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Texto número 3 – Sobre o método socrático de pesquisar a verdade

Capítulo VI – dos Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, de Xenofonte.


Farei também por contar como Sócrates formava seus discípulos na dialética. Achava
que, quando se conhece bem o que seja cada coisa em particular, pode-se explicá-la aos
outros; mas que, se se ignora, não admira que se engane a si mesmo e consigo os outros.
Também não cessava de investigar com seus discípulos o que é cada coisa em
particular. Trabalhosa empresa seria reproduzir todas as suas definições: contentar-me-
ei de referir as que, a meu ver, melhor caracterizam seus sistemas.
Primeiramente vejamos como encarava a piedade:
 Dize-me, Eutidemo, que achas da piedade?
 Por Júpiter! É a mais formosa das virtudes.
 Poderias dizer-me qual o homem piedoso?
 Aquele, penso, que honra os deuses.
 Pode cada um honrar os deuses à sua fantasia?
 Não, há leis que regulam o culto.
 Saberá quem essas leis conheça como adorar os deuses?
 Penso que sim.
 Julgará quem saiba honrar os deuses dever honrá-los de outro modo?
 Não, certamente.
 Honraríamos os deuses diferentemente do que cremos de mister?
 Não o creio.
 Portanto, não cultuará os deuses legitimamente quem conhecer as leis do culto?
 Sim.
 Quem cultuar os deuses legitimamente não os honrará como deve?
 Seguramente.
 Quem honrar os deuses como deve não será piedoso?
 Sem dúvida.
 Então não podemos definir o piedoso como aquele que conhece o culto
legítimo?
 De pleno acordo.
 Passemos aos homens. Poderá cada qual tratar seus semelhantes a seu bel-
prazer?
 Não. Só procederá legitimamente com respeito a seus semelhantes quem
conhecer as leis reguladoras das relações entre os homens.
 Então os que se tratarem reciprocamente segundo essas leis tratar-se-ão como de
dever?
 Sim.
 Não se tratarão bem os que se tratarem como de dever?
 Claro.
 Quem tratar bem seu semelhante não cumprirá seu dever de homem?
 Sim.
 Por conseguinte não procederão consoante a justiça, os que obedecerem às leis?
 É evidente.
 E a justiça, sabes o que é a justiça?
 O que ordenam as leis.
 Portanto não procederão conforme a justiça e o dever os que fizerem o que
mandam as leis?
 Poderia ser de outro modo?
 Não serão justos os que se pautam pela justiça?
 Serão.
 Crês que se possa obedecer às leis sem saber o que ordenam?
 Não.
 E, sabendo-se o que se deva fazer, julgar-se á não precisar fazê-lo?
 Não creio.
 Conheces homens que se hajam diferentemente do que creiam de mister?
 Não.
 Portanto não serão justos os que conhecerem as leis prescritas relativamente os
homens?
 Entra pelos olhos.
 Então serão justos os que se pautarem pela justiça?
 Poderia deixar de ser assim?
 Logo, não podemos definir o justo como aquele que conhece as leis prescritas
relativamente aos homens?
 É o que penso.
 E a sabedoria, como a definiremos? Dize-me, serão os sábios somente sábios no
que sabem ou também no que não sabem?
 Claro que a gente é sábio no que sabe, Como sê-lo no que não se sabe?
 Será pela ciência que os sábios são sábios?
 Como ser sábio senão pela ciência?!
 Então não achas que os sábios possam ser sábios por outra coisa que não a
ciência?
 Não.
 Logo, ciência é a sabedoria?
 Assim me parece.
 Julgas que o homem possa tudo saber?
 De maneira alguma: penso que só pose saber muito pouco.
 Então um homem não pode ser sábio em tudo?
 Está claro que não.
 Mas naquilo que sabe, cada um é realmente sábio?
 De acordo.
 Queres, Eutidemo, que analisemos do mesmo modo a natureza do bem?
 Como?
 Crês que a mesma coisa seja útil a todos?
 Não.
 O que é útil a um, por vezes é prejudicial a outro?
 De certo.
 Julgas o bem distinto do útil?
 Não.
 Logo, uma coisa só será um bem para quem for útil?
 Sim.
 O mesmo não se dá com o belo? Quando falas da beleza de um corpo, de um
vaso ou outro objeto qualquer, julgas que tal objeto seja belo para todos os usos?
 Não, certo.
 Quer dizer que cada objeto só é belo para o uso a que deve servir?
 Exatamente.
 Pode um objeto ser belo sob outro aspecto que não o do uso que dele possa
fazer-se?
 Não.
 Então uma coisa só será bela para quem for útil?
 Assim penso.
 Colocas a coragem, Eutidemo, entre as coisas belas?
 Entre as que mais o são.
 Quer dizer que não a consideras útil somente para as pequenas coisas?
 Considero útil para o que há de grande.
 Achas vantajoso, estando-se em presença de perigos terríveis, não ter-se noção
da ventura que se corre?
 De forma alguma.
 Então não são corajosos os que sem o saber arrastam perigos?
 Não, claro; do contrário haveria passar atestado de valor a muitos loucos e
covardes.
 E os que temem até o que nada tem de terrível?
 São piores que aqueles.
 Chamas corajosos, pois, aos que não têm medo nos perigos iminentes, e
covardes os que o têm?
 Precisamente.
 Chamarás corajosos a outros que não aqueles que se portam com valor em face
dos perigos?
 Não.
 E covardes, aos que se portam mal?
 A quem mais dar esse nome?
 Entretanto, cada um deles não se porta como julga dever fazê-lo?
 Necessariamente.
 Saberão os que se portam mal como deveriam portar-se?
 Não.
 Poderão porta-se como devemos que não o souberem?
 Sim, e eles somente.
 Portar-se-ão mal em face dos perigos os que souberem como devem haver-se?
 Não o creio.
 Logo, os que se portam mal não sabem como deveriam haver-se?
 É evidente.
 Por consequência, corajosos não são os que sabem como é mister haver-se nos
perigos iminentes e covardes os que não o sabem?
 De acordo.

Considerava a realeza e a tirania duas autoridades, com esta diferença: realeza chamava
um poder aceito pelos homens e conforme as leis do Estado; tirania, um poder imposto
e sem outras leis que os caprichos do chefe. Aristocracia chamava a república dirigida
por cidadãos amigos das leis. Plutocracia, aquela onde dominam os ricos. Democracia,
aquela onde todo o povo é soberano.

Se contradiziam sem apresentar provas terminantes, se afirmavam sem demonstrá-lo,


ser tal cidadão mais sábio, mais hábil político, mais corajoso, etc., que aquele de que
falava, reportava-se ao fulcro da questão:
 Dizes ser o homem que louvas melhor cidadão que o que elogio?
 Sim.
 Por que não começarmos, então, por examinar qual o próprio do bom cidadão?
 Façamo-lo.
 Na administração das riquezas, não ganha por mão o que enriquece a pátria?
 Sem dúvida.
 Em tempo de guerra, não leva a palma quem a avantaja dos adversários?
 Certamente.
 Numa embaixada, não excede quem de inimigos faz amigos?
 Não o nego.
 No congresso do povo, não leva as lampas (mostra-se superior) quem apazígua
as sedições e instaura a concórdia?
 Assim o creio.

Deste modo, resumindo a questão, tornava-se a verdade sensível aos contraditores.


Quando discorria sobre um assunto, procedia pelos princípios mais geralmente
reconhecidos, tendo por infalível este método de raciocínio. Também não conheci quem
o sobrepujasse no fazer competir sua opinião aos que o ouviam. Dizia que Homero
chama Ulisses de orador seguro da própria causa porque sabia deduzir suas razões das
ideias que todos admitem.
Xenofonte. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates (Os pensadores). 4. ed., São Paulo:
Nova Cultural, 1987. p. 151-153.

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