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Universidade do Minho

Escola de Direito

A exposição da imagem da criança nas redes sociais – o problema do


“Sharenting”
Poderão os pais, enquanto titulares do exercício das responsabilidades
parentais, expor a imagem de seus filhos nas redes sociais? É aqui tido em
consideração o superior interesse da criança?

Trabalho realizado no âmbito da Unidade Curricular “A Criança e a Família”


Mestrado em Direito das Crianças, Família e Sucessões
Catarina da Silva Arteiro Serra (PG52406)

Novembro de 2023
ÍNDICE
1 Introdução............................................................................................................................2
2 As responsabilidades parentais.............................................................................................3
3 Direitos de personalidade da criança....................................................................................5
3.1 Breve introdução aos direitos da criança......................................................................5
3.2 Direito à imagem..........................................................................................................6
4 Exposição do menor na internet: principais perigos.............................................................8
5 O problema do “Sharenting”................................................................................................9
5.1 Primeiros Reflexos na Jurisprudência.........................................................................12
6 Conclusão...........................................................................................................................13
7 Bibliografia........................................................................................................................14

1
1 INTRODUÇÃO
As crianças são sujeitos de direitos tal como o são os adultos, no entanto, durante a
menoridade estas são representados pelos seus progenitores, por forma a suprir a sua
incapacidade. No entanto, os pais têm sempre de se reger, obrigatoriamente, pelo
superior interesse da criança, zelando pelo seu bem-estar.

Acontece que, atualmente, com o desenvolvimento das Novas Tecnologias e,


consequentemente, com o surgimento das Redes Sociais, os pais têm vindo a expor
publicamente a imagem dos seus filhos. Desta forma, é urgente e necessário falarmos
das consequências que daí advêm para estes menores. Importa mencionar que, apesar de
não raras vezes os progenitores não terem noção das consequências que um simples
post nas redes traz para a imagem do seu filho, a realidade é que o mundo digital é
imensamente vasto e complexo, sendo efetivamente impossível eliminar as
consequências que advêm desta exposição. Assim, é necessário apreciar o impacto desta
precoce criação de uma pegada digital.

Posto isto, propomo-nos à análise do regime das responsabilidades parentais,


previsto no art. 1877º e seguintes do Código Civil 1, e do regime dos direitos de
personalidade da criança, nomeadamente no direito à imagem, previsto no art. 79º e no
art.26º da Constituição da República Portuguesa. Analisado estes regimes vamos
aprofundar o modo como a exposição e a divulgação da imagem da criança nas redes
sociais pelos próprios progenitores pode ter influência no futuro destas e quais os
perigos daí provenientes. Neste seguimento, iremos aprofundar o problema do
“Sharenting”, no sentido de perceber de que forma é que os pais, detentores do exercício
das responsabilidades parentais, guardiões dos filhos, podem expor as suas próprias
“crias” nas redes sociais. No âmbito do Direito da Família, um dos princípios
fundamentais é o Princípio do Superior Interesse da criança e, por isso mesmo,
propomo-nos a aferir se este princípio basilar está ou não a ser tido em conta pelos
progenitores quando divulgam a imagem dos seus filhos nas redes sociais. Por fim,
terminaremos com a referência e com uma sucinta análise de um Acórdão do Tribunal
da Relação de Évora, acórdão pioneiro, relativo a esta temática do “Sharenting”.

1
As normas legais mencionadas, sem outra identificação, reportam-se ao Código Civil Português.

2
2 AS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
As responsabilidades parentais 2não se circunscrevem a meio de suprimento da
incapacidade dos menores, uma vez que não se limitam ao poder de representação e ao
poder-dever de administração dos bens3. Vão muito para além disto.
Elas consistem no “conjunto de situações jurídicas que, normalmente, emergem
do vínculo de filiação, e incumbem aos pais com vista à proteção e promoção do
desenvolvimento integral do filho menor não emancipado (Art.1877º e 1878º)” 4, ou
seja, tratam-se de uma figura jurídica que tem como principal objetivo o superior
interesse da criança.
Desta forma, o conteúdo das responsabilidades parentais é todo ordenado em
volta dos interesses da criança. Esta, enquanto detentora de direitos, está sob a
responsabilidade e cuidado dos pais, que têm a obrigação de agir sempre no interesse
dos filhos. E são os pais, que em princípio, exercem estas responsabilidades parentais de
forma exímia, de forma a proteger os filhos menores. 5 No entanto, a criança não deve
ser colocada de lado relativamente às decisões importantes da sua vida, devendo esta
intervir mediante o seu nível de maturidade, uma vez que esta é a principal interveniente
e protagonista das responsabilidades parentais. Ademais, o direito à audição da criança
está legalmente previsto, nomeadamente, na Convenção Europeia sobre os Direitos da
Criança.
De notar que as responsabilidades parentais são um poder-dever dos pais em
relação aos filhos e devem ser exercidas atendendo ao princípio do superior interesse da
criança. Assim, os pais não têm liberdade para atuar, não vigorando nesta matéria o
princípio da autonomia privada, pois as responsabilidades parentais estão previstas na
lei, tendo os progenitores de atuar em conformação com o tipificado legalmente, sob

2
Outrora designadas por “poder paternal”. A Lei nº61/2008, de 31 de outubro, veio instituir que:
“2. A expressão “poder paternal” deve ser substituída por “responsabilidades parentais” em todas as
disposições da secção II do capítulo II do título III do livro IV do Código Civil”. Antes de 2008 a lei
falava em “poder paternal”, no entanto, esta denominação levava a cabo uma ideia de autoridade, no
sentido em que os pais detinham um poder totalitário sobre os filhos, havendo a necessidade de alterar
este conceito para “responsabilidades parentais”.
3
CRUZ, Rossana Martingo - A criança no (admirável?) mundo novo das redes sociais, in Direito
na Lusofonia. Direito e novas tecnologias, 5.a Congresso Internacional de Direito na Lusofonia, Braga:
Escola de Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação (Jusgov),
2018, P 452.
4
PINHEIRO, Jorge Duarte, O Direito de Família Contemporâneo. 4ª ed. Lisboa: AAFDL. P 279.
5
CRUZ, Rossana Martingo - A criança no (admirável?) mundo novo das redes sociais, in Direito
na Lusofonia. Direito e novas tecnologias, 5.a Congresso Internacional de Direito na Lusofonia, Braga:
Escola de Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação (Jusgov),
2018, P 452.

3
pena de serem-lhes aplicadas sanções, nomeadamente a inibição do exercício das
responsabilidades parentais, nos termos do art.1915º. Além do mais, estas
responsabilidades parentais são irrenunciáveis, nos termos do art. 1882º.
Conforme estabelece o art. 1887º as responsabilidades parentais são da
competência dos progenitores até que os filhos atinjam a maioridade ou a emancipação.
Desta forma, compete-lhes cuidar da saúde, segurança, sustento, educação e
representação dos filhos, sem nunca desconsiderar a sua opinião nos temas de especial
relevo para a sua vida, tendo em conta a sua maturidade6.
Quanto ao exercício das responsabilidades parentais o legislador fez uma
distinção: quando os progenitores vivem em plena comunhão de vida; ou quando estes
vivam vidas em separado. Assim, este exercício vai variar consoante estas posições.
Ademais, este regime vai incidir num conceito muito importante que não foi
concretizado pelo legislador sendo, por isso, um conceito indeterminado. Estamos aqui
a referirmo-nos ao conceito de “questões de particular importância”. A doutrina e a
jurisprudência têm seguido o entendimento de que este conceito indeterminado se
consubstancia em situações que impliquem uma mudança na vida do menor,
necessitando de uma maior consideração por parte dos progenitores, nomeadamente
quanto a questões sobre a saúde, representação e educação do menor. 7 Por seu turno, os
atos da vida corrente são aqueles que o menor pratica no seu quotidiano,
nomeadamente. 8
Desta forma, vamos começar por analisar o exercício das responsabilidades
parentais na constância do matrimónio (ou na convivência análoga a este: união de
facto9). Ora, nos termos do art.1901º/nº1 do Código Civil, em regra, “Na constância do
matrimónio, o exercício das responsabilidades parentais pertence a ambos os pais”, ou
seja, de comum acordo (art.1901º/nº2 do Código Civil). Sendo que se o mesmo inexistir

6
Em respeito pelo art.12º da Convenção sobre os Direitos da Criança.
7
Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-05-2017, Proc. nº
1123/10.3T2AMD-A.L1-6, disponível em www.dgsi.pt., concretiza que “Devem considerar-se questões
de particular importância, entre outras: as intervenções cirúrgicas das quais possam resultar riscos
acrescidos para a saúde do menor; a prática de atividades desportivas radicais; a saída do menor para o
estrangeiro sem ser em viagem de turismo; mudança de residência do menor para local distinto da do
progenitor a quem foi confiado”.
8
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-05-2017, Proc. nº 1123/10.3T2AMD-A.L1-6,
disponível em www.dgsi.pt.
9
Nesta matéria o legislador equiparou a união de facto e o casamento, sendo a pedra de toque a
vivência de ambos os progenitores, uma vez que o art.1911º/nº1 menciona que quando os pais vivam em
condições análogas às dos cônjuges aplica-se o disposto nos artigos 1901º a 1904º, ou seja, o regime
previsto para progenitores casados. De notar que aqui o legislador parece não exigir o requisito temporal
que decorre do art. 1º da Lei nº7/2001, de 11 de Maio.

4
nas questões de particular importância, qualquer um pode recorrer à via judicial, que
desde logo tentará levar os pais a uma conciliação. Caso esta não seja possível, o
Tribunal, antes de decidir, vai ter em conta a palavra do filho, em respeito pelo direito
de audição da criança (art.4º/nº1 (c) e 5º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível),
salvo quando não seja aconselhado.
Por outro lado, nas situações de rutura, nomeadamente, em caso de divórcio,
separação de facto ou invalidade do casamento, as responsabilidades parentais regem-se
por um exercício conjunto mitigado, tal como refere Jorge Duarte Pinheiro (art.1906º) 10.
Desta forma, quanto às questões de particular importância os progenitores devem
decidir de comum acordo, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer um
deles pode agir sozinho, sob pena de informar o outro logo que possível (art.1906º/nº1).
Por seu turno, quanto aos atos da vida corrente, estes são deixados a cabo daquele que
reside habitualmente com o menor ou com aquele que se encontrar temporariamente
com este.11 Assim, concluímos que qualquer um dos progenitores tem um papel
interventivo no quotidiano da criança.

3 DIREITOS DE PERSONALIDADE DA CRIANÇA

3.1 BREVE INTRODUÇÃO AOS DIREITOS DA CRIANÇA


Nos dias que correm as crianças são vistas como verdadeiros sujeitos de direitos,
dotadas de personalidade jurídica. Tal conclusão pode ser retirada de várias fontes de
direito internacional que regulam o Direito das Crianças, nomeadamente, a Convenção
dos Direitos da Criança de 1989, de onde se retira que a criança é titular de direitos, tal
como um adulto, podendo exercê-los de acordo com a sua crescente autonomia. 12
No entanto, esta autonomia plena do exercício de direitos e capacidade da criança
apenas ocorre com a maioridade (com os 18 anos de idade) (art.129º e 130º). Deste
modo, em princípio, até chegar esse momento, o menor padece de uma incapacidade,
isto é, é incapaz de exercer grande parte dos seus direitos. Como forma de suprir esta
incapacidade o legislador estabelece no art.124º que serão os pais, enquanto detentores
do exercício das responsabilidades parentais, que irão representar os filhos. Podemos

10
PINHEIRO, Jorge Duarte - O Direito de Família Contemporâneo. 4ª ed. Lisboa: AAFDL, P 338.
11
Este regime bipartido conforme previsto no art.1906º surge apenas com a Lei nº61/ 2008, de 31
de outubro.
12
MOREIRA, Sónia - A responsabilidade dos pais pela violação do direito à imagem dos filhos, in
Atas das Jornadas Internacionais “Igualdade e Responsabilidade nas Relações Familiares”, Braga: Escola
de Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação, 2020, PP 14-15.

5
assim concluir que cabe aos progenitores zelar pelos direitos de personalidade dos filhos
menores, podendo até autorizar a limitar estes direitos 13, respeitando imperativamente o
princípio do superior interesse da criança.
Os direitos de personalidade estão regulados no art. 70º e seguintes e são direitos
que emanam da própria pessoa tendo como principal objetivo a sua proteção. Ora, o
nosso Código Civil não nos dá uma definição do que são estes direitos, mas nas palavras
de Capelo de Sousa os direitos de personalidade são “direitos subjetivos privados,
absolutos, gerais, extrapatrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis e relativamente
indisponíveis, que visam proteger os bens e as manifestações interiores da pessoa
humana”14. Neste seguimento, o legislador divide os direitos de personalidade, sendo
que por um lado temos o direito geral de personalidade, previsto no art.70º, cabendo
nele todos os direitos de personalidade, e, por outro lado, temos os direitos de
personalidade especiais previstos no art.72º até ao art.80º.

3.2 DIREITO À IMAGEM


Em particular, o direito à imagem trata-se de um direito de personalidade especial
uma vez que tem tipificação no Código Civil, especificamente no art.79º e ainda tem um
lugar reservado na nossa Constituição da República Portuguesa enquanto direito
fundamental (art.26º), dada a sua tamanha importância.
Regra geral, nos termos do art.79º/nº1 “O retrato15 de uma pessoa não pode ser
exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela (…)”. Ora, este
consentimento apenas não será exigido quando “assim o justifiquem a sua notoriedade,
o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas,
didáticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de
lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido
publicamente” (nº2). No entanto, jamais o retrato poderá ser “reproduzido, exposto ou
lançado no comércio se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples
decoro da pessoa retratada” (nº3).

13
Exemplo: Os pais que autorizam a sujeição do menor a uma intervenção cirúrgica devidamente
necessária e urgente, colocando em causa a integridade física do menor.
14
SOUSA, R. Capelo de - O Direito Geral de Personalidade, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, P
195.
15
Abrange as diversas formas de identificação pessoal de uma pessoa, como a sua reprodução
“num desenho ou pintura, captada numa fotografia, editada num filme, representada em esculturas,
bonecos, animação, caricaturas, máscaras, representada em representações cénicas, na televisão,
cinema e difundida na internet”. ANTUNES, Ana Filipa Morais - Comentário aos artigos 70º a 81º do
Código Civil (Direitos de Personalidade), Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2012, PP 180-181.

6
No caso dos menores, este consentimento será prestado pelos seus representantes
legais (por norma, pelos progenitores), devido à incapacidade já mencionada supra16. 17
Analisado o regime jurídico deste direito especial de personalidade iremos incidir no
tema principal do presente texto. Ora, quando os progenitores dão autorização à
exposição da imagem dos seus filhos surge a questão de saber se esta disposição do
direito à imagem da criança é lícita. Assim, quando esta passividade em relação à
exposição do menor for contrária ao interesse deste, a autorização é inválida,
consubstanciando uma violação ao direito à imagem da criança. O mesmo raciocínio se
aplica quando são os próprios pais a expor os filhos, nomeadamente nas redes sociais.
Será que este ato (publicação de fotografias nas redes sociais) beneficia a criança e visa
o seu superior interesse? Em abstrato, não vemos aqui qualquer interesse relevante para
o menor em ter o seu retrato exposto nas redes sociais, podendo este ser partilhado
infinitas vezes, mesmo depois da publicação ser eliminada. 18 Lembremo-nos de que a
partir do momento em que uma imagem é partilhada na internet a mesma permanece na
rede infinitamente, uma vez que é impossível saber quem a guardou e o que fez com ela.
Assim, “além da questão dos perigos da internet, que é real e deve alertar os
progenitores, entendemos que estes não são proprietários da imagem dos filhos, nem da
sua privacidade, não lhes sendo lícito, sem mais, dispor destes direitos de
personalidade”. 19Desta forma, nestas situações são os próprios progenitores a violar o
direito à imagem dos filhos.
Neste sentido, seguimos também o entendimento da Professora Sónia Moreira,
sendo que se por um lado, são os progenitores os detentores das responsabilidades
parentais, a quem incumbe decidir o grau de exposição do filho menor, por outro, o
superior interesse da criança não poderá deixar de constituir um limite intransponível ao
exercício daquelas.20Quando esse limite é transposto quais são os meios de proteção que
esta criança tem ao seu dispor? É imperioso que o legislador e a jurisprudência olhem
para esta temática e definam soluções.
16
Neste caso não podemos dizer que será bem um consentimento, uma vez que este só pode ser
exercido pelo titular do direito, por isso, estamos aqui perante uma autorização dos pais na limitação do
direito à imagem dos filhos menores.
17
MOREIRA, Sónia - A responsabilidade dos pais pela violação do direito à imagem dos filhos, in
Atas das Jornadas Internacionais “Igualdade e Responsabilidade nas Relações Familiares”, Braga: Escola
de Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação, 2020, PP 16-17.
18
CRUZ, Rossana Martingo - A divulgação da imagem do filho menor nas redes sociais e o
superior interesse da criança, in IV Colóquio Luso Brasileiro Direito e Informação, Direito e Informação
na Sociedade em rede: Atas, Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto, PP 287-290.
19
CRUZ, Rossana Martingo - A divulgação da imagem do filho menor nas redes sociais e o
superior interesse da criança, in IV Colóquio Luso Brasileiro Direito e Informação, Direito e Informação
na Sociedade em rede: Atas, Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto, PP 287-290, P 289.
20
MOREIRA, Sónia - A responsabilidade dos pais pela violação do direito à imagem dos filhos, in
Atas das Jornadas Internacionais “Igualdade e Responsabilidade nas Relações Familiares”, Braga: Escola
de Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação, 2020, PP 12 e 13.

7
4 EXPOSIÇÃO DO MENOR NA INTERNET: PRINCIPAIS PERIGOS
A constante e permanente evolução tecnológica tem marcado o quotidiano das
pessoas. Vivemos no século XXI onde as Novas Tecnologias de Informação e
Comunicação (NTIC) desempenham um papel cada vez mais importante na vida das
famílias, envolvendo estas num mundo digital. Ora, as sociedades contemporâneas
foram profundamente impactadas com o aparecimento da internet.
Por conseguinte, houve lugar à popularização da utilização das redes sociais, tendo
estas influenciado significativamente o modo como os homens se relacionam entre si 21.
As redes sociais vieram para ficar e podem ser definidas como “ferramentas
informáticas onde, através da criação de um perfil, com informação pessoal
disponibilizada pelo próprio utilizador, e do estabelecimento de uma rede de contactos
com os outros utilizadores, é possível a interação social entre utilizadores e a partilha de
conteúdos”22
Tal como menciona Andreia Carvalho é inegável que a internet consiste numa porta
aberta a ameaças aos direitos dos menores, sendo o elenco destes perigos muito vasto,
incluindo nele a pedofilia, o sexting, o assédio sexual, o bullying e o cyberbullying, a
exposição das crianças a pornografia, violência e a práticas comerciais abusivas, bem
como a fóruns que incentivam o suicídio, a autoflagelação/automutilação, a anorexia e a
bulimia2324.
A par deste tema temos um outro, o da exposição de informações privadas sobre as
crianças nas redes sociais, geralmente relacionada com a divulgação e exposição de
imagem através de fotografias e/ou vídeos. Desta forma, a comparência dos menores
nestas plataformas online coloca-as numa posição ainda mais frágil e vulnerável. Por
conseguinte, a excessiva exposição pública da imagem e da vida privada, incluindo
detalhes íntimos, além de colocar as crianças num enorme risco perante crimes
cibernéticos, representa uma forma inovadora de violar os direitos de personalidade
21
Segundo estatísticas do Eurostat, datadas de 2020, em Portugal cerca de 62.74% da população
participa em redes sociais (criação de perfil de utilizador, publicação de mensagens, ou outras
contribuições para o Facebook, Twitter, etc.), estando acima da média da União Europeia (57.26%).
Disponível em Estatísticas | Eurostat (europa.eu).
22
CECÍLIO, Tiago; MOREIRA Teresa Coelho; SANTOS, Alexandre - A protecção dos menores
na sociedade de informação: desafios criados pelas redes sociais, in Scientia Ivridica, tomo LXV, Braga:
Revista Escola de Direito da Universidade do Minho, n.º 341, 2016, P 3.
23
Neste contexto é relevante a pesquisa EU Kids Online Portugal realizada entre março e junho de
2018 a crianças e jovens portugueses entre os 9 e os 17 anos. Cf. Cristina PONTE e Susana BATISTA,
EU Kids Online Portugal - Usos, competências, riscos e mediações da internet reportados por crianças e
jovens (9-17 anos), EU Kids Online e NOVA FCSH, 2019, PP. 7 a 9.
24
CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da Personalidade e
Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição, Coimbra: Gestlegal, 2021, PP 60-61.

8
destas crianças. Esta exposição pode ter impactos duradouros no futuro, visto que esta
tende a perdurar infinitamente, já que o que é postado na internet permanece lá por
tempo indeterminado.25
Como já temos vindo a mencionar, a ofensa dos direitos de personalidade das
crianças, nomeadamente o direito à imagem e reserva da vida privada, pelos próprios
progenitores, constituiu um grande desafio deste século, não tendo tido ainda um grande
relevo por parte da doutrina e da jurisprudência, pese embora comece a surgir o debate
jurídico e uma crescente preocupação com o presente tema em análise.

5 O PROBLEMA DO “SHARENTING”
As crianças de hoje em dia são a primeira geração nascida com a internet. Estas,
desde tenra idade, veem os seus pais a partilhar momentos e experiências, escrever
mensagens e até fazer vídeo chamadas com amigos e familiares, sem perceber muito
bem como isso é possível. Esta partilha, como já tivemos oportunidade de evidenciar
desde o início da presente exposição, engloba também a exposição dos próprios filhos
26
através da partilha de fotografia e/ou vídeos nos perfis das redes sociais. Não raras
vezes esta partilha e exposição dos filhos começa até muito antes do próprio nascimento
destes, através da partilha da ecografia ou até mesmo do próprio parto da criança 27. Ora,
esta partilha constante do quotidiano e do crescimento dos filhos tornou-se já num
hábito enraizado, adquirindo o nome de “Sharenting”.

A palavra Sharenting consiste na junção dos vocábulos ingleses “share” que em


português significa partilhar e “parenting” que em português significa parentalidade,
traduzindo a prática por via da qual certos progenitores partilham e expõem detalhes
íntimos e privados da vida dos seus filhos nas redes sociais. O aparecimento deste novo
fenómeno permitiu deslocar a atenção para o facto de esta exposição que os pais fazem

25
CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da Personalidade e
Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição, Coimbra: Gestlegal, 2021, PP 60-61.
26
CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da Personalidade e
Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição, Coimbra: Gestlegal, 2021, PP 62-63.
27
A título de curiosidade, uma influencer portuguesa chamada Sandra Silva partilhou diversas
fotografias na rede social Instagram que relatam todo o procedimento do parto do seu filho de uma forma
muito real e, até certo ponto, chocante para algumas pessoas mais sensíveis. Esta partilha foi realizada
através de várias publicações começando na publicação intitulada de “Relato de Parto I” datada de 3 de
abril de 2022 e terminando na publicação intitulada de “Relato de Parto X | (o encontro)” datada de 5 de
abril de 2022. Disponível em acesso aberto através do link: 𝐒𝐚𝐧𝐝𝐫𝐚 𝐒𝐢𝐥𝐯𝐚 (@sandrasilva.oficial) • fotos e
vídeos do Instagram.

9
dos próprios filhos nas redes sociais poder colidir com os próprios direitos das crianças,
nomeadamente o seu direito à imagem e reserva da vida privada28.

Segundo os autores Kumar e Schoenebeck (2015) 29, as publicações dos pais nas
redes sociais incidem maioritariamente sobre momentos felizes como alimentações,
brincadeiras, passeios, jogos, primeiros passos, primeiras palavras, ida para a escola,
etc. sendo que os momentos mais desagradáveis da vida “normal” já não são partilhados
(choros, birras, problemas de saúde, entre outros). Retira-se daqui que as publicações
apenas dizem respeito a situações escolhidas a dedo, por assim dizer, ou seja, dá a
entender que os pais querem passar uma imagem de “bons pais” e que têm uma vida
perfeita, invejável perante os expectadores. No entanto, acontece precisamente o
contrário, pois esta necessidade de afirmação e de partilha constante da vida dos filhos
conduz à violação de direitos por parte dos próprios progenitores, sendo que estes
deveriam zelar pelo bem-estar e superior interesse da criança30.

Acreditamos que a maioria destes pais não tem noção de que a exposição que
fazem dos filhos implica todos estes perigos já mencionados supra, fazendo-o de forma
bem-intencionada. Cremos que estes apenas querem partilhar momentos felizes com os
seus filhos, não ponderando as consequências que daí podem advir com os posts feitos
nas redes sociais.

No entanto, a verdade é que já existem estudos que revelam que estas crianças
adquirem a sua pegada digital muito antes do que seria suposto, aos 6 meses de idade e
outros mesmo antes do seu nascimento.31 Esta pegada digital surge com a publicação de
posts nas redes sociais com a imagem dos filhos menores, posts estes que podem, a
maioria das vezes, ser partilhados e comentados por todas as pessoas que tiverem acesso
à publicação, ou por seguem “amigas” ou “seguidores” de quem realizou a publicação
28
Um estudo realizado em 2018 pelo Office of the Children´s Commissioner for England apurou
que os pais publicam cerca de 1.300 fotos e/ou vídeos dos seus filhos até aos 13 anos. Children’s
Commissioner’s report calls on internet giants and toy manufacturers to be transparent about collection of
children’s data | Children's Commissioner for England (childrenscommissioner.gov.uk)
29
KUMAR, P. Schoenebeck, S. (2015) - The modern day baby book: Enacting good mothering
and stewarding privacy on Facebook, in Proceedings of the 18th ACM Conference on Computer
Supported Cooperative Work & Social Computing.
30
BATISTA, Alexandra Maria Barradas; COSTA, Rosalina Pisco - Parentalidade
Digital, Desenvolvimento e Sociedade, in Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais, Évora:
Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Pólo da Universidade de Évora, nº9, 2021, PP 9-10.
31
Segundo o estudo realizado pela Faire Parterie, denominado “Sondage exclusif: La digitalisation
de la vie familiale - Parents, enfants, écrans”, conclui que 30% dos bebés têm uma identidade digital antes
de nascerem, disponível em https://www.faireparterie.fr/etude-enfants-rapport-digital/pdf/Etude-
digitalisation-vie-familiale-faireparterie.pdf.

10
ou de quem partilhou a mesma. Tal como escreve Andreia Filipa Pereira, “Estes
comportamentos levantam sérias questões, em primeiro lugar porque frequentemente os
posts contêm informação pessoal sobre a criança, como o seu nome completo, data de
nascimento, religião, localização, escola que frequenta, entre outros. Por outro lado, a
imagem da criança, mas também outros conteúdos, podem eventualmente ser
considerados inapropriados e/ou embaraçosos para o menor, sobretudo no seu futuro.
Ora ao partilharem a imagem e a vida privada do filho nas redes sociais, os pais perdem
a possibilidade de controlar o seu destino futuro e a forma como essas imagens e
informações serão interpretadas e utilizadas por terceiros, tantas vezes para fins que não
os pretendidos”32. Não podíamos estar mais de acordo com esta opinião, na medida em
que a partir do momento em que pais expõem os próprios filhos na internet,
nomeadamente nas redes sociais, deixam, imediatamente, de ter o controlo da situação e
estes menores acabam por ter a sua imagem difundida nestas plataformas estando
sujeitos a diversos perigos.

Noutra perspetiva, este fenómeno poderá ter também implicações no futuro destas
crianças, pois, como a sua identidade digital foi criada pelos seus progenitores, muitas
vezes sem o seu consentimento, isto pode condicionar o seu futuro nas redes sociais.
Estas crianças veem a sua pegada digital criada sem poderem escolher se o querem ou
não fazer e em que termos. Sendo que a longo prazo uma vez que podem existir
informações de caracter embaraçoso ou menos favorável que possam ter implicações na
vida futura profissional ou pessoal. Pensemos no acesso a um cargo político. Ora, uma
criança que tenha sido exposta nas redes, onde foram publicadas fotografias ou
informações suas que tenham um caracter embaraçoso, no futuro, quando se estiver a
candidatar a esse cargo, poderá ser alvo de chacota.33

Pelo exposto ao longo de todo o texto perguntamos: há ou não violação à imagem e


à reserva da vida privada dos filhos parte dos progenitores? Parece-nos que sim, no
entanto as respostas dadas pela jurisprudência são ainda muito escassas, como iremos
ver de seguida.

32
CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da Personalidade e
Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição, Coimbra: Gestlegal, 2021, P 65.

33
CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da Personalidade e
Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição, Coimbra: Gestlegal, 2021, P 66.

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5.1 PRIMEIROS REFLEXOS NA JURISPRUDÊNCIA
A jurisprudência portuguesa ainda é muito parca no sentido de dar resposta ao
problema do Sharenting. Não obstante, existe um acórdão pioneiro nesta matéria –
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25 de junho de 2015 34 – abordando o
tema, sem, contudo, utilizar tal expressão ao longo seu texto. Este acórdão identifica o
Sharenting como um “perigo sério e real” ao desenvolvimento das crianças e jovens,
posicionando-se a favor da proteção da imagem, privacidade e segurança da criança.

Este acórdão surgiu no seguimento de um processo de regulação do exercício das


responsabilidades parentais, vindo confirmar a decisão proferida em 1.ª instância que
impôs, aos progenitores, a obrigação de não divulgarem imagens ou informações que
expusessem a filha de 12 anos nas redes sociais. Este Tribunal considerou que a
necessidade de salvaguarda do direito à reserva da intimidade da vida privada e da
segurança da menor no Ciberespaço era maior do que o direito de liberdade de
expressão da mãe.

Tendo sido interposto recurso, em segunda instância, o Tribunal da Relação de


Évora veio julgar o recurso improcedente considerando que a imposição feita pelo
Tribunal a quo “(…) é uma obrigação dos pais, tão natural quanto a de garantir o
sustento, a saúde e a educação dos filhos e o respeito pelos demais direitos
designadamente o direito à imagem e à reserva da vida privada”, uma vez que “os filhos
não são coisas ou objetos pertencentes aos pais e de que estes podem dispor a seu belo
prazer”. Explica que os pais têm a obrigação de proteger os filhos e de garantir e
respeitar os seus direitos, sendo este o núcleo dos poderes/deveres intrínsecos às
responsabilidades parentais. Ademais, o exercício das responsabilidades parentais tem
de ser sempre norteado no superior interesse da criança.

Por outro lado, neste acórdão são identificados vários perigos provenientes da
exposição das crianças nas redes sociais, nomeadamente quando menciona que “muitos
predadores sexuais e pedófilos usam essas redes para melhor atingirem os seus
intentos”. Já na parte final refere ainda que “O exponencial crescimento das redes
sociais nos últimos anos e a partilha de informação pessoal aí disponibilizada, sobretudo
pelos adolescentes (gostos, locais que frequentam, escola, família, morada, números de
telefone, endereço de correio eletrónico) suportam a antevisão de que os que desejam

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Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25 de junho de 2015, Processo nº
789/13.7TMSTB-B.E1, disponível em www.dgsi.pt.

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explorar sexualmente as crianças recolham grandes quantidades de informação
disponível e selecionem os seus alvos para a realização de crimes (…)”.

Em suma, este acórdão revela uma grande relevância, uma vez que, para além de
ser pioneiro na exposição do problema do Sharenting, traz consigo a novidade da
proibição dos pais publicarem e exporem os seus filhos nas redes sociais. Através das
suas marcantes afirmações consubstancia um alarme para todos os progenitores quanto
à exposição que eles próprios fazem dos filhos nas suas redes sociais.

6 CONCLUSÃO

7 BIBLIOGRAFIA
ANTUNES, Ana Filipa Morais - Comentário aos artigos 70º a 81º do Código
Civil (Direitos de Personalidade), Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2012.

BATISTA, Alexandra Maria Barradas; COSTA, Rosalina Pisco - Parentalidade


Digital, Desenvolvimento e Sociedade, in Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais,
Évora: Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Pólo da Universidade de Évora, nº9,
2021.

CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da


Personalidade e Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição,
Coimbra: Gestlegal, 2021.

CRUZ, Rossana Martingo - A criança no (admirável?) mundo novo das redes


sociais, in Direito na Lusofonia. Direito e novas tecnologias, 5.a Congresso
Internacional de Direito na Lusofonia, Braga: Escola de Direito da Universidade do
Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação (Jusgov), 2018.

CRUZ, Rossana Martingo - A divulgação da imagem do filho menor nas redes


sociais e o superior interesse da criança, in IV Colóquio Luso Brasileiro Direito e

13
Informação, Direito e Informação na Sociedade em rede: Atas, Porto: Faculdade de
Direito da Universidade do Porto.

KUMAR, P. Schoenebeck, S. (2015) - The modern day baby book: Enacting


good mothering and stewarding privacy on Facebook, in Proceedings of the 18th ACM
Conference on Computer Supported Cooperative Work & Social Computing.

MOREIRA, Sónia - A responsabilidade dos pais pela violação do direito à


imagem dos filhos, in Atas das Jornadas Internacionais “Igualdade e Responsabilidade
nas Relações Familiares”, Braga: Escola de Direito da Universidade do Minho, Centro
de Investigação em Justiça e Governação, 2020.

PINHEIRO, Jorge Duarte - O Direito de Família Contemporâneo. 4ª ed. Lisboa:


AAFDL.

SOUSA, R. Capelo de - O Direito Geral de Personalidade, Coimbra: Coimbra


Editora, 2011.

CECÍLIO, Tiago; MOREIRA Teresa Coelho; SANTOS, Alexandre - A


protecção dos menores na sociedade de informação: desafios criados pelas redes
sociais, in Scientia Ivridica, tomo LXV, Braga: Revista Escola de Direito da
Universidade do Minho, n.º 341, 2016.

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