
Ashton estaria perto. E, na maioria das vezes, coisas boas aconteciam com ele por perto.
Sendo sincero, mesmo que eu já tenha vindo na casa dele muitas vezes, era muito raro
eu entrar nos quartos. Agora que tenho tempo para ver melhor, não consigo ficar deitado na cama
encolhido como um bebê por muito tempo.
Verifico a respiração de Ashton antes de tirar o cobertor de cima de mim: está tão calma
que provavelmente ele está dormindo. Depois da nossa briga, eu não consegui controlar algumas
malditas lágrimas de escorrerem. Ele me trouxe para cá, me fez deitar e me abraçou até eu me
acalmar, dizendo vez ou outra um “me desculpa” que cortava meu coração no meio.
Gostaria de ter adormecido com ele, para esquecer de toda a merda que aconteceu hoje,
mas, mesmo quando fecho os olhos, não adianta. Não estou mais tão magoado quanto antes,
apenas amortecido, como eu normalmente fico depois de ter esse tipo de surto.
Mas o porquê de eu não querer dormir é porque eu sei que se eu ficar em silêncio por
tempo o suficiente para minha mente começar a pensar sozinha, vou lembrar das coisas que disse
para Ashton.
Desprendo-me dos braços da pessoa deitada comigo para sair da cama. Ele solta um
resmungo, mas não abre os olhos, embora se vire para o outro lado. Jogo a coberta em cima dos
seus ombros antes de me mover.
— Aonde você está indo? — pergunta ele.
Paro no meio do caminho.
— Achei que você estivesse dormindo — respondo. Um sorriso escapa dos meus lábios.
Vê-lo assim, tão fora de guarda e sonolento, tira um pouco da tristeza que estava no meu
coração.
— Aonde você está indo?
Meu sorriso falha por um segundo.
— Eu, hm, queria olhar um pouco seu quarto.
Não escuto nenhuma resposta. Ashton continua imóvel de costas para mim.
— Se você quiser, eu não mexo- — então, quando eu me aproximo para minha mão
tocar seu ombro direito, sinto seus músculos tensionarem embaixo da minha palma e percebo
que tem alguma coisa errada. — O que foi?
Sem resposta. Meu estômago revira.
— Você tomou seus remédios? — pergunto, forçando meu peito a se acalmar. Quando
tomo coragem de me sentar na cama, pavor enche meu corpo. A última vez que eu lidei com
Ashton e a sua bipolaridade foi quando ele estava passando por um episódio maníaco e eu não
soube o que fazer. Agora, eu não sei se passar por um depressivo é pior do que vê-lo eufórico
como um maníaco de adrenalina.
Merda, eu devia ter me informado mais sobre isso. Eu tive semanas inteiras pra procurar
esse assunto e a única coisa que eu fiz foi ficar com pena de mim mesmo e chorando pelos
cantos.
— Sim. Só… Vá olhar o que você quiser. Apenas não mexa no livro da sala.
— Não, eu- — minha voz morre no instante em que Ashton tira minha mão do seu
ombro. Não foi com brutalidade, mas com frieza o suficiente para me fazer recuar.
Por que essas coisas só acontecem quando nós nos resolvemos?
Primeiro, foi quando eu finalmente fiz as pazes com ele depois de duas semanas
brigados e então de repente a minha mãe entrou em coma. Horas atrás, eu surtando feito um
lunático e agora… Isso.
Existem certos momentos da minha vida que eu realmente acredito ter azar impregnado
na minha alma. A culpa come minha consciência, parecida com a forma que traças comem
livros, e eu sei que não deveria pensar nisso, mas se a minha mãe não tivesse entrado em coma,
talvez nada disso teria acontecido.
E a cada segundo que passa, mais minha vida é afetada por todos esses malditos
mistérios. Alguém faz algo, e isso afeta uma coisa pequenininha, mas que se transforma em uma
bola de neve gigante.
É um efeito borboleta. É puro caos.
Precisamos resolver o mistério dos e-mails logo, mas não tem muito o que fazer caso
Ashton esteja em um episódio depressivo. Se ele tomou os remédios, então alguns sintomas não
devem ser tão ruins, mas não seria um bom momento levá-lo ao caos para descobrir sobre o
desaparecimento de alguém que ele amava tanto.
Saio da cama mais uma vez. Ashton puxa a coberta para a altura de suas orelhas e eu
entendo o recado de que ele não quer conversar agora.
Caminhar por esse quarto é fácil. O meu é uma bagunça. Tem roupas no chão, uma
montanha de latinhas de refrigerante embaixo da minha cama e quadrinhos empilhados pelos
cantos das paredes. O quarto de Ashton é bem… Básico. Se eu não o conhecesse, ficaria
frustrado com a falta de pistas sobre a personalidade dele.
Uma mesa incrivelmente grande e redonda fica do lado direito da cama. Não há luz no
teto, apenas a leve chama alaranjada dos abajures — ele disse que era para evitar câncer de pele,
mas eu não sei se foi ironia ou sério.
O notebook que parece velho demais para estar funcionando está em cima de uma mesa
cheia de dvd's nas prateleiras inferiores. Quando puxo um deles para bisbilhotar, o monte
desmorona.
Ashton soltou um resmungo-ordem me pedindo silêncio. Sussurro um pedido de
desculpas o mais silenciosamente possível e arrumo a bagunça que fiz.
Sick Puppies. Ele tinha um dvd de uma banda chamada Sick Puppies.
Parto minha investigação para a parte de cima. As prateleiras estão cheias de livros,
como na sala. Só reconheço um deles: a Ilíada. Uma risada escapou dos meus lábios antes que eu
perceba.
— É claro que você ia ter o livro do Aquiles. — sussurro, baixo o suficiente para ele não
escutar.
Quando eu puxo o livro da prateleira, pó se levanta. Abano as mãos ao mesmo tempo
em que assopro a capa para retirar a sujeira. A capa é uma silhueta de um elmo grego dourado,
com o título em cima. Quando abro uma página aleatória, para minha surpresa, encontro vários
rabiscos e anotações.
Não achei que ele seria o tipo de pessoa que marcaria um livro.
Volto para a primeira página. Está amarelada e tem um nome e uma data: “Ashton
Winsor, 07-07-2010”. Meus dedos deslizam por onde a tinta foi marcada, sentindo como se fosse
minha pele que estava sendo registrada por Ashton.
Quando viro a folha para ler o lado contrário, meu pulso acelera.

“Eu sei que você é obcecado com o Aquiles e o Pátroclo, então comprei esse livro para
você. (Mesmo que aqui não tenha nenhum beijo entre eles, sinto muito.)
Você sempre diz que eu poderia ser seu Pátroclo, mas infelizmente eu sou o Paris, e eu
tenho uma Helena (desculpe, isso fez sentido? Não conheço nada sobre essa história). Eu não
sou bom o suficiente para tomar o lugar de uma pessoa que, no futuro, possa fazer sua cólera
subir, e te fazer enfrentar o próprio Apolo para caçar Heitor por ter matado seu amor. (eu me
lembro de quando você terminou de ler e ficou indignado com o final. Eu sou um bom amigo.)
Essa pessoa vai cuidar de você, e eu vou amá-la se você também amá-la.
Desculpe por tudo. Eu amo você.”

Fecho o livro com um estrondo. Meu coração pesa tanto no peito que temo que caia em
cima do estômago.
Não consigo respirar direito.
Deus, queria ter conhecido Fraser. Ele parece ter se importado de verdade com Ashton,
e, embora meus ciúmes às vezes me torne uma pessoa egoísta, consigo entender o porquê eles
tinham um vínculo tão forte.
Guardo o livro antes que me sinta pior. Minhas mãos tremem um pouco quando eu faço
isso, mas eu tento ignorar, porque é isso o que eu sempre faço.
— Ashton. — Começo. Sei que ele não quer falar, mas minha garganta está doendo para
eu fazer alguma coisa. — Ashton?
— Hmm.
Aproximo-me da cama. Meu joelho se afunda no colchão quando eu me apoio para
chegar perto dele. Sinto minhas entranhas se reviraram a cada segundo que passa, porque sei que
a minha ousadia pode irritá-lo e posso escutar algo não tão gentil. Fui avisado sobre isso, mesmo
assim, continuo aqui.
— Me desculpa. — Meu corpo cai sobre o dele quando digo. Ele ainda não parece
totalmente incomodado, mas sei que não posso ficar muito tempo nessa posição. — Eu não devia
ter dito aquilo sobre o Fraser, sei como ele é importante pra você. Eu não vou fazer isso de novo
—, fico em silêncio por um tempo, apenas para ver se ele dirá alguma coisa. Mas, quando ele
não o faz, suspiro antes de me afastar. — Tudo bem. Vou dar mais uma olhada nas suas coisas e
vou embora. Tenho que ver minha mãe.
Sem resposta.
Eu gostaria de pelo menos receber outro resmungo “hmmm” para saber que ele estava
ouvindo, mas não vou empurrar o assunto além do limite.
Saio da cama e me aproximo das prateleiras mais uma vez. Algo ali me chama, como se
meus olhos não conseguissem desviar o foco de certo ponto. Quando pego o que está chamando
minha atenção, entendo o motivo.
“Cover da música Paw City de Ashton e seus amigos ps: escuta, ouviu? Eu fiz essa
cópia pra você guardar caso mude de ideia e queira se juntar com a gente de novo, e me ligue!
Aqui meu número” e em seguida o número de quem quer que fosse que o deu o CD está escrito
em caneta escura.
Imagino que seja de Zya.
Como pude esquecer dos amigos dele? Os amigos dele talvez possam me ajudar a lidar
com tudo isso? Uma sensação de alívio enche meu coração, como se saber que agora tenho
alguém para quem pedir ajuda me livrasse de um tormento enorme.
Anoto o número na agenda do meu celular, para ligar mais tarde, quando chegar em
casa.
Lúcido

hego em casa depois de ter certeza de que Ashton ficaria bem e, mesmo
C assim, meu coração se aperta toda vez que me lembro que o deixei sozinho.
A primeira coisa que fiz quando coloquei os pés na cozinha foi esquentar
a comida que Randall deixou para mim. Senti um calor me envolver quando li as mensagens que
ele mandou no meu celular avisando sobre a marmita escondida no forno.
Depois de lavar os pratos, subo.
Meu quarto cheira a mofo e a culpa é minha por ter deixado a janela trancada por quase
quatro dias. Mas, mesmo quando a abro e a luz da lua brilha em minha cama, a sensação de
sufoco não passa. Algum dia eu terei que me acostumar com o nó na garganta, mesmo que não
seja hoje.
Muita coisa enche minha mente. Mil e uma possibilidades me preocupam e por mais
que eu tente evitar, a sensação de perda recusa-se a deixar minha alma. E pensar que a sensação
de perda já existe, principalmente quando duas pessoas que gosto tanto estão em situações
extremas, me faz tremer.
A cama geme embaixo de mim quando me deito. Meu corpo e mente estão tão cansados
que se eu fechar os olhos e me forçar a não pensar em nada, dormirei em um segundo.
Porém tem algo que preciso fazer antes.
Ligo para o Ashton. Lembro de ter deixado o celular do lado dele, na cama. O avisei que
ligaria, também. Talvez ele tenha escutado, talvez não.
— Alô? — Digo quando ele atende no terceiro toque. Fico sem respostas, mas sei, pela
respiração constante que ouço do outro lado da linha, que Ashton está ouvindo. — Eu cheguei
em casa. Você está bem aí?
— Hmm.
Naturalmente, sei que isso significa alguma coisa parecida com “sim”.
Fico quieto por um instante, deixando meu antebraço descansar sobre as pálpebras.
Meus olhos fecham e eu me imagino no quarto dele, como estávamos essa tarde: os braços dele
em volta de mim, me esquentando enquanto eu ouvia as batidas do seu coração.
Paz, mesmo quando o mundo lá fora estava um caos.
— Eu vou desligar, então — aviso, sentindo minha garganta trancar por alguns
segundos. Torço mentalmente para que ele diga algo, qualquer coisa, mas isso não acontece.
Meu pomo de Adão sobe e desce enquanto tento procurar as palavras certas. Acabo pigarreando.
— Não esqueça de tomar seus remédios. Amanhã eu apareço de novo e-
— Evan. — Ele interrompe. A repentina firmeza na sua voz me faz encolher. — Não
sou uma criança. Eu lidei com isso a minha vida inteira. Está tudo bem.
— Eu não queria-
— Me trate como sempre me tratou.
Então, como se não fosse nada, desliga a ligação.

Acordo com meu celular gritando.


Saliva está molhando a tela do aparelho quando o pego. Meu coração bate ferozmente
por causa do barulho. Eu estava tendo um sonho tão bom, com ovelhas e cachorros vestindo
roupas de humano…
Esfrego os olhos para atender quem estava me ligando.
— Oi.
— Oi.
Levo um tempo para me atrever a abrir a boca de novo.
— Charlie.
Um gosto amargo permanece na minha língua. Fiquei tão estressado esses dias com o
coma da minha mãe que não tive coragem de olhar o celular, o que significa que mal tive tempo
de falar com qualquer um dos meus amigos.
Culpa atinge o lugar onde meu coração fica.
— Evan? — Charlie me chama. Pisco várias vezes para voltar para a realidade. — Você
está aí?
— Estou. Eu estou… Pensando.
A risada do outro lado da linha me contagia. Estico os braços pela cama, deixando o
celular no viva-voz. Meus olhos encontram o teto do meu quarto, cheio de manchas em formato
de estrela. Enquanto espero Charlie responder, minha mão se estica e eu observo meus dedos.
Minhas unhas. O calo no meu polegar que existe desde os dias que eu me lembro de existir.
Lembro do quanto eu gostava de desenhar.
E em seguida me arrependo de lembrar disso.
— Você se lembra de quando a gente se conheceu? — pergunto, sem pensar no que
estou dizendo. Minha mão ainda está na minha frente, e meus olhos ainda a observam, mas
minha mente viaja para um lugar distante, há quase uma década atrás, de quando eu o conheci.
Outra risada. Percebo que ele está de bom-humor.
— Lembro. Você me abraçou do nada porque viu que eu estava com uma comic que
você gostava.
— É. Eu abracei. — Rio ao lembrar. Eu era tão pequeno, mas tão feliz. Tão ousado. Tão
ingênuo. — Mas no intervalo você se sentou do meu lado. Você perguntou se a gente podia
conversar. Você era tão fofo e dócil. Eu lembro exatamente do momento em que eu pensei que
você parecia um coelho.
— Você parecia um… Uma hiena. Não tinha o dente da frente, todo sujo e ria de
qualquer coisa-
— Ei!
E nós dois rimos.
Quando eu noto o quão leve eu me sinto, meus olhos ardem. Felicidade está em todo
lugar. Está na chuva, no sol, em flocos de neve, nas flores da primavera, nos riscos que formam
um personagem em uma página, em palavras que formam uma história, em outras pessoas. Está
no som que nós acabamos de fazer.
Tenho que levar um tempo para respirar, senão realmente vou chorar. Meu rosto tenta se
contorcer, mas eu me recuso a deixá-lo, temendo perder alguma aposta caso me atreva a chorar.
Estou feliz. Mas não sei se essa é a palavra exata para esse sentimento.
Eu sinto-me consolado. E tudo o que foi preciso para isso acontecer foi escutar a risada
do meu melhor amigo.
Recusei-me por tanto tempo em falar sobre o passado — como se o fato de não falar
sobre tudo o que aconteceu fizesse estas coisas desaparecerem — que não me lembro de nem
uma vez que falei sobre minha infância com Charlie. Claro, de vez em quando tínhamos aqueles
momentos como “lembra daquela vez que…” mas não passava de um breve episódio na minha
mente onde nós ríamos e então começávamos a falar sobre outra coisa.
Agora, porém, relembrar como nos conhecemos me traz uma estranha sensação de
pertencimento. Como se eu estivesse finalmente reencontrando fragmentos de mim mesmo em
meio a todo o caos dos dias atuais.
— Evan. — A voz de Charlie ecoa no silêncio do meu quarto. — Tem certeza de que
está tudo bem?
Estou prestes a dizer que sim, está tudo bem. Mas eu paro. Não quero mentir. Quero que
ele saiba que não está tudo bem. Quero dizer que minha vida está uma merda nos últimos dias.
Quero desabafar com ele.
— Não — sussurro. Uma pequena palavra toma forma entre meus lábios, e eu me sinto
sem freio, finalmente livre. — Não está, desculpa por nunca falar sobre isso antes. Tá tudo tão
ruim que eu tenho medo de piorar e só piorar. Não só agora. Desde o dia que o meu pai traiu
minha mãe. Desde o dia que eu comecei a odiar meu irmão. Desde o dia que eu decidi que eu
não queria contar nada pra nenhum de vocês-
— Espera. — Ele me interrompe. — Espera, calma. Que história é essa do seu pai
traindo sua mãe?
Engulo em seco e conto tudo. Conto de Quebec, conto das traições, conto sobre o porão.
E quando termino, me sinto tão leve que sinto que posso voar.
Mesmo que as palavras que saíram da minha boca fossem pesadas.
— Por que… Por que você não me falou isso antes? — Sua voz está tremendo e quero
poder abraçá-lo. — Se você tivesse me contado eu teria feito qualquer coisa para tentar te
ajudar…
Tenho que respirar fundo para responder.
— Eu achei que você não se importava. Eu-— Engasgo com as minhas próprias
palavras quando percebo o que ia dizer. Eu tinha inveja de você e da sua vida. Tinha medo do
que você poderia dizer sobre mim, se baseando na opinião dos seus pais. Seria como levar um
tiro no peito. — Eu não queria correr o risco de ser julgado por mais uma pessoa que eu amava
tanto.
A linha fica em silêncio e eu quase o imagino chorando em silêncio. Charlie é tão
sentimental que eu me sinto mal por ter que jogar tantas informações trágicas de uma vez só.
— Alguém mais sabe disso? — Pergunta ele, de uma vez. Eu abro a boca para
responder, mas Charlie é mais rápido: — Além do Ashton.
— Não.
— Por que você se torturou por tanto tempo guardando essas coisas pra você mesmo?
Não tenho uma resposta para isso.
— Sendo totalmente sincero, eu não sei.
Silêncio toma conta do cômodo.
Então Charlie prossegue:
— Me desculpe por nunca perguntar. Por fazer parecer que eu não me importava… Eu
deveria ter feito alguma coisa, mas estava com medo demais para tentar te ajudar. Justo você,
que eu conheço há tanto tempo. — O escuto se mover. Eu estava próximo de tentar acalmá-lo
quando ele volta a dizer, com a voz cheia de determinação: — Se algum dia isso acontecer de
novo, esse tipo de briga, pode ficar com raiva de mim. De todos nós. Mas não esqueça o quanto
nós te amamos. Nunca. Jamais. Você é o coração do nosso grupo.
Meus olhos ardem pra valer dessa vez. Mordo o lábio para controlar as tremedeiras, mas
não adianta por muito tempo.
— Eu também amo você. Todos vocês.
Eu não costumo ser sentimental. Esse é o papel do Charlie e do Adam. Eles podem se
tornar extremamente emotivos do nada e é hilário assistir quando não era por uma razão triste de
verdade.
Mas aqui, hoje e agora, há dois garotos emotivos conversando um com o outro.
Deixei a felicidade penetrar meus ossos quando ouço uma risada vindo dele.
— Eu sei, cara. Não tem como não me amar.

— Como você está se sentindo? — Minha voz soa pelo quarto como soaria em uma
caverna.
A casa está tão silenciosa sem os passos da minha mãe ou dos sons vindo da TV que ela
sempre deixou ligada para fazer outra coisa. Meu pai também deve ter saído, porque não consigo
escutar o barulho da xícara sendo colocada em cima do pratinho de porcelana que ele adora, nem
das portas batendo.
Ashton demora um pouco para responder. Por um instante, acho que ele voltou a
dormir, mas então escuto um resmungo e algumas palavras que eu não consegui entender.
Por algum motivo, tenho a sensação de que ele não levantou da cama desde ontem. Para
nada.
Percebo uma semente de preocupação sendo plantada no meu peito.
— Você comeu?
— Hmm, não. — Ele balbucia, alongando a palavra para um “nããããããão”.
— Você quer que eu vá aí? — Minha voz sai mais esperançosa do que eu gostaria. Mas
quero vê-lo o suficiente para não ligar para isso.
— Não.
E minha esperança despenca para o estômago.
Engulo em seco para disfarçar o leve aperto da garganta, me forçando a manter as
aparências.
— Tem certeza? Você não vai ficar com saudades?
Uma risada leve sai do outro lado da linha, tão baixa que eu penso ter sido minha
imaginação. Porém ele ri de novo, ainda baixinho e um sorriso ergue o canto dos meus lábios.
— É bom ouvir sua risada. — digo. — Você quase não ri. Só sorri igual a uma criança
aprontando.
— Eu sou uma criança aprontando — faz uma pausa. — Eu vou sentir sua falta, mas eu
não quero que você me veja assim. Eu já estou melhor, os remédios estão ajudando.
— Mesmo que você precisasse usar fraldas e eu tivesse que trocar elas pra você, seria
um prazer.
Consigo visualizar o minúsculo sorriso travesso enchendo o seu rosto.
— Claro, você gosta de ver eu me humilhando.
— Sua bipolaridade não é humilhação. Nada do que você jamais faça vai ser
humilhação.
Então o suspiro que sai da linha e encontra meus ouvidos bate no meu coração como
uma onda. Será que eu estou sendo grudento demais?
— Eu queria saber o que eu fiz para merecer todo o seu amor?
Um frio toma conta do meu corpo.
— Ashton-
— Eu só… Sempre penso nisso.
Movo-me na cama, sem saber ao certo o que fazer. Me sinto observado, como se mil
olhos estivessem na minha direção. Talvez tenham sido as palavras de Ashton, em uma pergunta
tão íntima. O que ele fez para merecer todo o meu amor? Me fez sentir amado, escutado,
importante; alguém com peso existencial no universo e não apenas uma falha do destino que me
jogou nessa realidade porque não sabia o que fazer comigo.
Ele me fez amadurecer e parar de ser apenas um pirralho egoísta. E, mesmo que de
alguma forma nosso fim seja trágico, eu sempre vou ser grato a ele.
É por isso que Ashton merece todo o meu amor.
Penso em dizer isso, mas sinto que estaria sendo meloso demais. Ontem ele ficou
bastante defensivo quando mostrei muita preocupação, então dizer isso agora talvez pareça uma
declaração desesperada para ele sentir-se melhor.
— Eu te amo porque você é uma maravilha. Isso é tudo.

Arrumar coragem para ligar pra Zya não foi tão fácil quanto eu achei que seria.
Zya era comunicativa e fácil de conversar, isso eu sabia desde a última vez que nós nos
vimos na casa do Ashton, quando ele passou por um episódio maníaco. Mas não significa que
seria fácil conversar sobre ele com ela.
Principalmente agora que a minha relação com Ashton mudou.
Meu medo, se eu for honesto, é de ouvir algo que eu não quero. De ela zombar do meu
relacionamento com ele, de dizer que Fraser era quem devia estar no meu lugar, porque ele era
uma pessoa melhor para Ashton.
Eu odeio sentir ciúmes de Fraser, ainda mais agora que eu descobri que, se ele estivesse
aqui ainda, provavelmente teria gostado de mim e aprovado minha relação com Ashton.
Merda, tenho que parar de pensar tanto.
— Alô? — Zya diz, pela quarta vez enquanto estou em silêncio. Minha voz iria tremer
caso eu abrisse a boca, mas se eu não falar, ela vai desligar e então eu não terei coragem para
ligar outra vez. — Se você não me responder, eu vou desligar-
— Sou eu.
O silêncio paira pelo ar por segundos. Lambo os lábios, tentando pensar em como
começar essa conversa, até que lembro que essa é a nossa primeira vez conversando em algumas
semanas. Talvez Zya já tenha esquecido de mim.
— Evan. Sou eu. Evan. Amigo do Ash-
— Eu sei quem é você. — A voz dela me corta. — Eu estou só pensando em algum
motivo do porquê você pegou meu número.
— Na verdade, eu já ia te explicar-
Ela me interrompe mais uma vez.
— Ele te disse?
Franzo as sobrancelhas, mesmo que ninguém possa me ver.
— O quê?
— Que ele é bipolar. Que ele gosta de você. Que ele gostava de um cara que
provavelmente está morto agora.
A palavra “morto” atinge minha alma. Talvez eu esteja começando a simpatizar com
Fraser, depois de ouvir tanto sobre ele. E saber que a possibilidade de ele estar morto, mesmo
que eu nunca o tenha conhecido, me incomoda.
Ou talvez seja porque eu não quero que Ashton fique triste.
— Fraser não está morto — falo, com mais agressividade do que pretendia. — Nós não
sabemos disso ainda.
A risada do outro lado da linha me irrita por um instante, mas eu me sinto mal por isso
no segundo seguinte.
— Ele te disse.
— Sim.
— Bem, então você me ligou porque não gosta dele e não sabe o que fazer ou por que
você gosta dele e não sabe o que fazer?
Pigarreio, sentindo uma quentura encher minhas bochechas. Aperto as pulseiras
embaixo da coberta.
— Na verdade, sobre isso… — Faço uma pausa, esperando que ela entenda as
entrelinhas do que quero dizer, mas o silêncio que recebo em resposta me diz que não. Suspiro,
me sentindo estúpido por ficar tão envergonhado. — Eu e ele, nós estamos namorando. Eu-
Antes que tenha tempo para encontrar um caminho para o assunto que eu quero ter, Zya
grita.
Afasto o celular do ouvido, torcendo as sobrancelhas.
— Zya?
— Está tudo bem! — Ela responde entre respiradas profundas. Sinto a euforia dela me
contagiar por um segundo. — Eu só fiquei feliz. Ashton falava de você desde o dia na festa da
fogueira. Não sabia se ele realmente ia tomar coragem pra te contar. Metade de nós apostamos
que você não saia com meninos e… ah, não conte isso pra ele, por favor.
Meu coração incha levemente e eu não controlo o sorriso de aparecer nos meus lábios.
Sempre que eu paro para pensar que aqueles olhares que nós trocamos na festa da fogueira
significaram alguma coisa, meu humor melhora.
— Fico feliz que você não se incomode com isso.
— Por que eu me incomodaria? — diz ela. De alguma forma, eu consigo sentir a
pontada da indignação em sua voz. — Já ouviu aquele ditado de que gays andam em bando,
igual a lobos?
— Não? — Falo, apertando o celular contra a orelha.
— Então apenas saiba que você não é o primeiro. E que Ashton não é a borboleta
especial do nosso grupo.
Sinto-me estranhamente curioso.
— Tem mais alguém… Como eu e ele?
— Todo mundo.
Uma risada nervosa faz minha língua tremer.
— Porra. Todo mundo? — Limpo a garganta. — Até Oliver?
Uma risada travessa chega até mim. Agora eu sei onde Ashton aprendeu a rir desse
jeito.
— Bem lembrado. Ele não. Mas de resto, todo mundo. Todos. Absolutamente todos. —
Ela dá uma risada alta demais para algo que talvez não tenha assim tanta graça. Mesmo assim,
rio junto. — Mas você ainda não me disse porque me ligou. Ou como conseguiu meu número.
— Ah, sim. Sobre isso… — Limpo a garganta, ficando ciente de todos os músculos do
meu corpo. Nervosismo volta a tingir meu coração, mesmo depois da nossa conversa
descontraída. Pelo menos o peso de não saber como ela reagiria ao meu namoro com Ashton não
existe mais. — Eu queria falar sobre a bipolaridade dele.
O clima muda. Se nós estivéssemos conversando pessoalmente, tenho certeza de que ela
teria se encolhido. Talvez não seja uma abordagem tão esperta, mas eu preciso ser direto.
— Ele já não te explicou?
A tensão na voz dela me incomoda, mas prefiro fingir que não notei.
— Ele me falou sobre o que ele poderia possivelmente fazer em algum desses episódios,
mas eu não sei como lidar. Quer dizer, eu não sei, mas eu quero aprender.
Fico em silêncio depois disso. Eu sou ignorante, sei disso, mas não quero mais fazer
parte desse relacionamento sem saber lidar com ele. Sem saber…
— Escuta, Evan. O Ashton ainda é uma pessoa normal. Ele não é um cubo mágico que
você precisa aprender a descobrir e lidar. Ele é como você, então apenas trate ele como qualquer
outro. Trate ele como você gostaria de ser tratado. — A leve rudez mal escondida nas palavras
dela atinge meu coração como uma facada.
— Eu não quis dizer assim… Quer dizer, eu não quero dizer que eu não trato ele como
trato os outros. Eu só tenho medo de fazer ou dizer alguma coisa errada e estragar tudo.
Um suspiro do outro lado da linha, seguido por um longo silêncio, me deixa aflito.
— Ashton lidou a vida toda com a bipolaridade. Mesmo quando ele estava na mais
merda das situações, sem remédios e sem ninguém pra ajudar, ele passou por cima. Não estou
dizendo que você não deva aprender ou tentar ajudar, só não esqueça que o que você lê na
internet sobre bipolaridade é um estereótipo básico de um site que se diz ser de medicina e que
tenta explicar um transtorno tão complexo em três linhas. Na maioria das vezes, as pessoas agem
diferente do que os outros acham. — Uma pausa. Nós dois ficamos em silêncio; eu absorvendo a
informação e ela me dando tempo para isso. — Aprenda com ele. Observe Ashton, observe os
costumes dele, as manias. As coisas que ele faz, algo que possa desencadear um episódio
depressivo e maníaco.
— Ele- — atrapalho-me a dizer. Depois de alguns segundos, tento de novo, mais calmo.
— Ele me disse quase a mesma coisa.
Escuto um riso. Isso alivia um pouco a tensão.
— É claro que ele disse.
Sorrio, mesmo sabendo que ela não pode ver. Então começo mais uma vez.
— Zya?
— Hmm?
— Aquele dia que nós nos conhecemos, eu vi Ashton com os remédios. Então por que
ele saiu de casa daquele jeito?
Antes de falar, Zya solta algumas palavras murmuradas que não consigo entender.
— Às vezes, quando Ashton está gostando de alguém, ele não gosta de ficar medicado.
Ele acha o próprio humor terrível e que vai afastar a pessoa, e que talvez passar por um episódio
maníaco, ele fique mais… Atraente. Mais comunicativo, mais confiante. E que talvez a pessoa se
atraia mais por isso.
Um calafrio se move das pontas dos meus dedos até meu coração. Repentinamente,
sinto como se minha língua fosse de metal e eu não conseguisse falar.
— Fraser? — adivinho. Essa única palavra é o suficiente para Zya soltar um suspiro de
entendimento mútuo.
— Sim. Ashton achava que Fraser não tinha sentimentos por ele por causa do… Humor
que ele tinha. Ashton parece frio e distante na maioria das vezes, mas ele é bem sentimental por
dentro.
Quero sorrir sobre o fato de nós dois concordarmos nisso, mas os cantos dos meus
lábios não permitem.
— Ele é encantador para mim, mesmo quando está eufórico. Mesmo quando está triste.
— digo, querendo que ela ouça. Querendo que ela saiba o quanto eu quero fazer o seu amigo
feliz.
Um barulho parecido com o que as pessoas fazem quando veem um gatinho fofo saí do
meu celular.
— Aw, é por isso que eu gosto de você. Você gosta dele mesmo quando ele está
medicado e não apenas na adrenalina do momento.
Outro peso finalmente sai do meu coração e eu me sinto pronto para deixar um pequeno
riso escapar do meu nariz.
— Obrigado por me ouvir e por me ajudar.
— Eu não te ajudei. Apenas disse coisas que Ashton provavelmente já tinha te dito.
Outro riso.
— Verdade. Mas isso não significa que não me ajudou. Ouvir a opinião de mais de uma
pessoa é melhor.
— Claro. — Ela pigarreia. — Eu só quero que você não se esqueça de que ele é um
homem adulto e que você deve tratar ele como um. Nada de cuidados de bebê. Faça isso quando
vocês tiverem seus filhos.
Sinto meu rosto queimar.
Nossos filhos.
Uma dor parecida com um soco atinge meu estômago. Será que Ashton vai querer ficar
comigo por tempo o suficiente para nós termos filhos? Será que nós vamos ter esse tempo?
— … Não entenda errado. — Ela continua dizendo, mas minha mente está longe para
escutar com clareza. Nossos filhos. — Você tem que se informar, mas não deixe que as coisas da
internet te façam criar um modelo do qual Ashton deveria seguir ou não. Na maioria das vezes,
ele pode agir de acordo com aquilo, mas nem sempre acontece. Ele não é programado para nada.
Ainda tem as singularidades dele, independente da bipolaridade ou não.
Depois que ela termina, ficamos em silêncio por mais algum tempo. E eu me sinto
patético por achar que Ashton teria um manual de instruções. Ele não é uma boneca de porcelana
que vai quebrar a qualquer toque rude.
— Obrigado mais uma vez. Eu precisava ouvir o que você disse — mordo as pulseiras
do meu pulso e depois as esfrego na coberta para limpar a baba.
— Você pode me ligar a hora que quiser. Todos os amigos do Ashton são seus amigos,
mesmo que vocês… enfim. Você entendeu.
Parece que há gremlins no meu estômago quando solto minha última risada antes de
desligar.
E então eu começo a pensar de novo. Mas dessa vez, não de uma forma ruim.
Tal qual Pátroclo

cheiro de esmalte irrita meus pulmões.


O Ashton está há meia hora tirando os borrados pretos das cutículas
enquanto eu checo meu celular pela milésima vez.
— Vou me atrasar — resmungo, pegando a acetona na cabeceira. E, realmente sem nada
melhor para fazer, leio o rótulo. A cama range embaixo de mim enquanto tiro meus tênis para
deitar, sentindo os cobertores de Ashton inundados do cheiro de lavanda me rodearem. Quando
olho para o teto a única coisa que consigo ver é a cor creme que ele é pintado, porque a lanterna
do meu celular está virada na direção oposta para Ashton ver melhor o que está fazendo. — Por
que você precisa pintar as unhas para invadir a minha casa?
Ele não responde, concentrado demais em passar outra pincelada cheia de esmalte sobre
a unha.
Reviro os olhos.
Sei que ele ainda está letárgico por causa de ontem. Sei também que episódios
depressivos podem durar semanas, até meses, e mesmo que Ashton esteja medicado, ele não
consegue esconder isso de mim.
Através das manchas escuras que circulam seus olhos como uma bolsa de água, sei que
ele está se forçando a isso. Que ele só está fazendo essas coisas para descobrir o mais rápido
possível o que aconteceu com Fraser.
E não é difícil adivinhar o porquê.
Agosto está se aproximando, dando lugar a um tempo consideravelmente mais ameno.
Saber que o verão está começando a acabar me deixa desnorteado. Daqui dois meses
será o halloween e eu mal superei os dois meses que conheci Ashton.
E, entre tudo isso, não sei se quero começar meu último ano escolar procurando por uma
pessoa desaparecida. Mas no fundo, se eu for sincero, meu medo não é exatamente achar um
corpo morto, e sim, perder contato com Ashton. Ele não quer ir para nenhuma faculdade. Disse
que, em vez disso, prefere trabalhar e juntar dinheiro. Me senti mal por ouvir ele falando assim,
como se não acreditasse no próprio futuro, mas não há muito o que eu possa fazer. Ele escolheu
isso e não será por causa de mim que vai mudar de ideia.
Mas há outra coisa que me deixa ansioso: meu aniversário é daqui duas semanas.
Em duas semanas muitas coisas podem mudar, mas não estou no clima para festa.
Então, sim, me sinto feliz por Ashton estar apressando a situação toda, mas ao mesmo
tempo, uma sensação melancólica toma conta de mim toda vez que reflito demais sobre o
assunto.
— Você está fazendo biquinho de novo. — Ashton me tira dos meus pensamentos me
cutucando com o pé e deixa a perna descansar sobre as minhas coxas.
— Não estou.
Ele levanta uma sobrancelha, sem nunca tirar os olhos das unhas.
— Você sempre fala isso.
— É porque eu não faço.
Sem resposta.
Viro-me para observá-lo. Naturalmente, uma jaqueta de couro está enfeitando seu corpo.
Diferente de mim, ele está mais arrumado, mesmo que não vista nada além das suas roupas
comuns. Porém, aqui está um segredo que descobri sobre Ashton depois de algumas horas
olhando seu MySpace: quando ele acha que uma ocasião é importante, ele pinta as unhas e
enche os olhos de maquiagem preta.
Os olhos azuis de Ashton estão enfeitados por sombras escuras. E eles estão me
enlouquecendo.
— Você pinta elas bem — Digo. — Faz isso desde quando?
— Há mais tempo do que você era nascido.
Não consigo segurar a risada.
— Daqui duas semanas é meu aniversário. Você é quase que literalmente só um ano
mais velho do que eu.
Algo no meio da minha frase chama atenção o suficiente para Ashton finalmente
levantar os olhos e me encarar com curiosidade.
— Duas semanas? — Ele pergunta. — Você não ia me contar isso? — O tom ofendido
que sai junto com sua voz quase me preocupa.
Mas eu só dou de ombros.
— Não tinha porquê contar. Eu nem… Estou no clima pra isso. Não quero festa.
— Não falei que eu ia fazer uma festa. Só queria que você tivesse me contado. Eu
juntaria dinheiro pra comprar alguma coisa pra você.
Sinto meu coração palpitando contra as minhas costelas, ao mesmo tempo que minhas
bochechas esquentam.
Rolo pela cama para o lado contrário, para esconder minha vergonha.
— Não precisa. Você nem tá trabalhando e é por culpa minha-
— Quem disse que eu não estou trabalhando?
O ar fica denso por um instante.
— Você está?
— Eu faço alguns bicos. Também tenho o dinheiro que Fraser deixou pra mim. Como
você acha que eu paguei o aluguel do apartamento sem trabalhar? Dando minha bunda?
Eu rio de novo, antes de dar um tapa na coxa dele.
— Se você desse sua bunda, eu provavelmente ficaria com ciúmes.
— Oh, certo. Então eu não vou mais fazer isso.
Dou outro tapa.
— Não vai mais?
— Quer dizer, você devia ter me avisado antes que ficaria com ciúmes.
Meu corpo mexe sozinho. Prendo as bochechas dele entre minhas mãos, forçando sua
boca a fazer um bico. Quando encosto os meus lábios ali, o molhado da parte interna dos lábios
dele faz meu corpo se arrepiar.
— Nós devíamos ir —sussurro entre um beijo e outro. Os olhos de Ashton me encaram
de perto. — Tenho que chegar antes que eles decidam ir embora.
Saio de perto do corpo dele porque sei que, se me manter muito próximo, vou querer
continuar a beijá-lo. Ele parece ligeiramente infeliz com isso e eu não consigo deixar de escapar
um sorriso orgulhoso.
— Você tem que deixar sua chave de casa comigo, não esquece — ele relembra.
— Não vou esquecer.
Ashton termina de se arrumar depois de um tempo. Começo a sentir os gremlins se
revirando no meu estômago à medida que nós nos aproximamos da hora de sair.
Nosso plano é simples: como meu pai é apenas um suspeito, não tem o porquê de nós
começarmos a acusar ele de alguma coisa sem antes ter provas. E o melhor lugar para
procurarmos por enquanto é na minha casa.
Nós combinamos de que Ashton entraria. Ele pode não conhecer a minha casa tão bem
quanto eu, mas não tem como alguém tirar meu pai da casa — e levar Randall junto, para aliviar
a tensão e fazer eles conversarem por tempo o suficiente para que Ashton conseguisse encontrar
algo— sem que não fosse eu.
Talvez seja um péssimo plano, mas é a única coisa que nós podemos fazer no momento,
sem nos arriscarmos tanto.
E — nós combinamos — que, caso ele não ache nada lá, então meu pai deixa de ser
nosso principal suspeito e podemos seguir em frente com a nossa busca.
— Quando você voltar, a gente vai conversar sobre seu aniversário. — O escuto dizer
ao mesmo tempo em que fecha a porta do apartamento.
Tento fingir irritação, mas não consigo.
— Eu já disse que não quero uma festa-
— Você tem que parar de pôr palavras na minha boca. Eu nem falei nada com a palavra
festa — responde. O tom azedo não me afeta, porque eu consigo ver através das linhas escuras e
dos olhos frios que ele tenta manter; consigo ver o nervosismo por trás deles.
Levo minha mão até a de Ashton. Engato meus dedos entre os dele, juntando nossas
peles com tanta força que sinto minha circulação parar por alguns segundos.
Ele aperta minha palma com tanta força quanto eu. Observo a sequência de reações que
acontecem depois disso: seus ombros relaxando, seus cílios tremendo e a respiração
normalizando.
Acho que estou ficando bom em lê-lo. Pensar isso me faz apertá-lo mais.
Descemos até o estacionamento. Ele se despede de mim e sobe na moto para
desaparecer em segundos. A rua fica silenciosa sem ele aqui. Ashton sempre me leva para um
lugar diferente da realidade quando está comigo.

Chego meia hora atrasado na rua do restaurante porque a merda do metrô atrasou.
Tentei ligar pra Randall pelo telefone público das áreas de espera, mas aquelas porcarias
que deveriam nos ajudar na verdade só atrapalham. Por isso tive que rezar para todos os deuses,
do A até o Z, pelo caminho todo para que eles não tenham ido embora.
E para piorar, quando coloco os pés no chão da estação de metrô para andar alguns
quarteirões, um calor incômodo me enche. Talvez escolher jantar no restaurante Chiado tenha
sido uma péssima ideia. Me traz lembranças de quando eu, minha mãe e meu pai saíamos todos
juntos.
Mas, na noite passada, esse tinha sido exatamente o motivo do porque eu decidi escolher
aquele lugar. Talvez sensações antigas façam meu pai perder a noção do tempo, ou, pelo menos,
Randall perca a noção do tempo e converse o suficiente com ele para que Ashton consiga entrar
em casa discretamente, arrastar aquele armário cheio de louças de porcelana pesada e entrar no
porão.
Mesmo que isso traga memórias ruins para mim.
É pelo bem maior.
Engulo meu medo como se ele fosse apenas isso: uma coisa para ser engolida.
Me aproximo das portas do Chiado, e percebo que nada mudou. Ainda é uma estrutura
de dois andares, com janelas largas e grandes enfeitando em duplas o prédio. Há dois canteiros
de árvores finas na frente da entrada, uma lona escura em cima da porta de vidro e os tijolos
vermelhos.
Vejo, através das portas de vidro, a silhueta do meu pai e de Randall. Eles parecem estar
falando com a recepcionista, como se tivessem chegado há pouco tempo.
Limpo minhas palmas na barra da calça e pego meu celular do bolso para mandar minha
última mensagem para Ashton:
Eu: Tô entrando no restaurante. Você chegou?
E, no tempo que levo para piscar, minha resposta vem.
Ash: seu pirralho de MERDA desgraçado eu DISSE pra você não esquecer de me
entregar a chave e foi exatamente ISSO O QUE VOCÊ FEZ
Oh, Deus.
Procuro os bolsos do meu casaco pela chave. Quando meu dedo encontra o gelado do
metal, meu corpo se arrepia.
Nós estamos fodidos.
Merda. Tudo de ruim que tinha pra acontecer, está acontecendo.
Minha esperança despenca. Quero virar os calcanhares e dar o fora daqui para fingir que
nada disso aconteceu, mas no mesmo instante em que eu estou quase fazendo isso, Randall se
move na minha direção, como se sentindo meu cheiro igual a um maldito cão treinado. Eu sei
que não vou poder ir embora no segundo em que ele sorri e acena para mim, chamando a atenção
do meu pai.
Quando aceno de volta, tentando ser o mais natural possível, meu celular treme nas
minhas mãos. Ashton está me ligando.
— Seu comedor de merda, pirralho ranhento- —Ele grita tão rápido quando eu atendo
que quase penso que ele já estava me xingando inúmeras vezes antes mesmo de me ligar.
Provavelmente. — Você esqueceu a porra da chave. Como você foi esquecer a porra da chave?!
Me viro discretamente para o lado, para que Randall não notasse meu nervosismo.
Sinto raiva fluir pelas minhas veias, e sei que o resultado disso vai sair na minha voz.
— Que legal. A culpa também é sua. Você não me lembrou da chave-
— EU DISSE PRA VOCÊ LEMBRAR. — Ashton berra tão alto que o som ecoa pela
rua. Uma senhora me olha com curiosidade.
Escuto um ruído. Tenho quase certeza que ele acabou de chutar algo. Suor frio começa a
escorrer pelas minhas costas.
— Pelo amor de Deus, Ashton. Não quebra a minha casa.
— Eu vou arrombar.
Sinto meu coração gelar.
— O quê?
— Eu vou arrombar a sua porta. Arranje uma desculpa pro seu pai depois.
— Ashton-
Mas eu não tenho tempo para continuar, porque ele já desligou.
Nos próximos três segundos que passam, minha mente deixa bem claro o quanto vai me
torturar por esse jantar todo. Ela deixa bem claro o quanto vai fazer o meu corpo tremer de
nervosismo.
Calafrios percorrem meu corpo e eu tenho quase certeza de que vou vomitar. Eu ia, se
alguém não surgisse do meu lado como um fantasma.
— Evan! — A pessoa diz com uma voz radiante. — Evan? — e em menos de um
segundo, pergunta com cautela.
Meu irmão está parado do meu lado. Uma de suas mãos afaga meu ombro
atenciosamente, enquanto seus olhos percorrem o meu corpo em uma inspeção para achar o que
há de errado.
Sua presença me deixa mais nervoso ainda.
— Oi, Randall. Eu só estava, hm, me ajeitado- — Paro quando encontro seus olhos. A
preocupação que ele deixa transparecer com tanta facilidade faz uma onda de culpa atravessar
meu corpo.
— Está tudo bem? — ele pergunta, ao mesmo tempo em que sua mão para na minha
bochecha, como se quisesse ver a temperatura do meu corpo.
Eu me afasto imediatamente.
— Está sim, eu só… Estou nervoso porque faz tempo que nós não saímos juntos. E por
causa da minha mãe…
A expressão de Randall suaviza.
Ele solta um sorriso — uma gargalhada, pra falar a verdade — e me abraça pelos
ombros. O afeto dele deixa-me mais surpreso do que deveria porque, por um instante, quase me
esqueço do porquê estou aqui.
— Você é uma pessoa muito fofa, Evan. E não se preocupe, sua mãe vai melhorar logo,
logo. — Há tanta positividade na forma que ele fala que quase acredito. — Ah, esqueci de te
falar. Se você quiser, pode dormir na minha casa essa noite. Nós precisamos conversar.
— Mia vai estar lá? — pergunto. Acabamos de passar pelas portas de vidro. Vejo as
costas do meu pai e a roupa formal que ele está vestindo. Me sinto um pouco mal por ter vindo
tão casual.
— Mia está viajando. Ela teve que ir por causa do trabalho.
É uma pena, eu gostaria de contar as novidades para ela.
— Claro, pode ser. — Dou de ombros. Então me lembro de algo: — Meu amigo pode ir
junto? O Ashton, aquele que estava no hospital com a gente.
Randall fica em silêncio por tempo o suficiente para eu achar que aquilo é um não, mas
ele responde.
— Sem problemas. Temos um quarto a mais.
Sinto meu rosto esquentar quando lembro daquele quarto.
E do melhor beijo que já senti.
E de como essa pessoa está arrombando a porta da minha casa nesse segundo.
Randall vira o rosto para o lado contrário no exato momento em que eu disfarço minha
vergonha, quase como se ele estivesse observando minhas reações.
Prefiro ignorar isso por enquanto.
— Você pode me dar um segundo? —pergunto, antes que nós chegássemos perto o
suficiente do meu pai para ele notar nossa presença. — Preciso ir ao banheiro.
— Claro.
Sigo na direção na qual me lembro de onde os banheiros ficavam. Quando abro a porta,
por sorte, está vazio.
Escolho a primeira cabine para entrar. Normalmente, as pessoas a evitam porque acham
que ela é a mais usada e por isso, na verdade, é a menos usada —Ashton me disse um dia, então
sempre é uma boa escolha.
Tranco a porta depois de me sentar no vaso. Minhas mãos estão começando a tremer de
novo e o celular mal fica parado nas minhas palmas.
Ligo para Ashton. Ele não atende.
Respiro fundo para me acalmar.
Ligo mais uma vez. Ele atende, finalmente.
Um suspiro de alívio escorrega pelos meus lábios e eu encosto a cabeça na porta
rabiscada da cabine. O frio do metal esfria minha pele quente e eu sinto a razão voltado para o
meu corpo lentamente.
— Bonjour, pirralho.
— Priviet, velho filho da puta. — Eu rosno. A risada do outro lado da linha cutuca
minha raiva. — Você vai mesmo fazer isso?
— Não sabia que você falava russo.
— Eu falo português também. Quer escutar uma? Você é um vagabundo.
— Eu sou um vagabundo? — Ele ri mais uma vez. Escuto outro estrondo. — Bem, eu
sou um vagabundo arrombador de portas. Espero que você goste da declaração de amor que eu
deixei no seu quarto.
— Ashton-
E ele desliga de novo.

O som dos pratos e taças tintilando pelo restaurante não me deixam ouvir direito o que
meu pai e Randall estão conversando, mas tenho quase certeza que não é nada importante,
porque se fosse, eles já teriam dado um jeito de me enfiar no meio. O que é bom, porque o
celular no meu colo, escondido embaixo da toalha de mesa, rouba toda a minha atenção. Ao
todo, acho que mandei duzentas mensagens para Ashton. E liguei umas vinte. Mesmo assim, ele
ainda não me respondeu.
O ar-condicionado solta uma lufada de ar em cima de mim. Pego o moletom de Ashton
que eu amarrei na cintura e me esquento dentro dele. Se eu não estivesse com tanta raiva dele,
esse cheiro, esse calor, o tecido, teria feito meu coração esquentar como sempre esquentou.
— Você não vai comer? — Randall sussurra ao meu lado. Levanto os olhos para olhá-lo
e o encontro observando meu celular. Quando me nota, Randall levanta o rosto e sorri
inocentemente para mim. — Já que eu vou pagar pela sua comida, preferiria que você comesse.
Sorrio de nervoso. Havia esquecido que Randall pagaria a conta pra mim e quase no
mesmo instante que lembro disso, um beliscão atinge um acorde do meu peito. Enfio um garfo
de comida na boca logo em seguida.
Randall solta uma risada suave de novo, enquanto tomo um gole da água para ajudar a
comida a descer. Minha nuca está suando e quando sinto o camarão requintado bater nas paredes
do meu estômago, me arrependo de ter comido. Uma onda de enjoo atinge meu corpo com tanta
força que eu tenho que respirar fundo.
— Não precisa comer se não estiver se sentindo bem — diz meu irmão. A mão dele se
levanta para o topo da minha cabeça. Eu me encolho antes que seja tarde demais para evitar, mas
Randall não se afasta: ele afunda os dedos nos meus cabelos e mexe carinhosamente. O resto da
comida quase entala na minha garganta.
Randall levanta uma sobrancelha, e de repente noto que ainda não o respondi.
— Eu… não estou com fome, pra ser sincero. Eu comi na casa do Ashton.
— Seu amigo do hospital?
Olho discretamente para meu pai; ele ainda está concentrado demais olhando para uma
mulher do outro lado da mesa para nos dar atenção. Aperto os dentes, sentindo um flash de fúria
atingindo meu corpo.
— Evan. — Randall me chama. Eu desvio o olhar do meu pai para o meu irmão e me
surpreendo de encontrá-lo com um olhar apreensivo. Randall balança a cabeça de um lado para o
outro de forma discreta, talvez tentando me avisar para manter a calma.
— Sim, é o meu amigo do hospital. O Ashton.
— Aconteceu alguma coisa? — Ele pergunta.
— O quê?
— Aconteceu alguma coisa? Você tá fazendo um bico-
— Eu não faço bico, tá legal? — Eu falo, talvez um pouco alto demais. Agora consigo a
atenção do meu pai, que se vira para mim, com sua expressão dura. Meu rosto esquenta de raiva.
Ainda preciso ficar aqui meia hora para ter certeza de que Ashton tenha conseguido achar
alguma coisa, mas se eu ficar mais um segundo, tenho a impressão de que acabarei
enlouquecendo. Desde quando sentar numa mesa com meu pai e ignorar todas as coisas que ele
sempre fez para mim e para minha mãe se tornou tão difícil? Eu não fiz isso a minha vida
inteira? — Desculpa, eu só… Estou exausto. Ashton consome muito da minha energia. Ele-
— Aquele seu amigo bicha. — Meu pai me interrompe com uma expressão se
contorcendo entre uma mistura de sarcasmo e repulsa.
Oh, Deus. Tenha misericórdia e segure a mão do seu filho.
Dessa vez, todo o meu corpo esquenta. Raiva enche meus punhos quando eles se
apertam embaixo da mesa. Estou próximo de explodir, sentindo calor inundar meus braços como
lava, até de repente uma mão alcançar o alto das minhas costas e me afagar.
Eu engulo minha frustração com muita dificuldade.
— Não fale dele assim. — Eu quase rosno como um cachorro protegendo o dono.
Mesmo que queira bater em Ashton por me deixar ansioso como estou agora, nunca
deixaria ninguém falar dele dessa forma na minha frente.
Meu pai levanta uma sobrancelha e o sarcasmo intensifica suas rugas. Ele sabia que eu
teria esse tipo de reação, percebo tarde demais. Ele estava me testando. Para saber se eu também
era bicha.
Então sorrio, como se nada tivesse acontecido. E rezo para Ashton atender a próxima
ligação.
— Com licença, eu preciso ir ao banheiro.
Arrasto a cadeira com provavelmente mais força do que deveria. A última coisa que eu
vejo antes de entrar no banheiro é o rosto confuso de meu irmão e seus olhos curiosos na minha
direção.
O cheiro de desinfetante enche meus pulmões quando abro a porta. Um menino, talvez
de treze anos, está pendurado na pia, se encarando no espelho. Ele usa um suspensório todo
caído e demoro um pouco para perceber que sua boca está se mexendo, mas que ele não está
falando comigo, e sim com alguém dentro de um dos cubículos.
Entro no mesmo cubículo de antes e tranco a porta. Assim que sento no vaso, ligo para
Ashton de novo.
No terceiro toque, ele atende. Não sinto mais tanta raiva quanto antes, então a única
coisa que eu consigo fazer é soltar um longo suspiro.
— Graças a Deus — digo. — Você encontrou alguma coisa?
O silêncio que ganho em resposta me faz querer vomitar toda a comida que comi há
poucos segundos. Ele encontrou, penso. E agora meu pai vai preso.
Até que noto algo que não notei antes: vento.
Vento demais para hoje. Não tem nenhuma árvore sequer do lado de fora se mexendo.
Não tem como ventar daquele jeito a não ser que…
Ashton esteja correndo.
— Ashton? — Eu o chamo. Ele não responde. Meu coração gela. — Por que você tá
correndo?
Ele murmura algo, mas não consigo entender direito. Meu corpo começa a formigar
demais para eu ficar parado.
— O seu vizinho me viu. — Ele arfa. A confirmação de que ele realmente estava
correndo vem do quão instável está sua respiração. — Ele soltou a porra de um cachorro atrás de
mim.
Me sinto terrivelmente culpado por isso, mas eu quero rir.
— Você riu?
— Não.
— Você tem ideia do quão-
— Eu não ri!
Mais silêncio. Se eu prestar atenção, consigo ouvir os passos apressados de Ashton
contra o concreto da rua. Ele xinga tantos nomes que eu quase o imagino procurando uma lista
de palavrões à meia noite, só para momentos como esse.
— Se eu morrer, vou passar o resto da minha vida após a morte te infernizando. — Ele
arfa mais uma vez.
Uma risada atravessa os meus lábios.
— Seria maneiro. Eu não me importaria de ter sua companhia fantasmagórica. Imagina
as coisas que você poderia fazer comi-
— Ei! Tem uma criança aqui! — A voz da pessoa do cubículo do lado ecoa pelo
banheiro.
Meu rosto esquenta no mesmo instante.
— Quem está aí com você? — Ashton diz mais uma vez pelo telefone, em um tom mais
baixo.
— Eu estou no banheiro.
— E por que tem um cara com você no banheiro?
Borboletas enchem meu estômago por imaginar ele com ciúmes.
— Por que é um banheiro público, idiota. — respondo, cada vez mais difícil de segurar
a risada. — Ah, falando nisso…
— Não é uma boa hora. — Pausa para mais arfadas. — A não ser que você venha me
buscar nesse momento, eu não posso ouvir suas novidades.
— Agora? — Meu humor caí no mesmo instante. — Eu não posso ir-
— CACHORRO IDIOTA! — O berro dessa vez é bem mais alto. Afasto o celular do
ouvido por segundos. Agora realmente sinto uma pontada de preocupação. — Por favor. Você
tem que vir aqui agora. Eu não aguento mais correr — praticamente consigo sentir a exaustão na
sua voz.
Se for o cachorro do vizinho que mora quase na frente da nossa casa, então devo me
preocupar. Aquele cachorro tem raiva desde o dia em que nós nos mudamos para aquela
vizinhança e o dono nunca pareceu se importar. Eu um dia vi o olhar dele quando minha bola
caiu no quintal do vizinho. Vi a insanidade nos olhos de um ser que talvez um dia tenha sido tão
querido.
Então me lembro do que Ashton disse sobre a droga criada pelo chefe de Fraser.
Lembro do que ele disse sobre ver aquele homem ficando louco com os efeitos que a droga fazia
na sua mente.
E imagino o quão assustado Ashton deve estar nesse momento.
— Eu estou indo — aviso enquanto abro a porta do cubículo. — Não pare de correr,
Ashton. Suba em algum lugar, entre em alguma varanda, só não deixe ele te pegar.

Há duas formas de chamar meu irmão.


A primeira é gritar, correr e implorar para ele me levar até o Ashton, mas isso atrairia
muita atenção, principalmente a do meu pai. Nós chegaríamos rápido, porém, como
consequência, quando meu pai chegasse em casa e visse a porta arrombada, seria óbvio demais.
A outra forma é andar calmamente, sorrir e dizer que preciso ir para casa porque estou
passando mal. Meu pai talvez vá direto para casa e, contanto que eu e Randall sejamos rápidos,
dará tempo de chegar antes que ele e pegar o Ashton. Mas o lado negativo é que ir com calma
não faria meu irmão entender que é uma emergência.
Porém, ficar pensando perto de uma coluna enquanto observo meu pai e meu irmão de
longe, considerando qual dessas escolhas me foderia menos no futuro, faz mais tempo passar, e,
como consequência, mais Ashton fica cansado.
— Randall. — O chamo. Randall parece ter notado a seriedade na minha voz, na forma
que digo seu nome. Ele me olha na mesma hora, com a sobrancelha curvada para baixo que eu
aprendi a reconhecer como uma silenciosa pergunta de o que aconteceu? — Você pode me levar
pra casa?
Vejo meu pai de soslaio me encarando. Fico consciente de todos os poros do meu corpo
por causa disso.
— Você está bem? — A preocupação enchendo a voz do meu irmão quase me faz sentir
remorso, mas eu não tenho tempo agora para pensar muito sobre isso. — Está meio pálido.
Meu estômago gela. Eu estou pálido?
Checo a expressão do meu irmão e quase no mesmo instante recebo um aceno discreto
com a cabeça vindo dele. Minha garganta se fecha de euforia quando eu noto.
Cumplicidade. É isso o que seus olhos me entregam.
— Eu… Estou com dor de barriga. Acho que eu sou alérgico a camarão.
— Você não é — meu pai responde, rodando a taça de vinho entre os dedos, me
encarando com um sorriso de escárnio. — Eu conheço cada centímetro das suas células. Você é
alérgico a mofo e a pólen, mas não a camarão.
Travo o maxilar.
Quase abro a boca para perguntar por que ele me trancava no porão se sabia que sou
alérgico a mofo, mas não faço isso. Ele sabe o que está fazendo. Ele vai tentar me empurrar até
um beco sem saída até que eu não tenha mais escapatória.
— É verdade. Mas talvez ele só esteja passando mal. — Randall levanta-se. Ele empurra
gentilmente a cadeira e arruma a gola da camiseta. Meu pai segue cada movimento com os olhos
e uma sobrancelha erguida, como se não acreditando que Randall tenha acreditado em mim.
Isso é um mau sinal. Meu pai sabe que estou mentindo, e por um pequeno segundo,
entro em pânico por causa disso. Ele sempre notou quando eu minto? Como eu nunca reparei
antes?
A mão em minhas costas me traz de volta para a realidade. Randall está ao meu lado,
segurando meu casaco no antebraço e acenando para meu pai. Suor começa a escorrer da minha
nuca quando eu checo o horário. Já passaram dez minutos.
— Eu vou deixar o dinheiro para você pagar — Randall informa. Ele tira algumas notas
da carteira e coloca na frente do meu pai. Randall faz tudo tão calmamente que eu quase quero
mandá-lo se apressar. — Já tem o dinheiro para a minha conta e a do Evan. Não precisa ir
embora se não quiser, aproveite que você já está aqui.
Meu pai passa uma das mãos por baixo do peito e eu quase sinto veneno saindo da sua
voz quando ele diz:
— Você não quer que eu vá para casa?
Pânico me consome lentamente. Sei que a pergunta não foi para mim, mas sinto a
alfinetada por trás dela. Sei que ele notou algo estranho.
A única coisa que eu posso fazer é rezar para que Ashton não tenha mostrado o rosto
para ninguém — principalmente pro vizinho do cachorro.
***
Meu irmão derrapa na esquina da minha casa e por um segundo quase caio da janela
aberta.
Olho de um lado para o outro, tentando achar qualquer sombra pequena correndo de um
lado para o outro. Nada.
Meu peito começa a doer. Meus pulmões começam a doer.
— Cadê ele?! —grito. Randall ao meu lado não parece tão eufórico quanto eu, e talvez
seja porque eu ainda não texpliquei a situação, mas isso não importa agora. Nada importa. Nem
como ele vai interpretar meu desespero. Eu lido com isso depois. — Ashton!
Então eu vejo. Uma sombra se espreitando entre uma árvore de um quintal distante. Se
afastando de nós.
Não sei o que acontece, só sei que em um segundo estou no carro e, em outro, estou
correndo. Pisando com tanta força no chão que a sola dos meus pés pinicam minha pele.
Meu irmão grita meu nome, mas não consigo ouvir direito. Estou tentando proteger
alguém que eu amo. E meu cérebro me impede de sentir qualquer coisa além da selvageria nas
minhas veias.
Alcanço Ashton mais rápido do que achei que poderia. Ele está ficando lento e cansado,
não é difícil de notar. O cachorro enlouquecido parece ter notado isso também, correndo com
mais voracidade.
Não sei se posso ser mais rápido do que um pitbull com tanto ódio como aquele, mas
não existe a chance alguma de eu não tentar.
— Ashton! — Eu grito de novo. Dessa vez ele vira o rosto, mas quase tropeça. Meu
coração erra uma batida quando o cachorro abre a boca para morder sua canela, e eu não penso.
Não penso em nada.
Minha mente está em branco quando eu forço meus pulmões a aguentarem mais um
pouco.
Por favor, eu peço ao meu próprio corpo. Só mais um pouco.
Derrapo pelo chão para fazer o cachorro tropeçar. Ele se atrapalha com as próprias patas
e rola pela grama.
E, ao mesmo tempo, Ashton joga para o lado como se o vento o tivesse levado. Ele cai
em uma plantação de roseiras baixas e eu não perco a oportunidade.
Pego a mão dele e o puxo antes de soltar o primeiro espirro. Ashton geme ao se
levantar, e embora eu sinta uma pontada no peito de ver sangue escorrendo dos seus braços,
preciso correr. Espinhos não vão matá-lo, mas aquele cachorro doido, sim.
Os olhos esbugalhados dele me encaram como se fosse a primeira vez me vendo. Como
se eu fosse um sonho que ele torceu tanto para acontecer que acabou se tornando realidade.
Meu nariz começa a coçar, mas eu não quero soltar a mão dele. Sinto que, se eu largá-
lo, Ashton vai desmoronar.
— O que você está fazendo aqui!? — Ele pergunta entre respirações.
O cachorro se balança. Eu olho de relance para ele. Seus olhos insanos se focam em
mim, e aposto que virei seu novo alvo.
— Vim te buscar.
Então nós corremos. Minha mão estava escorregadia antes, mas agora ela gruda na de
Ashton como supercola.
Enquanto corremos, sinto um aperto nos dedos, como se Ashton estivesse me
agradecendo.
Vejo o carro do meu irmão no final da rua. Estamos perto. Falta pouco.
É a minha vez de apertar a mão dele.
Tenho quase certeza de que o cachorro está perto mais uma vez. Quando cometo o erro
de olhar para trás, ele parece sentir meu medo. A raiva dentro dele, a doença…
Meu irmão liga o carro. Meu coração afunda para o estômago quando passa pela minha
cabeça a chance de ele nos deixar aqui, como vingança por tudo o que eu fiz com ele por todos
esses anos. Eu abro a boca para gritar, berrar por misericórdia, até que noto que o carro está
vindo na nossa direção. E que a porta de trás está aberta.
Não tenho tempo de sentir alívio quando sinto outra coisa. Uma dor rasgando meu corpo
no meio. Perfurando minha pele.
Dentes entrando dentro de mim.
Eu grito. Grito tão alto que a minha garganta parece estar sendo dilacerada. Estourando
meu corpo.
Não tenho forças para segurar meu peso. Não escuto, não sinto nada, além da dor
pulsante no meu calcanhar.
E por um pequeno segundo, penso que morrer seria melhor que continuar sentindo essa
dor.
Talvez eu seja o Pátroclo. Eu morro para salvar o meu Aquiles.
E tudo fica escuro.
Não conte para o pai

cordar nem sempre é uma boa coisa.


A Enquanto eu estava desmaiado — e de alguma forma sabia disso — não
sentia dor alguma. Meu corpo flutuava e parecia pesar o mesmo que um grão de
arroz.
Era tranquilo e fresco, como se eu estivesse livre para ficar sem roupas em algodão doce
gelado. Mesmo quando me forcei a sentir alguma dor, ou lembrar da agonia que tinha sentido
quando o cachorro me mordeu, não consegui.
Dor não existia nesse lugar. Era o estado mais puro da minha mente, como voltar para o
útero da minha mãe.
Mas esse foi o primeiro alarme.
Como uma onda de barulhos, um tiro soou pelo meu ouvido, arrepiando meu ombro,
então a barriga, as coxas e as pontas dos dedos.
Uma pulsação maçante percorreu meu corpo, e se concentrou na direção dos meus
botões.
Minha mãe.
Estou voltando para a realidade. Voltando a me lembrar.
Ashton.
Esse é o segundo alarme. A dor deixa de ser uma pulsação e se transforma em uma
agonia lancinante mais rápido do que eu poderia piscar.
Meu peito dói para respirar e puxar o ar para meus pulmões parece tão difícil quanto
puxar a corda de uma caixa de música enferrujada.
— Acorde — a voz de alguém preenche o vazio, mandando em mim, em um tom
desesperado que me deixa enjoado. Tem como vomitar nesse lugar? Não faço ideia. — Acorde.
— E-eu não quero. — Meus lábios rachados dizem. O som não parece certo, talvez
porque meu corpo não parece ter forma o suficiente para cordas vocais.
— Acorde!
E eu acordo.
A realidade é dolorosa. Abrir os olhos dói tanto quanto todo o resto do meu corpo, mas
o meu tornozelo…
Morrer deve ser menos doloroso do que isso.
Não sei onde estou, nem quem está comigo, mas não me importo no momento. Faria
qualquer coisa para parar e meu único instinto no momento é encolher meu corpo e torcer para
voltar para a escuridão em que eu estava.
— A gente precisa levar ele para o hospital. — Uma das vozes diz. Quem é? Mesmo
que eu abra os olhos, a tontura não me deixa ver nada além da silhueta de alguém. — Ele está
perdendo sangue, ele-
— Não. — A segunda pessoa corta. Minha mente gira e então volta, e gira mais uma
vez. Minha roupa está colada ao corpo por causa do suor. — Ele não gosta de hospitais.
— Você acha que ele tem que gostar de alguma coisa em um momento como esse?! —
Aquela voz calma de antes perde o controle. Vejo o contorno da pessoa se levantar para longe de
mim e eu quase fico feliz por não ter mais mãos me tocando quando o outro, o menor, se
aproxima. — Você viu aquele cachorro? Você tem ideia do que está acontecendo?! — O grito
me faz encolher.
Quero que pare. Quero que pare. Eu faço qualquer coisa.
— Se o Evan perder mais sangue do que deveria, a chance de sobreviver é mínima!
Ah, certo. Esse é meu nome. Evan.
— Ele fez tudo isso para te salvar e você nem quer deixar ele ir ao hospital-
— Se ele for, o pai dele-
— Eu não sou burro o suficiente pra deixar meu pai examinar ele. — Essa pessoa está
segurando a raiva dentro de uma gaiola apertada. Posso sentir as ondas de tensão no ar me
envolvendo. — A culpa é sua, Ashton. Ele quis te ajudar, então é sua hora de ajudar ele.
Então eu lembro. Ashton. Randall. Cachorro. Fraser.
Tudo volta para minha mente como uma explosão. Pequenos fragmentos se juntam
como o Big-Bang para formar a Terra, e a minha memória revive.
Levanto a mão esquerda. Ashton, a pessoa pequena do meu lado, a aperta com força.
Consigo sentir os tremores dos seus dedos e, embora a dor do meu tornozelo seja a coisa mais
excruciante que eu já senti na vida, Ashton diz algo que rasga meu coração de forma que nenhum
machucado físico um dia vá se igualar.
— Me desculpe. — Ele sussurra ao esconder o rosto no meu ombro. Espero que Randall
não esteja encarando. É tão íntimo vê-lo frágil assim que eu não quero compartilhar esse
momento com ninguém. — Eu sabia que isso ia acontecer. Você continua se machucando por
minha causa.
Por um instante, o mundo some. Somos somente eu e ele e nossas dores. E nem Randall
e sua presença tensa me impede de beijar meu namorado.

Acordar pela segunda vez deveria ser mais fácil. Mas não foi. Mesmo que eu estivesse
acordado há um tempo.
Ashton está me encarando pelo que parecem horas, com uma careta amarga, mas os
olhos suaves em preocupação. Não tenho uma boa impressão de toda essa postura, mas, pela
rigidez dos ombros do meu irmão enquanto conversa com a mãe da Zya, sei que vou ter que
resolver meus problemas com Ashton depois.
O quarto em que estou é desconhecido. As paredes são brancas e de gesso, decoradas
com quadro de flores pendurados pelos cantos. A janela aberta faz a cortina transparente flutuar
perto das costas de Ashton, parecido com o dia do pergolado. Está amanhecendo. Eu poderia
facilmente confundir esse lugar com um hospital, se não fosse pelas pessoas ao redor de mim
falando alto demais.
— Foi sorte o amigo dele ter ligado — a mãe de Zya diz. Ela não está vestida como
médica, apesar da luva de látex nas mãos. Uma sombra de preocupação cruza seu rosto toda vez
que ela vira os olhos na minha direção, e estou quase tendo certeza que eu já estou com um pé no
inferno.
Quero dizer, eu não sei quanto tempo uma pessoa do meu porte leva para começar a
mostrar os sinais da raiva e não faço ideia de como esses sintomas virão, mas, tirando a tontura
na minha cabeça e a fraqueza, meu corpo está bem. A mordida no meu tornozelo foi desinfetada
— lembro disso pelo quanto ardeu — e enfaixada.
— Ele perdeu mais sangue do que devia. Ficaria tudo bem se tivesse sido só um litro,
porque é o tanto que as pessoas doam. Mas ele perdeu quase dois litros-
— Nós já entendemos — Ashton diz ao meu lado. O aperto na minha mão, que
sinceramente é a única coisa que causa uma sensação boa e quente no meu corpo, esmaga meus
dedos com tanta força que minha voz sai baixinha em um resmungo.
— Não fale assim com a minha mãe — Zya responde, tão firme que não parece mais a
mesma garota preocupada que me viu ao entrar no quarto alguns minutos atrás. — Ela está
tentando ajudar. Pare de ser um merdinha mal agradecido e trate ela com gentileza.
— Zya. — Sua mãe tenta acalmá-la.
— Não- — ela mesma se interrompe, enterrando o rosto entre as mãos. Não sei quantas
vezes eu já me senti culpado hoje, mas vê-la tensa desse jeito é a pior de todas. — Ele tem que
parar de descontar a raiva nos outros. Aprenda a lidar com a sua merda.
E com isso, Zya sai.
— Eu vou… Atrás dela — a mãe dela avisa. Não tenho certeza, mas acho que balanço a
cabeça. — Cuidem dele.
E ficamos apenas eu, Ashton e Randall mais uma vez. Quero implorar para as duas
mulheres voltarem e me tirarem desse silêncio, mas quando eu tento abrir a boca para falar algo,
quase vomito.
Ashton escuta meu engasgo. Ele me olha com os olhos alarmados. Eu detesto a forma
como a preocupação enche seu rosto. Como se eu… Eu não sei. Sinto raiva de mim mesmo.
Aqui, nessa sala, deitado como um bebê enquanto as duas pessoas na minha frente parecem tão
preocupadas e…
É assim que ele se sentiu quando eu o tratei como se fosse uma boneca de vidro?
Respiro fundo.
Agora faz sentido.
— Vocês precisam me explicar o que está acontecendo — meu irmão exige.
Tento abrir a boca, mas Ashton é mais rápido.
— Não é uma boa hora.
Com as mãos nos bolsos, escondendo o relógio caro que ele sempre usa no pulso,
Randall se aproxima. Lembro-me de odiá-lo. Lembro-me de odiar cada item que ele tinha. De
sentir inveja por ele ter uma vida tão boa, e eu uma tão miserável.
Aperto a mão de Ashton. Ele me olha no mesmo instante, checando meu corpo da ponta
dos pés à cabeça, tentando descobrir se estou pedindo algo.
— Eu quero falar.
— Você não precisa.
Me irrito com toda essa preocupação.
— Eu preciso, sim. Meu irmão merece uma explicação.
Ashton parece bem. Está com a mão quente, o que deve ser um bom sinal. As bochechas
estão um pouco avermelhadas, mas isso deve ser pelo nervosismo. Desde o momento em que
acordei, não consegui achar nenhum machucado em seu corpo.
Fecho os olhos por um segundo e lembro de todo o nosso plano, até que uma dúvida me
vem à cabeça.
Viro o rosto na direção dele.
— Você achou alguma coisa lá?
Ashton olha de soslaio para Randall, parecendo considerar a ideia de soltar informações
na frente dele. Aperto mais sua mão, dizendo a ele, através do toque, que está tudo bem.
— Consegui entrar na casa pela janela do seu quarto. Não consegui fazer muito além
disso. Quando entrei no porão, escutei alguém gritando do lado de fora. Depois disso eu subi pro
seu quarto e tentei fugir. Não achei nada do… — ele solta uma tosse disfarçada. — Daquela
coisa.
Sei do que Ashton está falando. Saber que ele não encontrou nada lá faz meu corpo ficar
tenso, porque significa que talvez meu pai não tenha nada a ver com isso? É um pouco suspeito,
já que ele se encaixa perfeitamente no perfil que criei do cientista que está envolvido nessa
história.
A menos que meu pai tenha feito alguma coisa para esconder aquele lugar, isso significa
que ele é inocente.
Assusto-me com esse pensamento, e com a amargura que enche meu coração quando ele
cruza minha mente.
Meu pai é inocente.
— Mas… — Ashton pigarreia do meu lado. Volto a atenção para ele, fingindo não
perceber os olhos questionadores de Randall em mim. — Eu achei um bilhete no meio de um
livro. Era um endereço, me parecia familiar. Mas eu perdi enquanto corria do cachorro — ele
murmura, mal-humorado.
Merda.
A única pista que nós podíamos ter sobre isso acabou de escorregar pelas nossas mãos
como água.
— Espera. — Dessa vez é Randall quem fala. Eu e Ashton olhamos na sua direção. —
Por que vocês estavam lá? Você chamou a gente para o jantar para que o seu… Amigo entrasse
na casa? — A expressão de Randall agora… Nunca o vi fazendo antes. Me encolho para perto de
Ashton. — Por quê?
Eu tomo a frente dessa vez, sem dar brechas para Ashton me interromper.
— Estamos investigando. Foi o que você me pediu pra fazer.
Randall solta uma risada sarcástica demais para o seu rosto calmo. Sinto-me orgulhoso
por ter pensado em uma desculpa tão rápida. Fraser é um assunto do Ashton. Randall, por mais
que seja o meu irmão, não precisa saber disso.
Quanto menos pessoas souberem, melhor.
— Você tem ideia do perigo que é entrar naquele lugar? — Randall coloca a mão na
ponta da cama. Meus pés se movem para longe, mas tenho certeza de que essa foi a pior decisão
da minha vida. A sensação da minha pele estar sendo rasgada faz meu corpo inteiro amortecer.
Suprimo um grito.
— Não chegue perto dele — Ashton diz, um pouco mais longe. Uma das minhas
pálpebras se abre para ver o que aconteceu: foi como se peças do xadrez tivessem me mexido.
Randall estava dois passos longe e Ashton de pé na minha frente me protegendo como uma torre.
— Eu sou irmão dele-
— Mas você está fazendo ele se machucar.
— Ashton- — tento chamá-lo, porém ele não me escuta. Por sinuosos segundos, meu
irmão e meu namorado se encararam como se estivessem próximos de lacerar a garganta um do
outro. — Por favor, parem. — Minha voz soa baixa demais entre eles. São como gigantes, tão
altos que não vão me escutar. Ou assim eu achei. Na verdade, os dois viram o foco para mim. —
Eu nem sei porque vocês estão brigando, não faz sentido-
— Ele não queria te trazer pro hospital! — Randall acusa Ashton.
— Ele ficou o caminho inteiro até aqui falando que era minha culpa e que era eu quem
deveria ter sido mordido — Ashton acusa Randall.
Viro os olhos para o meu irmão, com uma sobrancelha levantada.
— Eu não disse isso… — ele tenta se defender.
— Ah, você não disse? — Ashton rebate.
— Por favor. — Os interrompo mais uma vez. — Eu é quem deveria estar com raiva. Eu
fui mordido por um cachorro com raiva e-
— Raiva?! — Eles gritam ao mesmo tempo.
Juro que se fosse outra situação eu conseguiria rir. Se fosse qualquer outra situação,
menos essa.
— Escutem. Randall, bolamos o plano. E daí se o pai descobrisse que nós entramos? —
Dou de ombros, como se não estivesse sentindo minha garganta arder enquanto falo. — Ele não
faria pior do que ele já fez.
Palidez infiltra a pele do meu irmão antes que eu possa pensar na minha próxima fala.
— Eu não quero que você se machuque — ele diz, desviando os olhos de mim.
— Muito comovente. — Escuto a voz de Ashton murmurar.
— Queria descobrir a verdade sobre a minha mãe. Você me deixou… Preocupado.
Depois disso, a pose de irritação de Randall se desmancha completamente.
— Eu nunca devia ter te contado aquilo — Randall solta um suspiro, colocando os
dedos entre as sobrancelhas franzidas. Ele fecha os olhos com força. — Eu… Não foi um bom
momento. Eu estava confuso. Esqueça o que eu disse.
— Como você quer que eu esqueça? — Aperto os punhos contra os lençóis, sentindo
minhas veias esquentarem. — Você disse que meu pai tinha algo a ver com as convulsões da
minha mãe e agora quer que eu simplesmente esqueça?
Outro suspiro. Ele parece um verdadeiro adulto cansado demais para explicar algo
complexo à uma criança. Isso me irrita mais ainda.
— Eu disse aquilo porque estava paranoico. — Ele deve estar tão confuso, pelos seus
olhos desfocados. — Eu achei que… Ele fosse o culpado porque não deixava ninguém ver ela.
Ninguém pode tocar nela, ele simplesmente fez tudo, como se ele quisesse esconder algo dos
outros médicos. Eu achei que… por ele estar sozinho em casa com ela, por-
— Mesmo que seja um acaso — o interrompo. — Mesmo que seja tudo coincidência, eu
precisava ver isso com meus próprios olhos. Ou, bem, os olhos de Ashton.
Sinto uma pontada no tornozelo. Tento segurar o xingamento na ponta da língua, mas
não consigo. Isso atrai a atenção dos dois e, por um segundo, espero pela dor arrebatadora, mas
ela não vem. Ela não vem.
— Está tudo bem? — Ashton pergunta. Suas mãos tocam meus ombros.
O afasto, me sentindo desconfortável. Ashton não parece ter notado a situação, mas me
dá espaço, e fico grato por isso.
— Está. Eu só… Sinto pontadas de vez em quando.
— Quer que eu chame a Zya? — Randall pergunta. Balanço a cabeça.
— Não precisa. Eu gostaria de ouvir o que você sabe sobre isso. Qualquer coisa. Por
favor, Randall.
— Precisa mesmo?
Há um quê de cansaço em sua voz e eu realmente queria poder dizer que não, não
preciso, mas seria mentira. Minhas entranhas se contorcem toda vez que eu penso sobre isso e
percebo que ainda não tenho uma resposta.
Randall solta um suspiro quando encontra a resposta nos meus olhos.
— Evan, nosso pai nunca foi uma boa pessoa. Ele sempre foi egoísta e pensava em si
mesmo antes de tudo, antes de todos. Eu fiquei lá por um tempo, ajudando sua mãe a cuidar de
você quando tinha acabado de nascer e… Desde aquela época ele era fascinado por
experimentos. Ele costumava me levar no porão, me mostrar o que tinha lá. Eram ratos. Duros e
fedendo a morte. Também tinha agulhas empacotadas e algumas usadas, mas eu não me atrevi a
tocar-
Ashton levanta-se.
Sinto sua aura mudando. Sinto a fúria, o desespero, entrando no seu corpo à medida que
as palavras do meu irmão soam.
Ele passa reto por mim antes de empurrar Randall para longe e sair pela porta com um
estrondo. O quarto treme. Os quadros da parede ameaçam cair.
O ar torna-se gelado, machucando meus pulmões toda vez que eu respiro. Ou talvez seja
apenas preocupação pinicando meu coração.
Independente do que seja essa sensação ruim que se espalha pelo meu corpo, quero ir
atrás dele.
Isso era tudo o que ele precisava. Meu pai… Não tem como ele ser inocente. Nós
sabíamos disso, mas ainda é como ter um caroço entalado na garganta.
Porém, se nós focarmos apenas nele, nunca vamos achar Fraser. Quem garante que o
meu pai não é apenas um médico com conhecimentos de ciência, um pouco louco e com
complexo de Deus?
Quando viro o rosto para meu irmão, me surpreendo ao encontrá-lo olhando a porta com
as sobrancelhas curvadas para cima, mas ele desmancha essa expressão tão rápido que eu não
tenho certeza se foi coisa da minha cabeça.
— Eu disse alguma coisa errada?
Tento sorrir de forma reconfortante. Não deve ter adiantado, porque aquelas ondas
cheias de pesar saindo do seu corpo continuam se chocando contra mim.
— Você disse uma coisa certa. — Aperto os lábios ao olhar para a porta. Ashton deve
estar pensando em tantas coisas. Em tantas maneiras de ir atrás do meu pai. — Talvez certa
demais.

No dia seguinte, ainda não consigo me levantar. A mãe de Zya entrou e saiu, dizendo
que iria pegar algumas coisas para depois conversar melhor comigo sobre a situação dos meus
nervos.
Mesmo que tente me assegurar de que tudo está bem, no fundo, todos nós sabemos que
isso é mentira. Não sei se o fato de a doença não afetar meu cérebro é um bom sinal — apesar
de eu querer acreditar que sim, quanto mais eu penso sobre, mais tenho certeza que não.
Ashton está dormindo do meu lado, com a cabeça apoiada na cama perto da minha mão
direita e o corpo na cadeira de couro. Eu o chamei para deitar-se ao meu lado quando ele decidiu
voltar de onde quer que tenha ido, mas eu fui tão rapidamente recusado que se não fosse seus
olhos vermelhos e seus ombros encolhidos, teria me ofendido.
Há pouco tempo, quando ainda estava dormindo, minha mente não conseguiu
desenvolver um sonho e acho que é por causa da dor constante no meu tornozelo. Eu ainda não
vi o estrago que o cachorro fez, e nem quero. Prefiro deixar minha perna inteira enfaixada e
fingir que não vejo as manchas vermelhas molhando a faixa.
A visão do rosto amassado de Ashton é a minha única distração. O sol brilha em suas
costas nas vezes em que o vento faz a cortina voar, e só agora que reparo que ele está com a
mesma roupa de quase dois dias atrás. Sua maquiagem bem-feita está borrada e meu coração
pesa quando eu levanto a mão para tocá-lo.
Ele parece mais machucado do que eu.
A ponta dos meus dedos desliza por sua bochecha, tão macia quanto a polpa de um
pêssego. Seu rosto está vermelho, mas relaxado. Se não fosse pelo cabelo oleoso e as bolsas
roxas em volta de seus olhos, ele pareceria um anjo inalcançável.
Quando me lembro o quanto Ashton odeia sujeira, mas não abriu a boca para reclamar
nem uma única vez sobre isso, minha garganta se fecha.
Meus dedos correm das bochechas até a nuca. Ele solta um murmúrio e molha os lábios,
despertando. Mesmo sem Ashton abrir os olhos, sei que ele acordou.
Seus cílios tremem quando escorrego a mão na direção dos seus ombros. Sinto o tremor
no seu corpo acompanhar a direção em que os meus dedos exploram e, por um segundo, cedo a
minha vontade de empurrar a mão dentro da gola da blusa dele. Sinto o calor do seu corpo
quente infectando o meu e, no mesmo instante em que ele levanta com os olhos esbugalhados
olhando diretamente para mim, minhas bochechas queimam.
Meu coração está palpitando. Pela primeira vez desde o dia que eu o conheci, ele cora.
De verdade.
Um tom tão lindo de rosa tinge seu rosto que eu mal seguro a vontade de me esticar para
beijá-lo.
Ele deixa, em silêncio.
Não dizemos uma palavra depois disso, apreciando a presença um do outro. Eu o
adorando, o venerando como se ele fosse a última coisa na terra que me importo.
— O que você está fazendo? — ele pergunta quase de forma apelativa, como se
estivesse me pedindo para continuar o que quer que seja que eu estou fazendo.
Com o meu rosto quente, encaro qualquer lugar que não sejam seus olhos. Minha mão
percorre o caminho até seu maxilar enquanto tento esvaziar a tensão do meu corpo. A pele de
Ashton serve como combustão para os meus sentidos, e no mesmo instante em que eu penso isso,
sinto dedos firmes pegarem meu queixo e moverem minha cabeça na direção em que eles
queriam; eu paro na frente de olhos esfomeados.
Talvez tenha sido o choque de vê-lo me olhando dessa forma pela primeira vez, mas
algo cutuca meu corpo. Algo cutuca as entranhas do meu ser e esquenta cada centímetro de pele
que me cobre. Sentir sua atenção sobre mim enquanto seus dedos causam reações pelo meu
corpo é vergonhoso, e eu decido que não quero deixar o foco disso tudo se virar para mim.
Atrevo-me a escorregar as mãos pelos seus braços, como uma serpente. Ele me
interrompe antes que eu possa continuar.
Tento não soltar um bufo frustrado, mas, antes que meu corpo comece a esfriar, ele tira
a jaqueta e volta.
Levanto uma sobrancelha, encarando seus braços. Ashton força meu rosto para cima
mais uma vez e, quando nossos olhares se chocam, observo suas pupilas aumentarem.
Ele inclina-se e beija meu maxilar. Levo um choque de susto e quase o afasto, mas
quando sinto seus lábios beijando a ponta da minha orelha, não consigo fazer mais nada além de
pensar em como isso é bom.
Ele não é diferente de garotas. Nem um pouco. As meninas que eu namorei eram tão
selvagens quanto Ashton, e isso sempre me atraiu por elas. Gostava de quanto suas unhas
grandes arranhavam minha nuca, de como meu pescoço ficava marcado de batom melado.
Mas agora eu gosto principalmente dos braços fortes abraçando minha cintura.
Solto um grunhido satisfeito e isso parece incentivá-lo a continuar. Mais beijos deslizam
por meu pescoço. Em certo ponto, minha mão encosta nas suas clavículas e eu aperto seu
pescoço para sentir a artéria pulsante.
Uma risada baixa e suja aquece meu ouvido direito ao passo que mais um som
depravado escapa dos meus lábios.
Minhas mãos avançam como uma tropa avançaria para o território inimigo, conhecendo
as artimanhas que esse lugar novo tem. Nunca toquei Ashton tanto quanto agora, e mesmo que
eu não seja exatamente do tipo romântico, meu coração palpita da mesma forma que palpitava
quando eu tinha treze anos e me apaixonei pela primeira vez.
Afasto-me para poder olhá-lo. A visão dos seus lábios vermelhos faz meu peito acender
em chamas, e antes que Ashton possa abrir a boca para perguntar por que o interrompi, coloco
meus lábios em suas bochechas com delicadeza o suficiente para mal sentir o toque. Ashton
fecha os olhos e eu sinto seu peito sobre o meu começar a se mover freneticamente.
Meu corpo está impaciente, mas eu sei que não posso ir além disso. Meu tornozelo está
fodido o suficiente para me impedir de agarrar Ashton e puxá-lo sobre mim.
Mesmo assim, não quero soltá-lo.
Não quando ele solta soluços ofegantes enquanto eu abaixo meus beijos para o canto
dos seus lábios.
Em um flash, a porta se abre.
Nunca me movi tão rápido quanto agora. Empurro Ashton para longe de mim e colo as
minhas costas na cabeceira da cama.
Meu rosto fica tão quente que eu acho que vou desmaiar.
Não tenho coragem de ver quem entrou, e, mesmo quando a mão de Ashton vem até a
minha para entrelaçar os dedos, o silêncio constrangedor me faz encolher os ombros.
— Hm… Eu acho que volto outra hora-
Merda.
Por que tinha que ser o Randall?!
— Não! —O impeço de sair. Meu irmão para na metade do caminho, me olhando como
se eu fosse um alien. Mesmo que eu não tenha desculpa para isso porque “Ah,haha, olá irmão!
Eu estava aqui limpando a boca do meu melhor amigo com a minha língua, sabe como é, né?”
não é uma coisa muito fácil de acreditar.
— Não? — Randall alterna o olhar entre mim e Ashton. Sei que o homem do meu lado
está insatisfeito só por escutar os bufos vindo dessa direção. — Ele parece que quer que eu saia.
Limpo a garganta.
— Você… entendeu erra-
— Jesus Cristo, se eu entendi isso errado não quero saber o que deveria ter entendido
certo.
Não consigo levantar os olhos para encarar meu irmão. Vergonha queima meu interior
em um nível que nunca senti antes. Principalmente quando meu corpo ainda está pelando pelos
toques de Ashton.
— Não, você não…— Não sou de chorar, realmente não sou. Mas estou com tanta
vergonha que meus olhos ardem. Nem a mão que está segurando a minha consegue acalmar a
timidez angustiante crescendo no meu peito. — Por favor, não conte pro pai.
A temperatura da sala cai alguns graus. Sinto como se nós estivéssemos em um empate
e o que eu disse fosse munição para Randall. Mesmo que eu tenha mudado minha atitude com
ele, mesmo que eu me arrependa de tudo o que já disse para ele, isso não apaga o ressentimento
que eu provavelmente criei.
E minha mente insiste em lembrar a quantidade de coisas que ele podia usar contra mim
neste exato momento.
Mas, para minha surpresa Randall entra no quarto e fecha a porta. Ele me olha por
alguns instantes e eu quase vejo as engrenagens da sua mente se movendo enquanto ele pensa no
que dizer.
Não sei se quero escutar.
— Posso conversar com você? — Randall pergunta. Mal vejo quando seu olhar desliza
na direção do Ashton. — Sozinho?
Abro a boca para responder, masAshton me interrompe:
— Não.
Aperto sua mão. Ele desvia o olhar afiado de Randall e me observa. Suas pupilas
dilatam de novo e não preciso olhar para baixo para ver que seus lábios ainda estão vermelhos.
O toque das nossas palmas parece ter transmitido o que quero dizer, porque, em um
instante, a ruga no meio da sua testa suaviza e ele solta um suspiro. Ashton não solta muitos
suspiros, porque ele não costuma ceder tão fácil.
Meu irmão abre a porta e o dá espaço para passar quando ele se levanta. Esperamos até
que a porta se feche nas costas de Ashton, e quando percebo que fiquei cara a cara com Randall
depois de ele saber meu segredo pecaminoso, espasmos de ansiedade enchem minha mente.
Aperto o lençol da cama, sentindo o refluxo no começo da garganta. Eu gostaria de
dizer que sou forte o suficiente para lidar com esse tipo de situação sem surtar, mas seria mentira.
Randall não é minha mãe. Ela reagiu bem, mas nada garante que ele também vá.
Randall aproxima-se em passos hesitantes. Ele se senta no fim da cama, olhando para
qualquer canto do quarto que não seja eu. Faço o mesmo, mas continuo checando seu rosto.
Preciso me prevenir de qualquer reação dolorosa, porque, por mais estranho que pareça, eu quero
muito que ele me aceite.
— Então…
O corto. Não quero enrolar essa conversa.
— Ele é meu namorado.
Randall balança a cabeça e eu fico em silêncio por alguns minutos, dando tempo de
absorver a informação. O que aqueles lábios franzidos significam? Raiva? Decepção?
Preocupação?
Meu estômago dói tanto que parece que levei um soco.
— Evan, eu-
— Se você for falar alguma coisa ruim, nem tenta — minha voz sai mais rude do que eu
pretendia. Observo seus ombros enrijecerem e sinto-me mal por escolher esse tipo de
autopreservação: a de agir como um pirralho marrento que se esconde atrás de grosseria, quando
na verdade, está se segurando para não chorar.
Dedos rodeiam meu calcanhar não-ferido. O toque me traz de volta para a realidade, e
me assusto em encontrar seus olhos já em mim, com um brilho de algo que eu nunca achei que
poderia ver neles enquanto conto algo assim.
Comoção.
— Não. Você entendeu errado. Eu não vou dizer nada ruim. Na verdade, eu fico feliz
por saber.
Não consigo controlar o bufo arrogante de escapar dos meus lábios.
— Feliz por quê? Por que por eu estar namorando um cara eu não tenho chances de
engravidar uma garota que eu mal conheço?
Me sinto deplorável quando vejo seus ombros encolherem. Estou falando demais. Sendo
imprudente demais.
Mas quem pode me julgar por sentir medo?
Medo.
Essa palavra me deixa com um gosto amargurado na ponta da língua.
— Não. Evan- — Randall se atrapalha com as próprias palavras. Me sinto péssimo por
duvidar tanto do seu apoio em uma situação como essa, mas é difícil acreditar em qualquer coisa
que ele diga. Meu cérebro me bombardeia com paranoias quase irracionais. — Eu fico feliz por
você estar feliz. Mesmo que a pessoa que você tenha escolhido ficar não seja muito… Boa, eu
acredito que você já é responsável por si mesmo e sabe do que está fazendo.
Minhas mãos estão tremendo e tento pará-las forçando meus dedos em um punho.
Randall não fala por um tempo, talvez me dando alguns segundos para absorver a
situação. Meu coração está quente como um foguete dentro do peito e a única coisa que eu quero
fazer é abraçá-lo.
De repente, como se lesse minha mente, meu irmão me puxa pelo braço. Antes que eu
tenha tempo de gritar de dor por causa do movimento no meu tornozelo, Randall coloca a mão
no topo da minha cabeça e o choque distancia qualquer dor do meu corpo.
Meus olhos estão esbugalhados. O cheiro de madeira do meu irmão nunca pareceu tão
reconfortante quanto agora, como se me lembrasse a minha infância, uma época perdida da
minha ingenuidade. Sinto vontade de chorar, mas nenhuma lágrima quer descer.
Eu estou tão aliviado que mal consigo respirar.
Nunca achei que um abraço poderia me consolar tanto.
— Não é porque nosso pai é um filha da puta que eu também vou ser. Eu conheço você
melhor do que ele, e sei que você é um bom garoto, que se esforça muito para tentar o seu
melhor. Isso é tudo o que importa. Eu não estou nem aí se você se apaixona por meninos,
meninas, os dois ou nenhum. O que me importa é sua índole e nada além disso.
Uma mão desliza pelos meus cabelos sem se importar com a oleosidade, me
confortando de uma forma que pensei que nunca poderia acontecer comigo.
As palavras dele me atingem como um soco, drenando todas as forças que eu estava
fazendo para me manter forte sobre seus braços. Nunca escutei meus pais falarem assim de mim.
Nem mesmo a minha mãe. Nunca fui reconhecido pelos poucos acertos que eu fiz, mas sempre
criticado pelo menor dos erros.
E escutar palavras tão fraternais vindo do meu irmão me faz… Querer continuar. E
deixar ele orgulhoso.
Minhas mãos apertam sua blusa, como se ele fosse desaparecer a qualquer momento.
Reparo na tensão que lhe atravessa, mas ela some tão rápido quanto aparece. Eu escondo o rosto
em um dos seus ombros e agradeço ao celestial supremo do céu por ter tido piedade de mim
dessa vez.
— Me desculpa. — Um soluço escapa dos meus lábios, e a mão que estava
carinhosamente me afagando para. Dedos forçam minha cabeça para trás e quando meu irmão
olha para o meu rosto, eu noto uma mistura de preocupação, alívio e dúvida. Antes que ele possa
perguntar o porquê, eu explico: — Por todos os anos que eu te tratei mal. Você e sua mãe e a
bebê. Eu era egoísta e sei que isso não é desculpa, mas meu pai… Nosso pai, ele me dizia coisas
terríveis. Me trancava no porão e me fazia pensar que eu nunca seria nada em comparação a
você.
No tempo que eu tenho para soluçar de novo, meus olhos finalmente começam a arder.
As expressões do meu irmão ficam embaçadas, mas eu consigo ver através dos seus lábios
apertados. A raiva e a indignação atravessando cada pedaço do seu rosto.
Sinto-me aliviado por isso. Me sinto aliviado por ele sentir raiva pela situação que eu
passei.
De repente, meu irmão me puxa para outro abraço. Mas dessa vez, é ele quem me
espreme com força. Quando reparo na agonia do seu corpo trêmulo, o aperto mais, e eu sinto
uma estranha urgência de acalmá-lo.
— Você também merece desculpas — a voz ruidosa vindo dele quase me quebra.
Parece tão ferida, arrependida e, principalmente, culpada. — Por nunca ter notado o que ele fazia
com você.
Eu disse por cima do seu ombro:
— Não tinha como você notar. Eu não te dava brecha pra isso.
A pressão em volta do meu corpo aumenta quando ele me aperta mais uma vez.
Não sei quanto tempo ficamos em silêncio, mas eu não me incomodo. Sinto como se eu
e Randall tivéssemos reestabelecido o vínculo que tínhamos quando ele cuidava de mim quando
eu era um bebê. Sinto como se eu tivesse ganhado uma nova figura fraterna e finalmente pudesse
parar de me preocupar com a aprovação dos outros porque minha família, meu irmão, sabia o
quanto eu me esforçava, e isso era tudo o que importava.

Ashton volta para o quarto depois de Randall avisá-lo que poderia entrar. Ele me olha
no mesmo instante em que coloca os pés dentro do quarto, examinando meu rosto a procura de
qualquer sinal de que a conversa tenha tido um mau caminho, mas não consigo sentir nada além
de alívio e quero que ele saiba disso. Quero que ele fique feliz por mim.
Ashton senta-se do meu lado mais uma vez e quando meu irmão nos olha como se
sabendo que nós temos que conversar, ele sai pela porta calmamente.
E eu beijo Ashton no mesmo instante.
— Hm, eu imagino que isso signifique que nada de ruim aconteceu com essa conversa
— ele sorri quando eu me afasto, com uma sobrancelha levantada. Sinto borboletas no estômago
de vê-lo tão perto. Elas sumiriam algum dia?
— Foi boa. Randall não tem problema nenhum com o nosso relacionamento. Na
verdade, ele disse que fica feliz… — Olho para baixo, um ponto fixo entre o pé da cadeira e o
sapato de Ashton. Franzo a sobrancelha quando vejo uma mancha vermelha na meia que ele está
usando. — O que aconteceu na sua perna?
No mesmo instante, sinto o corpo de Ashton embaixo de mim enrijecer.
Minha garganta fecha quando um pensamento cruza minha mente.
— O cachorro te mordeu?
— Não. — Ele responde rápido demais.
Meu coração começa a acelerar.
— Ele te mordeu.
Ashton me afasta, tentando abaixar a calça para cobrir a mancha. Eu não deixo, mas ele
é mais forte. Em um piscar de olhos, meus pulsos estão presos pelas mãos de Ashton.
— Eu disse que ele não me mordeu. Eu caí enquanto corria.
Não acredito.
— A última coisa que você machucaria caso caísse seria o-
Calo-me quando vejo seus olhos. Ele me encara com tanta frieza que eu sinto meu corpo
se encolher como uma flor machucada.
— Você reagiria da mesma forma se fosse eu na sua situação. Ah, na verdade, você
reagiu dessa forma. — Coloco as mãos nos ombros dele. isso parece pegá-lo de surpresa.
Aproveito a distração e me inclino para baixo e tento levantar a barra da calça mais uma vez.
Mas antes que eu possa sequer chegar perto de fazer isso, Ashton me puxa para trás com tanta
força que caio nos travesseiros. Ele se debruça sobre mim e me prende contra o colchão.
— Não se aproveite do meu amor por você para fazer coisas que me deixam
desconfortável — ele diz. — Eu disse que não é nada. Então não é nada.
Não consigo acreditar.
Ele se levanta de cima de mim e começa a se afastar, porém antes que a distância
aumente demais, eu o seguro pela manga da jaqueta. Ele atende meu pedido silenciosamente,
parando no meio do caminho. Mas, mesmo depois disso, eu ainda consigo sentir as ondas de
irritação irradiando dele.
— Me desculpa.
Isso parece afetá-lo.
Escuto um suspiro. Observo o momento em que seus ombros relaxam e ele volta para a
cadeira. A ruga furiosa ainda não desapareceu da sua testa, mas pelo menos seu olhar suavizou.
O silêncio que enche o quarto não é desconfortável. Não parece nada com o de segundos
atrás, onde a temperatura parecia ter caído dez graus, e apesar disso, eu ainda não posso dizer
que estou confortável.
Quando eu ia abrir a boca para puxar assunto com ele sobre alguma das bandas que eu
vi nos DVD's na sua casa alguns dias atrás, a porta se abre em um estrondo. Bufo antes de virar,
irritado por alguém ter me interrompido logo agora, mas quando eu me viro e encontro o olhar
miserável de Zya, minha boca seca.
Ela anda até o centro do quarto, sendo estranhamente teatral, como se quisesse contar
algo terrível, mas com um tom brincalhão para aliviar a tensão.
Zya abre a boca, então diz:
— Dos exames que a minha mãe fez em você, Evan… A chances de você voltar a andar
como antes são quase… Nulas. Seu tendão foi ferido, junto com alguns nervos responsáveis pela
sua mobilidade daquele pé e… Eu sinto muito.
O mundo parece ter se inclinado um pouco.
Quando eu viro o rosto para o lado e encontro meu reflexo no vidro, dou de cara com a
minha careta deplorável. E sinto como se meu coração estivesse sangrando.
Não confie nos ex-amigos

ão consigo parar de olhar-me no espelho.


N Uma muleta está embaixo da minha axila, protegendo o meu pé do chão
e de forçar os pontos que a mãe de Zya fez há poucas horas.
Toda essa situação é humilhante. Como que Ashton e eu vamos atrás de uma pessoa
desaparecida se eu virei um completo inútil que não consegue nem andar direito? Como eu vou
para a escola desse jeito?
Nunca mais poderei andar de bicicleta com Adam, Omar e Jasper depois da aula. Não
poderei jogar basquete com eles no verão. Minha vida está arruinada e tudo isso era culpa de um
cachorro.
Não.
Era minha culpa por não ter lembrado do cachorro e da possibilidade de que algo desse
tipo poderia acontecer.
Há tanta coisa ocupando minha mente que me sinto enjoado. Fazem horas que meu
estômago está raivoso, como se essa fosse a forma do meu cérebro me castigar por ser tão
imprudente.
E o pior de tudo é Ashton. A expressão que ele está fazendo agora me sufoca, mais
agoniante do que se afogar em mar aberto. Ele não falou comigo desde que Zya nos explicou
que, por ter arrebentado meu tendão e vários nervos, a chance de eu voltar a andar não existe.
Quando Zya disse isso, eu gostaria que ela tivesse tentado apaziguar as palavras. Dizer que
talvez algum dia com fisioterapia eu poderia voltar a como as coisas eram antes.
E agora estou amarrado a uma muleta — que será substituída por uma bengala no futuro
— para o resto da minha vida. E, embora eu saiba que não deveria pensar dessa forma… embora
eu saiba que isso, mesmo que me prive de algumas coisas no momento, não tira minha
capacidade de viver ou qualquer coisa do tipo, é impossível não sentir um gosto amargo no fim
da boca.
O rosto de Ashton se contorce mais uma vez. Ele parece chateado, pelo que eu consigo
ver do seu reflexo no espelho. Muito chateado. Como se alguém tivesse acabado de tentar roubar
alguma comida que ele tinha escondido no fundo da geladeira.
Não quero pensar nisso, mas talvez… Seria melhor se ele terminasse comigo.
Meus ombros se encolhem no mesmo momento em que aquela vozinha cruel sussurra
isso na minha mente. Um calafrio passa pela minha coluna, fazendo todas as células do meu
corpo arderem.
Não é possível que apenas a ideia de ele terminar comigo possa doer tanto. Não quero
mais pensar nisso.
— O que foi? — pergunto ao me aproximar. Ele não levanta os olhos para mim, mesmo
assim eu sei que ele se tornou consciente da minha presença. Uma dor avassaladora preenche
onde meu coração deveria estar, como se eu tivesse levado uma facada no peito, quando ele se
afasta do meu toque.
Ao invés de evoluir, nós estamos regredindo.
— Nada.
— Sempre que alguém diz isso é porque tem algo.
Os fios do soro que estão enfiados no meu braço me atrapalham na hora de forçá-lo a
levantar o rosto. A bolsa de soro está pendurada do meu lado por um cabide de metal e, como se
já não bastasse ter que andar por aí com a muleta, ainda tenho que carregar esse maldito cabide
para todos os lados.
Pelo menos vou embora hoje — mesmo que eu nem devesse estar de pé ainda. A mãe de
Zya me liberou depois de eu insistir muito.
— Não quero falar sobre isso — ele responde. Sua voz está carregada de uma falsa
arrogância, mas eu já o conheço bem o suficiente para saber que isso é apenas uma máscara. —
É só que… Isso é tudo minha culpa. Se eu tivesse-
— Não. — Minha mão rola até seus lábios. — Nada disso é sua culpa.
— Merda. — Ashton desaba na poltrona. Eu observo seu rosto cansado, as manchas
roxas embaixo dos olhos mais intensas que ontem. Há quanto tempo ele está sem dormir?
Mesmo que ele tenha cochilado mais cedo, quanto tempo ele realmente está sem dormir?
Não sou inocente o suficiente para acreditar que ele realmente estava bem antes de tudo
isso.
O pego olhando para o meu pé. Ele está analisando meu tornozelo tão intensamente que
eu juro poder sentir minha pele queimar. Sei o que está passando na cabeça dele e tento impedi-
lo de continuar se torturando sobre isso o tocando no ombro, com um leve aperto.
Para o meu desapontamento, não funciona muito.
— Olha, Ashton-
— Eu acho que nós deveríamos terminar.
Meu corpo gela.
— O quê?
Há um riso engasgado na minha garganta, como se eu estivesse me preparando para rir
quando ele disser que é uma brincadeira, mas quanto mais tempo passa — e mais o silêncio dele
se aprofunda — mais a risada se torna um aperto de arame farpado.
Sua expressão é quase cruel. Ele não mexe um único músculo para dizer essas palavras,
mesmo quando elas me rasgam no meio com tanta brutalidade que sinto minha pele queimar. Ele
não reage às minhas mãos tremendo em seus ombros.
Eu afasto as mãos dele como se sua pele fosse corrosiva e só então eu vejo o primeiro
tintilar de algum sentimento passando por seu rosto. Encaro cuidadosamente suas sobrancelhas,
que se curvam devagar, quase esperando que isso seja fruto da minha imaginação. Mas eu vejo
seus cílios tremerem. Vejo sua garganta engolindo saliva como se fosse uma pedra.
— Me diz que isso é porque você não me quer mais. — Forço as lágrimas para dentro
dos meus olhos. De jeito nenhum que eu vou deixá-lo me ver chorando de novo. No fim, é
sempre eu quem acabo sofrendo. — Porque se for por isso eu te deixo em paz, mas se for por
causa dessa merda de mordida-
— Se eu continuar perto, você vai continuar se machucando — sua voz exausta e quase
ingênua acende um fósforo de raiva no meu coração.
— Eu já te disse-
— É sempre assim. Quanto mais eu gosto da pessoa, mais ela se machuca. Primeiro, foi
aquele cara se aproximando de você no meio da noite e agora isso. Eu arruinei sua vida. Eu estou
arruinando sua vida —, ele se engasga e meu peito parece ficar em carne viva quando escuto o
som de um soluço. Uma das mãos de Ashton cobre seu rosto, como se ele quisesse se esconder
de mim. Minha raiva abaixa um pouco por causa disso, e dá lugar à agonia. — Não quero dizer
que você vai se tornar menos capaz de qualquer coisa por causa da muleta. Não quero que você
tenha vergonha disso, nunca, porque não há nada para se envergonhar. Eu só não… Quero que
você perca coisas na sua vida por eu ser egoísta demais para te deixar, sabendo que é perigoso te
manter por perto.
Tensão cai sobre nós. Não consigo abrir a boca. A miséria em sua voz me faz querer
consolá-lo, mas não sei se eu quero me aproximar. Se eu prestar atenção, quase consigo imaginar
os pedaços do meu coração caindo profundamente.
— Mas a investigação-
— Eu não dou a mínima pra essa investigação se isso significa te pôr em perigo, você
não entende?! — Ashton grita e, no pouco espaço de tempo que eu tenho para absorver isso, ele
já levantou a cabeça das mãos e encarameus olhos, com o peito descendo e subindo como um
touro. Um tom de fúria vermelha pinta suas pupilas. — Eu não vou arriscar sua vida por causa
do… Fraser.
Aquele nome escorrega pelos seus lábios como se fosse um mito. Ashton parece tão
catatônico com o que disse que eu vejo seu queixo tremer repetidas vezes. Eu tento pensar em
outra coisa, mas, espere, ele acabou de dizer que desistiria de Fraser por minha causa?
Minha mente se torna um caos, muito parecido como deve ser um avião caindo, cheio
de pessoas gritando. Meus pensamentos estão gritando. Esse é o mais próximo de um “eu te
amo” que eu vou ouvir dele, mas então, pouco menos de três minutos atrás, ele disse que nós
deveríamos terminar.
Talvez nós devêssemos. Não era isso o que eu queria?
Talvez nós sejamos caos demais.
Tempestades de fogo e sonhos impossíveis não são bons. Um deles te machuca e o outro
te encoraja a nunca mais acordar.

— Você acredita que ele terminou comigo três dias antes do meu aniversário?
O suspiro do outro lado da linha é o primeiro sinal de que Omar já está cansado de me
ouvir reclamar sobre Ashton, e eu sei que deveria mudar de assunto — depois de quase duas
horas — mas minha língua se move sozinha, antes mesmo que eu possa tentar controlar.
— Evan-
— Detalhe: ele terminou comigo antes do meu aniversário enquanto eu estava
machucado. Ótimo namorado.
— Ex-namorado.
— Que seja. — Aperto a mandíbula. — Ele provavelmente terminou comigo por causa
da bengala. Será que só eu que acho essa merda chique? Eu pareço um conde, porra. Tudo bem
que eu nunca mais vou poder andar de bicicleta como antes, ou correr, ou andar de skate, ou…
Sei lá, mas, mesmo assim, por que ele teve que terminar comigo por causa disso?
O silêncio que se desdobra sobre nós me faz notar o quão trêmula minha voz está. Eu
não consigo mais chorar, não consigo mais ficar indignado, eu só… Me sinto vazio. As
memórias dele me perseguem até em coisas simples, e quanto mais eu tento me afastar dela, mais
elas me agarram como uma maldita cobra.
— Evan. — Omar chama. Um arrepio corta minha espinha quando noto sua voz tão
séria. Ele raramente fala assim. — Tudo vai ficar bem. Com ou sem ele, eu sei que você
consegue. Você sempre foi tão teimoso que é quase impossível te imaginar desistindo agora
— Desistindo… Do quê? Esse é o ponto, Omar. Eu não tenho do que desistir,
simplesmente porque eu não tenho nada.
Outro longo silêncio. Fecho os olhos, torcendo para que ele diga algo, para que Omar
também não desista de mim.
— Isso não é verdade. Você tem seu irmão, sua mãe, seus amigos. Eu. Ashton não é a
única pessoa que existe no mundo.
Suspiro, sentindo algo dentro de mim aliviar. Mesmo que ele não tenha dito nada além
do que eu já esperava, a sensação de desabafar é maravilhosa, como se eu não tivesse que
carregar o peso da situação sozinho.
— Hm… — Omar murmura de repente. Saio do meu campo de pensamento e volto para
a realidade, prestando atenção no que ele tem a falar. — Você pode sair com a gente hoje.
Meu coração afunda para o estômago. Todo o alívio que eu senti antes desaparece
subitamente.
— Eu não posso. Zya disse que eu tenho que me mexer o mínimo possível pra não
piorar a minha perna.
— Ah… — A decepção na voz do meu amigo me deixa agoniado para fazer algo. Penso
em chamá-lo para vir aqui, com o resto dos nossos amigos, mas ele diz antes: — Cara, o que
você fez na sua perna pra ter que usar uma bengala pro resto da vida? Eu não entendi isso até
agora.
— Na verdade-
O som da campainha tocando me salva de ter que mentir para Omar. Meu pulso dispara
quando penso que pode ser Ashton, arrependido e triste por ter terminado comigo, quando eu
lembro que Randall disse que viria aqui.
Tento acalmar meu coração da amargura que é lembrar que Ashton terminou comigo.
Meu pai fica de plantão no hospital hoje — por sorte, não o mesmo em que a minha mãe está —
então Randall e eu podemos aproveitar a noite e conversar. Eu tenho bastante coisa para contar, e
acho que ele está aberto a ouvir.
Prometo a mim mesmo que na próxima vez que eu ver Omar, vou conversar sobre
Jasper com ele. Não sei o que eu vou falar, provavelmente vou ter que pensar em algo no
momento, mas eu espero que isso realmente ajude Jasper, ou que pelo menos abra uma porta
para ele poder enfrentar Omar e dizer que por um tempo, é melhor eles ficarem afastados.
Eu só espero que Jasper não se arrependa disso no futuro.
Despeço-me de Omar, avisando que meu irmão está aqui. Ajeito o cabelo antes de
descer as escadas, me arrependendo de não ter tomado banho ontem quando olho para o espelho
da sala e vejo o quão horrível eu estou.
Abro a porta sem olhar pelo olho mágico.
Em um flash, eu tombo para trás.
Uma sombra preta paira na minha frente, bloqueando a luz do poste. A silhueta me
empurra até uma parede, e quando o aperto na minha garganta parece estar esmagando minha
garganta, eu abro a boca para pedir que pare.
Sinto dedos calejados segurando o ar da minha traqueia, e eu tento manter os olhos
abertos por mais tempo, mas meu cérebro parece prestes a explodir. Minhas mãos agarram o
pulso da pessoa, tentando causar qualquer dano na pele dele, mesmo que no fundo eu saiba que é
inútil.
— Avise seu namorado — a sombra começa a sussurrar, tão baixo que parece estar
dizendo dentro da minha mente. Sinto os dedos ásperos da pessoa apertarem meu pescoço até eu
não conseguir respirar. Meus olhos estão pulsando, como se meu sangue quisesse sair por eles.
— Que é melhor cuidar de você. Eu não te matei da última vez, mas posso te matar agora.
Agarro seu pulso com o máximo de força que consigo. Minha boca está aberta o
suficiente para a saliva escorrer. Não é uma cena bonita, mas eu não me importo com isso agora.
O que me importa é forçar meus pulmões a aguentarem mais um pouco.
De repente, um flash de luz brilha através das minhas pálpebras. Por um segundo, estou
certo de que morri, mas noto o que realmente aconteceu: aquela pessoa soltou meu pescoço.
O alívio é tanto que sinto dor. O gole de ar que preenche meu pulmão vem com tanta
força que meu corpo inteiro arde.
— Ashton deveria cuidar tão bem de você quando cuida daquela garota. Ou será que ele
não se importa tanto assim? — a sombra diz, acertando de forma certeira uma farpa no meu
coração.
Lembro-me de tudo o que aconteceu mais cedo e, conforme a onda de memórias me
invade, meu corpo começa a doer. Primeiro, é minha garganta, depois, meus pulmões que tentam
se acostumar com o ar outra vez, e então, meu calcanhar, que arde como o inferno enquanto tento
me afastar daquela pessoa.
Consigo levantar a cabeça. Meu pescoço parece estar sendo rasgado por garras quando
eu faço isso; minha garganta bombardeando meu corpo com a sensação de mil agulhas me
pinicando, mas, mesmo assim, me recuso a deixar essa pessoa me humilhar sem eu ao menos ver
seu rosto.
Me arrependo em meio segundo.
Uma vez Ashton me contou como era ver alguém sob os efeitos daquela droga; ele disse
como a pessoa fica como um animal selvagem, mas nada do que eu ouvi tinha me preparado para
ver isso.
Essa coisa na minha frente nem sequer deveria ser considerada humana. Seus olhos são
tão malignos que eu me encolho sobre o chão, desejando sair desse lugar. As pupilas estão tão
dilatadas que quase cobrem toda a íris. Não há mais consciência nessa pessoa: é um selvagem.
Serval como um leão, mas maligno como um humano enfurecido.
O brilho de seus olhos parece vermelho do mesmo tom que o inferno deve ser.
Ele ri quando me vê observando. Ele deve sentir meu medo. Deve se deliciar com o meu
terror.
— Ashton precisa cuidar melhor das coisas dele. Ou é você, ou Fraser. Me mandaram
aqui para te assustar, não matar, mas saiba que essa é a última vez. —Uma risada aguda preenche
a sala. Os pelos do meu corpo se arrepiam.
Will se vira e vai embora.
Eu ainda estou tentando entender o que aconteceu.
Meu corpo treme com tanta força que parece que o mundo está em caos, mas sei que
não é o mundo. Sou eu. Eu estou em caos.
Os olhos letais e cruéis de Will não saem da minha mente e minha pele ainda tem
espasmos ao lembrar das mãos dele me apertando como se eu fosse um inseto. A lembrança do
que aconteceu antes dói como puxar a haste de uma flecha do meu coração, porque eu sei que
perdi um amigo. Sei que o Will que eu conhecia não existe mais e, por mais que eu não fosse tão
próximo dele quanto Hazel, a agonia de perdê-lo machuca mais do que eu achei que machucaria.
Tento não lembrar disso, mas minha mente não me deixa. Não consigo deixar de
lembrar quando Will aparecia e andava de bicicleta com a gente. Ou quando ele, depois de ter
recebido o salário do emprego de meio período, comprava sorvete para mim e me convidava para
jogar videogame na casa dele.
Sinto vontade de vomitar.
Agora eu entendo o terror de Ashton em pensar que meu pai poderia ser o cientista que
criou essa droga. Aquilo é diabólico. Nenhum ser humano deveria ter aquele tipo de raiva. Como
alguém é capaz de criar isso e viver como se nada estivesse acontecendo?
Ainda mais com alguém como meu amigo.
Como meu pai foi capaz de fazer isso?
Aperto os braços, encolhendo meu corpo no meu próprio abraço. Sinto minhas
entranhas pesarem dentro de mim.
Sinto-me patético.
Ashton deveria estar aqui. Deveria me confortar e dizer que ficaria tudo bem. Deveria
brigar comigo dizendo “se você tivesse deixado eu te ensinar a mexer naquela arma, nada disso
teria acontecido” com a sua voz doce, enquanto seu polegar acaricia minha bochecha e seus
braços me apertam.
Escondo o rosto entre meus joelhos, sentindo um repentino puxão no meu estômago. A
lembrança de que nada disso aconteceria é amarga, porque Ashton não é mais meu namorado.
Não sei quanto tempo se passa comigo encolhido no mesmo lugar que Will me deixou.
Não consigo me levantar para sair daqui e, mesmo quando a campainha toca pela segunda vez,
não consigo fazer nada além de levantar o rosto.
Sei que se for outro capanga do cara atrás de Fraser, ele vai entrar assim que perceber
que a porta não está trancada. Outro desses homens vai me achar encolhido em um canto, vendo
as marcas de mãos no meu pescoço que seu companheiro deixou, então vai terminar o serviço.
E eu vou morrer.
O que eu tenho tanto a perder? Minha mãe está em coma, Ashton terminou comigo, meu
pai é um psicopata maluco que cria monstros.
Espere.
Se meu pai realmente for esse cientista que Ashton disse, ele não deveria ter parado de
fabricar a droga há meses? Ashton contou que o cientista também quis se afastar porque a pessoa
que está atrás de Fraser queria injetar a droga no filho dele, mas então por que pessoas de agora,
que não eram assim antes, então aparecendo desse jeito?
O que está acontecendo?
O cientista pode ter decidido voltar a ter relações com esse homem? Por que fazer isso
agora?
Vingança. Uma voz parecida com a de Ashton sussurra na minha mente. Ele pode ter
achado um novo jeito de conseguir o que quer.
— Oi!
Sou tirado do meu limbo de pensamentos com o puxão no meu ombro. Encolho-me
como um filhote assustado, tentando tirar aquelas mãos de mim, mas quando o ar paira quieto e
ninguém tenta me estrangular, abro os olhos para ver quem está aqui.
Randall.
Alívio enche meu peito como um tsunami, e antes que eu tenha noção do que estou
fazendo, agarro meu irmão pelo pescoço e o abraço com tanta força que escuto suas costas
estalarem.
Minhas mãos estão tremendo mais uma vez.
— O que…?
Um soluço sacode o meu peito sem a minha permissão. No instante seguinte, Randall
me aperta com a mesma intensidade que eu o abraço.
O cheiro do meu irmão e o abraço é o que me traz de volta para a realidade. Desde que
Will foi embora, minha mente não estava aqui. Não realmente. Randall me faz sentir como se eu
finalmente tivesse chego em casa, mesmo que eu nunca tenha saído dela.
— O que aconteceu? — Randall sussurra, cheio de aflição.
Tento abrir a boca para falar, mas minha voz não sai. Aperto o meu irmão com mais
força. Will seria capaz de, mesmo são, fazer aquilo comigo?
— Evan. — Randall me chama mais uma vez, deslizando a mão pelo meu cabelo
fraternalmente. Sinto meus olhos arderem novamente. — O que aconteceu?
— Eu não sei.
— Como assim?
Coloco distância suficiente entre nós para que ele possa olhar para mim. Eu observo o
momento em que suas pupilas abaixam na direção do meu pescoço. Observo quando sua
expressão se contorce como se ele estivesse sendo torturado por chibatadas.
— O que aconteceu? — Randall repete. Eu sinto o peso das suas palavras no ar, o peso
da raiva enchendo seu peito. Raiva por alguém ter feito isso comigo.
— Um cara… Uma pessoa entrou aqui e-
Eu paro, desviando o olhar para um canto distante. Randall pega meus ombros e força
minha atenção para ele. Eu nunca vi o rosto do meu irmão tão sério.
Pareço tão pequeno perto dele.
— Quem?
— Não… Não sei — não quero falar o nome de Will. Não quero nunca mais ter que
falar o seu nome.
Suas sobrancelhas franzem tão fortemente que eu estremeço.
Abro a boca para responder, mesmo antes de ele repetir a pergunta, mas meu celular
toca. E eu quase desmaio de alívio.
— Eu vou atender. — Tento me levantar com dificuldade e só consigo quando Randall
me ajuda a levantar segurando-me pelos cotovelos, mas, antes que eu possa me distanciar, meu
irmão segura meu braço. Tenho vontade de dizer a ele para parar, que a última coisa que eu
quero agora são esses toques superprotetores, mas sei que ele está com raiva.
— A gente conversa sobre isso depois.
Balanço a cabeça e me afasto lentamente, puxando meu braço para longe. Caminho
lentamente até o andar de cima e busco pelo celular que não parou de tocar por todo esse tempo.
O acho no meio das cobertas, e a surpresa acelera meu coração deve ter sido porque isso era a
última coisa que eu esperava acontecer — pelo menos hoje.
— Oi. — A voz do outro lado da linha diz. Aquela voz eletriza todos os pelos do meu
corpo, e me sinto um idiota por sempre reagir a qualquer coisa que venha dessa pessoa. Mesmo
em uma situação como essa.
Imagino seus olhos claros e caóticos me olhando. Suas unhas pintadas segurando minha
mão. Imagino a reação dele caso conte sobre o que aconteceu hoje.
Esse ataque foi cruelmente bem planejado. Enviando justamente alguém que eu
conheço, apenas para eu contar a Ashton e ele tentar fazer algo irracional para me proteger. Para
provar mais uma vez que se importa comigo.
Mas ele se importa?
Não deveria dizer a ele para ver sua reação? Para machucá-lo, como ele me machucou?
— Ei. — Ele repete.
Meu corpo perde o equilíbrio por um instante. Manchas pretas e roxas borram minha
visão, pela minha pressão abaixando de repente.
— Ei — respondo. — Por que você me ligou?
O silêncio que ele segura por segundos faz minhas mãos começarem a suar. Me sento na
beira da cama, sabendo que essa conversa vai ser longa.
— Eu queria saber se você se preparou para a escola amanhã.
Merda. Escola. Esqueci completamente disso.
Sinto vontade de rir por ter sido Ashton quem me lembrou.
— Eu na verdade nem tinha pensado nisso.
Outra pausa silenciosa.
Por mais estranho que possa parecer, não me sinto desconfortável. Ashton e eu
terminamos há alguns dias e eu fiquei horas pensando no que dizer caso nós nos encontrássemos
de novo. Planejei muitas coisas, mas agora que eu penso nelas, parecem patéticas.
— Preparado para o inverno?
Ele solta uma risada que puxa um acorde do meu coração.
— Nem ferrando.
— Nem pro Halloween? — Sei que ele adora Halloween. Mesmo se eu não o
conhecesse como conheço, não seria difícil de adivinhar. O instagram dele é cheio de fotos de
festas de halloween e máscaras de caveiras e maquiagens um pouco realistas demais.
— Pro halloween, sim.
Forço uma risada a sair do meu peito. Minhas mãos ainda tremem e eu mal seguro o
celular no ouvido. É bom falar com ele depois desse tempo, principalmente porque eu achava
que nós tínhamos acabado de verdade dessa vez. Quer dizer, talvez a gente tenha. Não é porque
Ashton me ligou que nós vamos voltar a namorar repentinamente.
Por mais que eu queira.
— Como está a sua perna? — Ele interrompe o silêncio. O escuto pigarreando logo em
seguida. — Eu te liguei porque… Fiquei preocupado.
Uma rajada refrescante ilumina minha pele. Preocupado comigo.
— Por quê?
— Bem, talvez porque você foi mordido por um cachorro com raiva?
— Ah.
— Ah. — Ele me copia, parecendo indignado pela minha falta de reação. —E também
porque eu tenho notícias.
Meu bom humor despenca tão rápido que eu quase sinto a temperatura diminuir ao meu
redor.
Eu não preciso escutar o restante para saber que é uma coisa ruim.
— O quê? — pergunto, mesmo que no fundo eu não queira saber.
— Eu recebi outro e-mail. Poucos minutos atrás. Com as seguintes letras em código
Playfair. DF FS EF OI SE SG SN GG IR SG — Ashton soletra as letras, uma por uma. Então faz
uma pausa. — Tomei liberdade para falar com Charlie e ele traduziu isso como “não confie nos
ex-amigos”.
Minha mente automaticamente viaja em direção a Will. Será que essa pessoa dos e-
mails está nos vigiando? Será que estava falando sobre o que aconteceu hoje?
Seja o que for, faz os pelos do meu antebraço levantarem.
Só você

quê?
—O Essa é a única coisa que sai da minha boca depois de escutar o que
Ashton diz. Um buraco cresce no meu estômago e quase fico sem respirar por tempo demais.
Engulo em seco, sentindo que minha saliva repentinamente virou cloro.
Minha cabeça gira de ponta cabeça. Não sei mais se devo contar a ele sobre o Will. Não
quero que Ashton faça nada irracional, mas manter segredo depois de escutar o que ele disse me
dá a sensação de estar esfaqueando-o pelas costas.
— …isso.
— Desculpa, o quê?
O suspiro do outro lado da linha me traz para a realidade.
— Você escutou o que eu disse?
— Não — admito. Minha cabeça estava flutuando para longe daqui, calculando todas as
possibilidades de tudo isso acabar em uma grande bola de merda.
— Eu disse que eu vou falar com a Ithaly amanhã. Acho que um desses amigos que a
gente não pode confiar é alguém que eu conheço — repete. Eu quase visualizo seus olhos me
olhando. — Eu tenho algumas coisas pra te contar. Eu queria saber se você quer vir… comigo?
Essa é a primeira vez que eu o escuto parecer tão tímido. Não envergonhado. Tímido.
Como quando você fica sem jeito e quer se bater por isso, porque na sua cabeça você deveria
estar confiante, mas quando sua voz sai da garganta, é como se você tivesse acabado de aprender
a falar pela primeira vez.
É como se eu e Ashton estivéssemos descobrindo gostar um do outro de novo.
Mas espere, ele me chamou para ir com ele para continuar atrás da verdade sobre o
Fraser? Mesmo depois de ter terminado comigo? Ou será que isso é apenas uma desculpa para
continuar me vendo?
Meu estômago parece ter levado um soco.
Se Ashton não se importa de me ver depois de tudo isso, significa que ele não se
importa tanto assim? É possível ele ter superado nossos dois meses juntos, tão fácil? Mesmo
depois de dizer todas aquelas coisas, mesmo depois de me escutar dizer que amo ele?
Sinto a repentina vontade de bater em algo.
Como ele pode ter fingido tudo isso? Como ele pode ter feito isso comigo?
Decido que não vou contar sobre Will. A grande parte do meu coração que ainda o ama
solta um espasmo de agonia, como se eu ainda estivesse traindo ele. Mas a outra parte, a que está
pouco a pouco se desgastando, faz meus punhos se fecharem e faz minha boca permanecer
fechada.
Se ele consegue lidar com tudo isso tão bem, eu também posso. Eu posso vê-lo
pessoalmente e fingir que meu peito não arde. Posso fingir que meus dedos não coçam para tocá-
lo.
— Eu vou com você.

Não tinha parado para pensar nisso, mas fazia algum tempo desde a última vez que eu vi
Max ou Adam ou Sally ou Jasper ou… Todos os meus amigos.
Quando piso no colégio para o meu último ano no ensino médio, é como pisar em um
lugar totalmente novo. Está esfriando, por mais que muita gente ainda considere essa época do
ano como verão. A folhagem em volta da escola começa a amarelar e… Bem, Ashton não está
aqui.
Para ser sincero, essa última parte não faz tanta diferença. Ele não costumava ficar
comigo pela escola, a não ser quando a gente se esbarrava no refeitório e ele batia no meu ombro
como um daqueles garotos que quer arranjar briga, mas que eu sabia que era uma provocação
secreta que nós fazíamos discretamente para não atrair atenção de ninguém.
O que eu vou sentir falta é de ter a certeza que eu vou poder vê-lo todos os dias para
limpar aquelas malditas salas mofadas.
Mas o elefante gigantesco morando em cima das minhas costas desde ontem — quando
eu recebi a ligação dele me pedindo para continuar nossa investigação, como amigos — parece
confortável demais no lugar em que está. E eu tenho quase certeza que ele vai permanecer onde
está por um tempo.
Omar é o primeiro a me ver. Ele sorri para mim e eu não consigo controlar a vontade de
sorrir de volta. Meus amigos estão juntos no campus da escola, em uma roda. Depois de Omar se
virar para mim, todos levantam os olhos na minha direção. Sinto o nervosismo encher meu
estômago, minhas mãos tremendo de ansiedade.
Charlie abre um espaço para mim na roda e eu me encaixo do lado dele e de Max.
Deus, eu não fazia ideia do quanto tinha sentido falta disso. De simplesmente vir para a
escola e vê-los, de ter um lugar para pertencer. De ver todos eles contentes por eu finalmente ter
voltado. Por mais que eu esteja andando com uma muleta. Que eu tenha marcas no meu pescoço,
muito provavelmente alguns problemas emocionais e um coração quebrado para lidar.
— Ei. — Eu digo depois de um tempo em silêncio.
Jasper passa um braço em volta dos ombros de Omar, sussurrando algo no ouvido dele,
alto o suficiente para eu ouvir:
— O otário voltou.
— Ei, Jasper, cara. Bom dia pra você também — sorrio, me sentindo estranhamente
feliz em ser insultado.
Apesar do xingamento, Jasper sorri tão grande que eu vejo o rosado de sua gengiva.
— É bom ter você de volta com a gente — Sally diz. Ela está com as bochechas
cheinhas e vermelhas. Parece que pegou muito sol e agora está toda queimada. — Quer dizer, na
escola. É bom ter você com a gente na escola de novo.
— Eu só espero que você não quebre meu nariz outra vez, cara — Jasper brinca, saindo
do lado de Omar e dando soquinhos na minha cintura. Meu corpo treme de cócegas e eu tropeço
com as muletas. Quase caio para trás, meu pé direito já no ar, quando Max e Charlie me seguram
dos dois lados.
— É melhor guardar essas brincadeiras pra quando o Evan tiver aprendido a controlar
melhor essas muletas — Max fala, tão baixo que parece um sopro de vento. Não preciso olhar
para o seu rosto para saber que ela está preocupada. Sua voz diz por si só.
O fato de nenhum deles estar surpreso é uma prova de que Omar contou sobre o que
aconteceu. Eu menti. É claro que eu menti. Disse que o cachorro — que não tinha raiva — me
mordeu quando eu e Ashton tentamos brincar com ele.
Nunca senti tanto alívio na minha vida quanto sinto agora, de saber que nenhum deles
ficou com raiva por eu ter contado apenas para Omar. Eles estão todos sorrindo para mim e
soltando piadas sujas de vez em quando, tentando me alegrar e esquecer que eu preciso do dobro
de esforço para poder andar na mesma velocidade que eles.
— Então… — Jasper começa depois de Sally ter perguntado de como estava minha
mãe. Meu coração aqueceu com o pensamento deles se importando tão fielmente comigo. —
Como vai seu namorado?
Isso me traz de volta para a dura realidade. Parece que fui atingido por um tijolo.
Minha saliva parece ter se tornado sólida, impossível de passar pela minha garganta.
Tento ganhar tempo para pensar na resposta ajeitando as muletas e por sorte ninguém parece
desconfiar.
Então tomo a decisão que provavelmente vai me ferrar no futuro:
— Vai bem.
Jasper me mostra um sorriso travesso. Porém, no exato segundo em que meu amigo ia
dizer algo sobre isso, há uma movimentação.
Adam se levanta e corre.
Como um dardo.
Ele corre tão rápido que eu quase sinto inveja, atravessando o campus em um segundo
em direção à escola. Olho curioso na direção dos meus outros amigos, principalmente Sally, mas
ninguém segura meu olhar por tempo o suficiente para eu fazer alguma suposição.
— Eu disse… Alguma coisa?
— Não, ele- — Sally se interrompe, esfregando uma mão na outra. Se eu não tivesse
quase o mesmo costume de apertar minhas pulseiras quando fico nervoso, não teria notado isso.
Aconteceu alguma coisa e eles estão evitando me contar. Será que foi o pai dele? — Eu devia ir
atrás dele.
Max faz um sinal discreto do meu lado, e nem um segundo depois, Sally corre atrás do
namorado, mais rápido do que eu imaginava que poderia.
— Voltando ao assunto…
Jasper continua me fazendo algumas perguntas, coisas mais rotineiras do que eu
imaginava que seria. Ele parece realmente interessado nas minhas respostas, de vez em quando
mexendo a cabeça e concordando com algo que eu digo, mas consigo sentir o ar pesado que
permanece em cima de nós desde o minuto em que Adam correu, como nuvens escuras se
aproximando.
A primeira hora passa tão lentamente que se torna tediosa. Os primeiros dias de aula são
assim. Não há matéria, não há trabalho. Apenas apresentações e boas-vindas a novos alunos e
professores, o que, na verdade, é muito bom na maioria das vezes. Quem não gosta de ir à escola
e não fazer absolutamente nada? Todo mundo.
Quero dizer, todos menos eu. Se fosse agosto do ano passado, teria ficado mais do que
feliz em colocar minha cabeça na minha mesa e dormir o resto da manhã. Mas isso foi antes de
eu conhecer Ashton. Agora, se eu fizer isso, um milhão de coisas vão borbulhar na minha cabeça
e eu vou começar a hiperventilar, porque, merda, minha mãe está em coma, eu perdi o
movimento em um dos meus pés, meu pai está louco e-
— Eu sou Will, prazer em conhecê-lo.
Minha mente volta à realidade quando ouço essa voz.
Sinto arrepios por todo o corpo, e quando levanto os olhos para encontrar a pessoa que
disse isso, meu estômago se revira ao encontrar os olhos de Will fixados em mim, como um
predador brincando com a comida antes de matá-la.
Preciso de cinco segundos para voltar a respirar. Meus ombros ficam tão tensos que eu
pareço uma rocha.
Minha cabeça vai explodir.
O que esse cara tá fazendo aqui?!

Pelo resto de todas as aulas, pude sentir os olhos de Will em minha nuca. É claro que ele
se sentou atrás de mim; em um lugar estratégico onde ele ganha a visão de cada um dos meus
movimentos, enquanto eu não posso ver nenhum dos dele.
Ainda estava tentando entender como ele fez isso. Como ele pôde entrar no mesmo
colégio que eu do dia para a noite, aparecer na minha sala e sorrir como se nada tivesse
acontecido? Não é possível que só eu veja o quão faminto por sangue Will parece estar.
Faço o meu melhor para não me esconder atrás de Charlie, mas é difícil. Will se move
atrás de mim de vez em quando. Aprendi a reconhecer o som de suas botas militares. Se ele
quisesse, poderia me desmaiar de dor só forçando aquela sola no meu calcanhar.
Balanço a cabeça.
Que tipo de pensamento é esse? Estou imaginando minha própria desgraça?
— Ei, cara. — Charlie me chama.
Eu percebo que ainda estou inclinado sobre ele, em silêncio.
Engulo seco. O formigamento na minha pele que reconheço como o olhar penetrante de
Will em minha direção retorna. Ele está olhando para nós, analisando o que estou tentando fazer.
Meu estômago parece prestes a explodir. Não sei como vou sair daqui com ele me
rondando desse jeito. Quer dizer, ele parece estar esperando o momento certo para vir para cima
de mim e eu não posso dizer que sentimento tenho em relação a isso, além de pânico. Will
sempre foi alguém agradável, eu gostava da sua companhia. Pensar que agora parece que todos
os ossos do meu corpo poderiam quebrar com único olhar dele me deixa enjoado.
Quanto mais me aprofundo nessa história toda, mais ela parece tirar coisas de mim.
Primeiro, minha mãe. Segundo, Ashton. O que vem depois disso?
Mas mesmo com todo o perigo vindo para comer minha bunda como um tubarão
faminto, não vou desistir. Independentemente de quantos membros eu perder, quantas… pessoas
partirem, vou descobrir o que está acontecendo. E vou descobrir a verdade sobre Fraser, com ou
sem Ashton.
O sinal toca, fazendo meu coração saltar tão forte dentro do meu peito que sinto tontura.
Devo ter parecido muito ruim, porque Charlie me encara com aqueles olhos preocupados de
novo.
É hora de ir para casa. Eu deveria estar sorrindo e comemorando por ter sobrevivido
meu primeiro dia de escola do último ano do ensino médio, mas não me sinto feliz. Sinto meus
órgãos doendo dentro de mim, sinto meu corpo pesar meia tonelada.
Muitos alunos já saíram, mas Will permanece. Não escutei o som das suas botas. Ele
está esperando. Por mim.
Estou tão fodido.
— Evan. — Meu amigo passa a mão na frente dos meus olhos. Merda, agora ele
realmente parece preocupado. — Você vai vir pra casa do Omar hoje?
— Não, hoje eu vou ver o-
Eu calo a boca quando percebo o que estava falando.
— Ah. — É tudo o que ele diz e meu coração dói ao ver o rosto de Charlie. Eu deveria
parar de dispensar os convites deles, sei disso. Sinto-me um merda toda vez que faço isso,
principalmente porque meus amigos parecem tão ansiosos para ter minha companhia, mas
Ashton…
Punk de merda que nunca sai da minha cabeça.
Limpo a garganta, ignorando o nó que se formou no fundo da minha garganta.
— Eu vejo vocês amanhã, pode ser? Eu-
— Amanhã a Sally vai sair da cidade.
Meu sangue gela.
— O quê?
Charlie tira os olhos de mim, olhando as janelas. Ele parece estar pensando se deveria
me contar o resto, com o queixo trêmulo. Eu quase sinto as ondas de tristeza saindo dele. Quase
sinto a vontade de chorar que ele está segurando.
Quero levantar e abraçá-lo, mas eu não consigo.
Escuto o som das botas. Encolho-me no mesmo instante, mas reparo que elas estão se
afastando. Quando levanto o rosto, vejo o último vislumbre de Will antes de ele sair da sala.
Meus ombros relaxam com tanta força que quase despenco na cadeira.
— Ela vai embora porque o avô dela morreu e os pais não querem deixar a esposa dele
sozinha — a voz de Charlie me suga do pequeno segundo de alívio. Na verdade, isso torna tudo
pior. A dor volta como um soco mil vezes mais intenso. Sally vai embora. — Hoje vai ser nossa
despedida.
Merda.
Por que essas coisas continuam acontecendo? Por que eu tenho que ficar no meio de um
fogo cruzado todas as vezes?!
— Evan… — Charlie soa cheio de incerteza. — Você não precisa ir se não puder. A
Sally vai entender-
— Não. — O interrompo, me sentindo cada vez mais enjoado de escutá-lo. Enjoado de
mim mesmo. Eles estão se esforçando tanto e eu não estou… Fazendo nada. — Eu vou. Se é o
último dia dela aqui, não tem nada mais o que importa.
Nem Ashton e seus olhos caóticos.
Charlie foi para casa. Combinamos de nos ver na casa da Sally às 18h. A mãe dela vai
fazer um jantar de despedida. Não tive coragem de avisar Ashton que não poderei vê-lo e passei
vinte minutos encostado em uma cerca nos fundos da escola depois que a última aula acabou,
vendo a brisa agitar as folhas de uma árvore e um esquilo se enfiar na caçamba de lixo para achar
comida, enquanto um passarinho pousa em cima dos fios do poste em cima da árvore.
O cheiro da gasolina se mistura ao doce perfume de algumas garotas que passam na rua
e à fumaça do cigarro nos meus dedos, tão silenciosamente agradável, que cada vez que fecho os
olhos, minha mente quase adormece.
Eu meio que quero que algum deus grego apareça para me sequestrar até o Olimpo, e
me forçar a servir néctar dos deuses pro resto da eternidade. Mas nada disso acontece, é claro.
Ao invés disso, ouço passos. A princípio penso ser um aluno vagando por aí, com a
cabeça cheia de problemas como eu, tentando encontrar um lugar para se acalmar, mas conheço
esse som.
São botas militares.
Juro que tento não parecer tão miserável quanto eu realmente sou, mas meu primeiro
instinto é largar minhas muletas e tentar correr.
Não dou três passos antes de cair no chão.
Tenho vontade de chorar de humilhação quando Will se aproxima, deixando escapar
uma risadinha como uma criança perturbada.
Não me atrevo a levantar a cabeça. O que quer que ele faça comigo, prefiro não ter seu
rosto impresso em meu cérebro como minha última visão antes de morrer.
— Você é mais patético do que eu imaginava — Will zomba. Ele cutuca meu pé com a
ponta da bota. Suas palavras doem em uma parte específica do meu coração enquanto lembro-me
das vezes em que conversávamos, quando Hazel estava ocupada terminando de se arrumar, e ele
dizia que, apesar de tudo, eu era alguém importante e incrível. Alguém que ele ficava feliz de ter
conhecido. — Eu não achei que seu pé estava tão ruim.
Escuto o som da roupa dele. A presença detestável de Will para ao meu lado, com ele
agachado perto de mim, sorrindo enquanto tira uma mecha da franja dos meus olhos. Cuspo na
bota dele.
Essa é provavelmente a pior decisão que eu já tomei na vida.
Em um piscar de olhos, seus dedos pressionam minha bochecha contra o chão. Minha
pele arde quando as pedrinhas pontudas se afundam na carne e eu tenho que fazer muito esforço
para não permitir meus olhos de lacrimejarem.
Então ele esfrega a parte molhada da bota no meu rosto. Sujeira entra no meu nariz e
boca e espirro, tentando empurrar o calcanhar de Will para longe, mas isso só o faz rir.
— Isso é pra você parar de ser um mimado arrogante — Will roça a ponta da bota nos
meus lábios. Meus dentes fecham para ele não avançar mais do que isso. — Tudo bem. Resista o
quanto você quiser, não vai adiantar.
— Por que você está fazendo isso?
— Ah, aí está a pergunta de ouro — Will abaixa-se de novo. Ele enche a mão com um
punhado do meu cabelo e me puxa para cima. Minha cabeça dói. Meu rosto dói. Minha
dignidade dói. — Você vai achar o endereço da sagrada Ithaly —ele diz isso como se não fosse
nada, limpando meu rosto com tanta delicadeza que fico confuso. Então meu pulso aumenta
quando raciocino o que ele me pediu.
— Por quê? — Há tanta agonia na minha voz que eu me assusto. — Eu não sou o
suficiente? Por que você tem que fazer ele sofrer mais ainda?
Will sorri. Sinto arrepios com essa visão. Um sorriso que corta suas bochechas com
tanta força que eu sei que a pouca sanidade que deve restar em seu cérebro está sumindo. — E
quem disse que se algo acontecer com você Ashton sofrerá? Quem colocou nessa sua cabecinha
que você é mais importante que aquela garota?
O sorriso aumenta. Will está praticamente rosnando agora. Saliva escapa de sua boca e
molha meu rosto. Meu coração pesa como chumbo apenas com o peso das suas palavras e de
repente tudo o que quero fazer é chorar.
— Você deve ser louco se acha que eu vou te falar onde ela está. Eu nem sei-
— Ei.
Ah, graças a Deus, alguém para me salvar. Mas, espera, eu conheço essa voz.
Em um flash, antes que eu possa virar o rosto e olhar para Ashton, Will gruda as mãos
na minha nuca e me puxa para cima. Achei que ele ia me bater de novo, mas ao invés disso…
O tempo para.
Will me beija.
Tento me afastar dele, quase mordendo um pedaço daquela língua nauseante, sinto um
aperto no meu pé. Eu quero abrir a boca para gritar, mas a boca de Will me impede de fazer isso.
Por um instante, tudo o que eu quero fazer é deitar naquele chão e berrar até minha garganta estar
em carne viva.
Acho que Ashton grita de novo, mas não consigo prestar atenção. A presença daquela
pessoa sobre mim é como ser esmagado por um caminhão e só quero que ele me solte logo. Os
dedos de Will se afundam na minha pele, fazendo minha nuca arder. Não sei que cena Ashton
deve estar vendo, mas Will está tentando fazer como se fosse um beijo apaixonado.
Eu não consigo me soltar. Sei que não lutar vai parecer como se eu tivesse me rendido,
mas Ashton terá que entender que meu corpo não tem forças. Que aquela língua nojenta tentando
se enfiar entre meus lábios é um aviso de que eu devo ficar quieto caso não queira sentir dor.
Will se afasta alguns centímetros. Os lábios dele ainda roçam nos meus, e, quando eu
tento afastar minha cabeça, Will força o aperto na minha nuca.
— Eu sei onde sua mãe está.
Isso é tudo o que ele diz antes de se afastar.
Eu mal consigo respirar.
Meu pulmão está ardendo. Isso foi uma ameaça, sei pela forma que sua voz soou baixa o
suficiente para apenas eu escutar. Se eu não achar onde Ithaly mora, o que vai acontecer com a
minha mãe?
O que eu-
— Evan — a voz dele surge ao meu lado, arrancando-me daquela linha de pensamento.
Meus olhos focam na sua figura e permito-me sentir uma breve sensação de alívio. Ashton olha
para Will como se estivesse prestes a estilhaçá-lo e, caso ele fizesse isso realmente, não sei se me
importaria. Não depois do que acabou de acontecer.
Eles parecem estar conversando, discutindo. Tento focar nas vozes, mas tudo parece
abafado, como se eu estivesse embaixo d'água. A saliva de Will na minha boca parece veneno, e
a qualquer segundo eu sinto que vou vomitar.
— Quem é você? — Finalmente ouço Ashton perguntar. Sua voz mergulhada em
desprezo.
A risada que vem de Will não é amigável.
— Quem eu sou?
Eu quero abrir a boca para impedi-lo de dizer o que ele vai dizer. Will desvia o olhar na
minha direção, como se quisesse ver o terror no meu rosto por saber que ele falará algo
desastroso.
Noto que Ashton se agachou na minha frente, colocando-se como uma muralha, entre
mim e Will. Eu vejo suas costas, sentindo o cheiro de lavanda que parece o melhor tipo de
morfina para a dor que estou sentindo emocionalmente.
— Não olhe para ele.
— Não olhar pra ele? O que você acha que ele é? Sua posse? — Will zomba.
Isso faz os ombros de Ashton tensionarem. Uma de suas mãos serpenteia na minha
direção, como se ele estivesse pronto para sair correndo e me levar junto.
Coloco minha mão perto da dele. Parece como era no começo, só que mil vezes mais
intenso. Meus dedos nem mesmo o tocam, mas a sensação da pele de Ashton ao lado da minha é
o suficiente para me desarmar no chão. Todo o meu corpo amolece e eu quase desmaio do quão
rápido meu coração começa a pulsar.
— Não olhe pra ele assim.
O ar fica silencioso. Will não se mexe pelo que parecem vários segundos. Ashton ainda
está me escondendo atrás de suas costas, por isso eu não consigo ver muita coisa, mas quando
ouço o som de botas militares se distanciando, adivinho que Will está indo embora.
— É uma pena que eu não achei seu namorado antes de você. — A voz de Will está
longe, mas eu me sinto doente ao ouvi-la. Está falando com Ash. Caso auras tivessem cor física,
Ashton estaria em uma bolha vermelha de fúria. — A boca dele é uma delícia.
Minutos se passam. Talvez horas. Quem sabe dias. Tudo fica em silêncio e é só assim
que sei que Will finalmente partiu.
Ashton continua no mesmo lugar, respirando pesado, como um touro. Eu não sei se
deveria dizer algo, então estico minha mão na direção da dele. Só que, antes mesmo que eu tenha
tempo de tocá-lo, Ashton se joga contra mim e me abraça com tanta força que solto um
resmungo involuntário.
Seu coração batuca tão forte que consigo senti-lo contra o meu próprio peito. Ficamos
nessa posição por não sei quanto tempo, mas Ashton se recusa a diminuir o aperto. Em certo
momento, devolvo o abraço, enterrando meu rosto em seu pescoço, sabendo que seu cheiro de
lavanda conseguirá me acalmar rápido o suficiente.
Após algum tempo, Ashton finalmente se afasta, embora ainda permaneça perto. Ele
prende minhas bochechas entre as palmas das suas mãos e me olha, analisando todo o meu rosto,
centímetro por centímetro, antes de dizer:
— Ele tocou em você — Ashton sussurra. Uma dor avassaladora percorre o meu
coração com o pensamento que ele possa ter nojo de mim.
— Me desculpa — digo, observando a forma como seus olhos viajam em direção aos
meus lábios quando pronuncio as palavras. Ele franze as sobrancelhas com tanta força que ondas
de rugas se formam em sua testa.
— Você não tem que me pedir desculpas, Evan. Não foi culpa sua. Não… Eu não sei o
que aconteceu, não sei o que vocês são, mas… — Ashton parece engolir a própria língua por
vários segundos em silêncio. — Se você… Merda, você não tem que me pedir desculpas. Não se
preocupe.
Ele me abraça novamente.
Ciúmes. Isso é ciúmes?
Quero dizer para ele me beijar. Para limpar o gosto de Will com seus lábios. Mas eu não
faço isso, porque nós não estamos mais juntos. E a única coisa que eu vou ter dos beijos dele, são
apenas as lembranças.
Levanto-me do chão, agradecendo quando Ashton me segurou pela cintura até eu pegar
minhas muletas.
Eu suspiro quando os braços dele me cercam. Estava tão concentrado em surtar por ter
ele de perto novamente que mal reparo no quanto meu pé está doendo.
— Ele saiu sem me responder. — Ashton pergunta do meu lado, ainda me segurando
com força. Percebo seus dedos agarrando minha roupa, e tenho certeza de que não é porque ele
quer me firmar mais no chão. — Quem era ele?
— Um… Amigo.
Sei o quanto essa resposta vai soar suspeita. Seus músculos tensionam atrás dos meus.
Ashton ainda não pode saber quem é Will, e o que estava acontecendo de verdade. Mesmo que
meu sangue gele com a ideia de ele pensando que o beijo de Will era verdadeiro, é melhor do
que vê-lo correr riscos para me proteger.
Está mais claro do que água agora que Ashton faria com Will.
— Você beija todos seus amigos daquele jeito? — A amargura na voz de Ashton faz
meus ombros se encolherem um pouco. Então ele solta um suspiro e esfrega o meio das
sobrancelhas. — Me desculpa. Eu não deveria falar assim com você, é só que… Você parecia
desconfortável.
Uma memória agradável volta à minha mente. Aquela vez em que nos beijamos, na casa
do meu irmão. Lembro-me de como as mãos dele estavam quentes no meu rosto e como meu
coração parecia que estava prestes a explodir. Do quão confuso eu estava, mas em êxtase, como
se isso fosse tudo o que eu sempre quis. Como se meu sonho impossível tivesse se tornado
realidade.
Lembro que nós éramos amigos na época. Lembro como ele me beijou, mesmo sendo
meu amigo. De como ele foi corajoso de dar o primeiro passo, quando eu nem sabia o que estava
sentindo.
De como ele gostou de mim primeiro. De como eu o amei primeiro.
E de como ele terminou comigo.
— Não. — Odeio o quanto minha voz parece chateada. Eu vejo Ashton inclinar a
cabeça para o lado, olhando para mim. Minha pele começa queimar. — Só você.
Acho que descobri onde Fraser está

shton leva-me ao carro emprestado de Ethan. Ele me coloca dentro do


A banco de passageiro e fecha a porta com tanta força que o carro inteiro treme.
Observo seu rosto alaranjado por causa do sol enquanto coloca o cinto
em mim, como se o problema no meu calcanhar tivesse afetado meus braços. Seus olhos estão
pintados de preto, e a visão bonita do seu nariz reto faz meu coração tremer mais forte do que na
época em que eu podia beijá-lo. Talvez porque agora eu não tenha autorização pra fazer isso a
hora que eu quiser.
Onde ele estava antes de vir me buscar? Ashton não se maquia a não ser que seja para
algo importante — ou que pelo menos ele considere importante.
Sei que a raiva dele não está direcionada para mim. Sei que ele não notou como estava
me apertando com força, ou de como quase arrancou o volante do lugar quando começou a
dirigir. Eu queria dizer a ele para esperar um pouco, que ele precisava se acalmar antes de se
enfiar no meio do trânsito, mas toda vez que eu via seus olhos vermelhos, culpa me mantinha de
boca fechada.
Não gosto de vê-lo assim. Com as mãos tremendo e quase chorando. Meu coração pesa
como chumbo. Queria poder estender os braços e abraçá-lo até acalmá-lo, mas eu não posso
fazer isso. Ashton também parece saber que eu não posso. Ele está sofrendo de boca fechada,
porque deve saber que não tem direito de ficar magoado com isso, mesmo que seja inevitável.
Nós não namoramos mais.
Depois de dez minutos em um silêncio horrível, Ashton estaciona na frente de um
mercado. Não abro a boca para perguntar o que nós estamos fazendo aqui, e Ashton não se mexe.
Ele fica parado pelo que parecem horas, olhando pelo vidro do carro, quase sem piscar.
— Você sabe — ele diz depois de um tempo. Só agora reparo que estamos no meio do
centro, do lado de uma avenida cheia de pessoas passando como um formigueiro. Alguma coisa
caí em cima do teto do carro, e meio segundo depois, um esquilo vasculha perto da minha janela.
Tudo isso acontece em uma sequência enquanto Ashton mantém a boca fechada, parecendo
pensar no que dizer. — O Aquiles sempre amou o Pátroclo mais do que o Pátroclo amou o
Aquiles.
Isso suga o ar dos meus pulmões. Meus cílios tremem, mas antes que eu possa dizer
qualquer coisa, Ashton já saiu do carro e foi em direção ao mercado.
Afundo-me no banco. Tenho vontade de bater em algo, de me bater. O que isso
significa? Que ele gosta mais de mim do que eu dele? Então por que ele terminou comigo?!
Meu corpo se curva para frente e um soluço escapa dos meus lábios. Minha boca tem
um gosto amargo como se a saliva de Will tivesse deixado um rastro eterno em mim. Agora que
estou sozinho, a onda de humilhação volta, e muito pior do que antes.
Não quero que Ashton volte. Não sei se quero ver ninguém hoje. Por mais que ficar
sozinho em um momento como esse seja perigoso, parece que todos — até as pessoas do lado do
carro que aleatoriamente olham na minha direção por alguns segundos — sabem do que
aconteceu e sussurram na minha mente “é sua culpa”.
De repente, a porta do carro bate. Ashton senta-se ao meu lado mais uma vez, soltando
um suspiro antes de jogar uma das sacolas no meu colo. Não olho o que tem dentro, mesmo que
a sobrancelha levantada de Ashton pareça dizer que ele quer que eu olhe.
— O que é isso? — pergunto, mas fico sem resposta. Ashton levanta o queixo na minha
direção como se me desafiasse a abrir.
Não penso muito antes de mexer na sacola. No instante em que as bordas se abrem e
meus olhos encontram o que tem lá dentro, meu peito dispara.
— Feliz aniversário.
Tiro a embalagem de dentro da sacola. Não pesa muito, mas eu posso sentir meus dedos
levarem um choque ao tocar o papel enfeitado. Se a ideia de Ashton era terminar comigo para
não me machucar mais, ele está fazendo um trabalho merda, porque a minha alma dói por não
poder beijá-lo nesse instante.
— Não é meu aniversário ainda — um fiapo de voz escapa da minha garganta. Minhas
mãos estão começando a tremer e quanto mais eu tento me acalmar, mais forte meu coração bate.
— O qu-
— Abra. — Ele diz.
Levanto os olhos na sua direção e quando seus olhos ainda vermelhos encontram os
meus, um suspiro é arrancado dos meus lábios. Nunca senti algo tão forte por ele quanto agora.
Uma mistura horrível de tristeza, agonia, ansiedade e carinho. Quero levantar a mão e tocá-lo.
Ele está tão perto de mim que eu não precisaria de muito para poder encostar na sua pele, mesmo
assim…
O caroço no fundo da minha garganta aumenta e preciso fazer cada vez mais força para
respirar. Começo a puxar a fita que prende o embrulho, tão lentamente que quase sinto o
nervosismo de Ashton para me apressar. Mas ele não faz isso e, quando o embrulho cai em volta
do presente, o ar parece ter sumido do mundo e deixado um vácuo que nos mataria a qualquer
segundo.
Levanto o presente do embrulho, sentindo os olhos de Ashton em mim. Minha pele
formiga quando o ombro dele encosta no meu, e quando eu viro para ver o que aconteceu, o rosto
dele está tão perto de mim que o mundo desaparece por um instante.
A haste de uma flecha parece ter sido arrancada de dentro de mim quando sinto sua
respiração na minha pele.
Abro a boca para dizer algo, mas a mão quente na minha bochecha me cala. Eu estou
prestes a chorar, e implorar para que ele me beije, nem que seja por um segundo, mas tudo o que
eu faço é fechar os olhos.
Meu corpo esquenta ao sentir a testa de Ashton contra a minha. A ponta do nariz dele
encosta no meu e eu preciso respirar muito fundo para não me aproximar.
Ele esfrega o nariz no meu, como um gato. Sou pego de surpresa com o carinho, e quase
derreto no banco do carro, apertando a sacola com tanta força que ela se rasga.
Parece com uma promessa silenciosa de que ele ainda é meu. De que ele nunca deixou
de ser meu.
O fantasma do beijo continua ali; como água se aproximando de uma pedra, ameaçando
se chocar com ela, mas nunca perto o suficiente.
— Queria que você fosse meu de novo — assusto-me com aquela voz. A minha própria
voz.
Meus braços se arrepiam quando eu abro os olhos. Ashton se afastou um pouco, mas
ainda está perto o suficiente para eu contar seus cílios. Os olhos dele estão grudados em mim,
como um feitiço.
Tenho vontade de gritar quando ele coloca o queixo no meu ombro e esfrega
propositalmente a bochecha na minha. Tão parecido com um gato que por um instante é como se
um pote de mel tivesse sido derramado no meu coração.
— Hmm. — Ashton murmura no meu ouvido. Eu sinto o cheiro de lavanda que faz meu
pulso disparar. — Veja o presente. Deu trabalho.
Então, como se eu fosse sugado para a realidade, ele se afasta e se ajeita no branco. Não
me olha. Não vacila.
Como se nada tivesse acontecido.
Ergo as mãos, acalmando minha respiração. Eu não me importo tanto com o embrulho
agora — não depois do que aconteceu — mas quando finalmente dou a atenção que ele merece,
aquilo nas minhas mãos parece ter tomado um peso intenso.
Tento abrir a boca para dizer algo, mas minha voz não encontra o caminho.
— Isso é…
— Eu fiz uma história em quadrinhos pra você. — Ashton explica, como se lesse minha
mente. — Eu fiz depois do acidente com o cachorro acontecer. Minha ideia era ser maior, mas
aconteceu aquilo e — ele faz uma pausa. Desvio o olhar da comic e esbarro com seus olhos me
olhando atentamente, talvez observando minha reação. — Eu não queria te incomodar depois de
ter terminado daquele jeito com você, por isso ficou menor.
Abro a capa. É uma história em quadrinhos caseira, feita com folha sulfite e amarrada
no meio por fitas e cola. O papel se desdobra nas minhas palmas suadas e, embora eu soubesse
de muitos talentos do Ashton, eu não imaginei que ele desenha tão bem.
— Você fez tudo isso… Sozinho?
Assim que a minha voz sai, a ideia de Ashton ficando dias acordado para desenhar tudo
isso, arrumar as páginas e vindo me buscar hoje para me entregar, escorrega para dentro da
minha mente. E meu coração aquece. Meu corpo todo aquece.
Folheio a primeira página e o ar é sugado dos meus pulmões quando eu vejo meu rosto
ali.
Escuto Ashton se movimentando do meu lado. Sei que ele se aproximou de mim pelo
cheiro de lavanda, mas estou tão vidrado naqueles traços que é impossível desviar os olhos. Meu
rosto é desenhado por linhas de uma caneta fina. Meu rosto está por todas as páginas.
É assim que Ashton me vê?
— Eu tive a ideia de fazer isso naquele dia que você estava na minha casa — Ashton
murmura. Sinto o peso das suas palavras se chocando em mim. — É a história do Aquiles e do
Pátroclo, como se eles tivessem renascido agora e como se… — eu me forço a desviar o olhar do
papel das primeiras páginas. Meus olhos esbarram com rosto rubro dele. — Só que… Como se
fossemos nós dois.
Preciso fazer muito esforço para não apertar as folhas nas minhas mãos.
— Você disse que terminou comigo pra me proteger — odeio como minha voz sai
machucada. Meu queixo ameaça tremer, mas me contenho. — Por que você fez isso, se vai
continuar se aproximando de mim? Se vai continuar me dando presentes como esse? Você está
me machucando fazendo isso. Muito mais do que machucaria se-
— Aquele dia, quando eu te vi quase se jogando na frente do cachorro quando ele tentou
me atacar, eu senti uma coisa que nunca senti antes. — Ashton começa, seus olhos focados em
algum ponto fora do carro. O maxilar dele está apertado, e consigo ver sua jugular pulsando no
pescoço. Ele parece tão nervoso em me contar isso que está me assustando. — E eu pensei que se
você seria tão imprudente para me salvar, porque gosta de mim, então era melhor eu arranjar um
jeito de me afastar, pra você me esquecer. Mas… —Ashton fica em silêncio por um tempo. —
Mas eu não conseguia parar de pensar em você, e eu estava tentando arranjar alguma desculpa
pra vir te ver.
A falta de som em volta de nós me deixa ansioso. Calor inunda minhas veias, enchendo
meu corpo de uma sensação morna tão calma e gostosa que eu me sinto sonolento por um
segundo, tudo isso com a ideia de Ashton não conseguir parar de pensar em mim.
— Mesmo assim — a voz dele me traz de volta a realidade. Eu pisco várias vezes antes
de focar no seu rosto, que não tem uma expressão boa. — Eu não posso voltar com você. Pode
não ser grande coisa, mas, mesmo que a gente se veja para ir atrás das pistas do cara do e-mail, é
diferente quando você não pode me tocar. Nem me beijar. E nem me chamar de namorado.
A esperança que eu senti segundos atrás some tão de repente que meu corpo murcha
sobre o banco. Não quero deixar Ashton perceber o quanto suas palavras me feriram, mas de um
segundo para o outro, eu não tenho mais forças para continuar fingindo. Eu tento não deixar
parecer, tento não tremer, ou não chorar mas…
Em um flash já estou fazendo as três coisas.
Meu rosto não se mexe, mas eu sei que tem lágrimas escorrendo. Minhas bochechas
estão quentes, e o embrulho nas minhas mãos está tremendo.
Não.
Eu estou tremendo.
Ashton ainda não me olha, o que é bom. Não sei se ele notou, e quando eu limpo as
lágrimas o mais rápido possível, decido ir embora.
Isso é mais do que eu posso suportar por um dia.
Destravo a porta do carro depois de agarrar o presente. Enfio tudo dentro da sacola, e
estou prestes a colocar um dos meus pés do lado de fora, quando a voz de Ashton me interrompe.
— Espera.
Eu me viro tão brutalmente que minhas costas doem. Devo estar fazendo uma careta
horrível, porque Ashton não consegue manter os olhos em mim por muito tempo. Quando
encontro os olhos dele, me surpreendo por ver uma mistura de súplica com vigilância.
— Eu queria que você fosse comigo ver o show da Zya e daqueles outros pirralhos. —
Não sei como, mas a mão dele veio parar no meu pulso.
— Você tá brincando comigo. — Minha voz sai mais amargurada do que eu pretendia.
— Um show com você, depois do que você acabou de me dizer?
Ashton faz uma cara que eu gostaria de não ter visto, porque isso desarma metade da
minha força de vontade de não ceder tão fácil. O aperto da minha mão afrouxa, e eu vejo derrota
preencher sua expressão no segundo seguinte. E, meio minuto depois, noto o quanto eu gostaria
de ir naquele show.
Há um leve tremor por todo o meu corpo quando a mão dele finalmente me solta, como
se neve tivesse tocado minha pele. Eu quase estendo a mão para procurar o seu toque, mas
Ashton já tinha se ocupado em jogar o resto das sacolas no banco de trás.
Ele abaixa o rosto, como se fosse tarde demais para pedir desculpa. Um puxão no fundo
do meu estômago me deixa tonto, e antes que eu possa voltar a sanidade, minha boca já tinha
aberto:
— Eu não posso ir. Uma amiga minha vai embora da cidade hoje. Ela vai fazer uma
festa de despedida e-
O aperto na minha pele volta. Em um piscar de olhos, Ashton me puxa para dentro do
carro de novo. Ele se inclina sobre mim e fecha a porta, com força e rapidez. Então quando volta
para o banco do motorista, sua mão encontra o caminho para a minha, e embora nós não sejamos
mais namorados, seu toque é inegociável.
— Tive uma ideia.

Depois da catástrofe que aconteceu quando Jasper disse “tive uma ideia” e saiu para
roubar uma loja, eu devia saber que nada vindo dessa frase seria um bom sinal. Mas por algum
motivo, esperava que Ashton tivesse mais bom-senso do que Jasper.
O problema é que ele não tem.
— Tira a mão da minha bunda — é Max é quem diz, mas ninguém sabe para quem.
Tem alguém com a mão na minha bunda, e eu provavelmente estou com a mão na bunda de
alguém.
É isso o que acontece por tentar enfiar nove pessoas em um carro.
Sempre achei que as vezes em que a gente saía com o Mitsubishi do Omar era a pior
coisa do mundo, mas isso foi até viver o que estou vivendo agora. O carro de Ethan não é nem de
longe tão potente quanto o de Omar, e, enquanto o Mitsubishi mugia a cada metro andado, esse
parece prestes a desmontar a cada movimento que faz.
— Tá tudo bem aí atrás? — Jasper pergunta, com a voz ridiculamente satisfeita. Ele
passa as mãos pelas coxas como se querendo mostrar o quanto de espaço tem para respirar.
Ashton dá uma cotovelada nele. Uma risada arranha minha garganta.
É engraçado ver meus amigos e ele interagindo. Ashton parece muito deslocado no meio
de nós.
O carro passa por um buraco, o que fez Charlie, que está no meu colo, bater a cabeça no
teto. Vez ou outra, eu encontro o olhar de Ashton pelo espelho do retrovisor. A boca dele está
quase sempre apertada em uma linha fina e perigosa.
— Não. — Adam fala, tão encolhido que eu quase me esqueci dele. — Eu não consigo
respirar.
Max ajeita Omar no colo. Ela parece incomodada com o peso dele, mas sei que jamais
reclamará sobre isso.
— Estamos perto. — Ashton diz as primeiras palavras depois dos meus amigos terem
chegado. Ele vira o volante e nós saímos completamente do centro. As luzes dos postes
começam a se tornar mais fracas e as ruas cada vez mais escuras. O céu roxo não ajuda muito em
iluminar o caminho e eu não sei mais se Ashton está fazendo isso de propósito, mas o carro passa
por outro buraco e Charlie bate a cabeça no teto de novo.
Ele me olha pelo retrovisor com um sorrisinho travesso.
— Então — Eu desvio o olhar, sentindo minhas orelhas esquentarem. O carro vira mais
uma vez. — Onde nós estamos indo?
— Zya e os outros meninos vão dar um show-
— Eu sei disso, velhote, você me falou. Mas onde é esse show? — pergunto de novo.
Charlie no meu colo parece surpreso pelo tom da minha voz. Ou quem sabe pelo jeito que eu
falei com Ashton. Talvez ele ainda ache que Ashton é um monstro de sete cabeças.
— Segredo.
Abro a boca para perguntar de novo, mas decido apenas esperar para ver. Naturalmente,
não demora para chegarmos. Nunca tinha vindo para essa área da cidade. É escura e mal
movimentada, e por algum motivo, um pouco assustadora. Árvores altas cercam o local e um
ponto de ônibus está solitariamente rabiscado por spray. Se eu prestar atenção, consigo escutar o
barulho de vozes falando ao mesmo tempo, de uma guitarra e do motor de motos. Parece o tipo
de lugar que a trupe de Ashton frequentaria.
Ashton desce do carro antes de todo mundo, mas não se mexe até que Charlie tenha
saído do meu colo. Ajeito minhas roupas, me sentindo ridículo com a jaqueta que ele me
emprestou. É como usar a pele de outra pessoa.
Paro ao lado de Charlie e Max. Eles me olham como se perguntando se eu estou bem.
Ashton não está muito longe de nós, sempre olhando para trás para verificar, o que é estranho
porque ele não parece ligar se meus amigos se perderiam e acabariam caindo em um buraco
mágico.
— Você tem coragem de falar com ele daquele jeito? — Charlie sussurra. Nós
começamos a andar atrás de Ashton. Sally e Adam estavam atrás de nós, rindo sobre algo. O som
da voz dela parecia estranhamente melancólico agora que eu sei que talvez seja a última vez que
escutaria. — Quer dizer, uma vez eu ouvi que ele espancou um cara do dobro do tamanho dele
depois do cara ter chamado ele de pequeno.
— Ele é pequeno —respondo, alto o suficiente para o homem na nossa frente ouvir. Ele
levanta os ombros, mas não me dá o prazer de ver seu rosto emburrado. — Mas a maioria desses
rumores é mentira.
— Então ele não vendeu drogas na escola? — Escuto a voz de Max. Ainda há um
sentimento julgador vindo dela e, por mais que eu tente evitar, quero defendê-lo.
— Não… Isso é verdade.
O assunto encerra no segundo em que Ashton para em frente à uma parede de concreto,
que só depois de alguns segundos, reparo ser uma construção completa, e não só um muro
abandonado.
— Onde é a entrada? — Adam pergunta. Há um riso por trás da sua voz, como se ele
estivesse tendo uma conversa sobre piadas internas com Sally.
Odeio casais felizes.
Ashton explica o que aquela construção é: uma fábrica abandonada que alguns garotos
ricos que tinham aspiração por música compraram para fazerem shows. Uma ideia legal, se não
fosse pelo fato de ser meio macabra. Mato cresce em volta das paredes e há pneus queimando e
soltando estalos repentinos.
Uma cerca enferrujada e alta rodeia a fábrica. Ashton a pula primeiro, então pede que eu
vá em seguida. Quando estava no topo, ele começou a escalar de novo.
— O que você está fazendo? — pergunto. Metade do meu corpo na borda da cerca, se
preparando para pular. Jogo as muletas no chão do outro lado.
— Te ajudando.
Levanto uma sobrancelha. Uma parte de mim quer deixá-lo me ajudar; deixá-lo me
guiar como ele quiser, até se sentir bem. Mas a outra sente raiva. Porém, engulo meu orgulho
quando tento forçar meu pé e uma pontada de dor atinge os ossos do meu corpo. O deixo me
ajudar e, em seguida, meus amigos fazem o mesmo. Com todos do outro lado da cerca, seguimos
Ashton para dentro da fábrica.
O barulho fica mais alto a cada passo que dou, e, mesmo com o som alto, meu coração
parece bater mais alto do que qualquer outra coisa.
Quando chegamos, é como ter um mundo totalmente novo na minha frente.
Uma caixa d'água está em cima de uma plataforma que parece um poste de luz, e, preso
lá, tem um fio de luz piscando em várias cores. O som que escutei antes vinha daqui: carros,
motos e pessoas. Todos juntos mexendo os corpos de um lado para o outro, pisando na grama
fofa e rindo. O cheiro de maconha me faz lembrar de um tempo o qual eu gostaria de esquecer —
a última coisa que quero nesse momento é lembrar dos bons momentos que tive com Ashton.
Algo escorrega pela minha mão.
— Eu… Não quero ficar sozinho. — É Charlie quem diz, apertando os dedos em volta
da minha palma. Observo os carros desmontados e empilhados antes de responder. Parece um
lixão misturado com uma balada cheia de emos de cabelo espetado.
— Pode ficar comigo.
De repente, Ashton passa por nós e volta a nos guiar entre o amontoado de gente. Com
as mãos nos bolsos e o queixo levantado, ele parecia ser dono do local. E talvez seja. Vi pelo
menos quatro pessoas levantando as mãos para cumprimentá-lo, com um sorriso tão grande que
quase penso que são apaixonados por ele.
— Como você conhece essas pessoas? — Minha voz sai antes que eu possa interrompê-
la. Ashton não me responde, mas vira o rosto na minha direção. A expressão que dobra suas
sobrancelhas para baixo é tão azeda quanto um bebê experimentando limão pela primeira vez.
— Se alguém mexer com você, me chame. Eu vou procurar a Zya. Te encontro daqui a
pouco.
E desse jeito, ele saiu andando.
— EI! — Dou um pulo com o grito de Jasper. — E SE ALGUÉM MEXER COMIGO?!
Uma risada arranha minha garganta, mas eu tenho que apertar a mão de Charlie para
controlar minha vontade de ir atrás dele.

Ashton volta vinte minutos depois, com um copo na mão e uma ruga na testa.
Vendo essa expressão, já posso presumir que algo aconteceu.
Ele vem na minha direção e tira a mão de Charlie de mim. Quase abro a boca para
reclamar, mas antes que possa raciocinar sobre o que está acontecendo, braços me rodam e o
cheiro de lavanda misturado com o azedo de suor invade meus sentidos.
— Você não contou pra eles que a gente terminou? — Ashton sussurra perto do meu
ouvido. Seus braços ainda me cercam.
— Não.
— Ótimo. — O tom agudo de satisfação na voz dele me deixa contente. Mas Ashton se
afasta, com uma expressão que não me agrada. Uma mistura de dor e agonia enche seus olhos e
meu estômago treme quando ele abre a boca. De alguma forma, sei que as próximas palavras que
eu escutaria seriam importantes. — Eu acho que descobri onde o Fraser está. Vem comigo.
Você é maravilhoso

shton me puxa pelo meio da multidão. Minha boca está seca e eu não
A consigo dizer uma única palavra desde o momento em que Ashton me contou que
sabe onde Fraser está.
Onde Fraser está.
Tento ignorar o quanto a voz dele pareceu esperançosa. Não por ciúmes, mas porque eu
tenho um mal pressentimento. Sabia que Ashton estava com a cabeça nas estrelas, pensando na
possibilidade de encontrarmos Fraser vivo — e no fundo também quero acreditar nisso.
Talvez seja por ele ser próximo de Fraser. Talvez Ashton não consiga aceitar que a
chance de Fraser estar morto seja maior do que a de estar vivo. Não quero ser o primeiro a dizer
isso, a esmagar seu coração e arrancar a esperança da sua alma. Sei que Ashton nunca mais vai
voltar a ser o mesmo dependendo do estado em que nós o encontrarmos, e a parte egoísta — que
insiste em esmagar o lado racional do meu cérebro — diz que essa será só mais uma das muitas
batalhas que eu perderia para aquele outro homem.
Ashton para de repente. Volto a prestar atenção no ambiente à nossa volta quando ele
me abraça de novo. Por um segundo, penso que ele começará a chorar, mas nada acontece pelos
próximos dois minutos. Ashton continua aqui, parado feito uma múmia, me apertando feito a
constrição de uma jiboia. O cheiro de lavanda que sinto faz-me ficar consciente de todo o meu
corpo, e de uma hora para a outra, fico sensível do tecido da roupa na minha pele e da respiração
do homem no meu pescoço.
— Você está bem? — essa é provavelmente a pergunta mais idiota que eu podia fazer
em um momento como esse. — Quero dizer, é óbvio que você não está, mas… Como você está
se sentindo?
Demora um pouco para a resposta de Ashton vir. Ele fica respirando no meu pescoço
por um tempo, como se tentando controlar a própria voz. Eu me forço a esquecer de todos os
problemas que nós temos que resolver sobre a nossa relação e foco em dar a ele a atenção que ele
merece agora. Minhas mãos serpenteiam suas costas, do fim da nuca até metade da coluna.
Isso parece acalmá-lo.
Sinto-me aliviado quando os ombros ao redor de mim ficam menos tensos, enquanto
suas costelas param de tencionar a cada respiração.
— Eu não sei — ele responde.
O ar parece silencioso, como se toda a gritaria de dentro da fábrica não fosse nada além
de um sonho distante. Ashton é o único som que eu ouço agora. O tecido de sua roupa
balançando com o vento, o esfregar da sua bochecha na pele nua do meu pescoço, suas mãos
deslizando pelas minhas costas. Se isso não é carinho, o que é? Ashton pode mentir para si
mesmo o quanto quiser, seu corpo sempre me puxa como um imã. Nunca me recusa.
— Às vezes — ele volta a falar. — Eu fico pensando quais foram as últimas palavras
que ele ouviu. Eu fecho os olhos e torço pra ter sido a voz de alguma pessoa aleatória enquanto
ele vinha atrás de mim, ao invés da minha.
Minha garganta parece queimar para perguntar quais foram as últimas palavras de
Ashton para Fraser.
— Se eu morrer antes, espero que as minhas últimas palavras pra você sejam as mesmas
que as do Arthur Conan Doyle pra esposa dele — escuto sua voz perto do meu ouvido.
Ele se movimentou um pouco, se apoiando em mim. O peso dele força minhas pernas e
eu tenho que me apoiar no muro atrás de mim para não cair. O vento balança o cheiro dele na
minha direção e eu sinto a lavanda me rodando e fazendo a parte de trás dos meus joelhos
tremerem como sempre tremem. A raiva que senti dele mais cedo, quando escutei que não
voltaríamos a namorar se dissipa, dando lugar a uma sensação calma no final do meu estômago.
— E o que ele disse para a esposa dele? — Inclino meu rosto em sua direção.
A orelha dele se esfrega na minha bochecha e posso sentir alguns fiapos de cabelo no
meu nariz. Tento controlar a esperança antes que ela possa encher meu coração, mas é mais
rápido do que eu esperava. Em menos de um segundo, posso sentir meu corpo brilhando. Mesmo
que o mundo a nossa volta esteja virando de cabeça para baixo, mesmo que uma das minhas
melhores amigas esteja indo embora para talvez nunca mais voltar, mesmo que Fraser possa estar
morto, Ashton está comigo.
— Você é maravilhoso.

Uma vez, escutei de alguns alunos na escola que Ashton Winsor era filho de dois
agentes da cia.
Outra vez, escutei que Ashton já tinha namorado a Ariana Grande, mas que ele era punk
demais para ela. Isso explicaria a moto cara — na cabeça de quem espalhou esse rumor, Ashton
tinha Ariana Grande como sugar mommy.
E, a pior de todas: que ele tinha matado alguém. A justificativa era que Ashton não tinha
um temperamento muito bom. Ele era instável e algumas pessoas começaram a presumir que era
culpa de algum transtorno psicológico. Disseram que ele tinha matado um cara depois de ele ter
tentado assediar Zya e que o corpo ainda estava jogado em uma das fábricas abandonadas perto
do litoral, mas que logo seria achado porque vários prédios perto da água de Toronto estavam
sendo demolidos, como falaram que ia acontecer com a demolição da Gardiner. Era questão de
tempo.
Mas ninguém nunca achou nada.
O que ninguém sabe, no entanto, é que a vida de Ashton é tão fodida quanto a de
qualquer outra pessoa.
A mãe tinha morrido, o pai largou a família depois de descobrir que o filho era bipolar,
e o tio… Bem, o tio.
E agora ele está próximo de descobrir o que aconteceu com a pessoa que cuidou dele
como família, depois de tanto tempo vivendo no escuro.
E tem eu.
Não sei qual papel eu tenho na vida de Ashton, mas gosto de acreditar que ocupo um
cargo legal. Que talvez ele pense em mim quando as coisas estiverem muito ruins. Ou que ele
pense em me mandar mensagens no meio da noite, depois de sentir saudades demais para
aguentar.
A única coisa que eu sei é que ele tem um grande papel na vida de todo mundo. Zya, eu,
Fraser, Ithaly, Ethan… Todas essas pessoas.
E eu posso ver com os meus próprios olhos o quanto gostam dele. Uma parte de mim
sempre achou que meu amor por Ashton era único. Ninguém nunca amaria ele como eu amo, e
talvez isso seja verdade, mas vendo ele no palco com os amigos, cambaleando de um lado para o
outro e sorrindo como uma criança travessa enquanto Zya tenta abraçá-lo, sei que, embora
ninguém o ame como eu amo, Ashton pode ser amado em muitos sentidos.
Eu amo meus amigos como ninguém. Toda vez que vejo a cabeleira loira de Charlie se
aproximando e me estendendo uma latinha de coca — Ashton proibiu o barman de vender
qualquer coisa alcoólica para mim e meus amigos — perguntando como eu estou, com um
sorriso puro e os olhos brilhantes, sei que ninguém os ama como eu. Deve ter gente que talvez o
ame mais — os pais deles, por exemplo —, mas nenhum amor é como o meu.
E eu sei que eles sentem isso por mim também.
E meu amor por Ashton tem várias vertentes. E algumas delas não são nem um pouco
inocentes.
Tento evitar de pensar isso, mesmo que, quando nós nos beijamos, nunca seja o
suficiente. A cada vez que ele pega no meu cotovelo para me guiar para algum lugar, ou me puxa
para o garçom não bater a cintura na minha, quando ele encosta os ombros no meu e — mesmo
dizendo que nós não somos nada além de amigos — esfrega o rosto em mim como um felino
carente, eu sei que caótico é a única forma de descrever como meu corpo fica.
E quando eu vi Oliver jogando uma guitarra para ele, algo no meu coração explodiu. O
meu eu de dois meses atrás estaria dando muita risada da minha situação agora. Nunca passaria
na minha cabeça que eu poderia estar tão apaixonado por alguém que usa calças apertadas e pinta
os olhos de preto.
Ashton pega a guitarra, mas tenta devolver para Oliver. Ele faz uma careta e parece
bastante irritado por um segundo, até Zya lhe sussurrar algo no ouvido. Não consigo nem
imaginar o que ela disse, mas parece ter funcionado, caso a intenção fosse acalmá-lo.
Por um instante, acho que ele vai desistir. Ashton me disse uma vez que não faz mais
parte da banda. Mackenzie, nesse mesmo dia, explicou que era por causa de Ithaly. Imagino que
ele provavelmente teve que ajudar ela a cuidar do bebê quando era recém-nascido e não teve
mais tempo para brincar de astro do rock por aí, mas a voz de Ashton ao falar da banda ficava
tão amargurada que eu não tenho ideia se ele algum dia gostou de fazer parte dela.
De qualquer forma, hoje Ashton decide ficar no palco. Zya dá alguns pulinhos animados
depois de ele dizer algo a ela e, quando eu estou próximo de me virar para procurar Charlie, Zya
pega o microfone e anuncia:
— Winsor vai cantar com a gente hoje!
Um arrepio esfria minha coluna.
Cantar?
Ele canta?!
Afogo-me com o ar. A ideia de sair daqui e perder esse show, agora, é inadmissível.
Meus pés parecem ter grudado no chão com supercola, porque repentinamente, não consigo me
mover.
A plateia em volta de mim grita tão feroz que meus ouvidos doem. Eu não consigo
movimentar nenhum músculo. Minha boca seca como se eu estivesse há anos sem tomar água.
Ashton vira meu único foco: seja porque meus olhos não conseguem olhar para nada a não ser
ele ou porque o holofote propositalmente não me deixa olhar para nada além dele.
Independentemente do que seja, meu coração está tremendo como um terremoto.
— “I wanna be your vacuum cleaner.” — Ele canta a primeira estrofe. O mundo parece
se inclinar um pouco. Ashton mudou totalmente a voz, deixando mais baixa e grave, muito
parecido com o som de um baixo. Essa pequena frase é o suficiente para a plateia em volta de
mim gritar.
— “Breathing in your dust”"
Eu conheço a música. Claro que conheço. Arctic Monkeys é uma das minhas coisas
favoritas que Ashton me apresentou, e essa música em especial tem um espaço sagrado no meu
coração.
Tudo parece desnorteante. Seja a voz, a letra, as outras pessoas me empurrando, alguma
coisa está explodindo. E eu não sei se é dentro de mim ou fora, nem qual é pior.
Ele olha na minha direção. Eu estou tão concentrado em como ele muda a voz, de como
ele tem controle das mãos para conseguir tocar a guitarra e simultaneamente cantar, que quando
volto a prestar atenção na realidade, o que eu ouço é:
“Maybe I just wanna be yours, I wanna be yours…”
E uma explosão acontece de verdade.
Não.
Um tiro.
O mundo vira mais uma vez, mas agora de um jeito terrível.
De repente, as pessoas em volta de mim se jogam no chão e eu sou o único que não se
abaixa. Ou melhor, eu e Ashton. Ele está em cima do palco, catatônico demais para saber o quão
arriscado é ficar de pé.
Sussurro para mim mesmo enquanto processo o que está acontecendo. Em um segundo,
estava parado, e no outro, estou pulando para subir no palco e me jogar por cima de Ashton.
E depois desse, outro disparo. Um que estourou a parede atrás de nós. Um que teria
estourado a cabeça de Ashton.
Merda.
Merda.
Merda, merda, merda, merda.
Minhas mãos estão tremendo tanto que eu mal consigo manter Ashton perto. Ele tenta
se levantar, mas não o deixo. Minha força não vacila quando tento mantê-lo embaixo de mim, o
mais quieto possível.
— Que merda você tá tentando fazer?
Outro disparo. Meu queixo começa a balançar. Fecho os olhos e tento respirar fundo. O
mais fundo possível.
Não adianta.
Ainda sinto como se alguém tivesse pego meu coração e esmagado ele com um martelo.
Meu estômago está esquisito e eu sei que, a qualquer instante, os refrigerantes que eu tomei
voltarão.
Posso sentir os filetes gelados do desespero infiltrando minhas veias. Como eles
arrancam a calma do meu corpo e me fazem respirar cada vez mais pesado.
Nunca me senti tão fora de controle quanto agora. Nem quando me disseram que a
minha mãe estava internada. Nem quando me contaram que o cachorro tinha me arrancado um
pedaço do tornozelo.
Nunca senti tanto desespero quanto agora, que Ashton está embaixo de mim com os
olhos assustados e com uma arma colocando a vida dele em risco.
Alguém tentou atirar nele. Se eu não tivesse chegado antes, ele-
— Evan. — Ouço sua voz, parecendo distante, como se eu estivesse embaixo d'água. —
Me escuta. Respira fundo. Devem ter nos seguido até aqui. Só querem assustar a gente, eles-
— Um deles quase atirou na sua cabeça! — Sei que não deveria ficar com raiva de
Ashton agora, mas a forma como ele fala calmamente, como alguém fala sobre o que almoçou no
dia anterior, irrita uma parte de mim com tanta força que eu sinto meus olhos arderem de ódio.
— Você podia ter morrido. Você… se você morrer… eu estou assustado pra cacete e se esse era
o objetivo deles, conseguiram bem pra caralho. Eu-
Me engasgo com a minha própria saliva. Mal consigo respirar direito e sinto a onda de
desespero me atingir de novo.
Então penso em Will. Ele disse que eu teria que descobrir onde Ithaly está, senão irá
atrás da minha mãe. Será que isso também é plano dele? Até que ponto ele quer infernizar a
minha vida?
Não sei.
Não sei até quando, mas eu não vou deixar Ashton quase levar outro tiro na cabeça por
causa dela. Nunca mais.
Isso não está acontecendo. Mesmo que eu tenha que arriscar a vida de Ithaly, não vou
deixar ele morrer.
Tento parar minha linha de raciocínio antes que eu chegue em uma parte da minha
mente que prefiro evitar. Algo gelado no meu tornozelo me traz de volta para a realidade, e eu
teria ficado quase grato, se não fosse o terrível cheiro de ferro enchendo a fábrica.
Antes que eu me vire para ver, uma mão encosta na minha nuca. Tento me afastar, até
que lembro quem estava embaixo de mim. Ashton me abaixa e força meu rosto na dobra do seu
ombro. Meu corpo desce e sobe com a respiração instável dele, e em um flash, a ideia de ele
estar machucado cruza minha mente.
Tento levantar de novo, mas as mãos me seguram no lugar. Meu corpo está fraco e eu
percebo que algo está errado. Uma pontada aguda gela minhas pernas, sobe pelo meu tronco e
paralisa meus braços. Dor.
Essa dor de novo.
A dor que me faz querer morrer para nunca mais senti-la.
— O que-
— Calma. — Ashton sussurra. Duvido que mais alguém esteja ouvindo. — Esses caras
não sabem o que estão fazendo. Agiram no calor do momento. Deviam estar espionando a gente
e bebido demais. Se acalma. Você tem que respirar baixo e não chamar atenção até eles saírem.
— A gente pode correr-
— Shhh. — A mão aperta a minha pele como um aviso silencioso. Engulo em seco. —
Não tem como. Você não está sentindo esse cheiro? É sangue. Provavelmente seu. — O outro
braço de Ashton roda minha cintura. — Fique calmo. Seus amigos estão bem. Charlie correu
para o banheiro, Jasper, Sally e Adam estão próximos da gente e-
— Você decorou o nome deles. — Essa é provavelmente a pior resposta que eu poderia
dar agora.
A mão na minha nuca afrouxa um pouco. Sinto a respiração de Ashton se tornando mais
estável abaixo de mim, como se estivesse feliz por eu ter o interrompido.
O silêncio paira por tempo demais. Minha mãe uma vez me disse que quando uma
criança está quieta, é porque ela está aprontando, e eu nunca senti um terror inundar meu corpo
com tanta força em pensar nisso. Eles estão muito quietos. Quem quer que esteja fazendo essa
maluquice de atirar nas pessoas, está quieto demais.
Ashton ainda me mantém próximo como um pão em cima da mortadela de um
sanduíche. Em um piscar de olhos, lembro o quanto estou com fome, e ao mesmo tempo, do
quanto meu estômago está prestes a vomitar.
— Se vomitar-
Ele não tem tempo de terminar antes que eu sinta a acidez do refluxo na minha garganta.
Só tenho tempo de virar a cabeça para o lado para não sujar o rosto dele.
E o refluxo não para. Meu corpo se espreme como se uma jiboia estivesse dentro de
mim, forçando meu estômago a empurrar até não haver mais nada lá dentro.
Algumas batidinhas nas minhas costas servem de consolo, e quando eu volto a esconder
o rosto na dobra do ombro de Ashton, desculpas escapam pelos meus lábios.
— Tudo bem — ele sussurra, calmo, embora eu ainda possa ouvir o tom de repulsa no
fim da sua voz. — Acontece. É normal. Você está nervoso.
Eu acabei de vomitar na frente do meu ex-namorado-que-eu-ainda-gosto-e-que-está-
tentando-me-consolar-enquanto-um-psicopata-tentou-atirar-nele.
Ótimo.
Mais silêncio. Quase sinto falta da respiração instável de Ashton, mas quando, no fundo,
eu escuto uma sirene, o nó que parecia apertar meu coração se solta.
— Merda.
Olho para cima.
— O quê?
— A polícia está chegando. — E de um segundo para o outro, Ashton se senta comigo
apoiado no seu corpo, como se disparos não tivessem acontecido minutos atrás. Sua expressão
tão fechada quanto o céu no inverno.
Vendo que ele tomou coragem para se mover, mais pessoas começam a levantar. Todas
elas parecendo terrivelmente assustadas com o som da sirene.
— O que-
— Drogas, Evan. As pessoas usam drogas aqui. Esse lugar já não tem uma boa fama,
mas agora esses caras acabaram de arruinar tudo — ele faz uma pausa. Não consigo me mexer
direito. — Merda. Merda, merda. ZYA!
— Você é idiota? — Um cara próximo de nós diz, tão baixo que eu mal ouço. — Não
grite.
Ashton faz um movimento brusco. Escuto o som de um tapa e, quando eu estou prestes
a cair por ter perdido meu apoio, ele volta.
— Você… Bateu naquela pessoa?
Ele murmura alguns palavrões, ajeitando meu corpo de um lado para o outro, com
menos delicadeza do que eu gostaria. As mãos de Ashton estão tremendo. Elas me apertam
possessivamente, mas estão balançando tão forte que parece que é meu próprio corpo.
— O que aconteceu? — Ouço a minha própria voz como um sussurro. Meu corpo está
ardendo de novo, como se uma pulsação mandasse pressão pelas minhas veias e fizesse meu
corpo doer como se estivesse pegando fogo. Mal sinto as mãos de Ashton em volta de mim. —
Alguma coisa-
— Acho que aconteceu alguma coisa com os pontos do seu tornozelo — Ashton
responde, com o tom tremendo demais para alguém tentando manter a calma. — Tá saindo muito
sangue.
Algum tempo passa, ou talvez não. Só sei que em um piscar de olhos, posso escutar o
coração de Ashton na minha orelha direita e duas cabeças me olhando perto demais.
Sinto meu corpo molhado. Talvez eu esteja suando. Meu interior não para de doer e eu
queria conseguir desmaiar para poder parar de sentir isso. Mas, ao mesmo tempo, não quero
imaginar como Ashton ficaria me vendo desacordado.
Eu nem contei sobre o Will. Sobre o ataque que eu sofri na minha própria casa.
A ideia de morrer não é muito agradável, mas eu gostaria muito de parar de sentir essa
dor.
— O que aconteceu? — Mais vozes surgem. Elas me deixam enjoado.
— Não sei. Ele pulou em cima do palco e me jogou no chão na hora que tentaram atirar
em mim. — A pessoa que está me segurando, que eu presumo ser Ashton, aperta-me com mais
força, como se essa lembrança desagradável pudesse acontecer de novo. Sua voz está fria, quase
com raiva.
Não sou eu quem deveria estar preocupado?
— Ele fez isso? Mesmo com os pontos e o tornozelo daquele jeito? — Zya tem um tom
de animação perigoso em sua voz. Não quero imaginar o porquê. — Isso deveria ser impossível.
Ele morreria de dor antes que conseguisse fazer algo.
— Bem — Eu fraquejo. Minha boca está seca demais para falar, mas continuo mesmo
assim. — Eu estou morrendo de dor.
— Você precisa cuidar dele.
— Não tem como fazer isso aqui, Ashton. Está muito escuro e sua casa é muito longe.
Ele está perdendo muito sangue-
— Tem a casa da Ithaly. — Outra voz aparece. Ethan.
— Não. — Ashton responde, antes que a ideia possa parecer plausível demais. — Não,
vocês-
— Ele está perdendo muito sangue.
Um pensamento flutua pela minha mente enquanto eles discutem sobre o que fazer
comigo. É uma péssima hora para chegar a essa conclusão, se me levarem para a casa de Ithaly,
eu vou ao menos saber onde ela mora.
Não pretendo entregar essa informação para Will tão fácil, mas caso as coisas fiquem
muito feias, eu tenho um plano B para salvar nossas vidas.
Se o que acabou de acontecer foi ideia de Will, então é um aviso claro: ele está
mostrando o que é capaz de fazer.
Se ele tem tanto controle assim, como deve ser o chefe dele?
— P-por favor — gaguejo. Minha garganta queima com esse pequeno movimento. —
Por favor, me tirem daqui.
— Você tem que decidir logo, Ashton. A polícia está chegando e ele está perdendo
sangue.
Um silêncio esquisito paira sobre nós. Noto mais pessoas me rodando. A sensação
claustrofóbica enche meu peito e eu sinto a repentina urgência de sair desse lugar.
Uma das cabeças tem cabelo ruivo, e uma expressão de angústia enche seu rosto. Sally.
Eu acabei de arruinar o último dia dela com a gente.
Eu tenho tempo de sussurrar desculpas para ela antes da minha visão escurecer.

Tenho a sensação de estar em um hospital cheio de gente vindo me visitar depois de eu


ter ficado em coma por dois anos, mas na verdade, quando abro os olhos, percebo que é uma
casa.
Uma casa que eu nunca vi na vida.
Não sei quanto tempo passei desacordado, mas, pelas expressões que as pessoas em
volta de mim estão fazendo, presumo que não tenha sido pouco.
Parte de mim quer voltar a dormir e não ter que ligar para essa bagunça, mas a
queimação nas minhas pernas não deixa. Acho que está pior do que quando o cachorro me
mordeu. Estava me acostumando com a ideia de ter que andar de muleta para o resto da vida,
tendo meu pé aqui, como uma lembrança do meu eu do passado. Mas se eu tiver que amputá-lo,
vou entrar em pânico.
Então a dor é um bom sinal. Significa que ainda está aqui.
— Ele acordou. Chama a Max! — Uma voz fina grita.
Gemo de dor quando minha cabeça parece prestes a explodir.
— Ela disse que não queria ver nada enquanto a Zya não terminasse de fazer os pontos.
— Essa voz eu reconheço. Arrogante e cheia de falso autoritarismo, uma cópia muito mal-feita
de Ashton e de Ethan: Oliver.
— Espere um pouco antes de chamá-la. Se ela ver o que a Zya está fazendo com o pé do
pirralho, ela não vai deixar a gente terminar os pontos. — É Ashton quem diz dessa vez. Ele
parece tenso e eu devo estar extremamente acostumado com os hábitos dele ao ponto de notar a
leve ansiedade na sua voz, mesmo com a minha cabeça doendo como se um apito estivesse
soprando diretamente nos meus ouvidos.
Algo quente encosta a minha têmpora, mas logo se distancia. Viro a cabeça na direção
daquela sensação morna, à procura de qualquer coisa que me dê algum tipo de conforto. Foi um
beijo.
— Eu ainda não acredito que você pulou no palco, mesmo com o tornozelo cheio de
pontos. — A quentura repentinamente vem parar no meu ouvido quando Ashton sussurra.
Fecho os olhos, aproveitando o pequeno segundo de relaxamento.
— Sim. E agora esses mesmos pontos estouraram e eu estou tendo que remendar ele. De
novo — Zya diz um pouco abaixo de mim. Parece impaciente.
— Ninguém me explicou o que aconteceu com o pé do Evan pra ficar nessa situação.
O silêncio engole o clima tenso que sinto em volta de nós, como se essas pessoas
estivessem tentando decidir quem explicaria para Charlie o que vem acontecendo na minha vida
nos últimos meses.
Finalmente, Ashton limpa a garganta.
— Um cachorro mordeu ele. — É tudo o que revela. Sinto-me grato por Ashton não ter
contado sobre o cachorro ter raiva, porque seria muito difícil explicar como eu ainda estou bem.
Sendo sincero, nem eu sei como.
— Um… cachorro?
— Aquele vizinho-
— Aquele cachorro? — Charlie soa incrédulo.
— Sim.
Mais silêncio.
Fisgadas vêm da direção do meu tornozelo e embrulham meu estômago. Sinto-me
enjoado pela dor, mas preciso aguentar até que Zya termine seja lá o que ela está fazendo.
Quando ela finalmente acaba, Ashton diz para o restante nos deixar sozinhos por um
segundo. A sensação de enjoo volta no mesmo momento, como se o nervosismo comesse cada
centímetro do meu intestino.
— Como você está? — Ele pergunta.
— Bem como a minha tia que está sonegando impostos desde dois mil e cinco.
A risadinha que eu escuto faz meu coração esquentar.
— E como ela está?
— Presa.
Ashton sorri mais uma vez, mas então seu rosto fica repentinamente severo.
— Nós precisamos conversar com Ithaly.
Aí está: a parte que eu gostaria de nunca chegar. Noto a quem pertence essa casa
desconhecida, e no mesmo segundo, sinto vontade de voltar a dormir e esquecer que tudo isso
está acontecendo.
Não acredito que ele realmente me trouxe aqui.
Ele não devia ter feito isso. Agora, se Will quiser realmente me ameaçar, eu não
conseguiria ficar quieto, porque eu sei onde Ithaly mora e — mesmo que eu goste de mentir para
mim mesmo — não tem heroísmo nas minhas veias.
Na primeira oportunidade que Will tiver de mexer com a minha vida, não vou conseguir
ficar calado.
E se Ashton descobrir isso…
Enquanto penso, outra presença surge. Passos tímidos estalam pelo chão de madeira,
cada vez mais próximos. O cheiro de leite — que eu já tinha sentido em Ashton algumas vezes
— surge.
— Venha aqui. — É Ashton quem diz, sua voz tão delicada e carinhosa que eu me sinto
zonzo.
Ithaly se aproxima o bastante para sua sombra cobrir a luz artificial do teto. Ela fica
parada em pé por vários segundos e tudo se torna constrangedor.
— Nós queríamos falar com você — Ashton começa. Eu ainda não levantei meus olhos
para olhá-la, mas me lembro da vez que a vi atrás de Ashton com um carrinho de bebê. Lembro
dos seus cabelos escuros e bochechas coradas. Dos lábios vermelhos como morango. — Sobre o
Fraser.
Se achei que o clima estava pesado antes, ele acaba de piorar. Eu escuto Ithaly puxar o
ar e segurar a respiração, como se escutar esse nome fosse doloroso demais. Talvez seja.
— Tudo bem para você? — Ashton pergunta, de novo com aquela voz adocicada.
— Sim. Claro. Sim. Eu só… —Quando escuto sua voz, tremores deslizam pelos meus
braços. É uma bela voz. Fina e melódica como alguém como Ithaly deveria ter. Imagino ela
como uma mulher fisicamente fraca. Suas canelas são finas e eu noto que ela está tremendo, mas
isso não diz nada sobre a sua mentalidade. Ela tinha que ser muito forte emocionalmente para
cuidar de um bebê sozinha, enquanto o namorado sumiu repentinamente, com a possibilidade de
estar morto. — Eu só… É uma boa notícia?
Levanto as pálpebras na direção de Ashton. Ele faz uma careta amargurada.
— Não são notícias. A gente veio perguntar uma coisa. — O silêncio de Ithaly é o
necessário para Ashton continuar: — Um cara do lugar que a gente estava disse que Fraser
frequentava um bar. Ele se encontrava com alguns amigos que ainda eram do ex-grupo que
Fraser participou. Esse cara disse que pode ter visto Fraser passar por lá no dia em que
desapareceu.
— Hm. — É a resposta dela.
Sinto mais uma fisgada na direção do meu pé, mas me forço a ficar quieto. Ithaly parece
ter uma batalha interna com a informação que Ashton acabou de contar, e está fazendo uma cara
tão depressiva que, se eu conseguisse ficar de pé, me levantaria para abraçá-la.
— Ithaly…
— Eu lembro de um lugar que ele me levou um dia. — Ela o interrompe. Ashton joga
um olhar na minha direção, como se perguntasse “está ouvindo?” — Quando eu descobri que
estava grávida, ele me levou lá para contar para um amigo. Parece que eles eram bem íntimos.
— Ótimo. Você sabe onde fica?
Mais silêncio. Outra fisgada no meu pé.
Estendo a mão por de trás da cadeira de Ashton para tocar no seu pulso. Ele não age
diferente quando desliza a própria mão para trás, discretamente se encostando na minha.
— Se chama The Irv, um quarteirão depois da Avenida Aberdeen, São Carlton,
Cabbagetown — Ithaly fala. Ela está com os olhos desfocados, como se estivesse fazendo um
esforço muito grande para lembrar de tudo isso. — Não tenho certeza, mas acho que o número é
195.
Ashton inspira tão alto ao meu lado que por um tempo esse é o único som da sala. Ithaly
parece prestes a desmoronar, com uma expressão tão miserável que eu não consigo olhar por
muito tempo.
— Obrigado. —Ele se levanta e a abraça. Depois, um estalo que eu adivinho ser um
beijo. Ashton se afasta dela, mas Ithaly continua inconsolável.
Sinto-me estúpido por ter continuado quieto por todo esse tempo. Abro a boca para falar
algo e no mesmo segundo Ithaly me olha. Ela me encara como uma mãe encararia para implorar
ajuda para encontrar um filho perdido, e nesse instante, é como se tivesse desaprendido as letras
do alfabeto.
— Eu sinto muito —minha voz escapa da boca. — Eu realmente sinto muito."
Ela sorri.
Meu rosto esquenta e sinto falta do aperto de Ashton na minha mão. O sorriso de Ithaly
é como um pequeno sol, como o de uma irmã orgulhosa. Está cheio de aflição, mas não deixa de
ser bonito.
— Obrigada, Evan. Por cuidar de Ashton quando ele precisou, e por estar ajudando ele a
encontrar o meu amor.
E nesse instante, eu sei que, quando chegar a hora, meu coração doerá para entregá-la
nas mãos de Will.
Dorian e Basil

uando fiz dezesseis anos, comecei a perceber os defeitos da minha


Q família.
Antes, conseguia ver claramente todos os erros das outras pessoas: os
pais de Charlie acreditavam que ele se esforçava pouco demais para alguém que carregava o
sangue deles. Os de Max não ficavam em casa, e, quando ficavam, agiam como desconhecidos.
O pai de Jasper andava em uma corda bamba entre se manter forte e ceder à tentação de se afogar
nas drogas de novo. Os de Adam eram religiosos fanáticos que nos achavam péssimas
influências. A mãe de Sally estava presa. E, por fim, Ashton…
Bem, se fosse um desafio de quem tinha a família mais fodida, Ashton ganharia.
Mas depois que comecei a notar os defeitos escondidos — não só aqueles óbvios do
qual todos já sabiam — algo em mim mudou.
Sempre ouvi que, no fim das contas, a família era a única que restava, caso algo de ruim
acontecesse. E, quando percebi os pequenos defeitos deles, não sabia dizer se eu gostava tanto
deles… Quanto achei que gostava.
Eu amo a minha mãe, isso é um fato, embora parte disso venha da obrigação de amá-la,
por, justamente, ser minha mãe. Às vezes, esse tipo de pensamento me aterroriza, porque, se ela
me amar por obrigação, então eu realmente estou ferrado.
Mas aqui, com Ashton na minha frente, dormindo tranquilamente enquanto um flash de
luz da lua passa pela cortina fina da casa de Ithaly e ilumina seu rosto, não consigo me preocupar
com nada disso; nada dessa bobeira de família maluca, nem de Fraser e seu desaparecimento, e
nem do resmungo do bebê no outro quarto enquanto Ithaly o amamenta.
Agora… É apenas Ashton.
Estico meu dedo e toco gentilmente a ponta do seu nariz. O rosto inteiro de Ashton é
afiado de um jeito estranho. Não consigo descrever de outro jeito. É afiado, como uma faca.
Perigoso, mas estranhamente atrativo.
Ashton solta um resmungo quando meu dedão roça no alto da sua bochecha. O peso do
braço dele na minha cintura é reconfortante e acho que nunca vou esquecer da sensação. A
respiração de Ashton batendo no meu rosto faz os pelos da minha nuca se arrepiarem. Gosto dos
nossos tornozelos entrelaçados e do seu joelho entre as minhas pernas, como se nós estivéssemos
tentando recompensar todo o tempo em que ficamos afastados. E, embora eu possa parecer um
maluco o olhando assim, não há nada nesse mundo que me faça cansar de adorá-lo.
Mesmo que, daqui algumas horas, o sol comece a nascer e nós tenhamos que voltar para
a realidade.
— Será que meus amigos me acham um Dorian Gray? — sussurro, ainda com a mão no
seu rosto, quando tenho certeza de que ele está acordado.
— Me sentiria ofendido por ser o Henry — Ashton resmunga, perto demais. Meu
coração erra uma batida e tenho que esperar longos segundos para acalmar os tremores do meu
coração.
— Você não me influenciou mal. Não me fez matar meu único amigo verdadeiro. Acho
que você seria o Basil, e eu não seria ingrato como o Dorian. Se você me pintasse como o Basil
pintava o menino estúpido, eu provavelmente faria o que você quisesse pelo resto da vida.
Um sorriso se forma no rosto dele. Minhas bochechas esquentam
— Dorian Gray é a pessoa mais mal-agradecida que eu já li. Não gostei muito do livro,
mas nada por conta do autor. Só não gostei… Da personalidade dos personagens. — Seu braço
direito aperta minha cintura. Solto uma risada baixa, não querendo chamar a atenção de Ithaly.
— Não gosto de gente facilmente influenciada. Dorian tinha apenas um único amigo verdadeiro,
mas se deixou cair nas garras do Henry por algumas palavras bonitas e filosofia fraca. No final
do livro, começou a dizer que nunca gostou de Basil. Eu odiei como esse livro me deixou.
— Uma pausa silenciosa. Acho que Ashton me dá tempo para refletir, mas não quero
lembrar dessa história agora, embora tenha sido eu quem entrou no assunto. Quando li a história
por obrigação na escola, percebi o quanto é fácil manipular uma pessoa para fazê-la odiar alguém
que antes gostava.
— Como você sabia que eu conhecia Dorian Gray?
Ele finalmente abre os olhos. Quero me aproximar mais, e beijá-lo. Mas não posso.
Não somos namorados.
Somos… Amigos.
— Não é difícil de presumir.
— Hmm. — Ashton geme, fechando os olhos mais uma vez. Seu cheiro “de sono” é
diferente de quando ele está acordado. A lavanda se mistura com preguiça e me faz querer chegar
mais perto para cheirá-lo. Deus, como eu posso gostar tanto de alguém assim? — Acho que nós
deveríamos voltar a dormir.
— Acho que eu seria o Basil.
Minha voz sai um pouco alta demais e isso chama a atenção dele. Seus olhos abrem
novamente e observo suas pupilas aumentarem prazerosamente.
— Por quê? — Ele pergunta com a voz dois tons mais sério.
Meus dedos roçam mais uma vez no seu pescoço, deslizando para perto do maxilar.
Vejo a forma que ele prende a respiração e eu preciso tirar autocontrole do fundo da minha alma
para não fazer nada considerado indecente para apenas amigos.
— Eu sou obcecado por você como o Basil era pelo Dorian.
Não exatamente obcecado. Apaixonado, quase devoto. Mas sei que Ashton entende o
que eu quis dizer.
— Isso é um pouco estranho. — Ele faz uma cara pensativa. — Se for assim, eu sou
obcecado por você como o Aquiles era pelo Pátroclo.
Algo dentro dos olhos de Ashton muda. Fica mais quente, como chá morno que
esquenta a língua sem feri-la. Fico animado. Sinto meu coração bater contra minhas costelas.
Meu pé não machucado roça no calcanhar dele. Sei que deve haver algo novo nos meus
olhos também.
— Você não é assim por mim.
— Você não sabe.
O observo, procurando qualquer sinal de brincadeira. Antigamente, costumávamos ter
momentos como esse. Nunca passei uma noite inteira com Ashton, mas passei a ficar mais na
casa dele do que na minha própria depois de algumas semanas de nos conhecermos. Nessa
época, falávamos tantas besteiras que eu precisava ficar longe dele por alguns dias depois desses
longos períodos juntos, porque eu gostava tanto de Ashton que tinha medo de que isso me
consumisse por inteiro.
— Você está pensando demais de novo. — Um dedão empurrando minha testa me traz
para a realidade. — Não gosto disso. Você fica se autossabotando a todo instante, te conheço o
suficiente pra perceber isso já. Sua cabeça te diz mentiras, principalmente sobre mim, porque
você não consegue aceitar que merece amor. Mas isso não é verdade. Talvez… Eu não
demonstre da forma que você quer, talvez meus bloqueios emocionais te deixem frustrado e eu
entendo. Mas isso não significa que eu te… Adoro menos.
— Não gosto quando você mente.
Não é o momento para isso. A expressão dele muda completamente.
— Quando eu menti?
— Quando disse que gostava de mim.
Tento me afastar dele, mas me atrapalho com as nossas pernas. Solto um resmungo de
dor, e ele me ajuda a colocar distância entre nós, cuidadosamente.
— Eu não menti. Nunca mentiria sobre algo assim.
Não gosto da sensação amarga que me preenche por dentro. Preciso manter a calma para
me lembrar que não estamos na casa dele, e que eu não posso falar alto — muito menos surtar.
Ithaly está no outro quarto, cuidando da pobre criança que ainda está aos prantos, enquanto meu
cérebro arranja — de novo — algum motivo para Ashton e eu discutirmos.
— Você mentiu para Omar. Usou ele para fazer ciúmes ao-
— Eu nunca disse que gostava dele. — Meu corpo gela quando escuto suas palavras
cortantes. O braço dele ainda está em volta de mim, mas agora parece algo sufocante. Me lembra
da vez em que Ashton me viu pegando o Tanakh do Fraser. De como ele… Me fez sentir
pequeno. — Não faço ideia do que seu amigo te disse, mas eu nunca disse que gostava dele. Nós
ficamos. Ele quis. Eu não fiz nada contra a vontade dele. Omar também me usou para esquecer
aquele seu amigo que pensa ser um astro do rock. —continua, me olhando fixamente. Consigo
ver a fúria em suas pupilas que, apenas segundos atrás, estavam cheias de sonolência. — Mas
nunca duvide de quando eu te digo que gosto de você. Eu sei o que eu sinto, e sou bem grande
pra identificar sentimentos. Eu-
— Você não gosta de mim como gostava de Fraser.
O arrependimento é quase instantâneo.
Quando vejo a forma que o rosto de Ashton fica estático, como se eu tivesse o
esfaqueado pelas costas, quero abrir a boca para dizer algo, desesperadamente querendo fazê-lo
parar de me olhar dessa forma, mas não tenho tempo para nada antes que Ashton se levante com
tanta força que quase me faz cair do sofá.
— Eu não vou ficar repetindo coisas que já te disse. — Ele pega minha coberta. Tento
puxá-la, mas Ashton arranca das minhas mãos. — Ele é passado. Fraser nunca mais vai voltar, e
eu gosto de você agora. Eu sei que tenho meus problemas, que às vezes não sou a pessoa mais
doce do mundo, mas você, depois de tudo o que aconteceu, é a pessoa que eu mais am- —Ashton
se interrompe, percebendo o que estava prestes a falar. Meu estômago inteiro embrulha. Ele ia
dizer que me ama? — Como você pode ser o único que não vê isso, Evan? Eu faria qualquer
coisa por você.
Eu não quero que ele vá. Sei que não tem como ir muito longe, mas qualquer centímetro
de distância parece longe demais.
Ele se deita no chão, com uma almofada na cabeça, de costas para mim.
Pelo menos me deixou ficar com o travesseiro.
Me viro, com um peso no meu coração. Um peso ainda maior do que antes.
— Mas você não quer me amar. — É a última coisa que eu sussurro antes de fechar os
olhos, baixo demais para alguém além de mim escutar, embora torça para que tenha chegado até
os ouvidos de Ashton.

A manhã começa um pesadelo e a razão disso é que os olhos furiosos de Ashton não
chegam perto do meu rosto nem uma única vez no café da manhã.
Ele está me evitando. Até Ithaly percebe.
— Vocês estão bem? — Ela pergunta depois de limpar a garganta, me olhando com
mais pena do que eu mereço.
Fui eu quem o irritei.
Isso não é nada além de uma consequência das minhas ações — das minhas idiotas
ações.
Quando saímos, porém, é pior. The Irv é exatamente como eu tinha imaginado:
terrivelmente comum e lindamente tedioso, o que é bom, levando em consideração que não estou
no melhor estado de espírito para aguentar muitas novidades.
Ashton me ajuda brevemente a descer do carro. Atrapalho-me com as muletas por
algum tempo antes de finalmente conseguir sair, sentindo a leve ardência no tornozelo que estou
começando a me acostumar, quando de repente sinto a estranha urgência de bater com aquela
merda na cabeça de Ashton por estar agindo dessa forma.
— Me desculpa — sussurro, sem ter certeza de que ele me ouviu.
Se tiver, prefere me ignorar, como já está fazendo.
Por sorte, não há escadas para eu subir. Pelo menos Ashton não fecha a porta na minha
cara, a segurando por um tempo para me deixar passar.
Dentro não há nada de diferente do que eu já tenha visto antes. Há música tocando,
baixa demais para eu identificar qual. O tintilar de pratos e talheres se chocando abafa qualquer
som, menos os das vozes animadas em conversas mais animadas ainda.
Ashton vai direto para o bar. Tento segui-lo de perto, mas não consigo acompanhar sua
rapidez. O que talvez seja melhor, porque nada me preparou para o que eu vejo.
Hazel está atrás do balcão com um avental preto e o cabelo desbotado puxado em um
rabo de cavalo tão apertado que sua pele está esticada para cima. Ela mastiga um chiclete e não
tenta disfarçar o mau humor quando me vê.
O que é bom, eu acho. Nem eu nem Ashton estamos nos melhores dias, embora a
surpresa tenha sobreposto qualquer sentimento meu por um instante.
— Você não pode beber. — Hazel diz, seus olhos fixos em mim.
Sinto os movimentos de Ashton ao meu lado, mesmo que ele esteja tentando ser
discreto. O conheço bem o suficiente para saber que, quando ele entorta a cabeça ligeiramente
para o lado, está fazendo uma pergunta silenciosa parecida com: “Vocês ainda conversam?”
— Hazel é minha ex-namorada e… Amiga — explico.
— Gostaria que você não me apresentasse assim.
— Amiga, hm? — Ashton diz baixo, porém firme e eu tenho certeza que Hazel escutou.
Arrepios escorrem pelos meus braços quando seus olhos miram minha direção pela primeira vez
no dia, e algo dentro do meu estômago se revira como uma lombriga. — Ex-namorada. — Ele
repete, parecendo sentir um gosto amargurado na boca ao dizer.
Hazel passa três copos cheios de cervejas para o garçom, que sai correndo para atender a
multidão. Nem a vi encher aqueles copos.
— Não sabia que você estava trabalhando.
— E eu não sabia que seu namorado era tão baixinho. E o que diabos você está fazendo
com essas muletas?
O Sol parece ter acendido minha alma por um instante. Hazel me olha de relance e sei
que ela encontra felicidade no meu rosto. Sinto-me idiota por isso.
— Longa história.
Acho engraçado quando brincam com Ashton sobre a altura dele, porque ele não se
ofende nem se irrita de verdade. Deixa ele tenso por um instante, mas ele relaxa no segundo
seguinte. É como uma abertura para criação de laços, como se dissesse “eu estou fazendo piadas
sobre você, logo você também pode fazer de mim”.
Mas dessa vez acontece algo diferente: Ashton permanece imóvel ao meu lado, como
uma estátua. Seus olhos, porém, estão cortantes na direção de Hazel, como se ele quisesse matá-
la apenas com isso.
Certo, a piada da altura provavelmente não deveria ter sido feita logo após eu revelar
que ela já foi minha namorada.
— Nós… — Limpo a garganta. — Será que podemos conversar?
Hazel deve ter notado a seriedade na minha expressão. Ela levanta uma sobrancelha
enquanto seca um copo. Logo em seguida, tira o avental e se vira para dentro do que deve ser a
cozinha. Apoio-me no balcão, começando a sentir meu pé doer.
Sinto os olhos de Ashton em mim quando solta um resmungo.
— Você trouxe seus remédios para dor?
— Quê? Ah. Não.
Ashton segura o olhar por mais alguns segundos no meu rosto, antes de balançar a
cabeça. Para minha surpresa, porém, ele tira algo da mochila nas suas costas e estende na minha
direção.
— Pede uma água pra sua ex-namorada e toma.
Meu coração parece coçar dentro do peito, mas, quando levanto o rosto para agradecer
Ashton, Hazel aparece.
— Certo. Do que vocês querem falar?
Peço a água e ela me traz, andando apressada. Quando volta, eu tomo o remédio, tudo
isso sendo observado pelos olhos atentos do homem ao meu lado.
— Vamos sentar. — Ela nos guia para uma mesa perto de uma das janelas. De onde
estamos, tenho a visão perfeita da TV, que está transmitindo uma partida antiga de basquete
memorável entre os Boston Celtics e os Lakers. Talvez seja por essa razão que alguns caras
soltam murmúrios animados.
Quando olho Ashton na minha frente, sinto um puxão no estômago. O rosto dele está
iluminado por um brilho alaranjado, parecido com a primeira vez que nós nos vimos na festa da
fogueira. Ele ainda usa aquela jaqueta surrada cheia de bottons, e, embora seu cabelo tenha
crescido um pouco, nada realmente mudou.
Ele vira o rosto bem na hora e eu desvio o olhar, tendo certeza que minhas orelhas
começaram a ficar vermelhas.
— Eu não faço ideia do que está acontecendo entre vocês dois, mas espero muito que
não seja por isso que vocês estão aqui hoje. Eu não sou boa com conselhos. — Hazel observa
nossa pequena interação com olhos curiosos.
Desvio meu foco para ela.
— Não, a gente- —Engulo em seco. Ashton continua me olhando. Sinto a quentura da
pele das suas pernas perto da minha, embaixo da mesa. Nossos calcanhares roçam um no outro
levemente. — A gente queria perguntar se você conhece-
— Fraser Banks. Alto, cabelo castanho claro, era de uma gangue. Ele vinha aqui há
mais ou menos… quase um ano atrás.
Hazel não responde de imediato. Ela parece estar fazendo uma lista mental de todos os
clientes que via diariamente quando franze uma das sobrancelhas.
— Vou ser sincera: eu não trabalho aqui há muito tempo. Vim trabalhar aqui porque tive
que ajudar Will com grana e-
Engasgo com a menção de Will. Automaticamente olho Ashton, cometendo o erro de
esquecer que ele não sabe quem é Will. Minha reação não passa despercebida por ele, e sei disso
quando o vejo abrir a boca como se estivesse prestes a falar algo.
— Mas talvez o gerente possa ajudar vocês — Hazel continua.
— Pode chamar ele pra gente, por favor?
— Claro.
Hazel levanta e se afasta, dando um tempo para eu e Ashton processarmos o que está
acontecendo. Ele ainda parece com raiva pela noite passada, mas posso ver o brilho curioso nas
suas pupilas.
Um dos seus pés esbarra no meu. Prendo a respiração, sentindo espasmos percorrerem
meu corpo.
— Will? — Ele pergunta, a voz tendo uma pitada de acusação. Queria que Ashton fosse
um pouco menos esperto do que realmente é, para não notar o quão estranho eu agi ao ouvir
aquele nome.
Baixinho, uma música começa a tocar. Mal dá para escutar, com o tintilar dos talheres
contra os pratos, e gritaria quando algo no basquete da TV não vai como o esperado.
Ashton abre a boca e fica estático por vários segundos. Tenho que bater no seu pé para
ele voltar à realidade.
— O que foi?
— Essa música — ele sussurra. Começo a prestar atenção. “I wanna see the canyon”, é
o que a letra está dizendo. Meio melancólica, embora esteja me fazendo sentir nostalgia de algo.
Ashton desvia o olhar para mim, e, enquanto a batida da música continua a encher o bar,
suas pupilas se conectam contra as minhas e nossos pés se roçam mais uma vez. Enquanto me
olha, ele pisca lentamente e eu preciso apertar as pulseiras nos meus pulsos para manter a calma
porque, merda, que droga está acontecendo?
— …Robert. — Escuto uma voz distante. Quando quebro o contato dos nossos olhos,
encontro Hazel ao lado da nossa mesa, com um cara ao lado: — Você não ouviu o que eu disse,
não é?
— Desculpa.
Ela solta um suspiro.
— Esse é Robert. Gerente do bar. — Ao mesmo tempo em que ela apresenta Robert, ele
nos mostra um sorriso. Seu rosto é meio quadrado, e o queixo largo demais. As sobrancelhas são
grossas iguais às de Ethan. Diferente de Hazel, Robert não tirou o avental. Imagino que isso
signifique que não esteja a fim de perder tanto tempo falando conosco. — Vou deixar vocês
conversando e vou voltar a atender.
Robert se senta ao lado de Ashton, que se assusta com o novo convidado. Ele me dá um
olhar cúmplice de reclamação parecido com aqueles que às vezes fazia, quando alguém
desconhecido chegava perto demais.
— Hazel disse que vocês queriam falar de um tal Fraser Banks. Acho que já ouvi esse
nome em algum lugar, mas atendo muita gente todo dia. Podem me mostrar uma foto do cara? —
Robert diz. Até a voz é um pouco grossa demais.
Ashton tira o celular do bolso da jaqueta e mostra ao nosso convidado, rápido o
suficiente para eu imaginar que ele tem aquela foto sempre a fácil alcance.
— Ah! O Fraser! Como eu pude esquecer dele? — Sua voz parece um tanto
decepcionada — Agora lembrei, mas faz tempo que eu não ouço notícias sobre ele. Aconteceu
alguma coisa?
Quase ouço Ashton engolindo com dificuldade. Seu rosto parece repentinamente pálido.
— Ele está desaparecido há um pouco mais de ano — Ashton responde, baixo, como se
ainda fosse difícil admitir isso. — Queríamos saber se você pode ajudar eu e o pirralho a
conseguir alguma… Pista sobre onde ele pode estar.
A expressão que Robert faz a seguir é difícil de descrever, mas a única certeza que eu
posso ter é que, definitivamente, ele não está pensando em algo bom.
— Ele parou de vir aqui mais ou menos nessa época também. Sempre achei que ele
tinha, sei lá, se mudado, já que parecia que tinha alguns caras atrás dele.
— …Caras?
— É. Fraser vivia reclamando que as coisas estavam ficando complicadas porque
estavam criando algo perigoso. Fraser falava que alguma hora isso iria destruir a vida dele, e pelo
jeito isso aconteceu mesmo.
Aperto os punhos embaixo da mesa. Robert não parece ter notado o gosto amargo que
suas palavras deixam no ar.
— Como assim? — é minha vez de perguntar.
— Ah, sabe. Ele era envolvido com coisas… Não muito boas. Sempre soube que daria
uma merda alguma hora. Acho que ele só não imaginava que aquele chefe dele poderia ser tão
louco. — Robert faz uma pausa. Parece estar pensando em algo. — Nós éramos bem amigos,
sabe? Íamos para a mesma escola desde o ensino fundamental, então ele me contava algumas
coisas. Ouvi dele que o chefe era meio surtado e que queria fazer Fraser experimentar a droga,
mas ele não quis.
Sei disso. Ashton me contou. Ele deve ter pensado a mesma coisa, depois de ter me
dado um olhar cúmplice.
— Mas Fraser vivia dizendo que esse chefe estava tentando encontrar alguém. O coitado
perdeu um filho e ficou meio pirado depois disso. Talvez quisesse vingança de quem matou o
filho dele, quem sabe?
— Por que diz isso? — Ashton pergunta.
Robert demora um pouco para responder:
— Fraser não me contava os detalhes, mas eu sempre achei estranho essa coisa de uma
droga nova. Teria que ter um químico nisso também, não é? Ou alguém que tivesse
conhecimento nessa área — Robert foca a atenção em um ponto em específico da mesa,
apertando os olhos. — Parece que nem esse criador da droga queria se envolver mais, depois de
ter visto o que ela era capaz. Fraser disse que viu uma vez os efeitos, e que esperava nunca mais
ver. Devem ter ficado com raiva do desenvolvedor da droga também, por ter deixado de ajudar
eles.
Ele dá de ombros, como se não fosse nada.
Um arrepio percorre minha espinha. O pensamento do meu pai envolvido com tudo isso
faz cada vez mais sentido. Se fosse verdade, por que ele se envolveu nisso, se iria parar de ajudá-
los depois? Poderia ter o homem que mandava Fraser ter ameaçado o meu pai de alguma forma?
Como? Por que meu pai? Por que não outra pessoa? A pessoa que controlava Fraser era
próxima da minha família, ao ponto de saber dos conhecimentos sobre química e medicina do
meu pai?
Agora, porém, nós temos uma nova pista: tudo isso é possivelmente feito por vingança.
Quais as chances de tudo isso estar sendo feito a fim de vingar um filho que morreu?
Mas o que Fraser tem a ver com isso?
Quanto mais eu penso, mais a chance de Fraser estar morto parece possível.
— Você…— Ashton começa com uma voz baixinha. Está tremendo. Ele parece
perturbado, como se o que o que ouviu o tenha atingido com força. — Você mantém registros?
— Ah, você quer dar uma olhada?
Ashton não responde, mas balança a cabeça.
Quando Robert sai, nem mesmo a música calma consegue diminuir a tensão no ar.
Ashton evita meus olhos agora, e seu peito desce e sobe com mais força do que o comum.
Isso vai causar alguma reação ruim nele mais tarde.
Robert volta alguns minutos depois, com alguns cadernos nas mãos. Ele joga na nossa
frente o amontoado e então coloca o par de punhos fechados contra a cintura, antes de soltar um
suspiro.
— Isso é tudo o que eu tenho do tempo em que ele vinha aqui. O que você quer tentar
achar exatamente?
— Eu quero apenas dar uma olhada.
Robert assente, parecendo aliviado por não ter que perder mais tanto tempo com a gente.
— Eu vou voltar a atender. Se precisarem de mim, me chamem.
Ashton se move rapidamente para alcançar os cadernos, folheando com pressa, embora
pareça estar olhando com atenção. Pego um dos cadernos, para ajudá-lo.
Acho que ficamos cerca de vinte minutos olhando todos os registros de clientes. Robert
é organizado, sempre mantém anotado quanto ganhou em tal dia. Ele, para nossa sorte, também
registrou alguns nomes, provavelmente de clientes importantes.
E a quantidade de vezes que eu li o nome de Will cria a sensação de um buraco no meu
estômago.
Vendo de fora, poderiam achar que somos dois adolescentes estudando, embora seja um
pouco estranho termos decidido fazer isso em um bar. Porém, quando Ashton dá um pulo na
cadeira e esbarra com uma mulher da mesa de trás, essa fantasia toda se esvazia da minha mente.
Principalmente quando levanto o rosto para encontrar seu olhar amedrontado na minha
direção.
O buraco no meu estômago aumenta.
— Evan. — Ashton me chama. Seu timbre tem um novo tom de ansiedade, que puxa
toda a minha atenção para ele. — Olhe isso.
O caderno é exposto na minha frente. Não encontro nada de estranho ao passar os olhos
rapidamente pelas linhas, até-
— É o mesmo dia que nós brigamos. O mesmo dia que eu fugi e ele veio atrás de mim
— Ashton fala. O som da sua voz parece estar vindo diretamente de dentro da minha mente.
Aperto as unhas contra a minha palma. — Ele deve ter vindo aqui depois de ter desistido de
tentar me encontrar.
Uma gota de suor escorre até a gola da minha camiseta quando vejo o nome abaixo do
de Fraser nos registros:
Will Hubert.
Will foi uma das últimas pessoas a ver Fraser antes de ele desaparecer.
Azul, roxo e aniversários

shton levanta-se para falar com Robert sobre mais alguma coisa, mas não
A consigo acompanhá-lo. Meu corpo parece ter entrado em estado de choque e não
consigo me mexer direito desde o momento em que li o nome de Will junto com o
de Fraser, no mesmo dia em que ele desapareceu.
Não tenho nenhuma confirmação, mas não é difícil presumir que Will está no meio
dessa história. Se eu pensar cuidadosamente, me lembro de vê-lo um dia saindo da minha casa
depois de falar com meu pai. Até aquele dia, ele estava normal, mas depois disso, nunca mais o
vi. Pelo menos não até algum tempo atrás.
O primeiro alerta vermelho foram as reclamações que Hazel fez sobre o seu
comportamento, e então, não muito tempo depois, ele me atacou.
Se ele não tivesse sido drogado com o que diabos o meu pai criou, então Will estava
sendo manipulado.
E, se Will tem algo a ver com a droga, deve conhecer quem quer que seja que está
mandando ordens para o meu pai. O que significa que… Will pode estar ligado com o
desaparecimento de Fraser.
Uma onda de enjoo me atinge.
Isso só reforça os fatos de que meu pai está no meio disso. Will, aquele dia que saiu da
minha casa… Lembro-me que meu pai comentou algo sobre a chance do braço dele doer. Isso
liga os pontos de alguma forma, não é?
Mas por que eles iriam fazer qualquer coisa ruim a Fraser? Talvez dinheiro, ou quem
sabe um desentendimento. Ashton me contou que Fraser havia dito que queriam experimentar a
droga nele, mas que não aceitou. Isso seria motivo o suficiente para matá-lo?
Quem está por trás disso tudo?
— Acho melhor a gente ir embora — Ashton aparece na minha frente. Ele está abatido,
posso ver isso por seus lábios pálidos. Acho que, mesmo que não tenhamos descoberto tantas
coisas, demos um passo consideravelmente grande na direção certa.
— Eu só… tenho que falar com Hazel antes.
Uma veia na sua testa fica evidente quando ele aperta o maxilar, mas ele só assente
antes de arrumar a jaqueta pelos ombros e dizer:
— Vou te esperar lá fora.
Levanto-me e vou em direção ao balcão. Hazel está enchendo mais dois copos, mas,
mesmo sem levantar o rosto, provavelmente soube que sou eu.
— Ele vai ficar com ciúmes se você falar comigo sozinho.
— Hazel. — Engulo em seco, ajeitando as muletas embaixo das minhas axilas. — Fique
de olho no Will. Se acontecer alguma coisa, você… — De repente, Hazel me encara. Seus olhos
se enchem com uma onda de preocupação e eu sinto que deveria ter abordado esse assunto de
maneira diferente. — Acho que vou precisar da sua ajuda alguma hora dessas. Envolvendo ele.
Se… Acontecer alguma coisa, você poderia me ajudar?
Ela não responde de imediato, e continua parada, apenas me olhando, parecendo tentar
achar algum resquício de brincadeira nas minhas palavras.
— Você não está brincando, está?
— Não. — Balanço a cabeça.
Hazel demora um pouco para responder. Ela olha o copo nas mãos como se fosse tudo o
que precisa para resolver um mistério.
— Eu ajudo. — Seu timbre soa tenso, mas sinto que ela sabe exatamente do que estou
falando.
Um arrepio cruza meu corpo com esse pensamento.
Despeço-me dela, virando os calcanhares com dificuldade por causa das muletas.
— Evan? — Ela chama de novo. Volto-me na sua direção, esperando que continue. —
Feliz aniversário.
***
Ashton está escorado na parede do bar. Mesmo quem estiver apenas passando pela
calçada perceberia que há algo de errado com ele: o cigarro nas suas mãos treme e, embora eu
queira lhe dizer que fumar agora é a maior hipocrisia do mundo — principalmente depois
daquela nossa briga — me mantenho quieto porque, quando ele percebe minha presença, seus
olhos encontram os meus e eu noto que ele esteve chorando.
— Ashton…
— Vamos embora — Ele diz, se virando.
— É meu aniversário.
Em um instante, ele para. Não se vira, não me olha, mas continua ali. Seus ombros
descem e sobem com força e quase me arrependo de ter dito isso, percebendo que talvez tenha
colocado muita pressão nele. Mas então Ashton caminha até mim e para o mais perto possível
sem que nos beijemos de verdade.
O ar some dos meus pulmões.
— Eu esqueci. — Ele admite. Há um tom de desapontamento em sua voz. — Desculpa.
— Não… — Não consigo falar. Ele está tão perto e aquele maldito cheiro de lavanda,
mesmo que misturado com cigarro, parece fazer meu cérebro derreter. — Não tem problema.
Você já me deu um presente.
— Mas eu queria passar o dia com você também.
Minhas orelhas esquentam.
— Você passou, não passou?
Ele não responde e ficamos nesse pequeno casulo por mais algum tempo.
— Eu fiquei pensando… —Ashton começa, lentamente. — Eu queria fazer algo
importante no seu aniversário.
— Você não precisa fazer algo importante — respondo. Deixo a tentação tomar conta
das minhas ações e coloco, com delicadeza, uma das minhas mãos na cintura dele. O puxo para
perto, o tirando da frente da entrada. Ashton respira na minha boca por um instante, e a ponta do
meu nariz toca a dele.
— Mas eu tinha algo planejado. E agora…
— Nós podemos fazer o que você planejou, não podemos? — Minha respiração fica
presa no meio do caminho pela minha garganta quando Ashton coloca a mão sobre a minha, que
está na sua cintura. — A gente… Descobriu bastante coisa hoje. Não precisamos nos preocupar
pela noite. Podemos… Comemorar.
Ele não responde, mas balança a cabeça. Esse pequeno gesto faz meu coração ferver.
Como alguém pode ser ridiculamente bonito?
— Vamos.
Então Ashton me puxa pela mão e nós caminhamos até a Parliament St, enquanto a
única coisa que passa na minha cabeça é que eu e Ashton nunca poderemos ser apenas amigos.

Descemos do ônibus 56A na parada Laird Dr, na Esander Dr North Side e caminhamos
cerca de dois minutos antes de virarmos à esquerda e darmos de cara com Tim Hortons.
Seria uma ótima forma de comemorar meu aniversário.
— Eu vinha muito aqui com meus amigos antes — comento, ainda consciente demais
de todo o meu corpo enquanto Ashton segura a minha mão.
Ashton desvia dos carros estacionados na frente da entrada então para na porta e olha
para mim. Ele parece preocupado com algo, como se tivesse que conferir a todo instante se estou
feliz de estar aqui, no Tim Hortons com ele, no meu aniversário.
Não sei o que dizer. Há muita coisa passando pela minha mente e um nervosismo
terrível faz minha mão suar. Esse é… Nosso primeiro encontro oficial? Quero dizer, isso é um
encontro?
Nós somos amigos que vão a encontros?
Amigos.
Essa palavra deixa um gosto amargurado na minha boca.
Ashton empurra a porta parecendo ter decidido que está tudo bem. Eu o sigo de perto e
nós paramos na frente do balcão. Cheira a comida e eu não havia notado o quanto estou com
fome até este momento. A quantidade de doces expostos atrás do vidro do balcão me deixa
vidrado, até que lembro de algo.
— Ashton — o chamo. Ele desvia a atenção do rapaz que está nos atendendo. — Eu não
tenho dinheiro.
— Eu tenho. É seu aniversário. Eu pago.
Um instante depois, ele volta a fazer nossos pedidos. Digo a ele que quero timbits,
mesmo que a ideia de ele tendo dinheiro me deixe um pouco preocupado. Ashton não está
trabalhando — pelo menos não até onde eu sei.
O escuto pedir café gelado e digo apressado.
— Na verdade, eu queria uma raspadinha de café.
Ele me olha estranho.
— Agora? Você não quer algo pra tomar enquanto come os timbits? — Ashton levanta
uma sobrancelha. — Você passa mal se comer muita coisa. Não quero que você passe mal hoje.
Demoro um pouco para responder, porque repentinamente meu coração parece quente
dentro do meu peito por ele lembrar desses pequenos detalhes sobre mim.
— Pode ser café, então.
O garçom fala mais alguma coisa com Ashton e viramos para encontrar uma mesa.
Nos sentamos na mesa embaixo da TV, e, quando Ashton para do meu lado, pegando
mais alguns dos meus timbits, não consigo controlar minha curiosidade:
— De onde você arranjou dinheiro?
Ele deve ter notado o tom de acusação na minha voz.
— Não roubei nada, Evan.
— Eu não disse isso.
— Arranjei com Ithaly. Ela me deu alguns dólares pra comprar algo pra você.
Experimento um dos meus timbits.
— Ela não se importa?
Ashton estende o braço para o acento nas minhas costas.
— Com o quê?
— Tipo, você era apaixonado pelo marido dela, e agora ele desapareceu e…
Ele faz uma expressão pensativa. E, ao contrário do que pensei, continua calmo.
— Eu também não entendo muito bem como ela lidou com tudo isso. Acho que foi por
causa de Frank.
— Frank? — Sinto sua mão encostando no meu ombro; sinto ele agarrando o tecido da
minha jaqueta jeans. Engulo em seco.
— Nosso filho.
Meu peito afunda.
Nosso filho?!
Acho que prendo a respiração por tempo demais, porque repentinamente, meus olhos
ardem como se sangue fosse explodir deles.
— …Filho?
— Ah, não é meu de verdade — Ashton explica com uma voz despreocupada. Ele evita
meus olhos, mantendo a atenção para a vidraça que dá a visão do pequeno estacionamento. — É
o bebê da Ithaly e do Fraser, mas ela diz que é filho de nós três e eu me acostumei com a ideia.
— É por isso que você protege tanto eles? — Odeio como a minha voz sai enciumada,
como se eu fosse um amante vendo meu parceiro me deixando no meio da noite para voltar para
a esposa.
— Um pouco. É mais porque Ithaly, um tempo atrás, desde que Fraser sumiu, começou
a ter a impressão de que estava sendo seguida. Acho que fiquei um pouco paranoico com isso.
— E você nunca teve essa impressão em relação a si mesmo?
— Que eu estava sendo seguido? — pergunta. Balanço a cabeça. — Sim. Quer dizer, é
óbvio. Mas ela tinha o bebê, estava grávida no tempo em que isso começou. Eu tinha que cuidar
dela, já que… Prometi pra Fraser que se algo acontecesse com ele, eu não abandonaria ela e o
bebê.
Balanço o ombro para tirar a mão dele de mim. Ashton nota meu movimento brusco e
finalmente vira o rosto na minha direção.
— Isso é muito doce vindo de você.
Ele solta uma pequena risada mas sei que ele notou minha expressão azeda.
— Sabe o que a gente deveria fazer? — pergunta, depois de uma pausa silenciosa. Seu
ombro esbarra no meu, como um gatinho miando por atenção. — Pra comemorar?
— O quê?
— Pintar o cabelo.
— O quê? — Eu instintivamente sorrio. — Por quê?
— Uma nova fase.
O pensamento de que talvez ele não tenha tomado os remédios cruza minha mente antes
mesmo que eu possa impedir. Mas, com ele me olhando desse jeito, a cabeça levemente
inclinada e o cabelo cobrindo uma parte dos olhos, eu não consigo dizer não.
— Vamos.

Ashton está agindo de forma um pouco agitada, não posso deixar de reparar.
Ele me guia por Toronto até a casa dele e admito que ir lá de novo me deixa um pouco
nervoso. Nós passamos em uma farmácia para comprar tinta e quando o vi pegando um tom azul,
algo dentro de mim ficou ansioso. Sei que, na hora, ele notou meus olhos curiosos, e balançou a
tinta na frente dos meus olhos em um gesto de provocação, como se gostasse de saber que apenas
um dos seus pequenos movimentos me afeta mais do que qualquer outra coisa no mundo.
Então, fiquei mais surpreso ainda quando ele pegou uma tinta roxa para mim.
— É minha cor preferida — ele explica. — Quero ver minha cor favorita em uma das
minhas pessoas favoritas.
E só com isso, fiquei o caminho todo sorridente.
Ashton, quando não toma os remédios, normalmente começa a ficar muito agitado.
Comecei a notar mais isso depois da minha conversa com Zya, quando ela me explicou para
reparar nos pequenos detalhes.
E embora eu gostasse de vê-lo sorrindo e estando um pouco mais relaxado do que o
normal, eu ainda não conseguia deixar o nervosismo de lado.
— Você está começando a ficar igual a Zya — ele murmura depois de fechar a porta
atrás de mim. Sinto o cheiro da casa quase que imediatamente: a casa de Ashton tinha um cheiro
único, uma mistura de lavanda e de… Cheiro de leite. Imagino que Ashton tenha ido ver Ithaly
mais vezes nesse tempo em que ficamos brigados, mas decido engolir esse caroço no fundo da
minha garganta quando sinto seus dedos apertando meu braço. — Não gosto quando vocês me
olham assim, como se eu fosse uma criança.
— Eu só… Não é nada.
Ele me observa de canto de olho, mas permanece em silêncio.
— Tire a blusa — ele diz de repente. Quando levanto os olhos e volto a prestar atenção
no mundo à minha volta, engasgo com a visão de Ashton sem camiseta na minha frente.
Eu já havia sentido a força dos seus braços em volta de mim, já havia sido abraçado
contra aquele peitoral e já estive pendurado sobre seu corpo quando brigávamos de brincadeira, e
eu, mesmo antes de experimentar tudo isso, sempre soube dos músculos que Ashton escondia por
debaixo das jaquetas de couro, mas é muito difícil lidar com a cena real de tudo isso, porque sou
atingido com força por ela.
— O… o quê? — Um sussurro gaguejado sai dos meus lábios. — Por quê?
Sei que ele nota a vermelhidão das minhas bochechas, porque Ashton só sorri desse
jeito quando eu coro.
— Você quer que suas roupas sujem de tinta? — E, só nesse instante, noto que ele
colocou luvas de plástico, preparando as tintas. — Tira a blusa, eu vou passar tinta no seu cabelo
e depois você passa no meu.
Faço o que ele pede, como sempre.
Minha blusa desliza pela minha pele e continuo sentindo os olhos dele observando meus
movimentos. Meu interior formiga quando eu encontro seu olhar pelo espelho do banheiro. Ele já
está com as tintas roxas na mão, e apenas agora percebo que não faço ideia de como ele quer
pintar meu cabelo.
— Você quer pintar tudo?
— Não. Só as pontas. Não tenho água oxigenada o suficiente para descolorir o seu
cabelo inteiro.
Me sento na bancada do banheiro, deixando as muletas de lado — suspirando de alívio
por finalmente tirar o peso do meu calcanhar cheio de pontos — e Ashton encontra um lugar no
meio das minhas pernas para pegar delicadamente algumas mechas do meu cabelo e passar
aquele produto fedido. Meu nariz começa a arder quase que instantaneamente.
— Está ardendo? — Ashton pergunta, tendo que levantar o rosto para me olhar. Seus
cílios claros fazem sombras nas pálpebras e eu quase o aperto entre minhas coxas por isso.
— Não. Só está fedendo.
Ele continua o que está fazendo, em silêncio.
Quando a água oxigenada deixa a ponta dos meus cabelos loiros, Ashton empurra minha
cabeça para baixo da torneira.
— Segura a respiração.
— Não era melhor eu tomar banho? — Alguns bocados de água entram na minha boca
quando eu pergunto. A mão de Ashton mantém meu pescoço firme embaixo da água, enquanto
os dedos da outra mão massageiam o meu couro cabeludo para retirar a água oxigenada.
Logo após ele molhar meu cabelo o suficiente, volto para cima do balcão da pia para ele
passar a tinta roxa. As pontas estão cheias de gotas, que começam a pingar na minha calça.
Por algum motivo, Ashton solta uma risada baixinha.
— Aquela vez que nós fumamos maconha juntos, eu só disse que você teria que tomar
banho aqui pra tirar o cheiro porque eu estava desesperado.
Meus ouvidos começam a ouvir mais atentamente.
— Desesperado?
— Eu estava interessado em você, Evan. Tinha que arranjar um jeito de te trazer pra
minha casa — ele responde e pela primeira vez na noite vejo um tom rubro tomar conta das suas
bochechas, causando um puxão no meu estômago.
A bochecha dele toca acidentalmente meus lábios quando ele começa a espalhar tinta
azul na lateral do meu cabelo. Tento não pensar que isso tinha sido proposital.
— Essa frase ficou um pouco assustadora.
— É pra ser assustadora. Eu queria trazer você pra minha casa. Por quê? Te dou duas
opções: a primeira é que eu queria te matar e esconder seus membros no meu congelador até o
quarteirão inteiro feder. A segunda é que eu queria trazer você aqui, te levar pro meu quarto, tirar
suas roupas e fazer coisas que só amantes fazem no escuro. O que você acha que era o mais
provável, levando em consideração que você ainda está vivo?
Aperto minhas pernas instintivamente em volta dele. Ashton tira o rosto de mim e para
na minha frente. Seus olhos se conectam com os meus e eu preciso engolir em seco antes de
responder.
— Se você não tivesse aquele episódio ou saído de casa daquela forma, o que teria feito
comigo?
Ele sorri.
Essa é a resposta.
Desvio o olhar.
— Por que você continua fazendo isso comigo se vai continuar dizendo que nós somos
só amigos? — Há um tom de raiva na minha voz, que não tento esconder. Acho que tenho direito
de ficar irritado. Ashton está brincando com meus sentimentos.
Isso é uma coisa que me assusta.
Eu não sei até que ponto meu amor por ele vai. Não sei até onde a linha de amor termina
e a obsessão começa.
Uma vez eu ouvi em algum lugar que existem dois tipos de relacionamentos o qual você
vai se lembrar para sempre: o que você queria que desse certo e o que deu. E eu no momento
estou na primeira opção, torcendo para ir para a segunda.
Meu amor por Ashton me assusta, porque eu tenho certeza de que se ele realmente não
me quiser mais, nunca serei capaz de esquecê-lo. Nunca me esquecerei do gosto dele nos meus
lábios, nunca conseguirei deixar de comparar o que eu sinto por Ashton com o que eu sentir por
outras pessoas.
O que me assusta de verdade é a ideia de que talvez Ashton sinta isso por Fraser. Que
ele me compare com Fraser enquanto está me tocando. Que compare os sentimentos.
As coisas não deveriam ser assim — com a minha cabeça cheia de inseguranças,
embora a maioria delas sejam de fato paranoias minhas — e parece que, se eu levar realmente
em consideração os fatos, existem razões bem plausíveis para termos terminado.
— Eu sinto que não aguentaria te perder também — ele responde, trazendo-me de volta
para a realidade. Encaro suas pálpebras, enquanto ele olha as próprias mãos. — Quando eu
percebi que te enfiei no meio de tudo isso foi como um tombo. Quando aquele cachorro te
mordeu-
— Ele te mordeu também, não mordeu?
— Foi um arranhão. Ele não chegou a furar a pele, só tentou.
Sei que ele está mentindo.
— Evan. — Ele chama. — Se eu morrer, o que você vai fazer? Já pensou nisso?
— E se eu morrer?
Ashton faz uma expressão complicada. Não parece ter gostado desse cenário.
— Eu ficaria louco. Já percebeu? Talvez seja por isso que nós não deveríamos ser
namorados. Porque… Eu enlouqueceria se te perdesse também. — Mesmo dizendo isso, mesmo
que suas palavras soem frias, quando sua testa encosta na minha, preciso respirar fundo. Isso é
mais íntimo do que qualquer beijo que já demos. É mais íntimo do que qualquer outra coisa que
já fizemos. — E não quero isso para você. Quero que você queira viver, quero que continue,
quero que não desista, mesmo que, no pior dos casos, algo aconteça comigo.
— Por isso que você terminou comigo? Foi porque você acha que um de nós vai
morrer?
Ele não responde. De alguma forma sei que isso tem a ver com aquela mordida. Que
nosso tempo está acabando.
Ashton não precisa dizer nada.
É meu aniversário. Eu não quero falar sobre isso. Hoje não é para falar sobre a morte, é
para comemorar mais um ano vivo.
Três meses que eu o conheço.
— Me fale feliz aniversário.
Um pouco da melancolia sai de sua expressão. Ele sorri para mim.
— Feliz aniversário, mon garçon doré.
Não sei o que ele disse, mas sei que é francês. Sua língua materna. Isso me faz sorrir
mais do que acho possível. E talvez a linguagem do amor ultrapassasse a barreira das línguas,
porque sei que foi algo bom.
Tenho certeza porque, embora nossa conversa sobre não sermos mais namorados tenha
acontecido há segundos, Ashton ainda me permite dar um beijo no canto dos seus lábios.
Foi como beber água depois de muito tempo com sede.

A ponta dos meus cabelos está roxa e as de Ashton, azuis. Estou com a cor favorita dele
em uma parte do meu corpo, e isso me faz sentir a pessoa mais bonita do mundo.
Adormeço feliz, ao lado de Ashton, no seu quarto. Ele deixa o abajur ligado até eu
dormir, e, embora eu queira ficar acordado e nunca parar de olhá-lo, fecho os olhos sem
perceber, sentindo uma quentura no peito, e tenho certeza de que esse foi o melhor aniversário da
minha vida.

Acordo com um estrondo. Estendo o braço, procurando a presença de Ashton ao meu


lado, mas quando sinto um vazio, abro os olhos imediatamente. Logo em seguida, outro estrondo
arrebenta o ar, e, de repente, tenho uma sensação ruim.
Terrivelmente ruim.
Os barulhos estão vindo do lado de fora do quarto, e, quando abro a porta, outro estouro
acontece. E, à medida que me aproximo da sala com as muletas embaixo dos meus braços,
começo a presumir o que está acontecendo. Há um buraco na parede do corredor e roupas
espalhadas por todo canto.
Quando saio do corredor, porém, é que preciso segurar a respiração. O sofá estava
virado, a TV caiu da mesinha do centro e vidro está espalhado por todo canto. Quando dou um
passo sem prestar atenção, na mesma hora, sinto uma dor aguda subir pela minha perna.
— Merda.
Mais um estrondo. Uma voz.
Quando caminho para a cozinha, ignorando a dor nos meus pés por causa dos cacos,
começo a perceber que meus olhos estão ardendo. Sei o que vou encontrar, mas nada me
preparou para o que vejo.
Todas as gavetas e armários estão abertos. Há tanta comida no chão quanto vidro, e
minhas entranhas se contorcem. No meio dessa obra de arte aterrorizante, está Ashton, com o
rosto enterrado no meio dos joelhos, totalmente estático. Quando dou um passo para a frente,
também noto que ele está olhando um ponto fixo no chão: o Tanakh de Fraser.
Respiro fundo. Muito fundo. Tão fundo quanto posso, desejando, por um segundo,
poder tirar todo o ar dos meus pulmões, o suficiente para não voltarem.
— Ashton — tento chamá-lo.
Provavelmente não é uma boa ideia. Estou ficando nervoso, posso sentir o cheiro de
uma crise se aproximando, como se um tsunami estivesse vindo na minha direção e eu não
pudesse fazer nada além de fechar os olhos e torcer para não doer.
Torcer para acabar rápido.
Quando abro os olhos, porém, percebo que continuo aqui, olhando as costas do meu ex-
namorado, o qual eu ainda infelizmente amo mais do que deveria.
Noto, então, que ele disse algo.
— O quê? — pergunto.
— Hoje. — Ele começa. Sua voz está rouca. Parece ter sido desgastada através de
gritos e me pergunto como não ouvi a bagunça que ele estava fazendo na casa antes. — Hoje
seria o aniversário de Fraser.
Desvio meus olhos de Ashton. Não aguento olhar na sua direção depois dessas palavras.
Talvez seja realmente bom que nós tenhamos terminado.
Ashton nunca vai conseguir superar Fraser.
Mas, antes que eu possa pensar, ele já pegou um caco de vidro.
Pessoa específica

aquela noite, sonhei com a minha mãe. No sonho, ela tinha morrido e
N lembro que meus olhos não paravam de doer porque muitas lágrimas queriam sair
deles ao mesmo tempo.
Lembro de ter ficado aterrorizado com a ideia de nunca mais escutar sua voz, de ver
seus olhos pessoalmente ou de poder sentir suas mãos afagando meu cabelo quando eu tinha um
dia ruim. Pensar que algum dia eu realmente ficaria sem tudo isso é o pior de tudo.
Por que eu deveria amar pessoas se elas seriam arrancadas de mim repentinamente?
Sei que não deveria pensar nisso — porque a dor que a minha mãe sentiria caso se
tornasse verdade seria imensamente maior do que qualquer coisa que algum dia eu poderia sentir
— mas eu gostaria de morrer antes de todos. Antes de Ash, de Randall, da minha mãe, e até
mesmo do meu pai.
Quando eu tinha três anos, ganhei uma cachorra. Era linda e eu acho que nunca amei
ninguém fora da minha família daquele jeito — isso até conhecer Ash e Charlie, é claro. E me
lembro com exatidão do que eu senti quando ela morreu, e que, um dia depois de ter perdido ela,
deitei na minha cama de madrugada e senti meu peito quase que literalmente explodindo de dor.
Essa é uma das sensações que nunca sairão da minha mente, e, apesar de ter amortecido depois
desses anos, meus olhos ainda ardem se eu pensar demais nela.
Foi a primeira e única cachorrinha que meu pai me deixou ter. E, mesmo se eu tivesse
outra, nunca seria igual a ela.
É a mesma coisa para minha mãe.
Acordei suado e com o nariz trancado. Essa é a única pista que eu precisei para ter
certeza de que tinha chorado.
Então, quando a consciência começa a voltar para o meu corpo, percebo onde estou:
naquele mesmo quarto em que fiquei quando o cachorro destruiu meu pé. Mas, diferente de
antes, não sou eu quem está na maca.
É Ash.
Ele já está acordado. Eu acho. Quer dizer, ele parece estar com os olhos abertos. Espero
que esteja acordado, porque senão seria uma forma muito esquisita de dormir.
— Ash? — o chamo. Minha voz está rouca e lembro do que aconteceu nas últimas vinte
e quatro horas.
Lembro de como o começo do dia foi terrível, com a nossa briga na casa de Ithaly.
Então de como ficou incrível, porque comemos no Tim Hortons e, bem, eu preciso olhar um
pouco para cima e ver as manchas roxas nas pontas do meu cabelo para lembrar do que
aconteceu em seguida, e do nosso discreto e inocente beijo. A prova de que tudo isso aconteceu
de verdade — se a tinta no meu cabelo e no de Ashton não bastasse — são os machucados na
pele do homem à minha frente.
Vejo palavras se formando em seus lábios, mas não sei se quero ouvi-las.
— Por isso que eu terminei com você — ele diz, com a voz ainda mais rouca do que a
minha. — Não queria te arrastar pra esse inferno.
— Ash. — Eu apenas repito o seu nome, porque não sei o que mais dizer.
É verdade que ver ele nessa situação por causa de Fraser machuca uma parte profunda
do meu coração. Acho que é um sentimento inevitável e imprevisível, mesmo que no fundo eu
soubesse que Ash alguma hora teria algum colapso por conta desse assunto. Eu só não esperava
que ele fosse agir como agiu ontem.
Fiz um passo em falso. Aproximei-me de Ashton e tentei tocá-lo. Não imaginei que ele
pegaria um dos vidros quebrados e me empurraria com tanta força que bateria o corpo no chão.
Sei que ele não tinha feito de propósito, e uma prova disso foram seus olhos aterrorizados
quando me viu cambaleando para levantar. Eu estava zonzo, mas notei o que ele pretendia fazer:
o vidro mudou de direção e estava indo para os pulsos dele. Naquela hora, minha mente ficou em
branco e meu peito se acelerou tanto que eu achei que estava tendo um ataque cardíaco.
Porém, de alguma forma, consegui fazê-lo soltar o vidro. Ashton ficou parado por
segundos incontáveis depois disso, e temi que ele pudesse fazer algo perigoso de novo. Talvez
tenha sido por isso que tive coragem de me aproximar mais uma vez, apesar dos avisos de que
isso era uma péssima ideia.
Mas então ele fez algo que eu não esperava: me abraçou com tanta força que as costelas
apertaram meus pulmões. E, quando eu o ouvi dizer algo no meu ouvido, o apertei com a mesma
intensidade.
— Me desculpa. — Foi o que ele disse repetidas vezes.
Então, eu o acalmei. Não totalmente. Sabia que era apenas um estado de repouso e que,
quando ele acordasse novamente, outra onda de caos viria. Por isso eu liguei para Zya, e por isso
ela disse que seria melhor se ele fosse internado.
Não discuti. Embora estivéssemos perto de descobrir o que aconteceu com Fraser,
embora estivéssemos perto de desmascarar meu pai e Will, quando Zya disse que ele teria que
ficar no mínimo uma semana internado, eu não discuti. Porque nada mais importa do que a saúde
dele.
— Amor não cura doenças, Evan. Amor não faz traumas desaparecerem, nem feridas se
fecharem de repente. Eu sei que você está tentando, e que em certo ponto está conseguindo me
ajudar, mas eu tenho a impressão de que você acha que meus problemas são suas
responsabilidades — Ash continua dizendo, a voz afiada como uma navalha. Ele não me olha,
está encarando a parede branca com desinteresse, piscando a cada dez segundos. Ele não está se
movendo, e sinto que essa conversa vai me ferir de um jeito que eu talvez nunca me recupere. —
E eu sinto que… Você está se tornando dependente de mim, que seu amor por mim está
ultrapassando uma linha muito perigosa, e depender de alguém com bipolaridade não é uma boa
escolha. Depender de ninguém é.
— Eu…
— Me escute. Eu sei o que você está sentindo.
É como se ele estivesse enfiando a faca no meu coração.
— Eu senti isso por Fraser também. —
E torcido.
— E se acontecer algo comigo, eu não quero que você fique do mesmo jeito que eu fico
por ele.
E tirado a faca, apenas para enfiá-la novamente.
— Não quero que você fique comigo por necessidade, porque não consegue se sentir
bem sozinho. Eu quero que você goste de mim porque… Você quer. Quero que você me ame,
mas sem o fato de que você precisa estar comigo para rir, ou ficar tranquilo. Eu gostaria de ser
um porto seguro para você, porque você é um para mim, mas amor não cura nada. Eu quero que
você me ame, porque eu te-
— Certo, então você… —Zya abre a porta num segundo, como se estivesse escutando
atrás da madeira e soubesse que tinha que interromper o que quer que Ashton tinha para me
dizer, porque se ele falasse o que eu achei que diria, então estaria feito. Seria irreversível. —
Estou interrompendo algo?
— Não — ele responde mais rápido.
— Certo — Zya continua. — Você vai ter que ficar internado, Ash. Depois do que
aconteceu-
— Eu não posso ficar aqui-
— Ash. — Ela se aproxima e, de alguma forma, sei que começaria uma conversa
íntima. Algo sobre o que eu não entenderia o contexto, mesmo que saiba de todas as palavras que
saíam dos seus lábios. — Fraser não iria querer você indo atrás dele dessa forma. Fraser-
— Ele está morto. — Essa voz me faz hesitar. Dou um passo para trás e esbarro na
parede. — Eu estou cansado. Muito cansado de toda hora alguém me dizer coisas como “Fraser
não iria querer você assim”. Ele está morto. Ele não quer mais nada. Ele… — nesse instante,
seus olhos saem de Zya e me encontram. Ele fica em silêncio por um segundo, e eu observo
quando a água começa a encher as bordas de seus olhos. — Estou cansado de me tratarem como
vidro frágil que vai se quebrar no instante em que ouvir as palavras “Fraser está morto”. Eu sei
que ele morreu. Você acha que ele não voltaria para Ithaly se estivesse vivo? Ele amava ela.
Mais silêncio. Mais sufoco. Não sei se é a minha respiração ou a de Ashton que está
fazendo barulho, mas sei que meus pulmões estão ardendo por dentro. Quero sair daqui. Quero
sair de perto dele.
Ele ama Fraser. E Fraser amava Ithaly. E eu amo Ashton.
Fraser não existe mais.
Vejo Ashton mexendo a boca. Ele está falando algo, mas eu não consigo escutar. Há um
sinal dentro da minha mente mandando os comandos para eu sair desse quarto. E faço isso. Abro
a porta e saio, ignorando quando alguém chama meu nome. Não sei qual dos dois. Não importa.
Quero ver a minha mãe.

É engraçado e terrível como eu só penso nele. Por algumas semanas, eu nem sequer vim
visitá-la. Eu nem sequer pensei sobre isso. Só pensava nele. Mas agora que eu estou no ônibus
indo em direção ao hospital em que ela está, noto o quanto senti sua falta.
Quando se para de focar apenas em uma pessoa, sua visão parece aumentar. Você nota
coisas que não tinha notado antes. Não vi as mensagens de Max no meu celular, de doze horas
atrás, me mandando feliz aniversário, dizendo o quanto me amava. Nem de Sally dizendo que
queria poder me abraçar, que não queria estar em outra cidade. Ou de Charlie dizendo que havia
comprado uma edição especial para mim. Eu não vi nada disso. Nenhuma dessas mensagens,
nem as de Jasper, falando que, apesar de eu ser um bundão, ele me amava. Não vi nada disso.
Porque eu estava tentando consertar algo que eu não vou conseguir consertar. Eu estava tentando
viver por Ashton.
Eu sou um péssimo amigo.
Uma péssima pessoa.
Respondo cada um deles, cada vez mais com a visão embaçada, tentando decidir se seria
uma boa ideia ligar para algum deles.
Decido que sim.
— Oi. — Ele atende no terceiro toque. Não responde meu oi. — Como vão as coisas?
— É sério? — Há um tom de rispidez na voz do meu amigo que nunca houve antes. Me
encolho no assento do ônibus. — Porra, Evan. Nós… A gente fez uma festa surpresa pra você na
sua casa. Nós compramos comida, organizamos as coisas. Era pra ser uma festa surpresa, mas
você não apareceu e a gente tentou te ligar milhares de vezes e… — Há uma voz de fundo.
Jasper. — Nós deixamos o bolo na sua casa, mas trouxemos o resto para a casa de Jasper. Coma
se quiser.
E então ele desliga.
E eu mal tenho tempo de respirar antes que outra mensagem faça meu celular vibrar.
É uma foto. Enviada por Will.
Uma foto da minha mãe.
Will: O endereço da Ithaly. Agora.
E talvez pela primeira vez em muito tempo eu não faço algo pensando nos sentimentos
de Ashton, e mando o endereço.

Achei que chegaria no hospital e ele estaria em chamas. Achei que Will teria metralhado
cada canto daquelas paredes, mas quando paro na frente da porta do quarto onde minha mãe está,
não há nada de anormal. Nada sequer fora do lugar. E isso é mais aterrorizante do que ver o lugar
em chamas, porque isso significa que Will está se movendo rápido.
Ele não está deixando rastros, pistas. Eu não posso ir contra eles.
Mas abraço minha mãe e escuto o pib dos seus batimentos na máquina e quero que ela
permaneça assim, dormindo por um longo tempo, com as memórias do meu eu antigo.
Não quero que ela veja o eu de agora. Não quero que ela veja quem eu me tornei,
embora eu não saiba se minha versão antiga era melhor do que a de agora.
Eu a abraço de novo. A abraço com mais força do que da última vez. A abraço com
mais força porque não sei se terei uma nova oportunidade. Não depois do que tenho que fazer.
E, quando eu a deixo, vou em direção ao apartamento de Ashton.

Ele nunca me explicou, mas eu sempre soube onde a arma fica guardada. Tem um lugar
embaixo da cama onde uma tábua de madeira está frouxa. Ela se solta se você pisar com muita
força e um dia, quando Ashton e eu estávamos arrastando os móveis para limpar a casa, eu
tropecei naquele lugar. Ashton não disfarçou porque no fundo nós dois sabíamos que ele queria
que eu a usasse. Que ele queria que eu soubesse exatamente onde ela estava.
Tenho uma chave reserva, por isso entro como se fosse a minha própria casa.
É engraçado vir aqui de novo, porque se eu fechar os olhos, consigo me lembrar da
primeira vez em que senti esse cheiro e de como eu achei que Ashton era tudo o que eu
precisava. Agora, vendo tudo bagunçado e lembrando do que aconteceu apenas algumas horas
atrás, me faz lembrar que embora Ashton ainda seja tudo o que eu quero, eu não sou o que ele
quer.
Merda, estou começando a me rebaixar de novo.
Talvez eu devesse parar de pensar assim. Talvez eu devesse começar a perceber que, se
ele realmente não me quer, meus amigos estariam do meu lado (embora eu tenha pisado na bola
com eles), minha mãe estaria do meu lado, meu irmão estaria do meu lado. E, quem sabe no
futuro, também não pudesse aprender que eu mesmo estou ao meu lado, sendo a única pessoa da
qual eu preciso verdadeiramente. Não há como ninguém me amar se eu não o fizer antes.
Respiro fundo, evitando pisar nos livros derrubados, e sigo na direção do quarto dele.
Arrasto a cama, quando chego.
Há um gelado na minha nuca, como uma segunda presença, me observando. Me sinto
frágil e pequeno, sabendo do que eu fiz. Que eu coloquei a vida de uma criança e de uma mulher
inocentes em jogo para salvar a minha própria pele.
Respiro fundo. Respiro fundo várias vezes.
Respiro fundo quando piso na tábua e quando ela se solta. Respiro fundo quando vejo a
arma. E estremeço quando a toco.
Agora entendo o porquê Ashton queria me ensinar. É como se ele sempre soubesse
desse momento. Como soubesse que eu arruinaria o esconderijo protegido que ele arranjou para
Ithaly e o bebê.
O metal pesa na minha mão e cheira a ferro. Ainda tem as iniciais de Ashton marcadas
no cano. Me lembro daquele dia. Quando momentos como esse não seriam nada além de uma
miragem do futuro.
E, por último, antes de sair da casa e caminhar para qualquer que seja o meu destino
depois que eu trancar a porta deste apartamento, pego meu celular. Desbloqueio a tela. Clico no
ícone das conversas. Penso em um nome por três segundos, e, quando passo reto pelo de Ashton,
clico no de Randall.
Eu: Me desculpa por tudo o que eu já te fiz. Eu te amo.
Então saio.

A casa de Ithaly não fica longe, mas o ônibus parecia não chegar nunca. As muletas me
atrapalharam na hora de sentar e eu queria poder balançar minha perna direita freneticamente
como a criança ao meu lado estava fazendo. Pelo que eu ouvi da sua conversa com sua mãe,
parecia nervosa pelo primeiro dia de aula de ballet.
Quando o ônibus chega, começo a desejar que demorasse mais.
Desço do ponto e caminho até a casa de Ithaly. É um tipo de lugar óbvio — talvez óbvio
até demais — para esconder alguém. E talvez seja por isso que ninguém nunca os tenha
encontrado. Ashton sempre esteve a dois passos na frente de tudo e todos, e quando o
pensamento de que eu arruinei tudo cruza a minha mente, sinto vontade de me jogar no chão e
ficar ali até tudo se resolver.
Quando paro na frente da casa de Ithaly, não faço nada por um instante. Me concentro
na minha respiração. Me concentro na sensação do meu coração batucando nas costelas. Acho
que nunca quis tanto permanecer vivo. Tenho tantas coisas para dizer, tantas desculpas para falar,
tantos “eu te amo” para responder, tantas coisas para me permitir sentir.
Mas não tenho mais tempo para isso.
Abro a porta lentamente. Para minha sorte, ela não faz nenhum barulho.
A arma na minha calça pesa, e a sinto começar a escorregar para dentro da minha cueca.
Respiro fundo.
Respiro fundo.
Estou respirando.
É isso o que importa.
— Você finalmente chegou.
E eu paro de respirar.
— Achei que você não viria.
Não preciso abrir a porta para saber quem é. O arrepio que cruza minha espinha ao ouvir
aquele tom apático me ajuda a identificar exatamente quem é aquela pessoa.
Porém, quando abro a porta e vejo Will no meio do corredor, parado como se mandasse
no lugar, sinto meu sangue esquentando, principalmente ao ouvir o choro de uma criança, e,
baixinho, uma mãe desesperada tentando manter a calma para acalmar seu bebê desesperado.
— O que eles têm a ver com isso? —pergunto, com a garganta ardendo. A arma pesa
cada vez mais, mas, enquanto Will não fizer nada, também não farei. — O que você quer? Me
atacar igual da última vez não foi o suficiente?
Ele se move. Um passo na minha direção. Penso em me afastar, mas tento me manter
estável. Não estou com medo. Estou armado.
— Sabe por que eu te ataquei da primeira vez? Aquela vez na sua casa, quero dizer? —
Will sorri, muito parecido com uma cobra. — Porque você e seu namoradinho mexeram em
coisas que não deveriam. Coisas que não eram suas.
Abro a boca.
— O que você-
Então um clarão volta para minha mente. Ashton e eu tínhamos combinado que ele
tentaria invadir o porão do meu pai, mas as coisas deram errado.
De alguma forma, meu pai havia descoberto.
Merda.
— Como você sabe de Fraser?
— A curta resposta é que nós éramos amigos no colégio. Estudamos juntos. A resposta
longa é que eu… — O sorriso nos seus lábios some. Ele parece perturbado.
Temo pelos meus ouvidos, seja lá o que for que eu ouvirei em seguida, tenho certeza de
que não será algo bom.
— Eu acabei com ele naquela noite. Você sabe, não sabe? — O som que escuto em
seguida é parecido com o de alguém arranhando o vidro. Will está olhando fixamente para um
ponto perto dos meus pés. Mal estou respirando. — Ele sabia demais. Eu nunca… — Um soluço.
— Eu nunca quis fazer mal a ele. Mas seu pai me obrigou. Me disse que se eu não fizesse o que
ele estava mandando, então os dois viriam atrás de nós e tudo ficaria pior…
Minha mente trava com a menção ao meu pai. A sensação que tenho é muito parecida
com um soco na boca do estômago, e tenho que me apoiar na parede para conseguir sequer
pensar direito.
Nós estávamos certo? Ashton e eu estávamos certos?
É o meu pai?
— Meu pai…
Sinto algo se aproximando de mim. Não me importo.
— Seu pai. Isso não é verdadeiramente culpa dele. Seu pai… Está sendo controlado.
Assim como eu. Assim como Fraser era. Todos nós somos fantoches.
Não escuto. Não me importo. Todos eles participaram do assassinato de um homem. De
um pai. De um marido. De alguém que era amado. De alguém que Ashton amava.
Will não parece notar minhas reações, porque continua.
— Eu nunca quis… Eu nunca quis fazer nada disso. Eu só queria mostrar pros meus
pais que eu era bom. Que eles podiam confiar em mim, e que eu poderia livrar eles da miséria.
Eu não queria matar ninguém, só queria um pouco de dinheiro para ajudar minha mãe e quando
notei… Tinha um corpo na minha frente. Um amigo meu.
Não acho que ele esteja me contando isso. Ele não parece são. Parece estar
simplesmente lembrando de memórias. Tentando fazer desculpas para livrar a culpa da sua alma.
Lembro de Ashton na noite passada. Lembro do que ele me contou, de tudo o que
passou. Da dor que sentia pelas saudades de Fraser.
— Foi por isso que você estava na minha casa aquele dia? Deixou meu pai te drogar?
— Ele precisava fazer um experimento em alguém para tentar arranjar uma cura. Eu me
ofereci, porque queria poder tentar resolver toda a merda que eu fiz. Tirar um pouco da culpa do
meu peito — quase escuto o som da saliva descendo por sua garganta. — Mas então me pediram
para te dar um recado. Um recado a Ashton. Todo esse tempo, eu estive te vigiando, porque
precisava saber onde ela morava. Fui eu quem entreguei aquele bilhete pra você.
Muitas informações de uma vez. Will vomita palavras sem se importar se estou
entendendo ou não.
— O que aconteceu com o experimento de cura? — Minha voz falha no meio do
caminho.
— Os dois descobriram o que eu estava tentando fazer e me deram um único aviso. E eu
me afastei do seu pai. Ele disse que continuaria a cura de outra forma.
A imagem instantânea que se forma atrás das minhas pálpebras é a da minha mãe.
Então, como se fosse um fio vermelho interligando tudo, eu me lembro da explicação inexistente
de como diabos eu não peguei raiva do cachorro aquela vez. Poderia ser possível que ele usou
em mim?
Por isso eu não enlouqueci com a mordida do cachorro?
O que significa que… O cachorro também estava com aquela droga que meu pai criou
no corpo?
Meu corpo se revira.
Respiro fundo. Continuo respirando fundo.
— Por que… você está me contando tudo isso agora?
— Porque eu cansei. — Pela primeira vez, a voz dele parece como a daquele garoto que
um dia eu conheci. Meu coração pesa. Continue respirando fundo. — Alguma hora eu vou
morrer. Essa droga vai acabar comigo e eu cansei de destruir a vida dos outros. Aqueles dois
estão apenas brincando comigo. Eu não sirvo para nada além de distrair vocês, porque eles
precisavam descobrir onde Ithaly morava para saber onde aqueles malditos documentos
estavam…
Ele não termina a frase. Não consegue. É como se sua língua ficasse presa no céu da
boca.
— Mas não tem nada com ela. Então isso não importa, certo? — Então sua voz muda
novamente, para aquele tom enlouquecido.
Antes que eu possa continuar respirando fundo, Will se movimenta rápido demais para
meus olhos acompanharem.
Ele não vem para perto de mim, não.
Ele faz pior. Se aproxima de Ithaly e do bebê.
A criança começa a chorar mais alto, como se sentindo a maldade naquele se aproxima
da sua mãe.
Por isso, não sinto dor quando movimento minha perna e corro na sua direção. Meu
sangue corre pelas minhas veias como algo vivo e quando noto, a arma já está na minha mão.
E, antes que Will me veja, eu puxo o gatilho.

Era um dia quente, não nos conhecíamos há muito tempo, mas o suficiente para Ashton
se sentir confortável de deitar a cabeça na minha barriga. E eu estava consciente de todos os
meus músculos, tecidos e células, porque, merda, os cílios dele, dessa direção, formavam
sombras nas suas bochechas e eu estava apaixonado.
Isso foi pouco antes do nosso primeiro beijo. Foi quando, em certa manhã, eu acordei
cedo para ir até a casa dele. Porque ele tinha me chamado e eu não conseguia dizer não.
— Você já se apaixonou? — ele perguntou, repentinamente. E meu coração disparou,
porque falar de paixão com ele parecia que deixaria as coisas muito óbvias.— Acho que já fui
obcecado com alguém, mas nunca me apaixonei. Pulei do “gostar” direto para o “amar”, e acho
que perdi a melhor parte. — Ele faz uma pausa. — Quero dizer, acho que estou gostando de
alguém mais do que eu deveria.
Feixes de luz passavam pelo vidro da janela da sala e brilhavam sob suas pálpebras. Ele
estava de olho fechado. Grande sorte a minha, porque eu estava roçando meus dedos nas pontas
do seu cabelo.
— Me apaixonar seria algo como a voz da pessoa ficar mais alta que a das outras?
— Também. Ou no nervosismo que seu cérebro fica quando você olha a pessoa. Por
exemplo, às vezes a pessoa nem é tudo isso para os outros, mas tem algo nela que faz parecer
que você vai morrer se não beijá-la.
Ele assoprou o cigarro. E eu me assustei em como me identifiquei com essas
características, porque eu sentia isso com ele.
— Eu acho interessante como reações químicas no seu corpo fazem você fazer
doideiras. Acho que eu conseguiria força para mover uma estrela, caso uma pessoa específica me
pedisse — diz ele.
Torci para que essa pessoa específica fosse eu.
— É, eu também.
No momento, não estou fazendo algo grandioso como mover uma estrela por Ashton,
mas eu atirei em alguém por ele. Por Ithaly e pelo bebê também. O filho deles, dos três juntos.
Will não estava preparado para isso.
Duvido que qualquer pessoa no mundo algum dia esteja preparada para levar um tiro,
mas ele parece verdadeiramente exasperado. Impressionado. Agradecido, como se quisesse ser
parado.
O mundo volta a correr normalmente. Meus ouvidos voltam a captar sons e eu voltei a
sentir os membros grudados no meu torso. E caio de joelhos quando uma queimação aguda se
espalha pela minha perna.
— Onde ele está? — consigo sussurrar. Quero saber de Fraser.
Sangue está saindo de onde a bala entrou e por onde saiu de Will. Cheira a ferro. Acho
que nunca vi tanto sangue assim na minha vida. Preciso chamar uma ambulância para ele,
senão…
— No pergolado — Will me responde, enquanto faz um sinal para baixo.
Embaixo do pergolado.
Vamos todos para o inferno

forma que eu separo o lixo reciclável para o lixo orgânico é por causa do
A meu pai. A forma que eu (na maioria das vezes) cumprimento velhinhos na rua é
por causa da minha mãe. A forma que eu me tornei obcecado por Aquiles e
Pátroclo é por causa de Ashton. Eu sou uma junção de todos eles.
Mas agora há mais um: a forma que eu provavelmente chorarei pelo resto dos dias da
minha vida por ter puxado o gatilho nessa tarde é por causa de Will. E sempre seria.
Embora já tivesse chamado a ambulância para ele e deixado a casa há minutos, a cena
não para de se repetir na minha mente. Eu tremia no ônibus, com tanta força que mal conseguia
segurar meu celular. Sei que essa ação mal pensada viria morder minha bunda mais tarde, mas
agora tenho outra coisa em mente: preciso encontrar Ashton o mais rápido possível.
Quando chego na frente da casa de Zya — onde ele está, no momento — a tremedeira
piora. Mal consigo respirar, porque no fundo sei que isso seria o começo do fim e, sei, acima de
tudo, que Ashton ouvirá a pior notícia da vida dele hoje, e esta notícia sairá da minha boca.
Tento fingir que está tudo bem, mesmo que tenha percebido que Zya notou minhas
mãos tremendo. Preciso falar com Ashton antes de falar com qualquer outra pessoa.
— Onde você estava? — Há um tom de urgência na sua voz. Não tenho coragem de
levantar a cabeça e encará-lo porque sei que ele será capaz de ver a culpa afundada nos meus
olhos. — Evan…
— Por favor. — Minha voz mal sai e não tenho certeza se Ashton me ouve, mas espero
que sim, porque não consigo mexer meus lábios. Não consigo mexer nem um músculo do meu
corpo. A única coisa que consigo fazer é me aproximar quando o vejo abrir os braços. É um
movimento quase automático; do mesmo jeito que um homem sedento por água rasteja-se até um
oásis. — Ash.
Agora entendo o que ele quis dizer antes.
Coloquei muitas expectativas em cima dele. Ashton sentiu-se pressionado com o meu
amor, e embora eu saiba que ele nunca mentiu para mim sobre como se sentia, ainda assim,
coloquei muito da minha vida nas mãos de outra pessoa que tem tantos problemas quanto eu.
E agora não sei o que fazer, porque não quero que minha saúde mental dependa dele,
mas, quando eu me aconchego nos seus braços, todo aquele barulho na minha cabeça se cala.
Estou viciado nisso. Ele pode fazer qualquer angústia desaparecer com tanta rapidez que
chega a ser ridículo.
Ainda estou tremendo. Minhas mãos agarram o tecido da roupa de Ashton com força.
Encosto o nariz na volta do seu pescoço e me concentro em respirar.
Se estou respirando, está tudo bem. Contanto que eu continue respirando…
— Evan. — Ele chama meu nome depois de um tempo.
Percebo que talvez esteja o assustando e afasto-me, mas me arrependo no segundo
seguinte; meus olhos estão quentes, e quando encontro as íris azuis daquele garoto que eu gosto
mais do que deveria, não encontro nada além de preocupação.
Me tornei um fardo para ele.
Um fardo eterno. Uma culpa que ele sempre carregaria, porque nunca seria capaz de me
amar como eu o amo.
Então algo passa pela minha mente.
E se for eu quem estiver o amando errado? E se for ele quem estiver mais machucado
com a situação toda por achar que eu estou aqui apenas por uma dependência emocional?
— Me desculpa — digo entre um soluço e outro. Minhas unhas cravam fundo na roupa
de Ashton, com tanta força que as pontas dos meus dedos começam a doer. — Nunca quis que
você achasse que eu não gosto de você de verdade, ou que eu me tornei um idiota que não sabe
controlar as próprias emoções e que você precisa bancar a babá senão…
— Shhh — Ashton me interrompe. — Não vamos falar sobre isso agora. Não pense
nisso, nem em nada que não seja o agora. Você está tendo uma crise de ansiedade. — Uma mão
serpenteia pela minha nuca e cinco dedos se abrem para esfregar meus cabelos. Isso me relaxa
repentinamente e meus ombros caem sobre o corpo de Ashton. — Não pense em nada. Foque em
mim. Foque no meu cheiro, no tecido na minha roupa no seu rosto, na minha pele na sua.
Agarro seus braços quando ele termina de dizer.
Mesmo que meus olhos estejam úmidos e que haja rastros de lágrimas pelas minhas
bochechas, me sinto melhor do que no segundo anterior.
Consigo respirar novamente. Consigo pensar com clareza.
Deve ser por isso que não percebo quando Ashton me deita na cama ao seu lado e puxa
as cobertas até metade do meu pescoço. Me sinto repentinamente protegido ali embaixo, com
ninguém além de Ash me vendo.
Eu consigo respirar. Então está tudo bem.

Quando acordo, o céu está escuro. Há uma pressão contra o lado direito do meu corpo e
rapidamente identifico a pessoa deitada comigo como Ashton.
Tiro alguns segundos para respirar o cheiro dele — e para olhá-lo por mais algum
tempo. Estou mais calmo e consigo pensar racionalmente. Embora meu pé doa um pouco por ter
forçado demais o meu tornozelo, não é nada além de um incômodo que eu aprendi a me
acostumar.
O que me preocupa de verdade agora é o fato de que eu terei que contar para Ashton
tudo o que fiz — e descobri — mais cedo, e me preparar psicologicamente para qualquer reação
que ele possa ter.
— Você vai ficar me olhando como um maníaco até quando? — Ashton sussurra, sua
voz meio embriagada de sono. Luto contra a urgência de esfregar meu nariz contra o dele, como
costumávamos fazer. — Está tudo bem?
Seu tom preocupado me desperta.
— Sim — respondo. — E você?
— Hm.
Considero isso um sim.
— Acho que precisamos conversar.
— Precisamos. Tenho coisas para falar.
Levanto uma sobrancelha, começando a sentir os gremlins da ansiedade infiltrando o
meu peito. Tento respirar pelo nariz para manter a calma.
— Pode falar antes.
— Certo. — Ashton não continua logo em seguida; faz uma longa pausa, e isso me
deixa mais ansioso ainda. — A mãe de Zya fez um exame geral em mim e descobriu que tem
algo de estranho acontecendo com o meu corpo. Faz tempo que ela já suspeitava disso, porque eu
venho com frequência aqui pra consultar com a mãe dela, só não te contei porque não queria
causar estresse. — Ele fecha os olhos por alguns segundos. — Provavelmente por causa da
mordida do cachorro. Ela acha que eu possa ter pego raiva e-
Paro de escutar o que ele está dizendo depois desse ponto.
Agora tudo — simplesmente tudo — faz sentido. A mordida do cachorro foi planejada
pelo meu pai. Enquanto estava no ônibus a caminho daqui, comecei a pensar nas coisas que ouvi
de Will: Primeiro, tentei encontrar uma lógica de como meu pai poderia ter feito o cachorro
atacar Ashton, mesmo enquanto estava no restaurante comigo, e concluí que isso poderia ser
facilmente explicado através da amizade que meu pai tinha com o vizinho, o qual poderia ter
visto uma pessoa estranha na nossa casa e soltou o cão. Poderia ter sido um combinado entre
eles.
Segundo: meu pai pode ter testado a droga no animal. Nunca o perdoaria por fazer mal
ao bichinho, mas esse era um fato inegável, o que, por sua vez, significava que Ashton não
estava com raiva, e sim com aquela maldita droga.
Essa linha de pensamentos toma o ar dos meus pulmões.
O que eu faria se Ash ficasse completamente maluco como Will?!
A única coisa que não saía da minha mente, no entanto, era o fato de haver duas pessoas
comandando meu pai.
Duas!
— Evan?
Quando escuto meu nome, sou puxado para a realidade novamente e noto que estou de
frente para aqueles orbes azuis que eu amava — e que continuo amando. Mas outra coisa me
atinge como um soco e é a percepção de quando noto que a sanidade de Ashton pode desaparecer
a qualquer instante.
— O que foi?
— Não precisamos falar sobre isso agora, certo? — Engulo em seco, me xingando
mentalmente pela pior desculpa do mundo. Ashton me olha de sobrancelhas franzidas. Não
quero me envolver nesse assunto agora, porque eu vou dar um jeito. Ashton não vai enlouquecer
por causa dessa droga, nem que eu tenha que abrir minha própria pele e fazer ele beber meu
sangue para ver se há realmente um antídoto no meu corpo. — Acho que… Podemos resolver
isso depois.
— Hm.
Ele não parece satisfeito com a minha resposta, mas não insiste.
— Acho que agora eu te conto o que tinha para falar, certo? — Ele assente. Okay.
Respire fundo. — Eu-
— Antes de você começar, quero falar mais uma coisa.
Me calo, esperando que ele prossiga.
— Nós precisamos procurar terapia. Precisamos ir ao psicólogo. Eu preciso começar a
levar o tratamento mais a sério, mas você também precisa procurar algum tipo de ajuda.
Qualquer palavra que antes estava na minha mente some depois disso.
Ashton continua, sem esperar minha resposta.
— A gente têm sérios problemas que precisam ser tratados e eu refleti muito sobre isso
depois de ter vindo para cá na noite do seu aniversário. Acho que nós dois devíamos procurar
ajuda de verdade, e assim nosso relacionamento se tornaria mais saudável. — Ele faz uma pausa.
Suga o ar entre os dentes. — Acho que assim nós finalmente podemos voltar.
E isso foi tudo o que ele precisou para apagar qualquer angústia do meu peito, porque
agora sei que ele esteve pensando em voltar comigo.
Fico encarando-o por alguns instantes, esperando que isso seja algum tipo de teste para
ver se a minha dependência emocional me faria agir como um louco de felicidade, mas nada vem
a seguir. Os olhos de Ashton estão sérios e cristalinos, e quase posso ver a verdade por trás de
suas palavras.
Por debaixo das cobertas, procuro sua mão. Quando a alcanço, encosto as pontas dos
meus dedos nas das dele.
— É sério? — pergunto, apenas para ter uma última confirmação.
— Sim.
Sorrio, porque é isso o que eu queria há muito tempo.
— Acho essa uma ótima ideia. — Inocentemente, deixo minha mão escalar a palma
dele, mas seus dedos se fecham em volta do meu pulso repentinamente. — Eu posso te beijar?
Sei que o que eu disse soa como uma prece; como uma oração para que Deus tenha
misericórdia da minha alma e me poupe de tanto sofrimento; para que me permita encostar os
lábios nos dele como costumávamos fazer antes. Sei exatamente como a minha voz soou. Sei que
há brilhos de adoração nos meus olhos enquanto eu o encaro.
Ashton não parece mais incomodado com isso e nem perigosamente perto de destruir
meu coração com palavras cruéis mais uma vez. Ele fica ali por mais um instante, em silêncio,
me olhando tão tranquilo que consigo ver meu reflexo em suas pupilas. Então vejo algo que
reconheço: vejo aquela adoração, aquela admiração, miradas para mim.
Pela primeira vez em muito tempo, me permito sentir essa sensação quente me inundar.
Permito que esse calor afogue os pensamentos ruins e permito que a felicidade — mesmo que
pouca — me atinja, porque pela primeira vez na minha vida, me sinto verdadeiramente
importante para alguém.
Ashton está disposto a fazer sacrifícios para mim. Isso é mais do que o suficiente.
Quase tinha me esquecido do que perguntei antes, mas então ele responde:
— Nós ainda não voltamos.
E, embora tenha me negado silenciosamente, ainda se inclina para frente e me deixa
experimentar o gosto agridoce do seu beijo.
— Se acontecer alguma coisa com você, Ash, me assombre. Perturbe a minha vida, me
mantenha acordado de medo à noite, mas não me abandone. Eu te imploro
O inevitável aconteceu.
Enquanto estávamos deitados na cama como vegetais de molho, apenas relaxando, com
uma TV pequena na nossa frente cuspindo várias reportagens de uma única vez, o karma voltou
para morder a minha bunda e de um jeito muito pior do que eu imaginei que seria.
Quando o jornal mostra imagens exatas da frente do condomínio de casas que Ithaly
mora, Ashton dá um pulo ao meu lado. E soube que não tenho mais escapatória porque, se a
frente da casa de Ithaly não fosse uma confirmação de que algo aconteceu, então o que acontece
a seguir seria.
— William Hubert foi encontrado hoje nesta casa com um tiro perto do pulmão. Ele foi
encaminhado para o hospital mais próximo, e não recebemos mais informações. A polícia está
atualmente tentando investigar quem fez isso e espera que William possa trazer algumas
respostas para nós, quando acordar.
A jornalista termina de dizer e o silêncio que toma conta do quarto logo em seguida é a
pior coisa do mundo. Sei que Ashton ao meu lado está terminando de processar tudo o que
escutou, porque não se mexe.
Nem um único músculo.
E, enquanto isso, eu penso na reação do meu pai quando ver isso. E dos dois caras que
mandavam em meu pai e em Will.
É quase que um chamado de guerra.
— Evan. — Ashton finalmente reage. Sua voz me causa um arrepio terrível, quase
como se alguém tivesse enfiado uma faca na minha medula espinhal e rasgado minhas costas.
Respiro fundo para me preparar para ouvir suas próximas palavras: — Isso foi na casa da Ithaly?
Ele não está me olhando. Não está piscando. Não tenho certeza se sequer respira.
Nunca o vi tão aterrorizado.
Isso era medo de perder Ithaly? De perder o filho de Fraser?
— O que aconteceu?
Então eu lhe conto tudo. Não excluo um detalhe sequer. Falo principalmente do porquê
fiz aquilo, de que minha mãe estava em perigo. Tento pedir desculpa um milhão de vezes e,
quando percebo, minhas bochechas estão molhadas. Sou eu quem mal respiro. A ideia de Ashton
me odiar me atinge como uma onda e eu sinto algo que me faz querer abrir meu próprio peito
porque qualquer coisa…
Qualquer coisa seria melhor do que ser desprezado por ele.
— Me desculpa — sussurro de novo, tentando segurar a umidade nos meus olhos.
Ashton ainda não me olha. Não consigo respirar. —Ash-
— Tudo bem.
O mundo para de girar por um segundo. Mais lágrimas parecem querer sair.
— O quê?
— Tudo bem. — Ele repete. — Eu entendo porque você disse onde ela morava. Sua
mãe estava em perigo. Eu… Provavelmente faria o mesmo. — Então repentinamente o rosto dele
se vira na minha direção e eu tenho que morder a parte interior da minha bochecha para não
soluçar. — Eu fico feliz que você tenha ido até lá pra manter Ithaly e o Frank seguros, mas…
Nunca mais faça isso.
Só depois disso sou capaz de notar o reflexo anormal em seus olhos. Lágrimas.
Ashton levanta uma das mãos e acaricia minha bochecha.
— Nunca mais faça isso, Evan. Se acontecesse alguma coisa com você, se você tivesse
morrido, eu nunca me perdoaria.
Eu não choro. Não faço nada. Fico parado como uma estátua, perplexo demais para
reagir. O calor da palma dele é a única coisa que me mantém na realidade, porque senão minha
cabeça estaria viajando tão rápido quanto a velocidade da luz.
Por que ele não está com raiva? Tento encontrar uma resposta para isso.
Os olhos dele estão nos meus, conectados como se uma linha imaginária nos prendesse.
Rezo pra Deus — pela primeira vez em toda a minha vida — para que nada aconteça com
Ashton; para que caso Ele precise levar algum de nós para o submundo, que me escolha, porque,
Deus, eu amo Ashton demais.
Em um segundo, quase perco seu próximo movimento: um sorriso maligno se forma
nos seus lábios.
Não um sorriso de felicidade nem de tristeza, apenas feroz, como se ele soubesse —
como eu sei — que esse é o começo do fim.
— Vamos descobrir o que fizeram com Fraser esta noite.
Observo seu rosto por algum tempo antes que aquela perigosa veracidade sumisse. As
pontas do cabelo ainda estão azuis, num tom muito parecido com seus olhos. Ergo o braço e o
toco. Me inclino.
Então o beijo.

Nós voltamos ao Glen Stewart Ravine. A lembrança da última vez que viemos aqui me
faz ficar com um aperto na boca do estômago, porque acho que aquele dia foi um dia importante
para o nosso relacionamento.
Mas não há nada que possa me deixar de bochechas coradas como naquela noite, porque
esta noite nós carregamos duas pás em nossos ombros. Nesta noite eu não posso mais andar
normalmente porque um cachorro havia quase arrancado meu pé fora. Nesta noite nós estamos
perto de desenterrar um corpo.
Enquanto entramos mais a fundo na mata, tento puxar assunto, porque o barulho dos
pássaros e dos nossos passos está próximo de me enlouquecer.
— Eu quero te perguntar uma coisa — digo de repente. Ele, por algum motivo, estende
a mão para mim. Eu a pego sem pensar. — Por que você não gosta que menores de idade
bebam? Tipo, não faz sentido porque você vendia drogas pra menores de idade.
Demora um pouco para a resposta vir.
— Minha mãe era alcoólatra — ele começa. — Não do tipo que me batia ou algo
parecido. Na verdade, era até muito legal quando ela bebia. É egoísmo falar isso, mas essa é a
verdade.
Me remexo para ajustar as muletas embaixo das minhas axilas e Ashton parece começar
a tomar consciência da minha proximidade. Por um segundo, fico com medo de que ele se afaste,
mas Ashton me deixa fazer o que eu quero, sabendo que eu preciso um pouco da sua pele perto
da minha para me acalmar.
— Só que eu descobri que ela começou a beber desde muito cedo, quando conheceu
meu pai. Meu tio odiava meu pai e acho que ele tinha uma boa razão pra isso. Meu pai conheceu
minha mãe quando ela tinha quatorze e ele dezesseis. Ele ofereceu bebida a ela e a engravidou.
Não nessa ordem. Quero dizer, ele fez ela se viciar em álcool de qualquer maneira. Ela não parou
de beber nem quando estava grávida de mim, e tinha acabado de fazer dezessete quando eu nasci.
Não gosto da ideia de menores de idade bebendo por essa razão. Menores de idade também não
deveriam fumar.
— Mas então por que-…
— Naquela época em que nós nos conhecemos, o bebê da Ithaly, Frank, ficou doente —
Ele não me deixa continuar, oferecendo uma resposta antes mesmo de eu terminar a minha
pergunta. — Ela não trabalha porque não pode sair de casa. Pessoas vivem na cola de Ithaly por
causa do Fraser, e ninguém além de vocês e Will, agora, sabem onde é aquele lugar. — Ele
continua, e dessa vez, meu sangue parece ter se tornado repentinamente espesso. — Eu precisava
urgentemente de dinheiro. E naquela hora, nem pensei nos meus princípios, só queria que o
meu… o bebê de Fraser ficasse bem.
O gaguejo que Ashton dá ao errar a palavra e quase chamar de “meu” bebê só me
reforça a ideia que eu sempre tive. Ashton considera o filho de Fraser como dele, e, embora eu
tente evitar que esses pensamentos amargurados invadam minha mente, sempre acabo pensando
no quanto eu queria que Ashton tivesse filhos comigo e ninguém mais.
Ficamos sem falar por algum tempo. O que não demora muito porque de repente
estamos na frente da clareira, de frente com o pergolado.
Agora entendo o porquê, na primeira vez que vim aqui, senti a presença de outra pessoa.
Não espiritualmente falando, apenas metaforicamente. Havia, literalmente, outra pessoa aqui.
Bem, ou pelo menos há os restos de outra pessoa.
De Fraser, penso silenciosamente, voltando para a realidade.
Ashton não está mais do meu lado. Ele foi parar na frente do pergolado, e, quando tento
acompanhar seu passo, decido ser melhor dar-lhe algum tempo para absorver o que estamos
prestes a fazer.
Tento imaginar o que se passa na sua mente. Tento imaginar que tipo de lembranças
com Fraser estão aparecendo em seu cérebro; a intensidade da saudade que ele está sentindo de
Fraser.
Tento imaginar como seria se fosse eu no lugar dele, tento imaginar como deve ser a
sensação de saber que uma das pessoas que você mais ama no mundo está a alguns centímetros
embaixo dos seus pés.
Nunca conheci Fraser, nem nunca vou conhecer. Não sei que tipo de pessoa ele era,
embora saiba que certamente era alguém agradável. Não sei qual era sua cor favorita, não sei de
qual comida ele mais gostava. Não sei quais eram seus problemas e não sei o que o fazia feliz.
Não sei nada sobre Fraser, e, mesmo assim, meu coração está doendo e minhas mãos tremem.
Tento imaginar o que Ashton está sentindo. Ele ainda está parado na frente do
pergolado, sem mexer um único dedo. Tento imaginar a dor que está começando a atingir seu
corpo ou de como é a sensação de saber que Fraser realmente tinha morrido. Tento imaginar se
ele ainda tem esperança de que não seja Fraser o corpo de quem nós encontraremos hoje.
Ashton dá um passo para cima do pergolado. A madeira range embaixo dos seus pés e
eu permaneço onde estou, em silêncio.
Minha boca seca repentinamente quando lembro daquela carta que achei.
Mesmo sem me conhecer, mesmo sem saber quem eu era, Fraser já torcia por mim e por
Ashton. Mesmo sem me conhecer, sinto como se ele já prezasse pela minha felicidade.
A culpa que sinto é como se um leão estivesse me devorando.
— Me desculpe — sussurro baixo o suficiente para Ashton não ouvir, torcendo para que
Fraser, onde quer que ele esteja, me escute. — Me desculpe por sentir tanta inveja de você.
E então…
PAH!
Ashton arremessa a ponta da pá na madeira do pergolado. Meu corpo treme quando a
madeira começa a ceder. Ele está destruindo o pergolado com tanta força — com tanta raiva —
que é quase como se um raio estivesse estourando no céu. O barulho é ensurdecedor. É como
ouvir a dor que ele está sentindo.
Meu coração sangra.
O barulho continua por minutos infinitos, cada vez mais agressivos.
E então, fica silencioso.
Abro meus olhos — que eu não percebi ter fechado — e o vejo jogado no chão em meio
as farpas. Madeira está por todo o lado e um buraco enorme surgiu no meio do pergolado.
E ele grita.
Grita com tanta força que posso ouvir seus pulmões falhando.
Não me mexo. Estou petrificado.
Isso não é sobre mim, eu não devo me envolver. Isso é sobre Ashton Winsor, Fraser
Banks e o Universo, eu acho. Esses três são provavelmente os únicos que fazem ideia do peso do
que está acontecendo nesse instante.
Só me mexo quando ele chama, acenando para eu me aproximar. Quando subo no
pergolado, deixo minhas muletas de lado. O divã está jogado de ponta cabeça e eu realmente
tento manter as imagens de quando eu e Ashton fomos felizes aqui um dia, porque sei que agora
esse lugar não trará nada além de dor.
Encaro o buraco no meio do pergolado: ele dá a visão direta para a terra. Tenho que
respirar fundo incontáveis vezes porque a visão dessa simples terra me assombrará pro resto da
vida.
— Me ajuda a cavar — ele diz.
Respiro fundo mais uma vez e aceito sua mão para me ajudar a descer da madeira para o
buraco.
Ele enfia a pá na terra primeiro e o som me faz estremecer. Eu ainda não consigo
acreditar que estou aqui, que estamos mesmo fazendo isso.
Enfio minha pá na terra também, mas minhas mãos tremem demais. Não estou ajudando
muito, mas Ashton não reclama. Ele deve estar concentrado demais no que está fazendo porque
seus olhos estão vidrados no chão e ele começa a enfiar a pá na terra como se ela fosse a culpada
de tudo isso.
Respire fundo, penso em silêncio. Respire fundo e se acalme, não faça uma cena. Isso
não é sobre você.
Até que a pior parte chega: Ashton bate em algo.
O barulho do metal da pá encostando no quer que tenha encostado faz minha nuca
arrepiar.
Ele larga a pá e se joga de joelhos no chão. Ele começa a cavar com as próprias mãos e
eu tenho que desviar o olhar. Observo o arredor. Fecho os olhos e deixo as lembranças que
Ashton e eu tivemos juntos me inundar, deixo que meus olhos comecem a arder.
Eu nem mesmo sei quem Fraser era, por que diabos eu estou chorando?
Deve ser porque a morte é triste. Deve ser porque é a primeira vez que eu encontro a
morte tão intimamente. Deve ser porque eu sei que um dia será eu embaixo da terra apodrecendo
para o resto da eternidade e que todas as pessoas que eu amo vão acabar do mesmo jeito. Não é
possível escapar da morte.
Sempre me perguntei porque meus avós eram tão religiosos. Raramente se vê um jovem
sendo tão religioso e isso não fazia muito sentido para mim. Minha mãe explicou quando eu
perguntei:
“É porque idosos estão perto da morte. Ou eles acham que estão. Estamos todos sempre
perto da morte, a cada instante e ela é melancólica, mas os idosos têm mais consciência disso”.
Então eu sinto o cheiro da morte. Essa é uma das coisas que eu jamais irei esquecer.
Encolho-me no mesmo instante porque meu estômago parece estar sendo espremido
como limão dentro de mim. Não quero abrir os olhos porque sei o que vou encontrar, sei que
Ashton achou o corpo de Fraser. Eu não quero abrir os olhos e ver a pessoa que eu mais amo no
mundo passando pelo pior momento da sua vida.
Mas, mesmo assim, eu abro os olhos.
Tenho que tapar o nariz porque a visão parece piorar ainda mais o cheiro.
Não é uma pessoa inteira. Nem sequer parece mais uma pessoa.
São vários membros apodrecendo.
Ashton está na beira dos meus pés, ainda abaixado. Ele não tampa o nariz, não pisca,
não respira. Lágrimas escorrem dos seus olhos, mas acho que ele nem sequer tem noção de que
está chorando.
Dou um passo para trás quando ele se movimenta. Não quero voltar meus olhos para
aquela visão novamente, mas meu cérebro comanda para que eu o faça contra minha vontade.
Observo com mais atenção.
Uma cabeça, dois braços, um torso, duas pernas. Ele foi… Esquartejado. Fraser foi
esquartejado e enfiado em um saco de lixo como se não fosse nada além de enxurro.
Ashton não parece saber o que fazer primeiro e eu sinto tanta pena que quero me
aproximar. Eu tento, mas não consigo.
Estou chorando. Há quanto tempo?
Uma vez me falaram que o cheiro da morte era inesquecível e eu não conseguiria
explicar esse odor nem se quisesse.
Ashton abre o saco que liberta esse fedor, sem se importar com as consequências. Ele
fica paralisado, encarando o que nós dois sabemos o que há ali dentro.
Não consigo não esconder meu nariz atrás do antebraço, mesmo que isso prejudique
meu equilíbrio com as muletas.
Quero ir para longe, para longe desse momento. Quero voltar no tempo para os dias em
que, embora as coisas não fossem fáceis, eu não conhecia o cheiro fúnebre de um corpo
apodrecido.
Nunca achei que uma pessoa poderia feder tanto. Há um nó no meu estômago, a
sensação de náusea, que me deixa tonto.
Quero fugir desse lugar, levar um choque e esquecer de tudo isso. Esquecer das fibras
de pele que restaram nos ossos amarelados, evidenciando o fato dos membros terem sido
cortados e separados antes de começarem a apodrecer.
Ashton ao meu lado não se importa com o cheiro, nem com o fato de não poder abraçar
o corpo todo de uma vez. Ele agarra um pouco de cada membro, embora não haja mais pele, de
fato, apenas resquícios do que um dia aquele ser humano pode ter sido. Contudo, o peitoral está
consideravelmente conservado, embora cheio de buracos tripofóbicos, comidos por larvas. Ele
não o solta, com o ouvido onde devia haver o coração, parecendo não acreditar que não existe
batimento; não aceitar que aquela pessoa está morta.
Escutar suas lamúrias de sofrimento, seus gemidos dolorosos e miseráveis é como se
uma faca estivesse lentamente dilacerando a minha alma.
Meu coração pesa. Quero que ele pare, quero que se levante e diga que está na hora de
irmos embora. O cheiro, as bordas da pele repicada como papel cortado por uma criança, os
vermes amarelos comendo lentamente cada centímetro restante daquele pequeno corpo. Todos
esses detalhes nunca sairão da minha mente.
O fedor é demais para mim. Consigo ver o líquido que vazou do corpo no fundo do saco
plástico em que nós o encontramos. A luz não é muita, mas não é difícil imaginar alguns vermes
que caíram da pele, boiando.
—Nós precisamos sair daqui — sussurro.
Minha voz não parece correta nesse ambiente. Eu quero ir embora, eu preciso ir embora,
senão irei enlouquecer.
— Eu vou matá-los — Ashton sussurra. Meu corpo inteiro estremece. Isso é uma
promessa feita para a pessoa agora cortada em vários pedaços, e não para mim.
Eu poderia repetir que precisamos sair daqui, mas não repito, porque se fosse eu na
situação dele — se fosse Ashton quem estivesse morto e eu que achasse seu corpo — rodaria o
mundo para ir atrás de quem o matou.
Mesmo que isso significasse ir para a prisão. Mesmo que isso significasse ir para o
inferno.
E saber que ele faria tudo isso por aquela pessoa já falecida e apodrecida mexe com uma
parte de mim que, embora eu tente ignorar, sempre resiste.
Mexe com meu ciúmes. Mexe com minha insegurança.
— Ash-
— Me perdoa. — ele sussurra. Fico quieto no mesmo instante. — Me desculpa, Fraser.
Me desculpa… Eu amo você. — Não aguento a visão de Ash se balançando para frente e para
trás com um dos membros nos braços, tenho que desviar o olhar. — Eu amo tanto você.
Meu coração dói como o inferno. Meu corpo inteiro arde como o inferno. Minha visão
começa a se borrar cada vez mais e posso sentir minhas bochechas esquentando do choro. Não
consigo manter a visão focada. Queria agir como se eu não me importasse, como se eu não fosse
capaz de morrer para escutar Ashton dizendo isso para mim, mas eu não sou forte o bastante para
isso.
Tranco um soluço na minha garganta quando começo a sair da pequena cova.
Não faça uma cena, repito para mim mesmo. Isso não é sobre você, não faça uma cena.
E Ashton continua ali por tempo o bastante para dizer “eu te amo” infinitas vezes.
Mesmo que minha alma doa com essa visão, me mantenho focado. Olho para tudo isso.
Observo a dor que Will e meu pai causaram. A dor que aqueles dois outros homens causaram.
Sejam quem sejam, eu os odeio. Os odeio com todo o meu coração e espero vê-los no inferno, o
lugar que todos nós vamos quando tudo isso acabar e não pudermos mais livrar nossas almas dos
pecados que cometemos para vingar Fraser.
Até que vejo algo, depois de ter voltado para a realidade quando percebo que minhas
mãos estão sangrando pela força que afundei minhas unhas na pele. Vejo, de cima do pergolado,
um brilho no corpo de Fraser.
Algo brilhando.
Pulo no buraco de novo. Que se foda os pontos do meu calcanhar.
Minhas mãos começam a tremer quando me aproximo do corpo. Tapo o nariz com uma
das mãos antes de me inclinar para pegar o objeto brilhante.
Uma chave.
E, preso junto a chave por um fio, um pequeno papel envelhecido.
É o endereço da minha casa.
O porão.
O começo do fim (parte 1)

shton finalmente solta do corpo depois de algum tempo. Acho que meu
A cérebro se acostumou com aquela visão, porque não me sinto mais tão afetado
quanto antes. O que, na verdade, está me deixando preocupado, é o homem na
minha frente — o homem vivo — que parece prestes a entrar em um colapso a qualquer instante.
Tentei lhe contar sobre o bilhete e, embora tenha certeza de que ele ouviu, Ashton não
pareceu ligar muito para esse detalhe.
Para minha surpresa, ele para na minha frente. Está fedendo, mas tento não torcer o
nariz. O cheiro é horrível, apodrecido e de morte. Não sei quantos banhos serão necessários até
que o fedor saia completamente, porém perco essa linha de raciocínio no instante em que Ashton
se inclina e… Me abraça.
Não achei que ele faria isso justo agora. Ashton sempre foi alguém que foge de contato
físico quando está emocionalmente instável, mesmo que eu tenha tentado convencê-lo de que
alguns abraços poderiam ajudar. Talvez seja porque dessa vez ele não está realmente pensando,
apenas agindo por instinto.
Coloco minha mão atrás de sua nuca, quase perdendo o equilíbrio por estar sem as
muletas. Me prendo em suas roupas e tento ignorar o cheiro. Esperei tanto por esse tempo, tantos
dias para que ele viesse finalmente procurar conforto em meus braços e agora que isso está se
realizando, o cheiro de podridão é a última das coisas que me fará hesitar.
— É por isso que eu tenho que cuidar de você — Ashton diz de repente, atraindo minha
atenção. Sua respiração está quente na dobra do meu pescoço e tenho quase certeza de que o
contato da minha mão na sua pele está começando a produzir o efeito calmante que eu quero
porque, contra o meu peito, posso sentir as batidas do coração frenético dele se acalmando um
pouco. — É por isso que eu tentei terminar com você, é por isso que eu ainda… não te disse
aquilo.
É a minha vez de sentir meu coração contra meu próprio peito; as mãos dele sobem para
os meus ombros e param no começo de onde meu cabelo cresce. Ele está excepcionalmente
carente. Está me deixando um pouco preocupado.
— Porque parece que toda vez que eu começo a… Gostar tanto de alguém, essa pessoa
tem um final trágico. Como aquele rapaz ali. — Ele aponta para o corpo de Fraser. — Eu gostei
demais dele e queria ele só pra mim. E veja onde ele está agora. Nunca vai ver o filho crescer,
aprender a falar, a andar, a ter problemas na escola pela primeira vez. Nunca mais vai ver a
Ithaly, a pessoa que ele era apaixonado, sorrir ou dar risada de algo que ele falava. — Um riso
frouxo escapa de seus lábios e o ar quente encontra minha pele. Encaro o ponto para o qual ele
aponta. — É por isso que eu não vou deixar nada acontecer com você. Nem que custe minha
própria segurança, nada vai acontecer com você.
Quero deixar alegria me infiltrar com essas palavras, porque isso é algo muito
semelhante ao que eu sempre quis ouvir, mas não causa nada no meu peito além de preocupação.
Uma onda letárgica preocupante inunda meu corpo de supetão quando começo a refletir sobre o
que essas palavras podem significar.
— Não é sua culpa. — Me surpreendo com a minha própria voz. Um peso parece se
desprender do meu coração quando sussurro isso. — Não foi sua culpa se apaixonar por alguém
já apaixonado, todo mundo algum dia leva um fora, alguns que doem mais, alguns que não doem
nada. Nada do que está acontecendo é sua culpa. Eu sei disso, Ithaly deve saber também, e,
principalmente, Fraser sabe disso. Onde quer que ele esteja. — Os ombros do homenzinho em
meus braços relaxam vagarosamente, e me sinto mais calmo. Não quero dizer nada que piore a
situação. — Sabe de quem é a culpa? De Will, do meu pai, das pessoas que mandaram os dois
cometerem esses crimes. E eles vão pagar por isso, Ash, eu te prometo.
Ashton finalmente levanta o rosto.
Seu queixo fica pressionado contra meu peito enquanto seus olhos me observam com
atenção. Estão vermelhos do choro, e sua voz ainda está frágil e rouca pelos gritos de alguns
minutos atrás, mesmo assim, ele finalmente abre um sorriso — desta vez cruel; um sorriso de
alguém que sabe que terá que fazer coisas terríveis essa noite — a sombra frágil daquele
garotinho que achou seu primeiro amor morto, some.
E dá lugar a um Ashton maior, mais forte e principalmente, com mais ódio.

Só reparo no fato de que eu nunca apresentei minha casa para Ashton até agora quando
paramos na frente do jardim da entrada e ele tem que soltar minha mão para mexer em alguma
coisa no celular.
Presumo que esteja falando com Ithaly.
— Nós podemos deixar isso para outro dia, você sabe —tento dizer, mesmo que essa
tenha sido a pior sugestão do mundo. — Claro que… Esqueça o que eu disse.
Ashton levanta os olhos do celular e me olha. Ele parece querer dizer algo, como se seus
lábios coçassem para fazer algo, porém ele continua quieto por segundos, me encarando.
— Ash-
— Eu sei que você deve estar assustado e que você viu muita coisa em único dia, mas
eu preciso terminar isso de uma vez. Se eu for pra casa e deitar na minha cama como se nada
tivesse acontecido, nunca vou me perdoar.
Entendo o que ele está falando. Desde o momento em que abrimos a cova de Fraser, foi
como se tivéssemos clicado no botão de start e agora não podemos parar.
— Você reparou que a cova do Fraser parecia… Fresca? Como se alguém tivesse aberto
o buraco há pouco tempo.
Ashton parece desconfortável com o que eu digo, o que deve ser um sinal de que ele
também reparou nisso.
— Talvez eles tenham feito isso. Talvez seja por isso que a chave parece tão nova.
— Então como a madeira do pergolado…?
— Não sei. — É a única coisa que ele me responde antes de se virar para a casa e
encará-la como se fosse um monstro. — Temos que entrar antes que seu pai chegue.
Eu assinto e caminhamos juntos.
A porta está destrancada e passo pela soleira primeiro, com a ajuda de Ashton atrás de
mim. Quando finalmente piso no chão de dentro da minha casa, não me sinto em casa como eu
deveria. Me sinto estranho e triste, porque agora sei que muitas coisas ruins podem ter sido
criadas aqui.
Como eu não reparei antes? Esse tempo todo em que morei neste lugar, esse tempo todo
em que meu pai me trancou no porão… Como não reparei em nada?
Engulo em seco e olho na direção de Ashton. Ele parece esperar meu comando, como se
querendo que eu o guie para onde devemos ir primeiro, mas minhas mãos estão tremendo.
Estou nervoso, à beira de um colapso.
Acho que Ashton está se tornando bom em perceber quando estou perto de uma crise.
Sempre que estou prestes a começar a pensar demais e deixar todos os tipos de pensamentos
ruins invadirem minha mente, ele quebra esse ciclo.
Preciso que ele sobreviva a qualquer coisa que acontecer hoje. Preciso que a gente fique
bem porque eu quero casar com este homem. Quero ter filhos com ele, quero poder me mudar
para uma casa bacana com ele. Quero envelhecer, morrer com ele — mas não agora. E não no
futuro próximo.
Quero viver com Ashton. Quero contar para a minha mãe sobre o quanto ele me ajudou.
Merda, penso silenciosamente, eu quero muito ver a minha mãe de novo. Quero muito
dizer a ela o quanto eu a amo.
— Vamos lá.
Mostro onde é a entrada do porão, quase me esquecendo que ele já veio aqui uma vez. A
portinha fica atrás de um armário de pratos. Nós puxamos o armário juntos e quando a portinha
fica à nossa vista, aperto minhas pulseiras.
Há algum tempo, só a visão desta parede me causava calafrios. Sendo sincero, ainda tem
o mesmo efeito, mas, dessa vez a pessoa ao meu lado não quer me jogar lá dentro para se
esquecer de mim por algum tempo.
Não.
A pessoa ao meu lado está deslizando sua mão para tocar a minha e cruzando seus dedos
nos meus. Está me ajudando a manter a calma.
— Evan-
— Tudo bem. — Eu o interrompo. — Só… Vamos logo.
A portinha fica destrancada; é preciso apenas um pequeno empurrão que ela se abre
facilmente. O pó que sai irrita meu nariz no mesmo instante, mas assim que Ashton me puxa pela
mão, dou um passo adiante prendendo a respiração por alguns segundos.
Não tem luz. Ashton liga a lanterna do celular e me ajuda a descer os últimos degraus da
escada. Nós paramos na frente de inúmeras prateleiras e balcões. Isso é uma surpresa para mim,
embora não pareça nada novo para Ashton. As vezes que fui empurrado para esse porão, não
havia luz, então eu nunca realmente vi como era.
Mas Ashton parece familiarizado.
— Você já viu isso antes, não é?
Observo seus ombros endurecerem.
— A última vez que eu vim aqui estava mais organizado, os papéis empilhados e não
espalhados desse jeito, mas sim, basicamente sim.
— Certo. Você quer dar uma olhada antes de… Descermos?
Ashton não responde verbalmente, mas começa a vasculhar em um dos balcões com a
lanterna do celular. Vou para o lado contrário, com meu próprio celular. Não sei exatamente o
que estou procurando, mas tento achar qualquer coisa interessante. Qualquer coisa que garanta
mais alguns anos para meu pai, Will e seus chefes na prisão.
— Isso me lembra nosso primeiro dia de detenção —digo de repente. — Você me
chamou de pirralho e eu fiquei tão irritado que quis te bater.
Escuto uma pequena risada.
— Pirralho — ele sussurra. — Eu deveria te chamar mais vezes assim.
— Nem pense nisso — rio junto, tendo a impressão de que esses dias foram anos atrás.
Me sinto nostálgico de um jeito triste. — Você usava calças tão apertadas e me deu seu número
de um jeito tão… tão… Deus, eu fiquei obcecado por você no instante em que te vi.
— Então era por isso que você não parava de olhar para a minha bunda.
Meu rosto esquenta instantaneamente.
— O que…!
Me viro para Ashton mas no instante em que eu faço isso, meus olhos encontram algo
que chama minha atenção. Uma folha caída no chão está meio escondida atrás das sombras da
escada, mas quando mexo minha mão, o celular ilumina exatamente onde ela está, e o que
prende minha atenção é o nome da minha mãe escrito em letras grandes.
Daisy Spring Shiravari.
Sempre pensei que o sobrenome do meu pai tinha arruinado o nome da minha mãe.
Me aproximo da folha, tentando não grunhir de dor quando me abaixo para pegá-la.
Minha pulsação começa a aumentar à medida que o medo sobre o que posso ler ali me consome.
Preciso de alguns segundos para que a minha mente consiga se concentrar nas palavras.
Daisy Spring Shiravari
Relatórios do experimento Daisy.
Injetei a droga na minha esposa há pouco tempo. Ainda não houve reações mas isso
normalmente demora para acontecer. Irei esperar mais algum tempo e então farei o relatório
mais uma vez.
*
Começou com pequenas reações, está um pouco mais agressiva. Acho que agora seria
uma boa hora para testar o experimento de D (nome dado àquele que tem o efeito reverso da
droga, aquele que pretendo pôr no meu filho no futuro.) Coloquei uma dosagem muito pequena,
diferente da que usei anteriormente, para tentar desacelerar o processo. Não tenho mais com
quem testar.
*
Consegui dopá-la e inserir o antídoto no seu sangue. Ainda não houve reações, então
creio que seja seguro. Não sei se agora seria um bom momento para continuar, então irei
esperar mais alguns dias.
*
Meu filho está no porão, desacordado. Acho que não estou mais conseguindo lidar bem
com isso, mas é para o bem dele. Espero que um dia eu possa ser perdoado. Eu injetei o antídoto
nele e até agora não houve reações negativas. Espero que dê tudo certo, que ele não force meu
filho a usar a droga no futuro, e que se forçar, espero que esse antídoto de agora não deixe que
nada de ruim lhe aconteça.
*
Evan vem agindo normalmente. Não há diferença no seu comportamento e não vejo
sinais de que seu corpo possa estar negando o antídoto. Preciso ficar mais atento para ver o que
pode acontecer no futuro.
*
Algo deu errado, Daisy está no hospital, tenho quase certeza de que é por minha culpa.
Que Deus cuide do meu filho e que nada de ruim o aconteça.
*
As descrições acabam um pouco depois disso. Não há mais nada no verso e creio que
seja porque essa folha faz parte de um amontoado sobre esse assunto. Minhas mãos estão
tremendo demais para que eu consiga pensar racionalmente, então eu me concentro em respirar.
Quase derrubo o celular quando percebo a sombra parada ao meu lado.
— Ash-
— Está tudo bem? — Ele pergunta e eu lhe entrego a folha, esperando que isso
responda por mim. Ele levanta uma sobrancelha antes de começar a ler, e quando termina, seus
olhos caem diretamente em mim. — Isso quer dizer…
— Que é por isso que a mordida não teve efeito em mim. O cachorro não estava com
raiva ele… o merda do meu pai injetou a porra da droga no pobre cachorro. — Tenho vontade de
arrancar meus cabelos, vontade de sair correndo e gritando, fugir para bem longe deste lugar.
Meu Deus, como eu não notei antes que era cercado por malucos? Como eu não notei que meu
pai era um completo maníaco?! — Ele colocou… Essa coisa na minha mãe, é por isso que ela
está no hospital. Ela está morrendo lá, por culpa dele! E agora eu também tenho isso e até onde
sei a qualquer instante eu posso cair duro no chão e morrer!
— Evan-
— E, ah Deus, aquele cachorro te mordeu também. Você… você… Ash, se você… Se
acontecer alguma coisa com você eu nunca vou perdoar meu pai. Eu nunca…
Não consigo terminar de falar, a voz fica presa no meio do caminho e acho que estou
tendo outro ataque de pânico. O peso da realidade cai como uma bigorna sobre as minhas costas
e a cada segundo se torna mais difícil de respirar e…
— Evan. — Ashton chama meu nome mais uma vez, mais firme.
Levanto o rosto para olhá-lo e quando faço isso, um par de braços roda o meu corpo e
me abraça com tanta força que os ossos das minhas costas faz “creck!”. Mas isso me acalma. Me
acalma tão rapidamente que percebo que preciso me manter são nesse instante porque acabamos
de começar a descobrir as coisas terríveis por trás do assassinato de Fraser.
— Vamos dar um jeito nisso depois. Deve ter um jeito de reverter essa situação. Eu não
me sinto nada agressivo… bem, não mais do que o normal, então deve estar tudo bem. Não se
preocupe com isso agora. Nós… — ele sussurra no meu ouvido e eu entendo o que ele quer dizer
por detrás dessas palavras.
Podemos nos preocupar com isso depois que a pior parte for resolvida.
— Só estou perplexo de que eu nunca reparei que meu pai fazia essas coisas
literalmente debaixo dos nossos pés. Como eu posso ter sido tão estúpido?!
— Shhhh. — Uma mão pousa na minha nuca. Queria poder dizer que isso não me afeta,
mas seria mentira. — Não tinha como reparar nisso. Quem suspeitaria que o próprio pai faria
uma merda dessas? Ninguém.
Penso no que dizer a seguir, mas não encontro palavras.
Meu coração está agitado e eu não sei se quero encarar o que vem a seguir.
— Você encontrou alguma coisa interessante?
— Nada além de mais provas de que seu pai é uma pessoa horrível. — Ele se afasta um
pouco, e tira um cabelo preso nos meus cílios. — Encontrei provas de que Will realmente estava
sob os efeitos da droga e que não estava agindo em sã consciência, mas nada muito relevante
para nós além disso. — responde.
Eu balanço a cabeça, até que uma ideia entra na minha mente.
Inclino-me sobre Ashton para apenas ele ouvir:
— Acho que devemos tirar foto dessas coisas e enviar para alguém de confiança.
— Boa ideia.
Eu tiro foto dos documentos envolvendo Will e Minha mãe e mando imediatamente
para Hazel, com a legenda “experimentos humanos clandestinos”. Ela não visualiza na hora, mas
me sinto mais tranquilo sabendo que aquilo está salvo em algum lugar.
— Você encontrou alguma coisa que fale sobre os caras que mandam no meu pai? Ou
algo sobre Fraser?
Ashton enruga a testa como se ouvir esse nome ainda tocasse uma parte machucada do
seu peito.
— Sobre os caras que mandam neles: não. Sempre que o assunto desviava para isso, os
relatórios se enchiam de códigos internos. E sobre Fraser… Apenas sobre o dia que o mataram e
que havia sido combinado entre Will e seu pai.
— Okay, certo. — Engulo em seco. — Não encontrou mais-
De repente, Ashton coloca uma das mãos sobre a minha boca. Minha voz para
imediatamente e eu desligo a lanterna do celular no mesmo instante. Mal respiro quando ficamos
no completo breu, sem mexer um único músculo por vários segundos.
— Tem alguém aqui. — ele sussurra, tão baixo que mal consigo ouvir. — Não sei se
embaixo de nós, ou em cima.
Não respondo, minha respiração está frenética demais para que eu consiga formular uma
frase sem causar barulho demais.
O som parece vir de baixo e então muda de direção e parece vir de cima. Não sei qual
das opções pode ser pior, mas imagino que seja a de que alguém esteja na sala bem em cima das
nossas cabeças, vendo o armário fora do lugar e a portinha para o porão semiaberta.
Um dos dedos de Ashton passa pela lateral da minha bochecha e mesmo que esteja
escuro demais para eu poder ver qualquer coisa, consigo sentir seus olhos em mim. Eu o procuro
cegamente e encosto todo o meu corpo no dele para tentar me acalmar.
O som fica mais alto, como se algo tivesse caído. Escuto passos em seguida. Vários
passos, como uma pessoa agitada e nervosa que fica andando de um lado para o outro. Mesmo se
eu fechar meus olhos, não consigo ficar menos consciente do perigo que Ashton e eu estamos
correndo.
Mas, de repente, tudo para. O ar fica insuportavelmente silencioso e consigo me
concentrar profundamente no movimento da minha garganta enquanto meu coração bombeia
sangue. O silêncio infiltra minha mente e faz minhas mãos começarem a suar.
E se tiver acontecido alguma coisa? E se for a polícia? E se for o meu pai?
Não tenho tempo para deixar minha mente flutuar em um fio de pensamentos ruins
quando a portinha do porão se abre. Ashton me aperta contra seus braços e coloca a mão sobre a
minha boca, e eu agradeço a ele mentalmente por fazer isso porque senão um grito exasperado
teria saído dos meus lábios.
A luz que vem da casa quase me cega. Não sei quanto tempo a gente ficou aqui
embaixo, mas foi o suficiente para os meus olhos se acostumarem com a escuridão total. E,
quando o som das solas de um par de sapato ecoa pelo porão, junto com o barulho do assoalho da
madeira da escada rangendo, sei que estamos ferrados. Sei que fomos pegos e sei que o pior vai
acontecer.
Um “click” soa pelo porão e adivinho que a pessoa tenha puxado o fio que liga a luz. É
uma única lâmpada amarelada que sinceramente não ajuda em muita coisa, mas que faz meus
olhos arderem.
Olho de soslaio para Ashton. Ele encontra meu olhar e faz algo com os olhos que me faz
entender a mensagem de que eu devo ficar calmo.
Tento fazer isso, mesmo que seja quase impossível.
A madeira em cima de nós range mais uma vez. Meu coração batuca contra minhas
costelas. A pessoa está descendo.
Fecho os olhos e espero. Conto os segundos.
Um, dois, três, quatro… Até que sinto o corpo de Ashton estremecer contra minhas
costas. A presença da outra pessoa fica clara para mim, como se um corpo eletrizado estivesse
me mandando energia. E quando abro os olhos, não fico surpreso de encontrar aquele homem.
Aquele homem que um dia eu chamei de pai.
Chorando.
O começo do fim (parte 2)

dultos são egoístas.


A Eles acham que são os únicos do mundo que podem se sentir tristes, ou
magoados, ou desanimados ou simplesmente mal-humorados. Adultos gritam com
você quando você tem um dia ruim e não quer conversar. Adultos não se importam com suas
opiniões, eles não ligam para o que você pensa.
Se você tem um dia ruim, é mal-agradecido. Se não está de bom humor todos os dias, é
mal-agradecido. Sempre dão um jeito de trazer o assunto para eles, porque eles sabem bem mais.
Eles são os únicos que sentem. Eles são egoístas.
Quando você é um bebê, inocente e sem muitas opiniões próprias, os adultos te adoram,
te mimam e raramente chamam o que você está sentindo de drama. Mas quando você chega em
uma certa idade, não é mais visto como uma pessoa de verdade: é como um objeto na qual eles
mandam e você tem que obedecer, porque eles te trouxeram para o mundo, então você tem que
ser grato.
Eles não querem sua preocupação, afinal, você não é um super-herói. Não querem que
você se intrometa, porque não é adulto, mas querem saber cada detalhe da sua vida, porque são
seus donos.
Quero dizer, não sei se todos se sentem desse jeito, mas é assim que eu me sinto. E por
essa razão olhar nos olhos do meu pai em um momento como esse é libertador, já que nós dois
sabemos que todo esse drama acaba aqui e hoje. Minha garganta coça com a quantidade de
coisas que eu quero gritar para ele, mas permaneço quieto, porque Ashton está aqui.
— Por que você está chorando? — pergunto.
Meu pai soluça alto, como uma criança.
É a primeira vez que eu o vejo tão frágil. Tento sentir pena, tento sentir qualquer coisa
que um filho deveria sentir ao ver seu pai chorando, mas eu estou amortecido. Penso nas vezes
em que eu ouvi meus pais brigando, nas vezes em que eu tentei intervir e nas vezes em que esse
homem na minha frente berrou para eu não me intrometer.
Penso no tapa que ele me deu há meses, nas vezes em que ele gritou comigo, nas vezes
em que eu fui trancado no porão sem piedade alguma. Penso nas vezes em que eu chorei até
dormir no meu quarto, em silêncio, porque eu não podia conversar com nenhum dos meus pais
sobre como eu estava me sentindo. Lembro das vezes em que eu desejei que ele deixasse de
existir para que a minha vida fosse mais fácil. Penso nas vezes que eu desejei deixar de existir
para que as coisas fossem mais fáceis.
Não sinto nada pela pessoa à minha frente. Não sinto nada em ver suas lágrimas
escorrendo e pingando no chão.
Ashton pula para longe de mim e para entre mim e meu pai. Seus braços se abrem como
se formassem uma barreira entre nós, e eu percebo que quero chorar, finalmente. Não pelo meu
pai, mas por Ashton. Ele nunca teve nenhum dos pais, o tio dele era o maior desgraçado do
mundo e o primeiro amor da vida dele morreu, mas, mesmo assim, Ashton está aqui me
protegendo.
— Evan… — Meu pai dá um passo para frente. Recuo automaticamente e Ashton
avança na direção do homem na sua frente, o impedindo de continuar. — Evan…
— Fique longe dele — Ashton responde por mim. Sua voz está firme como um cabo de
aço e isso atrai a atenção do meu pai. A expressão chorosa dele ganha uma pincelada de outra
emoção e eu a reconheço como horror.
— Vocês não deveriam ter vindo aqui —retruca. Começa a se afastar em largos passos,
tão largos que tropeça e cai de costas no chão. Ele fica tão patético desse jeito que eu quase,
(quase) quero tentar fazer algo para ajudá-lo. — Não deveriam. Vocês têm que ir embora, antes
que… antes que…
Esse homem — esse adulto — começa a balançar para frente e para trás. Seus olhos
estão nebulosos, desfocados como se houvesse fumaça por cima das suas pupilas. Deve estar
enlouquecendo.
— Me ajude, Evan.
Você não é um herói, eu quase consigo escutar a voz grosseira dele de anos atrás me
falando isso quando tentei impedi-lo de gritar com a minha mãe. E olhá-lo nessa situação traz
uma quantidade um pouco preocupante de satisfação. Você não é um herói, o mesmo homem que
me disse isso uma vez, agora está me pedindo ajuda. Ele só está fazendo isso porque está sozinho
e eu não.
Eu não estou mais sozinho.
Não tenho mais medo dele.
— Você é a pior pessoa que eu conheço. — Essas palavras saem com mais grosseria do
que eu queria. Há uma umidade nos cantos dos meus olhos, mas eu não deixaria nem uma
lágrima escapar. — Queria poder dizer que eu odeio você, mas eu simplesmente não sinto nada.
Você é patético e uma pessoa terrível. Acha que é o único no mundo que tem problemas e
descontava isso em mim e na minha mãe. Eu queria poder voltar no tempo e te espancar em troca
do que você fez com ela. Eu te desprezo, Terry. Você é pior que nada.
O porão fica em total silêncio. Minha respiração está vacilando. Meu peito nunca
pareceu tão leve quanto agora, nunca senti tanta satisfação de ver outra pessoa chorando. A única
coisa errada nessa situação é Ashton. Ele não deveria estar passando por isso.
— É justo. — Uma nova voz de repente corta o ar.
Meu corpo inteiro congela no chão, como se um cubo de gelo estivesse descendo pela
minha coluna. Finalmente pareço ter saído do transe que eu devia estar, e minha mente volta a
raciocinar normalmente. Quando meus ouvidos terminam de absorver aquele tom, aquele timbre,
aquela profundidade de voz, todos os nervos do meu corpo parecem estar se enrolando entre si.
Meus calcanhares se viram lentamente e eu fico de frente com Randall.
Tenho certeza que ia começar a vomitar minhas entranhas.
Diferente do meu pai, ele parece muito satisfeito.
— Olá, Evan.
E de repente, uma sombra surge atrás do meu irmão, se preparando para arremessar algo
na minha direção.
Depois disso, tudo se transforma no completo breu.

Ouvi de alguém da internet que o último sentido a se perder quando você morre é a
audição, e foi por isso que eu acreditei estar morto, embora ouvisse vozes.
A voz do meu irmão.
Mas tudo volta como se tivesse me puxando da morte.
A dor volta, principalmente na minha cabeça. Quando abro os olhos, a sensação que eu
tenho é que minha alma está sendo rasgada no meio. A traseira das minhas córneas dói de um
jeito que eu nunca achei que poderia doer.
— … está acordando. — Escuto alguém dizer.
Não consigo entender a frase toda porque meu cérebro arde.
De repente, sinto tapinhas no rosto. Não são muito fortes, mas me despertam. Minhas
pálpebras finalmente aguentam o peso de se manterem abertas, mas no segundo seguinte eu me
arrependo de conseguir enxergar.
Donovan está na minha frente.
Ele está sorrindo como se nunca tivesse se sentindo mais feliz do que agora. Minha
mente dá um giro e só percebo nesse instante que estou amarrado em uma cadeira. Por causa
disso não caio no chão.
Só tenho tempo de virar o pescoço antes de vomitar.
Não sei porque fiz isso. Deveria ter vomitado em cima de Donovan.
— Nojento. — Uma segunda voz diz. Minha respiração fica presa nos pulmões quando
reconheço a presença de Randall. — Você não deveria ter batido nele com tanta força.
— Não achei que tivesse sido com tanta força — Donovan retruca.
Lembro-me que estava com Ashton antes de desmaiar.
Pânico infiltra minhas veias.
Onde ele está?
Olho freneticamente pelo lugar. Nunca estive aqui antes, mas não parece totalmente
estranho. Há um ar que me remete a algo reconhecível. Os papéis empilhados parecem com algo
que meu pai faria-
Estou no maldito porão.
Tento controlar minha respiração, mas não consigo pensar direito. Meus olhos não estão
totalmente normais. Parece haver bolhas roxas na minha visão me impedindo de observar com
clareza. Talvez Donovan deveria ter me batido com menos força mesmo.
Até que eu vejo.
Ele está preso na cadeira como eu. Há cordas em volta do seu corpo, presas com tanta
força que o sangue está começando a escorrer de onde a textura farpada encosta na pele. As duas
mãos estão presas sobre o colo dele, com as vértebras roxas. Levanto o olhar no mesmo instante
procurando quem poderia ter feito aquilo e meu olhar encontra instintivamente o rosto de
Randall.
Há marcas azuladas nos ossos de suas bochechas. Essa visão me faz rir. O som que sai
da minha garganta atrai a atenção dele, que me percebe o observando.
Ele levanta uma sobrancelha.
— Do que você está sorrindo?
Sinto vontade de rir.
— Ele deve ter dado uma porrada em você.
Ninguém fala pelos próximos segundos. Não consigo sorrir por muito tempo porque ao
observar Ashton, percebo que ele também apanhou. Percebo sangue escorrendo de vários cantos
do seu rosto, e tenho vontade de arrancar aquelas cordas de mim e bater em Randall até ele-
— Não faça nada com ele. — Uma terceira voz interrompe minha linha de raciocínio.
Viro a cabeça.
Outra onda de enjoo me atinge.
Por que diabos meu pai está amarrado?
— Só falta o seu namoradinho acordar. Logo poderemos começar com o plano.
Tenho um pouco de dificuldade de tirar os olhos do meu pai. Algo sobre a visão dele
daquele jeito, nem um pouco diferente de mim, é deplorável.
Assusto-me comigo mesmo quando percebo que não sinto choque por descobrir que
quem está por trás de tudo isso é Randall e Donovan. O pensamento de Randall fazendo isso
apenas machuca mais do que deveria, mas não é surpresa.
É decepção.
— Por que você está fazendo isso? — pergunto, porque realmente quero saber.
Levanto os olhos para encará-lo. A luz fantasmagórica o faz parecer um vilão de
desenhos animados. É extremamente magro e dolorosamente parecido comigo. Consigo ver
meus olhos no rosto dele, ver traços dos meus lábios, nariz, bochechas.
Mas o que me deixa mais aterrorizado é principalmente o olhar desolado que pesa em
seu rosto.
Reconheço esse olhar.
Já vi ele várias vezes no meu próprio rosto quando me olhava no espelho.
Não quero sentir empatia por ele. Não quero saber os motivos. Não quero entendê-lo.
Embora, ao mesmo tempo, também queira.
— Estava esperando você me perguntar isso, porque eu estava ansioso para te contar
toda a história. — Randall sorri, mas a tristeza ainda está lá. — Vamos voltar para o passado,
então. Você deve saber que aquele homem ali atrás de você é um péssimo pai, porque ele é
egoísta demais para se importar com qualquer coisa além dos próprios experimentos. Ele
engravidou minha mãe, mas a tratava muito mal. Ela se divorciou dele quando descobriu uma
traição.
Percebo que os ombros de Donovan tensionam. Meus olhos desviam rapidamente de
Ashton para analisar aquela dupla por um segundo. Percebo só agora que há uma proximidade
anormal entre eles. Não são desconhecidos, isso é claro como água.
— Então ela conheceu Donovan e se casou. Foi feliz pela primeira vez na vida em
muito tempo. E eu também.
Não sei o que dizer com essa revelação, mas agora muita coisa faz sentido.
— Eles tiveram um bebê. — Randall continua. — Eu era novo, mas fiquei feliz. Afinal
eu queria muito ter um irmão pra suprir a falta que eu tinha de você, já que seu pai não me
deixava ver vocês.
— Minha falta? — A pergunta escapa dos meus lábios mais esperançosamente do que
eu queria.
— Eu amo você, Evan. Acredite ou não, você é meu irmão, e eu te amo. Mas… eu
também amava meu outro irmão. E ele foi morto.
Uma lembrança brilha na minha mente. Me recordo de um dia na sala do diretor, com
Donovan. Estávamos falando sobre Ithaly e sobre como a presença dela não faria bem para
Ashton. Ele estava tentando me manipular para me fazer dizer onde ela morava, seja lá por qual
motivo.
Lembro de ter visto uma fotografia.
— Aquele era seu filho? — pergunto diretamente para Donovan.
Ele encolhe os ombros. Quase sinto pena.
Ninguém precisa responder para eu ter a minha resposta.
— Mas… Eu não entendo. O que isso tem a ver com a gente? Por que vocês mataram
Fraser? Por que fizeram aquilo com Will? Com a minha mãe, com aquele cachorro…?
— Talvez pareça que somos monstros, Evan, mas é mais complicado do que isso.
Vingança nunca tem fim. Só os espertos sabem disso. — Ele dá um passo na minha direção.
Tento me afastar, mas lembro que estou preso. — Primeiro, Fraser Banks. Acho que Donovan
pode explicar melhor.
— Meu filho morreu em um tiroteio. Ele foi atingido enquanto passava por um viaduto.
Era uma briga de gangue. — O velhote faz uma pausa para continuar. Seus olhos ficam quase
leitosos enquanto ele parece caçar lembranças em sua mente. — Me lembro quando os policiais
apareceram na minha casa. Eu sabia que minha vida seria destruída depois daquele dia. Minha
esposa não estava muito bem mentalmente devido ao antigo casamento e quando tinha começado
a melhorar…
Outra pausa.
Fico surpreso em escutar um soluço profundo.
— Foi minha culpa. Eu deixei que ele saísse aquele dia. Havia inúmeras reportagens
falando sobre o perigo de sair na rua naquela época. Eu sabia, sabia, e mesmo assim…
Randall esfrega a mão nos ombros de Donovan. Eles parecem muito com o que um pai e
um filho deveriam ser. Ambos tem um semblante triste se lembrando daquele outro garoto. Tento
imaginar como ele devia ser. Provavelmente era uma pessoa boa, para esse par de padrasto e
enteado irem tão longe em busca de vingança.
Aperto os punhos. Minha pele arde quando o atrito da corda enfia farpas para dentro de
mim.
Se eu morresse injustamente, Randall faria coisas assim por mim?
É egoísta pensar isso levando em consideração o quanto essa vingança estúpida tinha
levado a infelicidade de outras pessoas, mas ainda é inevitável.
Do outro lado do porão, escutamos gemidos. Ashton está acordando. Ele parece passar
pelas mesmas dores que eu quando acordei, mas se recompõe rapidamente.
A primeira coisa que escapa dos seus lábios quando sua consciência volta totalmente é
“Evan”.
No fundo do meu coração, sinto uma dor.
— Ash. — Eu o chamo. Ashton levanta o pescoço tão rápido quanto possível. Quando
os olhos dele esbarram com os meus, seus lábios abrem em um suspiro alto. Mal percebo quando
faço o mesmo. Meus olhos enchem de água.
Por um segundo, esqueço de tudo ao meu redor.
— Bem, já que ele acordou, talvez seja a hora de contar as novidades —Randall
interrompe meu momento com Ashton.
— Randall, filho… —Pela primeira vez desde que acordei, meu pai fala. Uma onda de
raiva percorre meu corpo quando o vejo chamar Randall de filho.
Quantas vezes na minha vida eu desejei que ele me chamasse assim?
— Não me chame de filho. — Não preciso levantar o rosto para saber da expressão de
desgosto de Randall. — Você não é meu pai.
Ainda estou observando o meu pai, por isso consigo pegar o exato momento em que as
palavras do meu irmão o atingem. Engulo em seco.
As coisas estão ficando complicadas.
— Como eu estava dizendo, Evan, vamos contar o que planejamos. No momento,
Ashton e Terry estão com a droga no corpo. Não faz efeito imediato, por isso temos tempo de
terminar nossa conversa de antes. O que eu estou tentando dizer é que…
— Evan é o único que tem o antídoto no corpo. Você quer que ele escolha — Ashton
completa. Vejo seu maxilar apertado. Ele não tira os olhos de mim nem por um segundo sequer.
— Por que você é esse tipo de sádico.
Randall solta uma risada tão cínica que eu me encolho.
— Você não me conhece, garoto.
— Isso virou o quê? — Minha voz aumenta e eu pareço muito corajoso por absorver a
ironia do meu irmão e usá-la contra ele, mas na verdade eu estou quase vomitando pela segunda
vez. — Uma merda de jogos mortais?
As quatro pessoas ficam em silêncio.
— Vou deixar você pensando em quem escolher. Seu pai que te negligenciou a vida
toda, porém que foi forçado por nós a agir como agia e que agora está arrependido, ou seu
namorado que nunca esqueceu da antiga paixão, mas que jura de pés juntos que te ama, embora
ele nunca te diga isso em voz alta?
— Como você-
— Eu sei de muitas coisas, Evan. Você ficaria surpreso. — Randall passa por trás da
cadeira na qual estou amarrado. Ele dá dois tapinhas nas minhas costas. — Avançando um pouco
no tempo, chegamos na parte de Fraser. Donovan estava desolado e queria vingança daqueles
malditos ratos que usam armas em público. E ele iria conseguir, porque o filho postiço dele
amava o irmão tanto quanto o pai amava o filho.
— O que aqueles ratos amam mais do que infestar a cidade com a nojeira deles?
Drogas. Eles gostam de drogas. E por que não criar uma que os viciasse por parecer a melhor
coisa do mundo, mas que na verdade os matava lentamente? Que os fazia matar pessoas que eles
amavam, depois recobrar a consciência e sofrer pelo que eles tinham feito?
— É aí que meu pai entra?
— Garoto esperto. — Randall sorri antes de continuar: — Terry vivia fazendo
experimentos, essa era sua verdadeira paixão. A ciência era sua esposa, seus filhos, seus irmãos,
sua família. Eu sabia que ele tinha uma substância em experimento. Merda, ele vivia pensando
em usar essa merda na sua mãe, Evan. Você acredita? Talvez seja por isso que ela é uma total
inútil hoje em dia.
Meu sangue borbulha como nunca antes. Outra dor áspera invade meus sentidos quando
tento me mexer e as cordas apertam meus pulsos. Quero me soltar e fazer ele engolir essas
palavras de volta. Quero dizer a ele tantas coisas que minha garganta arde.
Escuto um som. Um estalar da língua no céu da boca, “tch”
É Ashton.
Olho na direção dele, percebendo que ele está tentando chamar minha atenção. Ele
balança a cabeça discretamente.
Está me pedindo para manter a calma.
Respiro fundo.
— Daisy sabia que seu pai não era uma boa pessoa. — Randall continua falando. — Ela
tentava te manter longe dele, principalmente quando descobriu sobre nós, a família antiga do seu
pai. O ponto é: ele colocou algo no seu corpo quando você ficou mais velho, provavelmente
naquelas vezes em que te trancava aqui. Algo que te protegeria se algum maluco como ele
próprio tentasse fazer algo com você, porque no fim, mesmo que Terry se recusasse a admitir,
ele ainda era seu pai. Acho que ele tentou pôr essa mesma coisa em Daisy. Foi por isso que ela
foi parar no hospital em estado vegetativo. Não funcionou muito com ela, pelo jeito.
Meu pai encolhe os ombros. Consigo vê-lo pela minha visão periférica.
Nunca achei que ele poderia parecer tão miserável, tão arrependido. Quanto mais penso
nisso, mais o nó no fundo da minha garganta aperta, porque agora a vida dele e de Ashton está
em jogo e eu tenho que escolher.
Algumas horas de arrependimento são o suficiente para eu perdoá-lo? Será que ele acha
que eu sou capaz de escolhê-lo ao invés de Ashton, só por causa de algumas lágrimas? Mesmo
depois de ter feito a minha vida um inferno?
— Bem, eu finalmente contatei ele e contei o plano. Não falava com ele há algum tempo
e foi difícil encarar o rosto do homem que destruiu minha mãe. Terry não aceitou, é claro. Eu
imaginei que as coisas acabariam desse jeito, mas eu estava preparado. Disse que se ele não me
desse a maldita droga, eu iria atrás de você. E foi nessa mesma época que Donovan entrou no seu
colégio como diretor. Queríamos que Terry soubesse que estávamos controlando tudo, sabendo
de tudo.
Engasgo com essa informação.
Não imaginei que Donovan poderia ter entrado na escola em que eu estudo por esse
motivo e saber que eu fiquei esse tempo todo correndo perigo — que aquela escola ficou
correndo perigo nas mãos desses dois malucos. Que Ashton correu perigo, meus amigos… é
como se houvesse uma nova pressão em cima dos meus ombros.
— No fim, precisávamos de homens para fazer o trabalho sujo para nós. Achamos
alguns outros rapazes, todos bons, mas nenhum como Fraser.
Ashton endurece na cadeira ao escutar esse nome. Ele está parecendo um cachorro
mostrando os dentes para Randall como se estivesse prestes a atacá-lo.
— Quem o via no dia a dia não imaginaria as coisas que ele poderia fazer. No começo,
pedimos para ele matar pessoas. Apenas os ratos daquela gangue e ele fazia um trabalho incrível.
Nunca recusava, porque ele precisava. Afinal, tinha uma esposa e um filho em casa que
precisavam dele. E esse outro garoto. Nunca entendi muito bem o porquê Fraser estava ajudando
esse pirralho, mas não me importei. Para mim era apenas mais uma forma de ameaçá-lo caso ele
saísse da linha. Se eu soubesse o trabalho que esse garoto daria, teria mandado um dos outros
homens matar ele logo de cara.
Randall nem sequer tenta esconder a expressão de ódio.
— Até que pedimos para Fraser experimentar a droga. Acho que esse foi um dos nossos
erros. Isso o assustou. Ele estava bem em matar, mas não em ser morto, porque tinha gente no
mundo que ele amava. E então esse maldito cachorro zarpou com nossos documentos.
Documentos perigosos, coisa que colocaria o FBI na nossa cola se fosse espalhado. Quando
demos falta dos documentos, seu pai entrou em ação. Ele e Will. Will era outra pessoa fácil de
manipular. Os pais dele eram exigentes, diziam que ele tinha que ser duas vezes melhor do que
as outras crianças se quisesse ser aceito pela sociedade.
Encolho os ombros outra vez. A cada vez que uma palavra sai da boca do meu irmão, é
como um ano de vida sendo arrancado de mim. Antes de tudo isso, Will era um garoto incrível.
Sorria demais, era gentil demais.
— Aww, ficou com pena? Que dó. Você matou ele no final das contas! — O cinismo na
voz desse homem me enjoa. — Ele não era tão inocente, porém. Para poder trabalhar para a
gente, dissemos a ele que ele teria que ajudar Terry a acabar com Fraser. Só assim ele
conseguiria dinheiro para tirar os pais dele da miséria e provar que ele era alguém de valor. —
Randall sorri, cada vez mais parecido com o diabo. — Foi tão fácil convencê-lo.
— Você é um monstro.
— Todos nós somos, Evan. No fundo, temos uma parte podre dentro de nós. Você sabe
disso, porque faria loucuras por causa daquele garoto ali — ele aponta na direção de Ashton. —
Até mesmo escolher ele ao invés do próprio pai."
— Isso…
— Por favor, não se faça de bom moço agora. Nós podemos não ser ruins no mesmo
sentido, mas há um mal dentro de você.
Não sei o que responder. Sempre acreditei naquela tese em que seres humanos não são
feitos completamente de uma única coisa. Devíamos ser homogêneos, onde o mal se misturava
com o bem. Mas aqui, e agora, é difícil pensar que há uma maldade dentro de mim como há em
Randall.
Talvez nós não sejamos tão diferentes, afinal. A diferença real e significativa é que ele
não consegue guardar a própria podridão para si. E eu, sim.
— Não somos iguais. Eu não sou como você.
O sorrisinho no rosto dele me irrita, mas eu sei que é pura provocação. A esse ponto está
claro que ele é ótimo com manipulação.
— Com Fraser morto, achamos que as coisas seriam mais fáceis, mas não sabemos onde
diabos ele enfiou aqueles documentos. Sempre achamos que estivesse com Ithaly, mas esse
maldito moleque fez um trabalho muito bom em esconder ela e a criança. Até você aparecer, é
claro. Todos sabemos que você não trabalha bem sob pressão. Foi necessário apenas uma foto da
sua mãe e você estragou todo o empenho que Ashton teve esse ano em esconder a mulher.
Vergonha me enche como um balão. Pareço ter levado um soco na boca do estômago.
Repentinamente, não consigo respirar direito.
Eu sabia de tudo isso, mas ouvir alguém me dizer parece tornar tudo mais real.
Afinal, eu realmente estraguei todo o trabalho que Ashton teve.
— Você sabia que era Mia quem mandou a vocês aqueles códigos por e-mail? Aquela
cadela mexeu nas minhas coisas uma vez e arruinou tudo. Mas por sorte, ela não foi tão esperta
assim e acabou cometendo o erro de mandar estes e-mails pelo meu computador. Como alguém
pode ser tão burro a esse ponto? Quando descobrimos, nos passamos por ela e mandamos uma
pista-emboscada. Descobrimos no dia em que vocês idiotas decidiram invadir a casa e você foi
mordido pelo cachorro. Depois disso, só abrimos o buraco onde Fraser estava enterrado e
atraímos os dois para cá.
Randall parece finalmente respirar. Depois de me explicar tudo isso, não sei onde ele
arranjou forças para continuar essa falação. Me pergunto se nunca falta saliva naquela boca
nojenta.
— Para nossa sorte, o cachorro também tinha mordido Ashton. O que nós injetamos
agora é apenas algo para acelerar o processo-
— Eu tenho uma dúvida. — Ashton interrompe.
Sua voz séria causa uma série de arrepios na minha nuca. A atenção de todas as pessoas
no porão se voltam para ele.
— É claro que você tem.
— Como Terry e Will sabiam sobre o pergolado?"
Sinto isso acender uma chama sádica dentro de Randall. Nunca achei que um ser
humano poderia sorrir de forma tão diabólica quanto aquela.
— Omar. Você se lembra dele? Você estava de coração quebrado e correu para os
braços do pobre garoto. Levou ele até o pergolado e-
— Espera. — Eu o interrompo. Randall se vira para mim, irritado por atrapalhar sua
explicação mirabolante. — Você levou Omar para o pergolado?!
Ashton me encara com o rosto sem expressão. Fico mais irritado ainda.
— Achei que aquele lugar era uma coisa nossa!
— Evan-
— Eu não acredito. — Se não estivesse amarrado, eu certamente estaria colocando as
mãos na cintura nesse instante. — Por que Omar iria contar sobre aquele lugar pra alguém?
— Bem, ele se apaixonou pelo Ashton também. E foi desabafar para Will. Will era
esperto, mais do que achava ser. Sabia que Ashton jamais pensaria em procurar no seu lugar
sagrado. — Randall termina sua explicação.
Estou prestes a abrir a boca e começar uma discussão infantil, mas meu pai interrompe.
Minha visão periférica me diz que ele não está em uma condição muito boa. Vejo suor
escorrendo da sua testa.
— Randall…
— Ah, sim. A droga está começando a fazer efeito. Logo, o pai que você conhece não
existirá mais. Nem Ashton. Então, Evan, quem você quer deixar para morrer?
Quero abrir a boca e mandá-lo ir a merda, mas algo além da minha capacidade de
processamento acontece. Ele coloca uma arma na minha frente. Ou melhor, oferece a arma para
mim.
— Você deve matar um deles. Afinal, quem não receber o antídoto não será nada além
de um monstro. Pro resto da eternidade.
— Por quê? — Um fiapo de voz escapa dos meus lábios. — Por que está fazendo isso
comigo? Eu não fiz nada para o seu irmão.
— Isso não é mais sobre meu irmão, Evan. É sobre a minha posição. Eu tenho muito a
perder no momento e eu preciso da merda daqueles documentos. — A jugular do pescoço dele
salta. Pela primeira vez na noite, eu genuinamente não consigo pensar em nada.
Agora noto: isso deixou de ser sobre o garoto morto há muito tempo. Vendo o rosto
desesperado de Randall e Donovan encolhido enquanto seu enteado parece prestes a saltar em
cima de mim e dilacerar minha garganta, percebo que tudo isso é por causa de poder.
Afinal, poder é viciante.
Se você não tomar uma dose moderada, pode te transformar em um ser muito pior do
que essa maldita droga que meu pai criou.
— Se eu te contar onde está, você solta Evan? Se eu te contar, você para de forçar ele a
escolher entre mim e o pai? — A voz de Ashton chama minha atenção.
Ergo o rosto e o encontro já me olhando. Meus olhos ardem de novo.
Conheço ele bem o suficiente para saber que é mentira. Onde quer que Fraser tenha
colocado esses documentos, é um segredo que foi para o túmulo com ele. E isso me deixa com
medo, porque quando Randall perceber que é uma mentira, irá se irritar.
Meu irmão finalmente sai de perto de mim. Ele caminha na direção de Ashton, mas
mantém certa distância, como se Ashton fosse algo perigoso.
Sorrio. É patético. Randall ainda tem medo de Ashton e isso é patético.
— É claro. O que você quiser.
— Então solte ele antes.
Isso não parece agradar Randall, mas ele faz um aceno para Donovan e o velhote
obedece.
Percebo que eu estava errado antes: não é nada como um filho e um pai. É mais como
um servo e um chefe.
Quando meus pulsos finalmente ficam livres das cordas, eu escorrego da cadeira. Meu
corpo está tão fraco que só percebo agora que a única coisa que estava me mantendo ereto eram
as cordas.
— Bem. Ele está solto. Agora diga onde. O lugar específico.
Escuto um barulho do lado de cima, mas ignoro, porque quando vejo aquele sorriso
maníaco nos lábios de Ashton, sei que algo terrível vai acontecer.
— Está no inferno, o lugar onde o filho da puta do seu irmão foi pra pagar pelos
pecados que você cometeu.
Então tudo acontece rápido demais.
Mal tenho tempo de piscar, nem sequer consigo me mexer, mas a mão de Randall se
move rapidamente. Ele levanta o cano da arma na direção da cabeça de Ashton.
Minha alma parece desaparecer quando vejo isso. Meu coração para de existir. Estou
prestes a implorar, com pânico se ilustrando em cada célula, átomo do meu corpo, quando de
repente…
POW!
O cheiro de pólvora invade meus sentidos.
Me forço a abrir os olhos.
Escuto borrões de vozes, como se eu estivesse debaixo d'água.
Minha cabeça dói tanto que mal consigo pensar direito, mas quando o nome de Ashton
aparece na minha mente, meu corpo reage instintivamente.
— Ash? — Eu o chamo, provando seu nome em meus lábios. Minha garganta arde, mas
eu o chamo de novo. — Ashton?
Não há resposta.
Um puxão no fundo do meu estômago me deixa enjoado. Tento dar um passo para
frente, procurando cegamente por Ashton, mas meus pés batem com algo macio. Meu sangue
gela no mesmo instante quando a possibilidade de ser o corpo dele me atinge.
Além de uma perna ferida pro resto da vida, acho que agora também estou surdo do
ouvido direito. E, à medida que a dor no meu tímpano começa a diminuir, meus olhos encontram
a cadeira onde Ashton deveria estar amarrado.
Uma mancha vermelha como vinho escorre pela camisa dele na região do estômago, e
quando noto que ele não é quem está estendido em frente aos meus pés, pânico toma meu
coração e eu olho para baixo.
Randall.
Randall está deitado de bruços no chão. Seu rosto paralisado em uma eterna expressão
de fúria.
Ele está como sempre esteve — perfeito. Mas agora há um buraco escuro e profundo no
meio da sua testa, jorrando sangue lentamente sobre seus olhos abertos.
O sangue é mais grosso do que eu achei que seria. Quando vi o corpo de Fraser, não
havia nada além de vermes o comendo. Mas agora… Agora eu estou literalmente vendo sangue
quente correndo para fora do corpo do meu meio-irmão para encostar nas bordas do meu tênis.
Tudo se torna mais real quando o cheiro metálico se infiltra no meu nariz e por causa
disso, quase consigo sentir o gosto do sangue na minha língua.
Só tenho tempo de me virar para o lado para literalmente não vomitar em cima do
cadáver do meu irmão.
Quem diabos fez isso?
— Evan! — Uma voz surge de repente. Forço meu olhar naquela direção, reparando em
como calafrios estão por todo o meu corpo. Estou ouvindo a voz de Charlie ou fiquei
completamente louco? — Evan!
E então sinto um baque contra meu corpo, tão forte que tropeço para trás. Braços me
envolvem com tanta força que mal consigo respirar, mas meu coração está batendo com tanta
força que por pouco não reconheço o cabelo do meu amigo — e o quanto ele está tremendo.
Logo em seguida, reconheço outra pessoa: parada no penúltimo degrau da escada, Hazel
está paralisada olhando diretamente na direção de Randall. Ela está com os braços estendidos e
os olhos mal piscam. Há uma arma entre suas mãos. Fumaça ainda está saindo do cano.
Deuses, o que aconteceu aqui?
— Ash — É tudo o que sai dos meus lábios. A mancha de sangue na blusa dele está
aumentando, começando a escorrer pelos cantos da cadeira. O pescoço dele está mole, e eu quero
me aproximar, quero tocá-lo para saber se ele está quente, mas Charlie não me solta. — Ashton.
A pessoa à minha frente levanta os olhos e seu cabelo encosta no meu nariz. Charlie
segue meu olhar e eu sinto seu corpo estremecer contra o meu quando ele vê a figura de Ashton.
— Eu achei… —Ele começa. — Achei que Hazel tinha impedido o seu irmão-
— Ele não está morto ainda — diz a terceira pessoa amarrada em uma das cadeiras.
Meu pai. — Ashton não está morto ainda. Mas vocês precisam chamar uma ambulância logo. —
Ele olha diretamente para mim.
E é nesse instante que a realidade me atinge como uma onda.
Lembro de tudo exatamente como aconteceu. Meu pai, eu e Ashton estávamos
amarrados, enquanto Randall me forçava a decidir entre salvar algum dos dois. Lembro do
desespero atingindo minha alma quando vi meu irmão levantando o cano da arma na direção da
cabeça de Ashton.
De alguma forma, Randall o atingiu no estômago. Provavelmente porque Hazel o
impediu antes.
Alívio atravessa meu corpo com tanta força que meus joelhos cedem e eu caio perto da
cabeça do meu irmão. O olho por alguns instantes. Não sinto nada. Absolutamente nada.
— Evan, me escute. — A voz do meu pai me traz de volta para a realidade. — Sei que
está confuso, mas se você quiser que seu garoto fique bem, tem que agir rápido. Vá até a
prateleira embaixo da escada e abra a portinha que tem ali. Há um cofre dentro. A senha é seu
aniversário. É o antídoto para o vírus dentro do corpo dele. Randall não sabia sobre ele. Ninguém
sabe. Você não pode injetar o próprio sangue no corpo dele porque pode causar uma rejeição se
for de tipos diferentes. Iria matá-lo.
Estreito os olhos. Como meu pai tinha a audácia de achar que eu confiaria nele?
— Por que eu faria isso? O que me assegura que não é alguma de suas outras drogas pra
matar ele de uma vez?
Algo na sua expressão vacila e ele parece tão miserável que quase sinto empatia.
Desvinculo-me completamente de Charlie. Ele tenta chamar meu nome, e eu imagino o
quão confuso deve estar sendo ouvir toda essa conversa. Hazel está parada no mesmo lugar, com
o mesmo olhar assustado. Ela não se envolve, não se aproxima, mas sei que está apenas me
esperando pedir por ajuda.
Me aproximo de Ashton. Levanto a mão para que minha pele toque sua bochecha e é
quase dolorosamente bom poder saber que de alguma forma ele ainda está aqui, mas, estando
perto, consigo ver a gravidade da ferida. Não me atrevo a levantar a blusa, porém a quantidade
de sangue se acumulando me diz que a situação não está boa. Ele está perdendo muito sangue.
Faço o que meu pai disse, e, quando tiro o vidro de dentro do cofre, abro todas as
gavetas do meu pai à procura de uma seringa fechada e álcool.
Quando acho, jogo álcool sobre a agulha e enfio no vidro daquela substância estranha.
Preciso respirar fundo antes de aproximar a ponta da agulha da pele de Ashton, rezando para,
pela primeira vez na vida, meu pai estar sendo honesto. E então, tão de repente quanto a aparição
de Charlie, Ashton move o rosto para o lado e o seu olhar encontra o meu.
Meus olhos começam a arder. E a arder cada vez mais.
— Eu não tenho tanto medo de agulhas assim. Faça isso logo.
E eu assinto e faço o que ele pediu.
Mesmo que meu corpo doa como se eu estivesse sendo rasgado ao meio por vê-lo desse
jeito.

Minha casa fica cercada por policiais. Max e Omar ligaram.


Eu ainda não posso acreditar no que está acontecendo.
Quando saio de dentro do porão, os flashes cegam meus olhos. Há pelo menos cinco
policiais fardados olhando na minha direção enquanto eu carrego Ashton com a ajuda de Charlie.
Eles tomam o homem dos meus braços antes que eu possa protestar, mas, assim que finalmente
sinto o peso das minhas costas sumirem, minhas pernas cedem.
Chorei como uma criança. Chorei tanto que achei que iria vomitar.
Os policiais não me dão atenção. Passam por mim e correm para dentro do porão. Ouço
a voz do meu pai chamando o nome do meu irmão.
Desabo mais ainda, mesmo no chão.
Meu coração afunda para o estômago com a lembrança de que Randall ainda era da
nossa família. Que ele ainda era filho do meu pai e que meu pai tinha acabado de vê-lo levando
um tiro na cabeça.
Tento agarrar o chão, quase me esquecendo de que aqui não é a praia.
Não tenho coragem de levantar porque sei que, no instante em que eu fizer isso, vou ter
que lutar contra todo aquele caos.
Mas está acabado. A pior parte já passou.
Fraser finalmente poderá descansar em paz. O mistério do seu desaparecimento foi
resolvido.
— Evan… — A voz do meu pai me traz de volta a realidade. Levanto o rosto e encontro
seus olhos. — Me desculpe.
É tudo o que ele diz antes que o policial o prenda com a algema.
Tento abrir a boca para responder, mas o som da ambulância me impede.
Me levanto com a ajuda de Omar e Max. Eles me observam com olhos esbugalhados,
mas não se atrevem a fazer uma única pergunta. Sinto sujeira e suor grudados no meu corpo, e,
quando chegamos perto da ambulância, vejo o serviço de pronto-socorro colocando Ashton
numa maca e o enfiando dentro do automóvel.
— Ei! — Meu corpo afunda no chão mais uma vez, mas corro na direção dele. — Eu
vou com vocês.
— Senhor. — O paramédico me segura quando tento tocar o corpo de Ashton. Sei que
não é a hora de fazer uma cena, mas só a ideia de tê-lo longe de mim nesse instante parece pior
que a morte. — Acalme-se.
— Por favor, me deixe ir com ele. — Agarro o paramédico pelos ombros. Minhas
pernas cedem mais uma vez, e o homem me segura. — Por favor, por favor!
Talvez isso tenha atingido algum canto do coração do paramédico, porque ele me arrasta
pelos cotovelos em direção a ambulância, me fazendo sentar ao lado de onde Ashton está
deitado.
— O que você é dele, garoto?
— Namorado.
Escuto um suspiro.
— Vou deixar você vir conosco. Mas precisamos ser rápidos, então, por favor, se
acalme.
Não respondo, mas acho que isso é o que o homem quer. Antes de ele fechar as portas
da ambulância, vejo meus amigos parados do lado de fora. Todos eles, um do lado do outro,
enquanto, de soslaio, consigo observar o momento em que colocam Hazel numa outra viatura
enquanto Charlie bate freneticamente no vidro, desesperado por ela.
Franzo a sobrancelha.
Vejo tudo em câmera lenta.
Não sei se é o choque fazendo meu cérebro trabalhar lentamente, mas toda aquela
bagunça não parece nada comparada ao que eu passei horas antes.
Não faço ideia do que irá acontecer a seguir. Penso na minha mãe, em Randall e
principalmente no meu pai. Imagino que teremos que comparecer a alguns julgamentos quando
todos ficarmos bem, e meu pai provavelmente será preso. Isso se não enlouquecer antes.
O que aconteceu com Donovan? O que vai acontecer com meu pai?
Não consigo parar de pensar no fato de que Randall também havia injetado a droga nele.
Queria poder falar com Hazel nesse instante. Queria poder agradecê-la por ter salvo
Ashton, mesmo que isso significasse que teria problemas no futuro. Queria abraçar Charlie e
chorar nos seus braços.
Deus, queria poder acalmar Max. Ela parece tão aterrorizada.
— Vou precisar fazer algumas perguntas até chegarmos ao hospital. Lá, ele irá para
cirurgia e vamos precisar checar você também. — O médico diz, e eu concordo com tudo.
Não me importo comigo mesmo nesse instante, e observo enquanto o homem coloca
algo nas veias de Ashton. Meus olhos pesam cada vez mais. Acho que meu nariz começou a
sangrar.
— Evan. — Uma voz pequena me chama, tão baixo que mal escuto. Viro o rosto na
mesma hora, procurando os olhos de Ashton. O paramédico fecha a ambulância e senta do lado
oposto ao meu, olhando atentamente nossa interação, porém sem parecer que vai se intrometer.
Ash move a mão em direção a minha, embora eu tente impedi-lo. — Eu amo você.
Meu pulso aumenta.
— Por que… — Engulo um soluço. Não quero chorar agora. Não quero ouvir essas três
palavras enquanto estamos indo em direção ao hospital. Parece com uma… despedida. — Você
sabe se me disser isso agora eu vou achar que você está se despedindo, não sabe?
Eu o olho diretamente nos olhos. Suas pálpebras parecem prestes a fechar.
Preciso segurar outro soluço quando ele não me responde.
Me curvo diante da sua mão, colocando a testa na palma de Ashton, e rezo. Pela
primeira vez em toda minha vida, rezo para o que quer que seja que supostamente cuida de nós.
— Não faça isso comigo, Ashton. — Meu corpo convulsiona quando tento reprimir as
lágrimas. — Não me abandone agora.

“…há informações de que Terry Shiravari é o homem quem criou a droga. Até o
momento, existem provas na casa que condizem com todos os fatos. Seria essa a droga a qual
alguns moradores de rua de Nova York estão apresentando sintomas? E como a agora nomeada
Golden Dream saiu de Toronto e parou nas ruas de Nova York?”
Acordo com o som da reportagem. O nome do meu pai me traz imediatamente para a
realidade, e quando abro os olhos, encontro uma foto da minha casa na TV. Minha visão dói
quando tento encarar a tela por muito tempo e preciso deitar a cabeça no travesseiro quando a
tontura me inunda.
— Evan…
Viro meu rosto para o lado e encontro Max. Ela está com uma aparência terrível, como
se não tivesse dormido por dias.
As lembranças de algumas coisas que aconteceram me atingem de repente. Meu cérebro
dói tanto que me sinto enjoado. Não consigo pensar direito.
— Max… Tem água?
Ela não responde, mas um canudo encosta nos meus lábios. Abro a boca e tomo a água,
e é como se eu tivesse ganhado vida de novo, porque depois de alguns segundos, me sinto
minimamente melhor.
— O médico disse que você teria sede. Tem água de coco se você quiser também. Não
se mexa mu-
— Onde está o Ashton?
Escuto um suspiro vindo dela. Imagino que Max não queira ouvir o nome dele agora,
mas não consigo evitar. Só de lembrar o que ele me disse na ambulância e da forma que aquilo
parecia ser uma espécie de despedida, pânico infiltra minhas veias tão rapidamente que eu tenho
que agarrar o cobertor em volta de mim para não surtar.
— Ele está bem. Está num quarto aqui perto. Saiu da cirurgia ontem.
— Ontem? — Franzo a sobrancelha. — Por quanto tempo eu dormi?
— Um dia e algumas horas. Os médicos disseram que você teve uma concussão grave e
estão te mantendo em observação, mas acredito que você tenha dormido tanto assim por causa
dos remédios pra dor — Max explica. Ela se remexe na cadeira ao meu lado, como se algo a
incomodasse. Parece querer dizer algo, perguntar algo.
Não consigo nem sequer imaginar quantas coisas devem estar rondando sua cabeça
agora.
— Eu não consigo lembrar de algumas coisas —digo quando noto que algumas
memórias das últimas horas sumiram. Não só das últimas horas, mas de alguns elementos… que
parecem importantes. Não é assustador quanto deveria ser. As coisas que eu lembro me
aterrorizam mais do que aquelas que eu posso ter esquecido. — O que aconteceu com o meu pai?
Onde está a minha mãe?
Ela engole em seco.
— O doutor disse que isso é normal. Estresse pós-traumático. — Max fica remexendo
nos dedos, sem querer levantar os olhos na minha direção.
— Max…
— Seu pai está internado. Ele estava agindo feito louco, tentou atacar alguns policiais.
Estão dizendo que depois que ele melhorar, se ele melhorar, vai acontecer o julgamento. Sua
mãe…
— Por que ela não está aqui?
Minha amiga solta o ar dos pulmões. Quando ela finalmente ergue os olhos para mim,
sinto vontade de vomitar.
— Eu esqueci algo sobre ela, não esqueci?
Max não responde, e essa é a única resposta que eu preciso.
— Acho melhor não falarmos disso agora. Você está confuso por causa da concussão,
mas logo irá melhorar. Não quero te assustar, está tudo bem, só… Não quero te causar mais
estresse.
Não reclamo.
Não sei se quero lembrar de algo que parece perturbá-la, pelo menos não por enquanto.
Max finalmente toma coragem para perguntar o que diabos estava acontecendo. Eu
conto tudo. Tudo o que eu me lembro, pelo menos. E quando termino, me pergunto porque nunca
fiz isso antes. Desabafar sempre me pareceu uma coisa idiota, mas agora eu entendo porque
sempre me aconselharam a fazer isso. Embora não tire toda a minha dor, parece que… algo
sombrio foi tirado de mim.
— Eu ainda… Evan. Eu ainda não consigo acreditar como a gente nunca percebeu o que
o Donovan… E o seu pai-
— Nem eu sei como não notei isso antes. E eu moro com meu pai. Quer dizer, morava.
— O que você vai fazer agora? — ela pergunta.
É algo complicado.
O que eu vou fazer agora? Ir no julgamento de Hazel, torcer para os deuses para que
Ashton fique bem e depois procurar minha mãe.
Mas o que eu quero fazer agora?
— Estou com fome.
Max solta uma risada e seu rosto finalmente suaviza. Me sinto melhor ao ouvir esse
som. Tento me inclinar para abraçá-la, mas minha cabeça gira.
— Merda.
— Você não deveria se mexer agora, idiota. — Embora Max esteja me xingando,
consigo ouvir o sorriso em sua voz. — Vou pegar algo para você comer.
E desse jeito, ela sai do quarto.
Espero até que um minuto inteiro tenha se passado. Não sei se deveria fazer isso agora,
principalmente porque mal consigo me manter sentado, mas preciso ver ele.
Preciso ver com os meus próprios olhos se Ashton realmente está bem.
Saio do quarto descalço. Não faço ideia de em qual quarto ele está e sempre que tento
me aproximar de algum médico para pedir informação, eles passam apressados por mim.
Caminho pelo corredor, tentando arrumar coragem para abrir algumas das portas quando
vejo uma cabeleira loira.
Não me parece o corte de cabelo de Ashton, mas eu reconheço aquela cor.
Aproximo-me, torcendo para ser ele. Porém, a cada passo que dou, fica mais evidente de
que não é o loiro o qual eu procuro.
Embora… o homem a minha frente pareça muito com Ashton.
— Desculpe, você… é parente do Ashton Winsor? — pergunto, mesmo que seja pouco
provável. Ashton me contou sobre seus pais, e, além de Cohen, nunca citou nenhuma pessoa da
sua família da qual poderia ter algum tipo de afeto.
O homem vira totalmente na minha direção agora e eu quase tombo para trás. Os
olhos… os olhos são exatamente iguais.
O homem tem o rosto redondo e parece que está prestes a puxar um cigarro e fumar
dentro do hospital mesmo. Ele está vestido com um terno amarrotado e sujo, e o cabelo, embora
tenha uma cor bonita, está tão oleoso quanto sua cara.
Poderia ser Cohen, aquele merdinha que abandonou Ashton quando ele era uma
criança?
Aperto a mandíbula, mas o homem sorri. O sorriso também é parecido com o de Ashton
e eu não consigo ficar com raiva por muito tempo, embora esse sorriso não seja tão inocente e
bonito quanto ao do garoto que eu gosto.
O deste homem é algo feroz e animado.
— Então você é o namoradinho dele? Aquele pirralho de merda não parou de perguntar
sobre você nem por um segundo.
Não sei o que responder. Minhas mãos começam a suar.
Ashton está acordado? Ele perguntou de mim? Como diabos o tio dele o achou?!
— Como você…?
— Vocês dois estão passando em todos os jornais possíveis do país. Não foi difícil vir
atrás dele — Cohen responde. Ele se joga nos bancos de espera e tira o celular do bolso. Fica
jogando por um ou dois minutos até reparar que eu não me mexi. — Você vai ficar parado aí?
Entra logo no quarto do moleque antes que ele passe mal de tanto querer te ver.
Faço o que ele pede, parando na porta à nossa frente.
Antes de bater na porta, olho uma última vez para Cohen. Agora que o tio de Ashton
está aqui, o que acontecerá? O que ele quer? Por que ele voltou?
Nós vamos ter tantas coisas para resolver após isso que sinto dor de cabeça apenas de
imaginar.
Na terceira batida que dou na porta, uma voz irritada vem de dentro:
— Seu velho de merda, vaza daqui. Não quero te ver, Cohen.
Meu coração esquenta.
Abro a porta.
Quase fico sem ar.
— Ash…
Ele vira a cabeça na minha direção. Não me mexo, nem ele. Ficamos parados por tanto
tempo que mal reparo na expressão mal-humorada no rosto de Ashton sendo lentamente
substituída por uma expressão surpresa.
Ele parece prestes a derreter na cama.
É como a primeira vez em que o vi naquela noite da festa na fogueira, através das
chamas. Não consigo parar de observá-lo, de admirá-lo, como se ele fosse a coisa que eu mais
precisava no mundo.
Há um peso enorme no meu coração, mas não é de desespero.
Pela primeira vez nesses últimos meses, alívio e mais alguns sentimentos bons são as
únicas coisas que eu sinto. E é um sentimento tão forte que mal consigo acreditar.
É como um sonho dourado.
le foi meu primeiro amor.”
“E São essas as palavras que estão estampadas na primeira página de uma
revista que vi na mesa de um casal enquanto passava por uma avenida à procura
de uma cafeteria.
Fazem cinco meses, mas as palavras de Ashton ainda circulam o Canadá inteiro. A
primeira e única entrevista que ele deu à alguns repórteres foi provavelmente a maior matéria que
aqueles jornalistas conseguiram na vida deles. Ashton concordou em fazer isso para trazer mais
conhecimento para o caso, já que nas primeiras semanas a polícia tentou encobrir o que tinha
realmente acontecido, talvez porque Randall tivesse algum envolvimento com eles ou por algum
outro motivo.
Eu sabia o que Ashton estava tentando fazer: ele queria que as pessoas conhecessem
Fraser, que nunca se esquecessem dele. Sabia que ele fazia isso da forma mais pura e linda
possível, e o admirava por isso, afinal Fraser tinha sido seu primeiro amor de verdade, e, mesmo
assim, Ashton foi capaz de superá-lo, mesmo que tenha sido quem o encontrou morto.
Angústia me atinge instantaneamente quando lembro da noite em que encontramos
Fraser. Ainda tenho pesadelos com isso, embora a psicóloga tenha dito que é normal. Ashton e
eu passamos por muitas coisas nos últimos cinco meses e sair sem nenhuma sequela seria quase
impossível.
Entro numa pequena cafeteria e peço um americano. Novembro está chegando e com
isso o frio se aproxima. O aniversário de Ashton será em alguns dias e ainda estou tentando
pensar em uma forma de surpreendê-lo, mas não tive tempo. Desde o dia em que minha mãe
acordou, cuido dela diariamente. O medo inconsciente de meu pai aparecer e fazer aquelas coisas
terríveis com ela de novo me impede de me afastar demais.
Quando o balconista me entrega meu café, volto para a rua, sentindo o ar gelado
cortando minhas bochechas como pequenos fios de barbante. Pego meu celular quando o sinto
vibrar, ajeitando a bengala na mão para poder segurar o café.
Ash: cadê você? Tá demorando.
Rio para a tela do celular, observando o ar esbranquiçado saindo dos meus lábios.
Ashton se tornou um pouco superprotetor depois de tudo o que aconteceu. Me lembra um pouco
de Max, embora ela tenha se distanciado da versão obsessiva que era antes. Acho que todos nós
deveríamos ter começado a fazer terapia antes. Nosso último ano no ensino médio teria
começado bem melhor.
Voltei para a casa de Ashton. Mal passo tempo na minha própria. Minha mãe vive no
hospital e aquela grande casa de dois andares, vazia, parece mais uma prisão do que uma
moradia. Me lembro de Randall e seu corpo jogado no chão daquele porão. De todas as noites de
desespero que senti quando meu pai me trancava.
Ashton e eu decidimos levar as coisas com calma no começo, mas foi difícil manter a
distância. Eu estava acostumado com ele e ele estava acostumado comigo. Nada melhor do que
isso. Se tornou uma rotina voltar para aquele lugar após o colégio e encontrá-lo fazendo algo
para comer.
Isso faz minha pele coçar toda vez que acontece. Mesmo depois de chegar do trabalho
— Ash conseguiu um trabalho em uma livraria que é ao mesmo tempo uma cafeteria — ele
sempre se esforça para cozinhar algo.
Destranco a porta com minha própria chave.
— Cheguei.
— Finalmente.
O que vejo é algo que me perseguirá até o dia da minha morte: Ashton com um avental
de nuvens e ursinhos azuis.
— Hum…
— Estou fazendo Sarmá. Charlie me passou a receita — ele responde quando fico muito
tempo encarando. Charlie Day Sarkisian ensinou a receita de charuto de folha de uva de sua mãe
para Ashton? Nunca achei que veria isso acontecendo diante dos meus olhos. — Ele me mandou
uma mensagem perguntando como você está.
Jogo a mochila no sofá.
— Ele me vê todos os dias no colégio. Por que não pergunta isso pra mim?
Ashton simplesmente dá de ombros e volta a se concentrar no charuto de uva. Alcanço o
celular e abro o chat de conversa de Charlie, mas não há nenhuma mensagem lá.
Recentemente, sinto que Charlie tem me evitado. Talvez não de forma proposital, mas é
como se uma ferida tivesse rasgado nossa relação. Pensar nisso sempre me causa tantas
sensações que mal consigo respirar, porque a ideia de perder meu melhor amigo machuca tanto
quanto deveria.
Eu: você queria falar comigo?
Charlie responde quase no mesmo instante.
Charlie: tenho algumas coisas para te contar, mas acho que deveria te falar sobre
isso pessoalmente.
Eu: amanhã?
Charlie: pode ser.
Perto do final de semana será o aniversário de Ashton. Ele é um maldito bastardo
sortudo por fazer aniversário justo dia 31 de outubro.
De repente, uma mão gelada toca minha nuca. Sinto um dèjá vú instantâneo de quando
ele fez a mesma coisa quando dormi nesse mesmo sofá pela primeira vez.
Nossa, isso parece ter sido há uma década.
— Seu aniversário está chegando. — digo quando ele se senta ao meu lado. A calça
jeans levanta e mostra o calcanhar. Fico olhando sua pele descoberta.
Ele solta um resmungo.
— Não faça nenhuma festa surpresa. Eu não quero passar meu aniversário com
ninguém.
Inclino minha coluna para me aproximar, ficando próximo o suficiente para a ponta do
seu nariz encostar no meu.
— Nem comigo?
Ashton vira meu rosto para o lado com uma mão, mas, através dos dedos dele, consigo
ver o sorriso pequeno em seus lábios. Isso me faz querer enroscar meus braços na cintura dele e é
exatamente isso o que eu faço. Ele solta outro resmungo quando o derrubo no sofá, dando um
pequeno beijo no seu maxilar. Algo arranha meus lábios. A rala barba dele.
Esfrego meu nariz nesse ponto.
Essas situações são um pouco estranhas às vezes. Desde o dia em que ele me disse
aquelas três palavras pela primeira vez, na ambulância, nunca mais aconteceu de novo. Nem sei
se estamos namorando de novo ou não, mas gosto de pensar que sim. Minha psicóloga me
aconselhou a tentar evitar esses tipos de pensamentos de autossabotagem, então sim,
provavelmente estamos namorando.
Droga, vi mais Ashton nos últimos dias do que a minha própria mãe!
— Eu gosto da sua companhia.
— É bom que goste mesmo, porque eu nunca vou te deixar.
De repente, sinto que esse momento se torna especial. Ele levanta o queixo e me encara
com os olhos azuis, ainda deitado. Eu devolvo o olhar, com o queixo em seu peito.
— A palavra “nunca” é bem forte.
— Eu sei.
Ele fica estático por algum tempo, apenas me olhando. Não me canso disso, e acho que
nunca vou. Olhar para ele sempre me causa reações diferentes, nunca é igual à última vez. Olhar
para ele é como olhar para água: parece ser a mesma coisa eterna, porém, se você prestar
atenção, descobrirá coisas agradavelmente novas.
— Sabe o que eu acho? — Ashton pergunta em algum momento, e eu sinto seus dedos
afagando os cabelos da minha nuca. Sua mão percorre meu pescoço e se aproxima da gola da
blusa, então volta para o meu cabelo novamente. Ele faz isso várias vezes. Quase sinto vontade
de ronronar como um gato. — Acho que você deveria se casar comigo.
Eu sorrio, lembrando da nossa velha brincadeira.
— Andar com você vai me fazer mal.
Ele devolve o sorriso.
— Não foram essas as palavras que você me disse naquele dia.
— E o que foi que eu disse?
— Você quer namorar comigo?

Faltam apenas algumas horas para o aniversário quando Charlie me chama para
conversar. Estamos parados esperando pelo metrô. Surpreendentemente, ele foi o único que pôde
me acompanhar para comprar algo para Ashton.
Charlie me olha feio quando eu acendo o cigarro.
— Não sabia que você estava fumando.
— Não estou — respondo. — Quero dizer, fumo de vez em quando. Quando fico
ansioso. Quase nunca acontece. — Trago o cigarro. — Não conte a Ashton. Ele vai ficar
preocupado.
Escuto um suspiro e tiro meus olhos do chão. Charlie está maior do que antes. Ele
continua pequeno, mas não tanto quanto antes. Quase abro a boca para lhe dizer isso, esperando
ver seu sorriso de felicidade por saber que cresceu nem que seja alguns centímetros, até que vejo
o V profundo no meio de suas sobrancelhas.
Coloco minha mão em sua nuca como costumava fazer antes. Ele leva um susto.
— O que aconteceu? Brigou com a Hazel?
Essa foi uma das coisas que mais me surpreendeu depois que eu saí do hospital quando
meu pai foi preso: Charlie estava namorando Hazel. Agora que eu sei, tudo fazia sentido. As
vezes que ele olhava para ela, perguntava sobre ela… Me sinto egoísta por não ter reparado
antes. Eu estava vivendo no meu mundo fantasioso com Ashton, Ashton e Ashton.
— Não. — Charlie cora com a menção do nome dela. Acho fofo. — Na verdade… não
sei bem como te falar isso. Eu só não queria fazer isso uma grande coisa. Só quero te contar para
podermos compartilhar as coisas como fazíamos antigamente e-
Jogo o cigarro no chão e o apago. O metrô está se aproximando.
— Você já me contou que é bissexual, Char. — Sorrio, ajeitando a alça da mochila.
Sinto meus dedos tremendo pensando que estou a caminho de comprar uma aliança para Ashton.
— Eu nunca te disse isso de verdade, mas sinto muito. Por tudo o que aconteceu
antigamente, por todas as minhas ações infantis e por tudo o que eu já te disse que possa ter te
machucado. Agora eu vejo as coisas de um jeito diferente e entendo que muitas das minhas ações
foram… Simplesmente idiotas e que deveria agradecer por você sequer se dar o trabalho de ainda
falar comigo. Se serve de consolo eu… Cortei laços com meus pais. Hoje de manhã. Sai da casa
deles e estou indo morar com Hazel.
Eu não sou bom com palavras, sei que nada o que eu possa dizer vá confortá-lo de
verdade, então faço o que parece o certo: o abraço. O aperto tanto nos meus braços que quase o
sinto nos meus ossos.
Ashton é definitivamente uma das partes mais importantes da minha vida, e eu o amo
com cada centímetro da minha alma, mas Charlie, Omar, Jasper, Max, Adam — e até mesmo
Sally, que eu não vejo há meses — são tão importantes quanto. Eles são pilares da minha vida e
poder ser, de alguma forma, algum tipo de sustento para eles me deixa feliz.
Me faz ter a sensação que pertenço à algum lugar.
— Espero que tudo fique melhor para você. Eu te amo como um irmão, um pedaço de
mim, e a única coisa que você merece é felicidade.
— As coisas estão melhorando — ele responde e o metrô chega como um jato,
balançando seus cabelos e seu sobretudo, e Charlie sorri para mim novamente.
Há algo novo em seu olhar, algo parecido com alívio e tranquilidade, e vê-lo bem me
deixa tão feliz que quase me esqueço como faz para respirar.
Ver a vida entrando nos trilhos novamente é incrivelmente bom.
Viver uma vida comum e ordinária, com pequenos prazeres, é incrivelmente bom.

Quando decidi comprar as alianças de presente para Ashton, não achei que poderia ser
uma tarefa tão difícil. Há tantos tipos que minha cabeça começa a doer.
Só tomo uma decisão quando Charlie diz:
— Por que vocês precisam ser tão genéricos? Por que precisa de uma aliança? Compra
algo mais personalizado.
E foi assim que eu acabei com um par de colares que custou todo o dinheiro que eu
tinha juntado do trabalho de meio período que consegui algumas semanas atrás. Um colar com
duas iniciais.
A e P. Pátroclo e Aquiles.
A coisa mais melosa e idiota que eu já fiz.
Minhas bochechas estão quentes quando paro na frente da porta de Ashton. Charlie foi
para casa, me dando um olhar estranhamente pervertido, quando contei que tinha decidido o que
dar para Ashton de aniversário.
Estou nervoso como ficava quando gostava de alguma garota no fundamental. Minhas
mãos estão suadas e tenho que tirar a touca da cabeça. Sinto falta do verão com mais frequência
do que gostaria de admitir. O verão tem gosto de Ashton. O mar tem cheiro de Ashton. E tudo o
que me lembra dele… me enlouquece.
Pelos céus, ainda bem que estou me tratando. Caso contrário eu me tornaria um
obcecado. Às vezes, sinto que gosto dele numa quantidade anormal. Achei que isso diminuiria,
porque já ouvi várias pessoas falando que essa chama da paixão diminui de intensidade com o
tempo, mas não aconteceu ainda. Pelo menos, a terapia está me ajudando a não ser tão
dependente emocional de Ashton.
De repente, a porta abre e dou um pulo para trás. Ashton aparece de braços cruzados,
com uma pequena ruga no meio das sobrancelhas.
— Você vai ficar aí parado por quanto tempo?
— Você estava me olhando? — pergunto, sorrindo tanto que esqueço do meu
nervosismo. — Uau, que maníaco.
Ele revira os olhos. Aquela barba rala, quase inexistente, continua no maxilar dele. Ergo
a mão para tocá-lo, mas ele se afasta.
— Não encoste no meu rosto antes de lavar as mãos.
Entro na casa e vou para o banheiro. Quando volto, o encontro sentado no sofá,
assistindo algo na TV. O Tanakh — livro que pertencia a Fraser — está em cima da mesa. Sinto
um pesar no coração. Sem a minha permissão, a imagem do que vi do corpo de Fraser volta para
minha mente.
Tento ignorar isso por enquanto.
É aniversário de Ashton, quero que ele se sinta bem, mesmo que seja para falar do seu
antigo amor pelo resto da noite. Estou bem com isso.
Me jogo no sofá, tão perto dele quanto possível, agarrando sua cintura.
A carne da barriga de Ashton se contrai.
— Você está tenso.
— Estou com medo de você gritar “surpresa” e de repente mil desconhecidos brotarem
na minha casa.
Beijo seu ombro. Ele treme debaixo dos meus dedos.
— Eu nunca faria nada sem a sua explícita permissão.
Ashton levanta uma sobrancelha, ainda sem tirar os olhos da TV. Vejo um pequeno
sorriso em seus lábios.
— Não faria nada sem a minha permissão?
— Nadinha.
Ele finalmente vira o rosto para mim, inclinando o rosto. Foi Ashton quem me beijou
pela primeira vez, na casa do meu irmão, mas agora, normalmente, quem começa os beijos sou
eu. Tenho a impressão que ele gosta disso: gosta de me ver implorando por um beijo. Então,
quando ele me beija antes, fico surpreso. Abro a boca e deixo que ele faça o que queira. Ele pode
fazer o que quiser comigo.
Ashton fica comigo entre seus lábios por algum tempo. Sinto a língua quente dele em
mim, sinto seu corpo se virando na minha direção, sinto seus dedos prendendo minha cintura em
uma onda de possessividade.
E, de um segundo para o outro, ele me joga de costas no sofá e sobe no meu colo.
Puta merda, nós nunca chegamos tão longe antes.
— Por que você nunca fez sexo comigo? — pergunto impulsivamente, e quando vejo
seu rosto surpreso, me arrependo de ter estrago o clima.
Até que seus dedos rolam pelos meus braços e ele se inclina mais uma vez. Esfrega o
nariz no meu. Me sinto privilegiado: sou o único que pode vê-lo assim.
— Porque eu achei que você não queria.
— Pelo amor de Deus, Ashton. Eu fiquei cinco meses me jogando pra cima de você
como um gato no cio e você-
Ele ri. Ri alto, jogando a cabeça para o lado levemente, e sai do meu colo. Suspiro em
frustração, mas tudo bem. Não tenho pressa.
— No começo, quando nos conhecemos, você mal chegava perto de mim.
— Eu estava em negação! — Me levanto do sofá, e ele puxa meus tornozelos para o
próprio colo, massageando minha pele embaixo da calça jeans. — Você é bonito demais pra ser
real.
Ashton não vira para me olhar, mas eu consigo ver seu pequeno sorriso. Muitos sorrisos
para um único dia. Me sinto quente.
Vejo algo pelo canto de olho, no chão, e meu coração erra uma batida quando reconheço
a caixinha dos colares. Ashton parece notar minha repentina afobação, porque vira o rosto no
mesmo instante e pergunta:
— O que é aquilo?
Pego a caixinha tão rápido que meus ossos estalam. A escondo contra o peito,
respirando fundo.
— Comprei algo para você. —respondo.
Ash permanece imóvel, esperando.
— Eu sei que disse que você deveria se casar comigo, mas acho que a gente deveria
esperar ter mais dinheiro pra comprar uma casa só nossa-
— Não! Quero dizer, eu também acho que devemos esperar e eu definitivamente quero
me casar com você algum dia, mas não é isso o que é esse presente. É só uma… coisa boba. Eu
nem deveria ter comprado, sei que você não curte muito essas coisas…
Estou coçando a nunca quando Ash me surpreende:
— Se você comprou, então é importante. Sempre vai ser.
O momento pesa sobre mim como uma bigorna. Respiro fundo, absorvendo suas
palavras como se elas tivessem entrado em mim como um espectro. Meu rosto cora e eu estico o
braço na sua direção, abrindo a caixinha devagar. Ashton ainda não tirou as mãos dos meus
tornozelos, mas me encara atentamente.
Ele me olha como se eu fosse a pessoa mais importante do universo. Se eu estivesse de
pé, minhas pernas estariam tremendo.
— São… colares.
Ashton finalmente tira a mão de mim e pega o metal gelado.
Ele pega primeiro o com a letra P e o olha por tantos segundos que acho que vou
vomitar. Ultimamente, acho que vou vomitar muitas vezes.
— Você comprou P e A por causa de Pátroclo e Aquiles, não é?
A imagem na frente dos meus olhos é como uma miragem. Acho que nunca mais verei
algo tão especial quanto isso. Ashton segurando o colar nos dedos, as janelas sem cortinas
mostrando o céu escuro atrás dele, enquanto Ash tem aquele sorriso nos lábios.
Aquele sorriso que só acontece uma vez a cada milênio. Aquele tipo de sorriso que só
eu e o próprio Pátroclo certamente vimos diante de nossos olhos.
Amor me inunda. Sinto o prazer de me afogar por essa paixão.
— Droga, Evan, você é tão… Fácil de amar que eu chego a te detestar.
Me retraio instantaneamente.
— Isso é bom?
— É, claro que é bom, pirralho. — Ele faz uma pausa. — Você enfeitiçou, meu corpo
e alma. E eu te amo.
Sorrio com a frase, sabendo queé uma referência a última cena, de Orgulho e
Preconceito, do sr. Darcy falando sobre seu amor a Elizabeth. Imagino quantas mais declarações
de amor tiradas de filmes e livros antigos receberei pelo resto da vida.
omo sempre, eu não poderia deixar de citar meus pais e, principalmente, o
C meu irmão que, no pior dos momentos, ficou do meu lado e sempre me inspirou a
nunca desistir dos meus sonhos, por mais impossíveis que eles pudessem parecer.
Te amo muito.
Não poderia deixar de citar a Yasmin, minha melhor amiga desde os meus onze anos de
idade, que me incentivou desde 2020 a não desistir dessa ideia maluca que era Sonho dourado,
que vivia me perguntando como estavam os meus personagens e que me fazia inúmeros
desenhos do Ashton e do Evan. Te amo de todo o coração.
Seria impossível não falar sobre os meus queridos leitores mais antigos, que estiveram
comigo quando tudo era mato: a Danie, o Noah e a Sophia. Vocês sempre acreditaram em Sonho
Dourado e aguentaram a tortura de ter que esperar meses até eu decidir postar um capítulo novo
no Wattpad. Saibam que, se não fosse por vocês, eu jamais teria terminado de escrever essa
história e provavelmente não acreditaria que algum dia alguém poderia gostar de algo que
escrevi e agradeço de todo o coração o amor e o carinho que deram a todas as minhas histórias!
E, claro, eu não poderia deixar de citar alguma das incríveis pessoas que conheci nesse
primeiro ano da faculdade: entre muita gente maravilhosa e que me marcou de inúmeras formas
para sempre, há um destaque para a Elisa, que, embora eu a conheça a tanto pouco tempo, parece
me entender sem eu precisar de uma única palavra. É como uma irmã de alma e todos os
momentos que tenho com ela são como uma escapatória do mundo. Te amo demais!
aco, ou Isa, começou a entrar lentamente no mundo da literatura ao escrever fanfic’s do
B BTS em 2017. Com o tempo, sentiu a necessidade de criar histórias originais e, a partir daí,
nunca mais parou. Gosta de escrever histórias sobre romances impossíveis, músicas dos
anos oitenta e setenta e mitolo Atualmente trabalha como ilustradora, é acadêmica de Letras na
PUC-PR e mora em Curitiba com os pais.
No Instagram
No twitter
No tapas
No clubinho do bacoverso para ganhar recompensas!

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