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Copyright © 2022 by Pauline G | Perfeita Vingança

Capa: @lchagasdesign
Ilustração: @olhosdtinta

Equipe de assessoria, leitura beta e revisão:


· Aline Bianca @safada.leitora
· Danielle Polesel @_danibook
· Wedla Souza @leiturasdawed

Todos os direitos desta obra são reservados a Pauline G. Nenhuma


parte pode ser reproduzida, apropriada ou estocada sem prévia
autorização da detentora dos direitos. Trata-se de uma obra de
ficção. Nomes, personagens e acontecimentos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com a realidade terá
sido coincidência. Texto conforme as regras do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa.
DEDICATÓRIA
NOTAS DA AUTORA
EPÍGRAFE
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
Ilustração por @olhosdtinta
Para todas as garotas que erraram,
mas que fizeram por merecer uma segunda chance.
Os acertos nos deixam felizes.
Os erros nos tornam humanas.
Vamos a um recadinho rápido?

Bem-vindos ao mundo de Hannah e Marcus, os personagens mais


humanos que tive o prazer de escrever.

Sim, os dois erram e acertam, portanto, peço empatia a quem veio


os conhecer.

“Perfeita Vingança” é um livro mais curto, com o único intuito de


entretenimento. Um escape delicioso da nossa rotina do mundo real.

Enfim, espero que vocês possam se divertir com a leitura, assim


como eu me diverti com a escrita.

Com amor,
Pauline G.
Prazer em conhecê-lo
Espero que tenha adivinhado o meu nome
Mas o que lhe está intrigando
É a natureza do meu jogo
Divirta-se
Sympathy for the Devil ~ The Rolling Stones
Viver é fácil com os olhos fechados
Sem entender tudo o que você vê
Strawberry Fields ~ The Beatles

HANNAH MÜLLER

Se o diabo tivesse uma forma humana, seria um corpo alto e largo,


com tatuagens escuras e olhos claros.

Se o diabo tivesse um nome, seria Marcus Venturini.

O veterano do curso de Propaganda e Marketing é praticamente um


velho conhecido para mim — com um detalhe interessante: nunca
fomos apresentados. Nem mesmo de longe.
Um detalhe quase insignificante diante do tanto que Samanta
tagarela sobre o homem, me levando a conhecer cada nuance dele.

Como a típica garota apaixonada e iludida, minha amiga fornece


tantas informações que sou capaz de montar um dossiê completo
do infeliz com quem ela perdeu a virgindade.

E quem é Marcus Venturini?

Aos vinte e oito anos, o cara é conhecido por exibir uma postura
indiferente, quase inalcançável, desfilando com a confiança de
quem tem o mundo a seus pés.

Marcus gosta de assistir a lutas de boxe, em vez de jogos de


futebol. Motocross, em vez de Fórmula 1.

Nas playlists, apenas rock antigo. The Beatles, The Rolling Stones,
Bob Dylan e afins.

Que mais? Prefere café puro, a cappuccino. Uísque, a cerveja.


Morenas, a loiras. Promiscuidade, a monogamia.

Poucos dias atrás, eu o vi pela primeira vez, ao vivo e em cores.

Cores não tão nítidas por causa da iluminação oscilante daquele


beco abafado atrás do bar Bulldog. O ar estava denso, quase
pegajoso, graças à noite quente de novembro.
Tive que admitir que Marcus constituía um espécime
impressionante, no mínimo, para ser justa. É compreensível o
impacto que causou na minha amiga, e imagino que em tantas
outras garotas incautas como ela.

Vestindo jeans escuros e camiseta preta, as roupas justas deixavam


perceptíveis os músculos do seu corpo alto e forte. Quase um metro
e noventa de pura canalhice.

Ele não notou a minha presença porque não saí do carro.


Permaneci atrás do volante do Audi estacionado na esquina, apenas
aguardando pelo retorno da minha amiga.

Eu tinha insistido para que Samanta fosse falar com ele antes de
tomar qualquer decisão da qual pudesse se arrepender.

Sam tem apenas dezenove anos, assim como eu. Jovem demais
para aquela situação caótica com um cara praticamente dez anos
mais velho.

E lá foi ela...

Fumando seu cigarro com tranquilidade, recostado na parede dos


fundos do bar, Marcus tinha o olhar perdido nas estrelas.

Minha amiga caminhou a passos hesitantes, esfregando as mãos na


barra do vestido. Quando chegou perto dele, balbuciou com a voz
trêmula:

— Oi, Marcus.

Ele apenas a encarou, sem dar um único passo para a frente.

— Porra... O que faz aqui, Samara? — disparou, soltando a fumaça


para o alto.

De dentro do carro eu não podia vê-los com perfeição, porém


conseguia ouvir cada palavra deles. Feliz ou infelizmente.

— Samanta — ela o corrigiu.

— Samanta, isso. Diga. — Deu outra tragada no cigarro, a brasa


alaranjada reluzindo no beco escuro.

— Vim falar com você porque... E-eu estou grávida — ela gaguejou.
Droga.

Prendi a respiração, na expectativa da reação dele. Três longos e


intermináveis segundos de silêncio perduraram enquanto o infeliz
apenas franzia a testa.

— E eu com isso?

Ela abraçou o próprio corpo, nitidamente nervosa. Meu Deus...


— Você é o pai.

— Está delirando, garota?!

Marcus gesticulou com raiva, arremessando longe a bituca do


cigarro.

Droga, droga, droga.

— Sam, dá um tapa na cara dele e vamos embora — murmurei


sozinha, a raiva me consumindo.

Torci muito para que ela o xingasse, mas o que saiu da boca da
minha amiga esmagou meu peito com o peso de um caminhão:

— Marcus, eu estou apaixonada por você.

Não. Não é possível. Samanta Duarte Villa-Lobos, acorda para a


vida!

Quase deixei o carro e corri até eles, tentando evitar que ela se
humilhasse ainda mais. Sam é tão doce e ingênua... Demais!

— Pelo amor de Deus, criatura, não começa. Uma dose de amor-


próprio lhe cairia bem, sabia? — Marcus tornou a falar, o deboche
escorrendo em cada sílaba. — Me arrependo pra caralho daquela
noite. Se soubesse que daria nisso... — Apontou para ela com
desdém.
Filho da mãe.

— Não fale assim, por favor. Aquela noite foi a melhor da minha vida
e...

Inacreditável! Samanta do céu, cala a boca!

Coloquei a mão na maçaneta do carro, pronta para ir ao resgate da


minha amiga, porém a voz grave do homem me paralisou:

— Aquilo não significou NADA para mim! Esquece! Estou de saco


cheio de você, porra! Me deixe em paz!

E virou as costas, chutando a porta de serviço do bar.

Sem olhar para trás, desapareceu a passos furiosos corredor


adentro, deixando Samanta a se debulhar em um choro compulsivo.

Uma mistura de tristeza, raiva e indignação me queimou na


garganta como um bolo difícil de engolir. Meu corpo tremia tanto que
me obriguei a fazer alguma coisa.

Para lavar a minha alma, a de Sam e a de todas as mulheres que já


haviam sido humilhadas por caras escrotos como Marcus Venturini.

Então, com a cabeça quente e o coração acelerado, naquele


momento tomei uma decisão.
Uma decisão que mudaria tudo.

Vou foder com a vida dele.


Por favor me permita
Me apresentar
Sympathy For The Devil ~ The Rolling Stones

MARCUS VENTURINI

O bom de trabalhar em uma loja de discos é que são sempre os


mesmos clientes.

Colecionadores solitários, saudosistas, apreciadores de som de


qualidade. "Não se faz mais música como antigamente", eles dizem.
Eu não poderia concordar mais.

O ruim de trabalhar em uma loja de discos é que são sempre os


mesmos clientes.
Homens na faixa dos sessenta anos, que sentem aquela nostalgia
fodida quando escutam as músicas que os fazem relembrar dos
seus vinte anos. "A melhor fase da vida", eles atestam. Eu não
poderia discordar mais.

Tédio, puro tédio, é o principal elemento das minhas tardes


trabalhando como vendedor na Records.

Conhecida como a maior loja de discos de vinil da Vila Madalena, é


uma das últimas sobreviventes do gênero em São Paulo, talvez no
mundo.

A loja continua aberta por um único motivo: Raul, o proprietário


bonachão de inteligência questionável, que insiste em manter em
funcionamento o comércio que não lhe dá lucro. "Por paixão", ele
justifica.

Iludido pra cacete.

Paixão sem retorno é ilusão.

Só não tento convencê-lo a desistir do negócio porque preciso do


dinheiro. A estratosférica fortuna de um salário mínimo. Ser pobre é
uma merda.

Se bem que, pensando melhor, tem um lado bom: passar minhas


tardes literalmente cercado de boa música.
Normalmente, os clientes são tão escassos que podem ser
contados nos dedos. Hoje não está diferente.

Com o movimento fraco, atendi apenas uma única pessoa. Aquele


mesmo senhor barrigudo com panca de rico que aparece de tempos
em tempos para garimpar discos de ópera.

Pouco antes de fechar o caixa, me preparo para fumar um cigarro


na calçada em frente à loja. Ao deixar o ambiente com ar-
condicionado, sou engolido por uma lufada de ar quente. Isso
porque já são quase 18h, mas nada de anoitecer ou refrescar. Ainda
está calor pra caralho.

Dezembro é foda. Metade da população brasileira — a parcela


privilegiada —, aproveita o sol na praia, enquanto a outra metade —
a parcela proletária —, assa no asfalto que de tão quente chega a
amolecer.

Não preciso pensar duas vezes para descobrir em qual grupo me


encaixo.

Entretido com os desenhos de fumaça que sai da minha boca,


serpenteando lentamente em direção ao céu, somente me dou
conta da chegada de alguém na loja ao escutar o familiar tilintar do
sino da porta.
Descartando a bituca, volto para o ambiente refrigerado, procurando
pelo cliente retardatário.

Não faltam nem cinco minutos para encerrar o expediente.

Então, eu a encontro. A garota de cabelos castanhos que mexe


distraidamente nos discos da seção de "rock 'n' clássico",
caminhando devagar pelo corredor.

Parece ser bem mais nova do que eu. Não sei se estranho mais a
idade ou o bom gosto musical. Não é nada comum ver jovens como
ela aqui na Records, interessadas nos vinis.

Me aproximo por trás, a analisando da cabeça aos pés.

Seu corpo miúdo veste uma regatinha azul-marinho básica, soltinha


por cima do cós da minissaia jeans. Nos pés, tênis All Star.

Como a minissaia é absurdamente "mini", deixa à mostra as pernas


esguias bem torneadas. Definidas, porém delicadas, com
movimentos fluidos. Que atividade física as deixa tão bonitas assim?
Musculação? Não, não deve ser.

A pele dos seus ombros, avermelhada do sol, brilha com uma fina
camada de suor, me fazendo concluir que veio a pé.

— Oi. Sou Marcus, trabalho na loja. — Me posicionei do seu lado,


esperando que olhe para mim. — Se precisar de ajuda, estou à
disposição. Qual é o seu nome?

Ela se vira devagar, mordendo o lábio. Seus olhos grandes me


encaram, as íris cor de mel contornadas por um círculo castanho
mais escuro.

— Oi, Marcus. Prazer em conhecê-lo. Espero que adivinhe o meu


nome.

Franzo as sobrancelhas, surpreso com a fala da garota.

O brilho divertido no seu olhar deixa claro que é uma espécie de


brincadeira. Mas, em um primeiro momento, não compreendo do
que se trata.

Quatro, cinco segundos de silêncio, até que...

Quando desço os olhos para as suas mãos, mato a charada.

É isso.

A garota segura um vinil do The Rolling Stones, mais


especificamente o “Beggars Banquet”. A principal música do álbum
me vem à mente:

Pleased to meet you


Hope you guess my name
(Prazer em conhecê-lo
Espero que adivinhe o meu nome)

— Boa. Saquei a referência. “Sympathy for the Devil”. — Assinto


com a cabeça. — Porra... Nem acredito que a minha ficha demorou
para cair.

— Tem pessoas que são mais lerdas mesmo. Outras, são mais
espertas. Fazer o quê? É a vida... — Ela dá de ombros, com um
sorriso presunçoso que não mostra os dentes.

Nem por um mísero segundo desvia os olhos dos meus, me


instigando.

Ela quer mesmo jogar?

Endireito a postura, me sentindo desafiado. Ok. Vamos testar os


conhecimentos da espertalhona.

— Aposto que não sabe que é a mais brasileira das canções dos
Stones. — Me exibo, enganchando os polegares nos bolsos da
minha calça. — Falam que Jagger se inspirou...

— Em uma visita a um centro de candomblé na Bahia. Ele escreveu


a letra. Por sua vez, Keith Richards sugeriu que o som viesse com o
ritmo de samba, como em um ritual afro. Por isso a percussão
cadenciada, repetitiva e hipnotizante.

Puta que pariu.


Permaneço mudo, paralisado como um trouxa.

Casa comigo, garota! Isso se eu fosse material para casamento...


Como não sou, precisei reformular o pedido mental: vá para a cama
comigo, garota!

— Te impressionei, eu sei. — Volta a falar, segurando o riso. —


Você fica uma graça assim... Sem a pose de macho alfa de um
minuto atrás.

Desce lentamente os olhos do meu rosto para as tatuagens dos


meus braços, percorrendo os desenhos com o olhar.

Antes que eu possa avaliar se gostou do que viu, ela vira as costas.

Volta a mexer nos encartes dos discos com as pontas dos dedos,
entediada, como se eu não estivesse mais ali. Pelo jeito, se cansou
de conversar comigo. Que merda...

Ao mesmo tempo, não consigo parar de olhar para o seu perfil


enigmático, me desafiando como uma esfinge a ser decifrada.

Vamos aos fatos...

A garota é bonita e bem cuidada, mas exala um ar de simplicidade


que me é absurdamente cativante.
Estou de saco cheio das patricinhas plastificadas e mimadas com
quem convivo na faculdade de Publicidade, com pais que lhes dão
mesadas, carros, roupas e joias, realizando cada um de seus
caprichos.

A garota-esfinge não parece ser uma delas. Ela aparenta ser


desafetada, despreocupada, até mesmo nos pequenos detalhes.
Como nos cabelos sem mechas descoloridas, presos em um rabo
malfeito. Como nas unhas pintadas de preto, as pontas
descascadas.

Autêntica. Original. Perfeita pra caralho.

— Não vai mesmo me falar o seu nome? — Quebro o silêncio, me


recostando no balcão mais próximo.

— Não vai mesmo adivinhar o meu nome? — devolve, caminhando


até parar na minha frente. Com a proximidade, posso sentir o seu
perfume suave, quente, com um toque de baunilha.

— As possibilidades são infinitas, linda. Me dá uma dica — peço,


lançando o meu sorriso mais sedutor.

Se eu esticasse o braço, poderia tocar na sua bochecha. A pele


rosada parece ser tão macia e... Não é o momento.

Enfio as mãos nos bolsos, me contendo.


— É um palíndromo. Até amanhã, Marcus.

Sem falar mais nada, ela vira as costas e vai embora.

"Palíndromo"? Que porra é essa?

Assim que a garota parte, o meu celular apita. 18h30. Hora do


próximo turno.

Fecho o caixa, tranco a loja e caminho depressa até a esquina. Com


o sol ainda brilhando, coloco um boné na cabeça, me encosto no
poste de luz e fico esperando por César, que me dá carona até o
Bulldog.

Suspiro fundo, com a cabeça voltando para aqueles olhos cor de


mel.

"Até amanhã, Marcus", ela disse.

Será que vai mesmo voltar à loja amanhã? Ou falou por falar?

Espero que volte. Sim.

Ela tem que voltar.


Eu acho que você tem gosto de bala
Morno como as praias que me deixam com areia
Watercolor Eyes ~ Lana Del Rey

MARCUS VENTURINI

Estou na metade do meu turno no Bulldog, o bar burguês metido a


pub inglês onde trabalho como bartender, quando uma ruiva se
senta junto ao balcão e fixa os olhos em mim.

— Boa noite. — Sorri com os lábios pintados de vermelho. — Pode


me preparar um Bloody Mary, amor?

— É pra já — respondo, pegando o cartão de consumo dela.


Ao registrar o pedido, bato o olho no nome: Lana, como a Del Rey.

Acompanhada por duas loiras — patricinhas como ela —, pelos


próximos minutos Lana deixa claro seu interesse em mim, entre
risos divertidos e piscadelas indiscretas, fazendo as amigas caírem
na risada.

Conheço bem o tipo das três. Mulheres ricas e mimadas que dão
em cima de trabalhadores "baixa renda" escolhidos a dedo.

É uma diversão, uma aventura, até mesmo um fetiche. Provocam


bartenders, seguranças e afins, em busca de sexo casual com uma
pegada mais bruta — coisa que lhes falta quando trepam com os
playboys de sempre.

Lógico que me aproveito das oportunidades. Sexo fácil, sem


compromisso, é comigo mesmo.

Só que não consigo dar a Lana a atenção que quer porque brota um
pedido de drink depois do outro, me fazendo correr para lá e para cá
atrás do balcão.

Final de ano é foda. O povo enche a cara sem dó.

Para o meu azar, que trabalho como um condenado, e para a sorte


de César, o dono do bar, que ganha dinheiro como um rei.
No final da noite, paro na frente das três, enxugando a minha testa
com um pano.

— Mulheres. — Jogo o pano na pia e apoio as mãos sobre o balcão


de madeira. — O bar já vai fechar. Desejam mais alguma coisa ou
posso trazer a conta?

— Desejo. — A ruiva sorri, cobrindo a minha mão com a sua. —


Você.

O trajeto de moto entre o bar e o meu apartamento parece mais


demorado do que o normal. Como se a gente não fosse chegar
nunca... Isso porque a mulher me apavora o tempo inteiro, enfiando
as mãos por dentro da minha camiseta, me deixando inquieto.

— Porra, linda... Se controla. Quase perdi o controle da moto ali


atrás. — Ergo a viseira do capacete para olhar para ela, parado em
um sinal vermelho.

Lana tinha enfiado a mão dentro da minha calça, agarrando meu


pau sem qualquer cerimônia. Detalhe: eu estava pilotando a Honda
a mais de 100 km/h.

— Bebeu demais, amor? Isso que dá... — Ela solta um riso irritante
e quase me arrependo de tê-la trazido comigo.
— Não, "amor" — repito a palavra com deboche. — Só se controla,
ok? Prometo te dar o que quer no meu apartamento.

— E por acaso sabe o que quero? — devolve, arrastando as unhas


pelo meu abdômen.

— Sei. A minha pica enterrada na sua boceta.

Ela gargalha, me agarrando com força quando acelero com a


Honda.

Eu estava sóbrio pra caralho. Não bebi uma única gota de álcool.
Primeiro, que não bebo em serviço. Segundo, que não bebo antes
de pilotar a moto.

A Honda preta é a minha companheira nas madrugadas no trajeto


de volta para casa. Uber depois da meia-noite é uma fortuna, e
ônibus está fora de cogitação.

Caminhar do ponto de ônibus até o meu prédio, naquela parte da


periferia de São Paulo, seria pedir para morrer.

Mas não uso a moto para trabalhar na Records. Para economizar a


grana do combustível e do estacionamento particular, tenho a minha
rotina muito bem organizada.

Após o almoço, deixo a moto na garagem do Bulldog, em Pinheiros,


e caminho até a Records, na Vila Madalena, onde cumpro o turno
das 14h00 às 18h00. Depois, César me dá carona para o bar, onde
trabalho das 20h00 às 02h00, e de lá volto para casa de moto.

É foda destrancar a porta do apartamento com a mulher ansiosa


sugando a pele sensível do meu pescoço.

— Linda, preciso de uma ducha antes... — aviso, me livrando das


roupas que fedem a suor e a respingos de chopp.

— Vou com você, amor. Quero conhecer todas as tatuagens do seu


corpo gostoso no chuveiro.

Pela hora seguinte, as cenas se desenrolam de modo confuso,


quase caótico e... Satisfatório. Muito satisfatório.

Lana me chupando ajoelhada no azulejo envelhecido do box. Eu


quase me desequilibrando ao ejacular no piso escorregadio de
sabão. Nós dois no quarto transando como animais, nos acabando
em uma foda de quatro com direito a anal. As estocadas duras
fazendo a cabeceira da cama bater na parede. Nossos corpos
exaustos esparramados no colchão.

— Você é tão gostoso... Tão bom... — ela boceja devagar, os olhos


pesados de sono. — Só não é perfeito porque é garçom.

Porra... E não é que a merda rimou? "Bom" com "garçom."


Não me ofendo com o comentário fútil. Absurdamente relaxado
depois de experimentar seus três buracos, nada me estressaria.
Nada.

Ao acordar, tateio a mesinha de cabeceira em busca do celular para


checar as horas. 07h10. Como estou de férias da faculdade, não
programei o despertador para o horário de costume, 06h30.

De qualquer forma, por força do hábito, não consigo dormir até


muito tarde. Mesmo com o corpo quebrado, o cérebro desperta. É
uma bosta...

Me espreguiçando devagar, esbarro o joelho em algo macio e


quente. Foco o olhar e me lembro da mulher ao meu lado.

Flashes da noite anterior piscam na minha mente, juntando as


peças. A paquera no bar, a carona na moto, o boquete no
chuveiro...

O toque da campainha interrompe meus pensamentos lentos. Me


levanto em um pulo, visto a primeira roupa que encontro e deixo o
quarto, me perguntando quem pode ser do outro lado da porta, às
sete da manhã.
Espiando pelo olho mágico, enxergo o meu vizinho de porta. Do alto
dos seus sessenta anos, Seu Alfredo poderia ser meu pai. Mas, ao
contrário do otário que me criou, ele parece se importar comigo. De
verdade.

Nos conhecemos quando me mudei para cá, quase dez anos atrás.
O homem foi o único vizinho que conquistou a minha confiança —
coisa rara de acontecer — , se tornando um bom amigo com o
passar do tempo. Uma amizade improvável, ainda mais naquele
comecinho. Um professor recém aposentado e um moleque de
dezoito anos recém saído do inferno.

— Seu Alfredo, bom dia — cumprimento o senhor grisalho que sorri


brincalhão. — Bom dia para você também, Oz. — Me agacho,
afagando a cabeça peluda do cachorro marrom.

— Pelo jeito a noite foi boa, meu filho. — Aponta para a chave
pendurada na fechadura pelo lado de fora. — Sabe que é perigoso
ficar com a porta destrancada assim.

— Merda... Obrigado. — Retiro a minha chave dali, entendendo o


que ele quer dizer.

Nosso condomínio não é dos mais seguros. Pelo contrário.

— De nada — responde, ajeitando o jornal do dia embaixo do braço.


Ele compra religiosamente o exemplar todas as manhãs ao passear
com Oz. — Até mais.
— Espera... Seu Alfredo, o senhor sabe o que é um palíndromo?

Eu ia jogar a palavra no Google, mas acabei me esquecendo. E,


como ele era professor de português, provavelmente sabe a
resposta.

— Sei, sim. É uma palavra ou frase que, se lida de trás para a


frente, continua a mesma. Por exemplo, "osso", "arara".

— Entendi. Conhece algum nome próprio assim?

— Deixe-me pensar. Otto, Natan, Eve, Ana... — para de falar,


pensativo. — No momento, só me vêm os quatro à mente.

Sentado no sofá, estou tranquilamente tomando uma xícara de café.


Para testar mais nomes de trás para a frente, me recordo da mulher
capotada no meu quarto.

Lana. Quase cuspo o café, rindo ao imaginar o nome ao contrário.


Anal.

Gargalho como uma criança, me divertindo sozinho. Pura


imaturidade, sim. Eu sei.

— Qual é a graça? — A voz feminina me faz virar o rosto para trás.


Lana está seminua. Com o corpo parcialmente enrolado na minha
toalha, deixou os seios “casualmente” à mostra. Tudo indica que
tomou banho ao acordar.

— Nada. Senta aqui... — Bato com a mão no espaço vazio no sofá


e me inclino na direção da mesinha, apoiando a minha xícara vazia.
— Quer café?

— Não, obrigada. — Ela se senta do meu lado. Colocando as


pernas compridas no meu colo, força uma intimidade desnecessária.

— Quer outra coisa? Suco, chá?

— Marcus... — Sorri, dispensando a toalha. Sua boceta depilada


atrai meu olhar. — Quero fazer amor. E depois passear... Podemos
caminhar no parque. É uma linda sexta-feira de sol e...

— Não vai rolar, linda. — Dou um corte rápido.

— Por quê? — Ela me encara, parecendo muito surpresa.

Dois segundos depois, enxergo nos seus olhos feridos a


compreensão: Lana percebeu que estou a dispensando.

Permaneço mudo, sustentando seu olhar marejado, as íris


castanhas cintilando de mágoa e raiva. Pelo jeito, a mulher não
sabe lidar com rejeição.
— Já entendi. — Me empurra, se levantando do sofá, as mãos
agitadas enrolando a toalha no corpo. — Seu canalha...

— "Canalha"? Por quê? Não me lembro de ter prometido passeio ou


amor. — Dou de ombros, me esforçando para manter a voz calma.
— Prometi a minha pica na sua boceta, lembra? E cumpri.

Caminho até a janela e ela vem atrás, me xingando de tudo quanto


é nome.

Quando começa a socar as minhas costas, eu fico puto.

Essa merda já foi longe demais...

— Chega! Você passou a noite comigo porque quis! — Agarro seus


pulsos, impedindo que continue a me bater. — Pegue suas coisas e
vá embora! Me deixe em paz, porra!

— Seu desgraçado! Quem pensa que é para me dispensar assim?


Não passa de um garçom desqualificado! Pensando melhor, já sei...
— Aponta o dedo na minha cara. — Tem os olhos de anjo, mas é
um demônio! Vá para o inferno que é o seu lugar!

Lana passa a recolher os seus pertences pelo apartamento, se troca


em dois minutos e desaparece, batendo a porta ao sair.

Porra... Preciso respirar.


Com o peito apertado, esmagado por uma bigorna de duas
toneladas, desço para correr no parque. Com o bom e velho rock 'n'
roll nos fones, me sinto mais leve a cada quilômetro.

Esboço um sorriso involuntário assim que Jagger passa a cantar na


playlist, me lembrando de uma coisa. Ou melhor, de uma pessoa.

Será que a garota-esfinge vai voltar à loja?

As próximas horas arrastam-se em câmera lenta. A cada tilintar do


sino da porta, minha cabeça se vira para a entrada da Records.

Uma porção de pessoas entram e saem. Primeiro, Raul; em


seguida, o carteiro; depois, dois clientes. Se continuar assim, vou
ficar com um maldito torcicolo.

Até que a espera finalmente chega ao fim.

Não contenho um sorriso ao observar a garota passar pela porta,


caminhando graciosamente pelo interior da loja. Levantando os
óculos de sol com as pontas dos dedos, os encaixa em cima da
cabeça como uma tiara.

Me seguro para não ir até ela. Não quero parecer desesperado


demais.
Discretamente, fico acompanhando os seus passos pelas fileiras
dos discos.

Mordo o lábio quando percebo que ela está vindo até mim. Apoio os
cotovelos no balcão do caixa, me inclinando para a frente, o olhar
preso nela.

— Oi, Marcus! Tudo bem? — cumprimenta, retirando os pequenos


fones sem fio, com um sorriso bonito iluminando o rosto.

Quando afasta as mechas castanhas das orelhas, vislumbro os


brincos simples de argola.

— Oi, Ana? Eve? Ainda não sei o seu nome, mas pelo menos já
descobri o que é um palíndromo. Preciso de mais dicas para
descobrir como se chama, linda.

— Muito bem. Vou facilitar para você... — Encostada do outro lado


do balcão, deixa o rosto a dois palmos de distância do meu. Seu
hálito é doce como bala, me inebriando. — Porque é sexta-feira e
porque estou de bom humor. Eu me chamo Hannah.
Meu bem, estou em chamas, sinto isso em toda parte
Nada mais me assusta
Summertime Sadness ~ Lana Del Rey

MARCUS VENTURINI

— "Hannah" — repito devagar, sem desviar o olhar. — Você é uma


perfeição de palíndromo.

— É a primeira vez que me colocam junto com a palavra "perfeição"


em uma frase. — Dá risada, os olhos acesos em divertimento.

— "Perfeição" é uma coisa supervalorizada. Na verdade, gosto


quando as pessoas não escondem suas imperfeições. Se tornam
mais reais. Mais autênticas.
Ela não diz nada, parecendo surpresa com a minha fala. Suas mãos
inquietas brincam com os fones sem fio, girando as bolinhas entre
os dedos.

— O que você estava ouvindo? — Aponto para os fones.

— Quer mesmo saber? Pega um.

Estende a mão, oferecendo os objetos minúsculos para mim.

Enquanto coloco um na orelha, Hannah encaixa o outro na dela.

Quando dá o play no celular, a inconfundível voz de Lana Del Rey


ressoa com suavidade.

Lana. Bem hoje... Irônico pra cacete.

Honey I'm on fire, I feel it everywhere


Nothin' scares me anymore
(Meu bem, estou em chamas, sinto isso em toda parte
Nada mais me assusta)

Ficamos em silêncio até o final da música.

Hannah cantarola a canção baixinho e eu mal respiro, meus olhos


presos em seus lábios bonitos.
— "Summertime Sadness". Não faz bem o meu estilo, mas é ideal
— comento, sorrindo de canto. — Para o verão que vem aí.

— Concordo. — Baixa os olhos, guardando o celular e os fones na


bolsa. — Então, eu queria...

— Marcus, pode me ajudar aqui? — Um cliente antigo que nem


percebi chegar me chama de longe, parado lá na seção dos discos
de jazz.

— Já vou! — respondo antes de voltar a olhar para Hannah. — Você


queria...?

— Vai lá. Eu espero, não estou com pressa.

Atendo o cliente em dois minutos, ansioso para voltar para perto de


Hannah.

Quando me aproximo do balcão do caixa, percebo que ela está


tamborilando os dedos sobre a madeira gasta, provavelmente
acompanhando o ritmo da música que escuta com os fones.

Em vez de me dirigir para a parte de trás do balcão, paro ao seu


lado, apoiando os quadris a centímetros de seu tronco.

A garota parece estar concentrada, cantarolando sozinha, com os


olhos fechados.
— Voltei — aviso, mas ela não me escuta.

Por isso, toco em seu antebraço, apreciando a sensação da pele


macia sob as pontas dos meus dedos.

Hannah dá um pulo e arregala os olhos antes de abrir um sorriso


minúsculo para mim. Parece confusa por dois segundos, como se
precisasse de um momento para organizar as ideias.

Eu continuo parado, meus dedos descansando em seu antebraço.

Até que ela se livra do meu toque, passando as mãos pelos cabelos
soltos.

— Desculpe, não percebi que você tinha voltado — explica,


retirando os fones e os guardando na bolsa.

— Entretida com a música?

— "Estudando" a música — me corrige. — Na semana que vem,


tenho uma audição do ballet e preciso saber a música de cor para
coordenar os movimentos com as batidas. Você não faz ideia de
como estou ansiosa...

— Parece ser algo importante. — Enfio as mãos nos bolsos,


mantendo os olhos nela.
— É, sim. — Morde o lábio, balançando a cabeça para cima e para
baixo. — Nas audições, podem aparecer olheiros enviados por
escolas do mundo inteiro. Foi assim que uma amiga acabou sendo
convidada para o Ballet Bolshoi... Da Rússia! Acredita?

Enquanto desanda a falar, Hannah parece muito animada, os olhos


voltados para mim o tempo inteiro.

Gosto de pessoas que conversam olhando nos olhos. Uma


característica cada vez mais rara neste mundo repleto de mentiras,
dissimulações e falsidades.

Pelos próximos minutos, faço duas ou três perguntas, que ela


responde de pronto, me explicando sobre o ballet com uma paixão
quase palpável.

A conversa entre nós flui com naturalidade, como se fôssemos


velhos amigos.

Hannah tem um jeito leve e espontâneo de falar que me cativa pra


caralho. Sem que eu perceba, um sorriso involuntário chega para
ficar nos meus lábios.

— Ai, Marcus... Me dá um frio na barriga só de pensar. Por isso, eu


queria ver contigo sobre um disco de vinil... — continua tagarelando.
— É o disco da música que preciso ensaiar, que estava estudando
agorinha enquanto você atendia àquele cliente.
— Que disco? É conhecido?

— Sim. A música é “Something”, a segunda do álbum Abbey...

— Abbey Road — murmuro surpreso. — The Beatles, 1969.

Puta que pariu. Não era “um” disco. Era “o” disco.

— Você o tem à venda aqui na loja? — pergunta empolgada,


encostando na minha mão.

— Não. — Balanço a cabeça para os lados e Hannah murcha,


deixando os braços caírem junto ao corpo. — Uma preciosidade
assim some no mesmo dia que chega. Foi o último álbum gravado
pelos Beatles, porra... O último, da maior banda de rock de todos os
tempos.

— Ah, que pena... — Mexe na alça da bolsa, a postura derrotada,


desanimada.

— Você não pode simplesmente colocar a música na playlist do


celular para ensaiar? — sugiro, tentando ajudar.

— É que no Theatro Municipal, onde será a audição de ballet, usam


vitrola. Por isso, eu queria ensaiar da mesma forma. Para não ter
nenhuma surpresa no dia, sabe? Mas tudo bem... Eu o achei na
internet, só não sei em qual estado. Fico com receio de comprar por
lá.
— Difícil que esteja em bom estado. O álbum tem cinquenta anos,
Hannah. Poucos colecionadores conseguiriam mantê-lo em bom
estado.

E, os que conseguissem, seriam aficionados demais para vender


pela internet.

Como eu.

— Eu até arriscaria comprar, mas a audição já vai ser na semana


que vem — lamenta. — Ou seja, não daria tempo de chegar.

— Você já procurou por ele ontem? Aqui? Não me falou nada...

— Não. Apenas revelaram qual é a música de cada bailarina no


ensaio de ontem à noite. — Ela ajeita a bolsa no ombro. — Mas eu
já sabia que precisaria de um vinil e quis conhecer a loja com
antecedência. Me disseram que a Records é a melhor da cidade.
Uma pena que o disco que preciso é um dos mais raros... Bem,
obrigada de qualquer forma. É melhor eu ir embora, não quero ficar
tomando o seu tempo.

Assim que Hannah vira as costas e passa a caminhar pelo corredor


central da loja, me bate um leve desespero e tento pensar em como
segurá-la mais um pouquinho aqui.

E se ela não voltar nunca mais? Não trocamos contato, nem nada.
Até que o sino da porta tilinta, indicando a chegada de alguém.

Bem agora? Merda... Se eu tiver que atender a pessoa, Hannah vai


embora e...

Solto o ar ao ver que não é um cliente. É somente Raul, o dono da


loja.

— Espera, Hannah... — Corro para encostar no cotovelo dela. —


Eu...

Minha língua pesa dentro da boca.

Caralho... Ofereço ou não?

— Você? — pergunta ao virar o corpo de frente, os olhos vivos,


esperançosos, fixos em mim. Como uma criancinha inocente e
sonhadora diante do Papai Noel mais fajuto da 25 de Março.

Quer saber? Foda-se.

— Eu tenho o Abbey Road em casa. Posso te emprestar.

— Jura, Marcus?! Obrigada!

Quase caio para trás quando pula em mim, me abraçando apertado,


agarrando meu pescoço. Porra...
Fico sem reação por longos segundos antes de pousar as mãos na
sua cintura em um gesto calculado.

Talvez eu não goste de abraços.

Minha hesitação vai embora quando seu calor se espalha pelo meu
corpo, me tomando, acelerando meus batimentos.

Talvez eu até goste de abraços. Só não estou acostumado a dá-los.


Muito menos a recebê-los.

Sem me soltar, Hannah apoia o queixo no meu peito e ergue o rosto


para sorrir para mim, parecendo muito feliz.

— Muito obrigada. Mesmo. A gente mal se conhece e você já me dá


esse voto de confiança... Vai me emprestar um disco raro! O Abbey
Road! Significa tanto para mim...

— De nada — respondo em um fio de voz.

Penso em falar que nunca empresto os discos da minha coleção


particular, mas prefiro omitir o fato para não valorizar demais o
gesto.

O que estou fazendo, cacete?! Conheci a garota ontem!


Literalmente ontem!
Pelo canto dos olhos, sinto o olhar de Raul me queimar. Ele sabe do
cuidado quase obsessivo que tenho com os discos que coleciono.
Certamente, escutou as palavras dela e está confuso...

Não mais confuso do que eu mesmo, com toda a certeza.

— Como combinamos? — Ela se afasta, ainda sorrindo. — Vamos


buscá-lo quando você encerrar o expediente aqui?

— Não. Daqui vou direto para o meu turno no bar. Só volto para
casa de madrugada. Você vai ter que esperar até amanhã.

— Ah, você tem outro trabalho... Que horas sai de lá? Queria tanto
já pegar o disco hoje! Eu não durmo cedo, de qualquer forma. Ou
posso ir até o bar e te esperar sair, hoje é sexta-feira.

— O meu expediente no Bulldog vai até às 02h00. Você vai se


cansar de esperar e não vou conseguir te dar atenção... Lá não é
tranquilo como aqui. O trabalho não para.

— Bulldog? Escuto falar muito bem dele... É meio que um pub, não
é? Já sei! — Hannah pega o celular na bolsa e destrava a tela,
digitando depressa no aparelho. — Meus amigos estavam
escolhendo um bar para a gente ir hoje, vou sugerir o Bulldog.
Assim, fico lá com eles até você encerrar o turno e depois pegamos
o disco na sua casa. Pode ser?
Permaneço em silêncio, pensando nas possibilidades. Ela quer
mesmo pegar o disco comigo no meio da madrugada?

Estremeço com a ideia de que sua impulsividade seja característica


da adolescência e... Se Hannah for menor de idade, já vou pular
fora. Não quero mais complicações para o meu lado.

— O Bulldog não é um ambiente para você e os seus amigos. É um


pub frequentado por adultos. Você tem o quê? No máximo, dezoito
anos?

— Dezenove. Somos todos adultos aqui, tiozão. — Dá uma


risadinha antes de tornar a olhar para o celular. — Pronto, já está
resolvido. Meus amigos vão me pegar em casa às dez da noite —
avisa, jogando o celular de volta na bolsa.

— Você não desiste, não é? — Solto um riso fraco. — Pelo jeito,


quando coloca alguma coisa na cabeça, não há quem tire...

— Você não faz ideia.

Hannah me encara com intensidade, desencadeando uma corrente


elétrica dolorida pelo meu peito. Eu somente a analiso de volta, me
perguntando o porquê dos batimentos descontrolados pelo meu
corpo, ainda mais fortes na garganta.

Ela realmente mexe comigo.


Como se soubesse o efeito que me causa, Hannah chega mais
perto, se movendo em câmera lenta.

Esticando-se na ponta dos pés, encaixa as mãos delicadas na curva


do meu pescoço e me beija na bochecha. Porra...

Sem se afastar, sopra no meu ouvido:

— Até mais tarde, Marcus.


Eu quero tocar seu corpo
Eletrizante pra caralho
I Wanna Be Your Slave ~ Maneskin

MARCUS VENTURINI

Ao parar para respirar, enxugo a testa e foco o olhar no quadro


fixado na parede oposta, ao lado da entrada do bar.

A gravura mostra um pub inglês, o ambiente bem parecido com o do


Bulldog.

Um longo balcão de madeira escura, uma dúzia de bancos


enfileirados — todos ocupados por homens engravatados —, uma
parede de prateleiras com garrafas em diversos tamanhos e
formatos.

O toque final está nas luminárias: as luzes amareladas refletem nos


copos e taças, reforçando o clima aconchegante.

Hoje o Bulldog está ainda mais cheio do que o normal.

Tanto que não pude fazer uma única maldita pausa para fumar.
Correndo de um lado para o outro atrás do balcão, anotei pedidos,
preparei drinks e limpei a bagunça, sem intervalo, pelas duas
últimas horas.

Pelo menos, não estou sozinho.

Denise me ajuda nas tarefas, como normalmente acontece às


sextas e aos sábados. É uma loira de cabelo curto, baixinha e ágil,
que César chama de maneira avulsa para os dias de maior
movimento.

— Sexta-feira animada, hein? — Ela me cutuca com o cotovelo,


carregando meia dúzia de copos recém lavados.

— Pra caralho... — resmungo, levando o olhar para uma das


televisões do outro lado do salão.

Os aparelhos exibem um jogo de basquete da NBA — entre Boston


Celtics e Miami Heat —, que eu queria poder acompanhar.
Mas é impossível diante do movimento absurdamente intenso...
Com isso, só me lembro de olhar para a tela a cada explosão dos
clientes comemorando os pontos.

Metade do povo assiste ao jogo enquanto a outra metade conversa


sem parar, deixando o bar ainda mais ruidoso. Por sorte, o ar-
condicionado potente mantém o ambiente fresco e agradável.

— Marcus! Chegamos! — Hannah aparece do nada, falando alto


para se fazer ouvir em meio ao barulho. — Vim com os meus
amigos! Júlia, William e Daniel! Pessoal, esse é o Marcus!

Todos me cumprimentam ao mesmo tempo. Os caras estendem as


mãos por cima do balcão. Júlia, a garota ruiva, apenas acena com
timidez. Hannah se debruça depressa, sem cerimônia. Me puxando
para mais perto, sela um beijo na minha bochecha.

— Prazer — respondo, correndo os olhos por eles.

O único negro entre os quatro, William, me encara com hostilidade e


não entendo o porquê.

— Você veio, mesmo... — Me volto para Hannah, esboçando um


sorriso ao reparar melhor nela.

A garota está com os olhos maquiados, os cílios mais escuros


destacando as íris cor de mel. Os cabelos castanhos soltos caem
por cima dos ombros nus, as pontas roçando no top preto sem
alças. Com a barriga à mostra, a cintura fininha contrasta com os
quadris largos delimitados pela calça jeans escura. Gostosa pra
cacete.

— Não te falei que eu viria? — Me presenteia com um sorriso


bonito. — Vou te deixar trabalhar em paz. Me chama quando acabar
o turno, ok? Vou me sentar ali com os meus amigos.

Hannah aponta para as mesas redondas espalhadas no fundo do


salão.

— Ok. Vai lá — digo antes de vê-la se afastar com o grupo.

Como o bom observador que sou, não posso deixar de secar sua
bunda marcada pela calça justa. Apoio os cotovelos no balcão e
acompanho os movimentos cadenciados dos quadris até que...

De repente, Hannah vira o rosto para trás e me flagra no ato.

Como não sou moleque para ficar de joguinhos, conecto nossos


olhos com firmeza. Mordendo o canto da boca, ergo uma
sobrancelha de modo sugestivo. Mais claro, impossível:

“Sim, eu estava olhando para você, garota. Vai fazer o que a


respeito?”

E não queria apenas olhar...


O que queria mesmo era apertar e morder aquela bunda redonda.

Pensando que ela desviaria o rosto constrangida, me surpreendo


com o que faz.

Hannah não só sustenta o meu olhar, como desliza a ponta da


língua pela boca, umedecendo os lábios, provocando.

Uma onda de eletricidade percorre o meu corpo e repercute no meu


pau que, sem que eu possa controlar, dá sinal de vida dentro da
calça. Porra... Apenas com um olhar.

Tô fodido.

Algum tempo depois, Hannah vem sozinha até o balcão.

Ela sorri enquanto me aproximo, alisando a camiseta preta


respingada de chopp.

— Oi. Queria um drink bem gostosinho... — Estende o cartão de


consumo na minha direção. — Nada muito fraco.

— Quer uma sugestão? Mojito. É doce e forte na medida certa.


Quando pego o cartão da sua mão, reparo nos seus olhos descendo
pelos desenhos do meu antebraço.

— Pode ser — concorda, ainda observando as tatuagens conforme


anoto o pedido.

Dou as costas a ela, alcançando o rum cubano na prateleira de


trás.

Quando me afasto dois passos, Hannah grita:

— Volta aqui, moço! — Ela dá risada. — Quero te ver preparar o


mojito.

— Preciso pegar os ingredientes, moça. A hortelã fica lá na


geladeira. — Aponto para o eletrodoméstico no final do corredor.

— Faz assim... Pega tudo e prepara o drink aqui comigo. Você é


melhor como bartender do que como vendedor de discos?

— Acho que sim, já que o único disco que me pediu eu não tinha
para vender. — Dou de ombros e ela ri. — Me dê um minuto, linda.

Deixo o rum na frente de Hannah e corro até a geladeira, buscando


a hortelã e o limão. Depois, pego o gelo, a água com gás e volto.

Paraliso ao encontrá-la conversando com uma mulher, os olhos das


duas fixos em mim. A merda é que Hannah não está conversando
com uma mulher qualquer.

É ninguém mais, ninguém menos, do que...

Lana.
Você diz que nunca se compromete
Com o vagabundo misterioso
Enquanto encara o vazio dos olhos dele
E fala: quer fazer um acordo?
Like A Rolling Stone ~ Bob Dylan

HANNAH MÜLLER

Enquanto Marcus busca os ingredientes para o mojito, me questiono


se não estou enganada. Caramba... Planejei tudo com Sam até
traçarmos a perfeita vingança. Tudo.

Estudei o cara, calculei cada passo, até mudei os cabelos para...

Para isso?!
Para me deparar com um homem simpático, interessante e
atencioso? Seria Marcus tão "duas caras" assim?

O jeito cafajeste e sem caráter do infeliz que humilhou minha amiga


não se parece em nada com a versão gentil e responsável que ele
tem me mostrado desde ontem.

Eu poderia até duvidar dos relatos de Samanta — que em outras


oportunidades havia se mostrado fantasiosa e imaginativa, para não
usar a palavra "mentirosa" — porém, eu testemunhei Marcus a
menosprezar, pessoalmente, nos fundos deste mesmo bar.

"Uma dose de amor-próprio lhe cairia bem, sabia?"

"Me arrependo pra caralho daquela noite."

"Estou de saco cheio de você, porra! Me deixe em paz!"

Droga, Marcus..., praguejo baixinho, fitando seus braços tatuados.


Os desenhos escuros se destacam na pele clara, atraindo meus
olhos como ímãs.

Enquanto mexe na máquina de gelo, o homem vira o rosto para mim


de tempos em tempos, com um sorriso bonito nos lábios que não
tenho como não retribuir.
— Ele é mesmo irresistível, não é? — Uma mulher surge do meu
lado, percebendo a direção do meu olhar.

Eu apenas sorrio em resposta, sem saber o que dizer.

— Notei seu interesse no bartender tatuado. Marcus não passa


despercebido... — diz com malícia, lambendo os lábios pintados de
vermelho.

— Você o conhece? — cedo à curiosidade.

— Infelizmente.

— Como assim?

— Posso ser direta? O cara realmente é bom de cama, tem uma


pegada incrível. Mas não passa de um cafajeste... Hoje mesmo pela
manhã, depois de uma noite incrível de sexo, me enxotou do
apartamento dele como se eu fosse uma cadela sarnenta.

Um baque violento atinge o fundo do meu estômago.

O relato da mulher reforça a canalhice dele que não consigo


enxergar com meus próprios olhos.

Não consigo ou não quero?


— Hoje? — Não sou capaz de elaborar nada mais complexo para
falar.

— Sim. Por que a surpresa? — Joga o cabelo ruivo para o lado,


parecendo despreocupada. — Se não acredita em mim é porque já
caiu na lábia dele. O filho da mãe sabe como seduzir... Me promete
uma coisa? Se acabar no apartamento dele mais tarde, dê uma
olhada atrás da porta do banheiro. Deixei o meu sutiã lá. É de renda
branca.

— Você deixou o seu sutiã? — estranho aquela informação.

— Não foi de propósito. Fiquei tão nervosa com os gritos dele:


"Pegue as suas coisas e vá embora! Me deixe em paz, porra!"
Então, recolhi as minhas roupas com pressa, de qualquer jeito. Só
percebi que havia esquecido o sutiã quando já estava em casa. Que
se dane, prefiro perder o sutiã do que pisar de novo naquela
espelunca, para ser humilhada por um garçom que...

De repente, a mulher fica muda.

Sigo o seu olhar voltado para a frente e encontro Marcus parado


bem ali, com os braços cruzados sobre o peito, a encarando duro,
sem piscar.

Sua mandíbula travada e seu olhar gelado me dão a confirmação de


que existe um histórico hostil entre os dois.
— Lana — ele a cumprimenta. — Pensei que não a veria tão cedo
por aqui.

— Já estava de saída, amor. Tchau. — Acena antes de ir embora.

— Quem é ela? — pergunto, atraindo os olhos azuis de Marcus.

— É uma desequilibrada que... Esquece. Não vale a pena


perdermos tempo falando sobre ela. Ainda quer o mojito? — Ergue
a garrafa de rum, esboçando um sorriso torto nos lábios.

— Quero.

Ao voltar para a mesa dos meus amigos, reparo que o bar já está
ficando vazio. Daniel, William e Júlia conversam tranquilamente,
com os copos de cerveja em mãos. Os três, assim como Samanta,
são os meus melhores amigos.

Nós moramos no mesmo condomínio fechado da Zona Sul. Nos


conhecemos durante a infância, brincando na rua — exceto por
Daniel, que se mudou para lá há menos tempo.

— Dani... — Levo uma mão ao seu ombro maciço. Daniel é rato de


academia. — Não esquece do que combinamos, fica de olho no
celular. Já vou compartilhar a minha localização, você precisa me
buscar quando eu sinalizar, sem enrolação.
— O que ganho por bancar o Uber para você, baby? — Sorri
daquele seu jeito irresistível. — Quero um prêmio em troca, Nana.

Daniel não é apenas um amigo. É um "pau amigo". Gosta de sexo


sem compromisso tanto quanto eu.

Há dois anos, me conquistou com seus olhos verdes e seu jeito


descontraído. Desenvolvemos um lance descomplicado, com as
vantagens de transar com alguém que sabe do que você gosta na
cama, e sem as desvantagens de um relacionamento tradicional. Se
um estava a fim, chamava o outro. Que poderia ir ou não, de acordo
com a vontade e a disponibilidade. Sem cobranças ou
ressentimentos.

— Pode pegar seu prêmio mais tarde. Meus pais estão viajando,
então, já sabe. A casa é nossa.

Dou um beijo na bochecha dele e contorno a mesa para me


despedir dos outros.

William me segura pelo cotovelo.

— Nana... — Me encara com seriedade. — Você tem certeza do que


está fazendo? Não tem medo de ir para o apartamento daquele filho
da puta? Me preocupo com você.
Meu amigo mais velho também tomou as dores de Sam. Por isso,
detesta Marcus e não quer me ver perto dele, mesmo sabendo das
minhas verdadeiras intenções.

— Está tudo sob controle, Will. Não sou uma Samanta da vida.
Tchau. — Belisco a bochecha dele e recebo em troca um tapinha no
ombro.

— Não esculacha a Sam que eu não gosto. — Ele a defende e eu


dou risada.

Will é tão óbvio... Sempre tive certeza de que alimenta uma paixão
platônica pela nossa amiga, mas é retraído demais para tomar a
iniciativa.

— Confirmado o salão amanhã? — Me despeço de Júlia, a última


pessoa da mesa. Ela está com as bochechas mais coradas por
causa do álcool. A ruiva é branquinha demais e fica vermelha assim
com muita facilidade. — Vamos logo depois do almoço, no final da
tarde preciso ensaiar.

— Confirmado, até amanhã — responde, me soprando um beijo.

Nós costumamos ir ao salão de beleza aos sábados. Antes,


Samanta ia com a gente, mas tem evitado sair desde que passou da
metade da gravidez. A barriga cresceu e ela se sente constrangida
com a atenção. É uma pena.
— Marcus! Faltam dez minutos para o final do seu expediente. Está
de pé a programação?

Apoio os cotovelos no balcão de madeira, observando o homem


guardar os copos de vidro em uma prateleira enquanto uma loira
baixinha limpa a pia.

— Por mim, sim. Não está muito cansada?

Ele parece cansado, isso sim. Talvez até queira cancelar a


programação, porém não sabe como. Mas se pensa que vou
facilitar...

— De verdade? Estou muito ansiosa! Não vejo a hora!

— Certo. — Me encara com os olhos azuis cheios de determinação,


enxugando as mãos em um pano. — Vamos? O estacionamento é
por ali. — Aponta para uma porta no final do corredor.

— Vamos. — Passo para o outro lado do balcão depois que ele


destrava a portinhola de madeira. — Você deixa o seu carro no
estacionamento?

— Quem disse que é um carro?

Finjo surpresa, disfarçando o fato de que já sei sobre a moto.


Marcus ergue a chave da Honda, balançando o chaveiro no ar
enquanto deixamos o bar.

— Não gosto muito de motos — confesso, caminhando ao seu lado


pelo estacionamento a céu aberto. — Mas posso encarar o
desafio... Tudo pelo Abbey Road.

— Não gosta muito porque nunca andou na minha Honda. — Passa


a mão pelo banco preto, parecendo orgulhoso. — Precisa de ajuda?
— pergunta ao subir na moto.

Marcus é tão alto que consegue manter os dois pés firmes no chão
mesmo montado naquela motocicleta enorme.

Com as mãos pousadas no guidão, seus braços compridos brilham


sob a iluminação do poste, as tatuagens pretas me chamando com
um magnetismo letal.

Sou como os insetos que se veem atraídos pela luz que os aniquila.

E o pior é que estou ansiosa para me queimar.

Prestes a subir na moto, meu corpo inteiro formiga em antecipação.

— Dispenso a ajuda. Não sou uma princesa incapaz.


Subo de uma vez, firmando os dedos nas laterais do seu tronco
forte, sentindo o calor da pele firme através do tecido da camiseta.

Marcus ri com vontade, balançando a cabeça para os lados.

— Você é a primeira garota que conheço que não quer ser uma
princesa... — Dá a partida e puxa as minhas mãos mais para a
frente, quase no seu umbigo. — Precisa segurar direito em mim,
Hannah. Ou fica tímida?

Provoca, passando os dedos calejados pelo dorso da minha mão.


Traçando círculos muito lentos, me arrepia da cabeça aos pés.

— Tímida, eu? — Enfio as mãos por dentro da camiseta, apertando


com vontade seu abdômen duro. — Assim é "segurar direito" para
você?

Marcus enrijece a postura por um segundo, pigarreando antes de


dizer:

— Assim está ótimo... Só não fique se mexendo demais, ok?


Pretendo chegar vivo em casa — completa antes de acelerar com
tudo.

Minutos mais tarde, ele estaciona a moto em frente a um conjunto


habitacional na periferia da cidade.
— Bem-vinda ao meu "palácio". — Sinaliza para o prédio simples de
cinco andares, a pintura da fachada encardida não me permite
saber se é verde ou azul. — Como pode ver, eu também não sou
um príncipe.

— Melhor assim... Príncipes são chatos.

Caminhamos lado a lado pelo pátio malcuidado até a antiga porta de


entrada.

— Merda... — Mexe no interruptor, encarando a luz apagada no teto


do hall térreo. — Estamos sem luz mais uma vez, vamos ter que
subir de escada.

Assinto em silêncio, pensando que talvez seja melhor assim. Aquele


elevador velho no final do corredor não parece ser nada seguro.

Ainda nos primeiros degraus, passo a praguejar baixinho. Estou


ofegante, extremamente incomodada com o cenário ruim. A
escadaria parece infinita e fede a mofo, com o ar pesado, quente e
abafado me deixando sem fôlego.

Um fio de suor escorre pela linha da minha coluna quando


alcançamos o terceiro piso.

— Faltam só dois andares. — Ele sorri sem graça, passando a mão


pela testa suada.
Não consigo enxergar nada além de seu rosto afogueado naquele
breu.

— Tinha que morar no último andar? — Suspiro, prendendo o


cabelo em um rabo, desgrudando as mechas desgrenhadas da nuca
molhada. — Espera, quero ficar descalça... Não aguento mais as
sandálias de salto.

Me agacho, retirando as sandálias que parecem moer meus pés.

Ao me levantar, sorrio com a sensação de alívio do piso gelado


contra as solas ardidas.

— Pelo menos, a vista lá de cima é mais bonita... — Marcus expira


cansado.

Então, sem qualquer aviso, o homem me pega no colo, me


segurando de lado com o braço esquerdo atrás dos meus joelhos e
o outro nas minhas costas.

— Ei... — tento protestar, mas ele me corta depressa.

— Nem adianta espernear, não vou te deixar pisar descalça nesse


chão podre.

— Não me importo com sujeira! Me larga! — Tento me soltar, mas


ele me aperta com mais firmeza.
— Não é só sujeira "normal", Hannah. Tem coisas perigosas que...
— diz com seriedade e paro de me remexer. Ele começa a subir os
degraus, me carregando com cuidado. — Você não conhece os
moradores do prédio.

— Então, mata a minha curiosidade. O que poderia ter no chão?


Bituca de cigarro? — disparo, passando um braço por trás do seu
pescoço úmido de suor, me equilibrando.

— Bitucas, sim. Além de seringas usadas, camisinhas descartadas


e... Está satisfeita ou posso continuar?

Eca... Meu estômago se embrulha em um misto de nojo e de


apreensão. Ok. Estou agradecida por ser carregada no colo.

— Obrigada, príncipe. — Deposito um beijo na sua bochecha


quente, tentando soar despreocupada.

Mas por dentro... Sou a apreensão em pessoa. O que estou fazendo


aqui, meu Deus? Se meu pai souber... O Delegado Federal todo
importante e cheio de frescuras, extremamente preocupado com a
filha única. Ele vai me matar!

— De nada, princesa. Chegamos.

O homem me pousa no chão em frente a uma porta, que não


consigo analisar melhor por conta da escuridão.
Marcus destranca a fechadura e entramos em uma sala quadrada.

As paredes estão amareladas por causa da iluminação dos postes


da rua, os feixes dourados atravessando a janela, conferindo um
aspecto fantasmagórico ao recinto.

Mesmo com os vidros abertos, não há uma única brisa, o ar quente


nos sufocando, deixando o ambiente pesado. Se arrependimento
matasse... Queria apenas estalar os dedos e me ver no conforto da
minha casa, deitada na minha cama macia, com o ar-condicionado
ligado no máximo.

— Estou derretendo... E não dá nem para ligar o ventilador. —


Marcus mexe na gola da camiseta, parecendo desconfortável. —
Vou tomar uma ducha e já volto. Depois te dou o disco e te levo
embora, ok? — diz, caminhando na direção de uma porta atrás de
mim.

— Deixa eu usar o banheiro rapidinho primeiro... — aviso, passando


na frente dele.

Assim que fecho o trinco do banheiro, a ventilação do teto liga. Testo


o interruptor e a luz acende, iluminando o ambiente pequeno.

— Marcus! — exclamo através da porta fechada. — A luz voltou!

Escuto quando grita um “ok” de volta.


Lavo o rosto com água e sabão, ajeito os cabelos, aliso a roupa,
procurando me recompor do drama da escadaria.

Quando estou prestes a abrir a porta e deixar o banheiro, um objeto


caído no chão chama a minha atenção.

Um delicado sutiã branco de renda.

Bingo.

Ao voltar para a sala, me deparo com Marcus sentado em um


banquinho, de frente para uma vitrola antiga. Ele mexe nos botões
do aparelho enquanto um disco do Dylan está tocando.

Reconheço a música na hora: "Like A Rolling Stone".

— Ei... Sua namorada esqueceu isso aqui.

Jogo o sutiã no colo dele, mordendo a boca para não rir da sua
expressão de surpresa.

Marcus encara a peça sobre as suas pernas com tanto


estranhamento que quase questiono a ele se nunca viu um sutiã na
vida. Mantendo as sobrancelhas franzidas, permanece em silêncio
por longos dez segundos.

— Eu não tenho namorada.


O homem arremessa a peça no sofá como se a renda fosse tóxica.

— Eu sei que é daquela mulher... Lana. Ela me garantiu que a


lingerie estaria no seu banheiro. E ela sabia do que estava falando.
Pelo jeito, não é tão desequilibrada assim... — provoco, me
sentando no chão ao seu lado.

Sei bem como homens canalhas costumam rotular mulheres como


"desequilibradas", "loucas" e afins, tentando as desqualificar. Minha
mãe me ensinou ainda na adolescência: "Nana, sempre desconfie
se um namoradinho se referir à ex dele como maluca. Vai ser assim
que o infeliz falará de você quando estiver com a próxima."

— Pode acreditar, Hannah. Ela é completamente desequilibrada...

— Me convença. — Cruzo os braços e encaro seus olhos azuis,


erguendo o queixo de maneira desafiadora.

— Certo. Vamos lá... — Coça a nuca, parecendo pensativo. —


Aquela mulher quase me fez bater a moto, me bolinando quando eu
pilotava a 100 km/h. Uma pessoa equilibrada não faria algo assim
porque...

— Jura que ela fez isso? — Tampo a boca com a mão. — Que coisa
maravilhosa! Por que não tive a mesma ideia? — Dou risada
enquanto ele me encara com uma sobrancelha arqueada. — Virei fã
da Lana.
— Você é como ela... Tô fodido. — Marcus se levanta, rindo
baixinho. — Preciso mesmo de uma ducha, já volto. Pode pegar o
Abbey Road naquela última caixa.
Você tem que ser livre
Venha cá, agora mesmo
Come Together ~ The Beatles

HANNAH MÜLLER

Marcus volta do banheiro usando apenas uma bermuda de tactel


pendurada nos quadris, deixando o tórax — inclusive os músculos
das entradas —, completamente à mostra.

Mais gostoso impossível. Droga.

É a primeira vez que o vejo sem camiseta.


Sem ter como fugir, sou obrigada a lidar com a visão do seu tronco
definido, tão tatuado quanto os braços. Os desenhos em tamanhos
e formatos variados, a maioria em preto, quase saltam da pele
branca.

Até me esqueço de respirar, embasbacada com a visão impactante.

Seu minúsculo sorriso de lado e sua postura orgulhosa, com o peito


estufado, deixam nítido que o homem sabe o quanto é atraente.

— Encontrou o Abbey Road? — pergunta, enxugando


displicentemente os cabelos curtos com a toalha. Como estão
molhados, os fios platinados parecem mais escuros.

— Encontrei. — Fico em pé, me aproximando dele em câmera lenta,


com o disco encaixado entre as mãos. — Obrigada.

— Sabe mexer na vitrola? Posso te ensinar. — Pendura a toalha


atrás de uma cadeira da mesa de jantar.

— Faz tempo que não mexo. É melhor que me mostre, por favor.

— Vem cá... — Ajeita o banquinho em frente à vitrola. — Senta aqui.

Obedeço, colocando o Abbey Road no meu colo.

Estremeço quando as suas mãos quentes tocam na minha pele, as


palmas descansando nos meus ombros. O perfume limpo de
sabonete masculino é uma delícia.

— Levanta com cuidado aquele "braço" da vitrola e desencaixe o


disco do Bob Dylan — diz e eu o atendo. — Isso.

Deixo o disco na mesinha ao lado, deitado sobre o encarte.

— E agora? — Viro o rosto para Marcus, que está agachado atrás


de mim. Tão perto que sua respiração morna bate na minha
bochecha.

— Retire o disco dos Beatles do encarte e encaixe no "prato" da


vitrola. Depois, mexa naquele botão para que comece a rodar.

— Pronto. — Sorrio para ele ao cumprir o passo a passo.

Até que é divertido colocar uma vitrola para funcionar... Um aparelho


emblemático, com tanta história, que marcou gerações.

— Hannah, agora é a parte mais delicada. Vou te ajudar. — Alcança


a minha mão e a segura com firmeza, fazendo a minha pele
formigar. Então, a move na direção da vitrola, muito devagar. —
Vamos posicionar o "braço" na parte mais larga do disco e descê-lo
até que a agulha encoste no início da primeira faixa. Com bastante
cuidado para não riscar o disco. A belezinha aqui tem mais anos do
que nós dois juntos.
Soltamos o "braço" e o som preenche a sala, roubando um sorriso
dos meus lábios.

Atrás de mim, Marcus cantarola junto com os Beatles o começo de


“Come Together”, a primeira faixa do Abbey Road.

— Pronto. Aprendeu? — Ele se afasta, bagunçando o cabelo ainda


úmido. — A música que você precisa ensaiar para o ballet é a
segunda faixa.

— Obrigada. — Eu me levanto, andando lentamente na direção


dele. — Por me ensinar. E por me emprestar o disco.

— De nada. Quer que eu te leve embora? Já são quase quatro


horas...

O homem parece inquieto com a minha aproximação. Por isso, pioro


a situação para ele...

— Ainda não. — Desço os olhos pelo seu corpo, centímetro a


centímetro. — Queria lhe agradecer melhor. O que quer em troca de
tanta gentileza?

Marcus hesita, engolindo em seco. Seu pomo de Adão sobe e desce


na garganta, atraindo meu olhar.

— Já pensei no que quero em troca. — Ele sorri de lado, gelando


meu estômago. — Mas não sei se irá concordar...
— Posso pensar. O que é? — Dou mais um passo para a frente,
ficando com nossos corpos tão próximos que consigo sentir seu
calor eriçando todos os pelinhos dos meus braços.

— Quero te ver ensaiar a música. Nunca assisti a um ensaio de


ballet, tenho curiosidade.

Como assim? Um balde de água fria não teria sido mais brochante.
Definitivamente, não era isso que eu esperava...

— Ah... Tudo bem. — Puxo o celular do bolso. Dou uma espiada


rápida, percebendo que faltam poucos minutos para encerrar o
compartilhamento da minha localização com Daniel, programada
para durar uma hora. — Vamos trocar contatos? Assim, te aviso
quando tiver ensaio.

Marcus faz que sim e me dita o seu número. Já telefono para ele,
para que fique com o meu gravado no seu aparelho. O celular dele
passa a tocar em cima da mesa e eu corto a ligação.

— Prontinho — murmuro, guardando o celular de volta no bolso da


calça.

— Legal. Vamos... — Pega a chave da moto sobre a mesa. — Calce


as sandálias. Vou te levar embora.
Meu Deus... Não acredito que ele não está caindo no plano. Preciso
seduzi-lo melhor. Tenho que tentar mais um pouco.

Passo a língua pela boca, descendo os olhos pelo seu corpo.

— Que cara é essa? — Marcus quer saber, parecendo intrigado.

Enfiando a chave no bolso da bermuda, cruza os braços na


defensiva.

— Estou reparando nas suas tatuagens e cheguei a uma conclusão.


Descruze os braços, por favor.

Ele obedece, sem entender nada.

Continuo percorrendo sua pele tatuada com o olhar.

— Que conclusão? Fala logo — pede impaciente.

Toco em sua pele sobre a clavícula, bem no desenho de uma


serpente sinuosa.

— As serpentes... Os dentes de vampiro... O gavião devorando a


pomba... O lobo... — Vou traçando cada um deles com a ponta do
dedo. — Você se considera um predador.

Continuo com o dedo contornando o lobo logo acima do mamilo,


subindo e descendo pelas bordas rosadas, bem devagar.
Sorrio ao notar sua respiração falhar.

— Melhor ser predador do que presa... — diz com a voz rouca.


Então, Marcus agarra meu pulso, afastando meu dedo do seu peito.
— Você está me arrepiando, cacete...

— Arrepiando? — Tomo coragem e, com a mão livre, roço as costas


dos dedos no volume do seu pau, marcando a parte da frente da
bermuda. — Ou excitando?

Sem aviso, Marcus prende meu outro pulso e, em um movimento


ágil, me vira de costas, encaixando a ereção na minha bunda.

— O que você acha? — Solta meus braços e aperta minha cintura,


me puxando para mais perto. Como meu top é muito curto, o
contato é pele a pele, me arrepiando de um jeito incrível. — Ainda
não saquei qual é o seu jogo, mas não vou permitir que continue. Já
disse: não sou a porra de uma presa — sussurra, se esfregando por
trás de mim, me desmanchando ainda mais.

— Do que você está falando? — balbucio, me excitando com seus


lábios provocando minha orelha. Suas mãos fortes continuam
afundando na carne da minha cintura, me fazendo pulsar entre as
pernas.

E, quando Marcus pressiona a ereção com mais intensidade na


minha bunda, me erguendo do chão, solto um gemido baixinho,
sentindo a calcinha toda melada, pegando fogo.

— Eu não nasci ontem, Hannah. Você está aprontando alguma


merda. Nas duas vezes que foi à loja, se mostrou uma garota bem
diferente da patricinha que apareceu no bar, escoltada pelos amigos
playboys. Pensou que eu não perceberia?

Marcus me larga e, no mesmo instante, sinto falta do seu calor.

— Não viaja... — Eu o encaro, cruzando os braços, tentando cobrir


meus mamilos pontudos. — Só me arrumei para sair à noite.
Grande coisa!

— Não foi só isso e você sabe muito bem. O que quer? Hein? Está
brincando comigo, caralho... — Passa as mãos pelo cabelo,
aborrecido.

— Sabe o que quero? Ir embora. — Me agacho, calço as sandálias


e pego o celular no bolso. Com os dedos trêmulos, mando uma
mensagem a Daniel. — Já chamei o Uber. Um Gol prata aceitou o
chamado. Vai chegar em sete minutos.

— É melhor você ir embora mesmo... E esquece. Não vou ver seu


ensaio. Estou de saco cheio de problemas na minha vida Quer levar
o disco emprestado? Leve, estou pouco me fodendo. Só espero não
me arrepender ainda mais... — continua resmungando palavras que
não compreendo, com o rosto baixo. Até que ele levanta os olhos
para dizer em alto e bom tom: — É isso, Hannah. Não tenho tempo
nem disposição para garotas mimadas, com caprichos fúteis e
joguinhos infantis. Basta.

Droga. Estraguei tudo.

— Ok. Não vou discutir com você. — Ando até a porta, colocando
uma mão na maçaneta. Com a outra, seguro o Abbey Road. — Na
semana que vem te devolvo o disco na loja. Obrigada pelo
empréstimo. Boa noite.

— Vou descer com você. Não é seguro — diz sem me olhar, a


mandíbula travada. Ele está possesso.

— Você é quem sabe.

Descemos as escadas devagar, em absoluto silêncio.

Eu mal consigo raciocinar, com o coração batendo sem controle no


peito, me perguntando onde foi que eu errei.

— Ali está o Uber... — Aponto para o outro lado da rua ao ver o Gol
junto à calçada. — Atravesso sozinha, pode deixar. Tchau.

Saio correndo, sem aguardar por uma resposta.

Como combinado com Daniel, entro pela porta de trás.

Meu amigo acelera com tudo, nos levando para longe dali.
— E aí, Nana, tudo certo? Que lugarzinho feio, hein... — comenta,
me fitando pelo espelhinho. — Olha... Estou apanhando para
conseguir dirigir isso aqui, não tem nem direção hidráulica. — Dá
risada, indicando o volante preto com o queixo.

Foi minha a sugestão que Daniel não viesse com seu Camaro
amarelo, para não chamar a atenção. Por isso, ele pediu
emprestado o Gol do porteiro do condomínio, mediante um
"incentivo" de cinquenta reais.

— Não está "tudo certo". — Pulo para o banco da frente assim que
ele para em um sinal vermelho. — Ele se ligou, Dani.

— Puts... O cara é esperto ou você pisou na bola?

— Talvez um pouco das duas coisas. Não sei se tem salvação, acho
que já era.

— Não fica chateada, baby. Deixa pra lá. A luta nem era sua, em
primeiro lugar. — Aperta a minha coxa em um gesto de conforto. —
O que quer fazer? Quer ir direto para a sua casa?

— Quero. Dorme comigo? — peço, cobrindo a sua mão com a


minha.

Preciso apagar as sensações das mãos pesadas de Marcus


percorrendo a minha pele.
O desejo não saciado está me queimando de dentro para fora, me
deixando... Descontrolada. Inquieta. Angustiada.

Odeio perder o controle.

Quero urgentemente fazer sexo com Daniel. Para esquecer. Para


não pensar em mais nada.

— Só dormir? — pergunta com um sorriso esperto nos lábios.

— Quando é que a gente só dorme, Dani?


Algo no modo como ela se move
Me atrai como nenhuma outra mulher
Something ~ The Beatles

MARCUS VENTURINI

Ao acordar no sábado, praguejo sozinho, a cabeça a ponto de


explodir.

As dúvidas martelam sem parar, me deixando aflito. Será que


peguei muito pesado com Hannah? Fui injusto? Agi de modo
grosseiro demais?

Não sei até que ponto fiz certo em acusar a garota daquela
maneira.
“Você está aprontando alguma merda.”

“Está brincando comigo, caralho.”

Fiquei puto ao ver que ela queria me provocar, me seduzir a todo


custo. Instintivamente, meu corpo reagiu. Meu sangue esquentou,
meu pau deu sinal de vida. Ponto para Hannah.

Racionalmente, contudo, percebi que algo não se encaixava e


consegui resistir à tentação de avançar para cima dela. Ponto para
mim.

E por que algo não se encaixava? Simples. Bastava me atentar aos


detalhes.

Do nada, Hannah tinha aparecido na loja no dia anterior. Brincou


comigo, me pedindo para adivinhar o nome. Ao jogar a dica do
palíndromo, aguçou a minha curiosidade para que eu ficasse
pensando nela.

Retornou no dia seguinte, procurando pelo Abbey Road. Quando


revelei ter o disco em casa, insistiu para buscá-lo no mesmo dia.
Expliquei que ainda trabalharia no Bulldog e ela decidiu ir ao bar
com os amigos, esperar pelo fim do meu turno.

Até então, eu acreditava que Hannah era uma garota comum de


classe média, pelo jeito que se portava e se vestia, esbanjando
simplicidade. Porém, ao reparar melhor nela com os amigos,
descobri que o grupinho inteiro era elitizado pra caralho.

As roupas. Os acessórios. Os relógios. Os sorrisos. Tudo neles


exalava riqueza. Tudo.

De cara, isso já faria evaporar qualquer interesse verdadeiro dela


por mim.

Nenhuma garota como ela se envolveria pra valer com um cara


fodido como eu. Vendedor fracassado durante o dia, bartender
explorado durante a noite. Certamente, não me apresentaria para o
pai, que devia ser um figurão importante.

Eu não sirvo para elas.

A não ser para as fodas ocasionais — que nem sempre terminam


bem —, como naquele dia com Lana.

O cenário ficou ainda mais claro quando trouxe Hannah para casa,
tentando me ater ao interesse dela pelo disco. Expliquei como
funcionava a vitrola com a maior paciência do mundo. Concentrado,
focado, sem sacanagem. Percebi que ela gostou. Ao final da
explicação, Hannah me presenteou com um sorriso bonito que
alcançava os olhos. Aqueles olhos cor de mel que me hipnotizaram
desde o primeiro maldito segundo.
Porém, quando começou a se jogar em cima de mim —
absolutamente do nada —, um sinal vermelho piscou na minha
cabeça. Como diz o velho ditado: “quando a esmola é demais, o
santo desconfia”.

E ditados quase nunca falham.

Passei a suspeitar de tudo, até mesmo da suposta prática de ballet.


Inclusive, foi sensacional a cara de choque de Hannah quando pedi
a ela para assistir a um ensaio. A mentirosa não deve nem saber
dançar porra nenhuma. O papo de levar emprestado o disco para
estudar a música? Pura balela.

Eu não devia ter permitido que levasse o Abbey Road. Aquela


preciosidade chega a valer quinhentos reais na internet.

Acho que já era... Perdi a porra do disco.

As chances de Hannah sumir com ele são enormes. E se o devolver


estragado?

Com riscos, rachaduras e... Não vou pensar nisso agora. Sofrer por
antecedência é uma merda.

Esquece.

De qualquer forma, com ou sem disco, me sinto frustrado por


simplesmente deixá-la ir embora. Por encerrar algo que sequer
começou.

A verdade, ainda que incômoda, é uma só... Antes de me


decepcionar, aquela garota me encantou. E eu daria qualquer coisa
para tê-la na minha cama.

Disposto a aproveitar a manhã de sol, me troco para dar uma


corrida no parque. Se eu tivesse grana sobrando, frequentaria
aquelas academias bacanas de Pinheiros. Como não é o caso...
Correr no parque é o que temos para hoje.

Sábado é dia de trabalho normal para mim. À tarde na loja, à noite


no bar. Pelo menos amanhã é domingo, a minha folga. Não vejo a
hora de ficar jogado no sofá, coçando o saco o dia inteiro.

Ao voltar para casa, tomo uma ducha e decido fazer a outra coisa
que mais me relaxa, ao lado de sexo, música e cigarro: me tatuar.

Após uma porrada de cursos baratinhos, estágios voluntários com


tatuadores famosos e tentativas repletas de erros e acertos, aprendi
a desenhar em mim mesmo para economizar o dinheiro que torrava
nos estúdios.

É o melhor hobby da vida.


Sem ideia no momento, somente traço mais uma camada da teia de
aranha do meu joelho. Minutos mais tarde, protegendo a área com
plástico-filme, me visto com cuidado para o trabalho.

Hora de ir para a Records.

Estou absolutamente entediado na loja, organizando o dinheiro do


caixa, quando o sino da porta tilinta no ar, anunciando a chegada de
alguém.

Levanto os olhos devagar, quase desinteressado e... Tento disfarçar


o espanto ao enxergar Hannah, desfilando pelo corredor com uma
postura tranquila, quase indiferente.

Pensei que não veria a garota tão cedo... Talvez nunca mais.

E que porra é essa que está vestindo?

Com um collant preto esticado cobrindo o tronco, posso ver cada


maldita curva do seu corpo, desde os seios fartos e até a cintura
fininha.

Shorts jeans minúsculos abraçam seus quadris, com as meias-


calças brancas semitransparentes descendo pelas pernas
compridas. Nas mãos, traz uma mochila amarela e uma sacola larga
de papel pardo.
Os cabelos castanhos presos em um coque dão o toque final. Pelo
jeito, acabou de sair de um ensaio de ballet. Ou está prestes a ir a
um.

— Boa tarde — diz ao parar na minha frente, do outro lado do


balcão. — Vim devolver o seu disco. Eu teria ligado antes de
chegar... Não queria te pegar de surpresa, sabe? Mas fiquei sem
bateria. — Puxa o celular do bolso dos shorts, exibindo a tela preta.

Após guardar de volta o aparelho no bolso, Hannah muda a sacola


de papel de uma mão para a outra, estendendo o objeto para mim.

— Devolver? Já? — Cruzo os braços, sem fazer menção de pegar a


sacola. — Por quê?

— Percebi que as coisas... Hum... Meio que desandaram entre a


gente. — Mordisca o lábio inferior, atraindo meu olhar. — E não me
senti mais à vontade de ficar com algo que é tão precioso assim
para você.

Sem saber o que falar, permaneço parado como um poste, ainda


com os braços cruzados sobre o peito. Sim, estou na defensiva.
Hannah me confunde pra caralho.

Enquanto isso, ela continua mordendo a boca, me encarando em


expectativa, certamente esperando por uma resposta. Sem
maquiagem, seus olhos parecem ainda maiores. Como duas lagoas
douradas, me chamando para mergulhar dentro delas.

— Bem, aqui está. — Deixa a sacola deitada sobre o balcão. — Ah,


trouxe mais uma coisinha para você.

Pousando a mochila amarela ao lado da sacola, abre o zíper e retira


uma porção de objetos de dentro dela. Carteira, batom, documentos
e...

Um maldito saquinho de balas de café.

Como ela...

— Eu vi o pote de vidro no seu apartamento — explica, arriscando


um sorriso contido. — Sobre o balcão da cozinha. Então, quando fui
ao mercado pela manhã, vi as mesmas balinhas e lembrei de você.
Comprei para encerrar as coisas entre a gente de uma maneira
mais... — faz uma pausa antes de pronunciar a última palavra
devagar, brincando com as sílabas na língua: — Doce.

— São as minhas preferidas... — admito, descendo os olhos para as


balas. Ao mesmo tempo, meu coração ribomba mais forte dentro do
peito e não sei nem explicar o porquê. — Obrigado.

— De nada — responde com o rosto baixo, guardando seus


pertences de volta na mochila. — Preciso ir, tenho um ensaio muito
importante agora. Tchau, Marcus.
Um arrepio percorre minha coluna quando ela pronuncia o meu
nome. Como seria ouvi-la gemendo... Porra... Esquece.

Hannah sai andando e eu permaneço imóvel, apenas observando


seus passos graciosos pelo corredor ladeado por discos de vinil.

Quando fico sozinho, passo a mão pela sacola de papel pardo,


apreciando a textura lisa sob os dedos. Em câmera lenta, pego o
Abbey Road dentro dela, morrendo de medo de checar a integridade
do disco.

Retiro com cuidado o vinil do encarte de papel, da proteção de


plástico e...

Está perfeito. Dos dois lados.

Solto o ar pela boca, me sentindo mais leve.

Porém, em um piscar de olhos, o alívio dá lugar ao remorso. Como


pude pensar que Hannah estragaria o disco?

Eu e a minha maldita mania de não confiar nas pessoas. Sou


mesmo um fodido.

Viro de costas para deixar a sacola em uma prateleira atrás do


caixa. Quando me volto para pegar as balas de café, uma pontinha
branca sob o saquinho chama a minha atenção.
Ao arrastar o objeto plastificado com as pontas dos dedos, descubro
o que é.

Um cartão de identificação. Ou melhor, uma carteirinha que Hannah


esqueceu sobre o balcão. Com sua foto, seu nome e sobrenome —
Müller —, traz o emblema de um estúdio de ballet no alto e um
código de barras embaixo.

A data de nascimento confirma o que desconfiei: ela tem apenas


dezenove anos, praticamente dez a menos do que eu.

Nova demais.

“Nova demais” para exatamente o quê? Porra… Nem pense nisso.


Não cometa os mesmos erros, seu burro, me repreendo sozinho.

Ainda analisando o cartão, reparo nos detalhes em relevo. O


refinamento do logo me leva a concluir que o Premier Ballet é um
local de prestígio.

“Tenho um ensaio muito importante agora”, suas palavras sopram


no meu ouvido, me inquietando.

Puxando o celular do bolso, jogo no Google o nome do estúdio. Fica


pertinho da Records. Legal. Hannah pode voltar aqui rapidinho e
resgatar a carteirinha, solucionando a questão.
Ainda com o aparelho em mãos, abro as últimas chamadas,
encontro o número de Hannah e salvo na agenda. Sim, nós
trocamos contatos no meu apartamento, mas não gravei o número
antes. Pronto. Problema resolvido.

Quando estou prestes a mandar uma mensagem de WhatsApp a ela


avisando sobre a carteirinha esquecida, me atento a um detalhe:
Hannah está sem bateria. Porra... Não vai rolar a mensagem.

Sem pensar duas vezes, bato na porta do escritório de Raul, que


murmura um “pode abrir” em resposta.

Empurro a porta e encontro o homem sentado atrás da


escrivaninha, mexendo no computador.

— Raul? Pode me cobrir no balcão por quinze minutos, por favor?


Preciso dar uma saída rápida. É importante — completo sério.

Ele balança a cabeça para cima e para baixo, os olhos fundos


esbanjando confusão. Mesmo concordando com o pedido, o homem
não disfarça o espanto.

Eu nunca saio durante o expediente.

— Marcus... — ele me chama quando estou prestes a sair. — Quer


saber? Já são mais de cinco horas, não precisa voltar. Deixa que eu
fecho a loja.
— Muito obrigado. — Aceno antes de ir embora.

Com o celular em um bolso e a carteirinha de Hannah no outro,


deixo a loja e sigo a passos rápidos pela rua movimentada.

O sol ainda está brilhando quando viro a esquina, caminhando


apressado na direção do estúdio.

Três quadras adiante, como era esperado, enxergo a placa do


Premier do outro lado da rua, atravessando depressa.

O que não era esperado faz meu coração disparar contra as


costelas. A parte da frente do estúdio é envidraçada e... Posso ver
Hannah dançando, os pés arqueados nas sapatilhas de ponta.

Dançando, não. Flutuando.

Como a porra de um anjo.


Você sabe quem eu sou
Você sabe que não posso lhe deixar
Deslizar pelas minhas mãos
Wild Horses (Acoustic Version) ~ The Rolling Stones

MARCUS VENTURINI

Como se tivesse levado um tapa na cara, dou dois passos para trás,
sem desviar os olhos dela.

Sozinha na sala retangular, Hannah está muito concentrada nos


giros e saltos fluidos, remexendo o corpo ao som de uma música
que não consigo ouvir.
Seus movimentos são expressivos e enérgicos, quase
hipnotizantes, significativamente diferentes daqueles típicos do
ballet clássico que habitam o imaginário popular.

Não entendo merda nenhuma de dança, mas imagino que esse


estilo de ballet seja uma vertente mais moderna da arte.

De novo, questiono meu julgamento anterior. Como pude pensar


que ela tivesse mentido sobre o lance de dançar?

Atravesso o pequeno estacionamento do Premier, procurando um


local para me estabelecer enquanto Hannah termina de ensaiar.
Espero que não leve horas, ou não poderei entregar a carteirinha a
ela.

Me aproximando de uma mureta em frente ao estúdio, apoio os


quadris na borda de concreto e puxo o maço de Marlboro do bolso.

Assim que acendo o cigarro, levanto o olhar e quase me engasgo


com a fumaça ao me deparar com a cena do outro lado do vidro.

Sem parar de dançar, Hannah está olhando para mim. Seus cabelos
castanhos continuam presos no coque, com duas ou três mechinhas
soltas emoldurando o rosto corado.

Porra... Pelos próximos minutos, me sinto preso em uma névoa de


torpor, apenas observando a garota rodopiar e saltitar pelo estúdio.
Não consigo desviar os olhos, absurdamente atraído por ela com
uma força quase magnética.

Os espelhos que recobrem as paredes não facilitam em nada para


mim, esfregando na minha cara cada ângulo do corpo de Hannah.

Cada nuance. Cada abertura. Cada curva.

Até mesmo os contornos dos mamilos pontudos sob o collant, que


chamam a minha atenção como dois faróis.

De repente, Hannah para de dançar, o peito subindo e descendo


rápido, os olhos fixos nos meus pelo reflexo do espelho.

Girando o corpo de frente para o vidro, sorri e gesticula para mim,


com uma mão para cima me pedindo para esperar.

E eu espero.

Hannah desaparece da sala espelhada, passando por uma porta do


outro lado. Nem um minuto depois, cruza a entrada principal do
Premier.

Está vestida como antes, os shorts jeans por cima da roupa de


dança.

Caminhando graciosamente na minha direção, atravessa o pequeno


estacionamento, os olhos cor de mel ainda mais dourados sob a
luminosidade do final do dia.

— E não é que você conseguiu assistir a um ensaio — diz,


passando uma toalhinha branca pelo pescoço úmido de suor. —
Como sabia que era aqui que…

— Você esqueceu isso na loja. — Tiro o objeto do bolso. — Vim


correndo te entregar, pensei que pudesse ser importante.

Hannah baixa os olhos, pegando devagar o cartão da minha mão.


Parece levemente constrangida e não faço ideia do porquê.

— Ah, obrigada. Então, gostou do que viu? — Aponta com a cabeça


na direção do estúdio, os lábios esticados em um sorriso bonito.

— Gostei. Me senti revendo o filme “Flashdance”. — Engancho os


polegares nos passadores da calça, mudando o peso de um pé para
o outro.

Os olhos de Hannah descem para as tatuagens dos meus


antebraços por meio segundo, mas ela rapidamente disfarça.

— “Flashdance”? — Sobe o olhar para o meu rosto. — Aquele da


década de 80? Ih, não é da minha época, tiozão — provoca,
segurando o riso.

— Nem da minha, espertinha. Sou da década de 90.


— Do século passado? Que velho... — Solta uma risada deliciosa.
— Estou brincando, é claro que eu conheço o filme. Mas a Alex
dança ballet contemporâneo. Eu prefiro o neoclássico.

— Qual a diferença?

— A explicação é complexa. Tem tempo para um suco? — Aponta


para a casa de vitaminas do outro lado da rua. — Estou morrendo
de sede.

— Eu... — murmuro cauteloso. Coço a nuca antes de acrescentar:


— Tenho o meu turno no Bulldog daqui a pouco. Não vai rolar.

Talvez exista mais um motivo: estou zerado de grana, para variar.


Nem carrego dinheiro na carteira para não correr o risco de gastar
com bobagens.

E os sucos daquela lanchonete chique ali devem custar os olhos da


cara...

— É rapidinho. Seu turno não começa às oito? Não são nem sete
horas... — ela insiste. — Olha, se me deixar te pagar um suco, te
explico tudo sobre ballet. Vamos? Em agradecimento por ter me
trazido a carteirinha.

Hannah me encara com os olhos esperançosos, parecendo um


filhotinho sem dono. Cacete... Não consigo sustentar o meu “não”.
— Tudo bem. Vamos lá.

Dou risada sozinho, me lembrando do suco verde que Hannah pediu


na lanchonete. Uma mistura nojenta de acerola, couve e broto de
alfafa. Sério... Quem em sã consciência colocava um maldito broto
no suco?

Depois de me explicar sobre os quatro principais tipos de ballet —


romântico, clássico, contemporâneo e neoclássico —, a garota
passou a discursar sobre as propriedades desintoxicantes dos
ingredientes do suco verde, entre eles, o broto de alfafa. Que a
alfafa vinha da Ásia Central e sei lá mais o quê.

“Faz bem para a pele”, ela acrescentou, por fim, levando o canudo
transparente à boca. Me distraí com a visão daqueles lábios rosados
se fechando ao redor do objeto e deixei escapar:

“Sexo faz bem para a pele e não é nojento assim”, indiquei o copo
de vidro com aquela gosma verde.

Hannah foi rápida em rebater:

“Depende do ponto de vista. Para a minha tia-avó, beijar na boca é


a coisa mais nojenta do mundo. Imagina, então, fazer sexo... Ela é
toda puritana, sabe? Não entra na minha cabeça. Sexo é tão bom! E
isso aqui também”, deu outro gole do suco verde, parecendo
realmente apreciar a bebida.

Apesar da conversa envolvendo provocações, Hannah não estava


dando em cima de mim — diferente do que tinha rolado na outra
noite no meu apartamento.

Baixando o rosto, dei mais um gole do meu suco superfaturado.


Sim, um simples e humilde suco de laranja custou quase vinte reais.

Hannah tornou a falar:

“Estou pensando aqui, Marcus, talvez você entenda a minha tia-avó.


São meio que da mesma geração, sabe? Os dois do século
passado”, tirou sarro da minha cara.

Balancei a cabeça para os lados, me esforçando para não rir.

Eu jamais diria em voz alta, mas o ponto alto do meu dia era
exatamente aquele: nós dois sentados ao redor daquela mesinha
alta, conversando e rindo, sem outras preocupações. Era bom. Era
muito bom.

— Você parece distraído hoje... — Denise me cutuca com o


cotovelo. — Está há cinco minutos secando o mesmo copo, daqui a
pouco vai desfazer o pano de prato.
Franzindo a testa, desço os olhos para as minhas mãos,
encontrando o copo de vidro e o pano de prato. Estou secando isso
aqui há cinco minutos? Não é possível.

Ou talvez seja.

— Preciso fumar um cigarro — aviso, deixando os objetos ao lado


da pia. Por sorte, o Bulldog está mais tranquilo hoje. As noites sem
jogos de NBA ou NFL são bem menos movimentadas.

— Vai lá.

A loira me dá passagem e eu saio pela porta de trás, alcançando o


beco dos fundos do bar.

O céu estrelado anuncia que amanhã vai fazer sol. De novo. O


verão ainda nem começou e já estou de saco cheio do calor.

Me encostando ao lado da porta, pego o maço e o isqueiro no bolso


de trás. Acendo um cigarro e fecho os olhos, apreciando o torpor da
nicotina. Essa porra ainda vai me matar... Mas não consigo ficar
sem ela.

Entre uma tragada e outra, pego o celular para me fazer companhia.


Sorrio ao encontrar uma mensagem de Hannah:
21:07. Hannah: “Marcus! Você não vai acreditar no que está
passando no Cine Arte! Somente até amanhã! Adivinha?”

Ok. Vamos lá.

Cine Arte é um cinema minúsculo conhecido por exibir produções


alternativas que não costumam passar nas salas mais comerciais.

21:33. Marcus: “Um documentário do Cazaquistão sobre brotos


de alfafa?”

21:34. Hannah: “Fico feliz em ver que lembrou que a alfafa vem
da Ásia Central, sua memória matusalém até que é boa. Mas
errou. Mais uma chance.”

21:35. Marcus: “Um filme do século passado, para você falar


que é da minha época?”

21:36. Hannah: “Isso! E a resposta mais precisa seria:


‘Flashdance’! Olha que coincidência!” – emoji de coração.

Ok. Ela está me dizendo isso porque... Não precisei pensar muito. O
celular vibrou com o recebimento de outra mensagem, confirmando
minha suspeita:

21:37. Hannah: “(Aqui é a sua deixa para me convidar para o


cinema)”
Porra... Eu não convido garotas para o cinema. Eu não saio em
encontros.

Para não a deixar no vácuo, tento ganhar tempo:

21:39. Marcus: “Conferiu se a censura é livre? Não quero me


encrencar ao levar uma criança para um filme adulto.”

Ela não hesita em enviar uma resposta no mesmo minuto:

21:39. Hannah: “Ha ha ha. Década de 80 era vida loca, não


existia isso de censura. ‘Bons tempos’, você diria.”

Dou uma longa tragada no cigarro, me debatendo com a ideia de ir


ao cinema. Não seria um encontro propriamente falado. Seria? Não
tocamos nessa palavra.

Pelo menos, os ingressos do Cine Arte são a preço popular. Um ou


dois reais, se não me engano. Eu poderia pagar numa boa.

21:41. Hannah: “(Continuo esperando o convite. Está com


dificuldades para digitar devido à artrite?)”

Solto uma risada alta ao ler a última provocação. Posso ter um


senso de humor duvidoso, mas, o fato é que Hannah realmente me
diverte.

Quer saber? Foda-se. Estou precisando de mais diversão na vida.


21:42. Marcus: “Ok, ok. Amanhã que horas?”

21:43. Hannah: “Uau, que convite mais esfuziante! Posso sentir


o quanto está empolgado em me levar ao cinema! (Contém
ironia)” – emoji carinha de tédio.

— Vai demorar aí? — Denise aparece na porta, colocando a cabeça


no vão. — Chegou um bando de engravatados. Preciso de ajuda lá
dentro, cara.

— Foi mal. Tô indo em um minuto — respondo a ela, digitando uma


última mensagem a Hannah:

21:43. Marcus: “Estou na correria aqui no bar, preciso voltar


para o balcão.”

21:44. Hannah: “Vai lá, não quero te atrapalhar. Então, nos


encontramos no Cine Arte às 18h, ok? O filme começa às
18h30. Até amanhã.” – emoji de beijo.

Guardo o celular no bolso e arremesso longe a bituca.


A nicotina parece não ter causado qualquer efeito, pelo contrário.
Estou ainda mais inquieto, com um frio na barriga me subindo pelo
peito até a garganta.

“Nos encontramos lá”, ela escreveu? Perfeito.


Se não vou buscar a garota em casa, significa que não é um
encontro. Certo?

Certo. É apenas um cinema. Simples. Inofensivo. Dois adultos


assistindo a um filme e nada mais. Quem sabe se... Porra...

Quem sabe se eu repetir bastante as afirmações acabe acreditando


nelas.
Lá vem o Sol
E eu digo que está tudo bem
Here Comes The Sun ~ The Beatles

MARCUS VENTURINI

O mundo parece desmoronar com a tempestade que assola a


cidade, os trovões barulhentos ribombando ao longe e as gotas
pesadas batendo contra as pedrinhas do piso do estacionamento.

A área descoberta em frente ao meu prédio está alagando


depressa. Sem chance de ir ao cinema de moto.

Minutos atrás, mandei uma mensagem a Hannah para saber se não


seria melhor desmarcar a programação por conta da chuva. Ela
rebateu depressa:

18:03. Hannah: “Nada disso. Qual é o problema? Não sou feita


de açúcar”.

E ainda tirou um sarro da minha cara:

“Perdão, velhinho. Esqueci que pessoas idosas são assim


mesmo... Não saem de casa ao menor sinal de garoa”.

Ainda na mesma mensagem, propôs:

“Vamos combinar o seguinte: te pego no seu prédio em quinze


minutos. Já andei na sua moto, é a sua vez de andar no meu
carro. Vou te mandar a localização em tempo real, desce
quando eu estiver chegando, ok?”

Meio a contragosto, acabei concordando com a ideia.

— Porra... — deixo escapar ao ver o Audi prata encostar junto à


calçada, a água escorrendo pela lataria cintilante.

Sozinho no hall térreo do meu prédio, me protejo da chuva e


confirmo as informações no celular. O pontinho azul com a
localização de Hannah está imóvel a poucos metros de mim.

Realmente, é ela dentro daquele carro importado.


Pois é... A garota não é classe média. Nem de perto. Mas, para ser
justo, ela nunca disse que era. Concluí sozinho que fosse. O mal-
entendido não é culpa dela.

Dou uma corridinha pelo pátio do prédio, a chuva respingando na


minha camiseta cinza.

No instante em que abro a porta do carro, me arrependo de ter


combinado o cinema com ela.

— Oi. — Engulo em seco ao correr os olhos pelas suas pernas bem


torneadas, os joelhos entreabertos sob o volante preto.

São centímetros e mais centímetros de pele exposta, as coxas


cobertas por penugens douradas que parecem chamar as pontas
dos meus dedos. Devem ser absurdamente macias...

Me ajeitando no banco do passageiro, aproveito a luz acesa e


disfarçadamente espio as panturrilhas definidas, logo acima dos
tornozelos finos adornados pelas tirinhas das sandálias pretas de
salto.

Com um vestidinho de alcinhas da mesma cor, Hannah está


deslumbrante. Deslumbrante demais para somente assistir a um
filme comigo. Na cabeça dela, isso aqui é um maldito encontro.

Melhor esclarecer as coisas...


— Por que caprichou tanto? — quero saber enquanto prendo o cinto
de segurança.

— Porque sair em um encontro com você é o meu maior sonho —


diz séria, caindo na risada dois segundos depois. — Estou zoando!
Me vesti assim de preto por um motivo. Tive que dar uma
passadinha rápida em uma missa de sétimo dia. Um vizinho
velhinho infartou na semana passada. Era amigo do meu pai, sabe
como é…

— Sinto muito. Pelo seu vizinho.

— Está tudo bem — diz com tranquilidade.

Ao dar a partida, as luzes internas desligam.

Ainda assim, posso ver que a barra do vestido levanta mais um


pouquinho quando Hannah acelera, colocando o Audi em
movimento.

É incrível como ela exala sensualidade até mesmo nas coisas mais
banais. Como dirigir um carro.

Mas não posso "cair para cima" ou isso aqui vai virar um encontro. É
foda... Nunca pensei que uma ida ao cinema pudesse ser algo tão
complicado.
Estamos instalados na penúltima fileira do cinema minúsculo, com
apenas mais um casal à nossa frente.

"Mais um casal", não. Reformulando: há um casal três fileiras


adiante. Um único casal. Porque eu e Hannah não somos um casal.

— Vou comprar uma pipoca. — Hannah fica em pé e vem para a


minha frente.

Por ser estreito o espaço entre as fileiras de poltronas, as pernas


dela ficam encaixadas entre os meus joelhos, roçando levemente no
tecido jeans.

A barra do vestidinho preto ondula com o vento do ar-condicionado,


que parece estar ligado no talo. O ambiente está frio demais. Os
pelinhos eriçados nas coxas de Hannah concordariam comigo.

— Quer alguma coisa, Marcus?

— Quero.

Arrancar esse vestidinho com os dentes, empurrar sua barriga


contra a poltrona, abrir sua bunda e te foder bem aqui.

Porra… Isso foi tão específico!

— Pensando melhor — pigarreio. — Não quero nada. Obrigado.


É... Será uma longa sessão.
E não seria legal morarmos juntos
No tipo de mundo onde pertencemos?
Wouldn't It Be Nice ~ The Beach Boys

MARCUS VENTURINI

Ao longo dos próximos dias, Hannah e eu adquirimos uma rotina


confortável. Nos vemos quase todas as tardes, entre visitinhas dela
à Records e escapadelas minhas entre os turnos para vê-la ensaiar
no Premier.

Continuamos apenas amigos.

Apesar da tensão sexual quase palpável entre nós, ela não voltou a
se jogar em mim e eu não tomei a iniciativa de ir para cima dela.
Melhor assim.
Hannah é... Nova demais. Linda demais. Rica demais. Tudo demais.

Não sirvo para ela.

Hoje é domingo e estou de folga. Mas nada de folga “dela”.

Não que eu esteja reclamando da programação do dia...

A ideia é visitarmos dois ou três estúdios de tatuagem. Juntos.

Hannah quer fazer sua primeira tatuagem e pediu minha ajuda, por
saber que entendo da qualidade das tintas, das máquinas e o
caralho. Não comentei com ela que sei tatuar porque... Sei lá.
Nunca tatuei ninguém além de mim mesmo. É uma puta
responsabilidade.

Combinamos de nos encontrar no Lucky Ink, pertinho da Records,


ao meio-dia. Lucas, o dono do estúdio, é gente boa. De confiança.

Quando o relógio bate 11h30, pego a chave da Honda e deixo o


apartamento, trancando a porta atrás de mim.

Paraliso no lugar quando um estrondo surdo estremece o prédio.


Que merda... Mais um curto-circuito nos postes da rua, nos
deixando sem luz e sem elevador.
Suspirando fundo, me pergunto quando terei condições de me
mudar daqui. Talvez daqui a dois anos quando estiver formado.
Talvez nunca.

Preciso ser realista. O pobre quase sempre continua pobre, a não


ser que tenha ajuda de fora ou que pratique algo ilícito.

Que o diga Seu Alfredo, meu vizinho, com sua íntima aposentadoria
de professor... Viveu sem grana e vai morrer sem grana.

Com a cabeça longe, sigo descendo as escadarias até ser obrigado


a parar diante de um obstáculo bloqueando o caminho. É um
pequeno grupo de "noias" fumando crack nos degraus. Cacete...

Penso em dar meia-volta quando um deles ergue o rosto ao me


notar.

Yuri, se não me engano, é o nome do infeliz.

— Fala, vizinho. — Sorri com os dentes podres.

— Fala. — Arrisco caminhar devagar, me preparando para passar


entre eles.

— Libera um troco pra nóis comprar uma marmita…

Ele abre os braços na minha frente, impedindo a passagem. Como


se tivessem combinado, dois outros maloqueiros se posicionam
atrás dele. Um mais encardido do que o outro, fazem meu estômago
embrulhar com o mau cheiro que exalam pelo ar. Outros três
continuam sentados na escadaria, os cachimbos de crack passando
de mão em mão.

— Estou sem grana, cara... — murmuro. — Foi mal. Dá licença.

Faço menção de passar, mas ele se aproxima, quase colando o


peito no meu.

— Só passa depois que pagar o pedágio.

Porra... Realmente estou sem um único real na carteira e nem


fodendo que vou voltar em casa para pegar dinheiro para o
vagabundo.

— Faz o que Yuri tá mandando ou leva porrada. — Um dos outros


aponta o dedo imundo na minha cara.

Meu sangue ferve de raiva e me seguro para não voar para cima do
filho da puta. Porém, por mais que todos estejam grogues e
drogados, seria burrice minha brigar com eles. Seis contra um? Não
dá.

— Quer saber? Não vou mais descer. Falou. — Viro as costas,


prestes a subir de volta a escadaria. O jeito é remarcar com Hannah
e...
De repente, o desgraçado me segura, os dedos pretos de sujeira
rodeando meu pulso.

— O pedágio é nos dois sentidos... Para descer ou para subir. Se


não tem grana, libera o celular.

Seus olhos agitados descem para o aparelho que está enfiado no


bolso da minha calça.

Nem fodendo.

Remexo o braço com tudo, me soltando dele.

— Me larga, caralho... — rosno ao dar um passo para trás.

— Quer brigar, quer brigar?!

De maneira patética, Yuri fecha as mãos em punhos como um


boxeador. Detalhe: ele não deve pesar nem 50kg.

Ainda assim, o infeliz vem para cima de mim.

Desvio com facilidade, jogando o corpo para o lado.

Chega. De saco cheio, dou as costas a ele para voltar para casa.

Até que uma fisgada lancinante me queima a partir da cintura e caio


de joelhos, a dor me quebrando.
O filho da puta me esfaqueou!

Não satisfeito, Yuri me chuta até deixar meu corpo de barriga para
cima.

Com os movimentos frenéticos, puxa o celular do meu bolso e sorri


vitorioso. Desgraçado.

— Porra, Yuri! Você furou o cara?!

— Vão chamar a Polícia, seu idiota!

— Tô vazando!

Enquanto saem correndo, os maloqueiros gritam e discutem entre


si, mas não consigo focar nas palavras deles.

A dor é excruciante pra caralho, me deixando enjoado.

Com dificuldade, fico em pé, tentando estancar o sangramento com


uma mão. Com a outra, me escoro na parede para me manter em
pé.

Mal consigo respirar com a pulsação do meu abdômen em chamas.


Filetes de suor escorrem pelos meus olhos, quase me cegando.
Me arrasto até o andar de cima e bato com a ponta do pé na porta
de Seu Alfredo, torcendo para ele estar em casa. A campainha não
funciona sem luz, só para dificultar as coisas...

Os latidos do Oz chegam antes do homem abrir a porta.

Quando ouço o trinco ser destravado, solto o ar pela boca.

— Marcus?! — O homem grisalho arregala os olhos ao me


observar.

Acompanho a direção de seu olhar e enxergo a minha camiseta


branca empapada de vermelho.

— Meu Deus… — ele balbucia, pegando a chave do seu Fiat Uno,


pendurada ao lado da porta. — Vamos para o pronto-socorro, meu
filho.

— Já comunicamos aos seus empregadores que terá que passar a


noite no ambulatório — o médico diz, com a prancheta em mãos. —
Pela sua ficha, você tem dois empregos, certo?

— Certo. Mas hoje é o meu dia de folga... — respondo desanimado.


Embora eu não trabalhe aos domingos, tanto a Records quanto o
Bulldog funcionam todos os dias.
Espiando o relógio na parede, noto que são quase quatro horas da
tarde. Hannah deve ter pensado que dei o cano nela. O foda é que
não tenho nem como avisá-la do incidente, afinal, estou sem celular.

— É mesmo necessário passar a noite aqui? — quero saber, ainda


deitado na maca do ambulatório.

— Sim. Aplicamos a vacina antitetânica e costuramos o corte.


Tivemos que anestesiá-lo para o procedimento. Tudo correu bem,
contudo, o ideal é que fique uma noite em observação. Você perdeu
uma quantidade considerável de sangue. Deseja avisar a família?

— Não. Obrigado, doutor — murmuro, fechando os olhos.

Como se eu tivesse alguém para avisar.

— Ok. Posso autorizar a entrada da visita?

— "Visita"? — estranho a palavra.

Será que Seu Alfredo continua por aqui?

— Sim. Uma garota, chegou há poucos minutos. Bem bonita, por


sinal. — O médico abafa o sorriso, ajeitando os óculos no nariz. —
Autorizo ou não?

Será... Não, não pode ser.


— Sim. — Assinto com a curiosidade me consumindo.

O médico deixa o recinto. Instantes depois, Hannah aparece na


porta.

Com os cabelos castanhos soltos, sem maquiagem, vestindo shorts


jeans e regatinha vermelha, parece ainda mais nova.

— Marcus... — Caminha receosa na minha direção, cobrindo a boca


com uma mão. — Que curativo enorme! Como se sente?

— Vou ficar bem. Como soube que eu estava aqui?

— Fiquei te esperando na porta do estúdio de tatuagem. Como não


apareceu, tentei te ligar. Estranhei que seu celular só caía na caixa
postal e pressenti que tinha algo de errado. Decidi passar na
Records, que ficava ali pertinho, para tentar descobrir o que houve.
Então, na loja, seu chefe me disse que estaria aqui e... Ele também
me contou que você não tem família. Está precisando de alguma
coisa?

Quando para de tagarelar, sinto o rosto esquentar, desconfortável


com o olhar dela.

Sentada na cadeira ao lado da maca, Hannah me encara em


expectativa, as mãos pousadas nos joelhos. Espero que não esteja
sentindo pena... Porra... Não suporto que sintam pena de mim.
— Obrigado. Não preciso de nada.

— Nem de companhia? Trouxe música. — Retira o celular e os


fones da bolsa. — Aqui não tem nem televisão, você vai morrer de
tédio. Soube que levaram o seu celular... Sinto muito.

— É... — resmungo, respirando fundo.

— Marcus... — diz baixinho. E, quando coloca uma mão delicada


sobre a minha, eu paro de respirar. — Você não pode continuar
morando lá. Com aqueles viciados... É perigoso.

— Não diga. — Solto uma risada amarga. — Que descoberta


incrível.

— Não estou brincando. — Aperta a minha mão suavemente antes


de entrelaçar nossos dedos. Meu coração vacila dentro do peito
com o calor que sobe pelo meu corpo e… Talvez seja o efeito da
anestesia. — Você não vai voltar para lá.

— E vou para onde? Não sou rico como você, Hannah. Meus
salários mal cobrem o aluguel naquela merda de prédio e...

— Você vai para a minha casa. Comigo.

— O quê?! — Solto uma gargalhada. Ainda rindo, largo os dedos


dela e passo as mãos pelo meu rosto.
— Pode me levar a sério uma única vez? — Hannah me encara
firme, os olhos cor de mel me enxergando até a alma.

Meu sorriso morre no mesmo segundo.

— Escuta, Marcus... — ela volta a falar. — Meus pais viajaram no


começo da dezembro e só vão voltar depois do Carnaval.
Resolveram dar a volta ao mundo para comemorar as Bodas de
Prata. Ou seja, você pode ficar comigo por mais ou menos dois
meses. Enquanto não arrumar nada melhor.

— Você está falando sério mesmo... — Eu a encaro de volta, quase


em choque. — Inacreditável. E por que você iria querer isso? E se
eu for um psicopata? Não vê que é loucura morar sozinha com um
cara que acabou de conhecer e...

— Eu não disse "sozinha". Você ainda não foi à minha casa, então,
não tem como saber... Lá contamos com uma dúzia de funcionários,
entre eles dois seguranças altamente treinados. É impossível ficar
mais segura. Além disso, aprecio a nossa amizade. Gosto da sua
companhia, das nossas implicâncias, das nossas conversas sobre
músicas, etc. Em resumo, nos damos bem e você sabe disso.

Porra... Quando ela para de falar, minha cabeça passa a girar com
as possibilidades. Realmente não tenho outro lugar para ir. Não
tenho família. Sou um fodido.
Seu Alfredo é o mais próximo que tenho de "família", mas mora
naquele mesmo prédio podre do qual quero distância.

Que mais? Tenho colegas da faculdade. Colegas, não amigos.


Minha jornada dupla de trabalho não me ajuda a aprofundar as
amizades com os caras. Trabalhando até de madrugada, de
segunda a sábado, sou obrigado a dispensar os convites para
eventos sociais, festinhas e confraternizações.

Diante desse cenário complicado, me sinto fortemente tentado a


aceitar a oferta de Hannah, mesmo sabendo que vai dar merda.

Não tem como não dar merda.

— Vou pensar. — Fecho os olhos, tentando me centrar.

— Não banque o difícil... — Ela enfia um fone na minha orelha. —


Já sei como te convencer, presta atenção na letra.

Ao reconhecer a batida dos Beach Boys, meus lábios esboçam um


sorriso. Continuo com os olhos fechados, apenas ouvindo a música.

And wouldn't it be nice to live together


In the kind of world where we belong?
(E não seria legal morarmos juntos
No tipo de mundo onde pertencemos?)
— Quer saber? — Quando reabro os olhos, encontro Hannah
sorrindo para mim. Ela já sabe a minha resposta. Ainda assim, me
obrigo a pronunciar aquelas cinco palavras. Aquelas cinco malditas
palavras que vão mudar tudo. — Eu vou morar com você.
Você tenta me empurrar para fora
Mas acabei de encontrar meu caminho de volta
Cinnamon Girl ~ Lana Del Rey

HANNAH MÜLLER

Nunca planejei convidar Marcus para se mudar para a minha casa.

Mas é o que dizem... Devemos aproveitar as oportunidades.

— Legal! Você não vai se arrepender!

Me levantando, dou um beijo estalado em sua bochecha e volto a


me sentar na cadeira ao lado da cama hospitalar.
Ele esboça um pequeno sorriso, meio desconfiado. Seus olhos
azuis parecem ainda mais translúcidos sob a luz branca do
ambulatório, adquirindo um tom prateado.

— Veremos, Hannah — murmura desanimado.

— O médico comentou que te daria alta amanhã por volta das


10h00. Posso vir te buscar com um dos seguranças e a gente te
ajuda a pegar as coisas no seu apartamento. O que vai querer levar
para a minha casa?

— Só o que tem mais valor. A Honda, os discos, as coisas de


tatuagem... — Esfrega os olhos devagar. — Ah, preciso das minhas
roupas também.

— Coisas de tatuagem? — finjo espanto.

Eu sei que o cara sabe tatuar. O que eu não sei, afinal de contas?

— É, tenho o kit completo. Máquina, agulhas, tintas e o caralho. A


maioria das minhas tatuagens eu que fiz. E, se não fiz, retoquei.

— Nossa... — Desço os olhos pelos seus braços, sorvendo os


desenhos dos cotovelos para baixo. Marcus está vestindo apenas
uma camisola hospitalar, que cobre somente os ombros e uma parte
do peito. — Você é talentoso.
— Obrigado. Aprendi a ser. Mas não é nenhum bicho de sete
cabeças.

— Por que não me disse antes? Você sabe que estou pensando em
fazer uma tatuagem. Podia me tatuar — provoco, esticando o braço
na sua direção. — Teria coragem de me furar?

— Não. De jeito nenhum. — Marcus é enfático.

Mas, quando penso que vai dar o assunto por encerrado, o homem
me surpreende. Em um movimento inesperado, ele segura o meu
pulso com uma mão. Com a outra, escorrega as pontas dos dedos
pela pele do meu antebraço. Seu toque é levemente áspero, porém
cuidadoso. Bruto e delicado ao mesmo tempo.

— Tentador — sussurra, os olhos acompanhando o movimento lento


dos dedos. — Desenhar nessa sua pele virgem. Ser o primeiro e
único a te marcar assim. O problema é que...

Não sei se foi a escolha proposital das palavras, ou o tom mais


rouco adotado por Marcus, mas algo em sua fala arrastada
desencadeou ondas de calor pelo meu pescoço, me queimando até
as maçãs do rosto.

— Continua — insisto, sem respirar. Suas carícias perduram pela


minha pele, me desmanchando sob seus dedos.
— O problema é que nunca tatuei outra pessoa. Ou seja, é melhor
que você prossiga com a ideia de recorrer a um estúdio
profissional.

Marcus sobe o olhar para me fitar. Sei que minhas bochechas estão
mais quentes e me forço a reassumir o controle da situação. Não
gosto que perceba o efeito que causa em mim.

— Quer saber? Mudei de ideia. — Puxo o meu braço, prendendo o


cabelo em um rabo alto. — Acho que me deixei influenciar pelos
seus desenhos, que são incríveis, mas...

Encosto em uma serpente sinuosa que recobre sua clavícula. A


tatuagem vai do ombro à base do pescoço, subindo em direção ao
Pomo de Adão.

Mordo a boca para não sorrir ao ver sua pele ficar arrepiada, os
pelinhos loiros mais claros por conta da luz fluorescente do teto.

— Mas...? — ele quer saber.

— Isso não é para mim. Tatuagem tem que combinar com o estilo
da pessoa e eu sou uma bailarina. Bailarinas usam collants e
sapatilhas, não tatuagens. Não sei se é verdade, mas já ouvi falar
até que as escolas mais tradicionais não selecionam garotas que
tenham tatuagens aparentes. Enfim, não quero correr o risco de me
prejudicar à toa.
— Você leva mesmo a sério o lance do ballet, Hannah? Cursa
faculdade de dança?

— Sim. Sou bailarina profissional, formada e tudo. Mas a faculdade


de dança não é para mim... — explico enquanto ele endireita o
corpo na cama, puxando o lençol sobre a barriga. Não sei se é coisa
da minha cabeça ou não, mas talvez eu tenha tido um vislumbre de
uma ereção bem ali. — A teoria não me atrai... É uma chatice sem
fim.

— E o que a atrai na dança?

Marcus me encara com tanta expectativa que me sinto impelida a


falar a verdade.

— Como posso explicar... — Fecho os olhos, me visualizando em


um estúdio de ballet. — Quando eu danço, é como se o meu corpo
ganhasse vida própria. Movimentos silenciam pensamentos.

— "Movimentos silenciam pensamentos." — Marcus assente com a


cabeça, sem olhar para mim. — Essa frase daria uma boa
tatuagem.

Seu perfil é muito hipnotizante, prendendo meu olhar. As


sobrancelhas mais escuras em contraste com o cabelo platinado, o
nariz arrebitado, os lábios carnudos bem desenhados.
— Desculpe, acho que não consigo colocar em palavras algo tão
visceral. Não sei se pode me entender. — Me levanto e passo a
caminhar pelo quarto, subitamente inquieta. — Em resumo,
Marcus... Dança é liberdade, pura e simples.

— Eu entendi perfeitamente, obrigado por explicar. — Ele sorri, sem


mostrar os dentes. — Me sinto assim quando faço as tatuagens. É
um dos raros momentos em que consigo silenciar a mente. E, pela
quantidade de tatuagens que tenho, você pode deduzir quão fodida
é a minha cabeça.

Duas batidas na porta atraem nossa atenção.

— Hora do jantar. — Uma enfermeira de meia-idade entra no quarto,


empurrando um carrinho com uma bandeja. — Vou lhe ajudar a se
sentar, rapaz.

— É melhor eu ir embora... — murmuro, pegando a minha bolsa.

— Não quer jantar com o seu namorado? — a enfermeira pergunta.


— Ele estava tão tristinho... Parece muito mais disposto agora, na
sua companhia. Posso pedir outra refeição para você, mocinha.

— Nós não somos namorados — disparo ao virar as costas,


andando depressa na direção da porta. — Preciso ir.

De repente, me sinto muito desconfortável, aflita para ir embora.


Quando pouso a mão na maçaneta, me obrigo a me despedir, sem
me virar de frente para Marcus.

— Até amanhã. Às dez estarei de volta. Boa noite.

— Boa noite, Hannah. Muito obrigado por tudo.

Não sei explicar o porquê, mas um pressentimento esquisito me


gela os ossos. Marcus precisava soar tão... Tão agradecido?
Trêmula da cabeça aos pés, não tenho coragem de olhar nos olhos
dele antes de deixar o quarto.
E eu só quero te dizer
Preciso de todas as forças para não ligar
I Almost Do ~ Taylor Swift

HANNAH MÜLLER

Ao retornar ao Pronto-Socorro na manhã seguinte, me sinto


levemente tensa, com o céu nublado pesando sobre a minha
cabeça. Será que vai dar tudo certo?

Estou acompanhada por David, o segurança mais antigo do meu


pai. Ele é um engravatado do tamanho de um armário que poderia
ser sósia do ator Jason Statham.
Quando desço do Mercedes Benz preto, descubro que Marcus já
está me aguardando do lado de fora do hospital, vestido com uma
roupa absurdamente esquisita.

— O que é isso? — Dou risada, apontando para a camisa com


listras em cores aleatórias, a barra por dentro da bermuda creme
social.

— Bom dia para você também, Hannah.

Marcus caminha devagar na minha direção. Ele está mais sério,


talvez até sem graça, não sei dizer ao certo.

— As minhas roupas foram para o lixo. A camiseta foi cortada assim


que dei entrada na Emergência, a bermuda manchou de sangue —
explica, os olhos fixos nos meus. — Um vizinho veio me visitar mais
cedo e trouxe umas roupas dele para mim. É o que temos para hoje.

— Seu vizinho passou pelo túnel do tempo? Veio direto dos anos
60? Não é possível...

Solto uma gargalhada depois da outra, observando Marcus de baixo


a cima. Ele parece estar fantasiado para uma festa brega, com as
peças largas demais.

Não consigo parar de rir, tanto que meus olhos se enchem de água.
— Acabou? — Ele arqueia uma sobrancelha. — Fico feliz em ver
que lhe entretenho tanto — completa mal-humorado.

— Acabou, John Travolta. Pensando bem, as roupas meio que


combinam com você.

— Já sei. Assim como eu, elas...

— São do século passado. Isso! Vamos? — Aponto para o carro


atrás de mim.

David está parado ao lado da porta, empertigado como um poste.

— Marcus, David. David, Marcus. — Eu os apresento rapidamente,


sem maiores explicações.

Um cumprimenta o outro com um breve aceno de cabeça.

Sem dizer uma única palavra, David abre a porta de trás do


Mercedes para nós. Marcus me dá passagem e depois se senta do
meu lado, parecendo desconfortável, os dedos hesitantes tocando
no assento de couro preto. Sei que o interior do carro é imponente,
capaz de impressionar as pessoas.

Apoiando uma mão em seu ombro, aproximo o rosto para cochichar


em seu ouvido. Tento não me abalar pelo perfume limpo de
sabonete, masculino e quente, perto demais do meu nariz.
— Escuta... No seu prédio, vou pedir para o David nos escoltar até o
apartamento. Depois, ele vai levar a sua moto para a minha casa e
nós dois ficamos com o carro. Preciso combinar umas coisinhas
com você, mas não quero fazer isso com plateia, tudo bem?

— Tudo bem. — Marcus assente com a cabeça e eu me afasto.

Seguimos em silêncio por todo o trajeto até a periferia, os olhos dele


perdidos na paisagem que passa pela janela.

David estaciona o carro e espia ao redor, as sobrancelhas franzidas,


certamente estranhando o aspecto do bairro. Por sorte, é discreto o
bastante para ousar tecer qualquer comentário.

Nós três entramos no prédio e nos dirigimos ao elevador. Ainda bem


que hoje o aparato antigo está funcionando... Torço para não nos
depararmos com os marginais que feriram Marcus e felizmente não
cruzamos com ninguém no caminho.

David e eu ficamos parados junto à porta do apartamento enquanto


Marcus separa seus pertences. Ele enfia uma porção de roupas em
uma mala, além de duas dezenas de discos de vinil. Por último,
pega uma pequena maleta que pressuponho ser o kit de tatuagem.

Em menos de dez minutos, deixamos o local.

Quando estamos cruzando o estacionamento, me viro para o


segurança:
— David, você pode levar a Honda para casa? Meu amigo ainda
não pode pilotar a moto por conta dos pontos do ferimento. Eu dirijo
o Mercedes.

— Ok, senhorita — responde simplesmente, pegando a chave da


moto da mão de Marcus. O bom é que David quase nunca faz
perguntas.

Em seguida, o segurança destranca o carro, abre o porta-malas e


guarda a bagagem de Marcus ali. Quando me passa a chave do
Mercedes, eu abro um sorriso para ele.

— Muito obrigada, David. Pode ir na frente, não precisa nos esperar.


Não tem perigo agora. — Indico uma viatura policial estacionada do
outro lado da rua, limitando o trânsito em uma operação de blitz.

— Certo. Até já, senhorita.

Apesar de não parecer muito satisfeito, o homem não discute o


assunto. Ele somente pega o capacete, liga a moto e dá a partida,
indo embora.

Abro a porta da frente do carro e me sento atrás do volante. Marcus


entra pelo outro lado, ocupando o banco do passageiro.

— Ainda não acredito que vou mesmo para a sua casa... — Ele
balança a cabeça, prendendo o cinto de segurança. — Tem noção
do quanto isso é surreal?

— Tenho. — Dou um sorriso para ele. — Estou até com frio na


barriga... Agora, escuta a história que bolei para explicar a sua
estadia para a minha família.

— Lá vem merda... — Ele sorri de volta, coçando a nuca. — Devo


ter medo?

— Nadinha de medo! — Me remexo no banco, mais animada. —


Vou ligar para os meus pais e explicar que um dos bailarinos da
equipe precisa se hospedar por um tempo em casa. Porque mora
longe e a rotina de treinos está mais intensa, por ser final de ano.
Eles não vão achar ruim. Afinal, os outros dois bailarinos do Premier
são gays e...

— Vou ter que encenar que sou gay para os seus pais?! — Ele
arregala os olhos de uma maneira cômica, me fazendo cair na
risada.

— Não! — Me esforço para parar de rir. — Escuta, é sério! É uma


questão complexa que envolve generalizações, preconceitos e
quebra de estereótipos. Olha só... Muitas pessoas pensam que a
prática do ballet faz o garoto “ficar afeminado”. Entre aspas, tá?
Mas, não. Não tem nada a ver. Mesmo porque os movimentos mais
suaves do ballet, como aqueles feitos com os braços, são próprios
das meninas.
— Tem isso de meninas e meninos? — pergunta confuso.

— Sim! Em uma explicação simplista, podemos dizer que as


meninas desenvolvem os movimentos suaves enquanto os meninos
focam nos movimentos precisos. São coisas completamente
diferentes, compreende? Tanto que poderia até existir o “ballet
feminino” e “ballet masculino”.

— Mas você mesma disse que os bailarinos do seu grupo são


gays...

— Você quer saber se todo bailarino é gay? A resposta é não.


Existem, sim, bailarinos héteros, casados e com filhos. Mas, como
existem muitos bailarinos gays, as pessoas acabam generalizando,
acreditando equivocadamente que todo garoto que faz ballet é gay.
Entendeu?

— Sim. Mas os seus pais...

— Relaxa! Você não vai precisar encenar nada para os meus pais.
Os dois estão viajando, lembra? Só vai ter que confirmar que é
bailarino, se os funcionários fizerem perguntas, e não tocar em mim
na frente deles. É o único jeito, Marcus! Meus pais não deixariam
um cara aleatório passar um tempo em casa comigo. Mas se for um
bailarino do Premier... Sei que eles não iriam se opor. Vai ser
tranquilo! O que acha?
— Não sei... — Morde a bochecha, me espiando de soslaio. — Um
bailarino, Hannah? Porra... Não vai ser fácil.

Marcus parece realmente preocupado.

Para deixar o clima mais leve, ligo o painel do Mercedes e escolho a


playlist dos Stones no celular, sincronizando os aparelhos.

Wild Horses passa a tocar nas caixas, preenchendo o carro. Sei que
Marcus aprovou a escolha, porque sorri discretamente de canto,
cantarolando a letra junto com a música.

Aproveitando a chance, não perco o tempo e dou o próximo passo.

— É tão difícil assim fingir desinteresse por mim? — Seguro seu


queixo e puxo seu rosto, sentindo a barba por fazer nas pontas dos
meus dedos.

— Quem disse que eu tenho interesse por você? — Com os olhos


azuis faiscando, Marcus se livra do meu toque, remexendo o rosto
para os lados.

— Eu me lembro bem da sua ereção pesada na minha bunda... —


Sorrio com uma inocência mais falsa do que uma nota de três reais.
— Só que não esqueci que me rejeitou. Por isso, decidi que não iria
mais te provocar. Aliás, caso não tenha notado, desde aquela noite
não dei mais em cima de você. Nos tornamos apenas amigos,
apesar da tensão sexual que grita entre nós. Pelo jeito, você prefere
assim. Não é?

Marcus parece desorientado diante das minhas palavras. Ponto


para mim.

— O que eu prefiro? Sei lá, porra... Você me confunde, Hannah. —


Esfrega o rosto com as duas mãos, jogando a cabeça para trás.

— Por quê? — Cruzo os braços, ainda com a minha cara de


inocente, mordendo o lábio inferior.

Ele leva um minuto inteiro para endireitar a postura e focar o olhar


em mim.

— Porque você me dá abertura. Não sou burro para não perceber.


Mas sei que esconde alguma merda... — Conecta os nossos olhos
com intensidade, como se tentasse enxergar a minha alma. — E
tampouco sou burro para ignorar e ir em frente, me fodendo no final
da história.

Meu Deus… Foco, Hannah! Mantenha o controle da situação!

— Não seja paranoico! — Dou risada, sem desviar os olhos. — Se


eu te dou abertura é porque sei que seria um tesão ficar contigo.
Mas, já que não quer experimentar, não vou ficar me humilhando.
Enfim, não vai ser difícil para você manter as mãos longe de mim
diante dos funcionários da casa. Se nem a sós você me toca...
Em câmera lenta, desço uma mão pelo decote da minha regata,
passando os dedos entre os seios.

— Caralho, garota... — Acompanha os movimentos dos meus dedos


com os olhos. — Você está me torturando.

— Só uma vez, vai... Só um gostinho, Marcus. Para a gente matar a


curiosidade. — Me ajoelho no banco do motorista, fazendo menção
de ir para cima dele. — Prometo que não insisto mais depois de
hoje. Depois de sentir os seus lábios nos meus.

Marcus engole em seco, o corpo paralisado.

Em um gesto calculado, puxo a sua mão direita, a colocando sobre


o meu seio.

Sorrio quando ele aperta a carne com vontade, esfregando o mamilo


com o polegar, me provocando por cima do tecido da blusinha.

Empino os peitos para a frente, facilitando o acesso.

Marcus continua me tocando, mas não é com delicadeza, pelo


contrário.

É um toque bruto, duro, quase irritado.


Fecho os olhos, me desmanchando quando sua mão esquerda
agarra meu outro seio. Enquanto massageia os dois, sua respiração
fica mais errática, o hálito quente batendo na minha pele.

Quando sua mão direita me solta, reabro os olhos, prestes a


reclamar.

Quase tenho um orgasmo ao vê-lo lambuzar dois dedos tatuados


com a saliva, entrando e saindo pelos seus lábios carnudos.

Solto um gritinho quando Marcus amassa um seio contra o outro,


metendo o dedo do meio entre eles. Molhado e quente, vai subindo
e descendo, deslizando para cima e para baixo, me matando de
tesão.

Pulando o câmbio, me ajoelho no banco do passageiro entre as


suas pernas.

— Cai de boca neles? — peço em um sopro de voz, levando as


mãos ao seu pescoço úmido de suor. A pulsação da sua carótida
está tão descontrolada quanto os meus batimentos cardíacos.

Marcus não responde nada. Em um movimento ágil, ele arregaça a


minha blusinha, descendo a peça junto com as taças do sutiã.

Os seios saltam livres, pesando sobre as costelas. Desço os olhos e


enxergo a pele sensível, marcada e avermelhada ao redor dos
bicos.
— Porra... — sibila, olhando para eles. — São perfeitos...

Marcus lambe a boca, brincando com os mamilos entre os dedos.


Prendendo a pontinha com o polegar e o indicador, aperta, puxa e
retorce, fazendo minha vagina pulsar, a lubrificação escorrendo
pelas coxas.

— Ai... Você está me torturando — gemo, esfregando as pernas.

Seus toques são precisos, deixando claro o quanto tem experiência


com as mulheres.

Preciso tocá-lo também.

Descendo as mãos pelo seu peito, abro os botões da sua camisa,


me deleitando com a maciez da sua pele sob meus dedos.
Acompanho os desenhos das tatuagens pelas costelas, deslizando
até o abdômen firme.

Gememos juntos quando alcanço o cós da sua bermuda. Posso ver


que ele está completamente duro sob o tecido claro, quase
explodindo o zíper.

Marcus remexe o corpo e se livra dos meus toques antes de


começar a falar:
— Eu não chuparia os seus peitos antes de tudo. — Agarra a minha
nuca, soprando as palavras contra os meus lábios. — Existe uma
ordem universal, Hannah. Primeiro, eu devoraria a sua boca.
Depois, pescoço... ombros... colo... Até chegar aqui. — Passa um
dedo pela base do seio, me arrepiando. — Depois, desceria mais e
mais, provando todo o seu corpo, até cair de boca na sua boceta. Te
faria gozar na minha língua e lamberia cada gota, me esbaldando
com o seu orgasmo. Já estou sentindo daqui o cheiro delicioso da
sua lubrificação... E sei que o gosto seria ainda melhor.

Sua voz rouca, trabalhando em conjunto com os seus dedos no meu


mamilo, vai deixando tudo ainda mais intenso. Com o corpo inteiro
formigando em antecipação, passo a imaginar cada cena lasciva
que ele descreve.

E o mais assustador é que… Mesmo que ele não tenha me tocado


lá embaixo, já me sinto absurdamente no limite, a um passo de
gozar.

De repente, Marcus leva as duas mãos ao meu rosto.

Ele me encara com os olhos azuis indecifráveis e depois fecha as


pálpebras, me puxando para si. Respirando fundo, dá um selinho
demorado nos meus lábios.

Não abre a boca, não usa a língua. Ainda assim, dispara ainda mais
meu coração, que parece querer saltar pela garganta, me
ensurdecendo com a pressão que entope os ouvidos.
— Mas não vai rolar... — murmura, separando os nossos rostos. —
É perigoso ficar parado aqui, vamos embora.

Como assim? Ele quer parar? Não, não pode ser. Impossível. Deve
apenas estar com receio depois daquele ataque que sofreu...

— Ei... Não tem perigo. Os vidros são escuros, ninguém veria nada
— argumento, apontando para as janelas. — E com a Polícia lá do
outro lado, não ousariam nos assaltar e...

— Mesmo assim. — Marcus me corta. — Um Mercedes chama a


atenção, mais cedo ou mais tarde. Precisamos ir embora. —
Bagunçando os cabelos, esboça um sorriso torto. — E você
prometeu que não insistiria mais depois que sentisse os meus lábios
nos seus. Pronto, já sentiu. Agora me deixe em paz.

Eu o encaro, absolutamente atônita.

Em dois segundos, a surpresa dá lugar à indignação. Bufando, volto


a sentar no banco do motorista. Me tremendo de raiva, ajeito a blusa
e passo as mãos pelos cabelos.

Não posso acreditar que o diabo me enrolou direitinho... Sim, ele fez
isso.

Ponto para ele.


Por que você não vê
O que está fazendo comigo
Suspicious Minds ~ Elvis Presley

MARCUS VENTURINI

A casa de Hannah não é uma "casa". É a porra de uma mansão.

Me esforço para manter a boca fechada diante daquele cenário


ostensivo.

Há um enorme jardim bem cuidado ao redor de uma construção


imponente de três andares, logo depois de um estacionamento
particular digno de comércio de luxo — com dez ou doze vagas —,
onde ela estaciona tranquilamente o Mercedes ao lado de outros
carros importados.

— Agora que fizemos seu cadastro na portaria vai poder entrar e


sair do condomínio quando quiser. Imagino que David já tenha
cadastrado a moto. Todas as pessoas e todos os veículos devem
ser identificados — explica distraída, espiando no retrovisor para
manobrar o veículo.

— Ok — murmuro, sem me virar para ela.

Nós quase não conversamos depois que deixamos a minha rua. Sei
que aborreci a garota ao lhe dar aquele corte.

Mais um.

Hannah não me inspira confiança. Aceitei vir para cá por absoluta


falta de opção — e por ser preferível lidar com ela do que com os
"noias" daquele prédio —, mas tenho que manter os dois pés atrás
até descobrir que merda está acontecendo entre nós.

Ao contrário das patricinhas com quem estou acostumado a lidar —


que só me procuram para as fodas agressivas, deixando isso bem
claro desde o primeiro momento —, Hannah se esforça para mostrar
um interesse que vai além do sexo. Com conversas sobre músicas,
hobbies e o caralho.
O que ela quer comigo? Não faço ideia. Continua martelando na
minha cabeça a certeza de que nenhuma garota como ela se
envolveria para valer com um cara fodido como eu.

Hannah parece se preocupar comigo. Só não sei até que nível a


preocupação é real. Pelo menos, foi a impressão que tive quando a
recebi no Pronto-Socorro.

Mais cedo, somente Seu Alfredo tinha mostrado interesse em me


visitar e não posso negar que me surpreendi com a aparição dela.
Sim, Hannah me surpreende.

Mas o mais foda é a química... Tão forte que é quase concreta,


deixando o ar entre nós com a eletricidade crepitando, viva e
latente, como uma tempestade prestes a eclodir.

Durante aquela provocação no carro, meu sangue correu como


fogo, fazendo meu ferimento latejar nas costas e meu pau pulsar na
bermuda.
Precisei de um autocontrole do caralho para não ceder à tentação,
dando a Hannah o que queria.

O que nós dois queríamos.

Enfim, a garota me confunde demais e não sei o que fazer quanto a


isso. Preciso me manter tranquilo. Na minha. Sem dar muita
liberdade a ela.
Mas, morando juntos? Não vai ser nada fácil.

Ao descermos do carro, percebo o olhar de Hannah vagar para o


outro lado da rua. Ela franze a testa por um milésimo de segundo,
parecendo desconfortável.

Quando olho na mesma direção, encontro William descendo de um


carro luxuoso, acompanhado por dois homens grisalhos com
aparência de estrangeiros. Com cabelos e pele muito claros,
parecem suecos e noruegueses ou oriundos de qualquer outro país
minúsculo do norte europeu.

— Lembra do William, Marcus? — Hannah sussurra para mim. —


Aqueles são os pais dele, Liam e Sebastien. Como pode concluir,
são um casal homoafetivo. Will é adotado. Estou já avisando para
que você não dê nenhum fora.

Ao mesmo tempo que me confidencia as informações, acena


educadamente para os três, que entram na mansão em frente ao
carro deles. Tão imponente quanto a de Hannah.

— Obrigado. São estrangeiros?

— Sim, são dinamarqueses, se não me engano. Mas estão há


muitos anos no Brasil, fundaram a "Gerard Lambert" logo que
chegaram. Conheci William aqui no condomínio, ainda na infância.
Aliás, todos os meus amigos que foram ao Bulldog comigo naquela
noite moram aqui.
— "Gerard Lambert"?! — disparo espantado. — A "GERARD
LAMBERT"?!

— Sim! Conhece?

— Porra... — Abro os dois braços. — É a maior empresa de


publicidade e propaganda do país, Hannah! Todo mundo da área a
conhece!

— É verdade, você é veterano na ESPM — comenta casualmente,


pescando a chave da casa na bolsa.

"Veterano da ESPM"? Caralho... Como ela sabe? Mais uma coisa


para foder com a minha cabeça.

— Hannah... — chamo e ela congela.

— Hum? — Em câmera lenta, ergue o rosto para me olhar, o


sangue fugindo das suas bochechas.

Certo. Ela se tocou que fez besteira sozinha, mas ainda assim faço
questão de dizer:

— Eu nunca te falei que estudo na ESPM.

Eu nunca falo às garotas que estudo lá. Depois que fiz a burrada de
ficar com uma caloura da faculdade que me deu uma puta dor de
cabeça, evito misturar mulheres e estudos.

— Marcus... — diz com a voz hesitante. Seus olhos cor de mel


estão presos aos meus e consigo praticamente escutar as
engrenagens do seu cérebro trabalhando a todo vapor.

— É o seguinte. Vamos entrar, sentar e você vai me contar toda a


merda que está me escondendo. E é bom que fale a verdade. Se eu
não me convencer de que está sendo absolutamente sincera,
acabou. Vou embora e nunca mais permitirei que se aproxime de
mim. Combinado? Já disse que não tenho tempo nem cabeça para
joguinhos.

Hannah assente e baixa o olhar, suspirando fundo.

Em seguida, me dá as costas e abre a porta da casa. Entramos em


um hall bem-iluminado, ostentando luxo de cima a baixo. Desde os
lustres de cristais no teto até os tapetes elegantes no chão.

Eu a sigo em silêncio na direção de uma escadaria bonita, os


degraus ladeados por corrimões dourados.

Subimos lado a lado e pegamos o corredor à esquerda.

De repente, um detalhe me chama a atenção.

— O que aconteceu com as paredes? — Aponto para as marcas


escuras em formatos retangulares que contrastam com a tinta
branca. — Estão trocando os quadros?

— Acho que sim... — Hannah dá de ombros. — A governanta


sempre mexe na decoração quando os meus pais viajam.

Andamos mais um pouco e ela indica duas portas brancas


posicionadas lado a lado.

— Temos dois quartos de hóspedes, ambos são suítes. Qual deles


você prefere? — Ela ainda continua sem jeito, mal olhando para
mim.

— Tanto faz, não sou exigente. Não sei nem se ficarei aqui, de
qualquer forma. Vai depender da nossa conversa.

— Esse é o melhor... — Hannah escancara a porta do segundo


quarto. — Tem varanda, você pode fumar com mais liberdade.

— Obrigado.

Observo o ambiente bem decorado, com os objetos em tons claros


e uma grande cama de casal no centro. Por trás das cortinas
transparentes estão as portas duplas da varanda. Já na parede
oposta existe uma outra porta que deve ser a do banheiro.

— Marcus... — Hannah pigarreia, sentando-se na beirada da cama.


— Sim, eu já sabia que você cursava Publicidade e Propaganda na
ESPM porque uma amiga... — para de falar e morde a boca.
— Uma amiga...? — incentivo, me sentando ao lado dela.

— A Júlia, sabe? Aquela ruivinha que foi comigo ao Bulldog. Ela te


reconheceu de uma festa do seu curso. Talvez tenham sido as
tatuagens... — Solta uma risadinha fraca, olhando para os próprios
pés. — Só não comentei nada porque não queria que pensasse que
estou... Sei lá... Investigando a sua vida particular.

"Reconheceu de uma festa"? Estranho a informação, coçando a


nuca devagar.

— Eu não costumo ir a festas da faculdade. Quando foi? Tem mais


detalhes?

— Nas férias do meio do ano. No final de julho... Uma festa julina.

— Ah... Sim. Eu fui. — Balanço a cabeça para cima e para baixo,


me lembrando de um acontecimento específico que rolou naquela
noite.

Antes eu não tivesse ido. Se soubesse que teria as consequências


que teve...

— Satisfeito? — Hannah devolve, se levantando da cama.

— Ainda não. — Seguro seu pulso. — Mas é esquisito... Eu não me


lembro da tal da Júlia. Ela é da ESPM?
— Não, mas ela foi à festa com outra amiga nossa, que é da ESPM.
Satisfeito agora ou quer continuar com o interrogatório? Bem... —
Puxa o braço para fugir do meu toque e alisa a roupa, alinhando a
barra da blusinha. — Sinta-se à vontade. Naquela cômoda tem
toalhas de banho. Estão na última gaveta. As outras gavetas estão
vazias, você pode colocar as suas coisas nelas. Se precisar de mim,
o meu quarto é a última porta à direita. Tchau.

Sua voz está levemente trêmula, denotando nervosismo. Eu a deixei


nervosa? Que milagre!

Quase dou um soquinho imaginário no ar, comemorando o feito.


Mas, quando Hannah me encara com os olhos cheios de lágrimas...
Porra... A culpa me bate com tudo.

Sou o maior mau caráter do mundo.

Minhas inseguranças fodem comigo e, de tabela, com quem se


aproxima de mim.

Será que ela não tem razão em me acusar de "paranoico"?

A garota me ofereceu a própria casa para me tirar daquele meu


prédio podre e eu... Em vez de apenas me mostrar agradecido, fico
a metralhando com perguntas, desconfianças e acusações.
— Hannah... — Dou dois passos na sua direção e alcanço sua mão.
— Eu sei que o clima entre nós dois está uma merda. E admito que
sou um cara complicado. Tenho problemas de confiança... Que não
são de hoje e que não são por culpa sua. Desconfio até da minha
própria sombra! Enfim, me desculpe. Você está sendo tão gentil
comigo...

— Deixa para lá, Marcus. Vamos recomeçar.

De repente, Hannah me abraça apertado, enfiando o rosto no meu


pescoço. Sua respiração quente resvala na minha pele, disparando
meus batimentos.

Mexido com aquele gesto — simples, porém, raro em minha vida —


somente envolvo sua cintura com os braços, sem querer soltá-la tão
cedo.

— Vamos. Vou tentar me controlar.

Dou um beijo no topo da sua cabeça, sentindo os seus cabelos


macios e perfumados contra os meus lábios.

Continuamos abraçados em silêncio até que, sem querer, ela me


aperta com mais força, bem em cima do ferimento.

— Merda... — Me afasto, levantando a camisa para avaliar o


curativo.
Legal. O corte voltou a sangrar, empapando a gaze.

— Me desculpe, Marcus! — Hannah leva as mãos à boca. — Vem


comigo até o banheiro, tem um kit de primeiros socorros lá na
gaveta.

Ela sai andando apressada na minha frente, me deixando sozinho.


Porém, antes que eu dê um passo, sinto um filete de sangue
escorrer pela pele, tingindo de vermelho o cós da bermuda que
estou vestindo.

Bermuda clara de linho que, na verdade, é do meu vizinho.

Sem pensar duas vezes, arranco a camisa, a bermuda e me livro


rapidamente dos tênis All Star pretos. Não quero manchar mais
nada de sangue por hoje.

Só depois me dou conta de que Hannah está parada ao lado da


porta do banheiro, os olhos arregalados ao me ver apenas com a
cueca boxer preta. Porra...

— Me desculpe, tirei as roupas para não sujar — explico. Com uma


mão pressionando o ferimento na lateral do tronco, tento estancar o
sangramento.

— "Me desculpe"?! — Ela solta uma risada nervosa, quase


gargalhando. — É uma visão e tanto... Pode ficar sempre assim na
minha frente. Mas só vou olhar, ok? Combinei de te deixar em paz e
vou cumprir. Nunca mais vou tomar a iniciativa contigo. Seremos
apenas amigos. Best friends. Vou te contar das minhas trepadas
com os outros caras, podemos até sair de casal. Eu me pegando
com o fulano e você com a beltrana. Então...

Hannah está agitada, ainda tagarelando sem parar. Não consigo


assimilar mais nada porque umas malditas palavras ecoam na
minha cabeça, me desconcentrando:

“Vou te contar das minhas trepadas com os outros caras, podemos


até sair de casal.”

Pois é... Não vou negar que a ideia me incomoda.

Um mal-estar que não identifico aperta meu peito, me agoniando.

Ciúmes, talvez? Torço para que a resposta seja não.

Torço desesperadamente para que seja não.

— Sei. — Esboço um sorriso fraco, me dirigindo ao banheiro.


Hannah vem logo atrás. — Duvido. Daqui a pouco você volta a me
tentar...

— Não. Só vou te olhar. E comentar. Aliás, posso comentar, não


posso? — Sua voz nas minhas costas soa risonha.
— Pode. — Girando o corpo de lado, observo o corte pelo espelho
da pia. Pelo jeito, nenhum ponto estourou. Menos mal.

Descarto o curativo sujo de sangue e pego uma gaze do kit de


primeiros-socorros que está sobre a bancada. Molhando com água
gelada, pressiono o quadrado branco contra o corte.

— Vamos lá... — Hannah começa, parada atrás de mim. — Primeiro


comentário: sua bunda é perfeita. É tatuada também?

Pelo reflexo do espelho vejo seus olhos grudados nas minhas


nádegas.

Abafo um sorriso, incrédulo com a cara de pau da garota.

— Não. Eu não conseguiria tatuar ali atrás... E não deixaria um


marmanjo tatuador mexer na minha bunda.

Ao afastar a gaze molhada da pele, com alívio percebo que o


ferimento parou de sangrar. Pronto. Lavo as mãos com água e
sabão e as enxugo com a toalha, prestes a deixar o banheiro.

Mas Hannah tem outros planos…

— Ui... Masculinidade frágil? — Ela me circula para se sentar em


cima da bancada da pia, me fitando com o olhar brincalhão.
Seus shorts jeans são curtos e deixam as coxas expostas, atraindo
meu olhar.

— Nada disso. Sei muito bem do que gosto. — Sem pensar, me


posiciono em pé entre as suas pernas abertas, colocando uma mão
em cada joelho.

— Jura, Marcus? — Ela mantém as mãos na bancada ao lado dos


quadris. — Me fale mais a respeito. Do que você gosta e não gosta.

Sua voz sussurrada aquece o ar ao nosso redor, deixando o clima


absurdamente lascivo.

Afundo os dedos nos seus joelhos, notando seu peito subir e descer
depressa, os seios delineados sob o tecido da blusinha. Ao me
lembrar das minhas mãos sobre eles, meu pau lateja forte em
resposta.

Hannah passeia com o olhar pelo meu rosto, dos olhos à boca, ida e
volta. Mesmo cumprindo o combinado — sem me tocar e sem me
pedir que a toque —, eu me sinto mexido pra caralho, me segurando
por um fio para não a agarrar.

Soltando seus joelhos, deslizo devagar as mãos pelas coxas macias


até alcançar a barriga. Sua respiração fica ainda mais entrecortada,
as lufadas escapando pelos lábios entreabertos.

— Por que você faz isso comigo...? — rosno, apertando sua cintura.
— Eu não estou fazendo nada. — Sorri como uma diaba,
levantando as mãos no ar. — Não tenho culpa se o seu pau fica
duro só de chegar perto de mim... — Desce os olhos para o volume
na minha cueca. — Aposto que ele está pulsando de tesão, assim
como a minha boceta... Estou toda melada, Marcus.

Então se remexe, desce da pia e caminha na direção da porta.

— Mas best friends não se pegam. Por isso, me dê licença. Vou


brincar sozinha no meu quarto. Tchau.

Sopra um beijo e desaparece, me deixando completamente louco.


Porra…
Está apavorado de olhar para baixo
Porque se você se atrever, verá os olhos
De todos que queimou para chegar ao topo
Karma ~ Taylor Swift

HANNAH MÜLLER

Ao entrar no meu quarto, vou direto para o banho em uma tentativa


afoita de apagar o fogo que me consome. Minha nossa...

Naquele banheiro do quarto de hóspedes, estive tão perto de


Marcus, e ao mesmo tempo tão longe, que senti todo o meu corpo
acendendo, implorando por ele.

Preciso de sexo. Preciso de Daniel.


O problema é que estou com receio de procurá-lo. Aposto que o
meu amigo vai ficar puto quando descobrir que chamei Marcus para
morar aqui.

Não por ciúmes, afinal, o nosso "relacionamento" — se é que o que


temos pode ser chamado assim — é casual, sem exclusividade.

Mas sei que ele não vai gostar porque, ao trazer Marcus para cá,
acabei com a festa que seria ter a casa só para a gente durante a
viagem dos meus pais.

Ontem mesmo, quando esteve aqui, Dani tocou no assunto da


viagem deles.

“A casa vai ser só nossa por dois meses, Nana?”, quis saber
enquanto descartava a camisinha usada no banheiro, conversando
comigo através da porta aberta.

Fiz que sim com a cabeça, sem forças para verbalizar nada. Fitei
seu corpo definido, resultado da dedicação à academia, ainda
entorpecida com o sexo de minutos antes.

Bagunçando os cabelos castanhos, ele me olhou por cima do ombro


para falar:

“Perfeito, apenas nós dois… Vou te foder em todos os cômodos.”


Sorri em resposta, disfarçando minha apreensão. Não tive coragem
de contar que já tinha combinado com Marcus a mudança dele para
cá. Preferi enrolar o meu amigo por um tempinho, postergando a
conversa chata para outra hora.

Mas já era... Will me viu com Marcus hoje cedo e já deve ter ido
fofocar para Daniel. Homens são mais fofoqueiros do que mulheres
e ninguém me convence do contrário. Nunca conseguem segurar a
porcaria da língua.

E por falar em não segurar a língua... Ainda não acredito que quase
estraguei tudo. Deixei escapar a Marcus que sabia que ele estudava
na ESPM e tive que vir com uma desculpa improvisada que não
envolvesse o nome da Sam.

Parece que deu certo.

Só que a minha felicidade durou pouco… Quando o homem me


pediu desculpas por ter me colocado contra a parede, dizendo que
era um "cara complicado" e que tinha "problemas de confiança", me
desestruturou toda, quase me fazendo chorar.

Para piorar, quando nos abraçamos, eu queria sentir mais do seu


corpo e o apertei mais forte, me esquecendo do machucado, o
fazendo sangrar. Me senti mal pra caramba, como se o estivesse
ferindo ainda mais... Emocional e fisicamente.
Tive que repassar mil vezes as atitudes canalhas e as falas escrotas
de Marcus para Sam, os choros compulsivos dela — mais
fragilizada do que nunca por estar grávida —, a porcaria da situação
caótica causada pela falta de caráter dele.

Preciso manter o foco no plano.

Após sair do banho, visto um top fresquinho e um shortinho jeans e


me jogo na cama, com o celular em mãos. Quase paro de respirar
quando enxergo na tela dez ligações perdidas de Samanta.

Com os dedos tremendo, ligo de volta para ela. A minha amiga


atende a chamada no primeiro toque, exclamando com a voz
estridente:

— Nana! Pelo amor de Deus, me conta tudo! O que a moto do


Marcus está fazendo na frente da sua casa?!

Droga. Era óbvio que ela reconheceria a Honda só de bater os


olhos.

Respirando fundo, me preparo para o embate que eu sabia que


ocorreria, mais cedo ou mais tarde. Só não sabia que seria tão
cedo.

— Calma, Sam... Você não deve ficar nervosa com o bebê que...

— Fala logo!
— Falo. Pessoalmente. Está em casa? Vou até aí. Você está bem?

Localizada a duas casas da minha, a mansão da família de


Samanta é a maior do condomínio.

— Estou. Acabei de chegar de uma consulta de pré-natal. Tudo


corria bem, até que quase morri do coração ao ver a Honda dele na
sua casa...

— Tá. Em cinco minutos eu chego aí... Beijo.

— Marcus? — Bato na porta do quarto dele.

Nenhuma resposta.

Insisto, abrindo uma frestinha, estranhando o silêncio.

Ele está deitado na cama, de olhos fechados.

— Você está dormindo? Está tudo bem? — Faço a pergunta mais


besta do mundo. Porque, se estivesse dormindo, eu o acordaria
com as palavras.

Ele vira o rosto na minha direção, já com os olhos abertos. As íris


azuis estão mais apagadas. Droga. Será que aconteceu mais
alguma coisa?

— Não. Quer a verdade? Estou apenas tentando sobreviver à minha


própria mente perturbada. Sem celular e sem música para me
distrair... É foda.

Me aproximo devagar e ele bate no espaço vazio do colchão ao seu


lado. Eu me sento na bordinha, mantendo uma distância segura. Ele
continua deitado.

— Assim... — volta a falar. — Acabo pensando em coisas que


preferia não pensar.

— Se quiser podemos ir ao shopping mais tarde e comprar um


aparelho novo — sugiro. — Não dá para ficar sem celular.

— Quem disse que eu tenho dinheiro? E nem adianta se oferecer


para comprar um para mim, Hannah, que não vou aceitar.

Marcus coloca as mãos atrás da própria cabeça. Com os cotovelos


para cima, as tatuagens dos braços se destacam contra o lençol
branco.

— Eu te empresto o dinheiro, você me paga no mês que vem. Vai


sobrar uma grana agora que não tem o aluguel, hein? — brinco e
ele solta um riso sem ânimo.
— Porra... Dois meses sem pagar aquele aluguel "caríssimo" —
debocha. — Realmente, vou ficar rico.

— Não seja mal-humorado! Você está morando aqui, longe


daqueles bandidinhos, com a sua best friend preferida do mundo
inteiro. Sorria! — Me inclino para dar um beijinho na bochecha dele.

A barba por fazer pinica meus lábios e quase levo as mãos a ela,
desejando explorar cada centímetro daquela aspereza com os
dedos.

Marcus abre um sorriso tímido de menino, talvez o primeiro do tipo,


mas rapidamente aperta a boca, disfarçando o "deslize".

— Vou dar uma saída rápida — aviso, me levantando. — Como hoje


é domingo, o almoço fica pronto por volta das duas horas. Ou seja,
daqui a uns quarenta minutos. Venho te chamar para descer, ok?
Tchau.

— E é isso, Sam... Eu trouxe o cara para casa para agilizar o plano.

Estou sentada na cama de Samanta, de perna de índio, enquanto


ela permanece deitada de barriga para cima, de calcinha e sutiã,
deslizando as mãos pela circunferência que deixa seu umbigo
saltado.
Se com menos de seis meses já está assim, imagina com nove...
Coitada.

Não posso nem imaginar a barra que é estar no lugar dela. Ninguém
merece uma gravidez indesejada aos dezenove anos.

— E acha mesmo que vai conseguir fazê-lo confessar tudo? Marcus


é esperto.

— Percebi que ele é esperto, mas estou otimista. Vai dar tudo certo.
— Balanço a cabeça para cima e para baixo. — Assim que eu
conseguir a gravação, a gente mostra tudo para o seu pai e pronto.

O pai de Sam, Dr. Maurício Villa-Lobos, é o reitor da ESPM. O plano


é fazer Marcus confessar que iludiu a filha dele, tirando a virgindade
da menina, quase dez anos mais nova. Que a engravidou e que não
vai assumir o bebê.

Esses fatos, aliados ao sexo nas dependências da faculdade,


certamente farão o Dr. Villa-Lobos dar um jeito de expulsar o
canalha da faculdade.

E uma expulsão no último ano do curso seria sensacional.

Para tanto, a ideia é fazê-lo se derreter por mim, me confidenciando


os fatos, para depois eu acabar com ele. Aceitei o desafio que me
impus, mesmo sabendo que seria uma missão quase impossível.
Fazer o cafajeste se apaixonar.

Que a gente saiba, Marcus nunca namorou, ou sequer se apegou.

Sam me contou que ele já transou com umas vinte garotas da


ESPM — inclusive nas dependências da faculdade —, e depois as
descartou como lixo, assim como fez com ela.

O romance entre eles foi curto, e com final trágico. Os dois ficaram
pela primeira vez na festa julina da ESPM. Dias mais tarde, ela
perdeu a virgindade com ele em um dos laboratórios desativados do
campus. No calor do momento, não usaram camisinha. Repetiram o
sexo mais duas vezes em um motel na Zona Sul. Eu vi os recibos
das pernoites — que inclusive mencionava o veículo em que o casal
deu entrada, uma "motocicleta preta" —, ela os guardou sei lá por
qual motivo.

Pensando bem, eu sei o motivo: pessoas apaixonadas fazem coisas


idiotas.

Por sorte, eu nunca sofri desse mal.

Ao final de tudo, Sam terminou grávida e com o coração partido.


Marcus saiu ileso.

— Mas não quero que você durma com ele, Nana. Me promete? Sei
que você é muito ativa sexualmente, mas… — Passa as mãos pelos
cabelos castanhos, as pontas na altura dos ombros. — Eu ficaria
arrasada. Meu coração burro ainda sofre pelo desgraçado. Droga,
estou derretendo aqui…

Mesmo com o ar-condicionado ligado no máximo ela sofre com o


calor, as bochechas mais rosadas e rechonchudas por conta do
ganho de peso da gravidez.

— Prometo, Sam. Só quero ferrar com ele. Mesmo porque estou


bem tranquila quanto a sexo... Dani supre todas as minhas
necessidades, você sabe.

— Que bom... E que inveja, amiga! — Ela dá risada, sentando-se


com esforço. — Já eu estou em uma seca das brabas... Você tem
visto o Dani com bastante frequência?

— "Bastante frequência", não. Durante a semana ele fica um


tempão na academia, além da faculdade e do estágio. Não sobra
muito tempo para a gente se ver. — Sorrio, me lembrando da última
vez. — Ontem rolou. Foi tão bom... Dani é um gostoso.

— É, sim. Só que Marcus é muito mais. Com aquelas tatuagens,


minha nossa senhora... — Ela se abana mais uma vez, rindo.

— Ele tem um monte, né... — comento evasiva. Fico receosa em


elogiar o corpo dele e Sam sofrer por ciúmes.

— Tem, sim. Quando o vi nu pela primeira vez, quase morri. Os


desenhos na frente e atrás, descendo pelas costas até a bunda,
continuando pelas coxas... Ave Maria!

— Até a bunda dele é tatuada? — Estranho a informação.

Apertando os olhos, repasso mentalmente as palavras de Marcus.


Quando eu quis saber se ele era tatuado naquela parte do corpo, o
homem respondeu:

"Não. Eu não conseguiria tatuar ali atrás... E não deixaria um


marmanjo tatuador mexer na minha bunda."

— É, sim. Um espetáculo! — Sam se empolga, batendo palminhas.


— Os desenhos escuros naquela pele branquinha e lisinha... Ai,
Nana... Por que o desgraçado tinha que ser tão gostoso?

Solto uma risada sem graça, com um pensamento incômodo


piscando na cabeça.

Se Sam estiver mentindo quanto a isso… O que mais pode ser


mentira?
Se você me ligar
Se você me ligar nunca vou parar
Start Me Up ~ The Rolling Stones

HANNAH MÜLLER

— Marcus... — Bato em seu quarto ao voltar para casa. — Cheguei


— aviso sem abrir a porta.

Nada. De novo, giro a maçaneta e espio através de uma frestinha.

A primeira coisa que percebo é que a cama está vazia. Arrumada,


com o lençol perfeitamente esticado, passa a impressão de que ele
nunca esteve deitado ali.
Com um pressentimento esquisito acelerando meu coração, corro
os olhos pelo ambiente e não encontro a mala de Marcus. Droga.
Será que o homem mudou de ideia e decidiu ir embora?

Não, não pode ser.

Entro com cautela no quarto, tentando descobrir onde ele está.


Talvez fumando na varanda?

Paro de andar ao observar um detalhe. A porta do banheiro está


entreaberta. Pelo som do chuveiro, mato a charada: Marcus está
tomando banho.

Minhas bochechas pegam fogo quando assimilo a informação. A


ideia de que ele está pelado, se lavando a poucos metros de mim, é
estranhamente excitante.

Chegando mais perto, posso até mesmo escutar sua voz rouca
cantando uma música dos Stones:

If you start me up
If you start me up I'll never stop
I've been running hot
You got me ticking
Gonna blow my top
(Se você me ligar
Se você me ligar nunca vou parar
Estou ficando quente
Por sua causa estou fazendo barulho
E vou explodir)

— Marcus! — grito, sem alcançar a porta do banheiro. — O almoço


vai para a mesa em cinco minutos! Me encontra lá embaixo?

— Espera. Já estou saindo do banho. — O barulho da água é


interrompido, me levando a concluir que ele fechou o chuveiro. —
Quero falar com você.

— Tudo bem — concordo, me sentando na beirada da cama.

O que será que ele quer... Perco a linha de raciocínio ao vê-lo entrar
no quarto com a toalha branca enrolada na cintura.

Seu corpo tatuado, ainda úmido do banho, brilha com as gotículas


salpicadas pela pele. Seus olhos azuis me analisam com atenção,
esbanjando um brilho diferente, e fico com a impressão de que
esconde algo.

— Então, vamos almoçar lá embaixo, onde estão os funcionários da


casa. Preciso falar que sou bailarino, é isso? — questiona, cruzando
os braços.

— É... — Assinto, me concentrando em olhar para o seu rosto e


somente para o seu rosto. — Mas só se alguém perguntar.
— Certo. Me ajuda a escolher uma roupa de bailarino?— pede,
andando até a cômoda. — Amigos ajudam amigos a se vestir.

Ainda voltado para mim, seu olhar brilha com malícia, me


confundindo.

E, quando Marcus leva as mãos ao nó da toalha e faz menção de


soltar a peça, meu coração pula dentro do peito. ELE está tentando
ME seduzir?

— Não existe "roupa de bailarino", veste qualquer coisa. — Solto


uma risada nervosa. — Não vai refazer o curativo? Não é bom
deixar sem a gaze... — Aponto para o corte que vai da lateral do
tronco na direção das costas.

— Me ajuda? — Marcus vem para a cama e deita de barriga para


baixo, a poucos centímetros do meu corpo. Seu perfume quente de
sabonete sobe espiralando pelo ar. — Suas mãos são mais
delicadas do que as minhas.

Com a bochecha apoiada no antebraço, Marcus me olha com


intensidade e esboça um sorriso sacana, ciente de que aquela
proximidade me abala.

Filho da mãe.

— Não posso. — Mordo a boca, me coçando para não tocar


naquelas costas. Fortes. Lisas. Tatuadas. — Prometi que não
mexeria mais em você, lembra?

— Eu te liberto da sua promessa. Repensei algumas coisas no


banho e... Primeiro, coloca a gaze para mim, por favor.

Repensou o quê? Pelo amor de Deus... Morrendo de curiosidade,


me levanto, corro até o banheiro, pego o kit na pia e volto para o
quarto, tudo em menos de dez segundos.

Marcus permanece na mesma posição, as costas para cima, a


toalha o cobrindo da cintura para baixo.

Com as pontas dos dedos, levo um quadrado de gaze ao ferimento


e prendo as bordinhas com fita micropore. Pronto.

— Quer dizer que... — Arrasto suavemente as unhas pela lateral do


seu corpo quente. — Vou poder mexer em você à vontade?

— À vontade, Hannah. — Em um movimento rápido, Marcus puxa a


toalha e fica completamente nu, ainda deitado de bruços. Erguendo
a parte de cima do tronco, finca os cotovelos no colchão e me
desafia com os olhos brilhantes. — Porque, ao contrário do que
você disse… Amigos se pegam, sim. Somos solteiros e sentimos
tesão um pelo outro. Então, por que não?

Sua voz rouca repercute com tudo na minha calcinha. Ai... Estou tão
ferrada!
Droga. Não era para ser assim. Não era para ele assumir o controle
do nosso jogo de gato e rato.

Enquanto praguejo mentalmente, Marcus continua sorrindo de lado,


sem desviar os olhos dos meus, mais predador do que nunca. E eu,
acuada como uma presa, me vejo sem escapatória, absolutamente
subjugada. Ponto para ele.

Com a boca seca, fujo de seu olhar penetrante. Sem pensar, acabo
fixando os olhos na sua bunda. E ela é....

Branca. Durinha. Perfeita. Sem uma única tatuagem.

Que inferno, Samanta! Por que mentiu para mim?

Como se tivesse jogada em um precipício, me sinto sem chão.

E agora?

Agora, as coisas mudam. Agora, eu duvido de tudo.

Da porcaria do plano todo.

De repente, a minha ideia inicial — "vai ser lindo foder com a vida
dele" — já não é atraente. Nada atraente.

Com a cabeça perdida em pensamentos, me levanto depressa da


cama.
Marcus franze as sobrancelhas, nitidamente surpreso com a minha
atitude.

— Eu... Vamos almoçar. — Ando na direção da porta, ainda


atordoada. — Te espero lá embaixo.

Minutos mais tarde, Marcus aparece para o almoço. Sentada junto à


mesa, belisco uns palitinhos de cenoura com sal. Estou
completamente sem fome, aflita com aquela reviravolta.

O que mais é mentira de Sam?

— Oi. — O homem inclina o corpo, depositando um beijo rápido no


topo da minha cabeça.

Gertrudes, a copeira que está servindo água nos copos, paralisa


com a jarra no ar, observando Marcus como se ele fosse um animal
exótico.

A mulher de meia-idade trabalha há mais de vinte anos em casa e é


maravilhosa. Talvez apenas um pouquinho fofoqueira. Mas não julgo
a coitada… Quem é que não gosta de uma boa fofoca?

— Um bailarino todo tatuado... — ela murmura baixinho, apertando


os lábios finos.
— Por que o estranhamento, Gê? Sabe que no Premier as coisas
são mais modernas… Eles nos dão bastante liberdade. Não são
chatos como no Municipal. — Abro um pequeno sorriso antes de
fazer as devidas apresentações: — Gertrudes, Marcus. Marcus,
Gertrudes.

Ele acena educadamente para a mulher antes de se sentar ao meu


lado, em frente a um jogo de pratos, taças e talheres que arrumaram
na mesa.

Em seguida, o chef Jean e o auxiliar de cozinha Rodrigo entram na


sala, trazendo os pratos quentes. Arroz com amêndoas. Carne
assada. Aspargos grelhados. Batatas aos murros. Os aromas
quentes são deliciosos, mas infelizmente não abrem o meu apetite.

Enquanto isso, a governanta Luzia trabalha nos vasos coloridos


sobre o aparador, repletos de flores frescas. Já o mordomo
Leônidas está mexendo nas cortinas brancas, endireitando os
cordões trançados que prendem o tecido pesado. Por sua vez, o
segurança David permanece parado ao lado da porta, atento à
movimentação dos funcionários pelo recinto.

Engulo em seco ao perceber que Marcus está absolutamente


perdido, ressabiado, olhando para os funcionários uniformizados
como se fossem extraterrestres prontos para nos atacar. Decido
facilitar para o lado dele.
— Eu gostaria que nos dessem privacidade para o almoço — peço e
todos assentem, deixando o local em silêncio.

— Enfim, sós... — Marcus brinca, soltando o ar pela boca.

Eu apenas arrisco um sorriso em resposta, sem muito ânimo. Me


sinto muito desconfortável, angustiada com a ideia de estar
cometendo uma injustiça com ele.

— Você está bem? — quer saber, me observando com atenção, os


olhos azuis intensos como o mar.

— Mais ou menos — admito. — Mas não deve ser nada de mais,


talvez esteja entrando na TPM. Vou até me deitar um pouquinho
depois do almoço.

Preciso ficar sozinha. Preciso pensar e repensar em tudo.

— E o shopping? Fica para a noite? — pergunta, me passando o


prato de arroz. — Eu preciso de um celular e só tenho tempo de ver
isso hoje. Amanhã vou trabalhar como um condenado. Fiquei de
fazer o turno da manhã na Records para entrar mais cedo no
Bulldog. César organizou uma festa do caralho para a virada.

"Virada"? Meu Deus… Já estamos em 30 de dezembro? Por mais


clichê que isso seja, tenho que admitir que o ano passou em um
piscar de olhos.
— Você vai trabalhar na véspera de Réveillon... — comento
distraída.

— Sim. O bar vai lotar, vou me dar mal. — Solta um riso fraco,
preenchendo o copo com mais água.

— Ai... Pode ir sozinho ao shopping, então — sugiro, me servindo


de um único aspargo. — Te dou o meu cartão e uma chave de casa.
O motorista pode te levar de carro. Acho que você ainda não deve
pilotar a moto, o ferimento é recente demais.

Marcus me analisa detidamente, os olhos indecifráveis.

— Já entendi. Você está arrependida...

— Arrependida do quê? — devolvo, o coração subindo até a boca.

Será que ele descobriu sobre o plano? Por Deus, não.

— De ter me convidado para ficar na sua casa. Estou vendo no seu


olhar, Hannah. Estou incomodando, não estou? Porra... Parei. Vou
me comportar. Prometo não te provocar mais. Já vou também
procurar outro lugar para morar e...

— Não. — Alcanço sua mão por cima da mesa. — Eu que estava te


provocando. Vou melhorar, ok? E não precisa ter pressa para ir
embora. Não é nada disso... Só não me sinto muito bem, daqui a
pouco passa. Gostou da comida? — mudo de assunto, retirando
meu toque.

— Muito. — Ele concorda com a cabeça. — Incrível. Se um almoço


normal funciona assim, nem imagino como deve ser em ocasiões
especiais. — Sorrindo, ele passa a se servir de carne. — A Páscoa,
por exemplo. Minha avó dizia que é o evento familiar mais
importante.

— Ah, foi um exagero na Páscoa... — comento, me lembrando da


enorme variedade de pratos espalhados pela mesa. Bacalhau.
Paella. Risoto de camarão.

— E o Natal? Seus pais passaram aqui? — quer saber, levando um


bocado de arroz à boca. É um movimento casual, simples, mas,
ainda assim, parece outra coisa.

Não sei explicar. Definitivamente, não sei explicar como a visão de


lábios masculinos fechando-se ao redor de um garfo pode ser tão
sexy.

— Não. Eles viajaram no comecinho do mês.

— Você passou sozinha? — Marcus arregala os olhos. — Por que


não me disse nada? Eu poderia ter... Sei lá. Combinado alguma
coisa contigo.
— Está tudo bem, eu não fiquei sozinha. Passei o Natal na casa de
Will, com os pais dele. São quase da família. Mas não pense que
meus pais vivem me abandonando assim… Normalmente, eles
passam as festas de final de ano comigo. Só desta vez foi diferente,
por um motivo especial.

— Que motivo?

— Eles se casaram no Réveillon há vinte e cinco anos, por isso,


programaram uma viagem prolongada ao redor do mundo. Para a
comemoração das Bodas de Prata — explico e Marcus abre um
sorriso. Um sorriso lindo.

— Bacana. Bem que dizem que beijar alguém no Réveillon é


especial — comenta antes de adotar um tom subitamente sério. —
Para falar a verdade, eu não acredito nessas coisas românticas,
mas pelo jeito funcionou para os seus pais. Me fale mais sobre eles
— pede, colocando mais batata no prato.

— Meus pais? Ah, deixa eu pensar. Meu pai é Delegado da Polícia


Federal, mas só é bravo no trabalho... Ele é bem divertido em casa.
Já a minha mãe é socialite. Como se isso fosse uma profissão —
acrescento e Marcus franze a testa.

— "Socialite"? — repete a palavra.

— É. Ela nasceu em berço de ouro e sempre teve uma vida de


luxos. Quando herdou os bens dos meus avós, ficou ainda mais
rica. Hoje em dia, organiza jantares beneficentes e coisas do tipo.
Enfim, os dois são legais. Não tenho do que reclamar.

— Que bom... Sorte a sua, Hannah. O que mais vejo é gente


descontente com os pais.

— Você é...? — arrisco saber, me servindo de meia colher de arroz.

— Então, não conheci a minha mãe. Ela foi embora quando eu era
bebê, me deixando com o meu pai. Ele me criou do melhor jeito que
pôde, mais acertando do que errando. Até errar feio — diz, a voz
cuidadosamente sem emoção. Ainda assim, consigo identificar uma
mágoa nas entrelinhas. — Mas... Foda-se. Hoje está morto. Ele
morreu há quase dez anos.

Balanço a cabeça, assimilando seu relato. Posso estar enganada,


mas somente vejo sinceridade nele. Não consigo enxergar a
arrogância, a prepotência ou a maldade que Samanta tanto critica
no homem.

— Sinto muito. E imagino que você não tenha herdado nada... Bens
ou valores.

— Só herdei uma poupança que ele tinha, que não era grande
coisa. Pelo menos, serviu para pagar a matrícula na ESPM, anos
depois. Como a matrícula é o valor cheio, quase me ferrei. Depois
de passar no vestibular dos meus sonhos, fiquei desesperado por
não ter o dinheiro... Até me lembrar da herança.
"Valor cheio"? Como assim? Embora não tenha verbalizado nada,
devo ter feito uma expressão de confusão, porque Marcus voltou a
falar, me lendo com muita facilidade:

— Eu quis dizer que na matrícula não dão o desconto como na


mensalidade, sabe?

É óbvio que eu não sei. Nunca precisei me preocupar com os


preços dos estudos.

— Entendi — murmurei simplesmente, mexendo no arroz intacto no


prato. — Se dinheiro era um problema, por que não procurou uma
universidade pública?

— Porque eu queria a melhor — diz com os olhos acesos.


Empolgado de verdade. — E todo mundo sabe que ela é a melhor.
As agências de publicidade mais fodas só contratam os formandos
da ESPM. Por isso, coloquei na minha cabeça que eu teria um
diploma de lá. Nem que eu tivesse que me matar em dois
subempregos. Nem que eu tivesse que economizar cada centavo.
Agora, o meu sonho está quase nas minhas mãos. Só falta um ano.

Um bolo fecha a minha garganta quando compreendo o quanto


Marcus se esforçou para estudar na ESPM.

Eu não tenho o direito de destruir o sonho dele.


Eu não quero destruir o sonho dele.

Marcus não tem mais nada na vida. E ainda que seja um


desgraçado por não assumir o bebê de Sam... Não importa mais.

Neste exato momento, tomo a minha decisão.

Parei.

— Tem razão. — Abro um sorriso tímido, escolhendo as palavras a


dizer a seguir. — A ESPM é a melhor. E é por isso que vou começar
a estudar lá em fevereiro.

— O quê? Não fode! — Ele sorri de ponta a ponta, com o garfo


parado no ar. — Verdade? Pensei que você já fizesse alguma
faculdade.

— Eu comecei a fazer Comunicação das Artes do Corpo na


PUC/SP. "Faculdade de dança" para os leigos. Porém, como já te
disse, eu amo dançar, mas odeio estudar a teoria. Por isso
abandonei o curso. E depois de conhecer a agência de publicidade
dos pais do Will... Fiquei encantada. Assim me decidi pela ESPM.
Meus pais aprovaram a escolha no mesmo instante.

— Gostei. — Marcus levanta o copo de água como em um brinde,


ainda exibindo o sorriso nos lábios. — Bem-vinda ao time, caloura.
Eu nasci para te amar
Com cada batida do meu coração
I Was Born To Love You ~ Queen

HANNAH MÜLLER

Depois do almoço, subo direto para o meu quarto.

Ao me jogar na cama com o celular em mãos, encontro uma


mensagem de Daniel, recebida mais de uma hora atrás.

14:01. Daniel: "Posso te visitar mais tarde, Nana?"

Ao ler e reler as palavras, estranho que Dani não tenha mencionado


nada sobre Marcus. Será que Will não contou...
15:22. Hannah: "Não estou sozinha em casa. Pensei que
soubesse."

15:24. Daniel: "Merda. E eu pensei que fosse uma brincadeira


de mau gosto do Will. Você trouxe aquele cara para o nosso
condomínio mesmo?"

15:25. Hannah: "Sim."

15:27. Daniel: "Por quê? Pelo que me lembro, você iria foder
com a vida do otário, não oferecer abrigo para ele. O plano de
vingança virou projeto de caridade"?

15:29. Hannah: "Nada a ver. É que ele teve uns problemas no


prédio, achei que vindo para cá as coisas fluiriam melhor."

15:30. Daniel: "E estão fluindo? Você me disse que o cara é


esperto..."

15:32. Hannah: "Ele é esperto, sim..."

Paro de digitar, sem saber o que falar. Se eu contar a Daniel que


desisti do plano, ele vai encher o meu saco ainda mais. Decido
mudar de assunto, fingindo que as coisas não mudaram.

15:33. Hannah: "Mas podemos nos ver mais tarde. Passa aqui,
a gente dá uma volta."
15:34. Daniel: "Ok. Te pego às 19h."

Volto para casa ainda mais desanimada do que saí. Pela primeira
vez nos últimos dois anos, não consegui transar com Daniel.

Ele me levou até o motel de sempre, mas, depois de dois ou três


beijos mornos, as coisas simplesmente não evoluíram.

Tesão? Zero. Ou negativo.

— O que foi, hein, Nana?

Vindo para trás de mim, Dani passou a massagear os meus ombros.


Eu estava sentada na beirada do colchão, com os pés firmes no
chão. Ao contrário da minha cabeça, que parecia voar pelo espaço.

Não cheguei a tirar uma única peça de roupa, diferentemente do


meu amigo, que ficou apenas de cueca.

— Sei lá. Eu falei para a gente não vir para cá. Você insistiu, gastou
dinheiro à toa. Eu só queria sair para dar uma volta.

— Pensei que aqui você se animaria… Até peguei a suíte mais top
com jacuzzi. — Ele deixou a cama e caminhou em círculos pelo
quarto. — Mas pelo jeito me enganei.
— É, se enganou. — Fiquei em pé, pegando a bolsa da poltrona. —
Quero ir para casa.

— Calma. O período é de cinco horas. Vamos pedir uma bebida, de


repente daqui a pouco você se empolga... — insistiu, puxando a
bolsa da minha mão. — Olha, hoje é 30 de dezembro. Amanhã
tenho estágio e academia, e à noite vamos para a Heaven com a
turma completa. Ou seja, dia 31 não vai rolar. Tem que ser agora.
Vamos dar a última trepada do ano, vai...

— Não — sibilei entredentes. — Pelo amor de Deus, Daniel... Só me


leva para casa.

— Saquei. Você está louca de vontade de voltar para aquele


maloqueiro... — debochou. — Quer engravidar dele também?

— Ele nem está em casa, seu babaca! Estou louca de vontade de


me ver livre de você, isso sim! — devolvi possessa.

Não trocamos mais uma única palavra até ele me deixar em casa.

Estou rolando na cama apenas de pijama, completamente sem


sono, quando duas batidas na porta chamam a minha atenção.
— Está aberta! — exclamo, checando no celular que são mais de
dez da noite.

— Oi. Sou eu. — Marcus coloca a cabeça pela fresta da porta. —


Vim devolver seu cartão de crédito...

Ele parece feliz, com um sorriso leve no rosto. Gosto de vê-lo


assim.

— Pode entrar. Estou com preguiça de me levantar para pegar... —


Bato no espaço do meu lado no colchão.

Marcus se senta com cuidado, segurando duas sacolinhas nas


mãos. Uma é da loja do celular. A outra não identifico a origem.

— Aqui está o cartão. Obrigado. — Ele o retira do bolso, me


entregando. — Mês que vem te pago. E aqui está um presente para
você. Comprei com o meu dinheiro. Ou não seria presente —
completa, me arrancando um sorriso.

Me sento depressa na cama, curiosa para abrir a sacolinha de papel


pardo. O que encontro dentro dela me faz sorrir. É um saquinho
transparente com balas, jujubas e marshmallows.

— Doces? — Levanto os olhos para ele, sem disfarçar a minha


alegria.
— Posso não ser um grande conhecedor do universo feminino, mas
sei que vocês gostam de doces na TPM. — Sorri de canto, todo
charmoso.

— Ah, muito obrigada! — Abrindo o saquinho, pego uma jujuba


vermelha. — E como você sabia disso?

— Denise, aquela baixinha que trabalha comigo no Bulldog. Fica


chata pra caralho na TPM.

— Azar o dela. Eu continuo legal — brinco antes de jogar duas


jujubas na boca, roubando mais um sorriso dele. — Quer?

— Não. Não estou acostumado a comer Fini como você. Prefiro


aquelas balas baratinhas de café que conhece. Pode comer todas,
sem culpa.

Então, sem aviso, Marcus toca no meu cabelo, ajeitando uma


mecha solta atrás da orelha. Prendo o ar enquanto seus dedos
levemente ásperos roçam devagar na minha pele.

— Você fica adorável de pijama de unicórnio — sussurra, me


acariciando na bochecha.

Quase me engasgo com as jujubas, sentindo os batimentos


descontrolados na garganta.
E antes que eu possa pensar em falar alguma coisa, ele fica em pé
e anda direto até a porta.

— Boa noite, Hannah. Preciso dormir, amanhã o dia vai ser longo.

A ceia caprichada de véspera de Ano Novo está acontecendo na


minha casa. William e seus pais vieram me fazer companhia para
que eu não jantasse sozinha.

A mesa está posta com as travessas de prata mais finas contendo


bacalhau gratinado, pernil assado e tantos outros pratos que
alimentariam um batalhão.

— Nana, isso está uma delícia. — Will dá mais uma garfada no


creme de bacalhau, quase revirando os olhos. — Ainda bem que
estamos aqui. Meus pais deram férias para os funcionários, se eu
dependesse dos dois jantaria miojo.

— Eu fico feliz por terem vindo... — Me viro para os pais de Will. A


energia que flui deles é maravilhosa.

— Obrigado, querida. Nós também ficamos felizes. Espera um


pouco… Will, você disse miojo? — Sebastien franze o cenho antes
de dar risada.
— Você já tem mais de vinte anos, meu filho. Se não tivéssemos
sido convidados para cá, poderia ficar encarregado pelo jantar, em
vez de jogar a responsabilidade nos seus velhos e cansados pais —
Liam brinca, as palavras mais carregadas pelo leve sotaque
europeu.

Com as costeletas e o bigode aloirados, ele parece o ator Jude Law


em "Sherlock Holmes". O que é curioso, porque Sebastien é quase
um sósia do ator Robert Downey Jr., mais jovem e mais loiro, que
também trabalhou no filme.

— Os senhores não são velhos, nem cansados. — Will balança a


cabeça. — Bem que eu queria chegar aos cinquenta assim…
Bonitões, cheios de vida. Qual é o segredo, hein? — pergunta e os
homens sorriem.

O amor que flui entre os três é palpável, aquecendo meu coração.


Eles formam uma família perfeita.

— Quer saber o segredo para chegar inteirão aos cinquenta?


Vamos ver… — Sebastien dá uma piscadinha para Liam. — Creio
que o principal deles é… Cercar-se de amor. Viver um amor. Amar e
ser amado. Enfim, precisa arranjar uma namorada, Will.

— Estou tentando! — William indica a gola da camisa polo que


veste, o tom rosa contrastando com a pele marrom. — Dizem que
usar rosa no Ano Novo é uma boa.
— Para encontrar um amor? Eu, hein… Só quero paz na minha
vida. — Aponto para o meu vestidinho branco de renda. — Paz e
tranquilidade.

— E eu quero netos! — Liam exclama em um tom divertido. —


William, não dê ouvidos a ela. Arranje uma namorada e me dê
netos. Nunca te pedi nada.

A conversa leve prossegue ao longo do jantar. Em momentos


estratégicos, me esforço para sorrir, externando uma alegria que
não sinto.

Estou aflita por um único motivo: não consigo parar de pensar em


Marcus, trabalhando como um condenado, enquanto a gente está
aqui, comendo confortavelmente no ar-condicionado.

Ele nem deve ter conseguido jantar nada naquele bar infernal. Seu
chefe tinha organizado uma festa de arromba, com direito a casa
lotada, contagem regressiva para o Ano Novo e música ao vivo.

Um Réveillon caótico.

Após a ceia, preparo um prato para ele e o cubro com outro prato ao
contrário. Coloco um post-it amarelo por cima: "Feliz Ano Novo,
Marcus! Não sei que horas vou voltar da balada, não precisa me
esperar acordado. Com carinho, Hannah." Deixo a comida na
prateleira de cima da geladeira, bem visível para ele.
— Vamos? Os outros já devem ter ido para a Heaven. — Will me
chama do hall.

Sem qualquer ânimo, pego a minha bolsa e saímos.

Daniel reservou um camarote VIP na Heaven, onde já estão todos


os nossos amigos, com exceção de Samanta. Por causa da
gravidez, ela não frequenta mais as baladas.

Me sento em um sofá de canto, deslocada em meio à música alta, à


bebedeira dos outros, à alegria contagiante que parece não
contagiar somente a mim.

É como se faltasse alguma coisa.

É como se faltasse alguém.

Droga. O que está acontecendo comigo?

Quando dou por mim, já estou dentro do Uber a caminho do


Bulldog, com o coração disparado subindo pela garganta.

São 23h42 e está trânsito. Se o motorista demorar mais um


pouquinho na Avenida Faria Lima, vou passar a porcaria da meia-
noite dentro do carro de um desconhecido.
Exatamente às 23h56, cruzo as portas de entrada do Bulldog. Está
lotado. Sou engolida pelo calor da multidão, que canta e dança ao
som de uma banda que se apresenta nos fundos.

Depois de prender os cabelos em um rabo e ajeitar a bolsa no


corpo, seguro a barra do meu vestidinho e me embrenho na
aglomeração, determinada, caminhando com dificuldade em direção
ao bar.

De repente, a banda começa a tocar Queen, "I Was Born to Love


You", levando o público à loucura. Não consigo conter um sorriso,
influenciada pela canção de Freddie Mercury.

O que vou dizer a ele quando o encontrar? "Oi, Marcus! Cheguei!"


Não, não. Bobinha demais.

Do nada, iniciam uma contagem regressiva, centenas de vozes ao


mesmo tempo entoando:

— 10... 9... 8... 7... 6...

Continuo lutando para andar, espremida entre os corpos, já


vislumbrando os cabelos platinados a poucos metros de distância, o
topo da cabeça mais alto entre os demais.

— 5... 4... 3... 2... 1! Feliz Ano Novo!!!


O bar explode em comemoração, com papéis prateados caindo do
teto e o som ressoando no último volume, ainda tocando Queen:

I was born to love you


With every single beat of my heart
(Eu nasci para te amar
Com cada batida do meu coração)

Todo mundo rindo, se abraçando, se beijando, celebrando a


passagem de ano. Me sinto ainda mais eufórica, quase
desesperada para me jogar nos braços de Marcus. Ele vai ficar feliz
em me ver?

Então, quando finalmente encosto as mãos no balcão envelhecido


de madeira, meu coração congela diante da cena que se desenrola
do outro lado do bar.

Com os batimentos afundando no peito, observo Marcus beijar a


atendente baixinha, que está com os braços finos ao redor do
pescoço dele. Droga.
Então não me pare agora
Não me pare
Don't Stop Me Now ~ Queen

MARCUS VENTURINI

Quando abro os olhos, me afastando de Denise, uma força me atrai


como ímã e eu viro a cabeça com tudo, a encontrando bem ali.

— Hannah?!

Com as bochechas vermelhas e os lábios entreabertos, ela me


encara firme, sem piscar.
Sustento seu olhar por três malditos segundos enquanto o caos do
bar entra em câmera lenta.

Eu não vejo mais nada, nem ninguém — sequer consigo raciocinar


com clareza —, me perguntando se bebi demais. É uma
alucinação? Então, me lembro de que não bebo em serviço.

É real.

Mas não faz sentido. Hannah está aqui? Sozinha? Ela ia sair com os
amigos para uma balada cara e...

— Espera! — grito quando me dá as costas, desaparecendo na


aglomeração dos clientes do Bulldog.

Pulo a porra do balcão de madeira e corro atrás dela, esbarrando


em um milhão de pessoas até a alcançar no corredor dos banheiros,
quase ofegante.

— Espera, cacete... — Agarro sua mão e a puxo para o banheiro de


funcionários, digitando rapidamente a senha na fechadura digital.

Os banheiros dos clientes devem estar nojentos pra caralho.

Depois de trancar a porta atrás de mim, me viro para Hannah, com a


claridade me permitindo reparar melhor na sua aparência. Usando
um vestidinho branco de renda, com os cabelos castanhos presos
em um rabo bagunçado, nunca esteve tão linda.
— O que está fazendo aqui? — Esfregando os olhos, me recosto na
porta fechada. — Pensei que passaria o Réveillon com os seus
amigos.

— Eu... Eu só não queria que você passasse a virada sozinho —


explica com os olhos brilhantes, esbanjando mágoa.

Senti um baque no peito ao me dar conta do peso daquelas


palavras.

Hannah veio até aqui por mim.

— Você... — Não sei o que falar. Passo as mãos pelos cabelos,


desorientado.

— Como fui idiota... Você estava tudo, menos sozinho. — Balança a


cabeça, rindo sozinha.

— Você poderia ter me avisado que viria! Não teria presenciado


aquela porra... — Aponto para fora do banheiro, gesticulando
agitado. Merda. Não gosto de me sentir assim. Nervoso. Instável.

— "Aquela porra"? Olha como você fala depois de beijar a mulher...


É mesmo um cafajeste — me repreende, o olhar duro contrastando
com os lábios trêmulos.
— É jeito de falar... — Solto o ar, cansado. — Denise é só uma
colega de trabalho. A gente se beijou na empolgação do Ano Novo...
Não rola nada entre a gente, nem vai rolar. Ela é lésbica.

Fechando os olhos, repasso palavras da baixinha: "Vamos lá,


Marquinhos! Um beijo à meia-noite para dar sorte, preciso
desencalhar no Ano Novo. Será que a minha vizinha vai me dar uma
chance?"

— Essa lésbica tá diferente, hein? Enfim, você não me deve


satisfações. Quero sair. — Indica com a cabeça para a porta atrás
de mim.

— Hannah, por favor... Me escuta. Minha noite aqui no bar foi uma
merda. Não parei por um segundo e... — Coço a nuca, notando
seus olhos correrem pelo meu antebraço. Gosto de ver seu
interesse pelas minhas tatuagens.

— E...?

— Nem comer eu comi, nas últimas doze horas. Se prestar atenção,


consegue ouvir o meu estômago roncar. Eu não via a hora de
encerrar o turno e ir para casa. Para a sua casa e... — Respiro
fundo, tomando coragem para me expor um pouquinho. — E te
encontrar. Sua companhia me faz bem. É isso.

Solto os braços nas laterais do corpo, exausto. Literalmente


exausto. Se eu pudesse me deitaria aqui no chão mesmo e
dormiria.

Mas não posso. Preciso retomar o turno.

— Fala alguma coisa — peço diante do seu silêncio torturante.

Hannah está abraçando o próprio corpo, se mantendo na defensiva.


Não sei se devo pedir desculpas... Opto por me calar, tomando outra
atitude. Não dizem que um gesto fala mais do que mil palavras?

— Vem cá, vai... Não fica chateada comigo. — Eu a puxo em um


abraço apertado, apoiando a bochecha no topo da sua cabeça.

Ela resiste de início, mas logo passa os braços pela minha cintura.

Sorrio ao perceber que tomou o cuidado de não encostar no meu


machucado.

Seu calor, seu perfume… A maciez da sua bochecha no meu


pescoço... Tudo mexe comigo. Eu ficaria aqui por horas. Mas não
posso.

— Feliz Ano Novo, linda. Gostei de te ver, apesar de tudo —


murmuro antes de depositar um beijo nos seus cabelos cheirosos.
— Agora preciso voltar para o trabalho, não nasci com a bunda
virada para a lua. Não tive essa sorte.
Faço menção de me afastar, mas ela não me solta, levando uma
mão à minha nuca. Então, passa a mexer nos meus cabelos com as
pontas dos dedos, me arrepiando da cabeça aos pés.

— Tudo bem, Marcus. — Ela dá um passo para trás, sorrindo, ainda


acariciando o meu pescoço.

Solto o ar pela boca, satisfeito em ver que o clima está melhor entre
a gente.

Hannah tira as mãos de mim para arrumar as mechas, refazendo o


rabo de cavalo.

— Vou te esperar para irmos embora juntos — diz em um tom firme,


sem deixar espaço para discussão. — Não quero que pegue no
sono na moto. Do jeito que está cansado, corre o risco de sofrer um
acidente feio.

Porra... Meus lábios se esticam em um sorriso ridiculamente grande.


Hannah e eu nos conhecemos há tão pouco tempo e ela já pegou o
posto da pessoa que mais se preocupou comigo em toda a minha
vida.

— Parece que a minha sorte está melhorando... — comento,


destrancando a fechadura.

— Para quem passa o Ano Novo de preto... — Aponta para a minha


camiseta. — É irônico ficar falando em sorte. Por que não usou
branco?

— Não preciso de roupa branca para atrair sorte… Se tenho você.


— Abro a porta e dou passagem a ela. — Você é um anjo na minha
vida, Hannah.

— Eu não sou um anjo. — Ela me espia rapidamente por cima do


ombro. — Não chego nem perto.

Pelas próximas duas horas e meia, me divido entre atender os


clientes e dar atenção a Hannah.

Sentada junto ao balcão, ela parece ter luz própria, atraindo de


tempos em tempos algum paquerador filho da puta.

Não contenho um sorriso ao vê-la dispensar cada um deles, sem


hesitar.

— Você é a garota mais inalcançável do bar. — Apoio os cotovelos


na frente dela, a fazendo gargalhar. — Já dispensou quantos caras?
Pelas minhas contas, doze ou treze.

— Não sabia que estava tão atento... — Dá mais um gole do


espumante, segurando a taça com elegância. — Parece um irmão
mais velho pentelho.
— Irmão? Nem fodendo... Sou mais parecido com os clientes do
Bulldog que chegam em você, querendo começar o ano beijando
uma garota bonita.

— Quer dizer que você me acha bonita... — Ela sorri e eu faço que
sim com a cabeça, sem desviar os olhos. — E quem garante que
todos eles queriam me beijar?

— Eles, eu não sei. Eu, sim. — Me inclino na sua direção por cima
do balcão e aproximo os nossos rostos, porém Hannah me empurra,
dando risada.

— Foi mal, garanhão. Você não está em uma micareta e eu não vou
pegar baba de outra. Seria nojento — completa ainda sorrindo,
indicando Denise com o queixo.

Olhando rapidamente para a mulher, fico desconfortável ao


descobrir que está lutando para arrumar os copos na pia, sozinha,
enquanto eu estou aqui, batendo papo com Hannah.

— Já volto, linda — aviso ao me afastar para ajudar Denise.

— Sua namorada te perdoou? — a baixinha sussurra, lavando uma


caneca de chopp, as mãos trabalhando depressa.

— "Namorada"? Eu não namoro, esqueceu? — rebato, retirando os


copos lavados do escorredor.
— Marquinhos... — Ela sobe os olhos castanhos para mim. — Eu vi
como ela ficou quando viu o nosso beijo. E também vi como você
ficou antes de correr atrás dela. É tudo recíproco, meu querido. Se
vocês não estão juntos, estão perdendo tempo.

Sem saber o que falar, somente passo a enxugar os copos,


alinhando um a um na prateleira.

— Ano novo, experiências novas. — Denise dá uma piscadinha. —


Vai fundo.

Mais tarde, Hannah e eu voltamos para casa de moto, o trajeto todo


em silêncio. Com as palavras de Denise reverberando na cabeça,
me sinto perdido. Ao mesmo tempo, meu corpo parece destruído.
Dolorido. Suado. Quebrado. Necessito urgentemente de um banho.
Nem fome mais estou sentindo. O cansaço me consome por inteiro.

— Preciso tomar um banho... — comento com Hannah, subindo a


escadaria que leva ao corredor dos quartos.

— Eu também — diz, carregando as sandálias de salto na mão. —


Um monte de gente melada encostou em mim naquele bar… Foi
nojento.

— Mais ou menos nojento do que a minha boca com baba de outra


mulher?
— Pau a pau. — Faz uma careta engraçada e eu dou risada. —
Aproveita o banho para escovar bem os dentes.

— Pode deixar. Espero que não esteja mais chateada comigo... —


comento, esquadrinhando seu rosto. Seus olhos estão
indecifráveis.

— Boa noite, Marcus, amanhã a gente conversa. Você precisa


descansar. — Planta um selinho na minha bochecha e sai andando,
se apressando para entrar em seu quarto.

— Boa noite — murmuro confuso. Pensei que ela não iria me


dispensar. Que gostaria de me ver depois de "escovar bem os
dentes".

Mas talvez seja melhor assim. Realmente estou cansado.

Quando saio do banho, penso em me deitar, mas a fome fala mais


alto. Meu estômago parece um motor de caminhão, roncando sem
parar.

Desço até a cozinha e abro a geladeira, procurando algo para


comer.

Paraliso quando um prato por cima de outro atrai a minha atenção.


Há um post-it sobre eles.
"Feliz Ano Novo, Marcus! Não sei que horas vou voltar da balada,
não precisa me esperar acordado. Com carinho, Hannah."

Porra… Como ela pode dizer que não é um anjo?

Meu peito fica mais quente no mesmo instante. Devoro o jantar com
a alma mais leve, sem conseguir tirar um sorriso dos lábios.

Subo de volta para o quarto, me preparando para dormir e... Não.


Ainda não posso dormir. Antes preciso fazer mais uma coisa.

Com a adrenalina correndo solta nas minhas veias, escovo


novamente os dentes, passo as mãos pelos cabelos e respiro fundo,
tomando coragem para o próximo passo.

Certo de que isso vai mudar tudo o que existe entre a gente,
caminho até o quarto de Hannah, abrindo a porta com cuidado.

Torço para que ainda não esteja dormindo. Relaxo ao encontrá-la


deitada no escuro, mexendo no celular.

Na verdade, relaxo por meio segundo. Porque assim que ela vira a
cabeça e me vê, um turbilhão de emoções me assola, me levando a
empertigar a postura.

— Marcus? — Larga o aparelho, me fitando com surpresa. — O que


foi?
— Encontrei seu bilhete no prato de jantar. Queria agradecer. —
Enfio as mãos nos bolsos da bermuda de moletom, me aproximando
lentamente dela.

— De nada — ela diz, acompanhando cada passo que dou pelo


quarto, as solas dos meus pés descalços roçando no tapete felpudo.

— Ainda não agradeci do jeito que eu quero.

— Ah… Compreendo. — Ela pigarreia.

Sem que eu precise pedir, Hannah se arrasta para o lado, em um


convite silencioso para que eu me deite com ela.

E eu vou. Me acomodando no espaço livre, puxo a garota para mais


perto, circulando a cinturinha com o braço.

— Hannah... — começo, com o coração disparado por conta da


proximidade dos nossos corpos. Seu calor e seu perfume me agitam
o estômago.

— Fala — diz, acariciando a minha mão que repousa na sua


barriga. Não consigo enxergar direito no escuro, mas percebo que
Hannah está sorrindo.

— Preciso jogar limpo. Não sei o que espera de mim... Mas não
espere nada. Não tenho nada a oferecer. Sou um fodido e...
— Tudo bem, eu te quero mesmo assim. Me beija logo, vai — pede,
a voz delicada me causando o efeito oposto, explodindo tudo dentro
de mim com a força de um vulcão.

Um vulcão que há dias demais espera para eclodir.

— Porra... — rosno, afundando a mão nos seus cabelos. E, quando


cubro os seus lábios com os meus, reviro os olhos dentro das
pálpebras, extasiado com o calor suave da sua boca.

Puta merda... Até que enfim.

Sem quebrar o beijo, Hannah sobe por cima de mim. Agarro a sua
cintura enquanto invado a sua boca com a língua, mergulhando
nela, explorando cada cantinho, misturando as nossas salivas.

— Ai, Marcus... — choraminga, passando as mãos pelo meu rosto,


alisando a barba rala.

Mas, por mais que seus toques me acendam como uma maldita
árvore de Natal, é o seu gemido que acaba comigo.

Seu gemido chamando o meu nome me faz latejar dentro da cueca.

— Estou aqui... — Afastando seus cabelos para o lado, passo a


distribuir beijos molhados pelo seu pescoço, sentindo a carótida
pulsar com os batimentos acelerados.
E, quando Hannah contorce os quadris em cima de mim, minha
ereção endurece ainda mais, me enlouquecendo.

Desço as mãos para a sua bunda, agarro as nádegas e aumento a


fricção entre os nossos corpos, indo e vindo, para a frente e para
trás.

— Porra, Hannah... Você me deixa tarado pra caralho.

— Eu também estou tarada... E quero ir até o final — diz ao


escorregar a boca pelo meu pescoço, sugando devagar a pele, me
devorando.

Abro um sorriso cheio de expectativas.

— É o que eu mais quero. Desde o primeiro maldito dia. — Deslizo


as mãos por baixo da camisola, subindo na direção da calcinha. Arfo
ao alcançar a lingerie enterrada entre as nádegas, acompanhando o
tecido quente com as pontas dos dedos.

— Tem camisinha? Não sei se tenho no banheiro. — Aproxima o


rosto para me beijar na boca. Hannah chupa o meu lábio inferior,
arrastando os dentes de um lado para o outro. — Mas se quiser
fazer sem, tudo bem. Eu tomo pílula e...

— O quê? Não, eu não encaro sem camisinha — sussurro,


massageando a sua bunda, afundando os dedos na carne. Ela é
gostosa pra caralho. — Mas fica tranquila... Eu tenho no meu
quarto, já vou lá pegar. Uma cartela inteira para te foder até o dia
clarear.

De repente, Hannah para de me beijar. Inclinando o tronco para o


lado, acende o abajur e me olha nos olhos.

— Repete a primeira parte.

— Que eu não encaro sem camisinha? Por quê? Não é pessoal,


linda. É uma coisa minha. Nunca fiz sexo desprotegido.

— Marcus... — Hannah aperta os olhos. Quando levanta os braços


para passar as mãos pelos cabelos, me espanto ao perceber que
seus dedos estão trêmulos. — Precisamos conversar. Agora.
Eu serei o diabo em seus olhos
Se é o que você precisa ouvir
Devil In Your Eye ~ Mumford & Sons

HANNAH MÜLLER

— Precisamos conversar. Agora — afirmo antes de morder a unha


do polegar.

Me sentando com as costas apoiadas na cabeceira da cama, abraço


os joelhos e penso em como tocar naquele assunto delicado.

Preciso perguntar a ele sobre Samanta, para tentar compreender


exatamente o que rolou e o que não rolou entre os dois.
— Fala. — Vindo para o meu lado, Marcus endireita o corpo e coça
a nuca, sem entender nada.

— Sabe a Samanta? — Sou direta. — Samanta Villa-Lobos? —


completo e ele trava a mandíbula.

— Sei. Da faculdade. Você a conhece?

— Conheço. Ela também mora aqui no condomínio, está grávida e...


Reconheceu a sua moto na frente da minha casa. Veio me
questionar a seu respeito porque… Ela acredita que você é o pai do
bebê.

Marcus leva as mãos aos olhos e balança a cabeça, sem disfarçar a


irritação.

— Aquela garota é completamente maluca! Me deixa puto! Como


posso ser o pai do filho dela se nunca transamos?

"Nunca transamos"? Como assim?

Droga. Será que é tudo mentira dela?

— Nunca rolou nada entre vocês? — Apoiando uma mão no seu


joelho, prendo o ar em expectativa.

— Nós ficamos em uma festa da faculdade. Na festa julina, para ser


mais preciso — explica, sem desviar os olhos dos meus. — Nada de
mais. Demos dois beijos em frente ao palco da banda sertaneja. Foi
uma coisa rápida, quase sem importância, mas para ela foi como a
porra de um pedido de noivado.

— Por quê?

— Samanta passou a me enxergar como propriedade dela. Me


perseguindo na faculdade. Tirando satisfações ao me ver falando
com outras garotas. Dando altos escândalos. Me assediando na
frente de todo mundo. Presta atenção no absurdo da coisa... Em
agosto, eu estava iniciando o oitavo semestre do curso, e ela o
quarto. Mesmo assim, passou a frequentar as minhas aulas, só para
se sentar do meu lado. Cheguei a fazer uma reclamação na
secretaria, mas acredita que ela é filha do reitor? Por isso não
tomaram qualquer providência. Esse último semestre foi um inferno
para mim. Com ela me colocando contra a parede sempre que tinha
a oportunidade, foi foda.

— Nossa... Mas ela te colocava contra a parede exatamente para


quê? O que ela te falava?

— Que queria que eu desse uma chance para a gente. Eu falei mil
vezes que não tinha a menor possibilidade. Até que ela apelou, me
fazendo uma proposta humilhante.

— Que proposta? — quero saber, com o coração pulando na


garganta.
— Ela chegou a oferecer dinheiro para… Você sabe. — Marcus
bagunça os cabelos, possesso. — Mas esquece, não gosto nem de
lembrar daquela merda. Depois, a garota sumiu da faculdade. Dei
graças a Deus. Pensei que finalmente o inferno tivesse acabado,
que eu ficaria em paz, mas… Não acabou. Porque ela foi me
procurar no trabalho.

— Ela te procurou no trabalho? Como assim? — pergunto, já


prevendo as respostas. Quero escutar a versão dele do que
presenciei naquele dia.

— Semanas atrás, eu estava fazendo uma pausa, fumando um


cigarro atrás do Bulldog. Curtindo os meus cinco minutos de paz em
uma noite estressante pra cacete. Até que ela surgiu do nada, se
dizendo grávida de mim, se declarando e o caralho. Não aguentei e
explodi, soltando os cachorros em cima dela. Talvez eu tenha
pecado por gritar com uma gestante, mas… Não consegui me
controlar. Eu estava no meu limite, porra...

— Então, para resumir... Vocês só ficaram em uma festa?

— Isso. E se eu soubesse que a garota ficaria obcecada por mim,


não teria nem ficado. Me arrependo pra caralho daquela noite.

"Me arrependo pra caralho daquela noite."

De repente, a frase desencadeia um déjà-vu completo da conversa


que presenciei entre ele e Samanta.
— E-eu estou grávida.

— E eu com isso?

— Você é o pai.

— Está delirando, garota?!

— Marcus, eu estou apaixonada por você.

— Pelo amor de Deus, criatura, não começa. Uma dose de amor-


próprio lhe cairia bem, sabia? Me arrependo pra caralho daquela
noite. Se soubesse que daria nisso...

— Não fale assim, por favor. Aquela noite foi a melhor da minha vida
e...

— Aquilo não significou NADA para mim! Esquece! Estou de saco


cheio de você, porra! Me deixe em paz!

Meu Deus… Tudo faz sentido. Tudo.

— Minha nossa... Que loucura. — É a única coisa que consigo


expressar. Covardemente, não comento com ele o plano de
vingança.
Em minha defesa, posso dizer que já tinha abortado o plano,
independentemente de Marcus ser ou não o pai do bebê. Não tive
coragem de continuar depois de saber do esforço dele para estudar
na ESPM.

E, agora que sei que não é o pai, sinto ainda mais remorso por ter
cogitado prejudicá-lo daquela maneira.

— E vocês são vizinhas... Ou seja, corro o risco de dar de cara com


ela a qualquer momento, quando eu estiver entrando ou saindo da
sua casa. Que merda... — Marcus esfrega o rosto, desanimado. —
Agora não consigo nem processar essa informação, meu cérebro já
parou de funcionar por hoje. Preciso dormir, Hannah.

Ele deixa a cama, sem me dirigir o olhar. É nítido que o homem


ergueu novamente a guarda, afastando-se de mim. Droga.

— Não quer dormir aqui? — arrisco, pretendendo passar mais um


tempinho com ele. Estou morrendo de medo de que amanhã, depois
de somar dois e dois, Marcus descubra tudo e nunca mais olhe na
minha cara.

— Não, obrigado. Prefiro ir para o meu quarto. Boa noite.

Ao despertar, alcanço o celular na mesinha de cabeceira e descubro


que é quase meio-dia. Ainda na tela travada, encontro uma
mensagem de Marcus, enviada às nove da manhã.

09:02. Marcus: "Bom dia, Hannah. Tenho um compromisso,


volto à noite. Não sei que horas, ok?"

Leio e releio a mensagem, me perguntando se ele está mais frio


comigo. Talvez sim. Desanimada, respondo apenas três palavras:

11:57. Hannah: "Ok, até mais."

Decido ficar em casa, sem chamar ninguém para me fazer


companhia. Como o dia primeiro de janeiro é feriado universal, os
funcionários não vieram trabalhar, com exceção do segurança da
guarita externa que funciona 24h por dia. Ou seja, estou
absolutamente sozinha aqui, o que no momento é uma coisa boa.

Preciso colocar as ideias em ordem, planejando a melhor maneira


de confrontar Samanta. Não posso simplesmente jogar tudo na cara
dela, de uma hora para a outra.

Se eu a deixar nervosa, arrisco prejudicar o bebê e não quero isso


de jeito nenhum. A criança não tem culpa de nada, e eu não preciso
de mais um peso na consciência para me assombrar.

Depois de almoçar, faço uma porção de "nadas". Jogo tempo fora


nas redes sociais. Tiro um cochilo. Devoro as balinhas Fini que
ganhei de Marcus. Penso em uma porção de abordagens para falar
com Sam.
Quando dou por mim, já está na hora de jantar. Preparo um prato
com as sobras da ceia e me sento em frente à televisão, revendo as
primeiras temporadas de "Game of Thrones".

Perto das dez da noite, tomo um banho, visto uma camisola


fresquinha e desço de novo, me perguntando se Marcus vai
demorar para chegar.

Não quero ir dormir sem vê-lo. Preciso saber como estão as coisas
entre nós depois daquela conversa de ontem.

— Acordada ainda? É quase meia-noite. — Marcus aparece na sala,


caminhando devagar na direção do meu sofá. — Subi direto para o
quarto quando cheguei, tomei uma ducha e depois fui te procurar.
Não te encontrei lá em cima.

— Olha, apareceu a margarida... Estou sem sono, assistindo a GoT.


— Aponto para a tela da televisão e deixo escapar um sorriso. Estou
realmente feliz com a chegada dele. — O que fez de bom o dia
inteiro?

— Estava com o meu ex-vizinho, Seu Alfredo. Tinha combinado de


levá-lo a um lugar que fica fora da cidade. Demorou mais do que o
esperado.
Sentando-se do meu lado, Marcus apoia a mão no meu joelho,
como se não fosse nada de mais. Como se não soubesse que seu
toque faz meu coração bater como uma escola de samba. —
Personagem preferido? — Indica a televisão com a cabeça,
mudando de assunto.

Vestindo bermuda de moletom e regata branca, com o cheiro de


sabonete masculino exalando da pele, Marcus me excita apenas
por… Sei lá… Por existir.

Não tenho como ignorar meu desejo visceral de vivenciar uma noite
de sexo com ele. Se antes eu não pretendia ir até o fim por conta de
Samanta — sempre me recusei a transar com caras que já
dormiram com as minhas amigas —, agora a história é outra.

Sam nunca esteve com Marcus. E isso muda tudo.

Por outro lado, já fiz sexo com uma porção de garotos. Todos da
minha idade, mais ou menos. Daniel, por exemplo, também tem
dezenove anos. Porém, exatamente como eu disse, "garotos".

Marcus é um homem.

Mais velho. Mais experiente. Mais gostoso. E não vejo a hora de ter
essa nova experiência com ele.

— Você quer que eu diga o meu personagem preferido... — Encaro


sua mão tatuada, repousada no meu joelho. — Fácil. Daenerys
Targaryen.

Cubro a sua mão com a minha e me sento de perna de índio,


colocando os pés no sofá.

Sorrio quando seus olhos descem para as minhas pernas, fitando as


coxas lisinhas. Em tempo, depilação a laser é vida.

— Khaleesi. A Mãe de Dragões. A Quebradora de Correntes. Isso é


curioso... Pensei que diria Jon Snow.

Seus olhos azuis cintilam para mim, um tom mais escuro como duas
safiras.

Ao fundo, a televisão ligada em "Game of Thrones" toca a trilha


sonora de Mumford & Sons. A voz suave do vocalista ressoa pela
sala, nos envolvendo:

I'll be the devil in your eye, if it's what you need to hear
I'll be the devil in your eye, if it'll change the way you feel
(Eu serei o diabo em seus olhos, se é o que você precisa ouvir
Eu serei o diabo em seus olhos, se isso mudar a maneira como
você se sente)

Pisco devagar, me concentrando para dar continuidade à conversa.


Ou melhor, tentando disfarçar apenas um pouquinho a dimensão do
efeito que Marcus causa em mim.
— Jamais. — Dou risada. — Jon Snow é trouxa do começo ao fim.
Dany é a melhor... A evolução dela é incrível. Começa como uma
adolescente fraca e, com o tempo, desenvolve uma força absurda,
cativando a todos. Líder nata. Mulherão da porra.

— Hum... — Marcus umedece os lábios com a ponta da língua. —


Você se identifica com ela? — Me puxa para mais perto pela cintura
e aproveito para alisar sua perna, contornando as tatuagens do
joelho com as pontas dos dedos.

Enquanto sua pele fica mais e mais arrepiada, um volume cresce


por dentro da sua bermuda. Pesado. Maciço. Robusto.

— Em alguns pontos. Só espero não ter o mesmo final... —


comento, caminhando com os dedos por sua coxa até alcançar a
virilha. Circulo a região devagar, sem encostar no seu pau, que já
está completamente duro.

— Ela se fodeu por amor. Acontece todos os dias. — Marcus me


arrasta para o colo, me posicionando de costas para ele. Eu me
sento em cima da ereção pesada, a encaixando entre as nádegas.
Sorrio quando ele arfa, soltando o ar quente na minha nuca. —
Porra, Hannah...

Colocando os meus cabelos para o lado com uma mão, com a outra
aperta mais a minha cintura, depositando beijos molhados pelo meu
pescoço, me arrepiando inteirinha.
— Comigo não acontece, não — sussurro, me remexendo no seu
colo. — Eu não me interesso por amor. Tenho outras prioridades na
vida.

— Pensamos igual, linda. Estamos sozinhos em casa?

Marcus escorrega as mãos da minha cintura até os seios, os


amassando juntos. Deixo escapar um gemido quando seus
polegares rodeiam meus mamilos por cima do tecido da camisola,
repercutindo na minha boceta, que pulsa para ser tocada.

Como se adivinhasse, o homem deixa uma mão no seio e leva a


outra até o meio das minhas pernas, alisando a minha abertura por
cima da renda calcinha.

— Dentro de casa, sim. Tem um segurança na guarita lá fora. Por


quê? — Passo a girar os quadris, extasiada com os seus dedos
subindo e descendo por fora da lingerie, me estimulando junto com
a ereção que está latejando na minha bunda.

Levando as mãos para cima, agarro a sua nuca, desesperada por


mais contato.

— Porque quero te foder aqui mesmo, Hannah, no sofá — sopra na


minha orelha. — Pensei em você o dia inteiro. Em tudo o que faria
quando chegasse em casa. Em quantas vezes me enterraria nessa
boceta perfeita. — Afastando o elástico da calcinha, me penetra
forte com um dedo. — Em te fazer gozar até não aguentar mais. —
Sua voz rouca faz uma sequência de arrepios subir pela minha
coluna, e me desmancho inteira quando seus lábios encontram o
meu lóbulo, sugando bem devagar.

— Sim… Sim… — choramingo enquanto ele entra e sai com o


dedo, mais rápido e mais fundo, o barulho molhado me fazendo ver
estrelas.

De repente, Marcus tira as mãos de mim. Penso em protestar até


vê-lo puxar uma cartela de camisinhas do bolso da bermuda.

— Que safado... — Dou risada quando ele me empurra


delicadamente para trás, deitando o meu corpo no sofá. — Desceu
preparado, com as camisinhas no bolso. E se eu não quisesse?

— Eu te beijaria até te convencer do contrário, linda.

Inclinando o tronco sobre mim, Marcus desliza a língua macia pelos


meus lábios, traçando o contorno inteirinho antes de me beijar com
tudo, me invadindo, me devorando como uma fome que só não é
maior do que a minha por ele.

Ele quebra o beijo para arrancar a regata, puxando a peça pela


gola. Imediatamente levo as mãos ao seu peito, arranhando a pele
tatuada dos ombros ao abdômen, subindo e descendo. Marcus é tão
liso, quente e gostoso… Perfeito.
— O machucado não está doendo? — pergunto, descendo as mãos
pelas suas costas cobertas por uma fina camada de suor. Ao
encontrar o curativo, contorno a gaze e deslizo os dedos até a
lombar.

— Sabe o que está doendo, Hannah? O meu pau. Ele está quase
explodindo, desesperado para entrar em você.

— Vamos dar um jeito nisso.

Desço a sua bermuda e apalpo a sua bunda durinha, apertando a


carne firme com vontade. Deixo uma mão ali e escorrego a outra
para a parte da frente do seu corpo.

— Puta que pariu... — geme quando aliso a sua ereção. É quente,


repleta de veias, a pele macia como seda.

Passo a masturbá-lo devagar, deslizando a mão para cima e para


baixo, da base à cabeça, circulando a pontinha molhada com o
polegar.

Marcus apoia o peso em um dos braços, fincando o cotovelo no


sofá, e leva a outra mão à minha calcinha, enfiando os dedos por
baixo por elástico, me tocando no mesmo ritmo.

Sem me penetrar, ele sobe e desce com os dedos, brincando com


cuidado entre os lábios sensíveis. E, quando passa a esfregar o
clitóris, quase me faz ver estrelas.
Respirando com os rostos quase colados, nos olhando nos olhos e
nos tocando daquele jeito absurdamente íntimo, tenho a
confirmação de que a nossa química é perfeita. A sincronia está
incrível, sem um único resquício de vergonha ou pudor nos
movimentos, como se já nos conhecêssemos há tempos.

Como se não fosse a nossa primeira vez.

— Marcus… — balbucio quando o orgasmo me arrebata de


sopetão. Perco totalmente o controle do corpo, sentindo cada
pedacinho ganhar vida sozinho, desde a coluna arqueada até os
dedos dos pés curvados.

— Isso… — sussurra ao deslizar um dedo para dentro de mim,


apreciando os espasmos da minha musculatura, me encarando com
uma admiração gigante, como se nunca tivesse visto uma mulher
gozar.

Sei lá quanto tempo depois, quando recobro o controle, Marcus


pousa uma mão no meu rosto úmido de suor, me acariciando com
as pontas dos dedos.

— Linda, vamos mesmo continuar? — Sorri com os lábios


entreabertos e eu faço que sim, sem desviar os olhos.

Ele então se levanta e dispensa a bermuda que pende frouxa no


meio das coxas. Levando uma mão à ereção, masturba-se
rapidamente antes de deslizar a camisinha ao longo do
comprimento.

Eu também fico em pé, os olhos fixos naquele tamanho recém-


encapado, sentindo minha boceta latejar em antecipação. Com as
mãos trêmulas, tiro a camisola e a calcinha, ficando nua como ele.

— Eu não sei ser delicado... — Agarra os meus quadris, apertando


os ossinhos das ancas, me virando de costas.

Descendo a boca ao meu ombro, beija e mordisca a pele enquanto


esfrega a ereção por trás de mim, subindo e descendo entre as
nádegas.

— Tudo bem. Eu aguento. — Dou risada, sentindo Marcus me


empurrar até me deitar com a barriga contra o braço do sofá.

— Abra mais as pernas — sussurra, amassando a minha bunda


com força. Obedeço, segurando o braço do sofá, afundando as
unhas no tecido.

Sem aviso, Marcus alcança a minha nuca com uma mão.


Escorregando os toques para a frente, aperta com cuidado a
garganta, fechando um dedo de cada vez, como se quisesse testar
a minha reação. Ao mesmo tempo, encaixa a outra mão no meio
das minhas pernas, esfregando a palma para cima e para baixo, me
estimulando do clitóris ao ânus.
Ainda me enforcando de leve, empurra o meu rosto para baixo, sem
parar de passar a mão em mim, espalhando a minha lubrificação.

— Marcus... Vai logo, vai — gemo, desesperada para ser tomada


por ele.

— Sua boceta é perfeita, Hannah... Caralho... — rosna ao levar as


duas mãos à minha intimidade, me abrindo com os dedos antes de
me soprar bem ali.

Espiando por cima do ombro, descubro que Marcus está ajoelhado


no chão. Meu Deus... Não tenho tempo de questionar nada porque
ele enfia o rosto entre as minhas coxas, me lambendo inteira.

Arqueio a coluna, agarrando com mais força o sofá quando ele


passa a me chupar, trabalhando com os lábios e a língua,
misturando a saliva à minha lubrificação.

— Que delícia... — ofego, remexendo os quadris, acompanhando os


movimentos da sua boca.

De repente, ele fica em pé. Penso em protestar até senti-lo encaixar


a glande entre os meus lábios íntimos.

Marcus pincela algumas vezes, para cima e para baixo,


murmurando coisas ininteligíveis. Viro a cabeça para trás e o
encontro mais lindo do que nunca. O rosto anguloso mais corado.
Os lábios levemente inchados. Os cabelos molhados de suor. Os
olhos azuis fixos na minha bunda.

— Preparada? — pergunta em um sopro de voz.

— Manda ver.

Suas mãos vêm para os meus quadris, a glande já parada na minha


abertura.

Perco o ar quando Marcus se empurra para dentro de mim, me


penetrando de uma vez, até o final. Aperto os olhos ao sentir sua
espessura me abrindo, me preenchendo milímetro a milímetro.

— Cacete, Hannah... — Enterrado em mim, gira os quadris devagar,


esfregando a virilha na minha bunda.

Depois, passa a dar estocadas duras, me sacudindo a cada


investida, em um ritmo cada vez mais rápido.

— Marcus… — choramingo, o corpo inteirinho formigando com a


pressão que escoa do meu ventre para os membros.

Minha voz é abafada pelo barulho cadenciado do entra e sai que


preenche a sala, deixando o ambiente ainda mais erótico.

Nunca foi tão intenso, com ninguém.


— Vou gozar de novo... — aviso, me sentindo esticada como um fio
de alta tensão prestes a romper.

— Vai... Goza no meu pau, linda. — Desfere um tapão na minha


bunda e acelera os golpes, me fazendo explodir em um orgasmo
absurdo. — Porra… — Ele passa a gozar junto comigo, ejaculando
forte na camisinha por dez, vinte segundos, antes de tombar o corpo
por cima do meu.

— Ei... — Dou risada, me virando para trás. — Não consigo respirar.


Você não é exatamente pequeno, sabia?

— Eu sei que sou grande. Obrigado. — Sorri convencido.

— É mesmo... Me sinto arrombada. — Solto uma gargalhada, me


desvencilhando dele. — "Arrombada", que horror... Não acredito que
falei isso em voz alta.

— Você é engraçada. — Ele ri, retirando a camisinha. Dando um nó


na ponta, assegura que o sêmen não vaze. — Às vezes, parece que
não tem filtro.

— Nada mal, começar o ano arrombada depois de trepar no sofá da


sala. Isso é não ter filtro o bastante para você? — brinco,
recolhendo a camisola e a calcinha do chão. — Gostei.

Marcus pega suas roupas, vestindo as peças devagar. Parece


exausto.
— Espera aí... "Gostei"? — Ele segura o meu braço, erguendo uma
sobrancelha. — Só "gostei"?

— Ops… — Dou de ombros, já me dirigindo para a escada. — Não


vai me falar que você é daqueles caras que querem saber a nota.

— Não. — Ele vem atrás, subindo os degraus comigo. — Mas


"gostei" é brochante. É só isso que tem a dizer da nossa foda?

— Ih, a minha memória não é tão boa, acho que já esqueci como
foi... — Para na porta do meu quarto, segurando o riso. — E agora,
o que eu faço? — Levo uma mão à boca, brincando com ele.

— Só tem um jeito... — Marcus balança a cabeça, entrando no jogo.


Apoiando displicentemente uma mão no batente na porta, ele sorri
de ponta a ponta.

— Que jeito? — pergunto, sorrindo de volta, sem me conter.

— Vamos ter que repetir a dose amanhã.


Vou dizer tudo que estou pensando
Estou irritado e cansado do jeito
Como as coisas têm sido
Believer ~ Imagine Dragons

MARCUS VENTURINI

O restante da semana passa voando.

Depois daquele primeiro de janeiro, quando Hannah e eu transamos


na sala, não paramos mais.

Voltei a trabalhar no dia seguinte, uma quarta-feira.


Naquela manhã, sem planejar nada com antecedência, nós demos
início a uma rotina absurdamente boa. Uma coisa natural que
simplesmente fluiu no dia dois. E no dia três. E de novo. E de novo.

A primeira parte da rotina é uma sessão de foda matinal. Quem


acorda primeiro procura o outro e mandamos ver. E por incrível que
pareça fica melhor a cada vez.

Ao longo dos dias, venho explorando cada pedacinho do corpo de


Hannah, como um território novo a ser desbravado. Descobri o que
a faz rir. O que não gosta. O que a enlouquece.

Depois do sexo, temos o ensaio de ballet. Para todos os efeitos, é o


"nosso" ensaio, afinal, os funcionários da casa ainda acreditam que
sou bailarino.

Acompanho Hannah até o estúdio no andar superior da casa e,


sentado com as costas apoiadas no espelho frio, eu a observo
dançar por uma hora inteira.
A diaba se torna um anjo quando calça as sapatilhas, rodopiando,
sorrindo e flutuando ao som dos meus vinis. Quando escolhe o
Abbey Road e coloca "Something" para tocar na vitrola, é foda. Não
tenho como não me arrepiar inteiro.

Ao final de cada ensaio, vem o almoço refinado, digno de


restaurante cinco estrelas. A comida deliciosa é uma boa distração,
compensando um pouquinho o estresse da parte difícil. Que é
manter as minhas mãos longe de Hannah, diante dos inúmeros
funcionários que entram e saem com os pratos.

E é lógico que ela não ajuda, me provocando sempre que tem


oportunidade. Seja me alisando com o pé por baixo da mesa, seja
gemendo obscenamente ao provar a sobremesa. A criatividade da
diaba vai longe.

Em seguida, saio para trabalhar na Records e de lá parto para o


turno no Bulldog, voltando para casa depois das duas da
madrugada, quando Hannah já está dormindo.

Subo silenciosamente até o seu quarto, abro a porta com cuidado e


me aproximo da sua cama, sussurrando um "boa noite" quase
inaudível. Hannah nunca desperta, mas, em algumas madrugadas,
chega a esboçar um sorriso sutil, me levando a acreditar que
percebeu a minha presença.

Tomo uma ducha demorada e, antes de me deitar, desço até a


cozinha, encontrando na geladeira um lanche montado para mim.
Sempre com um post-it carinhoso grudado no prato, além do potinho
com balas de café ao lado.

Suas palavras escritas à mão me fazem sorrir, noite após noite.

Nunca fui tão mimado assim, por ninguém. Não posso querer mais
nada.
O papelzinho do lanche de ontem — um post-it no formato de uma
estrela amarela —, não consegui jogar fora. Depois de chegar
exausto do Bulldog, pensei que nada poderia me animar. Até
encontrar o bilhete.

"Boa noite, moço tatuado! Sei que aos sábados o Bulldog fica
insuportável de cheio. Por isso, preparei um sanduíche especial.
Espero que goste. Da sua, Hannah."

Hesitei ao ler as palavrinhas que antecediam o nome dela.

Hannah é minha? Não, não é.

Porra... Nunca conversamos sobre uma eventual alteração no nosso


status de pessoas solteiras e livres, praticantes de sexo sem
compromisso. Por que mudar algo que funciona tão bem? Todo
mundo sabe que não se mexe em time que está ganhando.

Nossa relação é incrível, na cama e fora dela. Nos damos bem pra
caralho. As conversas sobre músicas, filmes e séries. A companhia
confortável, mesmo quando silenciosa. As brincadeiras bobas
repletas de segundas intenções. As provocações. As intimidades.

Isso definitivamente é o mais próximo que conheço de um


relacionamento.

Só que não tenho tempo nem disponibilidade para um namoro de


verdade, com a minha rotina fodida de dois empregos, além da
faculdade que vai voltar em poucas semanas.

Aposto que nem Hannah cogita a ideia de namorarmos. É uma


ideia… Sei lá… Absurda. Descabida. Impensável.

Mas, se é mesmo impensável, por que não paro de pensar nela?


Que merda...
De qualquer maneira, guardei o bilhete no bolso.

Ao mesmo tempo, escondi aquela ideia inominável em um canto


obscuro do cérebro, pretendendo não mais trazê-la à tona. É melhor
assim.

Ao acordar no domingo, descubro que são quase dez horas.


Cacete… Eu nunca fui capaz de dormir até tarde antes de me
mudar para cá. Isso é bom? Não sei. Só sei que não consigo
organizar uma única linha de raciocínio, com os pensamentos ainda
anuviados de sono.

Mexendo no celular, encontro uma mensagem de Hannah:

09:32. Hannah: "Bom dia, Belo Adormecido. São 09h30 e você


ainda não acordou, espero que esteja vivo. Vou para um brunch
com os meus padrinhos, volto no final da tarde. Peça o que
quiser comer pelo delivery, deixei o cartão. Os funcionários
estão de folga, portanto, nada de almoço do Jean. Aproveite o
domingo para descansar, viu? E beba água. Beijos!"

Ainda bocejando na cama, passo a digitar umas frases.

09:58. Marcus: "Bom dia, linda. Estou vivo, obrigado. E é óbvio


que não vou usar o seu cartão. Eu me viro para fazer o almoço.
Até mais tarde. Beijos."

Sua resposta vem logo em seguida, me fazendo rir.

09:59. Hannah: "Favor não destruir a cozinha da minha mãe!


Aposto que é um péssimo cozinheiro!"

10:01. Marcus: "Assim você me ofende. Por que acha isso?"

10:02. Hannah: "Porque você já é muito maravilhoso em muitas


outras coisas. Não seria justo, para competir com os demais
homens do mundo, que fosse maravilhoso na cozinha
também."

Porra… Balanço a cabeça para os lados, assimilando aquelas


palavras.

10:04. Marcus: "Só você para transformar uma ofensa barata


em um puta elogio. Incrível."

10:05. Hannah: "Você só merece elogios, meu anjo."


Após preparar um espaguete ao alho e óleo, arrumo a bagunça da
cozinha e me jogo na cama, escutando música por horas a fio.
Mesmo entediado, não saio mais do quarto. Sem Hannah aqui
comigo, me sinto um verdadeiro intruso. É esquisito ficar sozinho na
mansão da família dela.

No final da tarde, decido descer para tomar água. Ao chegar ao


andar de baixo, escuto o barulho da porta da frente.

— Boa tarde! — Hannah me cumprimenta assim que pisa no hall,


sorrindo com os lábios pintados de rosa.

— Lembrou que tem casa? — Caminho até ela, que rodeia meu
pescoço com um braço.

— Dane-se a casa, não senti falta dela. Senti de você — diz, me


pegando desprevenido. Não costumamos fazer declarações nem
nada do tipo, mas confesso que gostei de escutar aquelas palavras.

Sem falar nada, eu a seguro pela cintura e vou empurrando até a


parede.

— Marcus... — Hannah espalma mãos no meu peito. — É sério,


senti a sua falta. Não te vejo desde o almoço de ontem e… — Na
ponta dos pés, dá um selinho nos meus lábios. — Fiquei com
saudades.

— Porra... Um dia e meio. Uma eternidade — brinco, para não falar


que também senti saudades. — As saudades são de mim ou da
minha rola? — Desço os olhos para os seus dedos que contornam o
meu pau.

— Pode ser das duas coisas? Não tenho culpa... — Sobe as mãos
por dentro da minha camiseta, apalpando o abdômen. — Me deixou
mal-acostumada com o sexo matinal. Hoje não teve, fiquei subindo
pelas paredes.

— Já entendi. — Sorrio de lado, descendo as mãos para a sua


bunda, entrando por baixo da saia preta. — Quer dar uma rapidinha
aqui mesmo?

— Quero — responde em meio a um gemido enquanto deposito


beijos em seu pescoço, passeando com os lábios pela pele macia.
— Quero muito. Inclusive, acabei de reparar que ainda não
transamos em pé. Talvez por ser esforço demais para a sua idade.
Sabe como é, pessoas do século passado já não têm tanto vigor.
São mais cansadas e tal.

Suas mãos continuam me apavorando por dentro da camiseta, me


alisando e me arranhando, enrijecendo o meu pau.
— Você vai ver a falta de vigor quando eu te rasgar ao meio... —
Sem soltar a sua bunda, deslizo a boca pelo seu ossinho da
clavícula, lambendo lentamente toda a extensão da "saboneteira"
como sei que ela gosta.

— Ai... — Ela arqueia a coluna. — Já descobriu o meu ponto fraco.

— Das vantagens de transarmos todos os dias… Quer saber qual é


o meu? — Giro o seu corpo, prensando a sua barriga contra a
parede. Levantando a saia, embolo a peça na altura da cintura e
desfiro um tapa estalado na carne macia. — Sua bunda gostosa...
Quando vai me deixar brincar de verdade com ela? Não curte sexo
anal? — Puxando a calcinha para o alto, enfio mais o tecido entre as
nádegas, friccionando para cima e para baixo.

— Não sei... Ainda sou virgem na parte de trás.

— Porra, linda... Eu…

Do nada, a campainha toca, nos paralisando por dois segundos.

— Ué, a portaria não interfonou. Que estranho… — Hannah


sussurra. — Deve ser engano.

Então, quando a campainha ressoa pela segunda vez, um toque


mais comprido, ela se desvencilha de mim, baixa saia e alisa a
blusa, se recompondo.
— Já vou! — ela grita na direção da porta. — Dá um jeito nisso,
Marcus... — murmura, apontando para o meu pau duro dentro da
bermuda.

Que merda... Quem será o empata-foda?

Me sento em um dos degraus da escada e ajeito a ereção dentro da


cueca, disfarçando o volume.

Hannah espia pelo olho mágico e vira depressa o rosto para mim.
Franzo o cenho ao vê-la mais pálida.

— Presta atenção, Marcus. Eles não podem saber sobre a gente.


Ninguém pode saber.

Porra... Não gostei.

Independentemente de quem quer que seja do outro lado, não


gostei.

Me sentindo impróprio para ela, como um maldito segredinho sujo,


pigarreio quando um gosto amargo se espalha pela minha boca.

Enfim, Hannah abre a porta e não dá passagem a ninguém. Ela fica


parada no vão, passando os dedos pelos cabelos, prendendo as
mechas em um rabo.

— Oi, pessoal. — Eu a escuto falar. — Tudo bem? O que foi?


— "O que foi?" Pelo jeito, você se esqueceu da nossa jogatina de
domingo — uma voz masculina a repreende. — Hoje é aqui.

— Minha nossa, Will... Eu me esqueci mesmo. — Hannah leva uma


mão à testa. — Não preferem fazer na sua casa? Não deu tempo de
preparar nada aqui, acabei de chegar dos meus padrinhos.

— Nós trouxemos tudo, Nana. — Outra voz masculina entra na


conversa. — Os jogos, a pipoca, as bebidas, a erva. Deixa de
putaria que a sua casa é a única sem adultos.

— "Sem adultos", Dani? — Ela dá risada, ainda impedindo a


passagem dos visitantes. — E nós somos o quê?

— Jovens — responde em um tom brincalhão antes de passar um


braço pelo pescoço de Hannah. Quando ele beija a bochecha dela,
eu prendo a respiração. — Você anda sumida, estou com saudades.
Se anima, vai…

— Tá bom! — Ela suspira, dando-se por vencida. Ao sair da frente


da porta, todos entram no hall. — Pessoal, vocês se lembram do
Marcus? Ele vai ficar com a gente.

Ainda sentado em um dos degraus da escada, olho para os dois


caras e para a garota, os reconhecendo da outra noite, quando
foram ao Bulldog. Daniel, William e Júlia.
Daniel faz a linha do playboy bombado, vestindo uma camiseta
regata branca que deixa à mostra os braços musculosos ridículos.
Já William é um playboy mais discreto, desfilando com uma camisa
polo azul de grife. Por sua vez, Júlia parece a patricinha padrão,
vestindo calça legging e blusinha com o emblema de alguma marca
cara.

Eles me cumprimentam, e eu os cumprimento de volta.

— Ele vai jogar também? — William pergunta, me observando com


desconfiança.

— Não, obrigado — respondo, mas a minha voz é abafada pelo


"Sim, ele vai!" de Hannah.

— É que para os jogos precisamos de duplas. Com ele, estaremos


em cinco. Número ímpar. Assim fica complicado — William aponta,
sem disfarçar a antipatia. Qual é o problema do filho da puta
comigo?

— Ah, a gente dá um jeito, vai revezando, sei lá. — Hannah dá de


ombros, me puxando pela mão. — Vamos logo para o deck da
piscina.

Fico em pé, ainda confuso com aquele cenário, e acompanho o


grupo para fora do hall. Pensei que Hannah me soltaria depois que
eu me levantasse, porém ela permanece de mãos dadas comigo.
Andando na minha frente, a garota ruiva carrega duas sacolas.

— Júlia, quer me passar uma das sacolas? — ofereço ajuda.

— Não precisa, obrigada. Estão bem leves — diz com educação,


me olhando por cima do ombro. Ao sorrir, forma covinhas nas
bochechas sardentas.

Daniel passa a andar do outro lado de Hannah pelo corredor térreo,


nós três atrás de William e Júlia.

Noto que o playboy bombado está me observando com atenção,


reparando na mão de Hannah ainda presa à minha.

— Vão indo, pessoal… Preciso fazer um telefonema. — Ele para de


andar e puxa o celular do bolso. Depois, caminha no sentido
contrário e retorna para o hall.

Minutos mais tarde, nós cinco estamos sentados em uma mesa


redonda ao ar livre na parte frontal do deck da piscina. Não me sinto
nada à vontade.

O ar quente da noite de verão faz com que um fio de suor deslize


pela minha coluna, me deixando ainda mais desconfortável.

Acendendo um cigarro, me pergunto pela milésima vez o que estou


fazendo aqui. Em uma porra de uma mansão, cercado por riquinhos
mimados que só falam merda.
Todos já estão na segunda ou terceira cerveja. Com as caixas dos
jogos ainda fechadas, chego à conclusão de que a tal "jogatina de
domingo" não passa de um pretexto para a bebedeira.

Na caixinha de som, toca uma playlist da banda Imagine Dragons,


que não curto tanto quanto as de rock antigo, mas tudo bem. Ouvir
música, até quando é ruim, é bom.

First things first


I'ma say all the words inside my head
I'm fired up and tired of the way
That things have been
(Em primeiro lugar
Vou dizer tudo que estou pensando
Estou irritado e cansado do jeito
Como as coisas têm sido)

Apenas as garotas falam esporadicamente comigo e, agora, as duas


estão olhando para uma bobagem no celular, dando risada. Hannah
parece outra pessoa com os amigos. Mais artificial.

Já os caras não fazem qualquer questão de puxar assunto, e desisti


de tentar fazer uma amizade depois que lancei uma pergunta e me
ignoraram. Que se fodam…

Dou mais uma tragada no cigarro e subo os olhos para o céu


estrelado, pensando em arranjar uma desculpa para fugir daqui.
De repente, todos os olhares voam para um ponto atrás de mim.
Pela expressão de pânico de Hannah, sei que coisa boa não é.

Tomo coragem e me viro devagar, quase me engasgando com a


fumaça ao enxergar Samanta vindo em nossa direção. Com um
vestido tomara-que-caia branco, ela caminha de maneira
desengonçada com aquela pesada barriga de grávida.

— É aqui que faltava uma pessoa para jogar? Cheguei! —


Tombando a cabeça de lado, a garota me encara com os olhos
vidrados.

Fodeu.
Haverá uma resposta, deixe estar
Let It Be ~ The Beatles

HANNAH MÜLLER

— É aqui que faltava uma pessoa para jogar? Cheguei — anuncia


Samanta, fixando os olhos em Marcus. Ele fecha o semblante de
imediato.

Perplexa com a aparição dela, percorro com o olhar o nosso grupo,


descobrindo que William e Júlia parecem tão surpresos quanto eu.
O único rosto que está tranquilo é o de Daniel, e seu sorriso
debochado entrega que é o responsável pela chegada da garota.
— Oi, Sam. Você veio... Faz tanto tempo que não aparece. — Me
levanto para cumprimentá-la, a abraçando meio sem jeito.

Eu não a vejo desde o dia que me questionou sobre a Honda


estacionada na minha casa. Naquela ocasião, Sam errou feio ao
descrever as tatuagens de Marcus, me fazendo desconfiar de tudo.
Agora, eu a enxergo com outros olhos.

Samanta mentiu para mim, me magoando e, pior, quase me levando


a cometer uma injustiça contra Marcus. Por outro lado, quebrei a
promessa que fiz a ela, que me pediu para não transar com ele. Já
era... Tenho a plena consciência de que algo se quebrou em nossa
amizade para sempre.

— Oi, Nana. Estou saindo mais de casa agora que me sinto mais
disposta. A azia da gravidez me deu uma trégua — explica,
passando a mão pela barriga redonda. — Hoje temos mais um
integrante no grupo? — Aponta com a cabeça na direção do homem
que mal respira na cadeira, de tão apreensivo. — Tudo bem com
você, Marcus?

— Tudo ótimo — ele murmura, a mandíbula rígida, baixando a


cabeça para levar o cigarro aos lábios.

— Comigo e com o seu bebê também está tudo ótimo, obrigada por
perguntar — ela provoca. Sentando-se ao lado dele, Sam dá um
tapinha no joelho tatuado.
Marcus fica em pé no mesmo instante, como se tivesse levado um
choque. Ele apaga o cigarro praticamente inteiro no cinzeiro, com os
dedos tremendo de raiva.

— Porra... Você nunca vai me deixar em paz? — rosna com o olhar


gelado.

Sem falar mais nada, sai andando a passos furiosos e entra na


casa, batendo a porta atrás de si.

— Grosso... — Júlia deixa escapar antes de virar o rosto para


Samanta, que está com os olhos cheios de lágrimas. — Não fala
mais com ele, amiga. Esquece. Já te disse que não vale a pena.

— Eu também acho que tudo isso é perda de tempo — Will opina,


tomando mais um gole de cerveja. — Nana ter trazido o cara para
cá, o plano de vingança e etc. Deixa pra lá, Sam. Nem da pensão
dele você precisa. O cara é um fodido.

— Concordo. Por mim, vocês podiam parar por aqui. Manda o


homem embora, Nana. Volta a ser loira, que o tom combina mais
contigo. Vida que segue — diz Daniel, enrolando um baseado. —
Sam, você não vai ser a primeira e nem a última mãe solteira da
cidade. Tá tudo bem.

Samanta passa a chorar compulsivamente, cobrindo o rosto com as


mãos. Droga.
Não sou capaz de falar nada, nem respirar direito eu consigo, com
os batimentos descontrolados me sufocando. Como contar a
verdade aos meus amigos? Que eu já abandonei o plano há
tempos? Que Samanta é uma mentirosa e…

O ronco barulhento da Honda interrompe os meus pensamentos.


Todos nos viramos a tempo de ver Marcus partindo com a moto a
toda velocidade, deixando a garagem lateral da casa, sem olhar
para trás.

O clima fica horrível e logo todos vão embora.

Estou até enjoada, muito aflita com a situação, sabendo que preciso
falar a verdade a Marcus, mas morta de medo de que ele nunca
mais olhe na minha cara. E errado não estaria...

O problema é que, quanto mais eu demorar, pior vai ser. A gente


está se envolvendo de um jeito muito intenso e, conforme o conheço
melhor, mais encantada eu fico.

Marcus é responsável, determinado, inteligente, atencioso,


gostoso... A lista das qualidades é infinita. Ainda por cima, tem uma
"pegada" que... Minha nossa… Nunca estive tão satisfeita com a
minha vida sexual quanto nos últimos dias.
Deitada no sofá da sala com um programa aleatório passando na
televisão, checo pela milésima vez o celular na esperança de
notícias dele.

São quase dez da noite e estou apavorada com a ideia de que não
volte para casa. Onde ele vai dormir? E com quem?

Com o coração apertado no peito, digito uma mensagem rápida,


aproveitando para preparar o terreno para aquela conversa tão
temida.

Hannah: "Marcus, volte para casa, por favor. Eles já foram todos
embora. Tenho algo importante para conversar com você."

Não recebo resposta. Não sei quanto tempo depois, adormeço no


sofá.

Desperto com um barulho diferente, estalando como uma chuva de


granizo. Logo percebo que são as pedrinhas da frente de casa,
sendo espalhadas com tudo. Escuto também o ronco do motor da
moto, que derrapa e, pelo estrondo, cai contra o chão.

Me levanto em um pulo e corro até a porta de entrada, encontrando


Marcus já no hall, a caminho da escada.
Seu rosto suado está fracamente iluminado pela luz amarelada do
único abajur aceso. Me aproximando, enxergo um filete de sangue
escorrer do seu nariz.

— Marcus... — murmuro, espantada com seu estado. Mal parando


em pé, está apoiado com os cotovelos no corrimão, o corpo
inclinado para um lado.

Seus olhos estão pesados, mais opacos. Seus cabelos


desgrenhados e úmidos de suor completam o quadro lastimável.

— Fala.

O tom arrastado de sua voz deixa claro que bebeu. E não foi pouco.

— O que houve com você?

— Caí da moto ao estacionar. Bati o rosto no guidão. Acontece. —


Desvia o olhar, focando em um ponto qualquer no chão.

Quero lhe perguntar o porquê de ter bebido, de ter perdido o


controle, porém acho melhor conversar com calma depois, em outro
momento. Quando ele estiver sóbrio.

— Vem, vamos limpar o seu rosto. O sangue está quase entrando


na sua boca. — Faço menção de alcançar seu braço, mas ele se
afasta.
Virando as costas, passa as mãos pelos cabelos, duas, três vezes.
Depois, gira o corpo de volta para a frente, esquadrinhando o meu
rosto com os olhos embaçados.

— Hannah, por que você se preocupa?

— Por quê? — Sua pergunta direta me pega desprevenida.

— É... Por que se preocupa comigo? Se o que temos é apenas sexo


e…

Droga. Não me sinto preparada para uma D.R. agora. Mas, quer
saber? Chega de mentiras. Respirando fundo, decido jogar limpo.

— Porque eu gosto de você, Marcus.

— Eu também gosto de você. E isso me dá um puta medo —


rebate, sem desviar os olhos dos meus.

— Tudo bem ter medo, às vezes. Hoje eu senti medo de que você
não voltasse…

— Estou aqui — ele diz.

Marcus dá dois passos na minha direção e alcança as minhas


mãos. Me acariciando com os polegares levemente ásperos, arrepia
todos os pelinhos dos meus braços.
— Fico feliz. — Sorrio, mais abalada do que eu gostaria de admitir.
— Agora me deixa cuidar de você? Vem, vamos subir...

Passando um braço pela sua cintura, dou apoio a Marcus para que
consiga andar em linha reta. Subimos juntos os degraus e o levo até
o banheiro do seu quarto, já abrindo o chuveiro dentro do box.

Depois, eu o ajudo a se despir e o conduzo até o banho. Ele se


posiciona embaixo da ducha, as mãos espalmadas no vidro,
permitindo que a água fria escoe por seu corpo e limpe o sangue do
seu rosto.

Marcus abaixa a cabeça e fica parado por longos minutos sob o


chuveiro, até que ergue os olhos, os cílios pesados pingando água.

— Venha aqui comigo — diz em um tom incisivo, quase autoritário.


Um pedido que beira a comando. Despindo as minhas roupas, me
junto a ele.

Marcus percorre lentamente o meu corpo nu com os olhos. Sem


aviso, me prensa contra a parede de azulejos, me beijando com
tanta avidez, que é como se dependesse disso para respirar. Seu
beijo é uma mistura de nicotina, uísque e desespero, quase me
engolindo.

— Marcus... — ofego, separando os nossos rostos. — O que você


tem? Quer me enlouquecer?
— O que eu quero é... — Desliza o polegar pelo contorno da minha
boca, me encarando com os olhos brilhantes. — Ter você só para
mim. Para que nada mais me perturbe. Para que nada mais importe.

Em um movimento rápido, ele me pega no colo com um braço.


Agarro o seu pescoço para me equilibrar.

— Vamos para o quarto. — Ele fecha o chuveiro com a mão livre,


pega uma toalha e me leva para fora do banheiro.

— Para o meu quarto, a cama é maior — peço, encaixando o rosto


no seu pescoço quente. Marcus assente, me carregando pelo
caminho.

Ao me pousar na minha cama, passa a me secar cuidadosamente


com a toalha. Eu não falo nada. Fico apenas apreciando suas mãos
me enxugando da cabeça aos pés. É muito relaxante e, ao mesmo
tempo, extremamente excitante.

— Hoje vamos fazer algo diferente… — comenta e meu coração


dispara em expectativa. "Diferente"? Já transamos em quase todas
as posições imagináveis e…

De repente, uma dúvida corta os meus pensamentos:

— Você já está bem para transar? — pergunto e ele permanece em


silêncio. Mantendo os olhos baixos, parece… Não sei. Sem graça?
Fico aguardando uma resposta enquanto o observo esfregar a
toalha nas minhas solas dos meus pés. O restante do meu corpo já
está completamente seco.

— Nós não vamos transar, Hannah. Vamos apenas dormir juntos —


diz com firmeza, sem dar espaço para discussão. — É algo
diferente, não é? — completa e meu queixo cai.

Nós nunca dormimos juntos. Por mais que tenhamos feito sexo
milhares de vezes, cada um passava a noite em seu quarto. Meu
Deus… Jamais pensei que ele proporia isso ao dizer "algo
diferente".

— Sim, é… — concordo, ainda atordoada.

Marcus esfrega depressa a toalha por seu corpo e se afasta para


apagar a luz do teto. Depois, vem até a cama, acende o abajur e se
deita do meu lado, me puxando para perto pela cintura. O contato
pele a pele é tão perfeito, íntimo, acolhedor... Por que não fizemos
isso antes?

Nós dois estamos completamente nus, porém a nudez, aqui, não é


sedutora ou provocativa. Pelo contrário, é simples, agradável,
absurdamente natural.

— Boa noite, linda. Obrigado por tudo.

Pela voz estável, Marcus parece sóbrio.


Aperto os olhos, me perguntando se não devo aproveitar o momento
para contar a ele toda a verdade. Sim, sim. Postergar a questão vai
apenas piorar as coisas.

Vou contar. Seja o que Deus quiser.

— Marcus… — Quando reabro os olhos, enxergo seus lábios


sorrindo de leve.

O homem está olhando para mim de um jeito tão lindo que...

Perco a coragem.

Desperto com Marcus sussurrando meu nome. Seus dedos


começam a acariciar suavemente meu rosto, os nós calejados
deslizando pela bochecha, pela linha da boca e pelo queixo, indo e
vindo.

Abrindo os olhos, percebo a claridade do dia através da janela.

— Que horas são? — resmungo, levando uma mão ao seu peito.


Passo a contornar suas tatuagens sinuosas, apreciando o calor da
pele lisa.
— Quase sete horas, cedo demais. Quer voltar a dormir? —
pergunta, as íris azuis mais claras do que nunca. Seus dedos
descem para acariciar meu pescoço. Faço que não e continuo
olhando em seus olhos, quase hipnotizada.

Ficamos por longos minutos apenas nos tocando assim.

Minha cabeça gira com a ideia de contar a ele toda a verdade,


pensando nas formas de abordar a questão. E nas consequências.

"Marcus, eu me aproximei de você para foder com a sua vida, por


ter maltratado a minha amiga que se dizia grávida do seu bebê.
Como eu já sabia muitas coisas a seu respeito, moldei o meu modo
de agir para lhe atrair. Parte do plano era fazer você se apaixonar
por mim. É horrível, eu sei. Mas a outra parte é ainda mais
desprezível. A ideia era acabar com o seu sonho de se formar pela
ESPM. Vê-lo expulso da faculdade e, de quebra, com o coração
partido."

Senti ânsia de vômito ao relembrar os detalhes da vingança. Como


pude ser tão sórdida?

"Mas, depois que lhe conheci, não consegui ir adiante. Desisti do


plano e acreditei em você, que me contou que nunca se deitou com
Samanta. Vamos recomeçar? Me perdoe, por favor. Não quero
perder você."
Meu pedido desesperado de desculpas soava patético em
comparação à monstruosidade do plano inteiro. Marcus vai explodir.
Surtar. Me xingar. Ele vai me odiar. Ou simplesmente me desprezar.

Não sei. Só sei que cada uma das possíveis reações que prevejo dá
no mesmo resultado.

Marcus vai me deixar.

Por isso, de uma maneira absolutamente egoísta, tomo uma


decisão: senti-lo dentro de mim, uma última vez, antes de jogar a
bomba que vai nos destruir.

Estamos no estúdio de ballet, no andar superior da casa. Sozinhos.

Tranco a porta atrás de mim, os dedos formigando em antecipação.


Estou descalça, vestindo apenas o collant branco — que é o
preferido de Marcus —, além da meia-calça enrolada na altura dos
tornozelos.

— Vou colocar uma música... — Me agacho em frente à vitrola, com


a intenção de deixar a nossa última vez ainda mais especial.

Ligando o aparelho, escolho uma faixa que sei que ele vai aprovar.
Quando os Beatles começam a cantar "Let It Be", Marcus abre um
sorriso tão bonito que quase me faz explodir em lágrimas. Engolindo
o choro, prendo os cabelos em um coque alto, deixando o pescoço
completamente à mostra.

When I find myself in times of trouble


(Quando me encontro em momentos difíceis)

— Dança para mim, linda — ele pede, recostando os quadris em


uma das paredes. Todas elas são cobertas por espelhos.

Eu me aproximo em câmera lenta. Me esticando na ponta dos pés,


colo nossos lábios. Degustando sua boca macia e carnuda,
estremeço com o sabor agridoce da despedida.

Me afasto para dançar a música. Para dançar para ele.

Me movimento graciosamente pelo estúdio, saltando e rodopiando,


os olhos azuis de Marcus me acompanhando o tempo inteirinho.

And when the brokenhearted people


Living in the world agree
There will be an answer, let it be
(E quando as pessoas de coração partido
Vivendo no mundo concordarem
Haverá uma resposta, deixe estar)

Quando a música termina, estou completamente ofegante, o peito


subindo e descendo rápido, marcando sob o collant.
Os olhos de Marcus passeiam do meu rosto aos meus seios, os
mamilos pontudos visíveis através do tecido.

Apoiando as mãos na barra de metal atrás de mim, me dirijo a ele:

— Pega a minha toalhinha, por favor? — peço, indicando a mesinha


ao lado da vitrola.

Quando Marcus me atende e pega o objeto, um pequeno quadrado


cai no chão.

— Camisinha? — pergunta, já esboçando um sorriso de canto. Ele


se agacha e alcança a embalagem antes de andar na minha
direção.

Na metade do caminho, dispensa a camiseta e quase me engasgo


com a visão de seu corpo perfeito vindo até mim, as tatuagens mais
nítidas sob a luz branca.

— Gostou da surpresa? — Sorrio de volta, com o coração batendo


mais forte. — Mas não devemos demorar ou os funcionários podem
estranhar. Hoje é segunda-feira, estão todos em casa.

Marcus faz que sim antes de agarrar a minha cintura, me puxando


para um beijo rápido. Depois, em um movimento firme, inverte
nossas posições, ficando por trás de mim.

Esfregando a virilha na minha bunda, me faz pulsar inteirinha.


— Sonho em te foder nesse estúdio desde a primeira vez que pisei
aqui — diz, beijando o meu pescoço úmido de suor, mordendo e
chupando a pele sensível. — Com os espelhos por todos os lados,
será inesquecível...

— Essa é a intenção, meu amor — cochicho as últimas palavras. Eu


precisava dizê-las, mesmo que ele não as escute.

Jogando os braços para trás, passo a alisar seus ombros. Subo e


desço com os dedos do pescoço aos braços, sem conseguir tirar as
mãos da sua pele.

— Estou explodindo, linda… — Marcus afasta o corpo para descer o


zíper da bermuda, puxando a ereção pesada para fora. Em seguida,
abre rapidamente a embalagem da camisinha com os dentes e se
encapa, voltando para perto de mim.

— Quer que eu fique nua? — pergunto, subindo as mãos para as


alças sobre os meus ombros.

— Não. — Ele puxa a parte de baixo da peça para o lado e, em um


gesto vigoroso, rasga o forro da meia-calça, expondo a minha
intimidade. — Seu collant me dá um puta tesão.

Marcus passa os dedos pelas minhas dobras, espalhando a


lubrificação para cima e para baixo. Deixo escapar um gemido
quando ele os leva à boca, chupando de um jeito absurdamente
sexy.

— Está pronta? — murmura, posicionando a glande na minha


abertura, entre os lábios que latejam para recebê-lo.

— Muito. Vem... — suplico, apertando seus braços, me firmando em


pé.

Ele levanta o meu joelho com uma mão, me abrindo mais antes de
me preencher com uma única estocada, me invadindo até o fundo.

— Porra... — ofega, repetindo o ato. Sai por inteiro da minha boceta,


se arrastando para fora, para voltar a entrar lentamente, girando os
quadris, me estimulando ainda mais. — Olha só para isso,
Hannah…

Marcus está virando a cabeça de um lado para o outro, observando


a penetração pelos reflexos dos espelhos. Seu pau lambuzado
deslizando devagar para dentro e para fora de mim, a glande
proeminente indo e vindo, mais inchada dentro da camisinha.

— Está incrível... — Sorrio, apertando os olhos. — Uma perfeição.

— Perfeição somos nós juntos... — diz com a voz entrecortada e


reabro as pálpebras para vê-lo.
Sem desviar os olhos dos meus, Marcus passa a arremeter com
ritmo, as investidas duras pressionando meu corpo contra a barra de
metal.

Colocando os dedos em seu rosto, acaricio a bochecha corada,


úmida de suor, desejando memorizar aquela imagem dele para
sempre.

Ainda segurando meu joelho para o alto, Marcus continua


empurrando os quadris, me tomando em um vai e vem forte e
preciso. Ao mesmo tempo, ele leva a mão livre à minha face, as
pontas dos dedos contornando os lábios entreabertos.

E, quando seus olhos azuis se aprofundam nos meus, eu sei.

Eu sei que não é mais apenas sexo.

— Vamos gozar juntos? — murmuro ofegante.

Ele faz que sim com a cabeça, sem piscar.

Acelerando as estocadas, em segundos chegamos ao clímax. A


minha vagina pulsa com os espasmos do orgasmo, apertando
Marcus, que passa a jorrar a ejaculação na camisinha, enrijecendo o
corpo todo.

O homem desliza para fora de mim e tomba a cabeça na curva do


meu pescoço, puxando o ar pela boca, sem fôlego.
Acariciando sua cabeça quente, passo os dedos pelos seus cabelos
molhados de suor e espero nossas respirações se acalmarem,
pensando nas palavras que vou dizer a seguir.

As palavras que vão mudar tudo.

— Marcus, eu… — paro de falar quando o celular dele toca uma


música alta.

— É o toque do Seu Alfredo. — Dá um passo para trás, retirando a


camisinha depressa. — Ele nunca me liga e... Merda… Será que
aconteceu alguma coisa?

Antes que eu possa processar o que está acontecendo, Marcus


encaixa o celular na orelha, murmura duas palavras abafadas e
veste as roupas em um piscar de olhos, balbuciando um "preciso ir"
ao desaparecer do estúdio.
CAPÍTULO 21

Bem, você pode me derrubar, pisar na minha cara


Bem, faça qualquer coisa que queira
Mas, querida, fique longe dos meus sapatos
Blue Suede Shoes ~ Elvis Presley

MARCUS VENTURINI

— Eu disse a Elizabete que não era nada... — Sentado em seu


velho sofá marrom, Seu Alfredo passa a mão pela barba grisalha. —
Aquela minha vizinha é desesperada demais. Ainda não acredito
que pegou o meu celular e ligou para você.

Eu sou o contato de emergência dele. Assim como ele é o meu.


Pelo que entendi, Seu Alfredo passou mal durante um passeio com
Oz, provavelmente por causa do calor. Baixou a pressão ou alguma
merda do tipo.

— Talvez ela goste do senhor. Bete é bonitona? — mexo com ele,


que me lança um olhar mortificado em resposta.

É… Tem algo rolando com a vizinha, sim.

— Não quer mesmo que eu leve o senhor ao Pronto-Socorro? —


insisto, correndo os olhos pela sala. Duas caixas da mudança
recente continuam fechadas embaixo da janela.

Por causa da agressão que sofri no nosso antigo prédio — que me


levou a me mudar provisoriamente para a casa de Hannah —, Seu
Alfredo também decidiu sair de lá.

Seu novo apartamento é um puta "achado", por ter um valor


acessível e ser localizado em um bairro familiar. Muito melhor do
que aquele na periferia onde a gente morava.

— De jeito nenhum. — Ele é enfático.

De repente, Oz aparece na sala, a língua pendurada para fora da


boca. Quando me vê, corre até as minhas pernas.

— Pronto, pronto. — Dou dois tapinhas na sua cabeça peluda.


O cachorro marrom não para de me fazer festa, como se não me
visse há anos.

— Ele lhe adora, Marcus... Só não apareceu antes porque não lhe
ouviu chegar. Já não tem a mesma audição, está velho… Velho
como eu. — Seu Alfredo deixa o sofá, levantando-se devagar. —
Venha, vamos tomar um café.

Ele atravessa a sala para alcançar a bancada da cozinha, situada


no mesmo ambiente. É a tal da "cozinha americana", bem comum
nos apartamentos pequenos.

Ajeitando o açucareiro e as xícaras sobre a bancada, o homem me


indica a garrafa térmica.

— Obrigado. Não recuso um bom café... — Me sirvo da bebida, que


escoa fumegante.

— Está fresquinho, acabei de preparar. Gostou da minha nova


moradia? — pergunta, enchendo a sua xícara até a borda.

Espio ao redor, reparando melhor na sala e na cozinha. O


apartamento é modesto, porém agradável e bem-iluminado, com
janelas em duas paredes. Atrás de mim, está a porta de entrada. Do
outro lado, um pequeno corredor com três portas.

— Gostei. O que são aquelas três portas?


— O meu quarto, o banheiro e o outro quarto. Você poderia morar
aqui depois que acabar a sua estadia na mansão dos Von Trapp —
brinca, fazendo referência à família rica do filme clássico "A Noviça
Rebelde."

— É uma opção. — Balanço a cabeça, cogitando a possibilidade. —


Mas eu lhe pagaria pelo aluguel do quarto.

— Não precisa. Gosto da sua companhia. Pode me pagar colocando


as suas raridades para tocar ou passeando com o Oz, vez ou outra.
O saco de pulgas me pede para descer o dia inteiro, eu não
aguento.

"Suas raridades" são os meus discos de vinil. Seu Alfredo tem muita
admiração pela minha coleção, principalmente porque a maior parte
dos álbuns são de bandas da época dele.

— Certo. Daqui a um tempo voltamos a conversar. Os pais de


Hannah ainda vão ficar mais umas semanas viajando — explico,
dando mais um gole do café.

— E ela? É uma boa garota? — quer saber, apoiando os cotovelos


sobre a bancada.

— É, sim. Hannah é incrível — afirmo, sem conter um sorriso. — Me


mima pra caralho... Acredita que me deixa pronto um lanche todas
as noites para eu não dormir de barriga vazia depois de voltar do
Bulldog?
— Entendi. — Ele me observa com atenção, sorrindo de leve. —
Seus olhos brilhantes não deixam dúvidas, meu filho. Você está
apaixonado.

— Estou? — Estranho sua afirmação, pronunciada com tanta


segurança.

— Está. Aproveite. — Vira de costas, levando sua xícara à pia. —


Vá namorar a garota. Não existe nada melhor... Saudades das
minhas paixões da juventude — diz em um tom nostálgico.

— "Namorar"... Para falar a verdade, não sei bem como agir. Nunca
me envolvi assim com ninguém. É foda. — Respiro fundo, coçando
a nuca.

— Você acha que é recíproco? — Ele se volta para mim.

— Acredito que sim — admito confiante. — A gente se dá muito


bem, e ontem mesmo ela disse que gosta de mim. É... Acho que é
recíproco.

— Maravilha! — exclama ao dar um tapinha no meu ombro. — O


que está esperando, então? Garotas boas não ficam disponíveis
para sempre.

— Tem razão. — Balanço a cabeça, tomando a decisão mais


emocionante da minha vida. — Vou pedi-la em namoro.
Enquanto volto para casa, aproveito para repassar os últimos
acontecimentos, me fortalecendo para dar o próximo passo.

No comecinho da manhã, acordei com um peso diferente sobre a


barriga. Levei dois segundos para me dar conta de que tinha
dormido com Hannah. Na cama dela. Era a primeira vez que
dormíamos juntos.

Sua perna estava largada em cima do meu abdômen, subindo e


descendo no ritmo lento da minha respiração. Sua pele bronzeada,
quase dourada, refletindo a luminosidade do sol que entrava pela
janela, cobria a minha tonalidade mais pálida repleta de tatuagens
escuras.

Era um contraste bonito pra caralho, como o Yin-Yang. Hannah era


a luz. Eu, a a escuridão.

Não resisti e apoiei uma mão na sua coxa macia, me perguntando


quando foi que as coisas mudaram.

Depois de um período — curto, porém intenso — de convivência,


Hannah disse que gostava de mim, confirmando com palavras o que
suas atitudes já me mostravam.
Sua delicadeza, sua preocupação, seu cuidado comigo, dia após
dia, derrubaram o muro de desconfiança que eu havia construído e
cultivado ao longo dos anos.

Por fim, relembrei a nossa conversa de ontem. Nem mesmo a


quantidade enorme de álcool circulando no meu organismo me
impediu de gravar as palavras:

— Por que se preocupa comigo? Se o que temos é apenas sexo…

— Porque eu gosto de você, Marcus.

— Eu também gosto de você.

Chego em casa perto de meio-dia.

Encontro Hannah por acaso ao lado da garagem, ela tinha acabado


de estacionar o carro.

— Oi, moço tatuado! Chegamos juntos. Tudo certo com Seu


Alfredo? — pergunta, sabendo que eu estava na casa do homem.

Mais cedo, mandei uma mensagem explicando por alto o que tinha
acontecido. Não agi certo com ela ao sair correndo do estúdio de
ballet, mas, naquela hora não pensei em nada, extremamente
preocupado com meu antigo vizinho.
— Oi, linda. Tudo certo. — Desligo o motor da Honda e retiro o
capacete. — Onde estava?

— Fui até a faculdade levar a documentação que faltava e pegar a


lista de material. As aulas começam em exatamente três semanas,
estou tão ansiosa… — Abre um sorriso lindo.

— Preparada para o trote, bichete? Prometo pegar leve com você.


— Desço da moto, bagunçando os cabelos amassados do
capacete.

— Agradeço. — De repente, Hannah para de sorrir. — Marcus, eu


queria lhe falar que… — Sua voz morre e sua pele empalidece.

Os olhos cor de mel continuam presos aos meus, esbanjando


ansiedade.

— Fala. — Enfio as mãos nos bolsos, pressentindo que coisa boa


não é. Lá vem merda…

— Eu... Me dei conta de que estou pegando o veterano mais


gostoso da ESPM — diz, mordendo o lábio inferior. — Uma pena
que ninguém pode saber... As outras garotas da faculdade
morreriam de inveja de mim.

— Me lembre o motivo... Por que ninguém pode saber?


— Ah, os meus pais... Esqueceu? Eles pensam que você é um
bailarino que…

— Mas na faculdade não vou ser um bailarino — eu a interrompo. —


E, depois que eu não morar mais aqui, não vou precisar prosseguir
com essa farsa ridícula. Aliás, acho que já tenho um lugar para
morar e... — Me calo, percebendo que Hannah parece muito
nervosa, com o rosto ainda mais pálido. — O que foi, hein? Tem
algum outro motivo para que ninguém possa saber da gente?

— Tem... — balbucia ao baixar o rosto, sem conseguir sustentar o


meu olhar. Porra…

— Você tem vergonha de mim?! — disparo, subitamente enjoado.

— Não! É lógico que não! — exclama, agarrando as minhas mãos.


Suas palmas estão úmidas e geladas, me assustando. — Nunca
mais diga esse absurdo! Você é perfeito!

— Então, por quê? — pressiono.

— Samanta…

— Que se foda a Samanta! — explodo, exausto dos aborrecimentos


que aquela mentirosa traz para a minha vida.

— Ela gosta de você e... Está grávida...


— Já disse que o filho não é meu! Nunca transei com ela. — Me viro
de costas e passo as mãos pelos cabelos, respirando fundo.

Quando me volto, pouso as mãos nos ombros delicados de Hannah.

— Me desculpe por ter gritado com você. É que tudo o que envolve
a Samanta me aborrece pra caralho.

— Tudo bem — murmura baixinho, me presenteando com um


pequeno sorriso.

— Linda, me escuta... Não tenho culpa se a garota gosta de mim,


não posso fazer nada a respeito. E não acho justo que a gente não
possa se assumir por causa dela. Se a gente se gosta e... Eu só
quero ficar com você, Hannah.

Seus olhos se arregalam, quase saltando das órbitas. Prendendo o


ar em expectativa, torço para que ela não me afaste mais.

— Você está certo. — Ela me abraça apertado. — Eu também só


quero ficar com você, Marcus — completa, acalmando meu
coração.

Porra... Solto o ar pela boca, uma tonelada mais leve.

— Só te peço paciência... — Hannah volta a falar, subindo o rosto


para me olhar nos olhos. — Vamos esperar só um pouquinho antes
de nos assumir diante das pessoas, e precisamos pensar no melhor
jeito de fazê-lo. Não quero que Samanta passe mal, prejudicando o
bebê.

— Ok — concordo, satisfeito em saber que é apenas uma questão


de tempo.

Depois do almoço, coloco para tocar pela última vez o vinil do Elvis,
balançando os pés no ritmo do rei do rock 'n' roll. Em seguida, enfio
o álbum na mochila e parto para o meu trabalho na Records.

— Você tem certeza? — Raul me olha com desconfiança,


segurando o disco nas mãos como se fosse um pedaço do Santo
Sudário. — É uma das preciosidades da sua coleção. Tem as faixas
mais importantes… Tem "Blue Suede Shoes"! O hino, Marcus!

— Eu sei, eu sei... — repito, na falta de algo melhor para falar.

— E você tem um carinho especial por ele. Posso saber por que
decidiu se desfazer? O cliente me pergunta pelo disco há anos,
você nunca quis vendê-lo. — questiona, franzindo as sobrancelhas
grossas.

— Simples. Preciso do dinheiro. — Dou de ombros, como se vender


meu disco raro do Elvis não fosse nada de mais. Caralho... Sangra
meu coração, porém, não vou voltar atrás da decisão. — Quero
levar a minha futura namorada para jantar no final de semana. Os
seiscentos reais vão cair bem.

— Um jantar de seiscentos reais? Onde pretende levar a garota? —


dispara, com as bochechas gordas rosadas de espanto. — Por que
não vai com ela à lanchonete do Johnny? Servem o melhor
hambúrguer da Vila Madalena e você não vai gastar nem cem reais
— sugere, tentando ajudar.

— Hannah merece mais, Raul. Já me decidi. Pode ligar para o


cliente.

Vou embora da Records sem o disco na mochila, mas com


seiscentos reais a mais na carteira.

Sigo direto para casa, já que o Bulldog vai permanecer fechado


pelos próximos dias. O recesso de duas semanas serve para as
férias dos funcionários e, principalmente, para a viagem de César ao
Caribe. O proprietário sempre leva a família para o exterior em
janeiro. Quero ser como ele daqui a dez anos.

Paro na portaria do condomínio de Hannah e, enquanto o segurança


autoriza a minha passagem, enxergo um rosto conhecido do outro
lado. Daniel está de bicicleta. Com fones de ouvido e roupas
esportivas, concluo que vai se exercitar.
— Marcus! Não cumprimenta os amigos? — Acena para mim e eu
atravesso a cancela com a moto, me aproximando devagar dele.

— Que eu saiba não somos exatamente amigos — comento,


levantando a viseira do capacete.

— Podemos mudar isso, cara... Vamos fazer amizade. Já que


somos vizinhos...
— diz com tranquilidade, tirando os fones. — Não vai trabalhar no
bar hoje?

— Não. O Bulldog está fechado por duas semanas. Férias forçadas.


Não que eu esteja reclamando... — Desligo a moto, curioso para ver
onde ele quer chegar com o papo de "fazer amizade."

— Que beleza... Podemos fazer alguma coisa por esses dias, já que
está com as noites livres. Sair para tomar uma cerveja ou algo do
tipo. — Sorri, mexendo nos cabelos castanhos.

Franzo a testa, me perguntando se ele está dando em cima de


mim.

Será que o playboy pensa que sou gay?

— Olha... Eu sou hétero. — Explico. — Não sei se Hannah te disse


sobre o lance de que estou me passando por bailarino…
— Não, não. Te chamei para sair só para beber, relaxa. Eu também
sou hétero. — Dá risada. — E a Hannah não me disse nada sobre
isso, não sei de que lance você está falando…

— Foi só uma ideia estranha que ela teve de última hora, para que
os pais não reclamassem da minha estadia na casa... — explico por
alto, já pensando em como encerrar aquela conversa esquisita. Não
me sinto nada à vontade aqui, batendo papo com ele.

— Sei bem das ideias estranhas da Nana... É cada merda que ela
inventa. — Olha para o céu, parecendo pensativo. De repente, ele
endireita o rosto e me encara, esbanjando um brilho diferente nos
olhos claros. — Como o plano para te ferrar. Quanto tempo você
levou para descobrir a verdade, hein? Estou curioso. — Abre um
sorriso debochado, congelando o sangue nas minhas veias. Porra…

— Que verdade? — balbucio, com a pressão dos meus batimentos


entupindo os ouvidos.

— Ah, você ainda não descobriu. Foi mal. — Endireitando a


bicicleta, faz menção de começar a pedalar.

— Agora desembucha, caralho. — Agarro o guidão, impedindo que


se afaste.

— Quer um resumo? Ok. Hannah quer foder com a sua vida. Por
você ter engravidado a melhor amiga dela e agido como um
canalha. O plano é você se apaixonar por ela e ser expulso da
ESPM pelo pai da Sam. Fim.

O quê? Não, não é possível. Ele só pode estar tentando me


manipular.

— Em primeiro lugar, o bebê da Samanta não é meu — rosno, com


o sangue fervendo pelo corpo. — E você está mentindo quanto a
Hannah. Por ciúmes, para me afastar dela. Percebi o seu olhar para
a gente, seu filho da puta.

— Você é mais trouxa do que eu pensava. Achei que fosse mais


esperto, cara. — Gargalha, jogando a cabeça para trás. — Pensou
mesmo que uma garota como ela se interessaria por um fodido
como você? Se quer uma prova, dá uma olhada nisso.

Sacando o celular do bolso, Daniel abre o WhatsApp.

Me esforçando para parar de tremer, seguro o aparelho e tento focar


nas mensagens, lendo cada uma delas com uma puta dificuldade. O
nervosismo me atrapalha demais, quase me cegando.

Daniel: "Posso te visitar mais tarde, Nana?"

Hannah: "Não estou sozinha em casa. Pensei que soubesse."

Daniel: "Merda. E eu pensei que fosse uma brincadeira de mau


gosto do Will. Você trouxe aquele cara para o nosso
condomínio mesmo?"

Hannah: "Sim."

Daniel: "Por quê? Pelo que me lembro, você iria foder com a
vida do otário, não oferecer abrigo para ele. O plano de
vingança virou projeto de caridade"?

Hannah: "Nada a ver. É que ele teve uns problemas no prédio,


achei que vindo para cá as coisas fluiriam melhor."

Daniel: "E estão fluindo? Você me disse que o cara é esperto..."

Hannah: "Ele é esperto, sim... Mas podemos nos ver mais tarde.
Passa aqui, a gente dá uma volta."

Daniel: "Ok. Te pego às 19h."

E, para me matar de vez, reparo que na proteção de tela há uma


foto dos dois juntos, beijando na boca, como se fossem o casal mais
feliz da porra do mundo.

Em estado de choque, devolvo o celular a Daniel. Estou quase


vomitando, com o estômago enjoado e o coração disparado. Puta
que pariu...

— E se quer saber para onde fomos naquele dia... Direto para o


motel. Otário! — Esfrega uma mão contra a outra, se preparando
para sair na porrada comigo.

— Ela é loira... — balbucio a coisa mais aleatória possível, me


referindo à foto que vi na proteção de tela.

— É... — Ele baixa o tom, talvez surpreso com minha reação.

Eu não vou sair na mão com ele. Eu não posso... É como se toda a
energia tivesse sido sugada do meu corpo.

— Ela... — Volta a falar, desviando o olhar. — Mudou a cor do


cabelo para te conquistar mais rápido. Porque Sam falou que você
prefere as morenas. Bem, é isso... Tchau.

Do nada, Daniel vai embora, me deixando inerte, como uma


marionete sem vida. Nunca me senti tão fodidamente quebrado.
Nunca. Nem mesmo quando... Não, não posso me lembrar daquela
merda.

Eu me afundaria de vez e nunca mais me reergueria.

Continuo parado na portaria, completamente perdido, sem rumo.

Quero fugir daqui, mas não sei nem como ligar a porra da moto. Não
consigo raciocinar, nem respirar.

Não me conformo... Caralho! Como pude ser tão iludido?


Eu estou apaixonada e sempre estarei
E sei que deixei muita bagunça e destruição
White Flag ~ Dido

HANNAH MÜLLER

Estou preparando um bolo de chocolate na cozinha, animada por


Marcus não trabalhar à noite. Nunca podemos ficar de boa em casa
durante a semana por causa da jornada dupla dele. Agora, as férias
do bar me deixam muito feliz.

De repente, escuto a porta da frente se abrir.

— Marcus! Estou aqui! — grito, contando os segundos para que ele


venha me encontrar na cozinha.
No entanto, o barulho dos seus passos apressados degraus acima
me revela que ele subiu direto. Estranho o fato, despejando o leite
do copo medidor na tigela de vidro.

Será que não me ouviu? Ou, talvez, precisou correr para usar o
banheiro.

Continuo aguardando por mais um tempinho, finalizando a receita


do bolo, mas o homem não aparece. Com uma sensação esquisita
me angustiando, retiro o avental, limpo as mãos e deixo a cozinha.

Quando me deparo com Marcus no hall — com a mochila nas


costas, puxando a mala pelo chão —, meu coração despenca dentro
do peito, prevendo o óbvio.

Ele vai me deixar.

— Marcus... — sussurro com a voz oscilante, sem conseguir me


aproximar mais. Minhas pernas parecem feitas de gelatina.

O homem vira para mim, os olhos azuis faiscando em um misto de


ódio, mágoa e desprezo. No mesmo instante, eu compreendo: ele
sabe.

— Para onde você vai? — pergunto, tentando não tocar diretamente


no motivo que o leva a ir embora. Mais desesperador do que ser
largada por ele, é a ideia de que volte para aquele prédio perigoso,
colocando a vida em risco.

— Não te interessa — devolve, com tanta frieza que quase não o


reconheço. — Deve ser um puta alívio para você, hein... Não
precisar mais fingir que se preocupa, tingir o cabelo e... — Baixa os
olhos para o celular. — O Uber chegou. Tchau.

— Espera... — Me obrigo a dar dois passos arrastados, como se eu


estivesse em câmera lenta. — Você precisa escutar o meu lado.

Levanto uma mão, fazendo um gesto de "pare", e me assusto ao ver


o quanto meus dedos estão tremendo.

— E você escutou o meu lado, porra?! — vocifera, gesticulando com


os braços agitados. — Não!

O ar desaparece dos meus pulmões, com cada palavra raivosa me


ferindo.

— Você ficou do lado da sua amiga mentirosa, sem ouvir a minha


versão da história! Para me foder! — continua gritando, com as
mãos fechadas em punhos. — E quer saber?! Parte do seu plano de
merda deu certo! Eu me apaixonei por você e me fodi!

— Marcus... — começo a chorar, as lágrimas quentes escorrendo


pelas bochechas.
— Quer saber? Obrigado pela lição.

— Lição? — balbucio entre os soluços.

Droga. Eu queria ser capaz de me explicar — ou pelo menos, de me


desculpar —, mas não consigo sequer organizar a porcaria de uma
frase.

— Obrigado por me mostrar que não posso confiar em ninguém.


Nunca mais, Hannah. — E abre a porta, saindo da minha casa.

Meu Deus… Sem saber o que fazer, continuo chorando baixinho,


me sentindo tão quebrada, que é como se Marcus estivesse levando
um pedaço meu embora.

De repente, me bate um desespero. Uma urgência em correr atrás


dele.

Não posso ficar simplesmente parada aqui. Preciso tentar impedir


que vá embora.

Me obrigando a tomar uma atitude, caminho a passos instáveis até


o lado de fora, a tempo de ouvi-lo falar com o Uber:

— Por favor, leve a minha bagagem ao endereço informado. Eu irei


atrás de você com a moto.
Em seguida, Marcus corre até a lateral da casa, sobe na moto e
parte como uma flecha, o ronco da Honda me arrancando ainda
mais lágrimas.

E, quando só resta o silêncio, explodo em um choro compulsivo,


deslizando as costas pela parede até cair sentada no chão.

Escrota. Você é uma escrota, Hannah, repito mentalmente, me


afundando em um lago de autocrítica.

Eu estraguei tudo. Por culpa minha, ele se foi.

Não vou mais sentir o calor da sua pele. Contornar as suas


tatuagens escuras. Provar os seus lábios macios. Escutar os seus
vinis antigos.

Nada disso, nunca mais.

UMA SEMANA DEPOIS

Passando as mãos trêmulas pelas minhas mechas loiras, tento


ignorar o nervosismo que me consome. Devo mesmo entrar naquele
pequeno estabelecimento do outro lado da rua?

Foi ali, na Records, que tudo começou. Marcus e eu. Nós dois
conversamos pela primeira vez entre os corredores desgastados e
os discos de vinil, acendendo uma faísca que me recuso a deixar
apagar.

Parece que foi ontem e, ao mesmo tempo — por tudo o que


vivemos —, parece que foi em outra vida.

Hoje, vim até aqui movida por uma centelha de esperança. Tênue,
fraca, tão improvável que beira a loucura.

Depois de sobreviver aos sete piores dias da minha existência,


finalmente tomei coragem de procurar pelo homem que não sai da
minha cabeça, torcendo para que já não sinta tanta raiva de mim e,
talvez, me deixe falar.

Quero dizer a Marcus que eu já tinha abandonado o plano de


vingança há tempos. Que me apaixonei de verdade por ele. Que
sonho com a remota possibilidade de recomeçarmos.

E, para isso acontecer, local melhor do que a Records não existe.

— Boa tarde! — Um senhor rechonchudo sentado atrás do caixa me


cumprimenta assim que passo pela porta, com o tilintar do sininho
ressoando pela loja.

— Boa tarde. — Me aproximo dele, tentando controlar as batidas


desesperadas do meu coração.
— Posso ajudar? Procura por algum disco em especial? — pergunta
solícito, apoiando os cotovelos no balcão de madeira.

— Na verdade, eu queria falar com Marcus. Ele trabalha aqui.

— Trabalhava — me corrige e eu arregalo os olhos. — Seria apenas


com ele? Me chamo Raul, sou o proprietário da loja.

— Ah... — balbucio surpresa. — Por que ele saiu?

— Sinto muito, isso é pessoal. Não posso falar sobre a vida dos
meus antigos funcionários com uma pessoa estranha.

— Por favor... — suplico. — Preciso muito ter notícias dele, é


importante.

— Qual é o seu nome? — quer saber, me observando com atenção.

— Hannah. Hannah Müller.

— Hannah! Ele me falou sobre você há algum tempo. Como foi o


jantar especial? Onde ele a levou, afinal? — pergunta com
animação, me deixando confusa. Do que o homem está falando?

— Jantar? — questiono, franzindo a testa. — Ele não me levou para


jantar. Deve ter sido outra garota.
Levo uma mão ao peito, sofrendo com o coração apertado de
ciúmes. Será que Marcus já está envolvido com outra pessoa?

— Não. Tenho certeza de que era você, me lembro como se tivesse


sido ontem. Marcus vendeu um vinil raro do Elvis por seiscentos
reais para lhe levar para sair no final de semana. Disse que a futura
namorada merecia um jantar especial.

Suas palavras congelam o meu sangue. Meu Deus...

Droga, Marcus... Não precisava ter vendido o seu disco. Eu teria ido
com você a qualquer lugar.

— Que dia foi isso? — indago, me tremendo da cabeça aos pés.

— Segunda-feira passada. Ele saiu daqui tão animado... O que


aconteceu?

— Eu pisei na bola. Feio. — confesso constrangida. — Por favor, me


diga onde posso encontrá-lo. Preciso tentar consertar as coisas. O
Bulldog continua fechado e…

— Ele saiu de lá também. — Esboça um sorriso discreto. —


Finalmente aquele cara teve alguma sorte na vida. Conseguiu um
estágio excelente em uma agência de publicidade, não vai mais
precisar trabalhar como vendedor ou bartender. Sabe, era um
desperdício um sujeito esperto como ele em dois empregos com
salários ridículos. Eu pagaria mais a ele se pudesse, mas a loja não
me dá muito lucro.

— Sim — concordo com ele, feliz com a notícia do estágio. — Ele


merece crescer na vida. É um homem incrível.

Pisco os olhos devagar, me sentindo reflexiva. Como pude ser tão


covarde? Se eu tivesse contado a verdade antes de Daniel, de
repente Marcus me perdoaria.

Aliás, quando o meu ex amigo veio se gabar da merda que fez, eu o


esculachei tanto, mas tanto, que espero que nunca mais tenha a
pachorra de me dirigir a palavra.

Continuo amiga apenas de Will e Júlia. Quanto a Samanta, estou


levando a infeliz em banho-maria, para confrontá-la somente depois
da gravidez. Pensando no bem do bebê.

— Já tentou telefonar para ele? — Raul sugere, me trazendo de


volta à realidade.

— Já. Mas acho que me bloqueou. Não sei mais o que fazer.
Imagino que o senhor não queira me passar o endereço dele. Ou o
nome da agência do estágio — arrisco a sorte. Vai que…

— Não, não quero. Mas posso lhe dar um conselho. Dê tempo ao


tempo. No final, tudo se resolve. O que tiver que ser, será.
HANNAH MÜLLER

Após dar quatro voltas nas quadras procurando por uma vaga,
finalmente estaciono o carro nos arredores da ESPM.

Ao desligar o ar-condicionado do Audi, regulado para dezoito graus


centígrados, me preparo para o choque térmico. O sol do lado de
fora está de rachar.

Antes de descer do carro, me olho pela última vez no espelhinho e


amaldiçoo Júlia por ter inventado de tingir as pontas dos nossos
cabelos. Os meus, de pink. Os dela, de roxo.

Nós duas nos vimos bastante nas últimas semanas, em uma luta
constante para levantar o meu astral. Inclusive, tenho que admitir
que deve ser um porre para ela escutar os lamentos de mais uma
amiga, na fossa pelo mesmo cara.

A ruiva vem tentando me distrair com atividades aleatórias, como


pintar os cabelos, tingindo quase todos os azulejos do banheiro
junto com as mechas. Ela falou que ficamos "incríveis" com as
pontas assim, e que um pouco de cor vai nos dar muita sorte para o
início do ano letivo.

Confesso que não me sinto tão otimista... Não disse nada a ela para
não a magoar, mas detestei o resultado. Fiquei com cara de pré-
adolescente revoltada e estou rezando para essa porcaria sair logo
depois de algumas lavagens.

Júlia e Daniel estudam Educação Física na FMU, que fica


relativamente perto da ESPM, ambas na Vila Mariana. Com isso,
poderíamos vir os três juntos para cá, no mesmo carro. Porém,
como me recuso a ver meu ex amigo, dispensei a carona, optando
por vir sozinha.

Trancando o Audi com o controle eletrônico, aliso o vestidinho rosa


e ajeito a bolsa dourada no ombro, me dirigindo a passos rápidos ao
portão de entrada. O burburinho de alunos em frente às grades de
metal faz meu estômago borbulhar em expectativa.

O primeiro dia de aula em uma faculdade nova já é algo tenso, por


si só. E, no meu caso, o nervosismo se multiplica por mil, pela
altíssima probabilidade de rever Marcus, depois de três semanas
aflitivas sem notícias dele.

Marcus Venturini.

Só de pensar no nome já estremeço.

Respirando fundo, me xingo mentalmente por ter me tornado uma


das trezentas garotas emocionadas da ESPM, choramingando pelos
cantos com o coração partido pelo mesmo homem.

Porém tenho plena consciência de que o meu drama é por culpa


minha, não dele. Marcus não é o cafajeste sem caráter que pintam,
muito pelo contrário.

É um anjo sem defeitos, que magoei da pior forma possível,


quebrando a sua confiança.

Parada em frente ao enorme mural do térreo, procuro pelo meu


nome na lista das turmas de primeiro ano, me espremendo entre
dezenas de corpos eufóricos. O barulho dos alunos alvoroçados é
ensurdecedor.

Após descobrir a minha sala, que fica no segundo andar, corro os


olhos pelas listas de quinto ano, confirmando com alívio que Marcus
ainda estuda aqui, no período da manhã, em uma sala localizada no
terceiro andar.

Subindo os degraus em direção à minha sala, me sinto


absolutamente em alerta, com os nervos à flor da pele, morta de
medo de olhar para os lados e me deparar com os olhos azuis que
me visitam diariamente nos sonhos.

A verdade é que desejo vê-lo. Demais. Porém não quero que seja
de surpresa. Gostaria de poder me preparar psicologicamente
primeiro, antecipando o eventual encontro entre a gente.

Se bem que, por mais que eu planeje o que falar a ele, sei que na
hora vai sair tudo completamente diferente do script por conta do
nervosismo. Eu odeio me sentir tão exposta e vulnerável, e não
tenho ideia do que fazer para me ajudar.

Ao entrar na minha sala, observo que os alunos parecem agitados,


em pé entre as carteiras, conversando e rindo ao mesmo tempo.

— Finalmente, mais uma! — Uma garota corre até mim, sorrindo. —


Reparou na lista? São quase trinta machos no 1º ano A, para
apenas quatro meninas!

— Jura? Não reparei, não. — Sorrio de volta, admirando seus


cachos modelados. Na altura dos ombros, emolduram seu rosto
bonito, com a pele marrom contrastando com o roxo néon do batom.
— Precisamos nos unir, meninas… Ou vão nos devorar. Me chamo
Telma. Ela, Alice. — Aponta para uma loirinha atrás dela, com os
cabelos lisos repartidos no meio. Ela é pálida e delicada como a
homônima do País das Maravilhas.

— Prazer. Me chamo Hannah. Eu…

De repente, barulhos de apitos estridentes chamam a nossa


atenção, fazendo com que nós três nos viremos na direção da porta.
Ao mesmo tempo, quatro garotos invadem a sala, todos com
bandanas vermelhas na cabeça e apitos pendurados ao redor do
pescoço.

— Bem-vindos, bichos e bichetes! Me chamo Jonas Fitzberg, eu e


meus amigos somos veteranos do quinto ano. — Ele sorri de ponta
a ponta. — Vamos descer, o trote começa em dez minutos.

— Não vejo a hora... — Alice fala baixinho. — Dizem que os trotes


da ESPM são os melhores.

— Os trotes eu não sei. Mas os veteranos, puta merda. O tal do


Jonas parece irmão gêmeo do Justin Bieber, e na melhor fase do
desgraçado. — Telma cochicha, me fazendo sorrir. Gosto do jeito
alegre e espontâneo dela.

Eu costumava ser assim.


No pátio do térreo, os veteranos dos quartos e quintos anos passam
a separar os calouros em grupos, escrevendo "ESPM" nos rostos
com os dedos lambuzados de guache.

Espiando ao redor, reparo que todos os quintanistas como Jonas


usam as bandanas vermelhas na cabeça, os diferenciando dos
demais alunos.

Um garoto alto e forte, com a barba espessa e escura, vem até mim,
Telma e Alice. Ele não está com a bandana, mas traz pequenos
potes de tinta nas mãos.

Nós três estamos sentadas em um banco comprido, onde devem


caber umas dez pessoas, quando ele se agacha na minha frente.
Apresentando-se como Hector, quartanista, aconselha:

— É melhor prender o cabelo, loira... Não queremos que suje de


tinta verde. — Abre um sorriso largo, passeando com os olhos pela
minha cabeça. — Já está bem colorido assim com as pontas rosas.
Você tem estilo, hein?

Em outros tempos, eu teria correspondido à investida dele, mas, no


meu atual estado, não vai rolar. Interesse zero. Nada de frio na
barriga, nada de coração disparado, nada de nada.

Por isso, apenas assinto em resposta, me preparando


psicologicamente para ter o rosto pintado.
Como não trouxe elástico comigo, levanto os cabelos e os enrolo
em um coque alto, puxando as pontas por dentro como em um nó.

E, nesse exato momento, sinto um calor correr pela minha nuca, me


impelindo a olhar para trás.

É quando o vejo.

Recostado em uma mureta, Marcus segura displicentemente um


cigarro aceso, mantendo a outra mão enterrada no bolso da calça.

Sua camiseta branca parece recortada nas mangas, expondo boa


parte das tatuagens escuras dos braços. A bandana vermelha de
veterano presa à sua cabeça cobre os fios platinados, cuja textura
macia eu conheço tão bem.

Meus dedos até formigam com a lembrança de os acariciar, e quase


posso sentir o perfume quente e masculino da sua pele, com um
leve toque de nicotina.

Malditas memórias sensoriais.

Então, quando foco o olhar no seu rosto perfeito, seus olhos azuis
se conectam aos meus com tudo, desencadeando uma corrente
elétrica que percorre a minha coluna de ponta a ponta.

Com o coração pulando na garganta, observo sua reação.


Ou melhor, sua falta de reação.

Marcus não acena, não sorri, não suaviza o olhar. Não faz nada.

É como se não me conhecesse. Droga.

Após duas horas pedindo moedas no trânsito caótico da Vila


Mariana, me sinto literalmente cozida. Um fio de suor desce pela
minha espinha, umedecendo as costas do meu vestido, e meus
ombros ardem, castigados pelo sol.

Praguejo baixinho contra o verão escaldante de São Paulo que faz


desaparecer todas as nuvens do céu.

Mas, apesar do calor, não posso negar que estou me divertindo. O


grupo de alunos — veteranos e calouros — que está comigo é muito
animado, cantando músicas, fazendo brincadeiras, espirrando água
para refrescar. Minhas bochechas até doem de tanta risada que
dou.

Telma e Alice parecem ser boas companhias. A primeira, mais


desbocada como eu. A segunda, mais tímida como Júlia. Mas,
ambas bem-humoradas, com sorrisos bonitos nos rostos.

Marcus não faz parte do grupo, o que é bom. Sua presença


certamente me deixaria tensa.
Depois da décima borrifada de água, agradeço a Deus por não estar
com uma blusinha branca como Telma, que de tanto a molharem já
se encontra transparente, exibindo a pele negra e vistosa por baixo
da peça ensopada.

A garota apenas ri, parecendo não se importar. Será que não


percebeu…?
— Telma! — Me aproximo dela, enxergando por baixo do tecido
molhado um piercing prateado em seu umbigo. — A sua blusa está
transparente!

— Não ligo... — diz descontraída. — E por que os caras podem ficar


com os mamilos à mostra e eu não?

Seu questionamento fica sem resposta porque Jonas apita alto,


atraindo a atenção de todos.

— Pronto! Hora da bebedeira! Bichos, podem ir embora. Bichetes,


venham conosco. É uma ordem, não um convite!

— Vamos! — Agarrando o meu braço, Telma vira a cabeça, olhando


ao redor. — Alice fugiu, não a vejo mais… Que sem graça, foi
embora na melhor hora.

O bar é um "sujinho" para universitários, com um comprido balcão


de madeira desgastada, bancos desconfortáveis, música alta e
mesas de sinuca. Todo mundo está bebendo cerveja, como se fosse
a coisa mais normal do mundo às dez horas da manhã.

A primeira coisa que faço com Telma é entrar no banheiro e limpar


os nossos rostos com lenços umedecidos, retirando a guache verde
que estava me dando coceira.

Então, nos sentamos juntas em frente ao balcão do bar. Ela pede


um refrigerante e eu opto por uma água gelada, ansiosa para aliviar
a sensação ruim da minha boca seca. Me sinto um tanto
desidratada depois de assar sob o sol.

Após uma meia hora, tento pensar em um modo de ir embora.


Telma está conversando alegremente com Jonas enquanto Hector
não para de puxar assunto comigo, encostando no meu braço de
tempos em tempos, me deixando desconfortável.

De repente, um toque familiar alcança o meu cotovelo, me puxando


com firmeza. Estremeço ao confirmar que é Marcus, me levando
para longe do balcão, com a mandíbula travada e os olhos voltados
para a frente, sem olhar para mim.

— Onde vamos? — pergunto, quase em choque com a sua


abordagem inesperada. Com o coração batendo forte no peito, me
esforço para acompanhar seus passos acelerados.

— Você já vai ver... — murmura, sem se virar para mim, me


conduzindo por um corredor comprido e mal-iluminado. — A não ser
que não queira vir comigo. Fique à vontade para voltar para lá.

— Eu quero ir com você.

Eu iria com você para qualquer lugar, meu anjo. Até para o inferno.

No final do corredor, Marcus empurra uma porta, me puxando para


dentro de um pequeno banheiro. Ainda com a mandíbula trincada,
fixa os olhos nos meus. Suas narinas abrem e fecham com a
respiração alterada, não sei se por irritação ou por outro motivo.

— Marcus, eu queria te falar que…

Antes que eu possa completar a frase, ele me prensa contra a


parede, me beijando com brutalidade, em uma mistura de raiva e
desespero. Sorrio sem afastar os lábios, agarrando sua nuca, me
deliciando com seu gosto, o mesmo que temia não experimentar
nunca mais.

Dois minutos depois, ele quebra o beijo para recobrar o fôlego,


soltando o cinto e abrindo o zíper da calça. Desço os olhos a tempo
de ver sua ereção. Está tão rígida que a glande rosada chega a
escapar pelo elástico de cima da cueca.

Colando os lábios no meu pescoço, Marcus lambe a minha pele


enquanto arrasta os dedos pela minha coxa, subindo em direção à
calcinha de renda.
Ele deixa escapar um rosnado quando toca na minha boceta,
escorregando dois dedos por dentro do tecido rendado.

Enfio as mãos por dentro da sua camiseta, alisando a pele lisa com
tanta empolgação que é como se eu não o tocasse há anos.

Sem parar de me masturbar, com a outra mão puxa uma camisinha


do bolso, rasgando a embalagem com os dentes. Dando um passo
para trás, Marcus veste o preservativo, desenrolando ao longo do
seu pau ereto.

Me virando de costas, me conduz até a pia.

— Mãos na bancada... — murmura ao erguer o vestido, passando


uma mão pela minha bunda.

Obedeço em silêncio, meio em choque com a velocidade de tudo


aquilo.

Sem falar mais nada, Marcus encaixa a glande por fora da minha
boceta e me penetra com tudo, afundando direto até o final.

Arfamos juntos quando sua virilha bate na minha bunda. E de novo.


E de novo, me golpeando com as estocadas duras.

Suas mãos apertam os ossinhos dos meus quadris, me firmando no


lugar, e os seus gemidos roucos me fazem pulsar ainda mais.
— Vou gozar — sussurro e ele acelera, me levando rápido ao
orgasmo. — Marcus… — Me derreto chamando seu nome, sentido
a base da sua ereção vibrar enquanto ejacula na camisinha.

— Porra... — sibila, bombeando devagar antes de sair de dentro de


mim.

Muito impactada, respiro fundo antes de ajeitar o vestido com as


mãos instáveis.

— Nós vamos voltar a nos ver a partir de agora...? — arrisco


perguntar. — Sinto tanto a sua falta.

Ele não responde. Apenas descarta o preservativo e fecha a calça,


sem olhar para mim.

— Vou voltar para lá primeiro, espera um minuto para não dar


bandeira... — diz ao sair do banheiro, batendo a porta atrás de si.

Fico por um tempinho ainda lá dentro, arrumando os cabelos em


frente ao espelho manchado, me perguntando o que foi aquilo.

Será que Marcus sentiu a minha falta como eu senti dele? Será que
vamos nos reaproximar?

Ao retornar para o grupo depois de uns cinco minutos, Telma vem


correndo até mim.
— Onde você estava, menina? — Sorri animada.

— No banheiro. — Não menti.

— Não foi só você que reapareceu... — Fixa os olhos em um ponto


atrás de mim, e continua falando antes que eu me vire para trás. —
Alice. Bem que dizem que as quietinhas são as piores... Olha lá,
está se pegando com um veterano gostoso…

— É...? — murmuro desinteressada.

— Filha da puta sortuda. Adoro caras tatuados como ele... Aquele


homem é perfeito — completa e eu paraliso, com um mau
pressentimento me corroendo o estômago.

Apertando os olhos, tomo coragem e giro o corpo.

Ao reabrir as pálpebras, enxergo a cena que quase me faz vomitar.

Marcus está sentado em uma cadeira, com Alice acomodada em


seu colo. Sorrindo tranquilo, ele acaricia os cabelos loiros da garota,
que descem lisos até a cintura. E quando penso que não tem como
piorar... Piora.

Não, não pode ser. Me recuso a acreditar nisso.

Minha intimidade continua sensível por causa do que fizemos há


minutos no banheiro e, mesmo assim, sua boca beija a de outra
garota, na frente de todo mundo.

Nunca me senti mais suja, mais descartável, mais insignificante, em


toda a minha vida.

Segurando as lágrimas, levanto a cabeça e disfarço a humilhação,


fazendo questão de passar ao lado deles para ir embora.
Nunca me deixe partir
Você tornou minha vida completa
Love Me Tender ~ Elvis Presley

MARCUS VENTURINI

Sei que fui um filho da puta com Hannah no dia do trote. Um


cafajeste por ter ficado com outra depois do que fizemos no
banheiro. Um canalha por ter escolhido uma garota que fosse
precisamente da turma dela.

Mas não era exatamente assim que ela me via? E não foi a minha
suposta canalhice que motivou aquele seu plano de vingança de
merda?
Foda-se.

Eu não tinha ficado com mais ninguém desde que deixei a casa
dela, e três semanas sem trepar era a porra de um recorde. Mas a
verdade é que eu não sentia ânimo para nada.

A primeira semana sem Hannah foi foda. Eu me xingava por ter


baixado a guarda. Por ter sido trouxa. Por não ter notado os sinais.

As marcas de porta-retratos no corredor, por exemplo. Ela


certamente os retirou das paredes para que eu não visse as fotos
exibindo os cabelos loiros, ou abraçando Samanta, ou sei lá.

Como tive a capacidade de ser tão burro? E o pior…

Como podia ainda a desejar? Tanto, que dói.

Dói fisicamente não a ter nos meus braços. No meu colo. Na minha
cama.

Burro pra caralho.

Pois bem, para não passar vinte e quatro horas por dia pensando
nela, procurei ocupar a mente com atividades aleatórias. Arrumando
a mudança que levei para o apartamento de Seu Alfredo. Correndo
no parque. Tocando os discos na vitrola. Passeando com Oz.
Aliás, a música e os passeios com o peludo foram a contraprestação
combinada, uma vez que o homem não me deixou pagar em
dinheiro pelo aluguel do quarto.

Minha contratação para o estágio na agência de publicidade foi a


única coisa animadora naqueles dias deprimentes. Apesar do
salário mediano, o estágio bancaria 50% da faculdade. Um puta
alívio para o meu bolso.

Além disso, os horários "normais" do expediente — das 14h às 18h


—, permitiriam que eu tivesse uma vida social mais decente, saindo
com os caras da ESPM.

E eu não via a hora de começar o quinto ano.

Naquele primeiro dia de aula, eu já sabia que iria rever Hannah.


Torcia para que o reencontro não me impactasse tanto, mas
obviamente me fodi.

Assim que nossos olhos se chocaram no pátio, tive a confirmação


de que tudo o que eu sentia por ela permanecia vivo pra cacete.
Com direito a todos os sintomas de um trouxa apaixonado:
palpitação no coração, frio no estômago, formigamento na pele.

E a nossa conexão continuava tão fodida que a diaba pressentiu o


meu olhar nas suas costas e virou o rosto com tudo para mim. Seus
olhos brilharam, emocionados, e precisei de um autocontrole do
caralho para não demonstrar nada.
Só que eu sabia que a minha farsa não duraria por muito tempo.
Hannah me desmascararia rapidinho... Eu simplesmente não iria
aguentar se ela ficasse me olhando com aqueles olhos cor de mel,
mordendo aqueles lábios macios, me atraindo em silêncio.

Um chamado irresistível como o canto da sereia mais letal. Mais


cedo ou mais tarde, eu cederia. E depois iria me foder. De novo.

Por isso, eu precisava fazê-la sentir raiva de mim. Me odiar. Como


eu não seria capaz de resistir caso ela se aproximasse, o plano era
fazê-la se afastar.

E foi isso que motivou toda a canalhice que cometi no bar. Isso, e a
necessidade visceral que senti de separá-la daquele moleque que
não saía de cima, como a porra de um gavião com as garras à
mostra. O ciúme foi o gatilho que me levou a abordá-la, fazendo-a
minha mais uma vez.

Pela última vez.

Aparentemente, deu certo. Hannah foi embora do bar quando me


viu com a caloura no colo, o olhar tão quebrado que me machucou
de tabela.

Meu coração burro sangrou por ela, quase me fazendo correr atrás
da garota de quem eu deveria manter distância.
Os próximos dias passam em um borrão.

Cheguei a cruzar algumas vezes com Hannah pelo campus, porém


não trocamos uma palavra.

Me sinto mais ansioso do que o normal, fumando como a porra de


uma chaminé, mas, pelo menos estou conseguindo ficar no controle,
me mantendo longe dela.

Hoje é sexta-feira e todos parecem eufóricos para a primeira festa


do ano, que vai rolar amanhã na casa do meu colega de sala Jonas
Fitzberg.

Ao confirmar a minha presença, os veteranos quase soltam fogos


em comemoração, tirando uma onda com a minha cara.

— Marcus, você vai mesmo amanhã? — Jonas dá risada, jogando a


cabeça para trás. — Porra... Não saiam de casa a pé. Vai chover
canivete — diz para os outros dois caras.

Estamos todos no intervalo, sentados em uma mureta na lateral do


prédio principal.

— Vou, caralho — respondo simplesmente, sem perder tempo para


explicar que eu nunca ia às festas porque trabalhava à noite.
"Trabalho" é uma palavra praticamente inexistente no vocabulário
desses filhinhos de papai.

Acendendo um cigarro, baixo a cabeça e levo uma mão em concha


até a boca, protegendo a chama do isqueiro, oscilante com o vento
quente de verão.

Quando ergo o rosto, quase me engasgo com a fumaça.

Hannah e Telma estão paradas bem na nossa frente. Porra…

Telma engata uma conversa com Jonas, mas não consigo assimilar
uma única palavra que sai da boca dela, com a pressão nos meus
ouvidos quase me ensurdecendo.

— Oi. — Hannah se dirige a mim. Seus olhos exibem um


nervosismo palpável, que só não é maior do que o meu, que chega
a tensionar todos os músculos do meu corpo. — Marcus, podemos
conversar em particular?

Sua mão agarra com força a alça de uma bolsa de pano, deixando
os nós dos seus dedos completamente brancos.

— Conversar ou foder? — disparo, babaca pra caralho, arrancando


risadas dos outros caras. — Sabe que eu prefiro a segunda opção
contigo, linda. — Solto a fumaça para cima, fingindo uma
descontração absurdamente falsa.
— Certo. Então vou falar aqui mesmo. — Ela cruza os braços, me
fitando com as bochechas vermelhas como tomate. — Nós dois…

— Pode parar — eu a interrompo.

Não quero que fale sobre "nós" na frente das pessoas.

Me levantando, sinalizo com a cabeça e estalo os dedos para que


me siga, como eu faria com uma cadela.

Hannah bufa e me acompanha depressa até a parte de trás do


prédio.

— Fala. — Me viro para ela, apoiando os quadris em uma parede.

— Duas coisas. — Ergue dois dedos na minha frente, enumerando


a fala. — A primeira. Por que... — para de falar, respirando fundo. —
Por que me puxou para o banheiro no dia do trote, me levando ao
céu, para minutos depois me empurrar para o inferno, beijando outra
garota? Sei que não estamos juntos e que terminamos por minha
culpa, mas... Caramba, Marcus! Nunca pensei que agiria assim!
Você…

— Assim como? — corto sua frase, sentindo o sangue ferver dentro


das veias. — Como um cafajeste filho da puta? Cacete... Não era
exatamente isso que você pensava de mim quando orquestrou
aquele plano de merda?
Hannah arregala os olhos, me encarando assustada.

— Eu estava enganada — diz em um fio de voz, com os lábios


trêmulos, à beira do choro. Merda. — Se você tivesse me escutado,
eu teria lhe explicado tudo.

— Não tinha o que explicar. Você me rotulou como todas as garotas.


Eu te tratei bem, eu me entreguei como nunca, mas não serviu para
porra nenhuma. Vocês me veem como um cafajeste, como um
galinha, então, por que não corresponder às expectativas? É o que
pensam de mim. É o que esperam de mim. Que se fodam.

— É... — Hannah ri sem graça, baixando os olhos. — Nisso você


está certo, Marcus. Eu me fodi mesmo...

— Bem-vinda ao time dos quebrados. Um fodeu com o outro.


Fizemos a mesma coisa, estamos quites. Que cada um siga com a
sua vida... — Dou um passo para a frente, prestes a sair andando.
Preciso fugir daqui urgentemente.

— Não foi a mesma coisa. — Ela segura meu cotovelo, me


estremecendo. — Tudo o que planejei foi ANTES de te conhecer. Eu
desisti do plano no dia em que você entrou na minha casa, ok?
Admito que errei ao não contar a verdade, mas foi só porque eu
morria de medo de te perder. Você jogou muito mais baixo. Você me
ferrou DEPOIS. Depois de me conhecer, depois de tudo o que
passamos lá em casa. Você não tinha o direito de me arrastar para
o banheiro e…
— Caralho... Você fala como se eu tivesse te obrigado a trepar
comigo no banheiro! — Esculacho, remexendo o braço com
estupidez para me soltar dela. — Você foi porque quis, porra!

— Sim, porque eu quis! Porque eu sentia saudades de você! Mas


não era "você" naquele banheiro, nem é "você" agora. — Ela dá
dois passos na minha direção, deixando todo o meu corpo em
alerta. — Marcus, eu te conheço de verdade e você é muito melhor
do que isso.

Suas palavras me acertam como tapas e fico atordoado por sei lá


quanto tempo.

— Não eram duas coisas que queria falar comigo? — Mudo de


assunto. Baixando a cabeça, enxergo os meus tênis All Star
surrados.

— Sim. A segunda coisa que me fez te procurar… — Passa a mexer


na bolsa, puxando de lá um objeto quadrado que faz meu coração
afundar. Puta que pariu. — Olha, não quero carregar mais esse
peso na minha consciência. — Ela empurra o vinil do Elvis contra o
meu peito, me deixando em choque. — Foi difícil pra caramba
comprá-lo de volta... Mas eu consegui. Queria lhe entregar o disco,
junto com um pedido de desculpas. Eu ainda não tinha me
desculpado... E é isso. Peço desculpas por todo o mal que lhe
causei.
— Obrigado — murmuro atônito, segurando o disco com cuidado.

— Eu que lhe agradeço. Ainda que por pouco tempo, "you have
made my life complete..."

Quando pego a referência, meus lábios esboçam um sorriso


minúsculo. A frase é um trechinho de "Love Me Tender", uma das
músicas do disco que está nas minhas mãos.

Porra... Piscando devagar, penso no significado da letra:

Never let me go
You have made my life complete
And I love you so
(Nunca me deixe partir
Você tornou minha vida completa
E eu te amo tanto)

— Marcus, quando você me deixou, levou um pedaço de mim.


Ainda não me recuperei e nem sei se vou me recuperar. Mas eu te
entendo, porque provavelmente teria feito o mesmo no seu lugar.
Sei que agora está agindo como um escroto de propósito, para me
manter longe, mas não precisa se dar ao trabalho. Depois de hoje,
não vou mais te incomodar. Só queria te dizer que você é a melhor
pessoa que eu já conheci, e que os dias que passamos juntos foram
os mais perfeitos de toda a minha vida.
Então, com as lágrimas molhando seu rosto bonito, Hannah fica na
ponta dos pés e me beija na bochecha.

— Adeus — murmura antes de sair andando, me deixando com a


cabeça latejando de confusão e, principalmente, de emoção.

Me fodi.

De novo.
Amor, eu só quero dançar
Com você
Happiness Is a Butterfly ~ Lana Del Rey

HANNAH MÜLLER

Eu me sentia mais leve por ter conseguido falar a Marcus tudo o que
tinha planejado. Me desculpei, me declarei e ainda lhe devolvi o
disco do Elvis.

Detalhe: embora ele tenha vendido o vinil por seiscentos reais,


precisei desembolsar cinco vezes mais para aquele colecionador
mercenário abrir mão dele. Mas, fazer o quê? Eu tinha que
recuperar o objeto.
Fiz tudo o que estava ao meu alcance para minimizar o mal que
causei ao homem por quem me apaixonei.

Agora, a bola está com ele. Se quiser reatar comigo, sabe onde me
encontrar.

Não vou ficar correndo atrás de Marcus, como Samanta fazia,


perseguindo e irritando o cara, e recebendo grosserias em troca.
Por sorte, meu bom senso não permite que eu me preste a esse
papel.

Por um lado, meu coração quer que eu continue tentando e


tentando, o forçando a me aceitar de volta, porém, "vencer pelo
cansaço" nunca é o melhor caminho. Além disso, eu disse a ele que
não insistiria, que não ficaria o incomodando, e pretendo cumprir o
combinado.

Por mais que me despedace abrir mão do homem dos meus


sonhos, não tenho opção a não ser deixá-lo em paz. Sim, eu
estraguei tudo, e preciso aceitar as consequências da minha
burrada.

Em outras palavras, me resignar com o fato de que não terei Marcus


de volta.
Quando bate o sinal da última aula, guardo o material na bolsa e
deixo a sala na companhia de Telma e Alice. Nós três vamos
almoçar juntas no shopping.

Sim, Alice é a garota que ficou com Marcus no dia do trote. Mesmo
assim, eu não a odeio. Pelo contrário, eu a acho bem legal.

Simplesmente não tenho motivos para a destratar. Em primeiro


lugar, ela não sabe do meu histórico com Marcus. Em segundo
lugar, eu não suporto a ideia de rivalidade feminina sem sentido, que
só serve para inflar o ego do macho que se vê alvo da disputa.

De qualquer maneira, as coisas na faculdade estão bem diferentes


do que imaginei no passado.

Até poucos meses atrás, quando optei por cursar a ESPM, pensei
que estudaria junto com Sam e que seria o máximo. Ela estaria dois
semestres na minha frente, mas nos veríamos nos intervalos, nas
palestras e etc. Agora, ela está com a matrícula trancada por causa
da gravidez e a nossa amizade já era. Além disso, pensei que seria
maravilhoso conhecer garotos interessantes pelo campus. Agora,
apenas um em específico me atrai.

Descendo as escadas com Telma e Alice, quase sou atropelada


pela horda de alunos, todos desesperados pelo final de semana.

De repente, sinto a familiar queimação na nuca e já adivinho que


Marcus vem logo atrás. Ao me virar, encontro aqueles olhos azuis
fixos em mim, mas Marcus imediatamente os desvia, disfarçando o
ato.

Não consigo conter um sorriso por tê-lo flagrado me olhando.

— O que foi? — Alice encosta no meu braço e gira a cabeça para


trás, tentando ver o que chamou a minha atenção. Telma a imita.

— Nada — digo, tornando a olhar para a frente.

— Podem continuar, meninas. Encontro vocês lá embaixo — a loira


avisa, subindo os degraus no contrafluxo.

Meu coração despenca por saber o que a atraiu. Ou melhor, quem a


atraiu.

— Ela ainda não sabe? — Telma pergunta baixinho quando


voltamos a andar, descendo os degraus.

— Não. E nem vai saber. Não tenho mais nada com ele. — Dou de
ombros, mordendo o lábio.

— Então, não se importa que os dois fiquem juntos?

— Não faz diferença se me importo ou não. Não tenho o direito de


interferir. Se os dois quiserem ficar juntos... Que sejam felizes —
completo, com um sabor amargo queimando a minha boca.
Eu contei superficialmente a Telma que Marcus e eu tivemos um
lance nas férias. Ela percebeu que fiquei chateada quando o vi com
Alice no bar, por isso, fez várias perguntas no dia seguinte e lhe
contei o mínimo do mínimo.

A única pessoa que sabe de tudo é Júlia, em quem eu confio cem


por cento. Telma parece ser legal e sensata, porém, a nossa
amizade é recente demais para tamanha confidência.

Assim que atravesso o portão principal, dou de cara com o Camaro


amarelo que conheço bem demais. Droga.

— O que você faz aqui? — interpelo Daniel, com as minhas


bochechas quentes em irritação.

O garoto permanece sentado atrás do volante de couro, com um


cotovelo displicentemente apoiado na janela, ostentando uma pose
charmosa. Seus olhos verdes me encaram com firmeza.

Lindo, porém irritante. Babaca. Insuportável.

— Entra? — Aponta com a cabeça para a porta do passageiro. —


Precisamos conversar, Nana. Você não pode me evitar para
sempre, somos amigos há tanto tempo...

Telma continua parada do meu lado, mexendo na alça da bolsa,


provavelmente na dúvida entre me esperar ou ir embora.
— Não só posso, como vou. Acabou a amizade, Daniel. Você não
tinha o direito de se intrometer na minha vida amorosa. O que você
fez é imperdoável.

— "Vida amorosa"? — repete com deboche e desce do carro,


batendo a porta atrás de si. — Com aquele cara? EU fui o mais
próximo que você teve de vida amorosa! Dois anos, Nana! Não são
dois dias, nem dois meses! Nosso caso vem rolando há dois
malditos anos!

— Nunca tive "caso" nenhum com você — murmuro entredentes. —


Não passou de amizade colorida, e por nossa escolha.

— E se eu quisesse que fosse mais do que isso?

— Não iria acontecer.

Penso em esbravejar uma resposta mais elaborada, mas, olhando


ao redor, percebo que tem um monte de gente nos observando.

Longe de mim fazer uma cena...

Então, apenas respiro fundo e decido ir embora.

— Vamos logo para o shopping, Telma — peço exasperada.

— E Alice? Ainda não saiu. Não vamos esperar...?


— A gente manda uma mensagem para ela nos encontrar lá. Vamos
logo, por favor.

Eu e Telma nos sentamos na praça de alimentação do shopping


Ibirapuera, aguardando por Alice que disse por mensagem que
estava chegando.

— Oi, meninas… — Ela aparece do nada, ocupando a cadeira ao


meu lado.

A expressão no rosto dela não é das melhores.

— Aconteceu alguma coisa? — Telma pergunta, provavelmente


reparando no mesmo que eu.

— Ah... Fui falar com aquele veterano que me beijou no dia do trote,
mas ele não me deu abertura. Pelo jeito, não gostou de ficar comigo
— diz cabisbaixa, cutucando a unha do polegar.

Pelo jeito, é a minha sina: escutar as garotas choramingando pelo


cara por quem sou apaixonada. Primeiro, Samanta. Agora, Alice.
Que porcaria…

Eu não sabia se ficava triste por ela, ou feliz por Marcus tê-la
dispensado. Pensando bem... Sabia, sim. Jamais diria em voz alta,
mas com certeza é a segunda opção.
— Não leve para o lado pessoal — Telma aconselha, tocando na
mão de Alice. — É assim mesmo... Algumas ficadas evoluem,
outras não.

— Não que eu quisesse me casar e ter filhos com ele. — A loira


sorri sem ânimo. — Só queria curtir mais um pouquinho. Ele beija
tão bem... Tem uma pegada que... Vocês não têm noção.

— Eu tenho — admito, me sentindo mal por continuar escondendo o


jogo enquanto ela se abria na ingenuidade. — Eu e ele já ficamos.

— Jura, Hannah? Faz tempo? — ela quer saber, sem disfarçar a


surpresa.

— Não muito — confesso e o queixo dela cai.

— Eu não sabia e... O que aconteceu? Se não se importar em falar.

— Está tudo bem. — Forço um sorriso. — Para resumir, a gente


estava ficando, eu pisei na bola e ele me deixou. Fim.

— Vocês chegaram a namorar? Foi um lance sério? — Telma


pergunta, afofando os cachinhos com as pontas dos dedos.

— Não — murmuro, desesperada para mudar de assunto.


— O esquema dele é ficar sem compromisso, não deve levar
ninguém a sério. — Alice balança a cabeça.

— Ele disse isso, Li? — Telma quer saber.

— Com todas as palavras, não. Mas, quando ficamos lá no bar, ele


me dispensou depois de dois beijos, com um "a gente se vê". Não
trocamos telefone, nem nada. E hoje, quando o revi e fui puxar
assunto, comentei que a gente poderia sair um dia desses, e ele
respondeu com um "não vai rolar", de modo evasivo.

— Entendi. Bem, vamos comer? — Telma encerra o assunto e


quase jogo as mãos para os céus em comemoração.

— Vamos. E depois precisamos comprar roupas novas para


amanhã. — Alice sorri, um pouco mais animada. — Não vejo a hora
de ir à minha primeira festa da faculdade.

A festa de Jonas está lotada. Quando Telma, Alice e eu descemos


do Uber, nos deparamos com dezenas de pessoas espalhadas pelo
jardim, fumando e bebendo, além das outras tantas que estão
espremidas na varanda da frente.

— Uau… — sussurro admirada quando passamos pela porta da


frente.
A sala parece uma balada, com luzes coloridas, globos
estroboscópicos e gelo seco. A decoração está linda, mas o som
alto não nos permite papear. Então, Alice encontra um banco
comprido no corredor, sem tanto barulho, e nos sentamos nele.

Depois de duas ou três bebidas, percebo uma mudança sutil no ar.


Passo a ficar com a impressão de que estou sobrando.

Telma e Alice engatam em uma conversa, uma tocando na outra de


um jeito diferente. Uma mão alisando aqui, outra passando ali.

— Vou ao banheiro, meninas... — Me levanto, ajeitando a barra do


meu vestido preto de lurex.

— Já disse que amei o seu vestido, Hannah? — Telma sorri,


descendo os olhos pesados pelo meu corpo. Parece que exagerou
um pouquinho na bebida.

— Umas dez vezes. — Dou risada, balançando a cabeça.

— Tá muito gata! Anda, vai logo ao banheiro. A gente te espera


aqui. — Ela acena, sem se levantar do banco.

— Ok. Não sumam. Não conheço mais ninguém na festa... — peço


antes de me afastar.

Em seguida, Alice cola o corpo por trás do de Telma, passando os


braços ao redor da cintura dela.
— Eu não vou deixar a Telminha linda ir a lugar nenhum, não se
preocupe.

E, quando Telma acaricia o braço de Alice, eu tenho certeza: está


realmente rolando um clima entre elas.

É melhor deixá-las a sós.

Pelos próximos minutos, vago pela festa sozinha, sem pressa de


voltar para as meninas. Não quero ficar segurando vela,
atrapalhando algo entre elas.

Do nada, colocam uma canção lenta para tocar, que reconheço ser
de Lana Del Rey. Sorrio com a lembrança de ter escutado uma
música da mesma cantora com Marcus, na Records, quando
compartilhamos os fones de ouvido.

— Quer dançar? — Um garoto loiro que nunca vi na vida surge na


minha frente, estendendo a mão na minha direção. Ele usa óculos
de grau que lhe conferem um ar de nerd. — Quem não tiver um par,
ganha uma vassoura. É melhor dançar comigo do que com um
pedaço de madeira, não é?

Sorrindo timidamente, ele aponta para um veterano de cabelos


escuros que está distribuindo vassouras pelo salão. Há uma porção
delas em suas mãos.
— É, acho que sim... — Sorrindo, aceito a mão dele. — Eu me
chamo Hannah e você?

— Gabriel — responde, me conduzindo até a pista. — Sou do


terceiro ano e você?

— Primeiro ano. Caloura. — Apoio as mãos em seus ombros e,


quando estou prestes a dançar, uma pegada firme me puxa
bruscamente para trás pela cintura.

— Foi mal, Gab. — Marcus está com o corpo inteirinho rígido. —


Você conhece as regras. Quintanistas têm prioridade com as
bichetes.

Paraliso com o coração na mão. Eu nem sabia que ele estava na


festa.

O tal do Gabriel parece completamente sem graça, com as


bochechas coradas. Ele vai embora sem falar nada.

— Você o deixou constrangido — comento, cruzando os braços.

— Ele que se foda. — Marcus levanta as minhas mãos para as


colocar nos seus ombros. Eu continuo parada, completamente
imóvel. — Hannah, se não dançar comigo, vai ganhar uma
vassoura.
Bufo antes de começar a dançar com ele, tentando ignorar o
formigamento causado pela sua pegada firme na minha cintura.

— Verdade ou desafio? — lança do nada, me pegando de surpresa.


Suas íris azuis exibem um brilho diferente, mais confiante, e decido
entrar na brincadeira.

— Verdade. — Vou na opção mais fácil.

— Você realmente fazia questão de continuar dançando com aquele


cara?

— Não. Não fazia — confesso e ele sorri de canto, me conduzindo


lentamente pela pista de dança, acompanhando o ritmo cadenciado
da música. — Verdade ou desafio? — devolvo.

— Verdade.

— Por que simplesmente não me convidou para dançar como um


cara normal? — quero saber, olhando nos seus olhos.

— Porque eu não sou um cara normal. — Leva uma mão à minha


nuca, deitando a minha bochecha no seu peito.

— Não é, mesmo... — murmuro baixinho e nem sei se ele me


escuta.
— Minha vez. Verdade ou desafio? — Marcus prossegue com a
brincadeira.

Quase respondo "desafio", mas me acovardo diante da


possibilidade de que me solicite algo impróprio. Mesmo porque eu
sei que faria qualquer negócio que me pedisse, por mais
inadequado que fosse.

— Verdade. — É o que sai da minha boca.

— Qual é a cor da sua calcinha? — provoca, certamente tentando


me deixar sem graça. Ai, ai, Marcus…

Aposto que ele já sabe que o tiro saiu pela culatra quando eu
esboço um sorriso perverso.

— Quem disse que estou usando uma?

Ele solta um riso incrédulo antes de me puxar para ainda mais perto,
apoiando o queixo no topo da minha cabeça. Talvez para que eu
não possa mais olhar em seus olhos.

Ao mesmo tempo, sua mão pesada passa a subir e descer pelas


minhas costas, deixando um rastro quente pelo caminho.

Respiro fundo, impactada com o calor do seu corpo, apreciando


aquele familiar perfume masculino, uma combinação de sabonete,
nicotina e… Marcus.
De repente, sinto vontade de sorrir por estar em seus braços, de
chorar por estar com saudades, de o beijar por desejá-lo demais.
Tudo junto e misturado.

Logo vêm os últimos estrofes da música:

Baby, I just wanna dance


With you
(Amor, eu só quero dançar
Com você)

— Pronto. — Me solto dele, precisando fugir para tomar um ar. — O


gelo seco está irritando os meus olhos... — dou uma desculpa,
fazendo menção de me afastar.

— Joga uma água que melhora. Vem cá... — Me puxa pela mão
pelo meio das pessoas, cruzando a sala a passos rápidos. Me
levando ao andar de cima, abre uma porta no final do corredor.

— É uma das suítes de hóspedes — explica, girando a maçaneta.


— O banheiro deve ser mais limpo do que lá embaixo.

— Obrigada. — Passo direto por ele, com medo de repetir o que


aconteceu no dia do trote.

Eu não sou idiota. Já imagino o que Marcus pretende comigo ao me


levar para um quarto, e não vou suportar vê-lo com outra, mais uma
vez, se fizermos sexo.

Por isso, entro sozinha no banheiro sozinha, tranco a porta atrás de


mim e apoio as mãos na pia, encarando meu reflexo no espelho. Eu
quero e, ao mesmo tempo, não quero transar com Marcus.

Quando volto para o quarto, ele está com a camisa aberta, sentado
na beirada da cama, desabotoando a calça.

— Vamos descer... — murmuro, abalada com a visão do seu peito


tatuado.

— Ainda não. — Bate no colchão com uma mão. Com a outra,


continua soltando os botões da calça. — Vamos dar uma rapidinha?

— Marcus, eu não vou transar com você, para depois te ver com
outras garotas por aí… Ou você cogita a ideia de reatar comigo?

— Não — responde rápido demais, esmagando meu coração. —


Pensei que você não tivesse problema com sexo casual.

— Algumas coisas mudaram — admito desconfortável.

Eu não conseguiria fazer sexo casual com ele, como fazia com
Daniel. Com Marcus, é diferente. Porque estou completamente
apaixonada por ele.
— Ok, você não quer. Não está afim. Paciência. Eu arranjo quem
queira, sem problemas. — Dá de ombros, fechando a calça. Seus
dedos tatuados passam a trabalhar habilidosamente nos botões
enquanto seus olhos azuis me observam indecifráveis.

— Boa noite — digo com a voz engasgada, antes de virar as costas


e sair do quarto.
Ah, olhe todas essas pessoas solitárias
Eleanor Rigby ~ The Beatles

MARCUS VENTURINI

Quando Hannah me deixa sozinho no quarto, eu quase explodo,


puto pra caralho. Que chantagem ridícula foi aquela? Ela só faria
sexo comigo se a gente reatasse?

Nem fodendo.

Eu não iria a aceitar de volta. Sem condições de sequer cogitar a


ideia de namorar a garota que havia planejado me ferrar, para vingar
a amiga que era obcecada por mim.
Ainda pior do que aquela vingança podre era o fato de Hannah não
ter jogado limpo, mesmo depois de supostamente ter desistido do
plano.

Ela apenas confessou a palhaçada bem mais tarde, quando a


merda já tinha sido jogada no ventilador por Daniel. E lógico que
aquele playboy me contou a verdade assim que teve a
oportunidade, para tirar mais uma onda da minha cara.

Eu não iria confiar nela nunca mais. Por que me arriscaria? Para
fazer papel de otário de novo? Eu ia pedi-la em namoro naquele
final de semana, porra! Trouxa pra caralho.

Agora, o verbo "namorar" está riscado no meu dicionário.

Foda. A única garota que tive vontade de namorar na vida foi


exatamente a que mais me ferrou.

Pelo jeito, é a minha maldição. Ser apunhalado pelas costas pelas


pessoas mais próximas, para a dor ser ainda maior. Primeiro, a
minha mãe. Depois, o meu pai. Agora, Hannah.

O problema é que, se de um lado a aceitar de volta me quebraria,


ficar sem ela está me destruindo. Hannah é igual a uma droga e eu
me sinto como um viciado em abstinência.
Prefiro tê-la em doses rápidas e fugazes a nunca mais senti-la em
meus braços. Posso sobreviver a base de momentos efêmeros e
migalhas. É melhor do que nada. Por isso, lancei aquela proposta
de merda de darmos uma rapidinha.

Só que Hannah me disse "não", e sua rejeição me feriu ainda mais.


Sei que ela me quer, e que a recusa decorre do que rolou no dia do
trote.

Assim, ela falou em reatar. Desejando o "pacote completo", não quis


aceitar apenas sexo.

Mal sabe Hannah que, com ela, nunca seria apenas sexo. Os
lanches na madrugada, os ensaios de ballet, as conversas sobre
músicas... Eu sentia uma puta falta. De tudo.

Ao descer as escadas, noto que a festa continua a todo vapor.


Música alta, luzes coloridas, pessoas dançando, bebendo e o
caralho.

Passeio pelos ambientes com o olhar despreocupado, procurando


por Hannah como quem não quer nada, torcendo para que não
tenha decidido descontar a mágoa de mim em outros lábios. Porra...
Não consigo nem cogitar a ideia de vê-la com outro cara.
Após algum tempo, me deparo com o anfitrião na cozinha, pegando
uma cerveja na geladeira.

— Jonas, você viu as calouras pela festa? Aquelas três meninas do


primeiro ano que chegaram juntas? — pergunto de maneira
genérica, para não entregar o meu interesse em apenas uma delas.

— Estavam na sala de jogos com uns caras do futebol, em umas


brincadeiras ou algo do tipo — diz sem me olhar, empenhado em
retirar a tampinha da garrafa long neck. Está tentando uma porção
de vezes, sem sucesso.

— Deixa comigo... — Pego a garrafa de sua mão. Batendo o bocal


estrategicamente na borda da pia, faço a tampinha voar. Anos
trabalhando como bartender me ensinaram alguma coisa.

— Obrigado, cara! — exclama com espanto, impressionado com a


minha técnica.

Saindo da cozinha, caminho até a sala de jogos com uma sensação


ruim agitando meu estômago. Todo mundo sabe que brincadeiras
em festas universitárias não passam de pretexto para putaria.

Ao alcançar as portas duplas de madeira, pouso a mão na


maçaneta redonda, respirando fundo antes de a girar.

Trancada. Porra…
Colo o ouvido contra a madeira, os nervos à flor da pele. Então,
quando escuto gemidos femininos, sinto o sangue gelar. Não penso
duas vezes antes de pegar distância e voltar com tudo, arrombando
a porta com o ombro.

O que encontro lá dentro não estava no script. Puta que pariu.

Não sei se apenas saio de fininho ou se caio na risada com a cena


inesperada à minha frente. Alice está deitada de costas sobre a
mesa de sinuca, com Telma chupando a boceta dela, as pernas
arreganhadas balançando no ar.

Parecem tão loucas que nem notam minha chegada nada discreta.
Eu quase derrubei as portas, cacete…

Assim que me recupero do choque, corro com os olhos pelo


ambiente, torcendo para que Hannah não esteja se pegando com
alguém em outro canto.

— Ei, meninas... — começo a falar, com um sorriso filho da puta no


rosto. — Quero fazer uma pergunta.

As duas estranham a abordagem, virando os olhos na minha


direção.

— Marcus? Quer se juntar a nós? — Alice me chama e em outros


tempos eu já estaria lá com elas. Porém, neste momento, não sinto
vontade alguma.
— Valeu, vou passar. — Balanço a cabeça, enfiando as mãos nos
bolsos. — Então, vocês sabem da Hannah?

— Não acredito que você interrompeu a gente para isso, cara! —


Telma me repreende, e não sem razão. Puxando bruscamente a
saia de Alice para baixo, cobre a intimidade da menina.

— Foi mal. Eu só queria encontrá-la... — Baixo a cabeça, me


virando para ir embora.

— Some! — Telma grita.

— Liga para ela! — Alice sugere, quase ao mesmo tempo.

— Não dá, eu excluí o número. Mas, beleza. Divirtam-se.

— Oh, eu não devia falar nada, porque você é um babaca, mas vou
te ajudar — Alice torna a falar. — Ela deve estar com o Hector. Nós
quatro jogamos truco por um tempo naquela mesa e eles saíram
daqui juntos.

Merda. Bem que me lembro do filho da puta arrastando a asa para


cima dela no dia do trote.

Saio correndo da sala, vasculhando a pista abarrotada de gente,


sem os encontrar. Desesperado, passo as mãos pelos cabelos, com
o coração quase saindo pela boca. Porra... A música e a iluminação
colorida pulsante me atordoam, me deixando ainda mais nervoso.

De repente, enxergo no canto da pista a jaqueta ridícula do time da


faculdade. Eu sei que é ele.

Hector está beijando alguém, mas não consigo ver direito quem é.
Voo até o casal, já fechando as mãos em punhos, mas, antes de
fazer alguma merda, visualizo os cabelos ruivos da garota.

Porra... Não é Hannah.

Segundo alarme falso da noite, já deu por hoje.

Estou de saco cheio da festa. O melhor é ir embora.

Abrindo caminho entre dezenas de corpos dançantes, alcanço a


porta da casa e puxo a chave da Honda do bolso.

Paraliso ao ver Hannah do lado de fora, sozinha, sentada no degrau


do alpendre com o celular na mão. O aparelho toca uma música e,
mesmo em um volume bem baixo, eu obviamente a reconheço.

"Eleanor Rigby", dos Beatles.

— O que faz aqui? — pergunto e ela fica em pé em um pulo,


levando uma mão ao coração. — Desculpe, não queria te assustar.
— Não escutei você se aproximar. — Solta o ar devagar. — Eu
estava distraída aqui... — Pausa a música depressa, como se não
quisesse que eu a escutasse.

— Sabia que, em "Eleanor Rigby" Paul é o único Beatle? Vocal e


violão. John, George e Ringo não cantam nem tocam. — Paro bem
na sua frente, cruzando os braços.

O céu escuro está salpicado de estrelas, com a brisa morna


bagunçando os nossos cabelos. A única iluminação vem de uma
lâmpada amarelada de um poste da rua.

— É...? — Hannah murmura, abraçando o próprio corpo.

— É. O acompanhamento foi gravado por um quarteto de cordas, e


o vocal de Paul foi duplicado em alguns trechos, para que ele
fizesse também as segundas vozes.

Sem me segurar, ajeito uma mecha do seu cabelo atrás da orelha,


roçando com as pontas dos dedos pela bochecha. Mesmo o contato
absurdamente leve é capaz de me arrepiar da cabeça aos pés.

— Legal — diz, sem se afastar. Estamos a menos de um passo de


distância um do outro.

— É a minha música preferida dos Beatles.

— Por quê? — quer saber, mudando o peso de um pé para o outro.


— O violino, a letra... É triste e bonita, já reparou? Fala sobre
solidão.

— Me conte mais a respeito — pede baixinho, me fitando nos olhos.

— A letra surgiu para Paul enquanto ele tocava piano. Ao se


perguntar que tipo de pessoa recolhia arroz em uma igreja depois
de casamentos, ele criou a protagonista. Começou a imaginando
como uma jovem, mas, percebeu que, para limpar igrejas, deveria
ser mais velha. E, se ela era mais velha, talvez fosse uma
solteirona. Assim, a limpeza da igreja seria uma metáfora para as
oportunidades de relacionamentos perdidos.

Termino de falar quase ofegante, impactado por estarmos tão perto.


Consigo perceber seu calor, seu perfume suave, até mesmo seu
hálito morno que escapa pelos lábios entreabertos.

Puta merda... É isso. Apesar de tudo, ainda sou completamente


apaixonado por essa garota.

— Eu... — Ela baixa os olhos, observando a tela do celular. — Eu


estou indo embora.

Gelo com a possibilidade de que esteja esperando alguém. Me


lembro de ter visto Daniel na porta da faculdade com seu Camaro
e…
— O Uber vai chegar em poucos minutos — diz, me acalmando sem
saber. — E você, já vai embora? Não ia transar com sei lá quem?

Percebo a mágoa no seu tom de voz e não sei o que responder.

— Cancela o Uber — disparo sem pensar. — Eu te levo.

Que merda estou fazendo?

Hannah me encara com uma sobrancelha erguida, ressabiada.

— É sério, eu te levo — repito. — Já estava de saída mesmo. E


sabe como pode me pagar pela carona?

Hannah revira os olhos, fazendo uma careta.

— Não começa, Marcus. Eu já disse que não vou fazer sexo com
você.

— Quem aqui falou em sexo agora? Eu, não. — Levanto as mãos


no ar, em um gesto de "inocente". — Que mente pervertida...

— Tá. — Ela deixa escapar uma risada e meu coração burro pula
uma batida. Como sentia falta do seu riso para mim, puta que pariu!
— Então, me diga como eu poderia lhe pagar.

— Montando um sanduíche para mim. Sinto falta dos seus lanches


da madrugada — confesso, me odiando por estar baixando a
guarda.

— Certo. — Ela morde a boca. — Um sanduíche na minha casa. E


nada de sexo. É isso?

— Isso mesmo. — Aponto para a Honda do outro lado da rua. —


Vamos?

— Vamos.
Eu tenho dormido sozinho
Por Deus, estou com saudades
Miss You ~ The Rolling Stones

HANNAH MÜLLER

Ao longo do trajeto de moto até a minha casa, me seguro no tronco


firme de Marcus, sorrindo com a bochecha colada às costas dele.

Ao parar em um sinal vermelho, Marcus vira a cabeça para trás, me


observando por cima do ombro.

— Tudo bem por aí? — pergunta, com os olhos azuis me


queimando.
— Sim, obrigada — respondo com um sorriso e ele sorri de volta,
acariciando a minha mão que repousa em seu abdômen.

O gesto carinhoso me pega de surpresa, fazendo minha palma


formigar. Porém logo compreendo que sua atitude foi no automático,
por conta dos "velhos tempos".

Porque, assim que faço menção de entrelaçar nossos dedos,


Marcus os afasta depressa, como se tivesse levado um choque,
voltando a colocar as mãos no guidão.

— Seus pais ainda não voltaram? — pergunta enquanto pesco a


chave de casa na bolsa.

— Não. Estão na viagem de Bodas de Prata, lembra? Eu te disse.

— Você me disse muitas coisas. — Dá de ombros, com as mãos


enterradas nos bolsos. — Coisas que não passavam de mentiras.

Droga. Sinto o impacto da "diretaça", que faz minhas bochechas


pegarem fogo.

Abro a porta e me viro para ele.

— Marcus. Nem tudo foi mentira, você sabe.


— Eu não sei, não. Se põe no meu lugar, porra... — Passa por mim,
enfiando os dedos nos fios platinados. — É foda. Não sei nem se os
seus pais existem, Hannah! Pode ser tudo invenção sua! Todos os
detalhes estrategicamente elaborados, como uma teia de aranha
que sabia que, mais cedo ou mais tarde, pegaria a presa. No caso,
eu. Puta que pariu…

Eu nunca tinha ouvido tantos palavrões juntos em uma única fala.


Pelo jeito, Marcus está bem estressado.

Então, me lembro da nossa conversa, na primeira vez que fui ao seu


apartamento. Ele me disse categoricamente que não era uma presa.
Nem poderia imaginar, agora, o quanto se sentiu possesso por ter
caído na minha armadilha.

Marcus se senta no sofá da sala e, com o semblante agoniado,


passa a dobrar de qualquer jeito as mangas da camisa até os
cotovelos.

— Pode perguntar o que quiser, prometo te falar tudo. Não tenho


mais nada a perder mesmo... — proponho.

Me sentando ao seu lado, retiro as sandálias de salto, aliviando os


meus pés.

Marcus vira o rosto para mim e solta uma risada sem graça, me
fitando com atenção.
— Nome completo?

— Hannah Vieira Müller.

— Idade?

— 19 anos.

— Família?

— Filha única. Meu pai se chama Fábio, é Delegado Federal, minha


mãe se chama Lilian, é socialite.

— Melhores amigos?

— Bem... — faço uma pausa enquanto prendo os cabelos em um


rabo. — Até pouco tempo atrás, Júlia, Samanta, Daniel e William.
Com exceção de Daniel, os outros cresceram comigo. Moramos
aqui no condomínio desde pequenos, estudamos nas mesmas
escolas, etc. Atualmente, considero como amigos apenas dois
deles: Júlia e Will.

Marcus balança a cabeça, pensativo.

De repente, noto um brilho de irritação em seu olhar.

— O que você tem, ou tinha com Daniel?


— Quando ele se mudou para o condomínio, há uns dois anos, nós
nos tornamos amigos e começamos a ficar. Era uma "amizade
colorida".

— Seja mais clara — rosna, me encarando. — Você trepava com


ele?

— Sim. — Me esforço para sustentar seu olhar, mesmo com meu


coração pulando dentro do peito. Sei que o tema "Daniel" é tenso.

Afinal, foi ele quem se atravessou no meu relacionamento com


Marcus, contando a verdade antes de mim e, para piorar, tirando
sarro dele.

— Você trepou com ele enquanto estava comigo?

— Não. Para ser franca, ele me levou ao motel uma vez, mas não
consegui ir em frente.

— Que dia foi isso?

— No dia que você foi ao shopping comprar seu novo celular —


murmuro, desesperada para mudar de assunto.

— Porra! — Dá um soco na almofada do sofá, com o rosto todo


vermelho. — Eu lá… Todo otário no shopping, comprando doces
para você, que se dizia na TPM... E vocês dois no motel? Puta
merda, Hannah!
Comecei a chorar baixinho, não sei se de nervosismo,
arrependimento, vergonha ou tristeza, sentindo que nós dois
estávamos quebrados demais, e que provavelmente não teria
remendo.

Marcus se levanta com tudo e passa a perambular pela sala a


passos furiosos.

— E você quer que eu acredite que foram ao motel e não fizeram


nada? — lança lá do outro lado da sala, gesticulando com os braços
abertos.

— É a verdade. — Enxugo as lágrimas com uma mão e puxo uma


almofada para o meu colo, abraçando o objeto.

— Por que não transaram?

— Porque... — Baixo os olhos, me perguntando se devo mesmo


abrir todo o jogo, se não é humilhação demais. — Por você —
confesso, prendendo os seus olhos com os meus.

Nunca mais vou usar máscaras com ele.

Arqueando uma sobrancelha, Marcus apoia os quadris na parede


atrás de si, parecendo desconfiado.
— Escuta... — torno a falar. — A gente ainda não tinha começado a
ficar, lembra? Mas eu já estava mexida por você... Tanto que no dia
seguinte, véspera de Réveillon, eu abandonei os meus amigos para
te ver no Bulldog. Inclusive, me ferrei, porque você estava beijando
outra mulher.

— Eu não fiz nada de errado, caralho! Não tenta inverter a história,


se fazendo de vítima — me acusa, cruzando os braços sobre o
peito.

— Não estou fazendo isso — me defendo, caminhando devagar na


direção dele. — Enfim, saiba que depois que a gente começou a
ficar, eu não me encontrei mais com Daniel, nem com qualquer
outro cara. Durante o nosso relacionamento, ou até mesmo depois.
Não fiquei com mais ninguém, desde o primeiro dia. Só com você.

— Não sei se acredito. — Pisca devagar, balançando a cabeça para


os lados.

— Marcus. — Encosto no seu antebraço. — Eu sei que deveria


deixar para lá... Eu sei que estraguei tudo. Não vou insistir, lutar
sozinha pela gente, se você não me quer mais. Foi o que falei que
faria, mas... Mas me ajuda a te esquecer, caramba! Não me procura
mais. Como no dia do trote, quando eu estava no bar. Como hoje na
festa, quando eu estava dançando. Porque, se você me procurar…
Se você me chamar… Eu vou.
— Você vai, mas depois me rejeita... — Ele ri sem graça,
umedecendo os lábios com a ponta da língua. — Ou esqueceu que
se recusou a trepar comigo na festa?

— Você sabe muito bem por que eu me recusei, não se faça de


desentendido. Você é a pessoa mais inteligente que conheço —
completo, com o olhar fixo nos seus lábios bonitos.

— Quero escutar de você. — Ergue o meu queixo com dois dedos,


me obrigando a olhar em seus olhos.

— Porque eu não suportaria que fizesse de novo o que fez no dia do


trote... Me trocar por outra depois do sexo. — Pego sua mão e a
pouso sobre meu coração. — Porque com você não é apenas sexo
faz tempo. Porque eu me apaixonei por você. Porque eu te amo.

Me entrego de bandeja, torcendo para que ele não me destrua mais.

É tudo ou nada.

Marcus parece em choque.

— Por que, cacete, por que você se apaixonou por mim? —


pergunta baixinho, quase em um sussurro.

— Por quê?! — Quase dou risada do absurdo do questionamento.


— Porque você é incrível. É inteligente, correto, responsável,
paciente... Sabia que é a única pessoa que consegue ter a
paciência de me assistir ensaiar ballet por uma hora inteira? Além
disso, é lindo. Por dentro e por fora. É bom de cama. "Bom", não.
Perfeito. Que mais? Me ensina sobre a música da sua época. Ah...
Poderia ficar a noite toda enumerando os motivos.

— Da minha época. — Solta uma risada fraca. — Porra... —


Suspira, me puxando em um abraço. — Acho que faltou mencionar
"otário". Porque eu estou seriamente cogitando a ideia de dar mais
uma chance para a gente. — Beija o topo da minha cabeça, me
arrancando um sorriso.

— É uma ideia interessante... — Subo as mãos para a sua nuca,


acariciando os cabelos curtinhos com as pontas dos dedos.

— Caralho, Hannah... Você é pior do que cocaína — resmunga ao


apertar os olhos, ainda com os braços ao redor da minha cintura.

— Eu não saberia dizer, nunca estive envolvida com droga. —


Observo a expressão torturada em seu rosto. Mesmo com os olhos
fechados, Marcus parece perturbado.

— Eu, sim. — Abre os olhos, me encarando com as íris azuis em


um tom mais escuro. — E eu queria que você soubesse de tudo.

— Tudo o quê? — pergunto, com uma pontada incômoda no


coração.
— O que me quebrou. O que destruiu a confiança que eu tinha nas
pessoas. Sou fodido pra cacete, Hannah... — diz com tristeza e fico
com vontade de guardá-lo em um potinho. Sou tão apaixonada por
esse homem, meu Deus…

— Não fala assim — peço, o puxando de volta para o sofá. Quando


nos sentamos, eu me arrasto para perto e bato com a mão no meu
colo. — Deita aqui.

Ele faz que sim. Mas, antes, retira desajeitadamente a camisa,


parecendo agoniado.

Quando aconchega a cabeça nas minhas coxas, passo a deslizar os


dedos pelos seus fios macios.

— Me conta tudo, meu amor — incentivo.

— "Meu amor". — Marcus esboça um riso fraco, fechando os olhos.


— Vamos lá. Você já sabe que não tive mãe e que meu pai me criou
sozinho. Ele era marceneiro. Muitas vezes passamos dificuldades
e... Ele fez o seu melhor, na maior parte do tempo.

— Certo. Estou te acompanhando.

— Quando eu estava no final do terceiro ano do Ensino Médio, meu


pai se envolveu com uma mulher que vendia drogas para a alta
sociedade. E ele, burro pra caralho, entrou no esquema, visando o
dinheiro fácil. Até que, por conta de uma denúncia anônima, policiais
apareceram na nossa casa, encontrando centenas de pinos de
cocaína.

— Seu pai foi preso?! — disparo espantada.

Coitado, ficou sem ninguém tão cedo, penso, mas não digo.

— Não. Eu que fui. Acredita que ele tinha escondido a droga no meu
quarto? E, para piorar, na hora do flagrante, ele me entregou. Disse
aos policiais que o filho era problemático porque não tinha mãe e...
Imagina a merda.

— Meu Deus, Marcus! Você foi para a cadeia? — sussurro em


choque.

Que pai desgraçado!

— Não, para a Fundação Casa. Eu tinha 17 anos ainda. Faria 18 em


um mês.

— Minha nossa... Nem sei o que falar. Por que ele fez isso com
você?

— Porque era um covarde. Ele me visitou na Fundação Casa,


tentando explicar o motivo de ter me fodido. Disse que não poderia
ficar preso por anos e anos, que não aguentaria, e que eu somente
ficaria lá por um mês, porque aos 18 anos os menores são soltos.
Mas um mês no inferno não é um dia. É a porra de um mês. O que
passei por lá... Não desejo nem para o meu pior inimigo, Hannah.
Conheci todas as espécies de violências, drogas e o caralho.

— Marcus... — Levo as mãos à boca, sufocando o choro. — Sinto


muito. Muito.

— E é por isso que não confio em ninguém. Minha mãe quebrou a


minha confiança ao me abandonar. Depois, meu pai me ferrou... —
Esfrega os olhos, sentando-se do meu lado. — Então, anos depois,
a única pessoa que me fez baixar a guarda foi você e… Sabemos
no que deu. — Sorri com tristeza, me matando.

— Sim, eu sei. O que eu fiz não tem perdão — balbucio, chorando


mais uma vez, me sentindo a pior pessoa do mundo.

— Não. — Pressiona as pontas dos dedos nas têmporas, me


encarando firme. — Eu estou disposto a te perdoar e tentar mais
uma vez. Porque... É foda, Hannah. Eu queria poder virar a página e
nunca mais olhar na sua cara, mas não consigo. Ficar sem você
está me enlouquecendo.
Não consigo nenhuma satisfação
I Can't Get No Satisfaction ~ The Rolling Stones

MARCUS VENTURINI

— Ficar sem você está me enlouquecendo — declaro, a deixando


de queixo caído.

Hannah passa a sorrir e chorar ao mesmo tempo, as bochechas


molhadas das lágrimas que escoam dos seus olhos cor de mel.
Linda pra cacete.

— Marcus... — Ela pula no meu colo, passando os braços pelo meu


pescoço.
Aproximando o rosto do meu, Hannah sussurra com nossos lábios a
milímetros de distância:

— Serei obrigada a mudar de ideia.

— Do que você está falando? — indago com o coração mais leve,


sabendo que é coisa boa. O brilho travesso em seus olhos não me
deixa pensar diferente.

— Eu falei que não transaria hoje com você. Agora... — Ela remexe
a bunda no meu colo, fazendo o meu pau acordar. — Estou ainda
mais apaixonada por você. E tarada, muito tarada.

Sem desviar os olhos dos meus, Hannah ergue devagar a barra do


vestido, posicionando um joelho de cada lado do meu quadril.

— Porra... — ofego ao descer o olhar, confirmando que ela está sem


calcinha. — Pensei que fosse mentira… — comento, fazendo
referência à brincadeira de verdade ou desafio.

— Eu não minto mais para você — diz, descendo a boceta na


direção do meu pau. — Nunca mais.

— Fico feliz em saber. — Agarrando os ossinhos dos seus quadris,


movimento seu corpo para frente e para trás, nos estimulando.

— Lembra que a nossa primeira vez foi aqui neste mesmo sofá? —
pergunta, deslizando as unhas pelo meu peito, me arrepiando da
cabeça aos pés.

— Sim. Inesquecível — respondo, levando a boca ao seu pescoço


quente.

Inspiro seu cheiro suave antes de beijar a pele delicada, arrastando


os lábios e os dentes da sua orelha à clavícula.

— Não tem melhor lugar para recomeçarmos. O que acha? — Puxa


o vestido para cima, ficando apenas de sutiã de renda preta.

Passeio com os olhos pelo seu corpo bem desenhado, com os


batimentos já descontrolados dentro do peito.

— Acho que você tem razão, linda. — Aperto seus seios,


provocando os mamilos com os polegares por cima do tecido
rendado.

Hannah continua rebolando no meu colo, fazendo minha ereção


ficar tão dura que até dói.

Em um movimento rápido, liberto os peitos do sutiã e abocanho um


deles. Ela geme quando sugo a carne macia, balançando o bico
com a ponta da língua.

Ainda a mamando, vou empurrando até a deitar com as costas no


sofá, mantendo os pés no chão.
Me ajoelho no tapete felpudo e encaixo meu corpo entre seus
joelhos, descendo com os lábios pela sua barriga até alcançar o
umbigo. Quando circulo o buraquinho com a língua, Hannah dá
risada.

— Marcus! No umbigo eu tenho cócegas! — Ela contorce o corpo.

— Fica quieta. Você é toda minha — afirmo, agarrando suas coxas.


— Vou te beijar onde eu quiser, cacete.

— Ui, possessivo... Adoro — provoca, enfiando as unhas nos meus


ombros enquanto beijo sua virilha depilada.

Abrindo mais suas pernas, pouso meus olhos bem ali. Ela está tão
molhada que até brilha, com a lubrificação escorrendo. Puta que
pariu…

— Vai ficar só olhando? — Hannah quer saber.

— Não tenho pressa. — Afasto seus lábios vaginais sensíveis com


os polegares. — Gosto de apreciar o que é meu.

Soprando de leve com a boca quase roçando na boceta, não


contenho um sorriso ao vê-la estremecer. Passo a ponta do
indicador por toda a abertura molhada, alisando de cima a baixo, e
depois circulo as bordas rosadas, pressionando o clítoris com o
polegar.
Em seguida, eu a penetro lentamente com o indicador, prendendo o
fôlego ao vê-lo desaparecer dentro dela. Enfiando e tirando, observo
sua lubrificação quente me melar.

O som molhado do entra e sai me hipnotiza pra caralho. Eu poderia


fazer isso por horas.

— Que delícia, Marcus... — Hannah geme e subo os olhos para seu


rosto.

Perco o ar com a visão da luxúria.

Ela está mordendo o lábio, concentrada, as bochechas vermelhas


de excitação. Com os dedos das mãos apertando as almofadas,
suas unhas quase furam o tecido.

Sorrio ao vê-la tão entregue e decido melhorar para o lado dela.

Sem parar com as dedadas, levo a boca ao seu clítoris, fechando os


lábios sobre o pontinho sensível. Meu pau lateja quando seu gosto
se espalha pela minha língua, me arrancando um gemido rouco do
fundo da garganta.

Afasto a minha mão e passo a chupar toda a sua boceta, que chega
a pulsar com espasmos, se derretendo na minha boca.

Aproveito o momento intenso para arriscar uma novidade. Levando


o meu dedo melado da lubrificação ao seu orifício virgem, o rodeio
bem devagar.

Hannah instintivamente tenta fechar as pernas, mas eu empurro


uma delas com a mão livre, sem afastar o dedo do seu buraco de
trás.

— Relaxa, só vou sondar o território — asseguro e ela solta uma


risada nervosa. — Pode ser?

— Pode.

Volto a chupar a sua boceta, circulando a outra abertura, sem a


penetrar. Hannah começa a relaxar, não mais contraindo a bunda
com as provocações do meu dedo.

Quando percebo que ela está quase no limite, me levanto depressa,


desço a calça com a cueca e me encapo com a camisinha que retiro
do bolso.

— De quatro, linda. Põe as mãos no sofá.

Ela obedece, sem hesitar. Agarrando os seus quadris, encaixo a


cabeça do meu pau na sua boceta molhada, me empurrando até o
final.

Gememos juntos quando a minha virilha encosta na sua bunda.


Fechando os olhos, aprecio a sensação de me ver enterrado até o
talo, com a musculatura quente e macia me apertando de cima a
baixo.

— Minha nossa, Marcus... — Hannah choraminga, girando de leve


os quadris. — Nunca vou me acostumar com o seu tamanho.

— Isso porque eu ainda não comi o seu cu. — Dou risada, me


impulsionando para dentro e para fora em um ritmo propositalmente
lento.

— Delicado, você.

— Delicadeza. Definitivamente não é uma das minhas qualidades —


falo, acelerando as estocadas.

Cada entra e sai desencadeia uma corrente elétrica que percorre a


minha coluna, me arrepiando inteiro. Aperto suas nádegas com as
mãos firmes, as separando. Sem parar de meter forte na sua
boceta, deslizo o dedo ao redor do ânus, provocando a abertura
enrugada.

— Marcus... — Hannah ofega, sem ar. — Estou quase…

— Eu sei, linda — rosno entredentes, com o tesão me queimando.


— Vou enfiar a pontinha do dedo aqui atrás... E vamos gozar...
Juntos. Confia em mim?

— Confio.
E, quando enterro a ponta do indicador no seu buraco apertado,
Hannah estremece com tudo, convulsionando em um orgasmo
absurdo. Seus espasmos estrangulam o meu pau, com tanta força
que quase me assusto.

— Marcus! — grita, amolecendo as pernas, e com a mão livre a


sustento para não cair.

Mantenho o meu dedo enfiado lá atrás enquanto ejaculo como um


condenado na camisinha, extasiado por estar ocupando seus dois
buracos ao mesmo tempo.

— Porra... Caralho… — Arfo, bombeando devagar até saírem as


últimas gotas.

Então deslizo para fora dela, caindo como uma marionete sem vida
no chão. Sem energia para mais nada. Puta merda…

Hannah faz menção de sentar do meu lado, mas a puxo para o colo,
a abraçando com força.

Nossos corpos estão moles, quentes e suados, as peles grudando.


Ficamos em silêncio, aguardando as respirações voltarem ao
normal.

— Você é sempre tão intenso. — Ela ri, contornando as minhas


tatuagens dos joelhos com os dedos.
— E você gosta que eu sei... — Dou um peteleco leve no bico do
seu seio.

Hannah me vira um tapa na perna.

— Oh, programação... Escuta. Vamos tomar uma ducha. Comer um


lanche. Transar de novo. E... — hesita, me olhando nos olhos. —
Dormir de conchinha. Que tal?

— Perfeito.
Pegue essas asas quebradas e aprenda a voar
Toda a sua vida
Você esteve esperando por esse momento
Blackbird ~ The Beatles

MARCUS VENTURINI

Descemos juntos para o café. Hannah disse que dispensou os


funcionários para termos privacidade. Aos domingos, nem todos
trabalham, de qualquer maneira.

Apreciei a iniciativa dela. Não me agradava a ideia de desfilar com a


roupa de ontem, de camisa amarrotada e o caralho, na frente dos
outros. Será que eles ainda acreditam que sou um bailarino?
— Fiz ovos mexidos — diz Hannah, sorridente, trazendo uma
frigideira em mãos. Vestindo uma camisola levinha quase
transparente, deixa os mamilos rosados visíveis, atraindo meu olhar.
— Meus olhos são aqui em cima, tarado! — Aponta para o próprio
rosto.

— Foi mal. — Esboço um sorriso de canto, me servindo de suco de


laranja.

— Você tem algo programado para hoje? — pergunta, sentando-se


na minha frente.

— Não. Por quê?

— À noite será a minha apresentação do ballet. É aberta para


amigos e familiares. Se não achar entediante demais... — Morde a
boca, parecendo nervosa.

— Eu adoraria ir. — Pego na sua mão por cima da mesa, lhe


fazendo sorrir aliviada. — Preciso comprar convite?

— Não. Eu vou às 18h00 para o ensaio final. Você pode chegar às


20h00. Escuta... — Para de falar, como se pensasse nas próximas
palavras. — O pessoal do condomínio está sabendo da
apresentação. Sei que Júlia e Will vão, os pais dele também. Fique
tranquilo que Samanta já disse que não vai, e Daniel está vetado de
ir. Bem... Eu achei melhor te avisar.
— Obrigado. — Foco no que mais me interessa. Samanta e Daniel
não vão. Ótimo. — Uma dúvida. Agora podemos ficar na frente de
todos? — pergunto, me lembrando da palhaçada que fez com que
eu me sentisse um "segredinho sujo."

— Marcus... Faço questão de te apresentar ao mundo como "o


homem por quem estou apaixonada". Mas o título é meio grande e...
Não sei se te apresento às pessoas como o meu…

— Você quer me pedir em namoro, Hannah? — Cruzo os braços,


segurando o riso.

— Se você quiser pedir... Eu prefiro. É mais convencional — diz,


com os olhos brilhantes em expectativa.

— Não sabia que você fazia a linha convencional... — Dou risada,


me levantando. Contorno a mesa e apoio um joelho no chão. Seus
olhos quase saltam das órbitas. — Vamos lá… Hannah Müller. Você
me aceita, Marcus Venturini, como seu legítimo namorado?

— Aceito! — exclama feliz, me puxando para um beijo.

Tento me alegrar com a empolgação dela, mas não consigo cem por
cento, com a cabeça já na apresentação de ballet. Será a primeira
vez que desfilaremos como namorados e… Porra… O frio na barriga
está me matando.
Um pouco antes das 20h00, estaciono a minha Honda em frente ao
Theatro Municipal, respirando fundo ao guardar a chave no bolso.
Em minutos, vai começar a apresentação de Hannah.

Acendo um cigarro para tentar controlar a merda do nervosismo que


agita meu estômago, soltando a fumaça na direção do céu escuro.

A brisa morna bagunça os meus cabelos curtos, e quase me


arrependo da roupa social, que está me deixando com um puta
calor. Detalhe, tive que pesquisar no Google o que significa a porra
de "traje passeio" exigido para o evento. Usar calça e paletó, em
pleno verão, é de foder.

Depois de cinco longas tragadas, descarto a bituca, aliso a roupa e


me dirijo às portas principais. Uma pequena aglomeração está do
lado de dentro, entretida com os coquetéis e com a música tocada
por violinistas.

É surreal estar aqui, prestes a assistir à minha namorada dançar


ballet, junto com centenas de homens e mulheres grã-finos. Até
"ontem", a ideia absurda nem passava pela minha cabeça.

Por um lado, me sinto honrado por ela querer a minha presença.


Mas, por outro, eu me sinto absolutamente deslocado. Com a
certeza de que não pertenço a esse mundo.
Retiro o convite do bolso, checo mais uma vez o número da cadeira
em que vou me sentar, que fica na fileira reservada aos convidados
de Hannah, uma das bailarinas principais da noite.

Passo pelo salão da recepção e sigo diretamente até o teatro.


Entrego o convite a um funcionário uniformizado como um soldado
britânico, que espia o número da minha cadeira e me indica o
corredor central.

O teatro é um salão amplo em estilo clássico e imponente, com


poltronas vermelhas aveludadas e camarotes suspensos voltados
para o palco. Todas as fileiras estão repletas de pessoas sentadas
que conversam com animação, com o ar-condicionado e as luzes
amareladas deixando o ambiente bem agradável.

Logo encontro o meu lugar, percebendo que já tem uma garota ruiva
acomodada na cadeira ao lado. É Júlia, a melhor amiga de Hannah.

— Boa noite, Júlia. — Eu a cumprimento, me sentando à sua


esquerda. — Tudo bem?

— Oi, Marcus. Tudo bem e você? Hannah me disse que viria, mas
pensei que tivesse desistido. A apresentação já vai começar em
menos de dois minutos... — Ela sorri, com os seus lábios pintados
de vermelho. — Você se lembra do Will? — Aponta para o garoto do
seu lado direito, que me fita intensamente com seus olhos
castanhos quase pretos.
— Sim, como vai? — Me dirijo a ele, acenando com a cabeça.

— Bem, obrigado — responde formalmente, sem sorrir.

De repente, as luzes são apagadas, e um sino ressoa silenciando as


pessoas.

— Vai começar... — Júlia cochicha empolgada. — Will... — Ela se


vira para o amigo. — Seus pais ainda não voltaram do bar. Não é
melhor mandar uma mensagem para eles?

— Ih, deixa os dois... Devem ter escutado o sinal, daqui a pouco


aparecem — responde com a voz baixa.

Quando as cortinas sobem, a orquestra já está a postos.

Sorrio sabendo que a apresentação vai começar.

Hannah, apesar do seu habitual jeito despojado e agitado, se torna


um verdadeiro anjo quando dança. Eu mal consigo piscar,
hipnotizado por seus movimentos leves e fluidos ao som dos
Beatles.

Sua apresentação contou com três músicas na sequência,


"Something", "Penny Lane" e "Blackbird", com interrupções curtas
para troca de figurino.
Me arrepio da cabeça aos pés quando a minha garota dança a
última delas, vestida com uma fantasia repleta de plumas, como um
legítimo pássaro negro.

Blackbird singing in the dead of night


Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise
(Pássaro negro cantando na calada da noite
Pegue essas asas quebradas e aprenda a voar
Toda a sua vida
Você esteve esperando por esse momento para se erguer)

— Linda — Júlia cochicha, os olhos vidrados na amiga.

— Perfeita — murmuro emocionado.

— Você gosta de verdade dela, não é? — Ela me espia de soslaio.


Faço que sim com a cabeça.

— Porque... — Faz uma pausa cautelosa. — Hannah parece gostar


mesmo de você. Como nunca gostou de ninguém. Você é um
homem de sorte.

— Eu sei. Muita sorte — concordo. E, antes que eu possa falar mais


alguma coisa, a plateia explode em aplausos.

Fim da apresentação.
Aos poucos, a nossa fileira se levanta, seguindo em direção à área
de espera dos artistas. Hannah vai aguardar por todos nós lá,
conforme o combinado.

Formamos uma fila para atravessar a multidão, abrindo caminho


com certa dificuldade. Primeiro, os dois homens gringos que sei que
são os pais de William. Depois, o garoto que mal olha na minha
cara. Por último, Júlia, bem na minha frente.

Logo encontramos Hannah, na área de espera depois das coxias.


Assim que nos vê, corre diretamente para os meus braços, me
agarrando com tudo. Quase me desequilibro, não contendo um
sorriso bobo.

— Você veio — diz com um sorriso bonito nos lábios. — Sei que
apresentação de ballet pode ser entediante para quem assiste...
Obrigada por ter vindo, amor.

Hannah está usando um vestido azul escuro de lantejoulas, com os


cabelos presos em um coque, como uma verdadeira bailarina.

— Gostei muito da apresentação. Parabéns, você foi incrível. —


Acaricio seus braços, subindo e descendo com as mãos dos
cotovelos aos ombros. Ao dar um beijo simples em seus lábios, me
lembro de que o resto do grupo nos observa de perto, me deixando
meio sem jeito. — Olha, trouxe para você.
Entrego a Hannah uma sacolinha azul, que ela pega das minhas
mãos com o olhar arregalado. Acho que nunca a vi tão incrédula.

Sentando-se em uma cadeira, ela leva uma mão ao rosto, rindo


antes de abrir o presente. Acompanho sua reação, sem piscar, na
expectativa.

Dentro da sacola tem uma caixinha com um pingente de bailarina de


prata, que escolhi mais cedo no shopping, parcelando a compra a
perder de vista.

— Quem é você, e o que você fez com o meu namorado


grosseirão? Seu romântico enrustido! — Dá risada, me olhando com
os olhos brilhantes. — Sério, Marcus, não precisava. Mas eu amei
demais... Obrigada.

— De nada — respondo, me sentando do seu lado.

Alcanço a sua mão e ela entrelaça os nossos dedos, ainda me


fitando com o rosto radiante. Nossos olhares se conectam com
intensidade, disparando meu coração. E, nesse momento, eu sei.

Eu amo essa garota.

Ainda não tenho coragem de dizer em voz alta, mas continuo


olhando para ela, absolutamente encantado. É como se só existisse
a gente aqui. Um mundo ideal.
Só que, como tudo o que é bom dura pouco, as outras pessoas se
aproximam para parabenizá-la pela apresentação, estourando a
nossa bolha.

Júlia é a primeira, puxando Hannah para um abraço. Depois, vem


William.

De repente, dois celulares passam a vibrar ao mesmo tempo, o


ruído ecoando entre nós.

Júlia dá um gritinho, chamando a minha atenção. Com os olhos


fixos na tela, ela exclama:

— Gente, Dani está mandando mensagens para nós! Vamos todos


para o hospital! O bebê da Sam vai nascer!
Está ficando difícil ser alguém
Mas tudo vai dar certo
Strawberry Fields Forever ~ The Beatles

HANNAH MÜLLER

Estamos todos sentados na sala de espera da ala da maternidade,


aguardando por notícias de Samanta. Além dos meus vizinhos que
estavam no ballet, vieram Daniel e os pais de Sam.

Minha aflição parece ainda mais palpável com a luz branca da sala
me cegando. Estou tremendo do ar-condicionado e, principalmente,
de desespero. Por sorte, Marcus me emprestou seu paletó, que
estou usando por cima das vestes brilhantes da apresentação.
— É um parto prematuro. Estou tão nervosa… — choramingo,
deitando a bochecha no ombro dele.

— Calma, linda. Vai ficar tudo bem — ele sussurra, me dando um


beijo carinhoso na cabeça. — A médica falou que com 37 semanas
não é mais considerado prematuro.

— 37 semanas, hein, quem diria? Ela jurava que tinha engravidado


em agosto. De você. Agora sabemos que a concepção foi em maio.

Os pais de Sam estão agoniados, andando de um lado para o outro


a poucos metros de nós. Dr. Villa-Lobos já tomou meia dúzia de
cafés.

— Eles pensam que é meu? — Marcus me pergunta em um sopro.

— Acho que não. Pelo o que sei, ela não revelou a eles a identidade
do pai do bebê.

— Menos mal para o meu lado.

— Com licença. — Uma enfermeira surge do nada, sorrindo com


uma prancheta em mãos. — Parentes e amigos de Samanta Villa-
Lobos. O quadro da parturiente se encontra sob controle, com a
cesárea programada para ser feita em dez minutos. Para quem
quiser assistir, a sala de parto será a de número três. Posso levá-los
até lá.
— Assistir? — Júlia pergunta, passando as mãos pelos cabelos
ruivos. — Como assim?

— Através de um vidro — explica a enfermeira. — De um lado, fica


a sala de parto. Do outro, a área reservada a parentes e amigos.
Sintam-se à vontade.

Me viro para Marcus, percebendo que ele não parece nada


confortável com a situação. Com certeza, ele não quer estar aqui.
Somente veio por minha causa, para me acompanhar, como o
namorado maravilhoso que é.

— Vamos lá fora? — proponho, pretendendo facilitar para ele.

— Vamos. Quero fumar um cigarro.

Ficamos em pé e nos afastamos do grupo. Todos eles passam a


seguir a enfermeira através de um corredor.

Quando chegamos do lado de fora do prédio, pego o celular na


bolsa e digito uma mensagem a Júlia.

Hannah: "Me avise assim que nascer. Espero que fique tudo bem
com o bebê e com ela."

Logo vem a resposta.


Júlia: "Ok. Nana, eu não quis perguntar na frente do Marcus... Você
não tem nem um pouquinho de medo de que o filho seja dele?"

Hannah: "Não. Marcus me disse que não chegou a transar com


Sam, e eu acredito nele", digito, sabendo que ele não mentiria para
mim.

Marcus é tão correto em tudo, tão honesto, tão responsável… Não


fugiria da raia caso engravidasse uma garota.

Júlia: "Quanta confiança em alguém que você conhece há pouco


tempo. Tomara que não se decepcione, amiga."

Estremeço com aquela resposta. Será que posso estar enganada?

Droga, Júlia. Por que colocar a pulga atrás da minha orelha?


Começo a me sentir ainda mais nervosa, com o estômago
embrulhado e…

— O que você tanto digita? — Marcus pergunta casualmente,


acendendo um cigarro, sentado em um banco de madeira.

— Estou pedindo que Júlia me mande notícias, assim que o bebê


nascer.
— Ok. Senta aqui comigo. — Aponta para o seu colo e me acomodo
no seu joelho. Marcus segura o cigarro com uma mão. Com a outra,
passa a massagear meu ombro. — Relaxa, linda. Vai dar tudo certo.
Fecho os olhos, tentando me concentrar nos seus toques firmes, me
acalmando. Até que meu coração sobe para a garganta quando o
celular vibra na minha mão, com uma mensagem piscando na tela.

Júlia: "Nasceu! Está tudo bem! E Nana... O bebê não é do Marcus."

Meu Deus…

Solto uma risada alta, radiante com a notícia.

Marcus me encara com curiosidade, erguendo uma sobrancelha


como se eu fosse louca. Sinto vontade de agarrá-lo, de beijá-lo e...
Então, uma questão pipoca na minha mente.

Hannah: "Como você sabe que não é dele?"

Afinal, ainda não foi feito um teste de DNA e…

Sua resposta aparece um segundo depois, me deixando


boquiaberta.

Júlia: "O bebê é negro."

— Vem comigo! — Arrasto Marcus pela mão, correndo de volta para


o interior da maternidade.

— O que foi? Está tudo bem? — ele quer saber, me acompanhando


depois de descartar o cigarro.
Assim que piso na área das salas de parto, encontro os meus
vizinhos agitados, parecendo espantados com a situação. Apenas
um deles está sorrindo. William. Meu Deus…

Então, não acredito quando ele vai até a enfermeira, erguendo o


queixo ao falar:

— Já posso conhecer o meu filho?


Tudo o que você precisa é de amor
All You Need Is Love ~ The Beatles

MARCUS VENTURINI

Quando Hannah me pede licença para ir ao banheiro, eu fico


esperando por ela na área da recepção. Sem chance de voltar para
aquela outra sala, com os vizinhos dela para lá e para lá.

Principalmente agora, que imagino o motivo que leva William a me


desprezar. Ele deve ser apaixonado pela garota que ficou obcecada
por mim. Que merda…

De repente, franzo a testa ao enxergar Júlia sentada em uma


cadeira mais afastada, ao lado da porta da saída. Curioso com o
isolamento da garota, vou até ela.
— Está tudo bem? — pergunto e ela sobe os olhos para mim, as íris
cheias de tristeza. — Se eu puder ajudar…

— É que… Acho que eu não conheço os meus amigos. — Dá uma


risada sem graça. — Samanta, que não me falou a verdade sobre o
bebê. Will, que nunca me disse que tinha dormido com ela. Daniel,
que sabia de tudo, mas não me contou.

— Daniel sabia de tudo? Como? — pergunto, me prendendo à


informação mais intrigante.

— Ele só juntou as peças. — A ruiva dá de ombros, brincando com


a alça da bolsa. — Pelo que entendi da discussão que estava
rolando minutos atrás, o Will só tinha contado ao Dani sobre ter
tirado a virgindade da Sam. Deu a ele detalhes por alto, como dia,
local, coisas assim. Um tempo depois, quando ela apareceu grávida,
disse que o filho era seu, contando para mim, para Hannah e para
Daniel sobre a "grande noite" em que perdeu a virgindade, em um
motel da Zona Sul. Só que, como o Dani já sabia que a primeira vez
dela tinha sido com o Will, sacou na hora que a Sam estava
mentindo ao falar de você.

Balanço a cabeça, completamente incrédulo. A cada dia, me


assusto mais com as atitudes de Samanta. Quer dizer que ela
inventou que perdeu a virgindade comigo, contando os detalhes da
experiência que viveu com William? Que história podre!
E, pelo jeito, só o babaca do Daniel sacou a mentira. Porra… É por
isso que ele não me confrontou quando eu disse que não era o pai
do bebê! O filho da puta sabia disso o tempo todo!

— Que loucura... — murmuro, com a cabeça longe. — E por que


será que ela fez isso?

— Sei lá. Ela ficou obcecada por você, depois que se beijaram
naquela festa julina. Acho que, por Samanta ser extremamente
mimada, não aceitou bem a rejeição.

— Porra... Não aceitar bem a rejeição, para mim, é devorar um pote


inteiro de sorvete. — Solto uma risada nasalada, balançando a
cabeça. — O que ela fez... A história fantasiosa que criou...
Ultrapassa todos os limites da sanidade. Aquela garota necessita de
ajuda psiquiátrica com urgência.

— Concordo. — Júlia assente. — Aproveitando, eu gostaria de me


desculpar com você. Eu sabia sobre o plano de vingança e tudo o
mais, e apoiei a ideia no princípio. Me arrependo tanto.

— Está tudo bem. Relaxa — respondo a tempo de ver Hannah


voltar do banheiro. — Até que enfim, vamos embora daqui — digo a
ela.

— Vamos, meu amor. Acabou.


DOIS ANOS DEPOIS

Eu sei que esse meu amor


Nunca morrerá e eu a amo
And I Love Her ~ The Beatles

MARCUS VENTURINI

— Ainda não me acostumei a andar no seu carro... — Hannah se


inclina para falar comigo, apoiando o queixo na janela do banco do
passageiro, com um sorriso divertido nos lábios. — Saudades da
moto. Na garupa não tinha como não te apavorar.

Ela continua do lado de fora do meu Honda Civic, a única coisa que
me dei ao luxo de comprar com o dinheiro dos meus primeiros
salários.

Agora, sou um publicitário em ascensão, para o orgulho de todos


que sempre torceram por mim: Hannah, Seu Alfredo e os pais de
Hannah, que felizmente me acolheram muito bem.

O receio que tive antes de conhecê-los — por ser pobre, tatuado,


mais velho e o caralho — desapareceu assim que percebi que o que
realmente importa para eles é que a filha seja feliz.

E, modéstia à parte, eu sei fazê-la feliz. Muito feliz.

— Entra logo, vai... Estou com fome — respondo com o semblante


sério, quase mal-humorado. Fui sozinho buscar o carro no
estacionamento porque ela quis ficar assistindo a um músico que
está tocando na entrada do Parque Ibirapuera.

Hannah inventou de "almoçar" em um piquenique no parque para


aproveitar o domingo de sol. Mas, enquanto a gente dava uns beijos
sob a sombra da copa de uma figueira, um cachorro do demônio
enfiou o focinho na nossa cesta, devorando todos os sanduíches.

— Ui, adorei a cara de mau... Faz de novo — provoca, ainda do lado


de fora do carro. — Já vou... Só estou esperando terminar a música.
Tudo bem? — Aponta para o rapaz que toca violino a poucos
metros de nós.
A canção dos Beatles, "And I Love Her", me faz lembrar do nosso
começo. Do começo de tudo.

Concordo com a cabeça, me dando por vencido. O que Hannah me


pede que não faço?

Ao descer do carro, apoio os antebraços no teto de metal aquecido


pelo sol, olhando para ela.

— Linda. Te amo — murmuro baixinho, mais para mim mesmo do


que para ela, porém Hannah deve ter escutado, porque vira com
tudo o rosto na minha direção, sorrindo. Atualmente, não tenho mais
bloqueios em me declarar, e o faço com tanta frequência que não
sei como ela não enjoa.

Sob o sol luminoso, seus olhos estão ainda mais brilhantes, me


hipnotizando. Pisco devagar e desço o olhar para seus lábios
entreabertos. A mera contemplação da minha garota faz meu
coração disparar.

Não sei explicar como é possível, só sei que me sinto ainda mais
apaixonado por ela.

Mais e mais a cada dia.


— Última chance, presta atenção. — Aperto a cintura da minha
garota, que levanta o queixo para me encarar. Em pé, fico uma
caralhada de centímetros mais alto do que ela. — Não quer se casar
comigo, mesmo? A gente já monta a nossa casa, com a cerca
branca e…

Hannah gargalha com vontade, jogando a cabeça para trás. As


pontas dos seus cabelos loiros e perfumados roçam nos meus
braços, me arrepiando.

Estamos no quarto dela, discutindo aquele mesmo assunto pela


décima vez. Eu realmente entendo o ponto dela, mas ainda tenho
esperança de que mude de ideia.

— Já disse mil vezes, amor. Eu quero! Mas não agora... — Desliza


os dedos pelo meu antebraço, alcançando a minha mão. — Ainda
tenho 21 anos, estou na faculdade. Preciso me estabelecer
profissionalmente e tudo o mais. Não quero ser uma mulher
dependente de pai ou de marido.

— Beleza... Vou ter que morar sozinho, então... Certinha você.

Me jogo na cama, colocando as mãos atrás da cabeça. Hannah se


aconchega do meu lado, traçando as tatuagens do meu braço com
as pontas dos dedos.

— Não vamos apressar as coisas, amor — diz, trilhando uma


sequência de beijinhos pelo meu pescoço. — Você vai gostar de
morar naquele flat moderninho, apesar de que…

— Fala — insisto.

— Meu único medo é... — Morde a boca antes de continuar. —


Aquele prédio é cheio de homens solteiros bonitos. Deve ter um
monte de mulher circulando para lá e para cá e…
— "Bonitos", no plural, não. Você só pode achar o seu noivo bonito.
Está me ouvindo? — Dou um tapa na sua bunda, recebendo uma
risada gostosa em troca.

Sim, nós ficamos noivos no mês passado, para a alegria de todos,


em especial da mãe de Hannah, que vai organizar um mega evento.

— Só posso achar você bonito, no mundo todo? — faz graça, com


os olhos brilhantes. Linda. — E o que eu faço com o meu crush pelo
Ash Stymest?

— Aquele franguinho? Sou mais eu.

— Franguinho nada. O Ash é perfeito! Aqueles olhos azuis, aquelas


tatuagens... — Ela se abana, dando risada.

— Não me provoca... — Em um movimento rápido, pulo em cima


dela, prendendo os pulsos no alto. Enfiando um joelho entre as
pernas, a pressiono bem ali. — Fala.
— O quê? — pergunta, com a respiração falhando conforme mexo o
joelho, friccionando sua boceta.

— Que você é minha. Só minha. — Junto seus pulsos para os


segurar com uma única mão e desço a outra para seu rosto,
erguendo o queixo com dois dedos.

— Eu sou sua. Só sua. Desde o primeiro dia — responde, sem


desviar os olhos.

Suas palavras fazem com que uma onda de eletricidade corra pela
minha coluna, me acendendo inteiro.

— Você é foda. Te amo, Hannah Müller.

— E eu te amo, Marcus Venturini. Para sempre.

FIM
E nos reencontramos aqui!

Em primeiro lugar, gostaria de conversar com as pessoas que


conheceram “Perfeita Vingança” no Wattpad. Talvez vocês tenham
sentido falta das narrativas do Daniel.

Sim, eu as retirei, com a intenção de lançar em breve um spin-off


sobre ele. Desta maneira, deixei a história de Hannah e Marcus
mais fluida e objetiva, sem tantas enrolações.

Espero, do fundo do coração, que tenham gostado!

Agora, vamos aos agradecimentos.


À minha família, em especial meu marido, pelo apoio e paciência. À
minha equipe — Aline Bianca, Dani Polesel e Wedla —, pelos surtos
coletivos. Às minhas parceiras, pelas panfletagens maravilhosas. Às
meninas do grupo Paulinetes, pela companhia de todos os dias.

O livro não estaria aqui sem cada um de vocês.

Com carinho,
Pauline G.

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