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C u l t u r a

Foto: divulgação
mais variados suportes pro-
R esenha voca efeitos diferentes em
relação à leitura impressa.
O cérebro no Ou seja, em que medida a
leitura digital comprome-
mundo digital te os aspectos cognitivos da
humanidade? Será, a autora
nos indaga, que a frequência
A obra O cérebro no mundo digital: os diária de leitura das mídias
desafios da leitura na nossa era (Editora digitais não estaria impedin-
Contexto, 2019) é uma contribuição do os processos cognitivos
extremamente significativa para pes- mais demorados como “o
quisadores, professores e, na verdade, pensamento crítico, a refle-
para todos os públicos, que tenham xão pessoal, a imaginação e
um interesse mínimo sobre questões a empatia da leitura profun-
que envolvam a leitura e seus proces- da?” (p.17).
sos decorrentes. Incluindo-se o uni- Contudo, a autora adverte,
verso digital. O livro se divide em nove felizmente, que não é contra
cartas dirigidas aos leitores, e cada car- a leitura realizada por meio
ta mostra um ponto a ser destacado e de tablets e outros suportes
pensado a respeito do que Maryanne digitais. Pelo contrário, tem
Wolf busca evidenciar. incentivado tal tipo de lei-
A autora não segue aquele padrão, quase tura. No entanto, busca um
piegas, de usar um vocabulário suposta- caminho viável para que os
mente mais didático. O texto do livro é em uma sensibilidade raríssima. O ta- leitores consigam ler em qualquer mí-
forte e firme sem subtrair sua fluidez e lento equilibrado com o compromisso dia, mas que alcancem a profundidade
sedução. Em suas palavras: “Estas cartas de atingir os objetivos propostos na exigida pela leitura do impresso.
são um convite que faço para considerar obra. Uma pesquisadora que defende Cabe observar que as cartas, endereça-
um conjunto improvável de fatos refe- questões de leitura e alfabetização em das a nós leitores, são atravessadas por
rentes à leitura e ao cérebro leitor, cujas diversos países do mundo, atualmente poemas e citações de grandes nomes
implicações vão levar a mudanças cog- é diretora do Center for Dyslexia, Di- da literatura universal que dão ao li-
nitivas importantes em você, na próxi- verse Learners, and Social Justice na vro um tom bastante especial. Aquele
ma geração e possivelmente na nossa UCLA (Universidade da Califórnia) e tom ensaístico em que o autor pode,
espécie” (p.09). professora da Tufts University. realmente, esbanjar criatividade e in-
Maryanne Wolf é uma neurocientista Um ponto de destaque da primeira car- ventividade sem qualquer prejuízo
que possui pesquisas importantes que ta é um alerta fundamentado a respeito do ponto de vista conceitual. Nessa
detectam os mecanismos de nosso cé- do processo de leitura. “Cada mídia de medida, o livro não somente oferece
rebro no ato da leitura em seus mais leitura favorece certos processos cogni- conceitos importantes, mas uma rica
diversos suportes. A sua formação hu- tivos em detrimento de outros” (p.16). bibliografia, em termos de literatura,
manística, assim como seu percurso Eis uma questão instigante. Em ou- para que possamos usufruir. Lem-
enquanto pesquisadora, se traduzem tras palavras: a leitura digital em seus brando, na esteira de Deleuze, de que

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a literatura, assim como a filosofia e imaginar. Existem “camadas cogniti- denunciam o quanto somos distraídos
as ciências, também cria conceitos. A vas sob a superfície das palavras que pelas mais variadas fontes de mídia.
literatura não nasceu para ser citada, nos convidam a descobrir pensamen- Com isso a qualidade de nossa aten-
apenas, como mera epígrafe de en- tos que não podem ser vislumbrados ção teve um sério prejuízo. “Enquanto
saios ou registros mais “acadêmicos”. em nenhum outro lugar” (p.53). E sociedade, somos continuamente dis-
A literatura produz conceitos impor- justamente neste ponto a pesquisado- traídos por nosso ambiente, o que nos-
tantes. Vamos lembrar, inclusive, que ra norte-americana entra no cerne da sos circuitos de hominídeos favorece
Freud, somente para ficarmos com um questão da obra: em que medida a lei- e incentiva. Não vemos ou ouvimos
exemplo, se valeu, veementemente, da tura por meio de tablets e outros meios com a mesma qualidade de atenção,
literatura para construir seus conceitos digitais não estaria subtraindo, em porque vemos e ouvimos demais, nos
mais profundos a respeito da psicolo- diversos graus, a atenção, qualitativa, acostumamos e pedimos mais” (p.89).
gia e da psicanálise. que a leitura impressa exige? Estaria aí o grande perigo!
Um aspecto de suma importância que Na terceira carta existe um outro pon- A quinta carta nos coloca, entre outros
se pode destacar da segunda carta e que to essencial apontado por Maryanne pontos, em que medida “os circuitos
a deixa perplexa não são “as múltiplas Wolf: somente a leitura profunda, de leitura ainda não formados no jo-
funções sofisticadas do cérebro, mas a como convoca a impressa, sem os des- vem, defrontam-nos com desafios sin-
sua capacidade de ir além de suas fun- vios que, muitas vezes a leitura digital gulares e com um conjunto complexo
ções originais (que recebemos como provoca, possibilita colocar-se no lu- de questões: em primeiro lugar, os
parte de nosso equipamento bioló- gar do outro. Sentir-se mais próximo primeiros componentes cognitivos no
gico) – como a visão e a linguagem das situações existenciais propostas em circuito de leitura que se desenvolve-
– para desenvolver capacidades total- romances e outros registros textuais. rem serão alterados pela mídia digital,
mente desconhecidas, como as de ler e Transportar os leitores para fora de si antes, durante e depois que as crian-
de lidar com números” (p.26). Isto é, mesmos. E que ao retornarem se sintam ças aprenderem a ler? Em particular,
prossegue a autora, o cérebro humano renovados, acrescidos de novas formas o que acontecerá com o desenvolvi-
possui uma plasticidade incrível que, de se ler o mundo que os rodeia. Tal di- mento de sua atenção, memória e co-
desta forma, realoca suas funções mais mensão indicada pela autora é o ponto nhecimento de fundo – processos que
antigas e adquire novas funções que se chave para a compreensão de um mun- sabemos serem afetados nos adultos
desdobram. Ou seja: o cérebro tem a do que vai além do nosso. pelas multitarefas, pela rapidez e pela
capacidade, constante, de aprender A autora chama também a atenção distração? Em segundo lugar, supon-
coisas novas a todo momento. A au- para os aspectos mais ligados aos cog- do que sejam afetados, as mudanças
tora destaca que ler é um processo que nitivos. Elucida a importância dos irão alterar a configuração dos circui-
deve ser aprendido. A capacidade de processos de análise conduzidos pela tos de leitura experiente resultantes e/
ler não é inata no homem. leitura profunda. Para que o ser hu- ou a motivação para formar e susten-
Na terceira carta o que merece a nossa mano chegue a hipóteses e conceitos tar capacidades de leitura profunda?”
atenção – redobrada – é a ênfase que ele usa “processos cognitivos mais so- (p.127-128). Neste momento do livro
a autora dá aos aspectos cognitivos fisticados que mobilizamos durante a a autora toca num ponto bastante frá-
operados pelo cérebro humano que leitura profunda” (p.72). gil para que possamos pensar numa
conduzem ao pensamento profundo Na quarta carta a autora nos alerta so- estratégia de manutenção de um
quando estamos lendo. Ou seja, a lei- bre as leituras digitais em todos os ní- equilíbrio entre as diferentes mídias,
tura é um ato muito mais importante veis e graus. Nessa medida, nos coloca cujos efeitos são negativos, sobre a
para o pensamento do que se possa a par de estudos bastante recentes que leitura, todavia, sem perder as contri-

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buições de ambas. Um dos maiores deveriam investir muito mais na área mos que a leitura impressa é de suma
desafios propostos pela leitura da obra educacional. Enfatiza, inclusive, a for- importância para o pensamento crítico
em referência. mação dos professores. E, em especial, e também para a educação de nossas
Na sexta carta são colocados alguns re- investimentos focados nos primeiros sensibilidades.
sultados de pesquisas, efetivas e de di- anos escolares dos estudantes norte-
versos continentes do mundo, em que -americanos. Ana Maria Haddad Baptista
se constatam que a leitura de livros para A oitava carta conduz à necessidade do
as crianças é útil para a formação do fu- futuro circuito de leitura ter como base
Obra: O cérebro no mundo
turo leitor, embora nada possa garantir a compreensão dos limites e das diver-
digital: os desafios da leitura
nada. Na verdade, declara a autora, es- sas possibilidades que o letramento e as
na nossa era
tamos num momento de transição, ou bases do digital deverão proporcionar.
Autora: Maryanne Wolf
seja, do impresso para o digital. E não Coloca-nos, também, a necessidade, já
Tradução: Rodolfo Ilari e Mayumi
podemos desconsiderar a coexistência observada há décadas, diga-se de passa-
Ilari
dos dois registros. Tudo deve ser visto gem, de uma educação que integre, de
Editora: Contexto
com muito cuidado, apreensão e de for- forma efetiva, diversas áreas do conhe-
Ano de publicação: 2019
ma crítica. Maryanne Wolf não deixa de cimento. Nenhuma disciplina, afirma
Páginas: 256
considerar que os diferentes contextos, a autora, conseguirá, isoladamente,
no caso das crianças e jovens, devem ser proporcionar a abrangência de um uni-
analisados severamente. verso cheio de desafios. Em seguida a
A sétima carta traz uma pesquisa quase autora faz propostas mais efetivas que
alarmante em relação aos Estados Uni- contemplam um equilíbrio entre o re-
dos. A autora denuncia, de acordo com gistro digital e o impresso, além de pro-
indicadores nacionais e internacio- postas curriculares, nas quais ela acredi-
nais, o quanto as crianças americanas ta, que poderiam atenuar as deficiências
estão defasadas em seus desempenhos de escolarização.
no que se refere a questões de leitura Finalmente, na nona carta, a autora faz
(velocidade e compreensão de texto), uma belíssima reflexão, na esteira de
se comparadas com as crianças de ou- Heidegger, sobre o possível perigo de
tros países ocidentais e orientais. “Mais uma “ingenuidade tecnológica”. Em
perturbador ainda, cerca de metade de outras palavras: o perigo de deixarmos
nossas crianças afro-americanas ou la- de lado o pensamento meditativo vis-
tinas, no quarto ano, não alcança um to que os suportes digitais exigem uma
nível ‘básico’ de leitura, muito menos velocidade que deixa de lado o aspecto
proficiente. Isso significa que não de- qualitativo de nossas leituras. Na verda-
codificam suficientemente bem para de, conclui a autora, entre outras coisas,
entender o que estão lendo, o que vai a leitura profunda exige uma atenção
impactar quase tudo que deveriam que transita entre o meditativo e o con-
aprender em seguida, incluindo a ma- templativo. Precisamos ficar sempre
temática e outros assuntos” (p.177). atentos a posturas equilibradas. Não
Sugere, com veemência, o quanto as deixar de lado os benefícios da leitura
políticas públicas norte-americanas digital. Mas, em especial, não ignorar-

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