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LIÇÕES DA TORÁ – SIR JONATHAN SACKS

‫עירות תשרם‬
TAZRIA

A Sidra anterior, Shemini, continha as leis de asseio e pureza ritual, no que


tange a animais. A Sidra desta semana aplica os mesmos conceitos ao homem
e à mulher. No Midrash, Rav Simlai tece uma analogia entre o fato de os
animais terem sido criados antes do homem, e o fato de que uma legislação a
respeito dos animais precedeu à que se refere so homem. Qual o significado
desta analogia? Foi o homem criado por último por ser ele mais elevada, ou
inferior, aos animais? Ao responder a esta pergunta, a Sichá traça a conexão
existente entre a opinião de Rav Simlai e o seu caráter, e examina uma
importante distinção entre virtude inata e virtude adquirida, ou entre a
excelência que é herdada e a que é auferida. Trata-se de uma questão que tem
afetado muitos pensadores: Quem é melhor: o homem que nasceu justo, ou o
homem que se tornou, por si, uma pessoa justa? A Sicha analisa em
profundidade o papel que o esforço desempenha na vida religiosa.

1. Ο NOME "TAZRIA"
Como já vimos antes, os nomes das Sidrot não são meros rótulos para
diferenciar uma Sidra da outra. Cada nome em Hebraico, a língua sagrada, é
um indicativo da natureza daquilo que recebe a nome. Os nomes das Sidrot
nos dizem sobre o seu conteúdo essencial. Assim, podemos encontrar diversas
Sidrot que não são denominadas por suas palavras iniciais, como normalmente
ocorre, mas por alguma palavra que aparece depois, e que expressa o tema
mais perfeitamente.
Um exemplo disto acontece com a Sidrá desta semana. Depois da introdução
geral ("E falou o Eterno a Moshë.... dizendo"), a primeira palavra é "mulher"
("isha"): "mulher quando conceber e der à luz um varão". E, ainda assim, nos
dias de hoje, não denominamos a Sidrá pelo nome de "isha", mas sim "Tazria"
("dar à luz").
Qual, então, o conceito implícito na palavra "Tazria" que resume todo o
conteúdo da Sidrá?
Há também outro problema apresentado pelo comentário de Rashi sobre as
palavras "a mulher quando conceber". Citando o Midrash, ele assim diz: "Rav
Simlai disse: 'Assim como, quando o mundo foi criado, a formação do homem
se deu de- pois da formação dos gados, das feras e das aves, também,
igualmente, se deu quando se estabeleceu lei para ele depois da lei relativa
aos gados, feras e aves (contido na Sidrá anterior)". Assim, o novo tema que a
nossa Sidrá trata, em contraste nos capítulos anteriores, é a lei referente aos
humanos, em oposição às leis relativas aos animais. Portanto, a palavra "Ishá"
("mulher") não é apenas a primeira palavra da Sidrá: ela também parece
bastante apropriada ao seu assunto e tema a legislação rela- tiva aos
humanos. Como é que "Tazria" incorpora de forma mais completa esta ideia de
"a lei do homem"?
2. O LUGAR DO HOMEM NA CRIAÇÃO
Rav Simlai, em seu comentário acima mencionado, usa a frase "assim como",
em vez de "porque". Em outras palavras, a lei do homem vem depois da dos
animais, não "porque" foi criado por último, mas pela mesma razão que foi
criado por último.
Mas que razão é esta? Diversas respostas são dadas no Midrash e no Talmud
Uma delas é para o caso de a mente do homem se tornar demasiado
orgulhosa, ele possa ser lembrado que até mesmo os insetos o precederam na
ordem da Criação. Alternativa- mente, para que os hereges não consigam dizer
que o Santíssimo, Bendito Seja, teve um parceiro (qual seja: Adam) na Criação.
O homem foi criado por último para que pudesse entrar imediatamente na
realização de um preceito, de um mandamento. Ele foi criado na sexta-feira
para que pudesse imediatamente santificar o Shabat. Por fim, isto aconteceu
para que ele pudesse "entrar no banquete" de imediato; ou seja, a natureza
inteira estava pronta para o seu uso. Porém, os comentaristas notaram que
todas estas razões, porquanto se aplicam ao homem sendo o último na
Criação, não explicam por que ele é o último na legislação. Qual é o significado
da analogia do "assim como" conforme formulada pelo Rav Simlai?
O Alter Rebe, em seu livro Tanya, explicou que, em um sentido, o homem é
mais inferior do que todas as demais criaturas, mesmo do que os animais que
são impuros; inferior até os insetos. Pois não apenas ele peca e transgride,
enquanto que aqueles não fazem o mesmo. Mas ele pode pecar e transgredir,
enquanto que aqueles, não podem. Na potencialidade, bem como na realidade,
a pecado é algo real para o homem, mas não é para o animal.

3. A ORDEM DO ESTUDO
A ordem normal a ser adotada no estudo da Torá é a de progredir, indo do
simples ao com- plexo, do leve ao pesado. Isto se aplica aquilo que está sendo
estudado: uma criança com cinco anos de idade começa com o Chumash,
depois, aos dez anos, ela vai à Mishna, e assim por diante. Isto também se
aplica à profundidade do aprendizado: primeiro vem a familiarização com os
texto e, so mente depois, vem as perguntas, a dialética, o es- tudo aprofundado
e também se aplica à maneira de aprender. Não se alcança de uma vez o nivel
mais elevado de estudo da Torá por causa só dela, tal como David que "elevou
a Origem da Torá nas Alturas, e a uniu à Essência de D'us". Ao invés, "quando
a pessoa o faz (estuda), ela o faz, primordialmente, tendo a si mesma em
mente.
Por outro lado, quando a Torá foi outorgada, a ordem era inversa. A sua
involução da espiritualidade de D'us à situação física do homem era, digamos
assim, uma descida do alto para o baixo. Na passagem, em Provérbios, que
descreve a sabedoria da Tora, primeiramente diz: "Então eu estava ao seu lado
como tendo com Ele estudado, e era cada dia as suas delicias." E só
subsequentemente eram "as minhas delicias com os filhos dos homens A Torá
chegou cả em baixo, vinda das alturas de D'us para se tomar posse do homem.
E nós, em nosso estudo, retraçamos o seu caminho, ascendendo de nossa
situação física à proximidade espiritual com D'us Esta ordem de estudo é
espelhada na estrutura da própria Torá. Eis porque as leis relativas aos animais
são colocadas primeiro. Santificar o mundo animal, distinguindo o impuro do
puro, é algo relativamente simples. O problema do pecado não surge no caso
deles. Mas para o homem se santificar a si próprio, dado à sua capacidade de
fazer errado, é bem mais difícil. Por isso as leis relativas à conduta humana
vieram por último. Não por causa da superioridade inata do homem em relação
aos animais, mas sim por causa de suas deficiências. Esta também é a opinião
de Rav Simlai quanto ao porquê a homem foi criado por último: "para que se
ele se tornar demasiado orgulhoso, ele possa ser lembrado de que os insetos o
precederam na ordem da Criação".
4. RAV SIMLAIO HOMEM E AS SUAS OPINIÕES
Podemos agora ver a conexão entre o comenta- rio de Rav Simlai, de que
assim como o homem foi criado por último, também a sua legislação veio por
último na Torá, e o caráter do próprio Rav Simlai.
Uma virtude pode ser possuída de duas maneiras. Ela pode ser obtida pelo
esforço, ou ela pode ser inata ou fortuita. Cada uma tem as suas vantagens.
Uma virtude inata, ou gratuita (sem que para obtê-la tivesse que trabalhar), não
tem limites naturais. É como a diferença entre talento e experiência ou perícia.
Um talento inato pode ser ilimitado; a perícia (ou experiência) dolorosamente
adquirida, jamais poderá se igualar a ela. Mas em sua intimidade, a virtude
alcançada pelo esforço ultrapassa a virtude que é inata. A pessoa está sempre
mais proximamente envolvida com o que ela tenha obtido, do que com aquilo
que ela tenha recebido.
Esta distinção fundamenta as duas explicações contrastantes do lugar do
homem como a última das obras da Criação: a primeira de que ele é o mais
elevado, e a segunda de que ele é o mais inferior entre as criaturas. Nas
capacidades inatas, ele é o mais elevado. Desde o nascimento, antes de ter
começado servir a D'us, ele e, não obstante, possuidor de uma alma que é,
literalmente, uma parte de D'us. Isto ele retém, junto com uma subjacente fé,
ainda que ele se afaste da vontade Divina. Mas naquelas virtudes que ele
adquire através do esforço do serviço, no início ele não é melhor do que o
restante da Criação. Na verdade, o que é o mais prontamente aparente e a sua
natureza física, a sua ausência de restrições, a sua capacidade de pecar e de
transgredir. Os poderes da alma ainda estão ocultados. Eles devem ser
trazidos à tona pelo esforço do serviço a D'us. Daí a segunda opinião, de que o
homem foi criado por último para ser lembrado de que até mesmo o inseto é,
neste aspecto, anterior a ele.
A conexão entre este parecer e o seu autor, é a seguinte: Rav Simlai não teve
uma ascendência ilustre. A história está relatada no Talmud, que ele foi ao Rabi
Yochanan e pediu-lhe que lhe ensinasse o Livro das Genealogias. Porém, Rabi
Yochanan se recusou, pois (segundo Rashi), a sua linhagem era indistinta.
Assim sendo, Rav Simlai, sem poder reivindicar virtude herdada, apreciou o
valor e a importância do esforço e da virtude adquirida. Isto explica a leitura
que ele fez sobre a ordem da Criação. Quando o homem é criado, ele não tem
distinções adquiridas, exceto a disposição para pecar e transgredir. Ele foi feito
por último porque, naquele estágio, ele é o mais inferior dos seres.
Isto também explica por que a lei humana deve se chamar "Tazria" ("dar à luz").
Pois o processo que vai da concepção ao nascimento é um símbolo de esforço,
de trazer à fruição, em outras palavras, de "trabalho" em ambos os seus
sentidos. Há mais um simbolismo adicional na frase "A mulher quando
conceber e der à luz". Os elementos macho e fêmea na procriação
representam, respectivamente, ο "despertar espiritual das alturas" (ie., a
iniciativa Divina) e "de baixo" (a iniciativa humana). E serviço, esforço, luta, são
as formas que a iniciativa humana toma.

5. AS DUAS FACES DO HOMEM


Há um princípio expressado na prece de Lechá Dodí de que "último em ação,
primeiro em pensa- mento". Assim, o homem, que foi criado por último, foi a
intenção original por detrás de toda a Criação.
Ambas as opiniões concordam com isto; que o homem é o ápice da vida
criada. Mas um lado do argumento enxerga a sua estatura em termos de sua
essência inata: a sua alma Divina. O outro ve isto em termos de sua potencial
realização por meio do esforço de servir a D'us, enquanto vê o homem, em si,
como o mais inferior entre os seres. Este parecer, que é o de Rav Simlai, vê as
duas faces do homem ("Adam" em Hebraico). Por um lado, ele é formado da
poeira da terra ("Adamá"); por outro lado, ele é capaz de se tornar Divino
("Adamě laklion" - "eu me assemelharei a D'us". Esta é a sua capacidade
essencial de se transformar completamente, de um ser natural para um ser
espiritual.

6. SERVIÇO E CRIATIVIDADE
Portanto, o nome "Tazria" simboliza "Avoda", o serviço do homem a D'us. Ele
também denota a importância deste serviço. Pois quando uma mulher concebe
uma criança e ela cresce em seu ventre, um ser inteiramente novo é trazido à
vida. O nascimento de uma criança meramente revela esta criação, que foi
forjado no momento da concepção. E quando o homem entra na vida de
serviço, ele também cria um novo ser. o homem natural se torna o homem
espiritual "Adama" (a poeira "da terra") se torna "Adamë laElion" (uma
semelhança de D'us). E a sua alma Divina, que era inata, também se torna
intima, pois ela mudou: deixou de ser uma dádiva para ser algo auferido.

Fonte: Likutai Sichot, Vol. 7, p. 74-759)

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