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REVISTA
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ESTUDUS
JURÍDICOS
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EXISTÉNCIA E ESSÉNCIA DA NORMA JURÍDICA


Christiano Mendes Wolney Valente*

É interessante perceber como simples faros do


cotidiano despertam nas pessoas novas idéias. No meu caso, por
ocasião da publicação, da tradução em português, do livro "O ser e
o nada" de Jean Paul Sartre (marco do movimento existencialìsta),
fiui levado a refletir, através das minhas poucas leituras nesta área,
mais como admirador que como estudante, a respeito de uma
possivel relação entre as categorias adotadas em tal filosofia e o
nosso objeto de estudo nesta faeuldade: o Direito. É a este respeito
que surgem as consideraçöes que passo a tecer.
Como pode ser considerado o ordenarnento jurídico sob
a ótica existencialista? Propondo de outra maneira: pode a
existência de norma, de alguma forma, anteceder à sua essência?
Para responder a estas perguntas torna-se necessário,
antes de mais nada, fazer uma breve explanação acerca das
categorias "essência" e "existência" à luz da filosofia existencialista
para, posteriormente, tentar aplica-las à teoría normativa.
i
"A existência precede a essência". Corn esta frase o
filósofo francês Jean Paul Sartre (1905-1980) inaugurou o
movirnento intelectual mais importante do pós-guerra: o
existencialismo. Sua filosofia parte da negação do ”cog1'to ergo l
sum” cartesianista operando neste uma inversão radical: o homem
pensa porque existe. Para o existencialista, o ser faz a si próprio no
mundo sensível através das suas maneiras de apreensão e
exteriorização de comportamentos. Constitui uma radicalização do
empirisrno: o ser se identiflca com o nada na sua origem e somente
através de suas rnanifestaçöes sensíveis é que o ser se livra da
angustia de ser nada. Neste sentido, o existir surge como um fate
não teleológico desprovido de qualquer valoração metafísica ou
supra-terrena. Ao contrário do senso-comum, que não consegue
conceber a criatura sem 0 seu criador e a sua finalidade, o

“ Formou-se em Direito na Unesp em 1997.


Revista de Estudos Jurídicos UNESP, Franca, 4(8): 135-140, 1999 135
existencialismo declara a ìndependência do homem condenando-o desprende do mundo natural-causal e passa a integrar o mundo
a ser livre, a fazer escolhas, a constituir sua essêneia através de seus lógico-racional ou lógico-normativo.
atos. Desta maneira a essência surge como resultado do existir, Este mundo lógico-normativo somente interessa à
como o conjunto de atos e escolhas (manifestaçöes sensíveis) das tìlosofia existencialista na medida em que se pode considerar que
pessoas no mundo, como uma construção constante, uma obra a nele as normas ainda possuem conteúdo, conteúdo este
que todos somos obrigados a construir. determinado especificamente pelo seu caráter axiológico-
Para se aplicar a teoria existencialista ao problema das normativo.
norma jurídicas deve-se, antes de mais nada, verificar como estas Ocorre que as normas necessárias deixam este mundo
se originam e se exteriorizam no mundo sensivel, o que, a meu ver, abstrato do ordenamento jurídico e são aplicadas ao caso concreto
constitui o ponto modal da questão aqui proposta. 1 mediante a intervenção estatal. 0 Estado, neste processo de
As normas, enquanto positivadas, nascem i aplicação das normas, é representado pelo juiz que necessarìamente
necessariamente - excluindo-se as poucas exceçöes - de ato volitivo as interpreta para poder aplicá-las.3 Surge ai novo terreno onde o
oriundo do poder legislativo. Tal poder ou função, como muitos elemento volitivo teleológico humano pode penetrarf' Nesse
preferem, é geralmente concretizado por um parlamento que sentido, a aplicação da lei ao caso concreto consiste
representa, teoricamente, o povo de determinado Estado. necessariamente na determinação de sua essência, pois trata-se de
Naturalmente, devido à sua própria origem, as normas ato humano e poitanto volitivo, realizado segundo, além ou contra
são dotadas inevitavelmente de um caráter axiológico. Tal situação a lei.
decorre do fate de que ha uma vontade voltada para determinado Do que foi exposto constata-se que a manifestação
fim humano que possibilita a existencia normativa] Porém deve-se sensível da lei consiste em três momentos distintos: o momento de
observar que, uma vez promulgada, a lei se desprende sua discussão, elaboração e promulgação; o momento de inicio de
completamente dasrelaçöes causais que lhe deram origem e passa a
integrar um ordenamento jurídico organizado de maneira
eminentemente formal (sem, é claro, perder o seu conteúdo sentido é um sel”. (HANS, Kelsen. Teoria Pura do Direita. 3.ed., São Paulo:
axiológico). A lei - segundo os ensinamentos de Hans Kelsen2 - se Martins Fontes, 1991. p.5).
3 “Embcra genéricas e abstratas, as leis incidem sobre questöes particulares e
concretas. Para impor uma lei é necessário converter uma regra geralem norma
1 Para Miguel Reale a vontade está inserida no processo da normatização juridica individualizada, transformar os termos abstratos em preceitos concretos.
enquanto necessária para a ordenação dos finse dos meios, constituindo assim Portando a interpretação é um processo ou técnica de individualização e
um processo ao mesmo tempo axiológico e teleológico do qual surge a norma concretização de urna norma geral e abstiata. Não sendo mera dedução
de Direito, que se apresenta, formalmente, como esquema geral de opção pela silogistica, esse processo contém dimcnsöes criadoras” (Christiano Jose de
conduta reconhecida de valor positivo e, como tal, preservada; ou então de Andrade. O problema dos métodos de interpretação jurídica. São Paulo:
valor negativo e, como tal, vedada. (Filosofia do Direito, 17.ed., São Paulo: Revista dos Tlibtulais, 1992, 11.13).
saraiva. 199641551). 4 Segimdo Kelsenc “De certo que existe uma diferença entre estes dois casos, mas
2 Para Kelsen a norma jurídica, no momento em que entra em vigor, passa a ter o é uma difenença somente quantitativa, não qualítativa, e consiste apenas em
sen fimdamento de validade na norma fundamental hipotética e não na que a vinculação do legislador sob o aspecto material é uma vinculação muito
discussão política que lhe deu origem: “...é importante salientar que a norma, mais reduzida do que a vinculação do jniz, em que aquele é, relativamente,
como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de cutrem, muito mais livre na criação do direito do que este. Mas também este último é
é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui. Na um criador de direito e também ele é, nesta função, relativamente livre”. (op.
verdade, a norma é um dever ser e o ato de vontade de que ela constitui o cit., p.268).
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sua entrada no ordenamento jurídico abstrato (vigência); e o mesma no ordenamento jurídicos. Neste sentido, a própria
momento de sua aplicação, via interpretação, ao caso concreto.
existencia da norma pressupöe um mínimo de sua essência
No primeiro momento, a norma ainda não existe, ela caracterizada, justamente, pela inserção no ordenamento jurídico de
está sendo elaborada teleologicamente e portanto essenciaimente. sua carga valorativa e de sua posição dentro de uma hierarquia.
Pode-se dizer que a essência da norma, no primeiro momento, está
A essência da norma é a sua eficacia, ou seja, "é o fato
sendo elaborada antes mesmo de sua própria existência, que se
real de ela ser efetivamente aplicada e observada ..." (Kelsenf. A
caracteriza apenas com a sua inserção no mundo lógico-jurídico.
existência da* norma encontra o seu correlato na vigência.
No segundo momento, a norma existe de maneira estática, porém
Nas teorias que admitern a interpretação contralegem, o
não se equipara ao nada (ao qual a existência humana se compara)
terceiro momento adquire ainda maior relevância na determinação
na medida em que vem carregada de um conteúdo axiológico que
da essência da norma.
lhe é imanente e que produz efeitos no mundo do ser, através do
Voltando às perguntas que deram origem a este ensaio:
receio que as pessoas têm do poder coercitivo do Estado. Este
pode a existência da norma, de algum modo, preceder à sua
conteúdo axiológico é o conteúdo que foi elaborado no primeiro essência?
momento. No terceiro momento, a norma. é aplicada ao caso
A resposta é negativa. A norma em sua origem é fruto
concreto. Tal aplicação exige o elemento volitivo e a ação, fator
de um ato humano, portanto volitivo e teleológicog Desta maneira,
mais importante para se determinar a essência dentro da teoria
a essência normativa já vem indicada (não determinada) dentro do
existencialista. Este elemento volitivo pode se dar no sentido de
seu próprio conteúdo axiológico. Apenas se ignoramos este
reafirmar o conteúdo axiologico normativo, expandi-lo ou até l
conteúdo e consideramos a norma somente sob urn ângulo lógico-
contraria-lo (segundo algumas teorias)5 _ Desta maneira, a essência racional é que poderíamos dar uma resposta afirmativa à questão,
da norma jurídica é formada em duas etapas distintas: inicialmente,
porém tal consideração implica necessariamente na morte da lei.,
quando da sua elabpração e, posteriormente, quando da sua
pois esta é eminentemente um juízo de valor e, como tal, humano.
aplicação ao caso concreto.
A única maneira de se aproximar a teoria das normas a uma
A existência normativa é representada pelo segundo
filosofia existencialista, sem desnaturar o caráter da norma
momento, é uma existência intermedia que se dá entre uma
enquanto ato volitivo, seria através da admissão da interpretação
indicação inicial da essência (elaboração da lei) e uma
contralegem. Tal ìnterpretação significa urna forte concentração da
determinação final da essência. E necessário aqui deixar bem claro
essência no terceiro momento: 0 momento da aplicação e
que, segundo Kelsen, toda norma vigente é dotada de um mínimo
interpretação das normas. A conseqüência principal disto é que o
de eficacia que se origina justamente do fato da prépiia inserção da
primeiro momento decresceria em impoitância em relação ao

5 Para Hermann Kantorowicy - um dos fundadores da Escola do Direito Livre na


Alemanha - o juiz ao interpretar e aplicar a lei deve buscar o ideal jurídico, 0 6 HANS, Kaiser. ep. cn., p. 1 1-12.
7 Idem.
direito justo, dentro ou fora da lei, praeter ou contra legem. Pam ele, o direito
livre não é o direito estatal, expresso nas leis, mas o formado pelas convicçôes 8 Dizer que o homem é um ser racional é o mesmo que dizer que é um ser que se
predominantes sobre aquilo que é justo. Portanto, o juiz deve auscultar o dirige. A atuação, portanto, implica sempre uma valoração. Todo valor, por
sentimento da comunidade, não podendo decidir exclusivamente com base na conseguinte, é uma abertura para o dever ser. Qutuido se fala em valor, fala-se
lei. (Christiano José de Andrade, op. cit., p. 48). sempre em solicitação de comportamento ou em direção para o atuar (Miguel
Reale, ob. cit., p.379).
I-
138 Revista de Estudos Jurídicos UNESP, Franca, 4(8): 135-140, 1999
Revista de Estudos Jurídicos UNESP, Franca, 4(8)¦ 13 5-140, 1999 139

n
terceiro, que praticamente monopolizaria a fabrìcação da essência
normativa, porém a essência inicial mínima jamais iria sucumbir.
Lrnnrwnon E A(:Ão NA TEORIA POLÍTICA DE
Isto posto, pode-se concluir que a existëncia da lei já
HANNAH ARENDT
vem dotada de um elemento essencial que é justamente o seu
caráter axiológico, formado no momento da deliberação legislativa Eduardo Carlos Bianca Bittar*
e herdado das circunstancias do mundo da vida no qual os Samuel Rodrigues Barbosa*
legisladores se inserem. Tal elemento pode ser parcialmente
SU1l/LÁRIO: 1. A proposta de Hannah /lrendr. 2. A
modificado ou, mais precisamente, orientado na medida em que são ¿iberdade do exterior e a liberdade do interior. 3. Por uma
adotadosdiferentes criterios para a interpretação e aplicação da lei antología da liberdade. Bibliografia
que, como atos humanos que são, somam à existência da norma,
outra carga valorativa, determinando uma nova interpretação do 1. A proposta de Hannah Arendt
mundo da vida, através ,da vontade humana, no modo da eficacia A liberdade é um fenômeno perceptivel na vida
normativa (essência). ' comum: nos diretivos de conduta, na fabricação, na obediência e
A essência final da norma é formada então pela relacão recusa à ordem. A legìslação e a arte política com suas justificaçöes
dialética resultante destes dois momentos distintos da intervenção parecem depender da existêncía da liberdade.'
do mundo da vida - através da vontade humana - nc processo j,
Mas, essa base comum, de ceita intuição e evidência,
legislativo; compreendendo este como o caminho percorrido pela l
i
A,
apreensível pela experiència do comum dos homens, em nada
lei do seu nascedouro nas casas legislativas até a sua aplicação ao 1 assegura uma delimitação mais precisa da noção da liberdade,
fato concreto pelo judiciário. ›
sempre de dificil delimitação. Assim, a tematização fimdamentada
e justificada de sua existencia esbarra em varias dificuldades, a
Referências bibliográficas despeito de sua aparente evidencia.
i
ANDRADE, Christiano Jose de. O problema dos métodos da 1
I
A fortuna da discussöes históricas em torno do
interpretação juridica. São Paulo: Revista dos Tribunais, problema robustecem ainda mais as dúvidas, o que aguça certo
1992. ceticismo para sua demonstração. Talvez, desde já, deva-se admitir í
1
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 3.ed. São Paulo: Martins |
seja a liberdade mais um termo metafisico, destes que 'não
Fontes, 1991. resistiriam a uma terapia mais acurada da linguagem - devendo a
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. l7.ed. São Paulo: Saraiva, análise ser abandonada sem arrependimento. Mas, uma suspenção 4
1996. de juízo sobre esse termo mysthicus significaría rejeitar
SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada. São Paulo: Vozes, 1997. apressadamente um terreno que assegura a própria tematização do
direito e, em termos mais arnplos, de qualquer ação social. Dai a
1
necessidade de encaminhamento da discussão para um campo I
sólido. Ha, pois, fartas razöes para tentar redefinir a noção da
liberdade.
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l
” Doutorandos da Faculdade de Direito da USP - Universidade de São Paulo.
1 Cfr. Entre o passado e o futuro, 1972, p.189.
140 Revista de Estudos Jurídicos UNESP, Franca, 11(8): 135-140, 1999
Revista de Estudos Jurídicos UNESP, Franca, 4(8): 141-148, 1999 141

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