Você está na página 1de 18

Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

Ética1

2
Leila Domingues Machado

O rei está nu

A emergência da polis na Grécia Antiga, entre os séculos VIII e VII a.C.,


3
teria inventado a vida social, como nos mostra Jean-Pierre Vernant . A
construção das relações sociais na cidade introduzem uma série de
transformações no pensamento grego, como a constituição do domínio público
em oposição ao domínio do secreto e dos vários tipos de confrarias. O espaço
das praças fazem o jogo intelectual e político se vincularem à crítica e à
controvérsia pública. A palavra vai deixando de aparecer como um ritual, como
uma fórmula justa, e aproxima-se da idéia de debate, de discussão, de jogo de
argumentações. A escrita deixa de estar restrita aos escribas e passa a ser um
bem público. A redação das leis conservam um certo aspecto sagrado e ideal
mas vincula a legalidade ao humano. As leis formam um instrumento superior
que deve gerir a sociedade, contudo, preservando em seu fundamento a idéia
de igualdade e a necessidade de suas modificações em função de
transformações na própria vida social.

A vida pública na cidade vai indicar desigualdades e condená-las. As


diferenças econômicas são expostas, o luxo passa a desfilar nas praças ao

1
Artigo revisto e ampliado. Publicação original: MACHADO, Leila Domingues. Ética. In: BARROS, Mª
Elizabeth Barros (org.) Psicologia: questões contemporâneas. Vitória: Edufes, 1999.
2
Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo
3
VERNANT, Jean-Pierre, 1994.

1
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

lado da miséria. O poder centralizado na figura do soberano se contrapõe à


solicitação de obediência e submissão dos súditos, o que era considerado
como tirania. A idéia de liberdade, em seu vínculo com a política e com a
cidadania, não poderia suportar a presença da servidão pois a cidade
representava o exercício da democracia. Frente às desigualdades que se
tornaram públicas, ocorre a recomendação de um ideal austero de reserva e
moderação. A virtude seria contrária aos excessos. A crise da polis grega
inicia-se no século VII e se prolonga pelo século VI a.C.. Ao longo desse
período promove-se toda uma discussão dos sistemas de valores e da ordem
do mundo.

A virtude é pensada como efeito da áskesis, de uma disciplina dura e


severa, do controle vigilante sobre si. A virtude estaria ligada à temperança, à
justa medida e ao justo meio. É preciso controlar os apetites da carne para
dominar-se, vencer-se a si mesmo. O Homem é concebido como comportando
uma tensão entre a afetividade, as emoções, as paixões e a prudência. A
temperança traria a saúde e a virtude social e política, não estando ligada nem
ao individual e nem ao social, mas ao atravessamento de tudo isso. A virtude
visa a liberdade, a justiça e a felicidade, que são idéias políticas que
expressam a cidadania e a democracia. Nos séculos V e IV a.C. podemos
identificar um deslocamento no pensamento grego. A filosofia passa a
tematizar a ética, a política e as teorias do conhecimento, a cidade e o
cidadão, em lugar dos estudos da cosmologia, a origem e a ordem do mundo.
A ética constitui-se como questão, emergindo enquanto uma problemática
inerente à política, à cidadania e à democracia.

Posteriormente, o cristianismo vai promover uma outra idéia de


liberdade, de justiça e de felicidade. A identificação entre liberdade e vontade,
interioriza a concepção de liberdade. Ligada ao individual, ela se separa do
político e torna-se livre-arbítrio, ou melhor, uma escolha entre o Bem e o Mal,
entre o vício e a virtude. Não haveria propriamente uma escolha, pois os fins
estariam preestabelecidos na medida em que o vício seria um pecado e a

2
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

virtude um dever. Seria preciso agir em conformação com a lei divina. Introduz-
se uma exterioridade onipresente e onipotente como guia das ações. O
sentimento de culpa faz com que cada um julgue seus próprios atos em sua
consonância com os valores estabelecidos. A confissão pode conferir ao padre
o conhecimento do pecado e ao cristão o alívio de dizê-lo, entretanto, há um
Deus que tudo sabe e tudo vê. A justiça seria fazer cumprir os mandamentos
divinos e a felicidade seria a salvação eterna, que estaria condicionada ao
não-pecar ou a uma espécie de livre- arbítrio do Bem divino.

Ao interiorizar as idéias de liberdade, justiça e felicidade, o cristianismo


as separa do exercício político, da vida social e democrática. A virtude se
vincula a uma lei divina, a uma exterioridade transcendente. A sociedade
passaria a ser um palco para as ações virtuosas em busca de salvação. Ao
contrário, a antigüidade grega fala da virtude como sendo a própria vida social
e política, a integração ao cosmos. A ética seria expressão do comportamento
humano, o que fosse não-ético seria também não-humano. Com o cristianismo,
o comportamento ético e o comportamento vicioso são igualmente partes da
natureza humana, nos restaria escolher. Essas duas concepções e suas
variantes ainda se fazem presentes nos debates em torno da questão ética.

A existência como imanência

A idéia de ética se reveste e atualiza o significado das palavras gregas


êthos que significava caráter, índole, temperamento, modo de ser e éthos que
4
significava hábitos, usos, costumes de uma pessoa . Ética seria a educação
do caráter visando a felicidade, a vida justa e livre, o que para os gregos

4
CHAUÍ, Marilena, 1994.

3
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

somente seria possível como vida política. A ética estaria referida a um juízo
de apreciação, um exercício de pensamento e escolha entre o que seria
considerado como bom e como mau. Moral é uma palavra que vem do latim -
mores - e significa costumes, configurando-se como as regras e valores
sociais, um conjunto prescritivo baseado em concepções de bem e de mal
que viriam conduzir de forma absoluta, categórica - o Bem válido para todos
em qualquer tempo e lugar - ou relativa, derivada - um bem válido para um
5
grupo ou para uma época - as ações de cada um.

É importante ressaltar, contudo, que ao longo da história não nos


defrontamos com uma mesma visão de ética e de moral enquanto conceitos
que teriam permanecido iguais ou teriam se aprimorado com o tempo. Há em
torno da ética e da moral um campo de problemática. Uma das questões que
compõe esse debate refere-se aos pares bem/mal e bom/mau. A palavra bem
se relaciona ao ato e não à intenção, seria uma qualidade atribuída às ações e
que levaria à busca e à definição de um fundamento que as pudesse explicar.
A palavra bom é qualitativa de alguma coisa. Bem é um substantivo, o que por
si só designa a substância de um ser, uma qualidade ou um estado,
considerados em separado dos seres ou objetos a que se referem. Bom é um
adjetivo, caracteriza seres e objetos, indicando-lhes um modo de ser ou um
6
estado. Estaríamos, através da concepção de bem, diante de uma idéia que
se remete a um plano transcendente, a uma exterioridade que distante e
superior às próprias coisas poderia de forma “neutra” conduzir seus rumos.
Quanto à concepção de bom, poderíamos pensar em um plano imanente, algo
que faz parte - que é - das próprias coisas, que não é guiado por nada exterior
ou que não concebe nenhuma exterioridade em oposição a uma interioridade.

5
Sobre os termos ética, moral, bem e bom consultar: LALANDE, André. Vocabulário técnico e
crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, [1926], 1993.
6
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

4
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

Transcendente e imanente se fazem presentes ao longo do debate


acerca da ética e da moral. Na perspectiva transcendente as idéias se
oferecem como respostas apaziguadoras e verdadeiras e solicitam obediência.
Na perspectiva imanente configura-se a necessidade de pensamento, de fazer
perguntas, de produção de afirmações-problematizantes. Alguns filósofos
tentaram estabelecer postulados éticos e/ou morais que pudessem definir o
Bem, enquanto outros debateram-se arduamente na tentativa de resgatar a
discussão ética dos postulados universais e neutros em que estava imersa,
conferindo-lhe uma dimensão histórica e diferenciando-a do plano jurídico da
legalidade e do plano moral do normativo. Entretanto, se a moral pode
sucumbir ao aspecto generalizante do universal-absoluto, a ética também pode
sucumbir ao particularismo do individual-desejo. O que pode levar a um
relativismo - “pode não ser bom pra você, mas é bom pra mim” - ou a uma
espontaneidade - “a sociedade me oprime, então dane-se o mundo”. Ética e
moral não falariam de uma mesma coisa, no entanto, seriam indissociáveis.

Esses termos se confundem em nosso cotidiano, ora se aproximam e


ora se distanciam em seus sentidos. A discussão em torno da ética e da moral
evidencia dualismos como: uma é a prática e a outra a teoria, uma é individual
e a outra social, uma é interior ao sujeito e a outra é exterior ao sujeito, uma se
vincula ao desejo e a outras às leis e às normas. Consideramos que ética e
moral assumem conotações distintas, mas não as concebemos a partir de uma
dicotomia ou de uma oposição e sim de suas diferenças. Ética e moral se
entrecortam, se misturam e se distanciam, expressam um jogo de forças que
assume formas variadas em cada época.

Teríamos os códigos de comportamento e as formas de subjetivação.


Foucault nos fala que a relação entre código e ação não é direta, ela envolve
formas de obediência, de submissão, de resistência, de negligência, de
recusa, de transgressão... Essa diversidade expressa variações presentes no
conjunto social quanto ao sistema prescritivo que implícita ou explicitamente é
veiculado em uma cultura. Haveria uma relação ao código, uma relação ao

5
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

7
outro, ao mundo, ao contexto, e também uma relação a si . Um tornar ou não
seu comportamento de acordo com uma regra ou um valor e, ao mesmo tempo,
um trabalho ético para “tentar se transformar a si mesmo em sujeito moral de
8
sua própria conduta” . Enfim, toda uma série de nuances entre a regra e a
9
ação que inclui modos de subjetivação .

Em suma, para ser dita ‘moral’ uma ação não deve se


reduzir a um ato ou a uma série de atos conforme a uma
regra, lei ou valor. É verdade que toda ação moral
comporta uma relação ao real em que se efetua, e uma
relação ao código a que se refere; mas ela implica também
uma certa relação a si; essa relação não é simplesmente
‘consciência de si’, mas constituição de si enquanto ‘sujeito
moral’, na qual o indivíduo circunscreve a parte dele
mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define
sua posição em relação ao preceito que respeita,
estabelece para si um certo modo de ser que valerá como
realização moral dele mesmo; e, para tal, age sobre si

7
O si, a que se refere Foucault, em lugar de ser um processo de fechamento numa
interioridade, de contato íntimo com uma espécie de “essência” individual, mostra-se como
anonimato, como abertura, como transformação, como produção de diferenças com o que
se mumificou em nós, em nossas relações, em nosso trabalho, em nossa vida.
8
FOUCAULT , Michel, 1985, p. 28.
9
Trabalharemos a partir de uma distinção entre modos de subjetivação ou processos de
subjetivação ou modos de existência e subjetividade. Esta última refere-se à configuração
de formas-subjetividade. Atualmente falamos em subjetividades intimistas, ligadas à esfera
privada e temos para com essa forma uma relação de verdade que nos faz acreditar que os
Homens sempre foram assim e, por conseguinte, vão continuar sendo. É importante
lembrar que a subjetividade não é algo interior. A super- valorização da esfera privada é
uma forma-subjetividade bastante comum em nossos dias, contudo não é a única
possibilidade de forma para a subjetividade. A subjetividade nos fala de territórios
existenciais que podem tornar-se herméticos às transformações possíveis, como mapas, ou
podem estar abertos a outras formas de ser, como nas cartografias. Os modos de
subjetivação referem-se à própria força das transformações, ao devir, ao intempestivo, aos
processos de dissolução das formas dadas e cristalizadas, uma espécie de movimento
“instituinte” que ao se instituir, ao configurar um território, assumiria uma dada forma-
subjetividade. Os modos de subjetivação também são históricos, contudo, tem para com a
história uma relação de processualidade e por isso não cessam de engendrar outras formas.

6
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova,


aperfeiçoa-se, transforma-se. Não existe ação moral
particular que não se refira à unidade de uma conduta
moral; nem conduta moral que não implique a constituição
de si mesmo como ‘sujeito moral’; nem tampouco
constituição do sujeito moral sem ‘modos de subjetivação’,
sem uma ‘ascética’ ou sem ‘práticas de si’ que as apóiem.
10

Ética e moral não falariam de opostos, de contradições ou de


polaridades e nem de idênticos, homogêneos ou similares. Ao contrário, trata-
se de vetores que expressariam em nossas vidas uma dimensão visível - do já
dado, do que se cristalizou - e uma dimensão invisível - das virtualidades, dos
fluxos intempestivos que rompem o instituído. A ética não seria uma
reprodução mas uma criação, não seria uma aplicação de regras
11
preestabelecidas mas o uso de regras facultativas , um processo de
pensamento e não a efetuação de soluções preconcebidas. Tal como
indicamos anteriormente, se a ética é um exercício de pensamento, ela deveria
excluir processos de reprodução-manutenção dos preconceitos.

Poderíamos conceber o pensamento, como nos sugere Deleuze, como


algo que se agencia nos encontros, nas conexões e não pertence a ninguém.
O pensamento concebido como um fluxo, como elemento de disjunção. A
perspectiva de pertença aprisiona o pensamento, o enclausura ao eu, retira-

10
FOUCAULT, Michel, 1985.
11
É importante que fique claro que não se trata de um “oba, oba”, que em lugar de alegria
muitas vezes mostra-se como expressão cruel de tirania. O uso de regras facultativas
aponta para uma relação diferenciada com as leis, com os códigos e com as normas. Um
processo de dissolução das transcendências. A ética fala de princípios que são ao mesmo
tempo anti-princípios, ou melhor, diante do princípio de solidariedade, por exemplo, não há
um conteúdo anterior, um código prescritivo que definiria como, onde, quando e com quem
ser solidário. Será preciso sempre estarmos reinventando formas de solidariedade que
estejam voltadas para a expansão da vida

7
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

lhe a potencialidade de criação e de dissolução. Coloca-se o desafio a um


pensamento que não conceba uma separação entre ser e não ser, entre
verdadeiro e falso. Enfim, um pensamento afirmativo, não dialético e não
hierarquizante, que venha escapar às armadilhas metafísicas. Estaríamos
diante da afirmação do pensamento enquanto uma multiplicidade dispersa. As
perguntas não param de se desdobrar em infinitos pontos e as respostas
transformam-se incessantemente em novas perguntas, não se constituindo
nem mesmo como respostas, antes como movimento próprio às formas de
pensar problematizante. Momento que faz toda afirmação ser provisória e
move o pensamento a trabalhar sempre no limite da ignorância. Um jogo dos
problemas e das perguntas que apresenta ao pensamento o desafio de
estabelecer uma outra relação com as regras, retirando-as do plano
transcendente e construindo seus sentidos imanentes.

A idéia de lei tornou-se bastante difundida atualmente em nossa


sociedade. Fala-se que está tudo confuso, quase que perdido, porque as
pessoas não cumprem certo “contrato social”. Há nessa forma de análise uma
solicitação de que as regras se tornem mais coercitivas para que os limites
possam ser impostos. Dentro da perspectiva moral esse raciocínio aplica-se
perfeitamente. As regras estão dadas, restaria obedecê-las. Quando a
obediência não ocorre há um apelo a um maior rigor que venha garantir o seu
cumprimento. Contudo, essa visão parece não questionar as razões dessa
impostura, talvez porque a julguemos desobediência. E com isso o Congresso
Nacional continua produzindo mais leis e o presidente governa com medidas
provisórias. Cabe indagar que forma-subjetividade forjou-se nas sociedades
capitalísticas atuais que se endureceram no âmago de suas vidas particulares
e tem mostrado um descaso pela vida pública. Ao exercício ético não cabe um
clamor a novas formas de coerção mas cabe pensar sobre o contexto social e
histórico que nos constitui na tentativa de dissolução dessa forma-
subjetividade para que outras possam se forjar. A ética remete-se a um jogo
dos problemas e das perguntas e não do categórico e do hipotético.

8
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

Acreditamos ser necessário pensar sobre os sentidos que a subjetividade


assume na atualidade para podermos produzir outras formas de ser, enfim, um
outro trabalho ético.

A vida como um anti-princípio

A ética seria uma ontologia do ser, falaria da sua produção, dos seus
12
modos de existência. Inspirando-se na antigüidade grega, Espinosa acredita
que a ética vincula-se à vida e a moral à sobrevivência, entendida aqui como
meios de evitar a morte. A ética seria um exercício da liberdade ou a própria
experiência de liberdade. O que não quer dizer livre-arbítrio ou uma escolha
entre o Bem e o Mal. A liberdade se configura quando nossa potência de agir
aumenta junto das produções coletivas e é contrária à servidão ou ao desejo
de nos apropriarmos do outro. Viver a alteridade não pressupõe apropriações
de espécie alguma, nem de si e nem do outro, pois seria a experiência da
produção de diferenças, tanto com relação a si mesmo quanto nas relações
com o mundo.

Neste sentido, o outro não é entendido como uma unidade separada e


exterior a uma outra unidade-eu. A idéia de alteridade não está fundada nas
polarizações interior e exterior ou sujeito e objeto. O outro presente na idéia de
alteridade expressa um diferir, uma outra forma diversa da atual. O que
também não nos faz pensar o coletivo enquanto um agrupamento social ou a
composição de várias individualidades. A coletividade fala de uma série de
agenciamentos, formados de materiais de expressão diversos, e que produzem
formas - formas-subjetividade, formas-sociedade, formas-natureza, formas-

12
Nossa leitura de Espinosa baseia-se em seus escritos sobre ética, nos trabalhos de Marilena
Chauí e, principalmente, nos trabalhos de Gilles Deleuze acerca da obra do autor.

9
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

conhecimento, etc. - ao mesmo tempo que desmancham as formas produzidas


e permitem a construção de outras.

Espinosa questiona o princípio que funda a moral em um plano


transcendente, onde as regras e valores aparecem como entidades exteriores
e naturais, que vem solicitar a obediência através do processo de domínio das
paixões pela consciência. O racionalismo cartesiano é colocado em discussão.
A extensão e a consciência são ambas produzidas por um único e mesmo jogo
de forças. Não há uma supremacia da consciência sobre o corpo. O corpo é
um modo de extensão e a alma é um modo de pensamento. A forma-homem
manifesta de maneira finita o jogo ilimitado das forças.

A relação entre a alma e o corpo não é a da ação e da


paixão - a alma ativa e o corpo passivo; nem a obscura
relação cartesiana de uma ação recíproca do corpo sobre
a alma e vice-versa. A relação espinosana é uma relação
de correspondência ou de expressão. Espinosa foge de
uma explicação de tipo mecanicista: o corpo não é causa
das idéias, nem as idéias são causa dos movimentos do
corpo. Alma e corpo exprimem no seu modo próprio o
13
mesmo evento.

Espinosa tem o corpo como “modelo”. Não no sentido de supervalorizá-


lo em detrimento da consciência, mas no sentido de desvalorizá-la em relação
ao pensamento. Enfim, acredita que o corpo nos é tão desconhecido como o
pensamento e que a consciência somente conhece os efeitos de ambos. O
pensamento seria uma força imanente que difere os modos de existência bom

13
CHAUÍ, Marilena (consultora de introdução). Espinosa - vida e obra. In: Espinosa. São
Paulo: Abril Cultural, Coleção Pensadores, 1983, p. XVII.

10
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

e mau. Sendo que bom e mau não são valores absolutos e transcendentes. A
ética estaria referida ao exercício do pensamento e aos valores imanentes bom
e mau. Enquanto a moral estaria no registro da normatividade fundada sobre o
plano do Bem e do Mal, fazendo com que a relação com as regras se remeta à
culpabilização e à servidão.

Bom seria expressão da composição das forças e mau seria expressão


da decomposição das forças. Os corpos e as idéias produzem encontros que
podem ter como efeito o aumento ou a diminuição de sua potência. Para
Espinosa, o bom - livre ou forte ou sensato - será aquele que se esforça por
produzir encontros, por compor forças nas suas relações, por aumentar a
potência. Produzir um mais de força - não no sentido de um acúmulo de força
mas no sentido de uma maior intensidade das forças ativas - que venha
produzir uma outra qualidade de força, uma potência de agir. O mau - escravo
ou fraco ou insensato - será aquele que se contentar em sofrer os encontros e
seus efeitos e se lamentar, reclamar e acusar quando os efeitos sofridos se
mostrarem contrários e revelarem sua própria fraqueza, enfim uma potência de
padecer. Seria preciso evitar destruir a si sob a força da culpabilização e
destruir a tudo sob a força do ressentimento. Deveríamos evitar propagarmos
nossos venenos, nossa impotência, nossa servidão e não nos deixarmos
dominar pela servidão, pelos venenos, pelas indigestões produzidas nos
maus encontros.

Os corpos e as idéias produzem e são produzidos nas afecções. Pode-


se ter uma posição passiva ou ativa frente às afecções. As paixões são
afecções passivas, podendo ser alegres, quando há uma composição de
forças, ou tristes, quando há uma decomposição de forças. Três tipos de
personagens permanecem atrelados às paixões tristes: o escravo - o homem
da paixão triste -, o tirano - o homem que explora a paixão triste - e o
sacerdote - o homem que se entristece com a paixão triste. O escravo precisa
do tirano para permanecer em sua suposta passividade e vê essa relação
como lhe sendo benéfica. A indignação frente a tirania ou a escravidão não faz

11
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

do sacerdote alguém liberto das paixões tristes. Enquanto o tirano não


encontrando alegria alguma em sua vida, triunfa frente à tristeza das almas
que permanecem junto a sua tirania. Todos seriam escravos e se suporiam
senhores.

A imagem construída por Espinosa nos faz pensar que sua filosofia
aposta sempre na ação e não concebe a figura do dominado, do submisso,
como se não houvesse saída para a servidão. A vida seria o critério ético no
pensamento de Espinosa. Seria preciso uma luta constante contra tudo o que
nos separe da vida. A expansão da vida seria um desmanchar das formas
dadas, do que se tornou instituído e permanece movendo processos
burocratizantes com relação aos valores, às regras, ao trabalho, ao amor, à
amizade... Processos de endurecimento que nos impedem de nos arriscarmos,
de nos despojarmos dos preconceitos para experimentarmos outras formas de
pensar e de viver, que nos cega, cala, ensurdece ou nos torna insensíveis
frente à multiplicidade que marca o que nos acontece, que nos faz reproduzir
modelos legitimados mesmo que esses coloquem em funcionamento exercícios
de dominação. Neste sentido, não se trata de uma lógica binária entre
dominantes e dominados mas sempre uma ação possível de resistência e de
transformação das formas de servidão.

As paixões alegres, ao mesmo tempo em que compõem nossa potência


nos bons encontros, ainda estão no campo das paixões e dessa forma são
afecções passivas. Entretanto, a partir das paixões alegres construímos a
alegria ativa, quando conseguimos fazer da alegria o próprio motor da ação,
sem necessitar de gratificações ou de obrigações que nos conduzam. O que
se refere a um o que fazemos funcionar e não a um quem nos faz funcionar. A
ética seria uma alegria ativa, seria correlata da afirmação especulativa.
Precisamos conhecer o mundo, pensar sobre ele, para não o encararmos
como algo natural. A moral se vincula à obediência e ao dever porque oferece
as regras como princípios absolutos, resultantes de um conhecimento
transcendente. Espinosa pensa a verdade como imanente ao próprio

12
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

conhecimento, assim conhecer algo é conhecer o seu modo de produção. O


pensamento não trataria nada como natural e sim como algo a ser
problematizado. A ética como afirmação especulativa não solicita obediência e
não oferece princípios reguladores da ação. É um exercício constante do
pensar e conseqüentemente a transformação constante de nós mesmos e do
mundo.

Impasses entre a servidão e a liberdade

Como falar do presente sem sucumbir a uma descrição da servidão?


Como viver o presente sem sentir-se escravo da soberania do neo-liberalismo
e da globalização? Pensamos ser importante estabelecer uma análise do
contemporâneo através de uma perspectiva ética. Consideramos que não se
trata de uma exaltação ingênua do presente, nem de uma tristeza frente a um
passado perdido e nem mesmo de esperança de um futuro melhor. Foucault
acredita que não caberia uma apatia diante das práticas de dominação, mas
um hiper e pessimista ativismo. Hiper porque a impotência não transforma
nada e pessimista porque o exercício crítico nos conduziria a tentativas
constantes de transformações, porém sem ideais, ou seja, não houve um
passado perfeito e nem haverá um futuro perfeito. Cada época inventa suas
glórias e suas tormentas, neste sentido, o “ativismo” precisaria ser constante,
questionador das formas dadas, não em nome de um suposto ideal e sim como
um exercício contínuo de transformações não finalistas.

A esperança seria uma paixão triste na visão de Espinosa. A tristeza


que carrega estaria referida a um sentir-se subjugado e impotente frente a uma
realidade, acreditando que a mudança seria resultante de uma espécie de
força externa que pode assumir identidades diversas como: religião, governo,
partido, extraterrestres, avanço tecnológico, etc. Foucault talvez dissesse que

13
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

o problema da esperança estaria em seu vínculo com a idéia de absoluto e em


sua perspectiva totalizante. Não há um “mal” que seja absoluto ao qual caberia
o contraponto de um “bem” absoluto. As sociedades atuais enfrentam vários
problemas. A questão é que nunca houve uma sociedade que não os teve. Os
problemas decerto eram diferentes, contudo, não inexistentes. Da mesma
forma, não haveria um modelo ou não caberia a promessa de uma sociedade
ideal no futuro. Enfim, não se trata de profecia, predição ou esperança.

Talvez possa parecer que o pensamento de Foucault seria de


aniquilamento, um niilismo. Há em seus escritos uma feroz crítica à idéia de
absoluto mas não há uma redução de tudo ao nada. É preciso lutar mas não
haveria um fim da batalha. As “vitórias” seriam parciais e em lugar de
estabelecerem a plenitude em um final feliz para uns ou o massacre total para
outros, exigiriam sempre novas lutas. Estaríamos diante da idéia de
pensamento como desnaturalização que não prevê a ausência de
naturalizações e sim um jogo incessante dos ultrapassamentos. Neste sentido,
a história não pode ser concebida como memória, mas como um jogo das
forças, onde haverá sempre uma luta entre as forças e onde o contato entre
elas estará sempre modificando-as.

A história é invenção porque nada é absoluto, nem as glórias e nem as


tormentas. Cada época enfrenta seus problemas e cria as suas soluções.
Enfim, os problemas e as soluções não são eternos, são forjados na
complexidade dos jogos de forças que se atualizam e assumem formas
variadas a cada momento. Assim, as verdades são provisórias e aparecem
tanto como instrumento de dominação quanto de resistência. “Foucault não
nos pede para esperarmos uma forma mais completa de vida, mas para
imaginarmos uma época tão diferente que faça o nosso próprio tempo parecer
14
arbitrário.”

14
RAJCHMAN, John, 1987, p. 45.

14
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

Não há servidão total e nem liberdade total. O exercício de poder é


inerente ao exercício de liberdade. O poder em Foucault não está vinculado à
idéia de posse e não é irrestrito, ou melhor, se há poder necessariamente há
resistência. Isto porque o poder é diferente da determinação física. Em lugar
da lógica binária dominantes x dominados, o poder é pensado como um
exercício que é exercido por todos.

A história de um tipo de poder nunca é tal que efetivamente


exclua por completo a hipótese de que as pessoas o
questionem, revoltem-se contra ele e se organizem para
derrubá-lo. Assim, se não existe sociedade sem algum tipo
de poder, não há nenhuma cujo poder seja total ou
absoluto. A liberdade, portanto, não é o fim de qualquer
15
poder, mas um limite de seu exercício contínuo.

Foucault une liberdade e política diferenciando-a do livre-arbítrio. A


liberdade não é interior, não é transcendente, não está relacionada com
nenhuma essência, não é um estado ideal, não é uma ausência de regras, não
é uma propriedade e nem uma esperança, não é um princípio. A idéia de
liberdade está referida tanto à história quanto às maneiras de ser. Enquanto
ultrapassamento das formas dadas, a liberdade seria o exercício de um
questionar crítico das variadas e anônimas formas de dominação. Seria a
possibilidade de atualização da diferença, ou seja, de pensar, agir e ser
diferentemente do que se pensa, age e é.

15
RAJCHMAN, John, 1993, p. 129.

15
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

Somos históricos porque somos livres (e vice-versa já que


não necessitamos mais ser metafísicos), porque temos a
capacidade de resistir ao que existe, porque podemos
reproblematizar o que pensamos, fazemos e somos,
porque podemos identificar as condições históricas que nos
levaram a pensar, agir e ser de uma determinada maneira.
16

A liberdade é a condição de ser da ética e essa é a forma assumida


pela liberdade. Há em Foucault a retomada de uma concepção presente na
antigüidade grega onde uma vida bela - ética - era a arte de ser e tornar-se
livre. Mas se a liberdade está vinculada às maneiras de ser e ao exercício do
pensamento, não pode haver equívoco de que não se trata de uma identidade
ou da procura pelo nosso desejo mais íntimo. A liberdade nos remete para a
fragilidade do que chamamos nossa identidade, para a não naturalidade do
que denominamos como nosso desejo ou para a constituição histórica de
nossa forma-subjetividade. São “as próprias formas históricas de nosso ser
individual e comunitário que devem ser libertadas ou expostas ao risco de
17 18
novas e imprevistas transformações”. A liberdade seria uma política em si,
um auto-desprendimento, uma auto-invenção. Em Foucault a ética seria a vida
como uma obra de arte ou uma distância entre o que somos e o que
poderíamos ser.

Ser livre, portanto, é ser capaz de questionar a política, de


questionar a maneira como o poder é exercido,
contestando suas reivindicações de dominação. Esse

16
VAZ, Paulo, 1992, p. 122.
17
RAJCHMAN, John, 1993, p. 128.

16
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

questionamento implica nosso ethos, nossas maneiras de


ser ou de nos tornarmos quem somos. A liberdade é, pois,
19
uma questão “ética”.

Acreditamos que o exercício ético nas sociedades contemporâneas não


nos faria sucumbir à servidão, ao contrário, nos impulsionaria a inventar
experiências de liberdade. Desta forma, não nos caberia permanecer
indignados e sim ousar lutar. Inventar outras formas, estar aberto às
transformações que vem sem selo de garantia de um “melhor” absoluto,
apostando em perspectivas de mudança que são provisórias e precisarão ser
sempre problematizadas. Abertura para um indefinido que a seguir se limita.
Não há receitas. Precisamos ter coragem de abandonar as certezas presentes
e nos permitirmos criar outras estratégias. O contemporâneo não fala de um
tempo de servidão, entretanto, produz em nós essa certeza e nos joga para a
impotência; não é ele o vilão e sim nossa crença na soberania das forças de
dominação e a cegueira produzida por análises maniqueístas do presente.

Bibliografia

CHAUÍ, Marilena. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna,


1995.
___________. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a
Aristóteles, volume 1. São Paulo: Brasiliense, 1994.
___________. Público, privado e despotismo. In: NOVAES, Adauto (org.).
Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

18
No sentido de incidir sobre si e não enquanto algo em si mesmo.
19
Ibid, p. 130.

17
Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In:


Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
___________. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
___________. Espinoza e os signos. Portugal: Rés-editora, s.d.
ESPINOSA, Benedictus. Ética. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Pensadores,
1983.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de
Janeiro: Graal, 1985.
_____________. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1984.
_____________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
_____________. O que é um autor? Portugal: Vega-Passagens, 1992.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.
____________. Caosmose. Um novo paradigma estético. Rio de Janeiro:
Ed.34, 1992.
NOVAES, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
RAJCHMAN, John. Eros e verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
____________. Foucault: a liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1987.
SADER, Emir e GENTILI, Pablo. (orgs.) Pós-neo-liberalismo: as políticas
sociais e o Estado democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
VAZ, Paulo. Um pensamento infame: história e liberdade em Michel Foucault.
Rio de Janeiro: Imago, 1992.
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994.

18

Você também pode gostar