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GISELA B.

TASCHNER

A pós-modernidade

PÓS-
e a sociologia

GISELA B. TASCHNER
é socióloga e professora
da FGV-SP.

O
conceito de pós-modernismo, assenta-
do no campo das artes, tem gerado mais

confusões do que esclarecimentos ao

passar a ser utilizado nas ciências soci-


ais, junto com seu correlato pós-mo-

dernidade, sobre a vida nas sociedades capitalistas oci-

dentais contemporâneas. Introduzido no debate há mais


de uma década, entrou na moda, saiu de moda, e até hoje

ERN
não há consenso sobre ele ou sobre sua utilidade: a pós-
modernidade aparece ora como um momento que suce-

de à modernidade, ora como um momento que se con-


trapõe a ela, ora como um evento que, como tal, rompe

com ela e seu quadro referencial, o que evidentemente


Versão preliminar deste trabalho
implica significados distintos. foi apresentada no XVII Encontro
Anual da Anpocs, Caxambu (MG),
Nos casos em que aparece como momento, a 22-25 de outubro de 1993.

6 REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 6-19, junho/agosto 1999


periodização por ele envolvida é cambiante também: o

que para uns é pós-modernidade, para outros é apenas

alta modernidade e a pós-modernidade não passa de uma


possibilidade no horizonte.

MOD
O objetivo deste artigo é – sem ter qualquer

pretensão de esgotar o assunto ou mesmo a história do


conceito – tentar recapturar e analisar alguns dos princi-

pais sentidos em que esse conceito (ou será noção?) vem


sendo utilizado em diferentes linhas de análise da socieda-

de, bem como – e principalmente – a problemática que ele


envolve, de forma a facilitar o debate sobre o assunto,

incluindo-se aí a questão da contraposição entre uma

sociologia pós-moderna (que a rigor nem poderia ser uma


sociologia) e uma sociologia da pós-modernidade.

O impacto que o Brasil vem sofrendo de trans-

formações no cenário internacional contemporâneo e a


visibilidade aqui adquirida, particularmente nos anos 90,

por características que têm sido definidas, de acordo com


alguns enfoques, como pós-modernas, colocam na ordem

do dia um trabalho desse tipo.

PÓS-MODERNIDADE E MODERNIDADE

A pós-modernidade tem como referência ou


contraponto a modernidade. A origem do termo moderno

remonta, por sua vez, ao século V (modernus, em latim);


ADE

ele servia para diferenciar o (então) presente cristão da

NID
era passada pagã.

Já o debate contemporâneo sobre a pós-moder-

nidade vem da percepção de que estamos vivendo uma


série de mudanças que nos afetam direta e indiretamente,

e que é preciso entender – ainda que não se tenha chega-


do a um acordo claro sobre o significado e impacto de

cada uma ou do conjunto delas sobre a vida social.

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Entre os precursores desse debate pode-
ríamos destacar Daniel Bell, com a noção de
A modernidade dos clássicos
sociedade pós-industrial (1) e a ênfase que
a informação e o conhecimento ganham no No registro clássico, a modernidade é
campo enquadrado por tal noção; ou seja, a vista como inaugurando uma nova tempo-
percepção dessas mudanças aparece inicial- ralidade. Em Marx, sobretudo no Manifes-
mente na contraposição entre sociedade in- to, isso fica muito claro, quando diz:
dustrial e sociedade pós-industrial.
A base dessa contraposição – que teori- “A burguesia só pode existir com a condi-
camente é um tanto nebulosa – diz respeito ção de revolucionar incessantemente os
às mudanças ocorridas na vida socioe- instrumentos de produção, por conseguin-
conômica, que se associam ou mesmo de- te as relações de produção, e, com isso, todas
rivam de alterações nas forças produtivas, as relações sociais. […] Essa revolução
em função de inovações tecnológicas, que contínua da produção, esse abalo constante
levaram ao desenvolvimento de uma de todo o sistema social, essa agitação per-
information society. manente e essa falta de segurança distin-
A distinção entre modernidade e pós- guem a época burguesa de todas as prece-
modernidade, mais nebulosa ainda, passou dentes. Dissolvem-se todas as relações so-
a ser usada com referência a mudanças nas ciais antigas e cristalizadas, com seu cotejo
dimensões social, cultural e política, des- de concepções e de idéias secularmente
locando do centro da cena o par sociedade veneradas; as relações que as substituem
industrial/sociedade pós-industrial. Há tornam-se antiquadas antes de se
uma relação também entre esses dois pa- ossificarem. Tudo o que era sólido e está-
res de noções, mas ela está ainda por ser vel se esfuma, tudo o que era sagrado é
estabelecida (2). profanado, e os homens são obrigados, fi-
Uma das dificuldades para a definição nalmente, a encarar com serenidade suas
desse par (moderno/pós-moderno), confor- condições de existência e suas relações
me notou Featherstone em 1988, é que, se recíprocas” (4).
“o prefixo ‘pós’ significa ‘aquilo que vem
depois, um corte ou ruptura com o moder- A nova temporalidade, por sua vez, é
no, que é definido em contraposição a ele’”, inerente ao desenvolvimento dessa socie-
o “termo ‘pós-modernismo’ está baseado dade auto-referenciada no tempo, que é a
mais fortemente em uma negação do mo- sociedade burguesa.
derno, um abandono, uma ruptura ou mu- O que é nuclear a essa sociedade? Como
dança para longe dos traços definidores do ela foi caracterizada? Quais seus traços mais
moderno, com a ênfase firme no sentido de importantes?
afastamento em relação ao moderno”; e o Correndo o risco do excesso de simpli-
1 D. Bell, The Coming of Post – problema era nós estarmos “apenas no li- ficações e permanecendo ainda no registro
Industrial Society: a Venture in miar dessa mudança e não em uma posição clássico, vemos que essa sociedade moder-
Social Forecasting, New York,
Basic Books, 1973. de olhar o pós-moderno como uma na foi pensada, por exemplo, por Durkheim,
2 Cf. B. Smart, “Modernity, positividade inteiramente amadurecida, como caracterizada por uma nova forma de
Postmodernity and the Present”,
in Bryan S. Turner (ed.), Theories
passível de ser definida compreensivamente solidariedade – orgânica – em relação ao
of Modernity and Postmod- em função de si própria” (3) e não em rela- passado (solidariedade mecânica), decor-
ernity, London, Sage, 1990
(Reprinted 1991), pp. 14-5. ção ao que não é. rente de um processo de divisão do traba-
3 M. Featherstone, “In Pursuit of Se isso nos remete a pensar a pós-mo- lho social (5).
the Postmodern”, in Theory, dernidade em relação à modernidade, é Ainda que sua concepção de totalidade
Culture and Society, 5 (2-3),
junho de 1988, p. 197. preciso então tentar entender essa última, social, inspirada na biologia, fosse a de um
4 K. Marx e F. Engels, Manifesto, pelo menos aquilo que é seu núcleo, aquilo todo harmônico e funcional, a Durkheim
parte burgueses e proletários.
que lhe é central, para que se possa então não escaparam problemas trazidos com a
5 E. Durkheim, De la Division du cogitar de suas fronteiras e daquilo que se modernidade: de alguns tipos de suicídio a
Travail Social, Paris, PUF, 1930
(tiragem 1986). lhe contrapõe. enfrentamentos de classe, havia formas de

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comportamento que mostravam a dificul-
dade de se realizar a solidariedade orgâni-
A modernidade contemporânea
ca, que se ancorava na complementaridade,
mas era fruto da diferenciação, a qual, por Sem pretensão de esquecer as dife-
sua vez, poderia também ter efeitos patoló- renças entre os clássicos, pode-se dizer
gicos, disruptivos e disfuncionais ao todo que eles, cada um a seu modo, e tendo por
social (6). base distintos paradigmas (10), nos aju-
A diferenciação do mundo social está dam a entender a sociedade moderna. Ao
presente também na teoria sociológica ale- menos no chamado Primeiro Mundo, é
mã do fim do século XIX e início do XX, uma sociedade de produção industrial
em que a modernidade aparece contrastada rígida e em série, de produtos padroniza-
à ordem tradicional através da progressiva dos; a produção se faz num padrão
racionalização econômica e administrati- taylorista-fordista (separação entre mão
va. Em Weber talvez os traços mais típicos e cérebro) que criou um trabalhador par-
de desenvolvimento da modernidade sejam cial (depois operário industrial) alienado
o desencantamento e a racionalidade (7). e fragmentou a figura do capitalista em
É a partir dessa perspectiva que ele desen- uma série de ordens de serviço emanadas
volve seu trabalho sobre o capitalismo. de uma gerência científica, onde o traba-
O desenvolvimento do Estado moder- lho intelectual também é dividido, entre
no, o monopólio da violência legítima so- especialistas, numa organização com es-
bre um determinado território, a domina- trutura burocrática.
6 Idem, Le Suicide, Paris, PUF,
ção racional, com base em um quadro ad- A essa estrutura produtiva correspondeu 1930 (tiragem de 1986); De
o desenvolvimento de um mercado de la Division du Travail Social,
ministrativo burocrático – no topo do qual
op. cit., última parte.
há sempre um não-burocrata típico, – a massas e de estilos de vida relativamente
7 A Ética Protestante e o Espírito
burocracia como princípio organizacional padronizados dentro de cada classe. A or- do Capitalismo, trad. port. da
ed. de 1947 do original ale-
na esfera privada também (a da empresa), ganização comercial cresceu para tentar mão (1a ed. alemã, 1904/
são alguns dos conceitos e processos-cha- agilizar o que Marx denominou de o pro- 1905), São Paulo, Pioneira,
1967; Economia y Sociedad.,
ve com que Weber nos ajuda a entender a cesso de realização do valor. Como contra- trad. esp. Mexico, FCE,1969
(1a ed. Alemã, 1922).
modernidade e a jaula de ferro que, a seu partida, após a revolução industrial, trans-
ver, ela se tornou. formou-se a estrutura urbana: a reforma de 8 Marx mostra isso
conceitualmente em: O Capi-
Em Marx, a modernidade é construída Hausmann em Paris é um exemplo que, sob tal, Livro I, capítulo 6 inédito
(trad. port., São Paulo, Livraria
a partir de conceitos como modo de pro- esse ponto de vista, transformou a cidade Editora Ciências Humanas,
dução, mercadoria, capital, classes, arti- em um centro comercial, ao criar uma es- 1978); em O Capital, Livro I,
caps. 11,12 e 13 (trad. port.
culados em uma visão de totalidade soci- trutura que facilitava a circulação de pes- da 4a ed. alemã, de 1890,
Rio de Janeiro, Civilização Bra-
al cindida, que se articula na História atra- soas e mercadorias; nessa nova estrutura sileira, 1968), mostra enquan-
vés de contradições entre as classes pola- urbana, as lojas de departamentos (11) (e, to processo histórico.

res geradas pelas relações de produção bem depois, os shopping centers) ganha- 9 K. Mannheim, Ideologia y Uto-
pia, trad. esp. da versão ingle-
capitalista. ram grande realce, embalando as recém- sa de 1954, Madrid, Aguilar,
A diferenciação (assim como suas con- nascidas técnicas de sedução dos possíveis 1966.

seqüências) aparece aqui também, no de- consumidores. O desenvolvimento do 10 No sentido atribuído a esse
termo por Thomas S. Kuhn: A
senvolvimento dessas relações, através da marketing e da propaganda ajudava a redu- Estrutura das Revoluções Cien-
tíficas, trad. port. da edição
subordinação não só formal, mas também zir o gargalo que se formava na realização americana de 1969, São Pau-
real, do trabalho ao capital, a qual, junto do valor, no processo de reprodução am- lo, Perspectiva, 1991 (1a edi-
ção americana 1962,
com o crescimento das empresas e de seus pliada do capital (no sentido desse concei- University of Chicago Press).
mercados, vai formando uma sociedade to em Marx) (12). 11 W. Leach, Land of Desire, New
burguesa e um modo especificamente ca- Passou-se a buscar um “homem médio” York, Vintage, Random House,
1994 (1a ed. 1993).
pitalista de produção (8). O socialismo ci- como alvo para consumir uma produção de
12 Cf. O Capital, op. cit., Livro 2 .
entífico emerge no horizonte como a uto- bens de consumo padronizados; e na estei-
13 E. Morin,Cultura de Massas no
pia – no sentido mannheimiano (9) do ter- ra da publicidade, desenvolveu-se uma Século XX – o Espírito do Tem-
mo – que pode superar as contradições e cultura de massas. Segundo Morin (13), po, trad. port. do original fran-
cês de 1962, Rio de Janeiro e
problemas dessa sociedade. seria uma cultura – pensada em termos mais São Paulo, Forense, 1969.

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antropológicos – que se colocaria entre a é o que passou a parecer na segunda metade
cultura erudita e a popular já existentes; do século XX. A alienação do trabalho pro-
cosmopolita e de vocação internacional, é longou-se no lazer, no consumo desenfre-
a primeira cultura que consegue atravessar ado, na vida quotidiana das sociedades de
as antigas barreiras entre as classes. massas. Uma classe operária acomodada
Os frankfurtianos sequer aceitam o ter- em meio a valores de classes médias em
mo cultura de massa, pois não se trata de expansão frustrou as expectativas de que
algo feito pelas classes populares (a “mas- realizaria a missão histórica que dela se
sa”) nem muito menos de uma cultura. Daí esperava.
terem cunhado a expressão indústria cul- Em tal trajetória, a análise social, antes
tural para designar esse fenômeno que re- focada na produção, foi impelida para a
monta ao passado, mas que aparece plena- dimensão da reprodução e por meio desse
mente configurado apenas após o final da caminho tem trazido à tona a discussão dos
Segunda Guerra Mundial. limites ou fronteiras da modernidade.
Para Adorno, a cultura é pensada den-
tro da tradição filosófica alemã e, nesses
termos, ela se caracteriza por ser crítica,
pela possibilidade de pôr a realidade a nu VISÕES DA PÓS-MODERNIDADE
e de apontar para mais além. Não é isso o
que caracteriza os produtos da indústria Nos anos 80, por exemplo, Lash e Urry
cultural. Ao contrário, tendo fórmulas no analisam o processo de modernização em
lugar da forma (14), e sendo feitos se- cinco países capitalistas diferentes no
gundo a mesma lógica que comanda a pro- chamado Primeiro Mundo (Inglaterra,
dução das demais mercadorias no capita- França, Alemanha, Suécia e EUA) e de-
lismo contemporâneo (ou monopolista, tectam, para além das diferenças, a pre-
ou maduro, dependendo do referencial te- sença de três ordens de mudança em cur-
órico), os produtos da indústria cultural so em todos eles: a internacionalização
não são “nem regras para uma vida feliz (econômica, financeira, de estruturas es-
nem um novo poema moral, mas aquilo tatais, de modos de lazer e cultura); a
que tem por trás de si os mais graúdos descentralização de uma série de proces-
interesses” (15). sos (da indústria, da população urbana,
Os produtos da indústria cultural apre- de tudo o que era de massas, com ênfase
sentam apenas a aparência do real. Operam crescente no que é de âmbito local); o
como um ruído da realidade. E junto com a aumento em tamanho e efetividade da
publicidade ajudam a reproduzir essa soci- classe de serviços (16). Mas a prolifera-
edade – não só porque a publicidade e as ção de teorias sobre a pós-modernidade
mensagens da indústria cultural por ela remonta aos anos 70.
patrocinadas ajudam a vender outras mer- Baudrillard, um dos autores mais liga-
14 Estou tomando o termo “forma” cadorias, mas também porque ajudam a dos à temática da pós-modernidade, co-
no sentido em que G. Lukács o
define em L’Ame et les Formes
propagar uma visão de mundo coerente com meça a usar o termo pós-moderno apenas
(trad. francesa da ed. alemã a manutenção dessa sociedade. a partir dos anos 80, mas em seus traba-
de 1971, que retoma a ed.
original alemã de 1911, Paris, Para Adorno, como se sabe, a indústria lhos anteriores já se encontram diversos
Gallimard, 1974) como algo cultural é apenas a ponta de um iceberg, temas ligados à mídia, à sociedade de con-
irredutível: a melhor maneira de
expressar um conteúdo deter- que é a sociedade administrada. Nela vive- sumo e à proliferação de signos que a ca-
minado.
se o processo de socialização total. Não há racteriza, que reaparecem no contexto da
15 T. W. Adorno, “A Indústria Cul-
tural”, in Gabriel Cohn (org.), mais um sujeito que a possa ou queira trans- discussão que faz posteriormente da pós-
Comunicação e Indústria Cul- formar. O mal-estar de Adorno, e não só modernidade. Nesse sentido, seus textos
tural, São Paulo, Nacional/
USP, 1971. dele, dos marxistas todos, decorre, no fun- de meados dos anos 70 em diante também
16 S. Lash and J. Urry, The End of do, de uma espécie de aposta no proletari- merecem ser considerados, no que dizem
Organized Capitalism London, ado como sujeito de transformação históri- respeito ao desenvolvimento de sua pers-
Polity Press, 1987, esp. pp.
300 e segs. ca, que não foi bem-sucedida; pelo menos, pectiva pós-moderna.

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que nelas se despedaça” (22).
O fim do social A existência dessas massas responde
também pelo abismo do sentido que carac-
O eixo do trabalho de Baudrillard está teriza a sociedade atual.
na reprodução da totalidade social (e não A perda ou o vácuo de significado a que
na produção). Sua análise diz respeito ao esse autor se refere exige trazer à tona um
fim da era da modernidade, dominada pela outro componente desse quadro: é a falta
produção e pelo capitalismo industrial, e de profundidade. Em um artigo de 1984,
caracterizada pela tecnologia industrial e ele compara a modernidade e a pós-moder-
pela explosão da mercantilização; e ao ad- nidade, vendo a primeira como um proces-
vento da era de uma pós-modernidade pós- so de desencantamento do mundo, que é
industrial, constituída por novas formas de marcado pela destruição das aparências, e
tecnologia, cultura e sociedade; nessa nova a segunda como um processo de destruição
era, tornam-se centrais as “simulações” e dos significados.
uma “hiper-realidade”, com a “implosão” Essa idéia pode tornar-se mais explíci-
de todas as fronteiras e distinções entre alta ta, conforme Kellner, se se considerar a
e baixa cultura, aparência e realidade e qual- modernidade como um momento em que
quer outra oposição binária mantida pela reinaram Marx e Freud, em que a política,
filosofia e teoria social tradicionais (17). a cultura e a vida social eram interpretadas
Esse processo tem como contrapartida o como epifenômenos da economia, ou tudo
fim de todas as positividades, dos grandes era interpretado em termos do desejo e do
referentes e das finalidades da teoria social inconsciente. Essas interpretações usavam
prévia: o real, o significado, a história, o modelos de profundidade para tentar trazer
poder, a revolução e até o próprio social (18). à tona o que estava escondido por detrás do
Assim, enquanto a modernidade poderia aparente. A modernidade, nesse sentido,
ser caracterizada como um processo de racio- foi uma revolução do significado ancorada 17 D. Kellner, “Postmodernism as
Social Theory: Some
nalização e diferenciação crescentes de es- na economia, na história ou no desejo. Mas Challenges and Problems”, in
feras da vida, com tendência à fragmenta- o significado requer profundidade, uma Theory, Culture and Society,
London, Newbury Park, Beverly
ção social e à alienação, a pós-modernidade dimensão escondida, um substrato não vis- Hills and New Delhi, SAGE,
1988, 5 (2/3), pp. 240-2.
poderia ser interpretada como um processo to; e na sociedade pós-moderna, no entan-
to, tudo é visível, explícito, transparente. 18 J. Baudrillard, Simulations ,
de de-diferenciação (19), ou seja, como um
New York, Semiotext(e),
processo que tende à implosão de fronteiras Daí que, para Baudrillard, a pós-moderni- 1983a.
entre dimensões ou aspectos da vida social dade corresponda a “uma segunda revolu- 19 Ver S. Lash, “Discourse or Figu-
re? Postmodernism as a ‘Regi-
previamente diferenciados. Essa implosão ção, a do século XX, […] que é o imenso me of Signification’”, in Theory,
de fronteiras é também, em Baudrillard , uma processo de destruição do significado, igual Culture and Society, London,
Newbury Park, Beverly Hills
implosão do social como um todo. à anterior destruição de aparências” (23). and New Delhi, SAGE, 1988,
5 (2/3), pp. 311-36; e
A de-diferenciação e a implosão do so- Vendo essa mesma questão por outro Sociology of Postmodernism,
cial talvez fiquem mais claras quando se leva ângulo, como o faz no texto sobre as mai- London, Routledge, 1990.
em conta seu trabalho de 1983 À Sombra orias silenciosas, Baudrillard diz que o 20 J. Baudrillard, À Sombra das
Maiorias Silenciosas, São Pau-
das Maiorias Silenciosas (20). Quem é a objetivo de qualquer informação, seja ela lo, Brasiliense, 1985 (1983b,
maioria silenciosa? As massas, responde ele política, pedagógica ou o que for, é “filtrar 1a ed., em francês). Observe-
se que as citações diretas que
já no início do texto, quando afirma que “todo um sentido” (24). O problema é que isso faço, com referência de pági-
nas, são da tradução portugue-
o confuso amontoado do social se move em supõe uma comunicação racional; e as sa, de 1985.
torno desse referente esponjoso, dessa rea- massas estão interessadas no espetáculo e 21 Idem, ibidem, p. 9.
lidade ao mesmo tempo opaca e translúcida, não no sentido, ao qual são simplesmente
22 Idem, ibidem, pp. 12-4
desse nada: as massas” (21). As massas são impermeáveis, segundo o autor (25).
23 Idem, “On Nihilism”, in On the
vistas como neutras, no sentido que tem esta Ele dá como exemplo o fato de que na Beach 6, Spring,1984, pp. 38-
9, apud D. Kellner, op. cit.,
palavra, a saber, ne uter (nem um nem ou- noite de extradição do advogado alemão 1988, p. 246.
tro); e como um buraco negro, que absorve Klaus Croissant da França, a TV transmitiu 24 Idem, À Sombra das Maiorias
tudo e não reflete nada. Elas não refletem o um jogo de futebol do qual dependia a clas- Silenciosas, op. cit., p. 14.
social. Ao contrário, “é o espelho do social sificação da França para a Copa do Mundo. 25 Idem, ibidem, p. 16.

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E o jogo despertou muito mais interesse que envolve nenhum conceito de verdade soci-
o drama político e humano de Croissant. Diz al, psicológica, histórica.
que isso causou certa indignação em certos A partir do século XVIII, principalmente
círculos, mas que ninguém se perguntou da após a Revolução Francesa, o político pas-
razão dessa indiferença das massas e quan- sa a ter uma referência social, “o social se
do o fez respondeu sempre do mesmo mo- apodera dele” (da política). A questão da
do: atribuindo a indiferença a uma suposta representação (representar o povo, a von-
manipulação das massas pelo poder. Para tade do povo, etc.) se torna relevante, as-
Baudrillard essa explicação não convence: sim como os mecanismos representativos;
nesse raciocínio, “a ‘maioria silenciosa’ é e o espaço da política se torna o espaço “de
despossuída até de sua indiferença” (26). evocação de um significado fundamental:
O que ele acha que é preciso perguntar é: o povo, a vontade do povo etc.”.
Ela começa então a refletir o social.
“por que após inúmeras revoluções e um Nesse momento, a política deixa de ser mero
século ou dois de aprendizagem política, jogo de signos e passa a trabalhar sobre um
apesar dos jornais, dos sindicatos, dos par- sentido: “de repente eis que é obrigada a
tidos, dos intelectuais e de todas as ener- significar o melhor possível esse real que
gias postas a educar e a mobilizar o povo, ela exprime, intimada a se tornar transpa-
por que ainda se encontram (e se encontra- rente, a se mobilizar e a responder ao ideal
rão mesmo em dez ou vinte anos) mil pes- social de uma boa representação” (30).
soas para se mobilizar e vinte milhões para Durante um certo tempo – que, para
ficarem ‘passivas’? – e não somente passi- Baudrillard, “corresponde à idade de ouro
vas, mas por francamente preferirem, com dos sistemas representativos burgueses (a
toda a boa fé e satisfação, e sem mesmo se constitucionalidade: a Inglaterra do século
perguntarem por que, um jogo de futebol a XVIII, os EUA, a França das revoluções
um drama político e humano?” (27). burguesas, a Europa de 1848)” – ainda ha-
verá um certo equilíbrio entre esse caráter
Para Baudrillard, essa constatação, em de representação e suas características de
vez de subverter a análise do comporta- jogo em uma esfera própria. A política, por-
mento das massas, apenas reforçou a idéia tanto, ainda mantém sua autonomia, não é
de que elas são objeto de manipulação. A mero reflexo do social, do econômico, etc.
seu ver, no entanto, o problema das massas Com o marxismo e seus seguidores,
não é o de serem manipuladas. O problema inaugura-se “o fim do político e de sua
é que elas são indiferentes (28), e o melhor energia própria”, pois “começa a hege-
que se pode fazer é reconhecer isso antes monia definitiva do social e do econômico
de qualquer coisa. e a coação, para o político, de ser o espelho,
Ele tenta remeter a explicação dessa legislativo, institucional, executivo, do
indiferença à evolução que teve a esfera social. A autonomia do político é inversa-
política. Exemplificando com Maquiavel, mente proporcional à crescente hegemonia
afirma que quando o político surge da esfe- do social” (31). Mas, nesse momento, o
ra religiosa e eclesiástica na época da Re- social, que passa a abarcar tudo, desapare-
nascença, ele é, antes de tudo, apenas um ce: “sua especificidade se perde”, o social
“puro jogo de signos, uma pura estratégia se tornou anônimo, ele se tornou “as mas-
que não se preocupa com nenhuma ‘verda- sas”. Em outras palavras, o social deixa de
26 Idem, ibidem, p. 17. ser um significado que possa dar força a
de’ social ou histórica; ao contrário, joga
27 Idem, ibidem. com a ausência de verdade […] O espaço um significante político, pois o único refe-
28 Idem, ibidem, p. 18. político inicialmente é da mesma natureza rente é a maioria silenciosa (32).
29 Idem, ibidem, p.19. do teatro de intriga da Renascença […]” E a maioria silenciosa só existe nas es-
30 Idem, ibidem, p. 20. (29). Em outras palavras, a política é um tatísticas, só se revela nas sondagens, nesse
31 Idem, ibidem, pp. 20-1. jogo, um exercício de simulações e o su- sentido ela não é um referente social. A
32 Idem, ibidem, p. 22 cesso nela depende de virtuosismo; ela não maioria silenciosa é uma “simulação do

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social, onde o social já desapareceu” (33). gosto, livros de cuidados com crianças,
Isso não quer dizer que as massas não manuais sexuais, livros de culinária e re-
existam, quer dizer que com elas a repre- vistas, jornais e media de broadcast, todos
sentação não é mais possível, ninguém pode fornecem modelos que estruturam várias
dizer que fala em nome da maioria silencio- atividades na vida quotidiana. Modelos e
sa, como antes se falava em nome do povo códigos, assim, passam a estruturar a vida
ou de uma classe. A massa não se exprime, quotidiana e a modulação dos códigos pas-
ela é sondada em enquetes; o paradoxo, sa a constituir um sistema de diferenças e
como diz Baudrillard (34), é que não se relações em uma sociedade de simulações”.
trata de as massas serem silenciosas (não se
trata, tampouco, de alienação); mais do que Conforme mostra Kellner, os códigos
isso, o seu silêncio impede que se fale em inscrevem os indivíduos nesse sistema de
seu nome. Isso faz abortar qualquer projeto simulações e os testam sempre de acordo
ou esperança de uma revolução social com um sistema binário do tipo: você é a
As simulações e os simulacra são, as- favor ou contra x? As pessoas são inscritas
sim, outro componente desse quadro auto- “em um sistema codificado de similarida-
reprodutivo. A idéia de Baudrillard é que des e dessimilaridades, de identidades e de
eles passam a dominar a ordem social na diferenças programadas”. Nesse sentido é
pós-modernidade, na medida em que os que Baudrillard vê o triunfo da cibernética :
modelos precedem o real e passam a cons- “tudo é reduzido a um sistema binário, cujos
tituir a sociedade como uma hiper-realida- dois pólos supostamente dominantes (isto
de. Os simulacra são representações ou é, partidos políticos, superpotências mun-
cópias de eventos ou objetos. Segundo diais, etc.) anulam suas diferenças e ser-
Baudrillard, há diversas ordens de simula- vem para manter um sistema auto-regula-
cra, que apareceram historicamente em do e sempre idêntico a si mesmo” (36).
períodos distintos: a primeira no Renas- Em suma, “a própria definição do real
cimento, a segunda na Revolução Industri- se torna: aquilo do que é possível dar uma
al (com o advento da produção de objetos reprodução equivalente – o real não é ape-
em série). Estaríamos hoje na terceira or- nas o que pode ser reproduzido, mas o que
dem, constituída pelos modelos de simula- já está sendo sempre reproduzido, o hiper-
ção, “uma ordem neocapitalista cibernéti- real ” (37).
ca que visa agora ao controle total” (35). Nesse quadro, a pós-modernidade colo-
Baudrillard faz uma analogia entre lin- ca-se como uma situação que se move, mas
guagem, genética e a organização social não progride, pois não há social nem repre-
para explicar o que fazem esses modelos de sentação nem sujeito nem sentido nem
simulação: história; é a época de uma espécie de pós-
história: “A pós-modernidade não é uma
“Assim como a linguagem contém códigos época otimista nem pessimista. É um jogo
ou modelos que estruturam o modo como com os vestígios do que foi destruído. É por
nos comunicamos – e nossas células con- isso que somos ‘pós’ – a história parou” (38).
têm códigos genéticos, DNA, que estru-
turam nossa experiência e nosso compor-
tamento–, assim também a sociedade con- A centralidade do 33 Idem, ibidem (grifo meu).
34 Idem, ibidem, pp. 22-3.
tém códigos e modelos de organização so-
cial e de controle que estruturam o ambien- conhecimento e a crise das 35 Idem, Simulations, New York,
Semiotext(e), apud D. Kellner,
op. cit., p. 243.
te e a vida humana. Ou seja, modelos urba-
nos, arquitetônicos e de transporte estru- grandes narrativas 36 D. Kellner, op. cit., pp. 244-5.
37 Baudrillard, Simulations, New
turam, dentro de certos limites, como as York, Semiotext(e), apud D.
Kellner, op. cit., p. 243.
cidades, casas e sistemas de transporte são Se Baudrillard vê a pós-modernidade
organizados e usados. Dentro de ‘casas- como uma condição que a sociedade assu- 38 Idem, “On Nihilism”, p. 25,
apud D. Kellner, op. cit., p.
modelo’, códigos de design, decoração e me a partir de determinado momento, 248 (grifo meu).

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Lyotard analisa a pós-modernidade em ter- conhecimento. Essas novas condições do
mos da condição do conhecimento nas so- conhecimento são fruto de transforma-
ciedades mais desenvolvidas, e a coloca no ções sociais: “nossa hipótese de trabalho
contexto da crise das narrativas: é que o status do conhecimento é altera-
do, à medida que as sociedades entram
“O termo (pós-moderno) tem uso corrente no que é conhecido como era pós-indus-
no continente americano entre sociólogos trial e as culturas entram no que é conhe-
e críticos; ele designa o estado de nossa cido como era pós-moderna. Essa transi-
cultura que se segue a transformações que, ção vem ocorrendo, pelo menos desde o
desde o fim do século XIX, alteraram as fim dos anos 50, que, para a Europa,
regras do jogo para a ciência, a literatura e marcam o fim da reconstrução” (42). Tais
as artes. O presente estudo colocará essas transformações afetam tanto a pesquisa
transformações no contexto da crise das nar- quanto a transmissão do conhecimento
rativas” (39). adquirido. A informatização faz o conhe-
cimento se subordinar à sua tradução em
Nesse enquadramento, ele define bits, faz com que ele se exteriorize em
como moderna a ciência que busca sua relação a seu depositário e passe a circu-
legitimação em uma grande narrativa na lar como uma mercadoria, com precedên-
filosofia: cia do valor e do valor de troca sobre o
valor de uso.
“Vou designar como moderna qualquer A mercantilização do conhecimento e
ciência que se legitima com referência a sua proeminência crescente no conjunto da
um metadiscurso desse tipo, fazendo um capacidade produtiva de um Estado-nação,
apelo explícito a alguma grande narrati- por sua vez, têm implicações sobre a esfera
va, tal como a dialética do Espírito, a do poder: os Estados-nação podem vir a
hermenêutica do significado, a emanci- lutar pelo controle da informação, assim
pação do sujeito racional ou que traba- como no passado lutaram por territórios,
lha, ou a criação da riqueza. Por exem- por matérias-primas ou por mão-de-obra
plo, a regra do consenso entre o emissor barata. E o gap entre os países desenvolvi-
e o destinatário de uma afirmação com dos e os não-desenvolvidos deverá aumen-
valor-verdade é vista como aceitável, se tar, em função da centralidade que o co-
é tomada em termos de uma possível una- nhecimento adquire no sistema produtivo.
nimidade entre duas mentes racionais: Essas são apenas algumas implicações (43).
essa é a narrativa do Iluminismo, na qual Mas são suficientes para encaminhar a pre-
o herói do conhecimento trabalha em ocupação de Lyotard com a ligação entre o
direção a um bom objetivo político-ético conhecimento e o poder.
– a paz universal” (40). Para analisar o estado do conhecimen-
to, é preciso saber alguma coisa da socie-
E a ciência pós-moderna é definida dade na qual ele ocorre. E isso implica
como aquela que desconfia de e questiona escolher um approach para ver a socieda-
tais grandes narrativas: “Simplificando de: uma sociedade como um todo integra-
ao extremo, defino o pós-moderno como do ou como uma totalidade dividida? O
39 Jean-François Lyotard, The
a incredulidade em relação a conhecimento em um caso é funcional, no
Postmodern Condition (1a ed. metanarrativas. Essa incredulidade, sem outro é crítico (44). Para superar esse par
francês, 1979) trad. ingl., Univ.
of Minnesota Press, 1984, p. dúvida, é um produto do progresso nas de alternativas, Lyotard introduz a abor-
xxiii. ciências: mas tal progresso, por sua vez, a dagem dos jogos de linguagem. São eles
40 Idem, ibidem, pp. xxiii-xxiv. pressupõe” (41). que fazem o social bond (que ligam as
41 Idem, ibidem, p. xxiv. Nesse report on knowledge (subtítulo pessoas umas às outras e viabilizam a so-
42 Idem, ibidem, p. 3. de seu trabalho), a questão que se coloca ciedade).
43 Idem, ibidem, pp. 4-6. é de criar uma nova epistemologia, que Conforme Kellner, a visão que Lyotard
44 Idem, ibidem, pp. 11-3. possa fazer face às novas condições do tem da sociedade pós-moderna é

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“a de uma (sociedade) na qual se luta den-
tro de vários jogos de linguagem em um A explosão da cultura
ambiente agônico, caracterizado pela di-
versidade, pelo conflito e pela dificuldade Um outro intelectual que se preocupa
– até a indesejabilidade e a impossibilidade com a pós-modernidade é Frederic
– de um consenso não forçado. [E] o co- Jameson. Tal como Baudrillard e Lyotard,
nhecimento pós-moderno para Lyotard ele vê a pós-modernidade em termos de um
envolve conhecimento de terrenos locais e corte em relação ao desenvolvimento soci-
tolerância para com uma variedade e di- al anterior, mas faz isso tentando manter-
versidade de jogos de linguagem […] ele se no âmbito de uma grande narrativa (o
diz que a ciência atual joga para o alto a marxismo) .
idéia de um universo estável e sugere que Como diz no próprio título de seu en-
o conhecimento precisa constantemente saio de 1984, ele busca estabelecer a dife-
modificar-se a si mesmo e precisa ser rença entre o moderno e o pós-moderno, à
tentativo, probabilístico e passível de revi- luz da concepção de uma norma hege-
são, em princípio. Essa visão do universo mônica ou de uma lógica cultural domi-
supostamente invalida não só as teorias nante (50). Esse caminho é importante por-
científicas newtonianas, mas também as que o pós-moderno é visto como um cam-
metanarrativas que afirmavam atingir a po de forças, no qual diferentes tipos de
verdade e se propunham a oferecer um re- impulsos culturais tentam se impor, tanto
lato universal e totalizante da história da os residuais como os emergentes (nem toda
sociedade ou do que quer que fosse” (45). a produção cultural dos dias de hoje é pós-
moderna). Se não atingirmos essa idéia de
Kellner se apóia na seguinte afirmativa uma dominante cultural, cairemos em uma
(entre outras) de Lyotard para dizer o que visão do presente como algo marcado pela
diz: “A grande narrativa perdeu sua heterogeneidade, por diferenças aleatórias,
credibilidade, independentemente de qual pela coexistência de forças distintas sobre
modo de unificação ela usa ou de ela ser cuja efetividade fica impossível decidir.
uma narrativa especulativa ou de emanci- Assim, Jameson tenta trabalhar o pós-mo-
pação” (46). derno em termos de uma nova norma cul-
A argumentação de Kellner, no entan- tural sistêmica e de sua reprodução. Para
to, é de que “enquanto Lyotard resiste às ele, o pós-moderno liga-se a uma mudança
grandes narrativas, é impossível discernir fundamental na esfera da cultura no capita-
como se pode ter uma teoria do pós-moder- lismo tardio, a qual inclui uma mudança na
nismo sem ter uma (grande narrativa)” (47). função social da cultura. Tal mudança
Nesse sentido, na visão de Kellner (com a consiste no fato de que se a esfera cultural
qual concordo nesse aspecto) a questão da gozou de uma semi-autonomia em estágios 45 D. Kellner, op. cit., p. 251.
pós-modernidade aparece subteorizada por anteriores do capitalismo, ela tem essa semi- 46 J.-F. Lyotard,The Postmodern
Lyotard. De qualquer modo, a idéia de autonomia destruída pela lógica do capita- Condition, op. cit., p. 37.

Lyotard é que não há uma razão, há razões, lismo tardio. 47 D. Kellner, op. cit., p. 253.
Ele desenvolve depois esse ar-
não há uma História, há histórias. Isso apa- Inspirando-se na periodização de gumento, tentando qualificar as
narrativas em grupos distintos
rece mais claramente na entrevista que ele Mandel – capitalismo de mercado, capita- e especificar suas concordân-
concedeu após ter escrito A Condição Pós- lismo monopolista (ou imperialismo) e cias e discordâncias em rela-
ção a Lyotard. Mas isso está
moderna (48). capitalismo tardio (ou multinacional ou do fora do escopo deste trabalho.
Finalmente, se em Lyotard a pós-mo- consumidor) – Jameson caracteriza esse ter- 48 Jean-François Lyotard, entrevis-
dernidade aparece em alguns momentos ceiro estágio do capitalismo como a forma ta a Theory, Culture and
Society, vol. 5, nr 2-3, 1988,
como uma época específica, como vimos mais pura de capital, como a expansão pro- pp. 227-309.
em algumas passagens acima, em outros digiosa do capital para áreas até então não 49 Idem, ibidem, p. 237.
ela aparece não como “o fim do modernis- sujeitas à mercantilização. 50 Frederic Jameson,“Postmod-
mo”, mas como “uma outra relação com o Jameson trabalha sobre a idéia frank- ernism or the Cultural Logic of
Late Capitalism”, in New Left
modernismo” (49). furtiana da expansão da lógica mercantil Review, 146, 1984, p. 57.

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para todas as dimensões da vida social, cessidade de uma grande narrativa e,
expansão essa que, no presente estágio, continuando pela crítica a seus métodos,
atinge e engloba a informação, o conheci- que considera pouco confiáveis por se-
mento, a consciência e a experiência, em rem pouco sistemáticos, vê nessas teo-
um grau nunca antes atingido. rias, no entanto, o mérito de apontarem
E é essa expansão que destrói a semi- para mudanças na ordem social, das quais
autonomia que a esfera cultural detinha é necessário dar-se conta.
anteriormente. Até aqui sua visão se apro- Esse dar-se conta Featherstone preco-
xima muito da perspectiva frankfurtiana dos niza que se faça no âmbito de uma sociolo-
anos 30. Mas, para Jameson, essa perda de gia da pós-modernidade e não no de uma
autonomia não implica necessariamente a sociologia pós-moderna – pois esta, a ri-
extinção da cultura. Ao contrário, a disso- gor, nem poderia ser chamada de sociolo-
lução de uma esfera cultural deve ser vista gia. Nesse aspecto, vê, como tarefa inicial,
em termos de uma explosão, isto é, trata-se a tentativa de se fazer um relato da pós-
de uma expansão da cultura pelo reino modernidade. A primeira coisa que nota é
social, a um ponto tal que tudo na vida social a pós-modernidade apontando para mudan-
se torna cultural em algum sentido, ainda ças na cultura contemporânea. Usando um
que tal sentido não tenha sido teorizado (51). raciocínio ancorado em Bourdieu, ele clas-
Esse “tudo” envolve os valores econômi- sifica essas mudanças em: a) mudanças nos
cos, o poder do Estado, as práticas e a estru- campos artístico, intelectual e acadêmico
tura psicológica. (mudanças em modos de teorização, apre-
Já Habermas, da última geração dos sentação e disseminação de trabalho que
frankfurtianos, toma um caminho distin- não podem ser desligadas de competições
to, que começa por rejeitar a expressão específicas em determinados campos); b)
pós-modernidade (52). Habermas argu- mudanças na esfera cultural mais ampla,
menta que a modernidade é um projeto envolvendo os modos de produção, consu-
que ainda não se completou (53). Esse mo e circulação de bens simbólicos que
projeto é visto através dos “esforços para podem ser relacionadas a mudanças no
desenvolver uma ciência objetiva, uma equilíbrio de poder e na interdependência
moralidade e leis universais e uma arte de grupos e frações de classes nos níveis
autônoma, de acordo com sua lógica in- intra e intersocietário; c) mudanças nas
terna. Ao mesmo tempo, esse projeto pre- práticas e experiências quotidianas de di-
tendia liberar de formas esotéricas os po- versos grupos, os quais, em função de
tenciais cognitivos de cada um desses mudanças mencionadas acima, podem es-
domínios. Os filósofos da Ilustração queri- tar usando regimes de significação em di-
am utilizar essa acumulação de cultura es- ferentes maneiras e desenvolvendo novos
pecializada para o enriquecimento da vida meios de orientação e novas estruturas de
51 Idem, ibidem, p. 87.
quotidiana, ou seja, para a organização ra- identidade (55).
52 Essa rejeição do termo pós-mo-
dernidade nos leva a apenas
cional da vida social quotidiana” (54). Essas mudanças são importantes, pois
mencionar seu trabalho, sem Habermas reconhece que esse projeto dizem respeito não apenas ao que ocorre
entrar em detalhes neste texto.
Da mesma maneira não nos de- resultou na subordinação da vida à lógica “concretamente” na sociedade, mas tam-
bruçamos sobre vários outros
de uma racionalidade científico-tecnoló- bém a mudanças em nossa percepção e
autores contemporâneos da
maior importância, tais como gica e na dominação por uma cultura de sensibilidade em relação ao que acontece,
Bourdieu, Giddens, Foucault.
especialistas, mas vê nesse projeto um po- que, por sua vez, podem engendrar mu-
53 J. Habermas, O Discurso Filo-
sófico da Modernidade, trad. tencial para uma crescente racionalidade danças “concretas”. Além disso,
port. Lisboa, 1990. social, justiça e moralidade. Featherstone nos remete de volta à busca
54 Idem, “Modernity versus Featherstone, finalmente, rejeita não do que haveria de novo na sociedade, nes-
Postmodernity”, in New German
Critique 33, 1990, p. 9, apud a idéia da pós-modernidade, mas sim a sa fase que alguns têm caracterizado como
D. Kellner, op. cit., p. 264. possibilidade de se trabalhar a partir de pós-moderna, ou seja, ele nos faz pensar
55 Mike Featherstone,Consumer teorias pós-modernas, tal como se apre- de novo na questão dos limites ou frontei-
Culture and Postmodernism ,
London, Sage, 1991, p. 11. sentam, a começar pela questão da ne- ras da modernidade.

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cia contendo produtos com características
RUMO A UMA SOCIOLOGIA DA distintas, a custos semelhantes aos que se
teria se os produtos fossem padronizados.
PÓS-MODERNIDADE? Abre-se então uma possibilidade tecno-
lógica de despadronizar o consumo tam-
No que diz respeito ao primeiro grupo bém. A técnica de segmentação de merca-
de mudanças assinaladas por Featherstone, dos promovida pelo marketing ganha sus-
que mencionamos mais acima, é importan- tentação com essa nova tecnologia de pro-
te notar como a crítica ao capitalismo fora dução. Em vez de ter o foco no produto e
feita sempre no marco de uma outra grande procurar um homem médio para consumi-
narrativa, a saber, a visão socialista. lo, passa-se a ter o “foco no cliente”
A partir, grosso modo, de meados dos (segmentação do mercado até o nível de
anos 60 – 68 talvez seja um marco, se se personalização, se possível) e a buscar fa-
quiser usar uma data – a crítica ao capita- zer um produto que atenda a seus desejos,
lismo fragmentou-se em uma série de pos- necessidades ou expectativas.
turas que, no fundo, tomam o capitalismo A TV, ícone da indústria cultural, por
como um “dado de realidade” e tentam ser um veículo-síntese, passa a chamar-se
“melhorá-lo”, incidindo sobre aspectos “TV aberta” e perde espaço no mercado
específicos dele. As lutas de classe cede- para as TVs a cabo (segmentadas). Mas,
ram lugar a movimentos sociais com novos mais do que isso, perde espaço para a
atores: mulheres, gays, consumidores, eco- Internet.
logistas, para falar de alguns. Embora ainda incipiente em termos de
Houve também outras mudanças “con- número de usuários, a Internet tem uma
cretas”: assim, quase na virada para os anos estrutura que subverte completamente os
90, caiu o muro de Berlim; pouco depois princípios até então dominantes na indús-
implodiu a União Soviética. Era um peda- tria cultural, na medida em que o número
ço enorme da parte realizada de uma utopia de emissores de mensagens pode crescer
que vinha abaixo. Com ela, veio abaixo ao infinito e sem passar por qualquer filtro
também muito da autoconfiança das esquer- controlador (pelo menos até o momento).
das. E uma imensa perplexidade. Essa tam- E há possibilidade de resposta eficaz a uma
bém é uma questão que envolve os limites mensagem na Internet, ao contrário da TV
da modernidade. aberta. Ninguém controla a Internet (56).
Um conjunto de outras transformações A lógica de confecção das mensagens na
vem trazendo à tona permanentemente a Internet é distinta da do sistema da indús-
questão de se saber se batemos ou não nos tria cultural, embora possa abrigar mensa-
limites (é nesse sentido que estamos toman- gens dessa última também. Então a comu-
do o termo fronteiras) da modernidade, se nicação e a cultura estão sofrendo transfor-
estamos ou não entrando em uma era pós- mações também.
moderna. A globalização é outra transformação-
O salto tecnológico da informática, cu- chave que talvez bata ou ultrapasse as fron-
jas origens remontam a estudos militares teiras da modernidade. Não porque o mer-
de eletrônica digital durante a Segunda cado se internacionalize, mas porque essa
Guerra Mundial nos EUA, mas que fica internacionalização está atingindo propor-
muito claro a partir dos anos 80, está alte- ções tais e está se fazendo de formas tais
rando a base produtiva de nossa sociedade. que o espaço dos estados nacionais vem
A produção rígida mecânica entrou na era sendo abalado. Acossados pelas dificulda-
da automação, do controle numérico e tor- des reveladas pelos projetos de Estado de
nou-se flexível. Essa flexibilidade tornou Bem-estar e assemelhados desde os cho-
possível despadronizar os produtos. Isso ques do petróleo na década de 1970, e ago-
significa que em uma mesma linha de ra tendo seu poder diminuído pelos acor- 56 Estou levando em conta a tipo-
logia de Wright Mills de públi-
montagem pode-se produzir uma seqüên- dos e blocos internacionais e pela volati- co e massa.

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lidade do “capital eletrônico”, os Estados dente mais tarde, com o advento dos
nacionais vivem problemas, cujas soluções microcomputadores.
talvez ponham em questão o próprio con- Sobre essas transformações, que men-
ceito de Estado-nação. Essa problemática cionei a título de exemplos, sem esgotar o
fica mais complexa ainda quando se leva assunto, vêm-se colocando questões cujas
em conta que como contrapartida à globali- respostas não se tem podido encontrar fa-
zação está ocorrendo uma reafirmação de cilmente dentro dos paradigmas atuais.
identidades e etnias regionais e locais, que Abriu-se uma crise de paradigmas – no
têm sido – e, possivelmente, ainda serão sentido de Kuhn – na sociologia, decorren-
num futuro próximo – foco de muita tensão te de um acúmulo de “anomalias”. E como
social, em alguns casos, levando a mudan- é característico de crises desse tipo, às ve-
ças físicas de fronteiras de Estados pree- zes tem-se a impressão de se estar diante de
xistentes (57). conversas de surdos.
Assim, a globalização traz novas ques- Enquanto alguns dizem, por exemplo,
tões também. E possivelmente novas solu- que o marxismo morreu, porque está an-
ções e propostas: o espaço que o Estado corado no conceito de valor do trabalho
nacional vem perdendo vem sendo ganho, humano e nossa sociedade tem produção
ao menos em parte, pelas ONGs, apesar de automatizada – e , aliás, não se sabe se-
inicialmente se ter tido a impressão de que quer se o trabalho ainda é uma categoria
o mercado o engoliria todo. As ONGs se estruturante da vida social, posto que as
colocam como integrantes do Terceiro Setor novas tecnologias criam um desemprego
(nem empresa privada nem Estado); ao estrutural crescente –, outros dizem que
mesmo tempo, muitas delas são internacio- Marx “previu tudo isso” e mais a globa-
nais (podemos dizer que são globais). En- lização, que não é mais que uma nova
tão substituem parte do Estado e talvez tam- forma de o velho e conhecido imperialis-
bém da nação. mo se manifestar.
As transformações que vêm atingindo Da mesma maneira, discute-se se esta-
as empresas nas últimas décadas, em de- mos na modernidade ou se entramos na pós-
corrência de saltos tecnológicos, das alte- modernidade. A favor do primeiro argu-
rações no mercado e na competição entre mento, lança-se mão do fato – verdadeiro –
elas também levantam questões. Já de que nossa sociedade ainda é burguesa e
Galbraith, nos anos de 1960, chamava a capitalista.
atenção (58) para o fenômeno da mudança Em contrário, argumenta-se listando
nessas empresas. Não só algumas delas ti- todos os fenômenos que mencionei e mais
nham um número tão grande de acionistas outros tantos, dizendo que, em conjunto,
que a figura do capitalista-proprietário se eles geram uma nova articulação, que apon-
tornara intangível e fragmentada; também ta para uma nova sociedade.
o “capitalista-patrão” perdia visibilidade. Temos figuras como Lyotard – que põe
Galbraith afirmava que o poder dentro da em xeque as grandes narrativas – e como
empresa passara para a tecnoestrutura, um Baudrillard, para quem a história acabou e
grupo de assalariados que incluía a direto- o social transformou-se apenas em um si-
ria – muitas vezes assalariada também – mulacro de si mesmo, pondo fim, por con-
mais uma série de trabalhadores intelectu- seqüência, ao espaço da sociologia. Mas
ais. Em conjunto – e para além das hierar- temos também um Bourdieu que, trabalhan-
quias formais – eles mandavam nas empre- do no âmbito da reprodução social, conti-
sas. Galbraith prenunciava, assim, a passa- nua a fazer uma sociologia berçada nos clás-
57 Não estou ignorando a prévia gem da estrutura burocrática para a estru- sicos, para a qual vem dando uma contri-
artificialidade étnico-cultural de
alguns desses estados. tura de redes como princípio organizador buição amplamente reconhecida – mesmo
58 J. K. Galbraith, O Novo Estado interno das empresas – que continuam a no interior de discordâncias – pela comuni-
Industrial, Rio de Janeiro, Civi- perseguir os lucros, é bom não esquecer. dade acadêmica. E essa parece ser a trilha
lização Brasileira, 1969 (espe-
cialmente cap. VI). Esse princípio começaria a ficar mais evi- mais fecunda.

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Com efeito, por mais sedutores que os Apesar da crise de paradigmas, que
argumentos dos pós-modernos possam ser, envolve conceitos básicos, como o de Es-
é difícil imaginar que se possa teorizar al- tado-nação, o de valor baseado no trabalho
guma coisa sem ter uma teoria (ou seja, humano, para citar apenas alguns, o impor-
uma grande narrativa); e talvez, mais que tante é tentar compreender o efeito conjun-
uma teoria pós-moderna, seja interessante to que a avalanche de transformações que
seguir o conselho de Featherstone e tentar estamos vivendo, nessa passagem de uma
entender a pós-modernidade através da so- sociedade industrial para uma de informa-
ciologia; mas começando por um relato ção, pode acarretar sobre a vida social.
daquilo que aponta para a idéia de pós- Ainda que dentro de um modo de produção
modernidade. E não se trata de considerar capitalista, tais transformações engendram
apenas a dimensão cultural da sociedade, efeitos e, possivelmente, até uma nova eta-
por mais que “tudo” tenha se tornado cul- pa em nossa sociedade. É aí que vejo a uti-
tural e que a cultura possa ter centralidade lidade de um conceito como o de pós-mo-
na análise. dernidade.

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