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Representação Canônica
1.1 Introdução
Perspectiva microscópica
Os corpos sujeitos a experimentação são caracterizados por diversas pro-
priedades entre as quais encontram-se aquelas que denominamos proprieda-
des termodinâmicas. Essas propriedades são descritas por relações entre as
diversas grandezas termodinâmicas e, juntamente com as leis fundamentais
da termodinâmica, constituem uma teoria macroscópica da matéria. Por
outro lado, devemos levar em consideração que a matéria possui uma con-
stituição microscópica. Um pequeno diamante ou um fragmento de quartzo
são constituı́dos por um número enorme de átomos. O ar atmosférico con-
finado num balão, a água em ebulição dentro de uma chaleira assim como o
vapor d’água que dela emerge são compostos por inúmeras moléculas. É na-
tural, portanto, presumir que as propriedades termodinâmicas possam ser
explicadas e obtidas a partir da constituição microscópica dos corpos. Mais
precisamente, a partir das leis que regem o comportamento das unidades
constitutivas microscópicas.
Uma grandeza macroscópica como a pressão de um gás, por exemplo,
foi explicada por Bernoulli em termos microscópicos, ao admitir que um
gás é constituı́do por inúmeras partı́culas, que se movimentam de acordo
com as leis da mecânica e se chocam continuamente com as paredes do
recipiente. Essa explicação foi retomada por Clausius e aperfeiçoada por
Maxwell, que admitiu que as velocidades das partı́culas não são iguais mas
se repartem de acordo com a distribuição que leva seu nome. A distribuição
1
2 1 Representação Canônica
Distribuição de Maxwell
As velocidades de translação das moléculas de um sistema clássico, como
um gás, um lı́quido ou um sólido, que se encontra a uma temperatura T ,
se repartem de acordo com a distribuição de Maxwell. Se considerarmos
um componente cartesiano da velocidade, por exemplo o componente vx , a
densidade de probabilidades dessa variável é dada por
2
ρ(vx ) = Ae−βmvx /2 , (1.1)
Utilizando a fórmula
Z ∞ 1/2
−αx2 /2 2π
e dx = , (1.3)
−∞ α
1 1
mhvx2 i = kB T. (1.7)
2 2
4 1 Representação Canônica
é dada por r
3kB T
vr = , (1.15)
m
1.1 Introdução 5
0,3
0,2
ρv v
0,1
0
0 1 2 3
v/ v
Figura 1.1: Distribuição de Maxwell ρv relativa ao módulo da velocidade v, dada
pela equaçao (1.18), como função de v/v̄ em que v̄ é dada por (1.20).
m1 2 m2 2 3kB T
hv1 i = hv2 i = . (1.21)
2 2 2
Ou seja, a energia cinética se reparte igualmente entre os dois tipos de
moléculas, embora tenham massas distintas. Isso significa que as moléculas
de menor massa possuem velocidades maiores e aquelas de maior massa se
movem mais lentamente.
Distribuição de Gibbs
Com a finalidade de estabelecer a probabilidade de ocorrência de cada
estado do sistema, isto é, da distribuição de probabilidades dos estados,
imaginamos um sistema constituı́do por várias unidades constitutivas in-
teragentes confinadas numa região delimitada do espaço. Admitimos que o
sistema esteja sujeito às seguintes condições. As unidades constitutivas in-
teragem por meio de forças conservativas, o que permite a associação a cada
estado s do sistema a grandeza conservativa denominada energia Es . O sis-
tema está em contato com um reservatório térmico à temperatura T com o
qual troca energia. O sistema encontra-se em equı́brio termodinâmico com
o reservatório, o que significa que a temperatura do sistema é a mesma
temperatura do reservatório e que a energia do sistema flutua em torno de
um valor médio que permanece invariante no tempo. Nessas condições, ad-
mitimos como princı́pio fundamental que a probabilidade Ps de encontrar
o sistema no estado s depende de s apenas através de Es e é dada por
1 −βEs
Ps = e , (1.24)
Z
em que Z é uma constante de normalização e β = 1/kB T . Notar que o
estado s deve ser entendido, em geral, como um conjunto de variáveis, de
modo que Ps é , em geral, uma distribuição conjunta de probabilidades.
A distribuição (1.24) é denominada distribuição canônica de Gibbs e é
válida para sistemas cujos estados são discretizados. Entretanto, ela pode
ser estendida para sistemas cujos estados formam um contı́nuo, como ocorre
8 1 Representação Canônica
ou seja,
∂
U =− ln Z. (1.29)
∂β
Essa fórmula permite a determinação da energia média a partir da função
de partição Z.
De acordo com a teoria termodinâmica, a variação na energia interna
∆U de um sistema se deve não apenas ao trabalho realizado mas também
1.2 Distribuição de probabilidades 9
∂S X ∂Ps
= kB β Es . (1.33)
∂β s
∂β
Essa última expressão foi obtida utilizando a distribuição (1.24) e levando
em conta que
X ∂Ps ∂ X
= Ps = 0, (1.34)
s
∂β ∂β s
pois Ps está normalizado. Agora, basta tomar a razão entre (1.26) e (1.33)
para obter
∂U (∂U/∂β) 1
= = = T, (1.35)
∂S (∂S/∂β) kB β
que completa a demonstração de (1.30).
É preciso notar que a adição de qualquer constante na definição da
entropia dada por (1.31) não altera o resultado (1.30). Portanto, para
definir a entropia de forma univoca é preciso fazer uma escolha do valor
dessa constante. Antes disso, é necessário especificar o significado de estado
já que (1.31) contém uma soma sobre estados. Postulamos que estados
devem ser entendidos como estados quânticos, ou mais precisamente como
os autoestados do hamiltoniano quântico do sistema, e que a constante
deve ser ecolhida como sendo nula. Para sistemas clássicos, tomamos como
10 1 Representação Canônica
1
S= U + kB ln Z, (1.37)
T
em que utilizamos também a relação β = 1/kB T . Tendo em vista que a
energia livre de Helmholtz F está relacionada com a energia interna U por
meio de F = U − T S, segue-se que
F = −kB T ln Z, (1.38)
∂F
S=− , (1.39)
∂T
que se demonstra tomando a derivada de (1.38) em relação a T e utilizando
os resultados (1.29) e (1.37).
Capacidade térmica
A capacidade térmica de um corpo é definida como a razão entre a quanti-
dade de calor absorvida pelo corpo e a resultante variação da temperatura.
Entretanto devemos ser precisos na maneira como o calor está sendo in-
troduzido. Aqui vamos considerar que o calor está sendo introduzido de
1.2 Distribuição de probabilidades 11
forma que os parâmetros dos quais a energia Es depende estão sendo man-
tidos constantes. Nesse caso dQ = dU , ou seja, o calor introduzido é igual
a variação da energia do sistema. A capacidade térmica assim definida é
dada por
∂U
C= (1.40)
∂T
e está relacionada diretamente com a variância da energia, como veremos
a seguir. Como a variância é por definição não negativa concluı́mos que a
capacidade térmica é não negativa. Dessa forma sempre que introduzimos
calor em um corpo, sua temperatura nunca diminui.
Usando a relação β = 1/kB T podemos escrever também
1 ∂U
C=− . (1.41)
kB T 2 ∂β
e
2
1 ∂Z
= U 2 = hEs i2 . (1.45)
Z2 ∂β
Logo,
1
C= (hEs2 i − hEs i2 ), (1.46)
kB T 2
e, portanto, a capacidade térmica está relacionada com a variância da ener-
gia. Como hEs2 i − hEs i2 = h(Es2 − hEs i)2 i ≥ 0, a variância nunca é negativa,
concluı́mos que C ≥ 0.
12 1 Representação Canônica
f = −kB T ln ζ, (1.54)
∂f
s=− , (1.56)
∂T
ou ainda por s = (u − f )/T .
Sitemas clássicos
De acordo com a mecânica clássica, o estado de um sistema com um grau de
liberdade é determinado pela posição x e momento p, isto é, por um ponto
do espaço (x, p). Em analogia com (1.47), a distribuição de probabilidades,
que no presente caso é uma densidade de probabilidades, é dada por
1 −βH(x,p)
ρ(x, p) = e . (1.57)
ζ∗
14 1 Representação Canônica
2 1.5
1.5
1
c / kB
u / u0
0.5
0.5
0 0
0 0.5 1 1.5 2 0 0.5 1 1.5 2
T / T0 T / T0
eβ~ω
c = kB (β~ω)2 . (1.71)
(eβ~ω − 1)2
Os gráficos da energia e da capacidade térmica são apresentados na figura
1.2.
A energia livre f de um oscilador f = −kB T ln ζ é dada por
1
f = ~ω + kB T ln(1 − e−β~ω ), (1.72)
2
da qual obtemos a entropia, s = −∂f /∂T , de um oscilador
~ω 1
s = −kB ln(1 − e−β~ω ) + β~ω
. (1.73)
T (e − 1)
Para um conjunto de 3N osciladores, a energia U e a capacidade térmica
C são dadas por
U = 3N u, C = 3N c. (1.74)
1.3 Oscilador harmônico 17
F = 3N f, S = 3N s. (1.75)
Z = ζ 3N . (1.76)
Lei de Dulong-Petit
Agora consideramos a versão clássica do sistema que acabamos de estudar.
Imaginamos um sólido constituı́do por N átomos, cada átomo oscilando nas
três direções cartesianas como três osciladores harmônicos independentes.
O movimento de cada oscilador é descrito pela hamiltoniana H(x, p), função
da posição x e do momento p, dada por
1 2 mω 2 2
H(x, p) = p + x , (1.80)
2m 2
em que m é a massa do átomo e ω é a frequência angular de oscilação.
A distribuição de probabilidades ρ(x, p), que é uma densidade de prob-
abilidades, é dada por (1.57) e a função de partição ζ por (1.61). Substi-
tuindo a expressão (1.80) em (1.61),
Z
1 2 2
ζ= e−βp /2m−βmω2x /2 dxdp. (1.81)
h
18 1 Representação Canônica
2πkB T 2πkB T
f = −kB T ln( ), s = kB {1 + ln( )}. (1.84)
hω hω
Aqui cabe uma observação importante sobre a constante h. Como vimos
anteriormente quando discutimos sistemas clássicos, a constante h foi intro-
duzida de forma ad hoc. Entretanto, se desejarmos que os resultados para a
entropia e energia livre obtidos anteriormente para o oscilador quântico, no
limite de altas temperaturas, dadas por (1.79), se identifiquem com resulta-
dos (1.84) que acabamos de obter, então vemos que h deve ser identificado
com a constante de Planck. Para isso, basta comparar a expressão (1.82)
com (1.77).
Para obter U , C, F e S para um sólido, basta multiplicar os resultados
acima por 3N . Obtemos a energia
1
U = 3N = 3N kB T, (1.85)
β
e a capacidade térmica
C = 3N kB . (1.86)
Esse resultado não depende da frequência de oscilação. Portanto, se os
átomos vibrarem com frequências distintas, o resultado para a capacidade
térmica permanece o mesmo. Como consequência, qualquer sólido a altas
temperaturas, regime em que os resultados clássicos podem ser aplicados,
1.4 Dipolo num campo 19
2πkB T
F = −3N kB T ln( ), (1.87)
hω
e a entropia por
2πkB T
S = 3N kB {1 + ln( )}. (1.88)
hω
E = −~ ~
µ · H. (1.89)
Eσ = −σµH, (1.90)
0,8 0,5
(a) (b)
0,4
0,6
0,3
c/kB
s/kB
0,4
0,2
0,2
0,1
0 0
0 1 2 3 4 5 0 1 2 3 4 5
T/T0 T/T0
ou
ζ = eβµH + e−βµH = 2 cosh βµH, (1.93)
e, portanto,
ln ζ = ln 2 cosh βµH. (1.94)
A energia livre por átomo f = −kB T ln ζ vale
µ2 H 2
c= sech2 βµH, (1.97)
kB T 2
mostrada na figura 1.3 como função da temperatura. Note que c se anula
tanto para T = 0 quanto para T → ∞.
Para encontrar a magnetização m = µhσi utilizamos a fórmula m =
−∂f /∂H, que se obtém derivando ambos os lados de (1.92) relativamente
a H e dividindo por ζ. Utilizando essa fórmula alcançamos o resultado
µ2
χ= sech2 βµH. (1.99)
kB T
A campo nulo, H = 0,
µ2
χ= , (1.100)
kB T
que nos diz que a susceptibilidade a campo nulo é inversamente proporcional
à temperatura, que é a lei de Curie.
A entropia por átomo pode ser calculada por meio de s = −∂f /∂T mas
é mais facil utilizar a relação s = (u − f )/T , a partir da qual obtemos
µH µH µH
s=− tanh + kB ln 2 cosh , (1.101)
T kB T kB T
Teoria de Brillouin
De acordo com a teoria quântica, os possı́veis valores do componente de µ ~
na direção do campo são discretizados e dados por jgµB , em que µB é o
magneton de Bohr, g é uma constante numérica e j toma os valores j =
−J, −J +1, . . . , J −1, J, em que J pode ser um dos valores 1/2, 1, 3/2, 2, . . ..
Dessa forma os possı́veis valores da energia de interação com o campo são
dados por
jµH
Ej = − , (1.102)
J
em que µ = gµB J.
A probabilidade de ocorrência dos estados j = −J, −J + 1, . . . , J − 1, J
vale
1 1
P (j) = e−βEj = eβjµH/J , (1.103)
ζ ζ
em que β = 1/kB T e ζ é a função de partição de um átomo,
J
X
ζ= ejβµH/J , (1.104)
j=−J
22 1 Representação Canônica
J + 1 µ2 H
m= . (1.110)
3J kB T
O coeficiente de H é a susceptibilidade a campo nulo χ0 , isto é,
J + 1 µ2
χ0 = , (1.111)
3J kB T
e, portanto, a susceptibilidade é inversamente proporcional à temperatura,
que é a lei de Curie.
1.4 Dipolo num campo 23
1/2
0,8 1
3/2
0,6 L
BJ
0,4
0,2
0
0 1 2 3 4 5
x
Figura 1.4: Função de Brillouin BJ (x) para J = 1/2, 1, 3/2. A curva inferior
corresponde ao limite J → ∞ da função de Brillouin e coincide com a função de
Langevin L(x).
Teoria de Langevin
Um dielétrico como a água é composto por um conjunto de moléculas
cada uma carregando um dipolo elétrico permanente. Se a separação en-
tre as moléculas for suficiente grande para que a interação possa ser de-
sprezada, então estamos diante de um sistema não interagente. Assim, é
suficiente considerar um único dipolo elétrico. Quando submetico a um
~ a energia de interação do momento de dipolo elétrico p~0
campo elétrico E,
do átomo e o campo é dado por
E = −~ ~
p0 · E. (1.112)
p0 E
p = p0 L( ), (1.119)
kB T
1
L(x) = coth x − , (1.120)
x
p20 E
p= , (1.121)
3kB T
Exercı́cios
1. A partir da distribuição de probabilidade do módulo da velocidade,
dada por (1.18), mostre que vr = hv 2 i1/2 , a raiz quadrada da velocidade
quadrática média, é dada por vr = (3kB T /m)1/2 . Mostre também que, a
partir da mesma distribuição (1.18), a velocidade média v̄ = hvi é dada por
v̄ = (8kB T /πm)1/2 .
2. Um recipiente contém um gás cuja distribuição de probabilidades das
velocidades é idependente da direção da velocidade ~v . Isso significa que essa
distribuição só depende do módulo v = (vx2 +vy2 +vz2 )1/2 da velocidade, como
ocorre com a distribuição de Maxwell. Em outros termos ρ(vx , vy , vz ) =
f (v). Mostre que a velocidade média v̄ é dada por
Z ∞
v̄ = 4π v 3 f (v)dv.
0
Suponha que o recipiente tenha uma pequena abertura numa parede per-
pendicular à direção z, por onde escapam as moléculas, fenômeno denomi-
nado efusão. O número de moléculas que escapam pela abertura por
unidade de tempo e por unidade de área é dado por
Z
Φ=n vz ρ(vx , vy , vz )dvx dvy dvz ,
vz ≥0
4. Mostre que a entropia dada por (1.31) é aditiva. Isto é, mostre que a
entropia total de dois sistemas não interagentes é igual à soma das entropias
de cada sistema. Para isso, admita que os estados que descrevem cada um
dos dois sistemas são variáveis independentes.
5. Considere um sistema com L estados com energias discretizadas. Supo-
nha que o nı́vel fundamental, com energia E0 , possua degenerescência igual
a M . Mostre que: (a) a altas temperaturas, a energia média é igual à media
aritmética das energia dos L estados e que a entropia vale S = kB ln L; e
(b) à temperatura zero, a energia média é igual E0 /M e a entropia é igual
a S = kB ln M , e é nula se o nivel fundamental for não degenerado. Em
ambos os casos mostre que a capacidade térmica se anula.
6. A hamiltoniana de um oscilador anarmônico clássico é dada por
1 2
H= p + ax2 − bx3 + cx4 ,
2m
em que a e c são constantes positivas e b é uma constante que pode ser
positiva ou negativa. Admitindo que b e c são muito pequenos, determine,
até termos de ordem linear na temperatura, a contribuição dos termos
anarmônicos para a capacidade térmica. Calcule também o valor médio
hxi até termos lineares na temperatura e mostre que ele é proporcional a b
e portanto se anula quando o termo cúbico está ausente.
7. Considere um sistema de N átomos localizados, não interagentes, cada
um podendo estar em dois estados cujas energias são
Eσ = εσ,
Eσ = εσ 2 ,
Eσ = µHσ + εσ 2 .