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DIREITO PENAL I

PROF. FERNANDA PALMA

2007-2008
Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

CAPÍTULO I: DEFINIÇÃO DO DIREITO PENAL

§1: CONCEITO. Direito penal é o conjunto de normas que atribuem a certos factos

descritos pormenorizadamente [os crimes – previsão da norma] consequências jurídicas

profundamente graves [as penas e as medidas de segurança – estatuição da norma]. As

sanções criminais relacionam-se com a prevenção do crime e a perda de direitos [vg privação

da liberdade, mediante pena de prisão]. Note-se que a prisão preventiva não é uma sanção

proprio sensu, mas sim uma medida de coacção aplicável perante indícios da prática do

crime.

Importa aqui distinguir, no seio das sanções criminais, as penas das medidas de

segurança: as últimas referem-se a inimputáveis que, nos termos dos arts 19º e 20º, não são

capazes de culpa, embora possam objectivamente praticar um crime. Consideram-se

inimputáveis os menores de 16 anos e os incapazes por anomalia psíquica. As penas, por seu

lado, aplicam-se à generalidade das pessoas, imputáveis: nestas, a culpa é pressuposto e

limite. As medidas de segurança, por seu lado, fundamentam-se na perigosidade individual do

delinquente.

A aplicação de uma pena a um imputável [capaz de culpa] pode ser complementada

com uma medida de segurança, nos casos em que o limite máximo da moldura penal for

insuficiente perante a especial perigosidade do imputável em questão. Por outro lado, um

mesmo agente pode ser considerado inimputável relativamente a um crime de violação, vg, e

imputável em relação ao crime de roubo. Nestes termos, FIGUEIREDO DIAS conclui pela

existência de um sistema dualista, de dupla via ou de duplo binário, apesar dos argumentos

que criticam a conjugação do princípio da culpa com o elemento “naturalístico” da

perigosidade do agente. O sistema dualista é legítimo à luz dos princípios do Estado de

direito, já que o princípio da culpa não é a única forma de limitação do poder sancionatório

[veja-se os princípios da necessidade, subsidiariedade e dignidade da pessoa humana, em

termos que estudaremos infra]. Por outro lado, um sistema dualista afigura-se politico-

criminalmente adequado face a exigências de defesa social e de tratamento dos delinquentes

que sejam especialmente perigosos.

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Conclui-se: apesar das diferenças supra apontadas, a medida de segurança pode ser

conjugada com uma pena, desde que a primeira seja executada antes da pena de prisão, vg,

e nela descontada [art. 99º-1], a favor da socialização do delinquente. A possibilidade de um

sistema monista prático não é, de iure condendo, de afastar: veja-se as penas que constituem

verdadeiras medidas de segurança.

O conteúdo do que seja crime e pena é pré-legislativo e indisponível [conceito

material de crime]: se o legislador considerasse como crime, vg, copiar num exame, não teria

ainda assim criado qualquer norma penal. Por outras palavras: o direito penal não pode ser

meramente descritivo, antes assumindo critérios de validade na definição dos crimes.

Nestes termos, desta primeira noção partiremos para uma outra: o conceito material

de crime. Efectivamente, antes mesmo de moldados pelo legislador, crime e pena são

produzidos por instâncias sociais mediante representações comummente aceites, que serão

posteriormente reproduzidas pelo legislador.

§2: FINS DAS PENAS. A dignidade punitiva das condutas humanas releva para o

debate dos fins das penas, rectius, legitimação, fundamentação e função da intervenção

penal estatal. Três grandes concepções foram construídas, neste domínio:

 Teoria absoluta – teoria da retribuição: teoria absoluta que justificava a

pena pela compensação, expiação ou reparação do mal do crime,

independentemente de qualquer fim pragmático. A medida concreta da

pena é a correspondência entre a pena e o facto praticado. A esta teoria

corresponde um modelo de política criminal que FIGUEIREDO DIAS designa

de “modelo azul”.

o Influências: antiguidade grega e Idade Média [lei de talião – “olho

por olho, dente por dente”, concepção bíblica de culpa colectiva, vg

justiça divina condena todo o povo egípcio pela escravatura dos

hebreus].

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o Contributos:

 KANT [Metafísica dos Costumes]: a pena é um “imperativo

categórico”, justificado independentemente de quaisquer

fins, vg punindo-se o último condenado à morte numa ilha

em que o Estado se dissolveu.

 HEGEL: o crime é negação do direito; a pena é negação do

crime [negação da negação]; logo, a pena é a reafirmação

dialéctica do direito, numa lógica fundamentalmente

utilitarista:

Direito

Nega

Crime

Nega

Pena – afirmação do direito

Crítica: esta teoria perdeu toda a pureza de uma teoria absoluta, justificando-se hoje

com base nas mesmas premissas da teoria da prevenção geral, infra. Parte de uma ideia de

responsabilidade individual baseada no livre arbítrio indiferenciado [a expiação do mal é meio

inidóneo e ilegítimo].

Para FIGUEIREDO DIAS o mérito desta teoria absoluta reside na formulação do

princípio da culpa: não pode haver pena sem culpa e a medida da pena não pode excedê-la.

Configura-a, todavia, com uma fundamentação ética, a afastar dado que não cabe ao Estado

promover a ética ou a moral em si mesmas, mas apenas na medida indispensável à

preservação de bens jurídicos: o Estado não deve arrogar-se entidade sancionadora do pecado

e do vício [necessidade da pena, art. 18º-2 CRP].

 Teorias relativas: fundamentam-se na prevenção criminal. Foram criticadas

pelos adeptos das teorias absolutas por se servirem da pessoa humana para a

realização de fins político-criminais, violando a sua dignidade [KANT].

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o Teoria da prevenção geral: a pena actua sobre a generalidade dos

membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através

da ameaça penal, da sua aplicação e da efectividade da sua

execução.

 Negativa ou de intimidação: a pena justifica-se pela

intimidação dos cidadãos relativamente à violação da lei

penal, através do sofrimento que se inflige ao delinquente,

exemplo a seguir por todos.

 Contributos:

 VON FEUERBACH: a pena impede psicologicamente

quem tenha tendências desviantes do direito de se

determinar por elas [doutrina da coacção

psicológica].

 Positiva ou de integração: a pena justifica-se pelo

fortalecimento dos juízos de valor social e da confiança dos

cidadãos e das suas expectativas relativamente à eficácia da

justiça penal e das normas que tutelam bens jurídicos; o

efeito preconizado é apaziguador da paz pública,

empiricamente constatável [vg pena de morte em alguns

Estados dos EUA]; a ordem jurídica afigura-se, assim,

inquebrantável.

Crítica: pergunta-se se o efeito apaziguador que resulta da aplicação desta teoria, na

sua vertente positiva, deriva da severidade ou da prontidão da aplicação da pena. Para mais,

torna-se indeterminável o quantum de pena necessário para alcançar os efeitos propostos: as

penas seriam cada vez mais desumanas e severas [direito penal do terror]. O interesse público

não deve fundamentar que se inflinja qualquer pena ao indivíduo, pois este não é um meio ao

serviço de fins sociais, em face à dignidade da pessoa humana constitucionalmente

consagrada [art. 1º CRP]. No limite, seria preferível condenar um inocente do que deixar o

crime por punir?

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o Teoria da prevenção especial: preconiza a intervenção individual da

pena sobre a pessoa do delinquente, através da coacção psicológica

que o inibirá da prática de crimes a posteriori [prevenção da

reincidência] e da “tendência” desviante para delinquir. A esta

teoria corresponde um modelo de política criminal que FIGUEIREDO

DIAS designa de “modelo vermelho”.

 Negativa ou de neutralização: o efeito da pena seria a

defesa social, mediante segregação e separação do

delinquente, neutralizando a sua perigosidade social.

 Clínica: o efeito da pena seria a reforma moral, a emenda,

do delinquente, através do tratamento das tendências

individuais “desviantes”, do mesmo modo como se trata um

doente.

 Positiva ou de socialização: o efeito da pena seria a

reinserção social, a ressocialização do delinquente [para

muitos marginais, dessocializados desde sempre, tratar-se-ia

de verdadeira inserção social].

 Contributos:

o Escola correccionalista: todo o homem é,

por natureza, susceptível de ser corrigido

[LEVY MARIA JORDÃO].

o PLATÃO [Protágoras]: a virtude aprende-se

e ensina-se; o crime fundamenta a pena,

mas não deve ser sua consequência

automática; a finalidade da pena é corrigir o

indivíduo em concreto.

o VON LISZT: contrato social – só a pena

necessária é legítima; funções preventivas-

especiais da pena: intimidação,

melhoramento e eliminação do criminoso.

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Crítica: também esta teoria é inaceitável como fim exclusivo das penas na medida em

que, levada ao limite, poderia determinar que crimes gravíssimos ficassem impunes, se não

existisse perigo de reincidência do delinquente [vg crimes ocasionais], e que crimes menos

graves justificassem a prisão perpétua ou a pena de morte, vg. Por outro lado, a investigação

empírica não permite uma prognose segura sobre a delinquência futura [veja-se o sugestivo

caso Minority Report, ainda que fictício]. É hoje de recusar o paradigma de correcção moral e

clínica do delinquente, violador da sua liberdade de autodeterminação [FIGUEIREDO DIAS].

Finalmente, a pena é criminógena, de modo a que as condenações aumentam as

probabilidades de reincidência, num ciclo vicioso. Uma vez mais põe-se em causa o princípio

da necessidade da pena [art. 18º-2 CRP].

FIGUEIREDO DIAS considera que as penas só podem ter natureza preventiva, geral ou

especial, nas suas diversas formas, e nunca retributiva: umas e outras devem coexistir e

combinar-se da melhor forma. Contra EDUARDO CORREIA, a culpa não deve ser fundamento

da pena, mas tão-só pressuposto necessário e limite inultrapassável. Conclui-se: é justa toda

a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e que não exceda a medida da

culpa. A culpa estabelece o limite máximo da pena, balizada por:

o Limite superior: tutela de bens jurídicos [ponto óptimo]

o Limite inferior: defesa do ordenamento

 Numa moldura de prevenção geral de integração, dentro da qual a medida

da pena [art. 70º] é encontrada em função da prevenção especial, em regra

positiva e apenas excepcionalmente negativa.

§3: PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. Da reflexão supra conclui-se que nenhuma das

teorias dos fins das penas logra dar uma resposta satisfatória ao problema da legitimidade da

pena.

Para mais, toda a discussão sobre os fins das penas está condicionada pelo seu

conteúdo histórico e pela sua função social, face à amarga, mas indispensável, necessidade

de punir. Conclui-se: a perspectiva do ponto de partida deve ser outro. Deve procurar-se

responder a esta questão em face ao que a pena é, actualmente e na sociedade em questão,

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e não ao que deveria ser, de iure condendo. A ligação entre a reflexão sobre os fins das penas

e o fundamento e a legitimidade do Estado é, assim, indiscutível.

Eis as premissas de que partiremos:

 Só a pena necessária é legítima [influências de BECCARIA e de VON LISZT]:

a legitimidade [o fim] das penas é referida à necessidade [art. 18º-2 CRP].

 Da dignidade da pessoa humana [art. 1º CRP] deriva o princípio da culpa.

 A retribuição da pena excederá a legitimidade punitiva do Estado quando

prossiga a expiação moral do delinquente.

Destes três passos a conclusão extraída corresponde, surpreendentemente, àquela

primeira premissa: a pena retributiva só é legítima se for necessária, preventivamente. A

discussão afigura-se redundante.

Em suma, tanto a retribuição como a prevenção devem ser articuladas com os

princípios constitucionais conforme apresentaremos infra.

§4: POLÍTICA CRIMINAL. Ao modelo de política criminal que extrairemos desses

princípios, FIGUEIREDO DIAS designa de “modelo verde”: paradigma emergente que organiza

o controlo do crime a partir de princípios constitucionais como o princípio da legalidade, da

culpa e da necessidade da pena e de uma estratégia de descriminalização e desjudiciarização,

substituindo-se a pena de prisão por sanções alternativas. Este “modelo verde” apoia-se na

prevenção geral positiva ou de integração [fortalecimento da confiança da comunidade, com

efeito apaziguador], ao qual se contrapõe a renúncia, pura e simples, de qualquer política

criminal pelas instâncias formais de controlo.

Cumpre recordar os restantes modelos de política criminal propostos por FIGUEIREDO

DIAS, já brevemente assinalados:

 “Modelo azul”: modelo retributivo.

 “Modelo vermelho”: modelo preventivo-especial.

Para FERNANDA PALMA, a prevenção geral positiva ou de integração corresponde, na

verdade, a um discurso evasivo que radica num meio de intimidação. O “modelo verde”, a

aplicar-se, suscitaria problemas de política criminal como a duvidosa legitimidade da

substituição dos juízes pelos grupos sociais, na desjudiciarização proposta.

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ROXIN, por seu lado, articula as três teorias através de um esquema de limitação

recíproca, nos termos seguintes:

 Prevenção geral: na fase de legislação

 Retribuição: na fase de julgamento

 Prevenção especial: no cumprimento da pena

FERNANDA PALMA critica esta soma das três teorias, propondo antes uma dialéctica

entre elas. Os arts 18º-2 CRP e 40º teriam uma lógica que se aproxima da teoria preventiva

ainda que, no Estado de Direito, seja a retribuição a resposta mais correcta, ainda que

assente em fundamentos diversos da sua concepção originária:

 Quem se pune? A lógica é retributiva, de responsabilidade pessoal, e não

colectiva [como preconizava a concepção bíblica supra], aliada à protecção

de bens jurídicos [art. 40º-2].

 Quais os fins últimos das penas? Prevenção especial, de modo mitigado [art.

40º-1].

Conclui-se: o esquema legalmente consagrado inspira-se em ROXIN, configurando a

culpa como limite máximo da pena e critério material do crime.

§5: CONCEITO MATERIAL DE CRIME. Se as sanções criminais se caracterizam pela

especial gravidade, conclui-se que o crime que as fundamenta deve também possuir um

patamar mínimo de gravidade ou dignidade penal: as sanções aplicar-se-ão se não houver

qualquer violação do princípio da proporcionalidade.

Cumpre apreciar a evolução da dogmática do conceito de crime:

 Concepção positivista-legalista: o crime é tudo e só aquilo que o legislador

considerar como tal [conceito formal de crime].

o Crítica: o conceito de crime é prévio ao legislador, servindo de padrão

crítico e indiciando o que este deve descriminalizar e criminalizar.

 Concepção positivista-sociológica: o crime é tudo o que a realidade social

considera como tal, intemporalmente, com base no critério do dano social.

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o Crítica: o comportamento mentiroso é socialmente danoso [harm

principle], embora nem toda a conduta mentirosa deva ser considerada

crime.

 Concepção moral ético-social: o crime é a tradução, no mundo terreno, das

noções de pecado e de castigo, vigentes na ordem religiosa [moralidade e censura

da consciência humana].

o Crítica: não é função do direito penal tutelar a virtude ou a moral.

 Concepção racional: o crime é a lesão de bens jurídicos dotados de dignidade

penal [bens jurídico-penais], considerando a função do direito penal enquanto

tutela subsidiária [de última ratio] de bens jurídicos.

Na construção da definição material do crime, sob a perspectiva da concepção

racional, contribuíram os seguintes autores:

 BIRNBAUM: violação objectiva de bens jurídicos, valores da comunidade –

interesse na manutenção ou integridade de um certo estado socialmente

relevante e juridicamente reconhecido como valioso

 VON LISZT: violação de bens jurídicos, interesses humanos vitais que

exprimem as condições básicas da vida em comunidade.

 LUHMANN: conduta desviada em relação à norma, frustrando expectativas de

comportamento juridicamente asseguradas.

Não obstante as diversas formas de abordagem à temática em estudo, é pacífico que

o conceito de bem jurídico tende a ser absorvido pelos fins concretos que cada sociedade

deverá realizar.

Assim, faz parte do núcleo de condições essenciais de existência que merecem

protecção perante ameaças graves [bens jurídicos, enfim] o ambiente, vg: bem jurídico

tutelado mediante consagração expressa de crimes ambientais, com a reforma penal de 1995.

Para FERNANDA PALMA o problema adensa-se perante casos de incriminação de condutas

lesivas da moralidade social: quando não reflictam uma necessidade do núcleo de condições

essenciais de existência na nossa sociedade [pornografia adulta, vg], a incriminação não deve

ser a solução mais justa, na medida em que a coesão social proclamada pelos bens jurídicos,

assim entendidos como tal, não se define a partir da moral sexual, mas sim a partir

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da liberdade individual. O mesmo não se diga, todavia, relativamente à pornografia infantil:

será penalmente relevante se contribuir para uma diminuição da capacidade de decisão da

criança no domínio sexual [para a sua autodeterminação e pleno desenvolvimento sexual,

enfim].

Do mesmo modo, conclui ROXIN que puras violações morais não conformam a lesão de

um autêntico bem jurídico e não podem, por isso, integrar o conceito material de crime:

veja-se a evolução do denominado direito penal sexual. O mesmo se refira relativamente a

proposições meramente ideológicas ou à violação de valores de mera ordenação social.

A função do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídicos, conforme concluem

FIGUEIREDO DIAS e ROXIN, não implica limitar a intervenção da sanção criminal apenas aos

casos em que haja efectiva lesão desse bem jurídico. Nestes termos, a tentativa é punida

[art. 23º], ainda que não chegue a lesar-se o objecto da acção. O legislador antecipa, tão-só,

a tutela penal, maxime nos casos seguintes:

 Crimes de perigo: a realização típica não pressupõe a lesão do bem jurídico

o Concreto: o perigo é elemento do tipo de ilícito [vg art. 138º].

o Abstracto: o perigo é motivo da proibição penal [vg art. 292º].

Conclui-se: sendo certo que não pode haver criminalização onde não haja tutela de

um bem jurídico-penal, a asserção inversa não é exacta. Explicite-se: nem sempre que há um

bem jurídico digno de tutela penal deve haver intervenção penal. Releva, aqui, o conceito de

“dignidade penal” na definição do conceito material de crime [art. 18º-2 CRP].

§6: LABELLING-APPROACH. Face ao que foi exposto supra §5, devemos acrescentar

que o conceito material de crime não resulta apenas do seu conteúdo material, mas também

da construção social dessa realidade: uma conduta é criminosa após um processo social

mediante o qual a comunidade selecciona e etiqueta [labelling] determinadas condutas como

delinquentes. A conduta não é criminosa porque é punida, mas tão-só porque a selecção

social estigmatizou grupos de indivíduos [marginais, diz-se] e identificou-os como tal:

representando a materialidade do conceito de crime, possível de previsão pré-legal. Assim, só

será criminoso quem merecer a respectiva pena, apelando-se à dignidade penal da

acção/omissão e à legitimação constitucional do direito penal.

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Esta teoria criminológica do labelling-approach preconiza os grupos sociais como

instâncias não formais de controlo, numa perspectiva relativista face ao que é designado

socialmente como crime. Assim não o deve ser: no limite, um certo modo de organização

social geraria necessariamente certos crimes, consoante os valores que enformassem essa

comunidade.

Conclui-se: o direito penal é o ramo do direito público em que à lesão de bens

jurídicos essenciais para a vida em sociedade são atribuídas as sanções mais graves do nosso

ordenamento jurídico [noção já patente nas obras de BECCARIA e VON LISZT]. Uma noção

operatória de crime, a acolher, teria que englobar:

 O comportamento humano desviado, irregular: SUTHERLAND

 O comportamento humano socialmente danoso, por atingir bens necessários

à conservação ou ao desenvolvimento da sociedade: MANNHEIM

§7: SUBSIDIARIEDADE. Ainda que se conclua pela relevância penal de determinada

conduta desviante, a mesma pode não redundar na aplicação de uma sanção criminal que,

como analisámos supra, constitui a mais grave consequência jurídica a estatuir.

Efectivamente, a subsidiariedade é pressuposto de aplicação do direito penal: este só

intervém quando a conduta desviante não possa ser resolvida com recurso a outras soluções.

Veja-se a interrupção voluntária da gravidez, por exemplo: entende o TC que, ainda que seja

uma opção criminalmente relevante, certas medidas de intervenção social podem resolvê-la

de modo mais justo.

§8: CONCLUSÃO. Face aos argumentos expostos e às teorias analisadas, ainda que

nenhuma seja de acolher num Estado de Direito, poderemos concluir pelo sentido e função do

direito penal nos termos seguintes:

 A necessidade de protecção do bem jurídico violado pela conduta desviante

releva para a questão controversa da incriminação de condutas meramente

contrárias à moral, segundo as representações sociais dominantes:

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o Homossexualidade, vg: não atinge qualquer bem jurídico,

indispensável à preservação da sociedade [ROXIN], quando praticada

em privado e por adultos. Quando interfira no desenvolvimento e na

maturação sexual de crianças ou adolescentes, a questão já tem

dignidade penal.

o Pornografia, vg: questiona-se se favorece a criminalidade contra a

liberdade sexual, maxime quando diga respeito a actos sexuais

praticados por crianças. Será penalmente relevante se contribuir

para uma diminuição da capacidade de decisão da criança no domínio

sexual [para a sua autodeterminação e pleno desenvolvimento

sexual, enfim].

o Conclui-se: a discussão é viciada pela questão de saber se as próprias

normas éticas serão bens jurídicos, segundo ROXIN.

 Há condutas que podem afectar bens jurídicos e que, ainda assim, não

careçam de cominação penal, na medida em que tais bens são eficazmente

protegidos de outro modo:

o Consumo de estupefacientes, vg: consumo hoje descriminalizado,

face à subsidiariedade do direito penal [DL 15/93].

 Outras condutas são eticamente neutras e normalmente aceites, embora

possam ser criminalizadas a posteriori:

o Fumar, vg: assiste-se actualmente a uma tendência incriminadora

desta conduta, maxime em locais públicos e fechados, pelo relevo

ético que sob tal conduta impende.

 Quando não haja consenso generalizado relativamente à incriminação de uma

conduta, o direito penal não deve liberalizá-la em absoluto, nem incriminá-la

em todos os casos, sem excepções:

o Interrupção voluntária da gravidez, vg: face à necessidade de amplo

consenso em relação a essa questão, o legislador não deve liberalizá-

la em absoluto, nem incriminá-la em situações-limite [Lei 16/2007].

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§9: DELIMITAÇÃO MATERIAL. O direito penal é um ramo do direito público porque

predomina o princípio da subordinação, e não o da igualdade entre os sujeitos da relação

jurídica. Trata-se de um direito sancionatório público, a par do direito disciplinar da função

pública e do direito de mera ordenação social.

O direito disciplinar da função pública preconiza a boa execução, pelos funcionários e

agentes da administração pública, das suas tarefas, aplicando-lhes sanções disciplinares

quando a relação de confiança estabelecida seja por eles violada.

Já o direito de mera ordenação social [DL 433/82] se consubstancia na figura das

contra-ordenações e determina a aplicação de coimas [sanção exclusivamente patrimonial],

quando seja violado o bem-estar público. O direito [administrativo, e não penal!] de mera

ordenação social corresponde historicamente à categoria penal das contravenções.

Dir-se-ia que o critério quantitativo obriga a que a diferença entre este tipo de ilícito

e o direito penal resida na menor gravidade do primeiro, derivado do princípio da

subsidiariedade do último. Para uns, tal não basta: critérios qualitativos deverão também

proceder a essa distinção [EDUARDO CORREIA], sob pena de se considerar inconstitucional o

direito de mera ordenação social, por não lhe corresponderem as mesmas garantias penais do

que as de processo penal [segundo MATTES]. Para outros, a procura de critérios qualitativos é

inaceitável ou insuficiente [veja-se FIGUEIREDO DIAS ou FERNANDA PALMA]. Nem se diga

que a distinção assenta no critério da neutralidade axiológica do ilícito da mera ordenação

social, versus a imediata relevância ética do ilícito penal, já que o direito penal integra

variados ilícitos de mera desobediência. A distinção é sempre material, a par de critérios

adicionais de “quantidade” que se convertem em qualidade [vg grau de alcoolémia no sangue,

para efeitos de condução, e as diferenças penais entre 1,1 e 1,2 g/l].

FIGUEIREDO DIAS considera que, ainda que o ilícito seja de “mera” ordenação social,

não se lhe pode reconhecer um cariz ético-socialmente indiferente.

Cumpre concluir pelas características do direito de mera ordenação social que

permitem autonomizá-lo do direito penal, através da atribuição à autoridade administrativa

de competência para aplicar certas sanções, cujos fins são apenas de reordenação da vida

social:

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 Condutas que não tenham um significado negativo, consensualmente aceites

como tal – menor desvalor ético.

 Condutas que correspondam a modos de acção ou violação de deveres de

gravidade menos intensa, por não exigirem a oposição à ordem jurídica –

menor desvalor da personalidade ética que fundamenta o ilícito.

 Condutas que não atinjam directamente o núcleo constitucional de bens

jurídicos, subjectivos ou colectivos – menor importância da ordem axiológica

constitucional do objecto directo da acção.

CAPÍTULO II: PRINCÍPIOS DE DIREITO PENAL

§1: CULPA. O princípio da culpa deduz-se da dignidade da pessoa humana [art. 1º

CRP] e do princípio da liberdade [art. 27º CRP], constitucionalmente consagrados. Os

significados do princípio da culpa podem ser de três ordens:

 Culpa enquanto fundamento da pena

o Critério não unânime: sob este prisma o princípio da culpa torna-se

restritivo, delimitado em face à segurança jurídica e aos fins

utilitaristas do Estado.

 Culpa enquanto factor da determinação da medida da pena

o Critério dominantemente aceite, através da comparação entre

comportamentos e agentes, com referência à culpa.

 Culpa enquanto princípio da responsabilidade subjectiva ou pessoal

o Significado indiscutível: a construção da responsabilidade penal que

rejeita a imputabilidade, ao agente, de todas as consequências do

seu acto ilícito; hoje a responsabilidade está limitada ao âmbito do

domínio da vontade humana [facto que releva para

inimputabilidade].

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§2: NECESSIDADE DA PENA. O princípio da necessidade da pena [art. 18º-2 CRP]

equivale à intervenção mínima do Estado em matéria penal. Nestes termos, a utilização de

meios penais deve ser limitada, ou mesmo excepcional, só se justificando pela protecção de

direitos fundamentais. Assim se obsta à utilização discricionária das penas pelo poder

político, ao serviço de quaisquer fins.

Radica na ideia de contrato social enquanto limite substancial do direito penal: já

BECCARIA o defendia [Dos Delitos e das Penas], relativizando-se o poder público e

secundarizando-se os meios penais na resolução dos problemas sociais.

A intervenção penal do Estado está, assim, subordinada à realização dos fins

necessários à subsistência e desenvolvimento da sociedade. Intervenção essa balizada nos

termos seguintes:

 Perante a conduta que viole um mero valor moral sem expressão num bem

jurídico [vg a relação homossexual entre adultos].

 Perante a conduta que possa ser solucionada com recurso a outros meios

sociais [vg o planeamento familiar, em vez da criminalização da interrupção

voluntária da gravidez, ou a educação sexual, em vez da perseguição penal da

pornografia adulta].

 Perante a conduta que não é evitável pelo direito penal, cujo papel é antes

criminógeno [vg interrupção voluntária da gravidez clandestina].

§3: IGUALDADE PENAL. O princípio da igualdade penal [art. 13º CRP] proscreve a

discriminação entre pessoas e subjaz à ideia de proporcionalidade.

Efectivamente, entre a gravidade do ilícito e a pena deve presidir a ideia de

proporcionalidade: corresponde, de facto, à igualdade que sustenta a medição da pena pela

culpa. Implica que factos de menor danosidade social sejam sancionados com penas mais

leves: a um pequeno furto não poderá jamais corresponder a pena mais elevada do furto

qualificado, vg.

A proporcionalidade e a igualdade interligam-se nos termos seguintes: ninguém pode

ser punido menos severamente do que outrem [proporcionalidade] por factos idênticos

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[igualdade]. Assim, idêntica necessidade de punir e idêntica culpa justificarão idênticas

penas.

§4. HUMANIDADE. O princípio da humanidade proclama a rejeição de sanções que

atentem o respeito pela pessoa humana [vg pena de morte, prisão perpétua, tortura e penas

degradantes].

§5. LEGALIDADE. O princípio da legalidade resulta da articulação das máximas

seguintes, sintetizadas numa só [não pode haver crime, nem pena, que não resulte de uma lei

prévia, escrita, estrita e certa]:

 Nullum crimen sine lege [não há crime sem lei]: as sanções penais não podem

ser aplicadas sem que se verifiquem os pressupostos da conduta desviante

[crime ou reveladora de perigosidade social, no caso das medidas de

segurança], descritos na lei de forma exaustiva [art. 29º-3 CRP e 1º-1]. VON

LISZT: a lei penal é a “Magna Charta do criminoso”.

o Proevia

o Stricta

o Certa

 Nulla poena sine lege [não há pena sem lei]: as sanções penais devem ser

aplicadas com base em lei anterior que as preveja [art. 29º-1 CRP e 1º-1].

o Pena: lei proevia

o Medidas de segurança: a medida de segurança vigente ao tempo da

aplicação

 Nulla poena sine crimen [não há pena sem crime, e não nullum crimen sine

poena, no nosso país]: as sanções penais não podem ser aplicadas sem que se

verifique um caso para o qual está previamente determinada na lei a

aplicação dessa sanção, o crime, verificados todos os pressupostos.

O princípio da legalidade está historicamente associado ao objectivo de assegurar a

liberdade do cidadão em face do Estado, evitando que a mesma seja arbitrariamente

17
Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

restringida pelo último. O controlo do poder do Estado não se limita ao tribunal, mas começa

pelo próprio legislador, vinculado a não criar leis penais retroactivas. [art. 29º-4 CRP e 2º].

Este princípio não cobre toda a matéria penal, mas apenas aquela que se traduza na

fundamentação ou no agravamento da responsabilidade do agente [e não na atenuação dessa

responsabilidade, ou na exclusão da ilicitude], segundo FIGUEIREDO DIAS. Explicitaremos esta

ideia infra.

Um processo meramente subsuntivo de aplicação da lei penal ao caso real não é

viável em absoluto, antes devendo o intérprete e o aplicador do direito demonstrar e

justificar, com recurso a argumentação, a intenção da lei em ser aplicada ao caso concreto.

Daqui se retira um corolário lógico: proíbe-se a analogia, na assimilação do caso pela

lei, sem que determinados argumentos procedam. Exemplifiquemos: se a lei identificar que

só é punível como violação o acto sexual violento praticado contra uma mulher, a analogia

com uma vítima homem não seria possível, ainda que a igualdade material seja manifesta,

dado o sentido histórico dessa pretensa lei [a possibilidade da gravidez e a menor resistência

da vítima mulher].

O mesmo não se diga relativamente à densificação de conceitos indeterminados,

como “violência” ou “grave ameaça”: nesses casos, a utilização de raciocínios analógicos é

naturalmente exigível. Com a aplicação consequente da lei aos casos reais, cria-se no

intérprete a imagem de um caso tipo, modelo simbólico e abstracto do conceito

indeterminado a preencher: até que seja pacífico o que “especial censurabilidade ou

perversidade”, vg, significa, no caso de homicídio qualificado [art. 132º]. Frequente é que o

intérprete siga apenas a sua intuição e prescinda, assim, de um raciocínio de tipo analógico.

Conclui-se: a descrição da matéria proibida deve ser exaustiva, objectivamente

determinável, formulando-se tipos legais que orientam o aplicador do direito penal. Conceitos

indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor são permitidos, desde que não

obstem à determinabilidade objectiva das condutas a proibir. FIGUEIREDO DIAS defende que

o critério decisivo para aferir do respeito pelo princípio da legalidade, neste âmbito, é aquele

que permite saber se, apesar da indeterminação aceitável dos conceitos, existe ainda assim

uma área e um fim de protecção da norma claramente determinados. Essa área, a existir,

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

permite a coexistência de conceitos indeterminados e cláusulas gerais com o princípio da

legalidade.

O princípio da legalidade pode criar dois cenários radicalmente opostos: a fixação

rígida às palavras da lei, ou a libertação do condicionamento das palavras, incluindo em

conceitos indeterminados situações em que não existe verdadeira igualdade material [vg

entender-se que é susceptível de revelar a “especial censurabilidade e perversidade” do

homicídio a motivação por ódio político, nos mesmos moldes que o ódio religioso ou racial],

segundo FERNANDA PALMA.

CAPÍTULO III: FONTES DO DIREITO PENAL

§1: FONTES. Só a lei pode ser fonte de direito penal [art. 29º CRP, 1º e 2º],

estabelecendo-se uma reserva relativa de competência da AR [art. 165º-1c) CRP]. Nestes

termos, só a AR ou o Gov, munido de indispensável LAL, têm competência em matéria penal,

sob pena de inconstitucionalidade orgânica.

Este princípio só é afastado pelo art. 29º-2 CRP: admite-se a legitimidade da punição

das acções e omissões segundo os princípios gerais do direito internacional comummente

reconhecidos. Assim, o costume internacional pode também ser fonte do direito penal. Esta

excepção funda-se em razões históricas: legalidade da perpetração de crimes contra a

humanidade [vg Alemanha nazi]. Apesar de constituir uma excepção ao princípio da

legalidade, o fundamento da reserva de lei [a segurança democrática] não impede tal

consagração.

§2: LEGALIDADE. Em face ao que já foi exposto supra relativamente ao princípio da

legalidade, cumpre desenvolver aqui os corolários que dele derivem. Efectivamente, a

conformação constitucional mais explícita do direito penal deriva precisamente do princípio

da legalidade, no Estado de Direito. Da leitura conjugada da CRP com a lei penal resulta o

seguinte:

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

 Só a lei é fonte de direito penal: reserva relativa da AR [art. 165º-1 c) CRP].

o Exigência de lei formal: lei da AR ou por ela autorizada mediante LAL.

 O conteúdo das normas penais exige um elevado grau de determinação na

descrição das condutas e nas consequências previstas [art. 29º-1 e 3 CRP].

 Proíbe-se a analogia e, eventualmente, a interpretação extensiva de normas

incriminadoras [art. 29º-1 e 3 CRP e 1º-3].

 Proibição da retroactividade das normas penais [art. 29º-1 e 3 CRP e 1º-1].

 Princípio da retroactividade das leis penais de conteúdo mais favorável [art.

29º-4 CRP e 2º].

Cumpre reafirmar as principais consequências do princípio da legalidade:

 Nullum crimen, nulla poena sine lege stricta: reserva de lei

 Nullum crimen, nulla poena sine lege certa: princípio da tipicidade

 Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia: proibição da retroactividade

 Nulla poena sine crimen: princípio da conexão

Analisaremos cada um destes corolários separadamente.

§3: RESERVA DE LEI. Nullum crimen, nulla poena sine lege stricta: subordina o direito

pena à lei escrita, formal [no sistema continental]. As razoes que a ditam residem na

segurança jurídica e no princípio democrático [art. 165º-1 c) CRP]. Uma leitura literal deste

preceito levar-nos-ia a concluir que só abrange, em rigor, criminalização e agravação, e não

já a descriminalização ou a atenuação da responsabilidade, que constituiriam matéria

concorrencial do Governo e da AR. Assim não o é.

Cumpre estabelecer a seguinte distinção:

 Normas penais positivas: normas incriminadoras que geram ou agravam a

responsabilidade.

 Normas penais negativas: normas que determinam a exclusão ou atenuação da

responsabilidade

Como vimos, a reserva de lei impõe que pelo menos as normas penais que definem

“crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos”, diz-se [art. 165º-1 c)

CRP], sejam aprovadas pela AR ou pelo Gov, ao abrigo de LAL. O que dizer das normas que:

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

 Agravem a responsabilidade [ainda normas penais positivas]?

 Atenuam ou excluem essa responsabilidade [já no âmbito das normas penais

negativas]?

No primeiro caso, por definirem ainda o facto criminoso em concreto, considera-se

que as normas que agravam a responsabilidade estão abrangidas pela previsão legal em

questão, por razões de segurança jurídica e do princípio democrático. Inclui:

 Circunstâncias agravantes modificativas [nova medida legal da pena]

 Circunstâncias agravantes simples [nova medida concreta da pena]

No segundo caso, poder-se-ia dizer simplesmente que não estão submetidas à reserva

de lei por não afectarem as expectativas de segurança e a liberdade individual dos

destinatários das normas penais. Em sentido diverso, poder-se-ia afirmar que as

circunstâncias eximentes ou atenuantes da responsabilidade podem alterar a delimitação dos

direitos dos cidadãos entre si, conferindo uma maior liberdade na permissão de certas

condutas que, correlativamente, diminui a liberdade de todos que se lhe oponham. Aqui, a

abordagem deve ser mais cautelosa:

 Quando, das circunstâncias eximentes da responsabilidade, se permita uma

conduta em geral proibida, essa excepção afecta as expectativas gerais e

diminui a segurança e a liberdade dos cidadãos [vg alargamento das situações

em que as escutas telefónicas são permitidas]. Onde a analogia não é

proibida não deverá valer a reserva de lei. A reserva de lei é desnecessária.

 Quanto às circunstâncias atenuantes da responsabilidade [art. 72º] também a

reserva de lei é desnecessária.

 Sendo desnecessária a reserva de lei, pode o Gov, nesses casos, legislar

mediante DL, ainda que sem LAL da AR, segundo FERNANDA PALMA.

Conclui-se: o TC já se pronunciou [Ac. 173/85] sobre a abrangência do art. 165º-1 c)

CRP. A competência da AR exerce-se quer pela positiva, quer pela negativa.

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

§4: TIPICIDADE. Nullum crimen, nulla poena sine lege certa: consequência directa da

reserva de lei penal, que origina uma especial conformação da técnica legislativa e da

interpretação, de modo a permitir que as normas penais se apliquem estritamente de acordo

com a sua definição legislativa [art. 29º-1 e 3 CRP e 1º-3]. Daí que se diga que as normas

penais incriminadoras estão condicionadas pelo princípio da determinação: todos os

pressupostos da incriminação e da responsabilidade penal têm de estar descritos na lei, sendo

inadmissíveis as leis penais em branco [leis que remetem para outras na descrição da conduta

a punir – cominam uma pena para comportamentos que não descrevem, alcançando-se essa

conclusão através de uma remissão da norma penal para leis, regulamentos ou actos

administrativos]. Subjacente está uma ideia de previsibilidade das condutas com dignidade

penal, que bem se compreende.

Este princípio implica que as normas contenham descrições de figuras ou de tipos:

imagens sociais que prefigurem com exactidão a conduta proibida e a sanção respectiva.

Conclui-se: o ilícito criminal desmembra-se em várias figuras, os tipos legais de crime.

Nenhum comportamento humano pode ser considerado criminoso se não corresponder a um

tipo legal de crime, descrito com precisão por um preceito legal. A tipicidade resulta, assim,

da exigência de adequação do facto a um tipo legal de crime.

Não se pense, contudo, que o juiz é um autómato que se limita a subsumir a norma ao

caso real: o processo de aplicação do direito pauta-se pela comparação, analogia, entre a

imagem legal e o caso em apreço. Repudia-se, assim, a concepção iluminista do princípio da

separação de poderes enquanto limite a qualquer processo de interpretação jurídica

[MONTESQUIEU]. Praticamente todos os conceitos legais são susceptíveis e carentes de

interpretação. O brocardo in claris non fit interpretatio considera-se hoje ultrapassado.

No crime de envenenamento, vg, deverão caber todas as substâncias que surtam o

mesmo efeito sobre o organismo humano, ainda que não tóxicas: como ministrar doses

elevadas de açúcar em doentes diabéticos [por interpretação extensiva].

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

O art. 1º-3 proíbe expressamente a analogia quanto às normas de que resulta:

 A qualificação de um facto como crime

 A definição de um estado de perigosidade

 A determinação da pena ou da medida de segurança

A analogia implica, sempre, a criação de uma norma pelo intérprete. Aqui, centremo-

nos na analogia legis [aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não regulado pela

lei através da semelhança substancial com os casos regulados], e não iuris.

Estão, assim, excluídas desta proibição as normas penais que excluam a

responsabilidade penal [causas de justificação/exclusão ou atenuação da culpa], sempre que

o resultado seja o do alargamento do seu campo de incidência. Coerentemente, não há

reserva de lei nesses casos. Diferentemente, para FIGUEIREDO DIAS esta proibição vale

também para certas normas da parte geral do Código que constituam alargamentos da

punibilidade de comportamentos previstos como crime na parte especial [matéria de

tentativa, art. 22º-2 e comparticipação, art. 26º].

O fundamento da proibição da analogia contra reum/in malem partem [agravamento

da responsabilidade do agente] é, uma vez mais, a reserva de competência da AR [art. 165º-

1c) CRP] na formulação de normas incriminadoras: a selecção da conduta incriminada é uma

decisão legislativa inimitável pelo julgador através do recurso à analogia. A proibição funda-

se, assim, na segurança jurídica.

Não se confunda, porém, a proibição da analogia com a interpretação desconforme

com a CRP, ou com a proibição de raciocínios analógicos na aplicação da lei penal: cumpre

reter a noção de interpretação extensiva.

 Interpretação extensiva: a letra da lei abrange menos do que o pensamento

do legislador possibilita – o sentido não foi sido expressamente previsto

porque o legislador se exprimiu imperfeitamente.

Esta noção assenta, todavia, numa perspectiva da interpretação enquanto subsunção

[KAUFMANN]: pressupõe a existência prévia de um sentido literal que se lhe impõe. Por outro

lado, fundando-se a proibição da analogia no imperativo da segurança jurídica, o que dizer da

interpretação jurídica que ofenda essa segurança jurídica, englobando um entendimento

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

juridicamente inaceitável da letra da lei? Conclui-se: a solução não deve pautar-se por estas

categorias tradicionais.

Fundemo-nos em razões históricas: o art. 1º-3 não proíbe expressamente a

interpretação extensiva, diferentemente do Código Penal de 1852. CAVALEIRO DE FERREIRA

conclui, com base nesta premissa, pela possibilidade de interpretação extensiva de normas

incriminadoras, com o Código actual.

Por seu lado, FERNANDA PALMA considera inaceitável que, mediante um argumento a

contrario sensu, se conclua pela permissão da interpretação extensiva pela proibição legal da

analogia in malem partem. Este raciocínio, a proceder, seria coerente relativamente à

permissão da analogia in bonam partem, tão-só. A proibição da interpretação extensiva só

pode ser retirada do art. em causa por analogia com a proibição da própria analogia: ora

sabemos que tal norma é excepcional, encontrando-se, assim, a analogia vedada [art. 11º

CC]: como ultrapassar esta dificuldade sem redundarmos em incoerência sistemática? Conclui-

se: não se pode considerar proibida toda e qualquer interpretação extensiva, no direito

penal, nem é a interpretação extensiva necessariamente proibida ou permitida.

Outros consideram a interpretação extensiva inconstitucional [SOUSA BRITO], por

violação da segurança jurídica e da legalidade.

Já CASTANHEIRA NEVES, subjectivista/normativista, nega que haja sensível diferença

entre o que seja o sentido possível e o mínimo de correspondência legal [não é logicamente

possível, nem metodologicamente legítimo, distinguir entre interpretação e analogia, enfim]:

para o autor, as ideias jurídicas não são moldadas pelas palavras, mas meramente indiciadas

por estas. Propõe, assim, quatro condições de validade como critério distintivo entre a

interpretação proibida e a permitida, em direito penal. Será permitida a interpretação que:

 Caiba no sentido logicamente possível das palavras da lei, secundum legem.

 Revele os valores jurídicos que a lei pretende atingir, mediante os tipos legais

previstos [determinação dogmática dos fins].

 Possa ser generalizada relativamente a outros casos sem prejuízo para a

coerência do sistema [adequação sistemática].

 Seja compatível com a unidade do direito conforme definida pela

jurisprudência das instâncias superiores [STJ]: garantia institucional.

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

A crítica apontada a esta concepção, por FERNANDA PALMA, reside na atribuição da

definição dos critérios a instâncias não democráticas: os tribunais, não controlados

directamente pelos cidadãos. Assim, a unidade do direito atribuído ao STJ deve, antes, sê-lo

em relação ao TC, mediante um juízo de constitucionalidade. Ainda que não concorde

inteiramente com o modelo subjectivista/normativista de CASTANHEIRA NEVES, FERNANDA

PALMA não aceita, todavia, o positivismo/subsuntivo de KAUFMANN na sua totalidade: não

prescinde, tão-só, da relevância do texto jurídico e do valor comunicativo de garantia que o

mesmo confere. O texto é critério jurídico inultrapassável: o mínimo de correspondência

verbal, diz-se. As palavras são o limite do mundo. Subjaz, aqui, a teoria da significação

semântico-formal segundo a qual a linguagem vale independentemente da intenção do

legislador.

Para FIGUEIREDO DIAS, do texto legal devemos retirar um quadro de significações

comuns atribuídos às palavras, dentro do qual o aplicador do direito se pode mover sem

ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Ultrapassada está a querela hermenêutica

entre interpretação subjectivista e objectivista. Afasta-se, assim, do entendimento de

CASTANHEIRA NEVES, que não distingue a interpretação da analogia: existem processos

hermenêuticos cuja conclusão se mantém no quadro de significados supra e processos cuja

conclusão o ultrapassa.

A interpretação extensiva é possível quando, do texto legal, se possa retirar um

sentido comummente aceite como tal, por todos [pelo homem médio, enfim]. O sentido a

retirar tem que ser perceptível e comunicacional, sustentável pela linguagem social. Para

MEZGER, a interpretação deve ser feita na perspectiva do leigo.

Quanto às normas permissivas já a analogia não é proibida necessariamente. Tais

normas não são descrições típicas das condutas permitidas, mas tão-só critérios gerais de

solução de conflitos de direitos. Neste campo a analogia iuris é permitida, mesmo que se

ultrapasse o sentido possível do texto legal, excepto quando a norma permissiva seja

excepcional [CAVALEIRO DE FERREIRA].

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

CAPÍTULO IV: APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO E NO ESPAÇO

Aplicação da Lei Penal no Tempo

§1: NÃO RETROACTIVIDADE. Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia art. 29º-1

e 3 CRP e 1º-1]: princípio da não retroactividade das normas penais que criem ou agravem a

responsabilidade penal [proibição de retroactividade in malem partem], fundamentado nos

princípios da culpa e da segurança jurídica. Assim se garante que o exercício do poder

punitivo seja exercido de acordo com critérios e limites antecipadamente conhecidos e

inalteráveis por interesses particulares. Proíbe-se a retroactividade:

 Incriminações

 Agravações da responsabilidade criminal

 Penas

 Pressupostos das medidas de segurança

 Medidas de segurança

 Normas processuais que afectem directamente direitos, liberdades e garantias

Cumpre determinar quando se considera o facto praticado [art. 2º-1], para efeitos de

proibição da retroactividade [tempus delicti]: refere-se ao momento da efectiva prática da

acção criminosa ou ao momento em que se produziria a acção, em caso de omissão [art. 3º].

Decisiva é a conduta [o momento em que o agente actua ou, no caso da omissão, em que

devia ter actuado], não o resultado. Haverá retroactividade quando a lei em causa for

anterior à produção do resultado típico, mas posterior à prática da acção. Vale para todos os

comparticipantes no facto criminoso [autores ou cúmplices, art. 26º e 27º].

Assim, considera-se não existir qualquer retroactividade no caso de crimes

permanentes ou duradouros [vg sequestro, art. 158º] em que a lei posterior que agrave a

incriminação entre em vigor antes do término da consumação desse crime: uma parte do

crime ocorre no domínio da lei antiga, enquanto que outra parte ocorre no domínio da lei

nova. Nesse caso, o agente não será punido por todos os crimes que pratique

cumulativamente durante esse período de tempo, mas tão-só pelo crime mais grave,

aplicando-se a lei em vigor durante o facto mais grave. O mesmo se diga em relação a crimes

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

continuados [art. 30º-2]. Conclui-se: FIGUEIREDO DIAS considera que a lei posterior que

agrave o regime legal só pode valer para aqueles elementos típicos do comportamento

verificados após a modificação legislativa.

Hoje a proibição da retroactividade in pejus engloba também os pressupostos das

medidas de segurança [ao contrário da solução dos CP alemão e italiano], embora tal já tenha

sido negado por EDUARDO CORREIA, no passado: entendia-se que não haveria retroactividade

se a lei que modificasse uma medida de segurança fosse contemporânea de um estado de

perigosidade já anterior, necessariamente duradouro. Esta concepção seria coerente se a

proibição da retroactividade se baseasse na culpa [recorde-se que os inimputáveis não são

capazes de culpa: tão-só de perigosidade]. Não procede, todavia: veja-se o disposto no art.

29º-1 e 3 CRP e 1º-2. Fundamenta-se, sim, na segurança jurídica, como supra já indiciado.

Sublinhe-se que também relativamente às medidas de segurança se fazem sentir exigências

de protecção de direitos, liberdades e garantias das pessoas atingidas.

Neste âmbito, refira-se a posição de MARIA JOÃO ANTUNES que, através da

denominada doutrina diferenciadora, propõe que:

 Para o pressuposto “prática de facto ilícito típico” vale a lei vigente no

momento da prática do facto. Se uma lei posterior menos favorável entrar

em vigor, após verificação deste pressuposto, proíbe-se a retroactividade in

pejus.

 Para o pressuposto “fundado receio de que o agente cometa outros factos

ilícitos típicos” poderá valer a lei vigente no momento da formulação deste

juízo de perigosidade: a medida de segurança a aplicar, em concreto,

determina-se pela lei vigente neste momento [no momento do julgamento].

Se, por exemplo, o internamento de um inimputável por anomalia psíquica

for aumentado de 3 para 5 anos [art. 91º-2], antes da execução da pena,

entendem MARIA JOÃO ANTUNES e FIGUEIREDO DIAS que a nova lei

prossegue melhor o fim da medida de segurança, por ser mais recente, ainda

que in pejus. Para efeitos deste pressuposto, já não colhe a proibição da

retroactividade in pejus.

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

 FERNANDA PALMA defende a posição inversa: sendo certo que é no

julgamento que se avalia a perigosidade do agente, é o pressuposto “prática

de facto ilícito típico” que, aqui, releva. Subjaz uma ideia de prevenção

especial e de protecção da sociedade.

Em processo penal vigora a regra da aplicabilidade imediata da nova lei processual

penal [art. 5º-1 CPP], ainda que não englobe as normas que se referem a causas de extinção

do procedimento criminal [vg prazos prescricionais] ou as leis que transformem um crime

particular em semipúblico ou público, ou um crime público em semipúblico.

Pergunta-se se está a jurisprudência também submetida à proibição da

retroactividade. Isto é, deverá admitir-se que uma corrente jurisprudencial estabilizada possa

ser alterada contra o agente? FIGUEIREDO DIAS considera que a aplicação da nova corrente

jurisprudencial que passe a determinar a punição de um facto antes considerado irrelevante,

vg, não constitui uma violação proprio sensu do princípio da legalidade, embora, ainda assim,

possa frustrar as expectativas do agente quanto à irrelevância penal da conduta.

§2: LEI MAIS FAVORÁVEL. Como limite à proibição da retroactividade, admite-se a

aplicação retroactiva da lei penal mais favorável [retroactividade in melius ou lex melior diz-

se], nos termos dos arts. 29º-4 CRP e 2º-4. Fundamenta-se na igualdade e na necessidade da

pena, surgindo autonomamente como verdadeiro princípio, e não uma mera excepção ao

princípio da legalidade. Aqui cumpre distinguir realidades diversas:

 Lei posterior desincriminadora/de descriminalização [art. 2º-2]: é natural que

tenha como consequência a extinção da pena e do procedimento criminal sem

quaisquer limitações e de modo imediato. Mesmo após trânsito em julgado,

na medida em que onde se lê “leis penais de conteúdo mais favorável ao

arguido” [art. 29º-4 CRP], “arguido” não é sinónimo de “caso julgado”.

Persiste a qualidade de arguido se o processo for reactivado [GOMES

CANOTILHO e VITAL MOREIRA]. Conclui-se: aplica-se mesmo quando a

sentença condenatória já tenha transitado em julgado.

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

 Lei posterior que converta o crime em contra-ordenação [art. 2º-2 ou 4]:

substitui-se a pena pela coima correspondente, sendo incorrecto defender-se

a extinção em absoluto da responsabilidade jurídica [vazio legal e absolvição

do arguido], segundo FERNANDA PALMA. FIGUEIREDO DIAS concorda com

esta orientação: a aplicação da contra-ordenação é, afinal, concretamente

mais favorável para o agente.

 Lei posterior atenuante da responsabilidade penal [art. 2º-4]: aqui, o

“trânsito em julgado” é um limite expresso à retroactividade in melius, por

razões de segurança e de estabilidade das instituições penais. Ressalvam-se os

casos julgados. Para FIGUEIREDO DIAS é erróneo considerar-se que esta

restrição diminui o conteúdo essencial da norma em causa. Coerentemente, o

novo regime processual [art. 371º-A CPP – manda reabrir o processo, a pedido

do condenado] consagra a possibilidade de o condenado requerer a reabertura

da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime, concretamente mais

favorável, após trânsito em julgado, mas antes de ter cessado a execução da

pena: cinge-se aos casos de execução de uma pena principal, e não já da

pena de substituição. Excepções à ressalva de casos julgados:

o art. 2º-2

o art. 2º-4, 2ª parte

o art. 371º-A CPP

Exemplifiquemos: A pratica um crime ao abrigo de uma moldura penal de 3 a 10 anos.

Com a entrada em vigor de nova lei, a moldura penal é alterada para de 1 a 5 anos,

mais favorável, enfim. A já cumpriu 2 dos 3 anos que lhe foram sentenciados, após

trânsito em julgado. Falta-lhe um ano para cumprir a totalidade da pena.

 Se não tivesse sido julgado ou se estivesse a ser julgado – aplicava-

se a nova lei, mais favorável

 Como a sentença já transitou em julgado, aplica-se a lei anterior

salvo:

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

o art. 2º-2: seria libertado

o art. 2º-4, 2ª parte: não é o caso

o art. 371º-A CPP: reabertura do processo, a pedido do

condenado

 Norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral, pelo TC [art.

282º CRP]: o TC deve reabrir o caso julgado quando a lei inconstitucional seja

menos favorável do que a que anteriormente vigorava [art. 282º-3, 2ª parte].

Se o TC declarar a inconstitucionalidade de uma lei mais favorável:

o Caso julgado: art. 282º-3, 1ª parte

o Processo pendente: considera FERNANDA PALMA que a norma

anterior não é repristinada e não deve, assim, ser aplicada;

subjacente está a ideia de tutela das expectativas e da confiança dos

particulares que confiaram na validade da lei nova, mais favorável e

promulgada pelo PR – sugere-se a sobreposição dos arts 2º e 29º-4

CRP, que se sobrepõem ao art. 282º CRP a este respeito; outros

autores resolvem a questão através da inexistência de

responsabilidade, já que não há culpa desses particulares [art. 17º].

Moldura penal antiga: 1-10 anos [10+1=11 /2= 5,5; 5 anos e 6 meses].

Moldura penal posterior: 2-8 anos [2+8=10 /2= 5] – MAIS FAVORÁVEL.

Ou, por exemplo:

Moldura penal antiga: 3-12 anos [3+12=15 /2= 7,5; 7 anos e seis meses].

Moldura penal posterior: 2-10 anos com agravamento de 1/3:

2 anos = 24 meses. 1/3 de 2 anos = 8 meses. 2 anos + 1/3 = 2 anos e 8 meses.

10 anos = 120 meses. 1/3 de 10 anos = 40 meses. 10 anos + 1/3 = 160 meses = 13 anos

e 4 meses.

2 anos + 13 anos = 15 anos

8 meses + 4 meses = 12 meses, 1 ano. 15 + 1 = 16 anos /2 = 8 anos.

Conclusão: a moldura penal antiga é concretamente mais favorável.

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

§3: SUCESSÃO NO TEMPO. Não haverá uma verdadeira sucessão de leis no tempo se:

 O comportamento for parcialmente reproduzido em lei posterior.

 Visasse a protecção de bens jurídicos diversos da lei anterior.

Em relação ao direito de queixa, justifica-se a aplicação imediata da lei nova e a

protecção do exercício do direito em questão.

§4: LEIS INTERMÉDIAS E TEMPORÁRIAS. A retroactividade in melius vale ainda

relativamente às leis intermédias: leis que entraram em vigor posteriormente à prática do

acto, mas já não vigoravam ao tempo da apreciação judicial deste [art. 29º-4 CRP e 2º-4, 1ª

parte]. Com a vigência da lei mais favorável, intermédia, o agente ganhou uma posição

jurídica que deve ficar a coberto da proibição da retroactividade da lei mais grave posterior.

Uma excepção ao princípio da aplicação da lei mais favorável está consagrada no art.

2º-3 para as chamadas leis temporárias ou de emergência: aquelas que são, a priori, editadas

pelo legislador para um tempo determinado [vg duração de um estado de sítio]. A lei cessa

automaticamente a sua vigência uma vez decorrido esse período. Não há aqui expectativas a

tutelar, na medida em que a alteração preconizada é meramente uma alteração das

circunstâncias fácticas, e não já da concepção legislativa proprio sensu.

Aplicação da Lei Penal no Espaço

§1: TERRITORIALIDADE. Um direito penal nacionalista seria disfuncional e

incompatível com os princípios do direito penal internacional [aplicação da lei penal no

espaço] e com a dignidade da pessoa humana.

Assim, o princípio geral da aplicação do direito penal português no espaço é o

princípio da territorialidade da prática do facto [art. 4º], independentemente da

nacionalidade do agente, salvo Convenção internacional em contrário:

 Harmonia internacional

 Não ingerência em assuntos de outros Estados

 Razões processuais [a sede do delito, locus delicti]

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

 Razões de política criminal [apaziguamento da comunidade abalada pelo

crime]

A par deste princípio, outros encontram-se igualmente consagrados, a título

meramente acessório [princípios complementares]:

 Nacionalidade

 Defesa dos interesses nacionais

 Universalidade

 Administração supletiva da justiça penal

Cada qual será explicitado em momento oportuno, infra §2ss.

Território português é o espaço definido como tal pela CRP [art. 5º-1 e 2 CRP]: inclui

o espaço terrestre, marítimo e aéreo, os navios e as aeronaves. Nestes termos, o denominado

critério do pavilhão [art. 4º b] permite, através de uma ficção de território, o alargamento do

princípio da territorialidade aos factos cometidos quer em território português, quer em

território estrangeiro, a bordo de navios ou de aeronaves portuguesas [maxime em porto ou

aeroporto estrangeiro]. FERNANDA PALMA considera que este critério resolve apenas

conflitos negativos de competência.

O art. 4º carece, todavia, de articulação com o disposto no art. 7º. Segundo a teoria

da ubiquidade, basta que um dos dois elementos objectivos [acção, total ou parcial, e sob

qualquer forma de comparticipação, ou resultado típico] se tenha verificado em território

português [art. 7º], numa solução mista ou plurilateral aqui consagrada. Para o efeito basta a

tentativa inacabada, mas não já a prática de actos preparatórios não puníveis, excepto

aqueles realizados num contexto de comparticipação criminosa [vg na mera cumplicidade,

para FIGUEIREDO DIAS], art. 21º. O mesmo autor considera que a lei portuguesa deve ser

aplicada quer a factos praticados no estrangeiro, cuja comparticipação se verificou

previamente em Portugal, quer na situação inversa.

No caso já mencionado dos crimes continuados [art. 30º-2], basta que um dos factos

se encontre abrangido pelo princípio da territorialidade. Neste tipo de crimes, uma

pluralidade real de factos, que podem ser cometidos em países diferentes, é juridicamente

considerada uma mesma unidade normativa.

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

Relativamente a delitos itinerantes ou de trânsito, cujos factos contactam com

diversas ordens jurídicas, entende FIGUEIREDO DIAS que qualquer uma dessas ordens

jurídicas é criminalmente competente para os apreciar.

Considerando que o perigo é também elemento integrante da factualidade típica,

considera-se que cabe no art. 7º a mera possibilidade da ocorrência do resultado no nosso

território, quando toda a acção criminosa se desenrola no estrangeiro. A mera tentativa é um

crime de perigo concreto, e estes crimes constituem crimes de resultado. O simples perigo

configura já uma afronta à ordem jurídica, pondo em causa a segurança dos bens e a

confiança no direito.

Se, a par da questão da aplicação do princípio da territorialidade, se suscitar um

problema de sucessão de leis penais no tempo, entende-se que se aplica, ainda assim, a lei

portuguesa [art. 7º]. Exemplifiquemos: o facto é praticado em Portugal, onde o resultado será

igualmente produzido; entre prática e resultado, entra em vigor uma lei que passa a puni-lo;

a lei portuguesa é de aplicar, embora da leitura dos arts. 2º-1 e 29º-1 CRP se conclua que o

facto em questão não possa ser punido.

Em suma, a revisão do Código de 1998 aditou ao art. 7º duas conexões:

 Local onde se produziu o resultado não compreendido no tipo de crime

[crimes que atingem a consumação típica antes de verificada a lesão, ou que

se consumam no estádio da tentativa, vg crimes de atentado ou de

empreendimento: crimes tipicamente formais, mas substancialmente

materiais]. Aqui, há lugar à tutela antecipada do bem jurídico em questão.

 Local onde o resultado deveria ocorrer segundo representação do agente, mas

onde não chegou efectivamente a praticar-se [casos em que a infracção

configura já uma tentativa, vg carta armadilhada destinada a explodir em

Portugal, mas que é entretanto desactivada no estrangeiro]. Não deixa de ser

curioso considerar-se como local da prática do facto o lugar onde este não

chegou efectivamente a praticar-se.

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

A é agredido por B em Portugal mas falece em Espanha, em consequência dessa

agressão. Se Portugal aceitasse o critério do resultado e Espanha o da conduta, B não poderia

ser punido por homicídio, dado que nenhuma das leis concorrentes pode ser aplicada.

§2: NACIONALIDADE. Como se disse supra §1, o princípio da nacionalidade é um dos

princípios complementares ou acessórios do princípio-base da territorialidade. Uma aplicação

do último a todos os casos poderia abrir lacunas de punibilidade indesejáveis para uma

política criminal eficiente. Nestes termos, considera-se que a lei portuguesa se aplica [art. 5º-

1 e]:

 Aos factos praticados fora de Portugal:

o Por portugueses – princípio da nacionalidade activa

ou

o Por estrangeiros contra portugueses – princípio da nacionalidade

passiva

Historicamente, este princípio acessório só era configurado da perspectiva activa,

com base na máxima da não extradição de cidadãos nacionais, vinculando-se os cidadãos

portugueses à soberania punitiva do seu próprio Estado. Entendia-se que o Estado nacional ou

extraditava o agente, ou não extraditava e punia-o. Naturalmente, esta teoria não é de

aplicar à vertente passiva do mesmo princípio.

A nacionalidade passiva justifica-se com base na ideia de protecção dos cidadãos

nacionais, maxime dos interesses nacionais, em termos que analisaremos infra §3. É dever do

Estado português a concessão de protecção aos bens jurídicos de que os cidadãos portugueses

sejam titulares, ainda que no estrangeiro.

O âmbito de influência do poder punitivo do Estado português é, todavia, limitado

através da necessária verificação cumulativa dos seguintes requisitos legais, a aplicar quer à

nacionalidade activa, quer à nacionalidade passiva [art. 5º-1 e) I, II e III]:

 Agente encontrado em Portugal: princípio da não extradição de nacionais.

o Só o Estado português pode punir estes agentes, por razões:

 Materiais [presença em território nacional]

 Jurídico-constitucionais [art. 33º CRP]

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

 Crime também punível pela legislação do lugar da prática do mesmo, salvo

quando nesse lugar não se exercer poder punitivo.

o Condição materialmente mais importante do princípio da

nacionalidade, que o converte em princípio subsidiário.

o Não se deve punir o agente que pratica um facto que, no lugar da

prática, é penalmente irrelevante [vg crime em alto mar]: não há

qualquer exigência preventiva; a concepção retributiva do crime,

entendido enquanto mal absoluto e sem localização espacial, é de

afastar [cfr. supra, fins das penas].

 Crime que admite extradição e esta não possa ser concedida.

o Reafirmação de que o princípio da territorialidade deve ser o

princípio-base de aplicação da lei penal no espaço.

o Se o agente for português [nacionalidade activa], a extradição só é

possível nos apertados limites do regime do art. 33º-3 CRP e da Lei

144/99 [LCJI]. A LC 1/97 [RC 1997] introduziu no nosso ordenamento

a possibilidade de extradição de nacionais, até então absolutamente

proibida pela CRP, face à Convenção de Extradição de 1996. O actual

art. 33º-3 CRP só permite a extradição de nacionais desde que

verificados os seguintes requisitos, cumulativamente:

 Reciprocidade de tratamento pelo Estado requerente

 Reciprocidade consagrada em Convenção internacional

 Terrorismo ou criminalidade internacional organizada

 Consagração de garantias de um processo justo e equitativo

pela ordem jurídica do Estado requerente

o “Crime que admita extradição” é qualquer um à excepção da

infracção de natureza política ou conexa, nos termos do art. 7º LCJI:

a própria lei retira a natureza política a crimes como o genocídio e a

outros crimes contra a Humanidade. Como compatibilizar com a

Convenção de Extradição de 1996, que exclui expressamente a

natureza política do crime como fundamento da recusa de extradição?

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

Considerando a prevalência das normas de Convenções internacionais,

o Estado português não pode recusar a extradição quando seja

requerida por um Estado-membro.

o Este requisito acautela as hipóteses em que a extradição não pode ser

concedida porque:

 Não fora requerida

 Fora pedida por motivos políticos [art. 33º-4 CRP]

 Corresponde a pena de morte e a pena de que resulte lesão

irreversível da integridade física [art. 33º-6 CRP] – proibição

que cessa se o Estado requerente comutar essas penas ou

aceitar a conversão das mesmas por um tribunal português,

segundo a lei portuguesa [art. 6º-2 a) e c) LCJI].

 Corresponde a pena ou medida de segurança privativa ou

restritiva da liberdade de carácter perpétuo ou de duração

indefinida [art. 33º-4 CRP] – proibição que cessa se existirem

condições de reciprocidade estabelecidas em Convenção

internacional e se o Estado requerente der garantias de que

tal pena ou medida não será aplicada ou executada [art. 6º-2

b) LCJI]; consagração que resulta da RC 1997, obedecendo

esta matéria a um regime próprio dos casos supra.

A ideia que subjaz à verificação destes requisitos é o respeito pelas expectativas dos

agentes e a igualdade entre os agentes e estrangeiros.

A competência extra-territorial da lei portuguesa em virtude da nacionalidade, activa

ou passiva, só deve exercer-se na ausência de um pedido de entrega em virtude de mandato

de detenção europeu. Esta regra não é absolutamente rígida, admitindo-se a recusa do

pedido de entrega com fundamento na pendência, em Portugal, de um procedimento penal,

pelos mesmos factos, contra a pessoa procurada [vg quando o procedimento penal se

encontre já em fase de julgamento ou mesmo de recurso]. Aqui, o conceito de extradição

engloba, por interpretação extensiva, a entrega aos TPI e a que resulta de um mandado de

detenção europeu.

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

Uma extensão do poder punitivo do Estado português, através de um alargamento do

princípio da nacionalidade, encontra-se patente no disposto no art. 5º-1 b): a lei penal

portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional

 Contra portugueses, por portugueses:

o Que viverem habitualmente em Portugal ao tempo da prática do acto

o Que sejam encontrados em Portugal

Aqui, acautela-se a subtracção propositada dos agentes ao poder punitivo do próprio

Estado. O português que se dirige ao estrangeiro para, aí, cometer um facto lícito, mas ilícito

face ao ordenamento jurídico português, contra português, não deve ficar impune. Se a

extensão em causa não existisse, o agente que o fizesse adquiriria um verdadeiro “direito à

impunidade”, através de uma fraude à lei penal. Exemplifiquemos: vg a mulher que, outrora,

se dirigisse a uma clínica estrangeira para aí levar a cabo uma interrupção voluntária da

gravidez, ainda que lícita segundo a lex loci [lei estrangeira]. Face ao que foi exposto, não

cabe, aqui, assegurar expectativas nem proteger a igualdade entre agentes e estrangeiros.

Historicamente, este art. pretendia obstar à consumação de crimes como a bigamia ou o

aborto no estrangeiro.

Esta extensão justifica-se, segundo FIGUEIREDO DIAS, com base numa ideia de

fidelidade do agente e da vítima aos princípios fundamentais de uma comunidade a que

pertencem e onde o agente habitualmente vive, e não obstando a uma fraude à lei proprio

sensu [não constitui nenhuma fraude à lei, segundo o mesmo autor, a violência doméstica por

casal português em país estrangeiro, nem tem a mesma qualquer consagração legal].

§3: DEFESA DOS INTERESSES NACIONAIS. Este princípio complementar ou acessório

de aplicação da lei penal portuguesa no espaço, encontra consagração legal no art. 5º-1 a) e

parte da concepção de que o princípio da territorialidade não responde, de forma eficiente, a

lesões de bens jurídicos nacionais, exteriores ao território português: aqui, subjaz o poder

punitivo do Estado relativamente a factos dirigidos contra os seus interesses nacionais

específicos, independentemente do lugar ou da nacionalidade do agente.

Compreende-se que a maior parte das ordens jurídicas estrangeiras não consagre

normas que obstem à lesão de bens jurídicos próprios de outro país: vg crimes contra o

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Estado. FIGUEIREDO DIAS fundamenta esta extensão do ius puniendi nacional na relação que

se estabelece entre o agente e a ordem jurídico-penal portuguesa, quando o primeiro dirige o

seu facto contra interesses especificamente portugueses. Para mais, o Estado em cujo

território o crime foi praticado pode nem ter qualquer vontade de perseguir este tipo de

crimes, maxime se os apoiar, explicita ou implicitamente.

O princípio de protecção real dos bens jurídicos em questão redunda na enumeração

taxativa dos seguintes tipos de factos:

 Burla informática

 Falsificação de moeda

 Crimes contra a independência e a integridade nacional

 Crimes contra a capacidade e a defesa nacionais

 Crimes contra a realização do Estado de direito e crimes eleitorais

Sublinhe-se que o princípio de protecção real prefere ao princípio da personalidade

activa: sempre que um dos crimes supra haja sido praticado por um português, não se torna

necessária a verificação dos requisitos supra, concluindo-se pela aplicação da lei penal

portuguesa.

§4: UNIVERSALIDADE. O princípio complementar ou acessório da universalidade [art.

5º-1 c] respeita à necessidade de cooperação do Estado português na punição de todos os

factos contra os quais se deva lutar a nível mundial ou que internacionalmente tenha

assumido a obrigação de punir.

Atenta-se a factos cometidos no estrangeiro, independentemente da nacionalidade do

agente, contra bens jurídicos carecidos de protecção internacional. Não se trata,

naturalmente, de facultar a cada Estado a intervenção penal relativamente a todo e qualquer

facto considerado crime pela sua lei interna, mas tão-só relativamente aos bens jurídicos a

que seja reconhecido carácter supra-nacional [bens da humanidade de valor universal].

Sublinhe-se a importância, neste âmbito, de TPI [vg Jugoslávia e Rwanda].

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

Eis o elenco legal:

 Crimes contra a liberdade [escravidão, rapto, tráfico de pessoas]

 Crimes contra a autodeterminação sexual [abuso sexual de crianças, abuso

sexual de menores dependentes, lenocínio e tráfico de menores]

 Crimes contra a paz [aliciamento de forças armadas]

Este elenco não inclui guerra contra civis nem tortura.

A aplicação da lei penal portuguesa, nestes casos, está submetida a uma dupla

condição:

 O agente encontra-se em Portugal

 O agente não pode ser extraditado:

o Casos em que a extradição não foi sequer requerida.

ou

o Casos em que a extradição foi requerida, mas não pode ser

concedida, por alguma das razões já mencionadas [cfr. supra §2]: esta

interpretação, mais ampla, impõe-se pela teleologia deste princípio;

para mais, a introdução do art. 5º-1 f) reforça este entendimento.

Outra fonte deste princípio é também o direito internacional convencional: vejam-se

as Convenções respeitantes ao terrorismo, pirataria aérea, tráfico de droga ou falsificação de

moeda [art. 5º-2].

§5: ADMINISTRAÇÃO SUPLETIVA DA JUSTIÇA PENAL. A Revisão CP de 1998 introduziu

o actual art. 5º-1 f) que veio colmatar uma lacuna do sistema de aplicação da lei penal no

espaço: um cidadão estrangeiro, tendo praticado um crime grave no estrangeiro [punível por

pena de morte, vg], poderia buscar refúgio em Portugal, onde não poderia ser julgado nem

extraditado, por ausência de conexão relevante com a lei portuguesa e porque a extradição

seria proibida face à gravidade da consequência jurídica imposta pelo país do delito,

respectivamente.

Recorde-se que em Portugal a pena de morte ou a pena privativa de liberdade

perpétua são constitucionalmente proibidas [art. 33º-4 CRP], pelo que a nossa ordem jurídica

não pode, por maioria de razão, extraditar um agente para uma ordem jurídica que as aplique

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

[cfr. supra §2]. Esta lacuna, até ter sido devidamente colmatada, fazia com que o nosso país

incorresse no risco de ser considerado um refúgio de criminosos estrangeiros.

Este não é, contrariamente aos princípios acessórios supra, um princípio de conexão

do poder punitivo do Estado nacional com o crime cometido, mas sim um princípio de

supletividade da actuação do juiz nacional em vez do juiz estrangeiro. As condições de

aplicação do mesmo são as seguintes:

 O agente seja encontrado em Portugal

 A sua extradição haja sido requerida

 O facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser concedida

Também aqui o conceito de extradição engloba, por interpretação extensiva, a

entrega aos TPI e a que resulta de um mandado de detenção europeu.

§6: RESTRIÇÕES À APLICAÇÃO DA LEI PORTUGUESA. O disposto no art. 6º-1

demonstra o carácter meramente complementar ou subsidiário dos princípios de aplicação

extra-territorial da lei penal portuguesa: em todos os casos supra mencionados, a aplicação

da lei portuguesa só terá lugar quando

 O agente não tiver sido julgado no país da prática do facto

 O agente se tiver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação

Trata-se do respeito do princípio jurídico-constitucional non bis in idem, segundo o

qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime [art. 29º-5

CRP], garantia que vale para todas as pessoas e todos os tribunais [inclusive estrangeiros].

Assim se previne a perseguição penal enquanto instrumento da arbitrariedade do poder

punitivo, utilizável renovadamente e sem limites. Confirma-se: o critério da territorialidade

deve constituir o princípio prioritário, enquanto que todos os outros são meramente

complementares [supletivos, aqui]. Previne-se a impunidade que poderia resultar de conflitos

negativos de jurisdição: o Estado português pune porque outro Estado não pôde fazê-lo.

O que dizer da aplicação deste princípio aos casos do princípio da defesa dos

interesses nacionais, na sua vertente de protecção real? Poder-se-ia defender que não deve

confiar-se a tribunais estrangeiros a apreciação de ofensas a interesses especificamente

nacionais. Todavia, o espírito da solidariedade internacional parte do pressuposto do bom

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Direito Penal I – Lara Geraldes, 3º-A @ FDL

fundamento da justiça estrangeira. Este argumento representaria uma inadmissível

desconfiança perante sentenças de tribunais estrangeiros, a afastar, prejudicando os esforços

de incrementação da cooperação judiciária internacional em matéria penal. Para mais,

acrescenta FIGUEIREDO DIAS que esta solução já se encontra consagrada desde o CP de 1886:

legalmente sedimentada, enfim.

Por seu lado, o princípio da aplicação da lei penal estrangeira mais favorável [art. 6º-

2] constitui outra restrição à aplicação da lei penal portuguesa no espaço: prova definitiva do

carácter subsidiário dos princípios de extra-territorialidade. O facto deve ser julgado pelos

tribunais portugueses segundo a lei do país em que tiver sido praticado sempre que esta seja

concretamente mais favorável ao delinquente. Aqui, assiste-se a uma verdadeira aplicação de

lei estrangeira pelo tribunal português. Conclui-se: a aplicação da lei portuguesa é

subsidiária.

Este regime não se aplica, contudo, aos crimes aos quais a lei portuguesa é aplicável

em nome do princípio da defesa dos interesses nacionais [arts 5º-1 a) e b) e 6º-3].

As dificuldades práticas podem, no entanto, suscitar-se no âmbito da assimilação das

sanções previstas pela aplicação da lei penal estrangeira: relembre-se que o problema não se

coloca relativamente à pena de morte, vg, já que a lei estrangeira que a admita não será lex

melior; o problema cinge-se, tão-só, aos limites inferiores da escala penal. O CP consagra um

leque de penas substitutivas da pena de prisão, embora não exista qualquer tábua de

conversão completa de penas estrangeiras em penas nacionais, como já foi sugerido.

O art. 6º-2, 2ª parte consagrou uma alternativa a este problema: cláusula geral de

conversão de pena estrangeira naquela que dela mais se aproxima.

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