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CC23ciencia Pesquisa e Ensino
CC23ciencia Pesquisa e Ensino
O Problema
Segundo Otte (1993, p. 158) “a ciência preenche na sociedade moderna uma função
dupla, que pode ser designada pelos termos ‘pesquisa’ e ‘educação’”. Mas, atualmente o
que se tem visto e espalhado pelas universidades é a compreensão de ciência que a vê
caracterizada apenas como pesquisa. A ciência aparece, de um lado, como produtividade
(instrumento), e do outro, como cultura (reflexão); como diz Otte (Ibid., p. 157) a ciência
“possui funções tanto objetivas quanto educacionais. A matemática não é apenas a
resolução criativa de problemas, mas uma contribuição para o desenvolvimento da relação
humana, e não supersticiosa, do indivíduo com a realidade”.
No século XIX, para o cardeal Newman a universidade deveria estar voltada a
“difusão e a extensão do conhecimento em lugar do seu avanço. Se seu objeto era a
descoberta científica e filosófica, eu não vejo por que uma Universidade deveria ter os
estudantes [...].” (NEWMAN1, 1976 apud JENKINS; HEALEY, 2005), enquanto para o
filósofo Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand, mais conhecido como o barão von
Humboldt (1767–1835) as “universidades deveriam tratar a aprendizagem sempre
consistindo de problemas ainda não resolvidos completamente e conseqüentemente sempre
em um modo de pesquisa”, ou seja, defendia a unidade entre ensino e pesquisa (von
HUMBOLDT2, 1970 apud JENKINS; HEALEY, 2005, p. 9).
Em 1810, sob a proteção do Estado da Prússia, foi fundada a Universidade de
Berlim, e é nela, com a liderança de von Humboldt, e com a contribuição de pensadores
como os filósofos Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) e de Friedrich Daniel Ernst
Schleiermacher (1768–1834) que podemos constatar, não uma reforma, mas a proposta de
um novo modelo de universidade, em oposição ao modelo herdado das universidades do
século XII, como as de Bolonha, Paris, Oxford, que tinham como alicerce a função
“Ensino” e como característica, ser “[...] tradicional, corporativista, conservadora, dissociada da
1
NEWMAN, J. The idea of a university. Oxford: Clarendon Press. 1976. (1852 first edition)
2
HUMBOLDT, W. von. On the spirit and organisational framework of intellectual institutions in Berlin.
Minerva 8, 242-267. 1970.
Comunicação Científica
pesquisas empírico-sistemáticas, centrada na transmissão dogmática do conhecimento por meio de
um sistema estático, [...], que se recusa a incorporar um compromisso com o pragmatismo
utilitarista” (BARTHOLO JR, 2001, p. 45).
Foram profundas as modificações instituídas por Humboldt ao conceito de
universidade da idéia que se tinha antes da revolução científica, de que a função da
universidade era a de ser apenas uma instituição pedagógica, ou seja, com ênfase
exclusivamente na função “Ensino”. Humboldt, em seu texto “Sobre a organização interna
e externa dos estabelecimentos científicos superiores em Berlim”, destaca a importância,
da pesquisa, ao lado do ensino, como função primordial da universidade.
Esta mudança foi significativa para a universidade porque até então, segundo Rossi
a universidade não tinha o desenvolvimento da ciência como função primordial:
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A palavra cientista existe há apenas 150 anos e no período da sua aceitação o cientista não tinha status na
sociedade como ele tem hoje (KRAGH, 2001).
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[...] na concepção humboldtiana de ciência o conceito de sujeito constitui
a ligação entre a pesquisa e o ensino, o qual, porém, não foi suficiente
durante o século XIX para também incluir a técnica como uma atividade
empírica e prática. Em Humboldt, a técnica era vista apenas como uma
função a serviço dos objetivos cotidianos, e colocada em oposição a uma
consciência superior. Na matemática, isso conduzia a divisão entre a
matemática pura e a aplicada e a um papel subordinado da aplicação
direta da matemática, enquanto a matemática como instrumento
educacional assumia um grande significado em sua concepção de ciência
(OTTE, 1993, p. 160).
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Este livro foi traduzido em 1976 para o português com o nome O fracasso da matemática moderna e teve
grande repercussão no meio acadêmico brasileiro.
Comunicação Científica
centros particulares especializados, com a obtenção de financiamento estatal ou da
indústria (fato esse que direciona a pesquisa aos interesses de poderosos grupos sociais)
devido à falta de evidências mostrada no interior das próprias universidades de uma
relação intrínseca entre ensino e pesquisa.
Cauchy e Gauss foram os últimos matemáticos que tinham uma visão global do
conhecimento matemático; Poincaré e Hilbert foram considerados matemáticos quase
universais. O matemático Félix Klein até acreditou que poderia ser possível superar a
especialização e a divergência entre os diferentes ramos mediante os conceitos de grupo,
transformações lineares ou invariância, mas isto não ocorreu. O século XIX se caracterizou
pela reintrodução do rigor nas demonstrações, as publicações e a técnica da linguagem
científica passaram cada vez mais a interessar somente a um círculo restrito de
especialistas, com difícil acesso, fez aumentar o enclausuramento do especialista na sua
própria disciplina, além de restringir seu conhecimento a uma pequena parcela separada do
contexto geral (KLINE, 1972).
A essa excessiva especialização do professor na universidade podemos associar a
disputa entre professor/universidade versus política de mercado, que tem levado as
universidades a buscar recursos para o ensino, apoiada nos benefícios trazidos pelas fontes
de finaciamentos das pesquisas, com a ampliação da infra-estrutura, da equipe de
pesquisadores. Além de a pesquisa possibilitar ao professor/pesquisador uma maior
reputação na sociedade científica à qual ele pertence, assim como de propiciar uma
visibilidade pública bem maior do que ele teria ao se dedicar ao ensino (SCHIMANK;
WINNES, 2000).
Essa dissociação entre professores que ensinam e professores que pesquisam tem
reforçado na formação do futuro professor apenas o lado técnico-formal em detrimento a
uma formação global, Schimank e Winnes (2000, p. 406) é contrário a essa dissociação:
“Um pesquisador ativo hoje é normalmente forçado a uma limitada especialização,
enquanto que um bom ensino requer uma visão geral mais ampla”.
É nesse sentido que Perrenoud ao questionar se a universidade seria o lugar ideal
para formar professores, direciona sua crítica a postura do especialista, quando este se
isenta da sua função de educador. Ele ressalta que
Comunicação Científica
Uma posição também contrária a essa postura de desprezo pelo ensino é encontrada
no artigo de Marcovitch (2000, p. 37), quando o autor apresenta a alusão feita por Max
Weber no ensaio “A ciência como vocação” destacando os dois desafios simultâneos que
devem ser compreendidos por quem deseja seguir a vida acadêmica e quer alcançar
sucesso: qualificar-se não apenas como pesquisador, mas também como professor.
Um ponto de vista interessante sobre esta discussão é dado por Belhoste (1998, p.
291) que lembra um fato que parece ter se esvanecido hoje em dia; o de que os
matemáticos, em sua grande maioria, são professores, assim caracterizados por realizarem
suas atividades no interior do ambiente escolar ou universitário. Esta é a visão que a
opinião pública tem da matemática, que ela é uma disciplina de ensino, entretanto, os
matemáticos se opõem a ela; para eles é a atividade de pesquisa que constitui o elemento
definidor de sua identidade profissional. Para os matemáticos “[...] ensinar matemática não
é vista como uma atividade suficiente para ser matemático; para isso, seria preciso, e,
sobretudo, produzir resultados matemáticos”. O autor afirma que este ponto de vista da
atividade do matemático é recente, surge ao final do século XIX:
Se, como explica Gusmán para um matemático é essencial conhecer história, para
um professor, diríamos que é fundamental.
Para o autor, essa atitude ocorre porque, em contraste com a arte e a literatura, a
matemática, como a física, é cumulativa, e os conhecimentos elaborados no passado por
Arquimedes, Pitágoras, Ptolomeu e Cavalieri, têm pouca importância para as pesquisas
contemporâneas. Mesmo que as tarefas de um professor de matemática sejam distintas das
do seu colega pesquisador, não é incomum encontrarmos aqueles que creditam à história
uma importância menor do que a dada às disciplinas específicas do curso de licenciatura,
mesmo os acadêmicos ainda pensam como os pesquisadores: que a história da matemática
é inútil.
Em um curso de licenciatura nos depararamos com o processo do fazer e aprender a
ciência por dois diferentes aspectos, como sugere Caraça, no prefácio de seu livro
“Conceitos fundamentais da matemática”:
Ou se olha para ela tal como vem exposta nos livros de ensino, como
coisa criada, e o aspecto é o de um todo harmonioso, onde os capítulos se
encadeiam em ordem, sem contradições. Ou se procura acompanhá-la no
seu desenvolvimento progressivo, assistir à maneira como foi sendo
elaborada, e o aspecto é totalmente diferente – descobrem-se hesitações,
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dúvidas, contradições, que só um longo trabalho de reflexão e
apuramento consegue eliminar, para que logo surjam outras hesitações,
outras dúvidas, outras contradições.
Descobre-se ainda qualquer coisa mais importante e mais interessante: no
primeiro aspecto, a Ciência parece bastar-se a si própria, a formação dos
conceitos e das teorias parece obedecer só a necessidades interiores; no
segundo, pelo contrário, vê-se toda a influência que o ambiente da vida
social exerce sobre a criação da Ciência. A Ciência, encarada assim,
aparece-nos como um organismo vivo, impregnado de condição humana,
com as suas forças e as suas fraquezas e subordinado às grandes
necessidades do homem, na sua luta pelo entendimento e pela libertação;
aparece-nos, enfim, como um grande capítulo da vida humana social
(CARAÇA, 1951, p. XIII).
Realmente, podemos conceber a ciência como mais uma das diversas formas de
conhecimento a que o homem tem acesso para interpretar o mundo em que vive. A
matemática pode ser entendida como parte da cultura, da sociedade, ou seja, como uma
atividade humana global, rica de assuntos em que, durante a sua construção, surgem
hesitações, dúvidas e contradições.
O resultado dessa concepção da matemática é a de que os futuros professores
compreenderão que, no desenvolvimento da matemática, podem ocorrer revoluções e
descontinuidade, que ela é muito mais do que um corpo de teoremas e provas produzidas
pelos estudiosos e que suas histórias são parte de uma ampla história cultural.
Por outro lado, como mostram os estudos ao longo das últimas décadas, podemos
apenas continuar a manter a concepção de ciência adotada nos cursos de licenciaturas,
principalmente os da área de exatas, da ciência pronta e acabada, como sendo apenas uma
história de continuidade e de acúmulo de conhecimento, de uma visão reducionista do
progresso do conhecimento, como descreve Lakatos:
Esta visão reducionista de ciência, a nosso ver pode ser causada pela falta na
formação de professores de pressupostos básicos, que envolvem questões epistemológicas,
históricas e sociais. Miguel ao se opor ao quadro reducionista a que chegou o ensino,
comenta:
Algumas considerações
Referências Bibliográficas
JENKINS, Alan; HEALEY, Mick. Institutional strategies to link teaching and research.
The Higher Education Academy. York Science Park. Heslington. United Kingdom. Oct.
2005.
Comunicação Científica
KLINE, Morris. El pensamiento matemático de la antigüedad a nuestros días, III.
Versión española de: Alejandro Garciadiego, Mariano Martínez. Madrid, Espanha: Alianza
Editorial, S.A.,1972.
KNIGHT, David. Trabalhando à luz de duas culturas. In: DEBUS, Allen G. et al. (orgs).
Escrevendo a história da ciência: tendências, propostas e discussões historiográficas. São
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