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Linguagem e Ficção
Linguagem e Ficção
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O papel da linguagem na constituição da ficção:
aspectos gerais
A relação entre linguagem e ficção é complexa e intrincada, pois a linguagem é a
ferramenta utilizada na tessitura da ficção, e a ficção, por sua vez, molda e desafia a
compreensão da linguagem. Esta relação é uma parte essencial das criações humanas,
abrangendo não só a literatura, como o cinema, o teatro e todas as formas de narrativa
imaginativa.
De forma generalista, pode-se afirmar que linguagem, em sua forma escrita ou falada, é o
meio pelo qual a ficção é comunicada. Através das palavras, os escritores criam seus
mundos, com personagens e tramas particulares. A escolha das palavras, sua
estruturação gramatical e seu ritmo influenciam profundamente a forma como a história é
percebida e experimentada pelos leitores ou ouvintes. A linguagem é, portanto, a principal
ferramenta que o escritor (ou produtor de qualquer arte fictícia) possui para a tessitura de
narrativas, diálogos e poesias.
A ficção, por outro lado, também tem um impacto significativo na linguagem. Artistas
frequentemente criam com a linguagem, como é o caso dos neologismos, bem como
utilizam metáforas únicas e experimentam com a estrutura das frases para criar uma
linguagem que seja única a seus estilos. Na literatura, grandes escritores, como
Gracyliano Ramos ou James Joyce, desafiaram as convenções linguísticas em busca de
novas formas de expressão. Assim, a ficção não apenas reflete a linguagem de uma
determinada época, como é capaz de recriá-la, expandi-la e, assim, enriquece-la.
De modo a melhor explorar esta temática tão ampla, serão discutidas a seguir algumas
perspectivas acerca do tema. Primeiramente, o estudo da relação entre linguagem e
ficção nos conduz à compreensão de que a linguagem não é apenas um veículo passivo de
transmissão de histórias, mas sim uma força ativa que co-cria e molda o próprio tecido
narrativo. Os formalistas russos foram os primeiros a teroizar sobre a linguagem como
uma entidade viva das expressões artísticas, capaz de desencadear "estranhamento" e
criar experiências literárias únicas.
Por fim, será discutida a metaficção, com seu enfoque na autorreflexão e desconstrução
da realidade fictícia, que nos lembra que a linguagem é a base sobre a qual todas as
narrativas se constroem. Ela nos desafia a considerar a linguagem não apenas como um
meio de comunicação, mas como uma ferramenta poderosa para explorar os limites e
possibilidades da ficção
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A análise literária formalista
Ao se discutir a relação entre linguagem e ficção, é imprescindível abordar a visão
formalista acerca da análise literária, pois os formalistas foram os primeiros estudiosos a
priorizar o estudo da linguagem na análise literária. Estes surgiram na Rússia, antes da
Revolução Bolchevique de 1917, e suas ideias prosperaram durante a década de 1920,
mas foram efetivamente reprimidas durante o período stalinista. Este grupo de críticos
rompeu com as doutrinas simbolistas quase místicas que haviam dominado a crítica
literária até então. Em vez disso, imbuiram-se de um espírito prático e científico,
direcionando sua atenção para a materialidade concreta do texto literári em si, ou seja, as
palavras pelos quais este é composto. Acerca do modo de análise formalista, Eagleton
(2006, p. 4) explicita:
Por isso, a literatura, de acordo com as palavras do crítico russo Roman Jakobson (apud.
Eagleton, 2006), é uma forma de "violência organizada contra a linguagem comum". Ou
seja, ela modifica e intensifica a linguagem cotidiana, deliberadamente afastando-se dela
para criar efeitos particulares. Tratam-se, portanto, de formas de expressão que se
destacam, chamando atenção para si mesma e revelando sua presença material, diferindo
de frases usualmente escutadas no nosso dia a dia.
Por exemplo, se alguém te abordar no ônibus e disser "Minha terra tem palmeiras onde
canta o sabiá/ as aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá", você imediatamente
reconhecerá a presença do elemento literário. Isso ocorre porque a estrutura, o ritmo e a
sonoridade das palavras transcendem seu significado concreto, criando o que pode-se
denominar de uma desconexão entre os signos e seus significados (Eagleton, 2006).
Segundo a teoria formalista, este tipo de frase se difere completamente das frases
comuns, como: "Você sabe que horas o ônibus que vai para o centro passa aqui?".
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Dessa forma, os formalistas consideram que a relação entre língua e ficção, que constroí a
linguagem literária, é um conjunto de variações em relação à norma, algo como uma
perturbação linguística deliberada. A literatura era considerada uma forma "singular" de
linguagem, diferenciando-se da linguagem "cotidiana" que utilizamos normalmente.
No entanto, é importante pontuar que, para identificar essas variações, era fundamental
poder identificar a norma da qual elas se afastavam. Eagleton (2006) contrapõe esta visão
ao apontar a dificuldade em estabelecer o que é esta "linguagem cotidiana" que
automatizaria nosso entendimento da língua, posto que a linguagem em uso também
possui inúmeros desvios e metáforas em sua composição, e que a mesma língua pode ser
utilizada de formas muito diferentes, dependendo das diferenças culturais e sociais de
seus falantes. Por exemplo, a forma como um nordestino se expressa frequentemente
causa estranheza àqueles que vivem no sudeste do país, da mesma forma que as gírias
utilizadas por rappers podem "desautomatizar" a linguagem para um músico clássico.
Segundo Eagleton (2006) os formalistas não negavam estes fatos, eles reconheciam que
as normas e as exceções linguística sse alteravam de um contexto social ou histórico para
outro, ou seja, que a noção de linguagem literaria, nesse sentido, está intrinsecamente
ligada à nossa posição em um determinado momento. Estes acreditavam que a qualidade
"literária" se originava das relações de diferenciação entre um tipo de discurso e outro,
não sendo, portanto, uma característica permanente. Seu objetivo não era definir a
"literatura" em si, mas sim a "literariedade" - os usos peculiares da linguagem - que não
apenas poderiam ser identificados em textos considerados "literários", mas também em
várias outras circunstâncias que extrapolavam esses textos. Por isso, para um
entendimento mais complexo acerca das relações entre ficção e língua, os conhecimento
por eestes produzido é fundamental.
Essa perspectiva abere espaço para a possibilidade de recriar esses textos, adaptando-os
a um novo contexto cultural e linguístico. Como Campos argumenta, "em outras línguas,
teremos outra informação estética, autônoma" (Campos, 2013, p. 4). A partir dessa
reflexão, o autor desenvolve o conceito de isomorfia entre os textos originais e traduzidos,
sugerindo que eles podem ser "diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos
isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema" (Campos, 2013, p. 4). Isso
significa que, embora sejam iguais e diferentes ao mesmo tempo, são expressões
linguísticas conectadas, mas realizadas de maneiras distintas devido às diferenças
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linguísticas inerentes ao processo de tradução, sendo, como Campos coloca, "autônomas,
porém recíprocas" (Campos, 2013, p. 5).
Metaficção
A metaficção representa uma abordagem literária que busca transcender os limites
tradicionais da narrativa. Ela se caracteriza por ser uma forma de ficção que,
deliberadamente, chama a atenção para sua própria natureza ficcional, levando o leitor a
questionar e refletir sobre os processos de criação, a estrutura narrativa e o próprio ato de
contar histórias.
Por ser uma abordagem literária que subverte as convenções narrativas tradicionais,
desempenha um papel fundamental na discussão sobre linguagem e ficção, pois, ao
conscientemente destacar sua própria natureza ficcional e muitas vezes interromper a
ilusão da realidade dentro da narrativa, a metaficção coloca em foco a importância da
linguagem como ferramenta na construção e transmissão de histórias. Ao nos fazer refletir
sobre o próprio ato de contar histórias, levanta questões sobre como a linguagem é usada
para criar significado e engajar o leitor. Por isso, pode-se considerar que, através da
metaficção, somos desafiados a explorar a linguagem como uma ferramenta
multifacetada que molda nossa compreensão da ficção, destacando assim a intrincada
relação entre linguagem e a criação do mundo ficcional.
Acerca do tema, Hutcheon (1984, p. 7 apud. Correio, 2016, p. 4, tradução nossa) afirma:
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Dessa forma, cabe ao leitor navegar pelo discurso ficcional e, ao mesmo tempo, crítico,
presente na obra. Isso implica não apenas na análise das estruturas fundamentais da
narrativa ficcional, que são expostas de forma consciente, mas também na exploração e
reflexão sobre a possível ficcionalidade do mundo que existe para além do texto ficcional.
Assim, o leitor é levado a refletir sobre como a linguagem molda não apenas a própria
narrativa, mas também a construção da realidade ficcional. A exploração da possível
ficcionalidade do mundo para além do texto ficcional torna-se uma jornada intelectual que
ilustra vividamente a importância da linguagem como uma ferramenta multifacetada que
não apenas comunica uma história, mas também questiona e expande os limites da
própria ficção. Nesse contexto, a metaficção se revela como uma forma literária que
desafia o leitor a considerar a linguagem como um elemento central na construção e na
desconstrução das fronteiras entre realidade e ficção, destacando, assim, a intrínseca e
complexa relação entre linguagem e a criação do mundo ficcional.
Por fim, a metaficção surge como uma abordagem literária que conscientemente coloca
em evidência a natureza ficcional da linguagem, convidando o leitor a participar
ativamente da co-criação da narrativa. Nesse processo, a metaficção desafia a exploração
da linguagem como uma ferramenta multifacetada que transcende os limites entre
realidade e ficção, destacando a intrincada e paradoxal relação entre linguagem e a
construção do mundo ficcional. Em última análise, a linguagem e a ficção são
inseparáveis, alimentando-se mutuamente na busca por dar vida às produções artísticas.
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Referências
CAMPOS, Harolde de. Transcriação. Perspectiva: São Paulo, 2013.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introdução. Maritns Fontes: São Paulo,
2006.