Você está na página 1de 142

CRER E COMPRENDER

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

CHANCELER - Dom Dadeus Grings


REITOR - Norberto Francisco Rauch
VICE-REITOR - Joaquim Clotet
CONSELHO EDITORIAL
Antoninho Muza Naime
Antonio Mano Pascual Bianchi
Délcia Enricone
Helena Noronha Cury
Jayme Paviani
Jussara Maria Rosa Mendes
Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva
Marília Gerhardt de Oliveira
Mírian de Oliveira
Urbano Zilles (Presidente)

Diretor da EDIPUCRS - Antoninho Muza Naime

EDIPUCRS
Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33
C.P. 1429
90619-900 Porto Alegre – RS
Fone/Fax.: (51) 3320-3523
E-mail edipucrs @pucrs.br
www.pucrs.br/edipucrs/
Urbano Zilles

CRER E COMPREENDER

Coleção:
FILOSOFIA – 175

PORTO ALEGRE
2004
© Copyright de EDIPUCRS, 2004

Z69. Zilles, Urbano


Crer e compreender / Urbano Zilles. – Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2004.
256 p. – (Coleção Filosofia, nº 175

ISBN: 85-7430432-8

1.Filosofia da religião. 2. Teologia. 3. Deus (Filosofia). I.


Título II. Série

CDD: 230.01

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa


desta Editora

Capa: Samir Machado


Diagramação: Mônica Severo da Silva
Diagramação da versão digital: Maria Eduarda Sardo
Impressão: Gráfica EPECÊ, com filmes fornecidos
Coordenador da Coleção: Dr. Urbano Zilles
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO / 6
Ernildo Stein
DISCURSO FILOSÓFICO E TEOLÓGICO SOBRE DEUS / 9
DEUS NA EXPERIÊNCIA TRANSCENDENTAL / 17
DEUS NA FILOSOFIA DE WITTGENSTEIN? / 28
PANORAMA DA FILOSOFIA NO FINAL DO SÉCULO XX / 35
A IMORTALIDADE DA ALMA NO ORFISMO, EM PLATÃO E PLOTINO / 52
FÉ E RAZÃO / 65
FÉ E RAZÃO NA DOUTRINA SOCIAL CATÓLICA / 73
FÉ E SIGNIFICADO DAS CIÊNCIAS / 85
ÉTICA E FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO / 95
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ / 106
TEILHARD DE CHARDIN - Uma Espiritualidade de Engajamento / 114
UMA MÍSTICA CRISTÃ? / 126
EXPERIÊNCIA DE DEUS EM TERESA DE ÁVILA E HOJE / 133
APRESENTAÇÃO

Ser filósofo é ser um homem de fronteiras. Pois a filosofia nunca se consolidou e


não se consolidará como um discurso fechado que possa se apresentar como senhora de um
objeto determinado. Essa também é a razão pela qual esse discurso mostra-se mais
inclinado para a teologia do que para os diversos tipos de conhecimento científico. É assim
que podemos dizer que existe uma proximidade entre filosofia e teologia enquanto ambos
os discursos terminam se confrontando com o inominado como jamais completamente
nominável. As maneiras de trilhar seus caminhos fizeram da filosofia e da teologia
companheiras de um perguntar que nunca se esgota na determinação de seu objeto. Foi
assim na história da filosofia ocidental e continua até hoje, num tempo em que se pensa ter
desmitificado o discurso filosófico e definido os limites de sua possibilidade, e em que
estamos tentados a remeter o discurso teológico a um campo em que se insinuaria uma
certa impossibilidade de falar com categorias racionais do objeto da teologia.
Entretanto, mais que nunca, assim como se procura disciplinar o discurso filosófico,
é necessário desenvolver, até no próprio discurso filosófico, um campo possível para o
discurso teológico. Desse modo, não haveria possibilidade alguma de não se levantar, de
diversos modos, o que a filosofia tem com a teologia e, por outro lado, não se poderia, nem
mesmo ousar, com seriedade, deixar de ver na teologia urgentes necessidades de se munir de
construções categoriais e de certos objetos da interrogação no terreno filosófico.
É certo que muitos filósofos já fizeram uma escolha, por certo arbitrária, com que
pretendem dispensar o confronto com a teologia. Mas o mais grave é que tomaram forma
discursos teológicos cuja difusão se deve exatamente à insistência em dispensarem as
análises filosóficas nas perguntas pelos diversos âmbitos da teologia. Sem dúvida alguma,
vivemos num tempo de minimalização do discurso, e isso também se reflete no campo da
filosofia e da teologia. Como se espalha pelo planeta uma espécie de falta de fôlego para as
grandes questões e como cada ser humano parece lutar apenas pela sua sobrevivência, a
humanidade se encolheu, retirou-se de volta para um nicho protetor ilusório, onde não
chegam mais as grandes questões que emanam do generoso universo da filosofia e da
teologia. Mas a questão é muito mais séria. Esse minimalismo se enraizou também, não
apenas nos corações e nas mentes, mas nas instituições e nas disciplinas, de tal modo que se
faz da filosofia e da teologia uma espécie de material mínimo para a sobrevivência.
Assim, percebemos um pouco por toda a parte se esconder a grandeza da
humanidade e das questões últimas que, na história ocidental, sempre se manifestavam
em todo o perguntar humano. Certamente não seremos dispensados de, um dia,
enfrentarmos de novo, ou talvez já estejamos enfrentando de um modo encoberto, aquilo
que faz da humanidade nesse planeta muito mais do que uma simples espécie bem
sucedida no processo evolutivo. É nesse amplo contexto que deve se Situar o livro Crer
e compreender, de Urbano Zilles. Não fosse a multiplicidade de ensaios que perpassam a

6 Coleção Filosofia - 175


sua obra filosófica e teológica e não fosse mesmo a presença viva de seu discurso,
circulando constantemente entre as fronteiras da teologia e da filosofia, nós teríamos só
nesse livro a manifestação de alguém que percebeu os enigmas das relações entre os
discursos da filosofia e da teologia, O filósofo praticamente atravessou todos os campos
essenciais, quer temáticos, quer históricos que podem manifestar os múltiplos ângulos a
partir dos quais se pode colocar a relação entre fé e razão. Atento observador dos
diversos sinais na contemporaneidade que sempre de novo nos levam a enfrentar temas
que somente o discurso filosófico aberto para a teologia e o discurso teológico aberto
para a filosofia são capazes de tratar com dignidade e coerência. Não há dúvida, que se
trata de um texto que revela a serenidade de um longo caminho de reflexão e uma
inabalável confiança na capacidade do ser humano de encontrar formas discursivas
adequadas para os enigmas de fronteira em que a filosofia e a teologia se encontram.
Mas gostaria de acentuar mais fortemente um aspecto que muitas vezes é
desconhecido no filósofo que aborda superficialmente a questão da fé e que também não se
descobre no teólogo que olha a filosofia com complacência. O Prof. Dr. Urbano Zilles possui
uma qualidade de raro equilíbrio que lhe vem de uma longa experiência filosófica e do trato
com filósofos que lhe ensinaram uma certa concretude da filosofia que não se perde em
nichos formais e pequenos. Poderíamos aplicar ao autor a bela frase de Maximo de Tiro:
―Tirai ao homem a filosofia e vós lhe tirareis o fogo que o anima, que o sustenta, que lhe dá
vida‖. Num tempo em que se exerce um profissionalismo filosófico e em que a ordem do dia
nos vem com o imperativo da especialização, de nos apequenarmos com nossas pretensões
filosóficas, são preciosos aqueles seres humanos capazes de manter a filosofia como uma
fonte de vida. E justamente essa coincidência da filosofia com a vida humana que torna tão
humano o modo como, nos diversos capítulos, o autor examina a questão das relações entre
filosofia e teologia. Mas as análises não se perdem em generalidades edificantes. Os temas e
os momentos históricos nucleares de diversas épocas é que são o motivo para a análise e as
interpretações. Uma coisa seria analisar a possibilidade dos dois discursos e do diálogo entre
eles, mas outra coisa é dar vida a esses discursos mostrando a forma que assumem ao se
colocar o problema de Deus, a questão da experiência metafísica, a questão da ética, a
questão do conhecimento científico, à questão da conciliação entre fé e razão em nível
institucional ou no coração mesmo de grandes pensadores da unidade do mundo.
Mas essa vida foi levada pelo autor até o ponto de reflexões notáveis sobre as
experiências que o ser humano realiza nas fronteiras daquilo que alguns chamam de
espiritualidade, de mística ou de experiência de Deus. Também aí a filosofia de Urbano
Zilles revela a sua sensibilidade fenomenológica diante do que poderíamos chamar do
enigma último, do inominável, no mistério. Aliás, o livro todo é percorrido por essa
espécie de constante esforço de cercar e de se aproximar de uma dicção que se esmera
em descrever o fenômeno da experiência do sagrado.
É por isso que o título Crer e compreender, tão medieval em suas ressonâncias
e, contudo, tão contemporâneo nas formas que estão escondidas na expressão, traz
exatamente para o mundo concreto dos homens as questões que os fazem interrogar
sempre e que lhes trazem uma plenitude que só é possível nessas fronteiras em que
interagem o ato que se expressa na fé e o comportamento que se revela na compreensão.

Coleção Filosofia – 175 7


Temos no livro Crer e compreender um documento do filosofar. Mas ele
contém mais que isso; contém um testemunho de quem vive num mundo, em que parece
que os seres humanos apenas querem sobreviver, em vez de arriscar-se no desconhecido,
enfrentando os limites do pensamento pelo viver.

Porto Alegre, 11 de dezembro de 2003.

Prof. Dr. Ernildo Stein

8 Coleção Filosofia - 175


DISCURSO FILOSÓFICO E TEOLÓGICO SOBRE
DEUS

O conceito de Deus é um dos mais antigos, mais universais e mais fecundos do


patrimônio cultural da humanidade. No campo religioso indica para além do empírico,
para o sagrado. Para Platão, os deuses presidem a repartição de todas as coisas, decidem
o destino do homem e do mundo.
Na história das religiões, a idéia de Deus parece surgir, predominar e
permanecer como solução para o mistério do mundo, da vida e do homem. Prescindindo
da questão do politeísmo e monoteísmo, em Homero e Hesíodo os deuses evoluem sob
figuras humanas, dotadas de qualidades, virtudes e vícios, que muitas vezes os
assemelham aos humanos. Quando surge a consciência crítica dos filósofos, sobretudo
nos tempos áureos de Sócrates, Platão e Aristóteles, as divindades antropomórficas dos
mitos são desmitologizadas e reduzidas a idéias impessoais e neutras, como Ser, Justiça,
Uno, Bem etc. Embora tais idéias sirvam como princípios explicativos da realidade, não
suscitam sentimentos, confiança.
Sem menosprezar as religiões e as conquistas dos filósofos, é a revelação de
Deus testemunhada nas Sagradas Escrituras, o fundamento do discurso teológico cristão.
Deus se manifesta com caráter pessoal, de modo mais pleno em Jesus Cristo.

1 - Discurso religioso sobre Deus

Nas religiões, a palavra Deus surge para designar o termo supremo, de algum
modo transcendente, com relação ao homem e ao mundo. O homem busca entrar em
relação pessoal com Ele. Para as escolas evolucionistas houve um largo caminho para se
chegar a um Deus único e universal. Essa teoria, entretanto, foi questionada por W.
Schmidt, que formulou a hipótese de uma revelação primitiva, baseando-se no fato de
que também em religiões ditas primitivas encontram-se indícios de uma crença num Ser
Supremo. A tese fundamental é a seguinte: no começo existe a unidade, a fé em um ser
supremo, um monoteísmo simples. E claro que tal tese não se deverá sustentar por
motivos teológicos.
Prescindindo dessas teorias, podemos afirmar que, na história da humanidade
conhecida, encontram-se duas estruturas do homem religioso: de um lado, a orientação
para algo (alguém) Absoluto e Transcendente; por outro, a necessidade das mediações
simbólicas (hierofanias, mitos, ritos etc.). Ora prevalece um, ora outro elemento.
As religiões tentam estabelecer alguma relação com Deus de várias maneiras,
sobretudo na oração (adoração), no sacrifício, no culto, na moralidade, na lei e no
direito. Deus (ou os deuses) é ser com quem se pode falar, que pode ser invocado.
As teorias evolucionistas, que partem do politeísmo para chegar ao monoteísmo
judaico-cristão, manifestam limites para os estudiosos contemporâneos. Sabe-se que

Coleção Filosofia – 175 9


monoteísmo e politeísmo nem sempre são excludentes. Sabe-se, ainda, que o conceito de
divindade dos antigos gregos é essencialmente politeísta. Existem muitos deuses, ou seja, o
estado e a família dos deuses. Mas a idéia de um deus supremo, pai dos deuses e dos
homens abrange esta concepção. Os vários deuses são a plenitude divina. Se houvesse um
único deus, diminuir-se-ia o divino. A pluralidade de deuses, por outro lado, realça o fato
de que o cosmo está ―cheio de deus‖, cheio da beleza divina, de maneira que se pode dizer
que tudo que existe é divino. A pluralidade de deuses expressa a multiforme riqueza do
mundo. Este produz a imagem de muitos deuses, que se manifestam no próprio mundo
através de teofanias (W. F. Otto. Götter Griechenlands. Frankfurt, 1947). Por isso aos
vários deuses correspondem as várias funções que o homem deve a eles.
Assim, a pluralidade dos deuses que o mundo experimentou, no sentido do
politeísmo, não necessariamente nega a ligação com o Deus único, mas pode ser vista
também como caminho para encontrar o Deus único.
A multiplicidade dos deuses e das divindades, neste caso, também pode indicar
a multiplicidade de nomes com os quais Deus pode ser chamado, invocado e se torna
acessível. Pode ser, em outras palavras, a tentativa de compreender o nome do Deus que
está acima dos outros deuses.
Na história das religiões, seja no passado seja no presente, o ateísmo raras vezes
parece significar negação absoluta de Deus ou dos deuses. Muitas vezes pode significar
apenas a rejeição de determinadas imagens, representações, formas ou nomes dos
deuses. Tal negação, ontem como hoje, pode significar uma via negativa de procurar a fé
em Deus. Não foram os cristãos, nos primeiros séculos, chamados ateus pelos romanos?
E verdade, certamente seria exagero querer reduzir todo o ateísmo à tal interpretação.
As religiões orientais contemporâneas oferecem-nos imagens de Deus que, muitas
vezes, causam grande impacto sobre os ocidentais por seu caráter misterioso e impessoal,
por sua sensação de paz e aniquilamento no meio de um mundo violento e sempre agitado.
E uma espécie de panteísmo religioso, no qual Deus se manifesta em todas as coisas,
suprimindo diferenças e individualidades. Em vez do encontro pessoal com Ele, busca-se a
paz do êxtase. Tal imagem, apesar de traços positivos, pode conduzir facilmente à inanição
e à passividade, a uma postura descomprometida com a realidade terrena.

2 - Discurso filosófico sobre Deus

As grandes tradições do pensamento filosófico ocidental originaram-se em tradições


religiosas anteriores ou contemporâneas. Em geral, no seio da própria tradição religiosa nasce
um processo de racionalização e depois passa a desenvolver-se fora. Tenta-se estruturar ou
sistematizar os conteúdos religiosos ou examiná-los criticamente, para fundamentá-los
racionalmente ou rejeitá-los. Isto estabelece certa comunidade entre religião e filosofia, pois
ambas pretendem responder à mesma exigência do homem: a de encontrar sentido para sua
existência. A religião é uma resposta integral, mas não sem uma certa dimensão intelectual.
O valor da religião consiste em dar solidez à noção de Deus e mostrar a sua
radicação no homem, colaborando para este harmonizar a sua convicção religiosa com o
desenvolvimento racional.

10 Coleção Filosofia - 175


Tudo indica que Anaximandro foi o primeiro a elaborar a idéia de Deus em
termos de um ser infinito, princípio sem princípio. Xenófanes, por sua vez, criticando os
deuses da religião, tidos como simples projeções das necessidades e aspirações dos seus
seguidores, contrapõe a idéia de um Deus, unidade envolvente da totalidade do universo,
que pelo pensamento governa todas as coisas. Xenófanes quer libertar a idéia de Deus
dos antropomorfismos.
Dentro da linha de pensamento de Anaximandro, outro pensador grego,
Heráclito de Éfeso, mostra que o uno é infinito, não só na pluralidade de suas produções,
mas sobretudo na universalidade de sua presença, como lei que harmoniza os contrários.
Platão aproxima a idéia de Deus da idéia de Bem, a que todos os homens aspiram.
Aristóteles identifica-o com o motor imóvel, que tudo move sem ser movido.
Logo percebemos que o Deus da razão filosófica reduz- se, no fundo, a uma idéia,
de um absoluto, princípio sem princípio da inegável unidade do ser, da ordem e justiça
imanentes no mundo da experiência sensível. Na verdade, os maiores filósofos gregos não
conseguiram elevar-se à idéia de um ser transcendente, princípio e fim de amor pessoal e
livre. O Bem descrito nas obras de Platão não chega a ter dignidade de sujeito ou fonte de
iniciativa amorosa. Atua apenas como princípio de inteligibilidade, não como inteligência
propriamente dita. Pode ser dito causa eficiente enquanto causa final.
De maneira semelhante, ―o motor imóvel‖ de Aristóteles não move como
sujeito pessoal. E causa eficiente porque causa final. A própria definição de ―ato puro‖ o
aprisiona num pensamento circular, que o apresenta mais como idealidade imanente no
mundo do que um ser pessoal, inteligente e livre. Também a transcendência formulada
pelos filósofos gregos é incompleta, pois em Platão a matéria preexiste; na potência de
Aristóteles é resistência pluralista. Oculta-se a alteridade entre Deus e mundo.
Entretanto, embora a fé não exija uma demonstração filosófica da existência de
Deus, ela permanece uma busca permanente. E isso para ser uma atitude humana,
assumida livre e responsavelmente. Desta maneira a oposição formulada por Pascal ou a
ele atribuída entre ―o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, de Isaac e Jacó‖ não se
justifica plenamente. Seria errôneo e cômodo chamar, como Karl Barth, o Deus dos
filósofos simplesmente de ídolo porque reflexo do espírito humano.
Se o homem fala de Deus é porque Deus o habilitou a tanto. Deus lhe fala de si
mesmo através do espírito e da criação.
Desde Aristóteles e Tomás de Aquino, o problema de Deus foi vinculado
intimamente, na filosofia, à questão do Ser, a ponto de M. Heidegger, com razão,
designar a metafísica de ―onto-teologia‖. Segundo Heidegger, não se pode alcançar Deus
como ente depois de ter esquecido o Ser. Heidegger chamou a atenção para um aspecto
importante: a diferença ontológica entre ser e ente. Neste caminho, situa-se o que os
seguidores de Tomás de Aquino chamam de analogia do ser. O ser indeterminado não se
deixa estabelecer como grandeza unívoca. O ser indeterminado ou passará ao ser
participado ou ao ser subsistente. Assim o ser, na sua própria unidade, traz uma
diferença e na diferença traz novamente a unidade de relação.
Na perspectiva tomista, a unidade do ser, que corresponde à imanência de Deus,
é a ponte sobre o abismo. A diferença do ser, por sua vez, expressa a transcendência de
Deus. Em outras palavras, mediante o que Deus não é, compreendemos aquilo que ele é.

Coleção Filosofia – 175 11


Na formulação de Nicolau de Cusa, chegaremos a Deus, como a coincidência dos
opostos, colocando na unidade do ser a pluralidade dos opostos, própria dos entes.
Tomás de Aquino afirma que Deus supera toda a nossa compreensão enquanto ele é
mistério incompreensível (5. Th I, 12, 1 ad 3), que transcende todas as nossas
determinações, escondendo-se na ignorância humana.
Neste sentido, Gabriel Marcel, já antes de sua conversão ao Cristianismo,
elaborou uma distinção fecunda entre problema e mistério. O problema é definido; opõe-
se ao nosso conhecimento como um obstáculo que pode ser removido. O problema,
como objeto da ciência, pode ser resolvido, O mistério, ao contrário, está dentro e fora
de nós, nos envolve. Pode ser reconhecido, aceito ou rejeitado. Deus é mistério, que a
rigor não conhecemos, mas reconhecemos ou aceitamos como sentido de nossa vida.
Se a filosofia cristã afirma que a razão humana pode conhecer Deus, opondo-se
ao ceticismo e ao agnosticismo. não esqueçamos que da mesma maneira também se opõe
ao racionalismo, pois o conhecimento filosófico de Deus é muito limitado e imperfeito.
Por isso o Pseudo-Dionísio tem razão quando diz que o Deus da razão humana continua
um Deus oculto e desconhecido ou, na palavra de S. Agostinho, um Deus que melhor se
conhece quanto mais se desconhece. A teologia negativa é complemento necessário da
teologia afirmativa. Como, por exemplo, relacionar o ser finito com o Ser infinito, o
poder absoluto de Deus com a liberdade humana? A rigor, as soluções unilaterais ou são
a favor de Deus (panteísmo) ou do homem (humanismo ateu).
O discurso filosófico é um discurso sobre Deus, não um diálogo com Deus, pois
ao Deus dos filósofos falta o caráter pessoal, capaz de amar e ser amado. Só o Deus
pessoal é fonte e origem de todo o pensamento. A tradição judaico-cristã apresenta-nos
um Deus que se nos revela em Jesus Cristo como um Deus onipotente e criador, o Deus
absoluto, transcendente e imanente, mas um Deus que se torna acessível na experiência
humana, um Deus que se comunica conosco.
Se Deus é pessoa, fonte de infinita bondade e amor, a sua transcendência será
uma proximidade condescendente. Podemos falar não só sobre Ele, mas com Ele na
oração. Podemos adorá-lo, prestar-lhe culto. Sob este aspecto, as igrejas tradicionais,
sobretudo a católica, sofrem no final do século XX e início do século XXI da limitação
do racionalismo, do Deus ente racional e explica-se o sucesso do pentecostalismo e da
renovação carismática. Em novo contexto retomamos o velho problema da luta da
teologia monástica ou mística contra a teologia acadêmica nos séculos XIV e XV. A
criatura não só não faz concorrência a Deus, mas participa de seu ser, refletindo-O ainda
que palidamente. Adquire atualidade Tomás de Aquino quando afirma que subtrair
qualquer perfeição às criaturas equivale a diminuir a própria perfeição divina. A
dependência do homem em relação a Deus não o humilha, mas antes o dignifica e exalta.

3 - Discurso teológico sobre Deus

Se o discurso filosófico parte da razão humana que pergunta, o discurso teológico


parte da revelação de Deus. Assim, se os gregos perguntavam, os cristãos podiam dizer: ―nós
temos a resposta‖. S. Paulo, no areópago de Atenas, vendo a inscrição ―Ao Deus
desconhecido‖, diz: ―O que adorais sem conhecer, isto venho eu anunciar-vos‖ (At 17, 23).

12 Coleção Filosofia - 175


A teologia cristã é um esforço racional para penetrar a estrutura inteligível do
conteúdo da fé religiosa. Esta, todavia, sempre será mais ampla e mais rica que as
pequenas clareiras do discurso teológico. O objeto supremo da teologia é Deus.
Embora a teologia católica pressuponha que Deus pode ser conhecido pelo
homem sem uma revelação especial, a fé religiosa cristã deve ser uma resposta pessoal à
revelação. Isto, por um lado, implica que o crente tenha, como infra-estrutura de sua fé, um
certo conhecimento natural de Deus. Esta é a razão por que a teologia católica sempre deu
importância ao discurso filosófico. Teologias recentes, como a teologia da libertação,
sucumbiram pela má filosofia que lhe serviu de base. A teologia sempre é intellectus fidei.
O cristão vê em Jesus Cristo a palavra pessoal de Deus. pronunciada na história
humana. E a palavra de Deus na palavra humana como é testemunhada nos livros
sagrados. Em Jesus Cristo, Deus revelou-se Pai, ou seja, amor originário. O homem é
filho de Deus, como participante de uma vida nova. O Filho do Deus encarnou-se em
Jesus Cristo, que promete o envio do Espírito Santo, promessa que cumpre em
Pentecostes. Deus-Amor revela-se-nos como uma vida interpessoal. Por isso se é
verdade que a teologia católica sustenta a possibilidade de um conhecimento natural de
Deus, não é menos verdade que ela ensina também que de fato, um pleno conhecimento
só é possível através da Revelação.
Neste contexto cabe mencionar as chamadas provas da existência de Deus. As
ciências recentes deram aos termos ―provar‖, ―demonstrar‖ um sentido bem preciso. De
acordo com a terminologia científica não se prova a existência de Deus, nem sua não-
existência. Os raciocínios argumentativos que a tradição chama de provas servem para
dar plausibilidade racional à fé na existência de Deus, mostram que faz sentido crer em
Deus, não contraria a razão crítica. Se conseguíssemos provas da existência de Deus,
dispensaríamos a fé, pois teríamos certeza científica. Até hoje não conheci ninguém
convertido ao Cristianismo por causa dessas chamadas ―provas‖.
Talvez seja útil uma distinção de Gabriel Marcel entre fé e ciência. A ciência engaja
a pessoa apenas em sua dimensão racional. Trata de problemas que se resolvem. A ciência
procura demonstrar, provar. A fé envolve a pessoa em sua globalidade: razão, sentimento e
emoção. A fé, por isso se testemunha. Testemunhar significa engajar-se com todo o ser por
aquilo que se diz. Toda especulação filosófica e teológica sobre Deus pode ser útil à fé, desde
que não se extrapole os limites da própria razão para dispensar a revelação divina.
Esta, por sua vez, não deve servir para nossa acomodação, pois o sujeito da fé é
um ser racional e pensante.
Por outro lado, a absolutização de alguns aspectos filosóficos ou teológicos
facilitam a criação de ídolos e o surgimento de fanatismos. Muitos são afastados da religião
pelas imagens parciais de Deus apresentadas como totais. Deus permanecerá mistério.
Neste contexto, também temos que ter cuidado de não transpor acriticamente o
conceito de Deus da história das religiões em geral ou da filosofia para a teologia como
se fosse idêntico com o conceito do Deus que se nos revelou.
Até convém reconhecer que a revelação de Deus não é contrária à filosofia.
Precisamos da filosofia até para compreender a palavra de Deus na palavra humana e
responsabilizar nossa fé perante a razão. Neste sentido, podemos admitir que o Deus
para o qual as religiões tendem é o mesmo, sem renunciar a convicção de que só o

Coleção Filosofia – 175 13


Cristianismo a Ele chega com plenitude. Como Deus concede a graça de poder salvar-
se a todos os homens, admitimos que pessoas não-católicas, mesmo sem conhecimento
histórico do fato cristão, podem salvar-se em sua fé religiosa. A teologia cristã, através
dos séculos, procurou conciliar os ―dados revelados‖ sobre Deus com as exigências
racionais de uma noção de Absoluto.
Central, no Cristianismo, é a noção do Deus-Amor. Esta noção permite acolher os
valores positivos dos humanismos mais recentes. Proporciona-nos, outrossim, uma visão
mais profunda da transcendência de Deus, que, por ser transcendência absoluta, inclui certa
imanência, pois ―em Deus vivemos, nos movemos e existimos‖ (At 17, 28). Dizia S.
Agostinho que nos é ―mais íntimo que a nossa própria intimidade‖ (Conf 3,6,13).
Já no AT Deus é uma realidade concreta que se preocupa com os homens e com
o mundo. Aparece a Abraão prometendo fazer dele um povo numeroso (Gn 12. 1-4) e
reitera essa promessa a Isaac e a Jacó (Gn 26, 3-5). Mas sua grande revelação foi feita a
Moisés, quando no Sinai lhe confiou seu nome inefável de Javé (Ex 3, 1-15). Javé é o
Deus salvador que libertou os israelitas do Egito (Ex 3, 20) e os acompanha com sua
presença, instituindo com eles uma Aliança eterna (Ex 19-24). Só Ele é o Deus de Israel.
Existe desde o princípio e tudo criou (Gn 11). Por isso quer ser adorado como Deus
único (Dt 4, 35), não tolerando o politeísmo (Ex 20. 3). É inacessível e transcendente (Sl
139), embora habite no templo de Jerusalém.
Javé é um Deus vivo (Ex 3, 7-10), santo, ciumento (Ex 20, 5) e misericordioso (Ex
33. 19). Se antes dos profetas encontramos textos que apontam para a fisionomia de tirano
caprichoso (Gn 32, 25), com muitos antropomorfismos, depois apresenta nova personalidade.
No NT este Deus único e pessoal completa a revelação de si mesmo no mistério
da Trindade, revelado por Cristo, Filho de Deus, encarnado por amor dos homens. Toda
a revelação de si mesmo por parte de Deus é orientada para a salvação do homem. Em
geral os textos sagrados dizem mais o que Deus quer e faz e menos o que é.
A pregação de Jesus centra-se na vinda próxima do Reino de Deus, como
salienta o evangelista Marcos: ―Cumpriu-se o tempo; o Reino de Deus está próximo;
convertei-vos e crede no Evangelho‖ (Mc 1, 15). O Deus de Jesus é. portanto, o Deus de
Israel, que revelou seu desígnio de salvação através dos profetas e, depois de tolerar
durante algum tempo o triunfo aparente das forças do mal, decide estender seu domínio a
todo o universo, O Deus de Jesus é o Pai, Senhor do céu e da terra (Mt 11, 25).
O que Jesus revela é o amor paternal de Deus para a menor de suas criaturas,
aos pássaros do céu e aos lírios do campo, e com mais razão para cada homem (Mt 6, 25-
34). Este Pai é aquele que vê o segredo (Mt 6, 4-7) e que sabe o que necessitam seus
filhos antes que o peçam. Jesus testemunha o amor do Pai para com os pequeninos, as
crianças, os pecadores públicos. Conta as parábolas da misericórdia (Lc 15) como prova
de que o Céu se alegra com a conversão dos pecadores. Jesus, no dia-a-dia, aparece
como aquele que revela seu Pai. ―Ele não é Deus dos mortos, mas dos vivos‖ (Mc 12,
26). Mas o Deus de Jesus Cristo também é o juiz que separará o joio do trigo.
Jesus manifesta não só a intimidade com o Pai: Abba! Revela, outrossim, a
dependência radical. Aos doze anos, entre os doutores do templo, diz aos pais terrenos:
―Não sabíeis que devo fazer a vontade de meu Pai?‖ Diz: ―Ninguém conhece o Filho,
senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho‖ (Mt 11, 27). No horto de

14 Coleção Filosofia - 175


Getsêmani grita: ‗Meu Pai, se possível afasta de mim este cálice!‖ (Mt 26, 39).
Acrescenta: ―Faça-se não a minha mas a tua vontade‖.
Na cruz ouve-se o grito: ―Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?‖
A comunidade apostólica converge seu ensinamento na intervenção decisiva de
Deus na ressurreição de Jesus. Agora a fórmula soa: ―Deus ressuscitou Jesus dos
mortos‖. A identidade da fé cristã passa a ser conhecida quando Jesus aparece como
―Messias e Senhor”(At 2, 36) e ―Príncipe da vida‖ (At 3, 15). Pedro chega a dizer que a
ressurreição é o motivo de nossa fé em Deus (1Pd 1, 21). Na pessoa de Jesus irrompe um
mundo novo, um homem novo.
No caminho de Damasco, S. Paulo experimentou a radicalidade da graça. Em
oposição à cólera de Deus, proclama a manifestação de sua justiça (Rm 3, 21). Enquanto
os judeus invocam o Deus dos patriarcas, S. Paulo apresenta a Deus como o ―Pai de
Nosso Senhor Jesus Cristo‖. Segundo Paulo, a missão de Jesus Cristo consiste em
conduzir os homens a Deus seu Pai. O verdadeiro raciocínio sobre Deus conclui na
adoração: ―Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus‖ (Rm 11, 33).
A teologia de S. João desenvolve-se sob o signo da luz e do amor. Revelador do
Pai, Jesus expressa, sobretudo por sua ação, a vontade salvífica daquele que o enviou (Jo 5,
19). João considera o Calvário como o mistério do amor que se entrega, e que inclusive
chega a comunicar seu espírito (Jo 19, 30). ―Deus é amor‖ (1Jo 4, 8-10). Reconhecer que
Deus é amor equivale a participar do movimento do amor divino. A teologia desenvolve-se
em comunhão com Deus e com os irmãos, sob a ação do Espírito de Deus. E o espírito que
garante a continuidade entre o tempo de Jesus e o tempo da Igreja.

Conclusão

Todos os esforços humanos para expressar Deus em conceitos e imagens não


passam de símbolos limitados na tentativa de aproximar o absoluto e o infinito à cultura
humana. Toda imagem de Deus é passageira e condicionada pela cultura que a criou,
pois Deus é sempre maior do que tudo aquilo que possamos dizer ou imaginar.
É comum encontrarmos a idéia de um Deus primitivo, vigia das ações humanas,
sempre pronto para intervir com castigos e reprimir o pecador. Essa imagem expressa a
impotência do homem diante das forças da natureza como vingança de um Deus
vingativo. Deus é reduzido a uma espécie de Senhor poderoso, imagem dos senhores
terrenos, primitivos e vingativos. No fundo o homem tende a imaginar Deus de acordo
com a situação na qual vive e com os problemas que o angustiam.
Nos meios políticos, é comum ver-se em Deus o poderoso aliado de um povo,
incitando à luta libertadora. Vê-se nele o aval para libertar o povo escravizado, oprimido,
que busca em Deus a força suficiente para lutar por uma sociedade mais justa. Tal imagem
facilmente identifica Deus com os interesses de um grupo, de uma classe. A identificação
de uma causa particular com a causa de Deus freqüentemente gera fanatismos.
A concepção filosófica de Deus, por um lado, tende a apagar as imagens
populares, substituindo-as por imagens mais abstratas e menos vigorosas. Apaga-se o
caráter pessoal de Deus, dificultando qualquer comunicação com Ele. Deus é reduzido a
noções genéricas e frias que a nada comprometem. O Deus vital cede lugar a um meio de

Coleção Filosofia – 175 15


explicar o ser e a existência. Tais imagens carecem da experiência religiosa porque
resultado do pensamento abstrato.
Jesus Cristo, entretanto, transmitiu-nos uma imagem bela e fonte de
comunicação íntima. É um Deus próximo, que ama seus filhos. Este Deus manifesta-se
como amor que se comunica a si mesmo em Cristo através do Espírito Santo. É Deus
conosco. É o Deus dos pobres e abandonados, dos pecadores e excluídos. Sua imagem
fundamental é a de Pai. Exige uma atitude filial para com Ele, e fraternal para com os
semelhantes. A imagem mais própria de Deus, para os cristãos, é a pessoa de Jesus como
imagem plena do Pai. É olhando para Jesus que vemos e conhecemos o Pai.

16 Coleção Filosofia - 175


DEUS NA EXPERIÊNCIA TRANSCENDENTAL

A curiosidade do homem é sem limite. Seu interesse de conhecer orienta-se


para além das necessidades biológicas. Cedo ou tarde, formula questões que, de maneira
mais ou menos vaga, se referem à realidade como um todo. Tais questões terão
formulações semelhantes a estas: donde se origina tudo que encontramos? Quais são as
razões últimas da realidade? Como se deve interpretar o mundo? Nessas e em outras
questões o homem também indaga da interpretação de sua própria existência.
Quando o homem indaga de Deus, o transcendente e incondicional, logo se lhe
coloca a pergunta: é a razão humana capaz de conhecê-lo? Por isso quando se trata, na
discussão filosófica, da existência de Deus, logo nos defrontamos com discussões sobre
os limites do nosso próprio conhecimento.
Mais recentemente, não faltam aqueles que julgam a Filosofia incapaz de
corresponder a tamanhos desafios, que a Filosofia deveria abandonar planos tão
irrealistas para limitar-se às regras formais do pensar, à análise da linguagem e ao exame
das condições de possibilidade do conhecimento científico, reduzindo o papel da
Filosofia tão-somente a uma ciência especial. Com isso, evidentemente, não só se
contraria sua longa tradição ocidental, mas, até certo ponto, torna-se supérflua.
Independentemente da resposta a dar, a Filosofia deve ousar perguntar pela
razão última de todas as coisas

1 — O método transcendental

Na tradição filosófica ocidental, conhecemos, nessa questão, métodos racionais,


métodos não-racionais, métodos não-exclusivamente racionais. Aqui nos limitaremos ao
método transcendental.
Nesse método, a verdade de um conhecimento confere-se pela reflexão sobre as
condições subjetivas. Reflete-se sobre a estrutura de conhecimento do sujeito. Isso só é
possível na realização de um conhecimento, na qual o cognoscente está ciente de si
mesmo e não só conhece objetos, mas o próprio ato de conhecimento enquanto lhe
pertencem também aspectos não-objetivos. O método transcendental tenta tematizar essa
dimensão inerente ao próprio ato do conhecimento através da reflexão.
Esse método recebeu seu nome em alusão a I. Kant. Desde Kant, tornou-se
praxe começar uma Filosofia com uma teoria do conhecimento. E ele o autor da frase:
―Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa menos do objeto
do que do nosso modo de o conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori”
(Crítica da razão pura, A 25).
Para Kant, transcendental é a condição a priori da possibilidade da coisa, isto é,
conceito a priori ou categoria. Transcendental é toda a condição a priori que possibilita

Coleção Filosofia – 175 17


o conhecimento, mas nem todo o a priori é transcendental. Transcendental é a doutrina
das condições de possibilidade a priori do nosso conhecimento.
O método transcendental de Kant consiste, essencialmente, em partir, na
Filosofia, não da experiência sensível dos objetos, mas da reflexão sobre o sujeito
cognoscente e sobre as condições de possibilidade do conhecimento objetivo. Portanto, no
método transcendental o conhecimento volta-se para o sujeito cognoscente. Nesse
caminho, aberto por Kant, na primeira metade do século XIX, seguem Fichte, Hegel e
Schopenhauer, embora modificando o conceito de transcendental. O sujeito transcendental
passa a ser considerado a origem primeira de tudo, sujeito capaz de conhecimento absoluto
do absoluto. Fichte usa, na Wissenschaftslehre, a designação transcendental para
caracterizar a doutrina da ciência, mostrando que todos os elementos do conhecimento
estão no Eu, ou seja, na consciência (§ 5, II). Schopenhauer afirma que é ―transcendental
um conhecimento que determina, antes de toda a experiência, tudo o que é possível na
experiência‖ (Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde, § 20).
Os neokantianos usam o conceito transcendental no sentido dado por Kant.
O jesuíta belga Joseph Maréchal (1878-1944) provocou uma verdadeira revolução
na escolástica, abrindo-a ao diálogo com a filosofia moderna, por sua grande obra Le Point
de Départ de la Métaphysique. Estimulou e inspirou pensadores como J. B. Lotz, K.
Rahner, E. Coreth e outros, que, passando pela crítica kantiana e pelo idealismo alemão,
entraram em contato com a fenomenologia de Husserl e as filosofias da existência1.
Joseph Maréchal confrontou o tomismo com o kantismo para encontrar uma
base sólida para a metafísica, tão consistente que resistisse às exigências mais severas da
Crítica da razão pura. Kant conseguiu elaborar a síntese da sensibilidade e da razão e,
dessa maneira, justificar a universalidade e necessidade do conhecimento no âmbito da
experiência, sem, todavia, conseguir a síntese entre entendimento e razão.
Na linha iniciada por J. Maréchal, o jesuíta Emerich Coreth (1919) tenta
conciliar o pensamento ontológico de Tomás de Aquino com a Filosofia transcendental
de inspiração kantiana. Para Coreth, a metafísica consiste no desenvolvimento rigoroso e
sistemático do questionamento transcendental, condição de possibilidade de qualquer
outro questionamento efetivo. Essa metafísica do questionar implica uma ontologia,
possibilitando-se pensar a constituição metafísica do ser finito e, mediante a analogia,
realizar uma dedução transcendental do Ser absoluto.
Karl Rahner, discípulo de Heidegger, assumiu esse método, não só na Filosofia,
mas tornou-o fecundo na teologia católica. Rahner explicita esse seu método na obra
Hörer des Wortes (Ouvinte da Palavra). O pensamento filosófico de K. Rahner foi
marcado profundamente pela antropologia metafísica de Tomás de Aquino, pela
metafísica do conhecimento de J. Maréchal e pela ontologia de M. Heidegger.
K. Rahner, na sua obra Geist in Welt (1939), elabora uma antropologia
fundamental e mostra como o espírito humano está sempre relacionado ao Absoluto e
como o conhecimento não-reflexo e não-temático é condição de possibilidade
transcendental de todo o conhecimento.

1
Para o tema aqui tratado é oportuno o artigo de J. Maréchal, Le dynamisme intellectuel. In: Revue Néo-Schol.
de Philos. 28 (1927), p.137-165.

18 Coleção Filosofia - 175


Em Hörer des Wortes (1941), K. Rahner descreve o homem como ―ouvinte da
Palavra‖, como destinatário de uma possível palavra de Deus. Rahner propôs-se como
tarefa fundamental elucidar as condições formais constitutivas do sujeito, que lhe
permitem uma experiência de Deus.
Como procede esse método torna-se evidente no texto clássico de Heidegger em
Ser e Tempo: ―Todo questionamento é uma procura. Toda procura retira do procurado
sua direção prévia. Questionar é procurar cientemente o ente naquilo que ele é e como
ele é. A procura ciente pode transformar-se em investigação, se o que se questiona for
determinado (...) O questionamento de alguma coisa possui um questionado. Além do
questionado, pertence ao questionamento um interrogado” (Ser e Tempo. Petrópolis:
Vozes, 1988, p. 30. Trad. de Márcia de Sá Cavalcanti).
E. Coreth afirma: ―O método transcendental, tal como o estruturou Kant e como,
desde então, foi entendido em forma variada em suas ulteriores elaborações, reconhece,
segundo sua essência, um duplo movimento, que poderíamos caracterizar como redução e
dedução transcendental. O movimento redutivo consiste em pôr de manifesto
tematicamente as condições ou pressupostos implicados nos dados imediatos da
consciência, partindo desses mesmos dados; é, portanto, um recurso do sabido
tematicamente (ou querido) ao com-sabido (com-querido) atematicamente na realização
(...). O caminho dedutivo consiste, pelo contrário, em deduzir, partindo daqueles prius — i.
é, a priori —, descobertos por meio da redução, a realização empírica da consciência em
sua essência, possibilidade e necessidade. Portanto, a redução é um movimento do pensar
que vai do posterius ao prius, o retorno da realização às condições prévias de sua
possibilidade; a dedução é um movimento do pensar do prius ao posterius, a dedução das
estruturas essenciais da realização, a partir de suas condições prévias‖ (p. 55). No exercício
do método transcendental um movimento é condicionado pelo outro.
E. Coreth desenvolveu este método de maneira brilhante em sua Metaphysik:
eine methodische Grundlegung2, para chegar à existência de Deus. Parte do pressuposto
de que cada homem como homem vive, de antemão, para o mistério absoluto, para Deus;
que, na imanência de sua vida, faz a experiência da presença de um Incondicional,
embora o indivíduo interprete essa experiência de maneira contraditória. O indivíduo
pode aceitar ou rejeitar, em liberdade, o fundamento transcendental de sua existência e,
conseqüentemente, ser crente ou descrente. De acordo com esse procedimento, alguém
poderá declarar-se descrente e, ao mesmo tempo, ser crente.

2 - Experiência do Incondicionado

O que pertence à experiência humana?


Por experiência podemos entender a maneira de conhecimento pela qual a
realidade se torna presença imediata à consciência. Portanto, trata-se de um modo
originário de conhecimento. A existência de algo não é uma produção nossa. Só se pode
afirmar a existência, quando ela se nos ―manifesta‖ na vivência de nossa consciência.

2
As citações dessa obra de Coreth são tiradas da tradução espanhola (Barcelona: Anel, 1964)

Coleção Filosofia – 175 19


A existência de algo, portanto, não é mero produto do pensamento, nem da
percepção dos sentidos, pois a percepção dos sentidos nunca alcança o Ser das coisas. A
percepção sensitiva só registra a manifestação, a afecção subjetiva dos sentidos. Tal
percepção por si não reclama universalidade. Essa apenas decorre da própria atividade
racional, que se desenvolve no juízo. Sem juízo afirmativo sobre percepção, não há
conhecimento da existência. Perguntamo-nos, então, o que capacita o juízo a afirmar
validamente a existência?
No juízo expressa-se uma experiência da realidade, do Ser. A percepção
sensitiva é apenas um momento da experiência. Os sentidos não percebem diretamente a
existência. O conhecimento sensitivo sem o juízo é uma abstração. Logo que o homem
percebe algo, através dos sentidos, entra em ação o intelecto que assume a realidade
como tal, o Ser das coisas.
Nessa perspectiva, só podemos falar da existência de Deus, se conseguirmos
mostrar que a existência de Deus pertence ao conteúdo de nossa experiência, embora
Deus não ocorra no imediato de nosso conhecimento.
Em todo o conhecimento, o Incondicional torna-se presente como
indeterminado. Para percebê-lo, é preciso voltar-se ao próprio conhecimento como
atividade do sujeito cognoscente. Interessa-nos aqui o conhecimento como tal, como
aquela atividade através da qual contatamos a realidade.
O que contém o conhecimento como tal? O que implica todo o ato de
conhecimento como tal?
O homem sabe que sua percepção sensível está longe de objetividade plena, que
o conhecimento sensível, em grande parte, é subjetivo, porque só nos mediatiza a
realidade como aparece aos sentidos. A percepção sensitiva é uma maneira concreta de
conhecer, mas nela o objetivo e o subjetivo constituem uma unidade indissolúvel.
Para constatar que o conhecimento sensitivo e o conhecimento intelectual não
proporcionam objetividade plena, o homem deve dispor de um critério incondicional da
objetividade. Se não tivesse tal critério, nunca saberia sobre a determinação subjetiva de
seu conhecimento. Em outras palavras, sabemos de um momento incondicional de nosso
conhecimento. Na realização de todo ato de conhecimento, mostra- se, pois, a presença
de um incondicional como constitutivo. Se no ato de conhecer está presente o
fundamento da objetividade de todos os nossos conhecimentos temáticos, que só
conseguimos expressar através da reflexão sobre as condições necessárias de nossa
maneira de conhecer objetos como experiência da existência ou experiência atemática do
Ser ou como experiência transcendental, podemos dizer que, através dela,
experimentamos, não só a objetividade fundamental de nosso conhecimento, mas
também o critério incondicional da objetividade, ou seja, a própria realidade
incondicional. A experiência atemática do Ser ou a experiência transcendental é, pois, a
experiência do próprio absoluto. A própria realidade absoluta está presente em nosso
conhecimento como conhecido, mas não na maneira de um conhecido explícito que se dê
claramente, segundo sua essência como objeto, podendo falar-se, nesse contexto, do
absoluto. Diz E. Coreth: ―A teoria do Ser tem seu ponto mais alto na doutrina de Deus,
da mesma maneira que esta se fundamenta na teoria do Ser‖ (p. 395).

20 Coleção Filosofia - 175


Poder-se-á objetar que apenas se trata de um incondicional subjetivo; que o
incondicional apenas é dado como uma idéia de nosso conhecimento, que o
incondicional apenas é uma projeção a partir da estrutura de nosso conhecimento.
Nessa altura cabe esclarecer: donde sabemos que o incondicional dado como fundo
de nosso conhecimento não é apenas projeção e, por isso, ilusório? Qual a garantia de que,
onde emerge, em nosso conhecimento, o incondicional de maneira inevitável, apenas
devemos pensar assim, porque nosso conhecimento está estruturado desse modo? Como
mostraremos que nosso conhecimento realizado subjetivamente, ao menos no plano da
experiência atemática do Ser, é plenamente objetivo e, com isso, incondicionalmente válido?
Sabemos isso a partir da própria experiência atemática do Ser ou da experiência
transcendental. Não aceitamos o Incondicional só porque estamos estruturados desse
modo. Importa interpretar corretamente a experiência transcendental.
Antes de mais nada, cabe evitar a interpretação da experiência atemática do Ser
no sentido da experiência sensitiva. A experiência transcendental, diz Coreth, é aquele
momento de nosso conhecimento que possibilita reconhecer a subjetividade de nosso
conhecimento temático e, por isso, não pode ser apenas um conhecimento subjetivo. Se
fosse um conhecimento apenas válido para o sujeito, nunca poderíamos afirmar que a
visão de que o nosso conhecimento determinado não é totalmente objetivo seja objetiva.
A objetividade fundamental de nosso conhecimento mostra-se como evidente pelo fato
de só poder ser negada quando tacitamente pressuposta.
Pode-se objetar que, pelo fato de a incondicionalidade ser uma propriedade de nosso
conhecimento, ainda não segue que conhecemos a realidade incondicional, nem de maneira
atemática. Responder-se-á que só a experiência atemática do Ser pode garantir a objetividade
de nosso conhecimento de objeto singular, por ser aquele momento de fundo do
conhecimento determinado de objetos pelo qual o cognoscente atinge a realidade como tal,
não na determinação conceitual, mas de fato. Se o próprio Incondicional não pertencesse ao
conteúdo de nossa consciência, a incondicionalidade de nosso conhecimento, em última
análise, apenas seria uma ilusão. Como este não é o caso, a presença do Incondicional em
nosso conhecimento não é mera ilusão.
Em síntese, o absoluto não está presente na experiência transcendental à
maneira de um objeto que se manifeste a si mesmo de modo claro e definido, mas de um
―objeto‖ que se pode chamar a incondicionalidade subjetiva e objetiva de todo
conhecimento de ―coisas‖.
O homem conhece a incondicionalidade e, por isso, o incondicionado, em
virtude de sua autoconsciência. Um saber atemático sobre o incondicionado, que
acompanha o conhecimento temático, existe, porque em todo o conhecimento de um
objeto também se conhece a si mesmo como sujeito. Jamais se consegue descrever
adequadamente a autoconsciência, porque, pela própria natureza da coisa, se trata de
uma experiência não-objetivável. Por isso o que se experimenta pode passar
despercebido, embora disponível. A autoconsciência consiste em eu, o cognoscente,
simultaneamente, ser o conhecido, que eu sou presente a mim mesmo. Por essa razão,
também sei de maneira originária o que significa existir e ser. A autoconsciência é o
lugar no qual o Ser está consigo mesmo, porque no homem o Ser se torna consciente de

Coleção Filosofia – 175 21


si mesmo, se conhece a si mesmo como Ser. Dessa maneira, em virtude de sua
autoconsciência, o homem tem uma relação imediata com o Incondicional.
A experiência implícita de Ser é a experiência do Incondicional. Em todo o
conhecimento determinado, o homem inclui o Incondicional. A realidade incondicional
pertence ao conteúdo de nossa consciência, embora nunca apareça como objeto
claramente perceptível. Por isso não podemos renunciar ao discurso sobre o
Incondicional. Em cada experiência do objeto concreto e agir consciente, está implícita a
experiência do Absoluto. Esse Absoluto só o reconhecemos na experiência
transcendental, não no pensamento conceitual como tal.

3 — Pode falar-se da experiência de Deus?

Em cada conhecimento singular, no fundo de sua consciência, o homem


experimenta o Incondicional. Pode chamar-se isso experiência de Deus?
Não existe uma experiência expressa de Deus, se por experiência se entender
uma percepção unívoca como a de um objeto determinado. Não experimentamos a Deus
à maneira de um objeto definido. Mas, a experiência transcendental é, de certo modo,
uma experiência de Deus. Com isso quer dizer-se que aquilo que é dado na experiência
transcendental, de maneira atemática, é mostrável como idêntico com o Absoluto
transcendental e pessoal que chamamos Deus.
Através de uma reflexão sobre aquilo que nos é dado, de maneira indireta e
necessária, a realização do conhecimento é o conteúdo da experiência transcendental. Na
medida em que mostramos que existe algo como experiência transcendental ou
experiência do Ser, descobrimos a incondicionalidade nela presente, e seu fundamento é
o próprio Incondicional.
Esse Incondicionado não é mera idéia, nem mero postulado de nossa
consciência, mas uma realidade objetiva. Jamais pode ser concebido como mero objeto,
mas como o Incondicionado que é a medida ou o critério de todo o conhecimento e o
fundamento último de todo valor ou valorização. Trata-se aqui do Incondicionado
existencial que determina toda nossa vida. Percebemos que o Incondicional da
experiência transcendental desafia o homem a ser uma pessoa responsável eticamente
em toda sua essência. E a condição e o fundamento da responsabilidade ética.
Por outro lado, manifesta-se que a expressão lingüística da experiência
transcendental só pode obter êxito dentro de certas condições. Quem quiser proceder de
maneira objetivista, jamais desenvolverá a experiência transcendental. O Incondicionado
não é um objeto que nos distancia, mas nos envolve. Este Incondicional o homem pode
aceitar ou rejeitar.
Diz o jesuíta Béla Weissmahr em sua obra Philosophische Gotteslehre: ―A
ninguém de nós a realidade de Deus pode ser totalmente desconhecida, porque, em todo
conhecimento expresso que realizamos e em toda a ação livre e consciente, está
implicado um momento do conhecimento que transcende o compreendido tematicamente
ou conceitualmente representado de maneira clara e distinta, confrontando-nos com o
Incondicional pelo qual somos desafiados incondicionalmente como pessoas‖ (p. 41).
Como podemos pensar algo absoluto?

22 Coleção Filosofia - 175


Béla Weissmahr, em Philosophische Gotteslehre, diz que o conceito, ou seja, o que
pensamos, quando compreendemos alguma coisa, não é algo isolado em nosso
conhecimento. É o mediado entre a palavra que designa o objeto e a realidade apenas
indicada pela formulação da experiência do Ser. Por isso, no conceito manifesta-se toda a
tensão da maneira humana de conhecer: a identidade fundamental entre pensar e ser no nosso
conhecimento só se realiza de maneira imperfeita, salientando-se a diferença entre pensado e
realidade. Deve-se distinguir dois aspectos: a) na expressividade o conceito é um conteúdo
abstrato. É a representação não-sensível de algo geral. b) Mas o conceito é também o
compreender de uma ―coisa‖. É a sempre insuficiente mas sucedida forma de expressar a
realidade. No processo do conhecimento, o homem atinge, de alguma maneira, a realidade.
O conceito como conteúdo abstrato deixou para trás a experiência na qual se
funda, pois o que carece de fundamento na experiência sequer pode ser pensado. Ora, disso
segue-se que o Absoluto, de algum modo, deve ter sido experienciado, se dele temos um
conceito ou idéia. O pensamento do Absoluto presente em nossa consciência não pode
estar fundamentado na variada experiência do não-absoluto. Do Absoluto, entretanto,
nunca teremos um conceito definido, pois não o encontramos como um objeto limitado. O
Absoluto nunca o experimentamos de maneira temática, mas é co-experimentado em cada
conhecimento de maneira atemática, na experiência transcendental.
O conceito de Absoluto é, pois, um conceito singular, diferente de todos os outros
conceitos. Pode indicar-se para seu conteúdo, mas nunca se pode descrevê-lo como um
objeto, pois não o experienciamos de maneira temática (cf. B. Weissmahr, p. 96-100).
A análise da experiência transcendental também só pode ser acompanhada por
aqueles que se dispõem positivamente a uma provocação do Absoluto. Antes de tudo, ao
conhecimento,enquanto uma capacidade do homem, cabe a tarefa de dar uma orientação,
um sentido à vida.
O conhecimento científico, na era industrial, limitou-se unilateralmente ao
problema. Nesse sentido. Gabriel Marcel distingue problema e mistério. O problema é
como um obstáculo em nosso caminho. Em relação a ele é significativa a distinção entre
―dentro‖ e ―fora‖ de mim. O problema pode ser detalhado, definido. Diferente é o
mistério. O problema se pode conhecer. O mistério só se pode reconhecer, aceitar ou
rejeitar, pois o mistério nos envolve, está dentro e fora de mim. Não pode ser detalhado,
Mistério é o amor, a fidelidade, a fé, a pessoa. Deus é mistério, que posso aceitar ou
rejeitar como sentido para minha vida.
As ciências tratam de problemas. O conhecimento científico procura clareza, pois
trata de problemas limitados. Quando se trata de realidades profundamente humanas, é
impossível tal clareza, pois trata-se do mistério, O problema situa-se mais no campo do
―ter‖ e o mistério no campo do ―ser‖. Em questões profundamente humanas, carecemos da
clareza científica. O conhecimento de Deus sempre depende de decisão pessoal.
Por isso, quando se fala de ―provas‖ da existência de Deus, o termo ―prova‖ não
tem o mesmo sentido que nas ciências. A prova depende sempre daquilo que se quer
provar. O modo de proceder numa demonstração matemática é diferente de uma prova
histórica ou filosófica. Cada prova encontra-se em determinado contexto, baseia-se em
determinadas experiências e tudo isso limita sua força de convencer. Quanto mais

Coleção Filosofia – 175 23


objetivo e limitado o assunto, tanto mais fácil é a obtenção do consenso. A prova da
existência de Deus é a articulação conceitual da experiência implícita de Deus.
Na obra Metaphysik: Eine methodisch-systematische Grundlegung, E. Coreth
mostra que a teoria do Ser tem seu cume na doutrina sobre Deus, da mesma maneira que esta
se fundamenta na teoria do Ser. A metafísica, como ciência do ente enquanto ente, só pode
consumar-se, se transcender-se a si mesma, convertendo-se numa ciência do ser divino.
Por esse caminho não teremos um conhecimento imediato de Deus, no sentido
de um conhecimento tematicamente explícito, de uma visão imediata da essência de
Deus. O saber a respeito de Deus só é possível em virtude de um pré-saber atemático.
Em todo o saber acerca do ente realizamos um saber originariamente imediato sobre a
necessidade do Ser, necessidade que permanece pressuposta em todo o saber como
condição de sua possibilidade.
E. Coreth parte do pressuposto de que o ente enquanto é, é necessariamente ele
mesmo; enquanto é, não pode não ser ou ser de outra maneira. Em todo o perguntar pelo
ente e em todo o saber sobre o ente, realiza-se, ao mesmo tempo, e coafirma-se, como
condição de possibilidade, o saber sobre a necessidade. Essa necessidade não é outra coisa
que o princípio de identidade (ôntico) derivado do princípio ontológico de contradição.
Em toda pergunta fica necessariamente pressuposta a intuição originária da
necessidade do Ser. E o Ser enquanto Ser é absoluto. Isso significa que, em toda a
realização do pensar, se coloca e pressupõe a intuição primária da necessidade do Ser
absoluto. Claro, não se trata de um saber temático sobre o Ser absoluto de Deus.
Num primeiro momento, o saber realiza-se de maneira geral e indeterminada: o
Ser em geral é necessário, o Ser em geral não pode não-ser, o Ser em geral é absoluto.
Nele realiza-se o saber sobre o Ser absoluto de Deus. A necessidade do Ser pressuposta,
sempre e necessariamente, é a necessidade incondicional do Ser absolutamente real, que
por si mesmo não pode não-ser. Enquanto intuição primária do espírito, fica sempre
sabida e necessariamente afirmada.
Mas o ente finito não é o próprio Ser necessário, O ente finito contrasta com
este Ser enquanto o supõe como sua condição incondicionada. Os entes enquanto entes,
como os encontro no mundo da experiência, supõem a unidade, a condicionalidade e a
infinitude do próprio Ser.
Coreth diz que, em primeiro lugar, ao movimento de perguntar e conhecer se
oferece o múltiplo enquanto ente. Um não é o outro; cada qual distingue-se do outro, que
é da mesma maneira ente. O ente manifesta a pluralidade e diversidade. Mas a
pluralidade pressupõe a unidade. Só em virtude de uma unidade prévia pode constituir-se
e diferenciar-se o múltiplo enquanto múltiplo. Se conhecemos o ente enquanto múltiplo
e diverso, isso só é possível sob a condição de que conhecemos a unidade dos entes.
Tudo que é, diz Coreth, tem sua unidade no Ser. Coincide no que é. Essa
unidade é unidade na pluralidade, uma convergência na diversidade, ou uma identidade
na diferença, isto é, uma identidade que não destrói a diferença dos entes. A identidade
está subordinada à diferença. A unidade na pluralidade só é possível, em virtude de uma
unidade anterior à pluralidade, de uma identidade que é pressuposto dessa diferença
como identidade pura. O movimento espiritual necessariamente transcende o múltiplo e

24 Coleção Filosofia - 175


diverso para uma unidade prévia e previamente conhecida, embora atematicamente,
unidade que possibilita e orienta para o último.
Se o uno é colocado entre muitos, manifesta-se como condicionado. Mas
conheço que o ente enquanto é tem uma validade incondicionada. Sei que o ente só é
incondicionalmente, se está colocado no Ser. É um condicionalmente incondicionado,
um contingentemente necessário. O relativamente necessário pressupõe, todavia, um
absolutamente necessário. Se, pois, conheço o ente que é, conheço também que é
condicionado. Portanto, diz Coreth, o movimento espiritual de perguntar e saber somente
pode alcançar o ente em sua validade incondicionada, quando esse movimento antecipa
o sensivelmente incondicionado.
O horizonte de validade incondicionada é, todavia, necessariamente o horizonte
limitado do Ser em absoluto. Dessa sorte, só a ilimitação do horizonte pode fundamentar
uma validade incondicionada e, portanto, indestrutível. Esse ente, a quem, perguntando e
conhecendo, conheço nesse horizonte, se manifesta como finito. E, sem ser o próprio
Ser, em sua totalidade. Está limitado no Ser, sendo um ente finito. Mas, perguntando e
conhecendo, alcanço-o também em sua validade incondicionada, ou seja, no horizonte
incondicionado e ilimitado do Ser.
O movimento do espírito avança para além do ente para outros entes, que
também são finitos. Todos os entes finitos não esgotam as possibilidades do Ser. Assim,
o movimento do espírito transcende necessariamente todo o finito, a soma de todos os
finitos. Somente encontrará sua plenitude no infinito. Mas o infinito, para o qual tende o
movimento do espírito, não é uma infinitude no infinito. É um infinito anterior ou
superior ao finito, pois só assim pode dar-se enquanto infinito atual, isto é, enquanto
plenitude real de todas as possibilidades infinitas do Ser.
Serve de base a todo o pensar, seja perguntar ou saber, como condição de sua
possibilidade, a intuição primitiva e a afirmação do Ser originária com toda sua
necessidade incondicionada: Ser é necessariamente ser; não pode não-ser. Enfim, diz
Coreth, o saber sobre ó Ser, que constitui a condição de possibilidade de todo o saber
acerca do ente, transcende todo ente finito até o Ser absoluto e infinito.
Emerich Coreth diz que ―um conhecimento de Deus, de qualquer modo que seja,
inclusive em um perguntar por Deus, somente é possível em virtude de que o espírito finito,
embora ligado ao mundo da experiência, o transcende essencialmente na antecipação para o
Ser absoluto e infinito. Pois o espírito finito realiza-se em todo o perguntar e saber dentro do
horizonte aberto do Ser. No perguntar pelo ente e no saber sobre o ente, fica pressuposto
sempre e necessariamente o saber básico sobre o Ser, como certeza primeira e originária
afirmação da necessidade do Ser. Este saber fundamental sobre o Ser vai além do ente finito,
até ao Ser absoluto, embora de maneira implícita e atematicamente‖ (§ 93)
Só conseguimos captar o ente em sua condicionalidade, possível e realizável,
sob a condição de uma incondicionalidade pressuposta. Captamos o ente em sua finitude.
Se captamos o ente em seu ser, isso só é possível no horizonte ilimitado do Ser, ou seja,
é possível em razão da infinitude virtual do espírito. Essa infinitude está orientada para a
infinitude atual do Ser absoluto, que é a meta última do espírito finito.
A meta do espírito, segundo Coreth, no mínimo é possível. A potência do
espírito mostra-se ordenada para o Ser absoluto e infinito. Para que seja possível o ato,

Coleção Filosofia – 175 25


deverá ser possível o conteúdo desse ato, no caso o Ser absoluto. Do contrário, a
dinâmica teleológica do espírito, tal como é na realidade, seria impossível.
Ora, se o Ser absoluto é possível em si, também é necessariamente real.
Portanto, Coreth não deduz a existência real de Deus de um ―conceito‖ dele, pensável
sem contradição, mas da realização real do espírito, que só é possível, se tende para uma
meta realmente possível: o Ser absoluto. Se o Ser absoluto é possível, também é real. A
possibilidade do Ser absoluto mostrou-se como condição de possibilidade da realização
espiritual enquanto está ordenada finalisticamente para o Absoluto. Daí segue-se que o
Absoluto é necessariamente real, enquanto meta última e incondicionada da dinâmica
espiritual. A auto-realização do espírito finito é um movimento dinâmico-finalístico da
tendência para o Ser uno, incondicionado e infinito.
Resumindo: a pergunta supõe a possibilidade da resposta. Mas nosso perguntar
é um perguntar infinito, pois eu posso perguntar por tudo e posso perguntar para além de
toda fronteira possível. O perguntar dirige-se conforme sua essência à infinitude do
cognoscível. Por isso a realização do perguntar supõe a possibilidade de uma resposta
infinita que esgota todo o perguntar. Ora, nenhum finito, nem a soma de todo o finito,
pode dar uma resposta infinita nem esgotar o perguntar infinito. Portanto, o perguntar
supõe um infinito por antonomásia, que possa dar uma resposta possível. Mas a
possibilidade do infinito encerra necessariamente sua realidade. Por isso a realização do
perguntar supõe a realidade do Ser absoluto, que chamamos Deus.
Quando se coloca a questão do Absoluto na Filosofia, mesmo admitindo um
Absoluto transcendente e pessoal, ainda resta examinar se se trata do mesmo Ser
absoluto do qual falam as religiões monoteístas. Desde Blaise Pascal, costuma opor-se o
Deus dos filósofos ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Pressupõe-se que a Filosofia não
consiga ultrapassar a idéia de um absoluto abstrato, porque se pressupõe que a Filosofia
não possa ultrapassar a racionalidade tecnológica.
E indiscutível, entretanto, que entre o conceito de Deus da Filosofia e o da
religião há certa tensão inevitável. O conceito filosófico do Absoluto transcendente
sempre será menos vivo que o da religião. Também o transcendente pessoal não se
identifica com o Deus que se revela, guia a história do universo e nela intervém para a
salvação. Mas a crítica filosófica muitas vezes exerce um papel purificador para a
religião, superando elementos mágicos e míticos na concepção de Deus.

Referências

CORETH, Emerich. Metafísica: una fundamentación metódico-sistemática. Barcelona:


Ariel, 1964.
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer, 1963.
LOTZ, Johannes B. Die transzendentale Erfahrung. Freiburg i. Br: Herder, 1978.
MARCEL, Gabriel. El misterio dei Ser. Buenos Aires: Sudamericana, 1964.
____ . Être et Avoir. Paris: Montaigne, 1935.
MARÉCHAL, Joseph. Le point de départ de la métaphysique. Bruxelas — Paris:
Desclée, 1944.
RAHNER, Karl. Hörer des Wortes. München: Kösel, 1941.

26 Coleção Filosofia - 175


WEISSMAHR, Béla. Philosophische Gotteslehre. 2. Auflage.Stuttgart: Kohlhammer, 1994.
ZILLES, Urbano. Transzendenzerfahrung und Gnade bei Gabriel Marcel. Münster:
Universidade de Münster, 1969.

Coleção Filosofia – 175 27


DEUS NA FILOSOFIA DE WITTGENSTEIN?

O diálogo entre filosofia e religião é tão antigo como a própria filosofia.


Enquanto, em outras épocas, a religião constava entre os temas centrais da reflexão
filosófica, mais recentemente a problemática religiosa foi sempre mais marginalizada ou
banida pelo simples silêncio. O homem moderno evita recorrer aos argumentos religiosos.
Baniu os sentimentos religiosos para a esfera íntima. A tese de Nietzsche de que Deus está
morto fez com que Deus e religião sempre mais fossem reduzidos a objeto de crítica. A
proclamação da morte de Deus foi acompanhada de um processo histórico de
secularização, de um processo de distanciamento da filosofia ocidental da religião e da
filosofia da religião e, finalmente, surgiu o pensamento analítico que parecia destruir tudo.
A filosofia da religião encontra-se perante sérios desafios. Não pode fechar os
olhos ante fenômenos religiosos fundamentais, ou seja, perante o fato da finitude ou
contingência e da necessidade de salvação da experiência humana. Há situações que
transcendem a disposição humana. Tais experiências da contingência, conjugadas com o
anseio por salvação, são origem de toda dominação da contingência na ciência, na
metafísica e na religião.
A ciência e a metafísica tradicional, em boa parte, perderam sua força de
convencer como instrumento de interpretação da contingência humana. Por isso, numa
época de desorientação generalizada, redescobre-se a prática religiosa. Nessa perspectiva
situa-se uma explosão de novas religiões em todo o planeta. Entretanto, na discussão
sobre a necessidade de salvação, muitos teólogos cristãos se distanciam da perspectiva
metafísica. Suspeitam de todos os pontos de partida antropológicos. Tentam
compreender a revelação judaico-cristã e o acontecimento salvífico simplesmente como
graça. Opõe-se a experiência de Deus ao discurso racional sobre Deus, abrindo caminhos
para novos tipos de fideísmo, como o encontramos no neopentecostalismo e derivados.
Nos começos da filosofia analítica encontramos forte aversão ao tratamento de
questões religiosas. Declara-se que tais questões carecem de sentido, ao menos lógico.
Enquanto na metafísica tradicional se considera a resposta vazia de sentido, na filosofia
analítica declara-se a própria pergunta como absurda. Os métodos diferem, mas a
perspectiva fundamental é a mesma: acentua-se o limite entre a razão esclarecida e a fé,
entre filosofia moderna e filosofia da religião.

1 — O problema colocado por Wittgenstein

O fato da propagação de novas experiências religiosas abrandou a crítica moderna


da filosofia do fenômeno religioso. Apesar de todas as objeções teóricas, a experiência da
contingência e a busca da felicidade ou salvação constituem um ponto de partida sólido

28 Coleção Filosofia - 175


para reflexões ulteriores. Se, inicialmente, na filosofia analítica, predominou uma
atmosfera hostil ao fenômeno religioso, mais recentemente houve uma mudança profunda.
Dentro da filosofia analítica, desenvolveu-se um conceito de método segundo o
qual só se podem esclarecer conceitos pelo uso das palavras. Percebeu-se que a analítica
não constitui um fim em si mesmo para resolver todos os problemas filosóficos, através
da descrição do uso lingüístico. A descrição e precisão são apenas um primeiro passo
para a reflexão crítica. Para entender a nova filosofia, basta retomar a obra de Ludwig
Wittgenstein, que indicou uma nova base para uma filosofia da religião. Entretanto, a
filosofia da religião não pode ser fundamentada exclusivamente a partir da linguagem.
O Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein reconhece espaço importante
aos fenômenos religiosos dentro da filosofia analítica. Por um lado, este pensador
original contribuiu para a evolução do empirismo lógico; por outro, já supera o esquema
do neopositivismo. À primeira vista, pode o leitor do Tractatus ter a impressão de que
Wittgenstein torna impossível uma filosofia da religião. Declara a maneira de pensar das
ciências naturais como único método.
Pode entender-se o Tractatus como teoria de analítica rigorosa do pensar, que
se supera a si mesma. Vejamos uma breve síntese do seu conteúdo:
1 — A linguagem consiste de nomes que se vinculam em proposições elementares.
Estas, por sua vez, são compostas em proposições funcionais da verdade. A essa estrutura da
linguagem corresponde a estrutura da realidade, na qual objetos são unidos em conteúdos
que, através do espírito humano, podem ser colocados em contextos mais amplos.
2 — Através da relação de figuração, estão determinados os limites da linguagem.
O discurso com sentido realiza-se na expressão de conteúdos objetivos. A constatação de
conteúdos existentes ou coisas é reservada, em grande parte, às ciências da natureza.
3 — Ao lado de proposições nas quais se constitui sentido, existe o mostrar-se
do sentido. O importante é a distinção entre o que pode ―ser dito‖ e o que só pode ―ser
mostrado‖. O que só pode ser mostrado, mas não pode ser dito, são duas coisas: a) a
estrutura da linguagem e, com isso, a estrutura do mundo no próprio dizer; esta aparece
em proposições lógicas, sobretudo em tautologias, contradições, expressões analíticas
etc.; b) o limite do mundo: ―O sentimento do mundo como um todo limitado é o
místico‖. Também o indizível pode mostrar-se: ―Os limites de minha linguagem
denotam (mostram) os limites de meu mundo‖ (6.54, 6.5.2.2 e 5.6).
Quais são as conseqüências disso para a ética e a religião? Afirmações sobre
valores, bem ou mal, sobre o sentido da vida ou sobre Deus, nessa perspectiva, carecem
de sentido. O místico mostra-se na ação. Religião não é uma doutrina, mas uma forma da
existência. Wittgenstein parte de certas experiências místicas fundamentais: a) a
admiração da existência do mundo; b) o sentimento de uma proteção absoluta; c) a
experiência de um sentimento pessoal de culpa.
Afirmações sobre tais vivências são supérfluas, porque todos os homens
religiosos as conhecem. Comprova-se, assim, a afirmação de que estruturas a priori e
outras necessárias, que se mostram na linguagem, não podem ser ditas em proposições
com sentido. Wittgenstein expressa essa aporia nas conclusões do Tractatus: ―Minhas
proposições se elucidam do seguinte modo: quem me entende, por fim as reconhecerá

Coleção Filosofia – 175 29


como absurdas, quando, graças a elas — por elas —, tiver escalado para além delas. (E
preciso, por assim dizer, jogar fora a escada depois de ter subido por ela).
Deve-se vencer essas proposições para ver o mundo corretamente‖ (6.54).
Em nossas considerações, interessam-nos as principais conseqüências para a
teologia e a filosofia da religião:
1 — Filosofia da religião, no sentido da metafísica especial e da doutrina sobre
o absoluto (teologia racional), funda-se em confusões ou ambigüidades lingüísticas.
Enquanto o absoluto como transcendente por definição não significa algo fáctico, nas
proposições dessa metafísica nada é figurado.
Não se consegue captar a transcendência na linguagem fáctica. A metafísica
como doutrina do incondicional dissolve-se numa teia de condições da linguagem.
2 — Filosofia da religião como conseqüência de uma filosofia transcendental
(Kant) ou de uma doutrina da subjetividade absoluta (Hegel) abusa do papel do sujeito.
Como condição ou limite do mundo, a transcendência não pode ser captada
lingüisticamente para tornar-se conteúdo de uma filosofia da religião. Também o sujeito
extrapola a linguagem fáctica.
3 — Considerando que o religioso se mostra como fenômeno sem palavra,
deixa de existir espaço para a teologia enquanto o Logos for reduzido ao dizer do fáctico.
4 — Através do rigor da estrutura lingüística, na qual também negações só são
com sentido, quando lhe correspondem figurações objetivas, exclui-se, outrossim, uma
teologia negativa. Esta crê poder indicar para experiências fundamentais indizíveis,
através de negações. Como única maneira que possibilita acesso a tais experiências, fora
da pura ação, permanece a arte.
Apesar de todas essas considerações críticas, não se pode falar de ateísmo em
Wittgenstein. É verdade, os conceitos teológicos, proposições teológicas e dogma são
considerados carentes de sentido, porque lhes falta a significação semântica fundamental, a
figuração de dados objetivos, O ateísmo, no entanto, contém a tese positiva da não-
existência de Deus. Wittgenstein pessoalmente está convencido da existência de Deus. Sua
profissão de fé nos Diários dá um testemunho convincente de sua religiosidade. Em 11 de
junho de 1916 aí anotou: ―Que sei eu acerca de Deus e do sentido da vida? Sei que este
mundo existe; que estou colocado nele como meu olho em seu campo visual; que há algo
de problemático, que chamamos seu significado; que este significado não está nele, mas
fora dele; que a vida é o mundo; que minha vontade penetra o mundo; que minha vontade é
boa ou má. Portanto, que o bem e o mal de algum modo estão conectados com o
significado do mundo. Ao significado da vida, isto é, ao significado do mundo, podemos
chamá-lo Deus e conectar com isso a comparação de Deus com um pai. Orar é pensar
acerca do significado da vida. Não posso sujeitar os sucessos do mundo à minha vontade:
careço por completo de poder... Se a boa ou má vontade afeta o mundo, só pode afetar as
fronteiras do mundo, não os fatos; isso não pode ser figurado pela linguagem, mas só
mostrado na linguagem‖ (Schriften I, p. 165-166).
A religiosidade indizível de Wittgenstein baseia-se, ao que tudo indica, em
fenômenos religiosos acima esboçados. A constituição de sentido, que nem a metafísica
nem a ciência realizam, não pode significar coisa intramundana que pudesse ser descrita
na forma de conteúdo. No dia oito de julho de 1916, registrou em seu Diário: ―Crer em

30 Coleção Filosofia - 175


um Deus significa compreender a pergunta pelo sentido da vida. Crer em um Deus
significa ver que nem tudo se exaure nos fatos do mundo. Crer em um Deus significa ver
que a vida tem um sentido‖ (Schriften I, p. 167).
A experiência da contingência expressa-se sobremodo numa relação de
dependência: ―Por isso temos a sensação de que dependemos de uma vontade alheia.
Seja como for, de qualquer maneira, somos dependentes, e aquilo, de que dependemos,
podemos chamar Deus‖ (ibidem).
Bastam essas breves considerações para perceber, de maneira clara, que
Wittgenstein se distancia do neopositivismo da época. Por um lado, no Tractatus radicaliza o
caminho analítico até ao fim, embora em aporia. Por outro, a discussão do místico mostra que
também na era da ciência, da técnica, do iluminismo, os fenômenos religiosos irrompem com
toda força. O pensador austríaco evidencia a inconsistência do pensamento que queira
abordar os fenômenos religiosos com o método rigoroso das ciências modernas. Talvez o
indizível apenas conduza a um beco sem saída. Mas, posteriormente, nas Investigações,
Wittgenstein encontrou um novo acesso à linguagem religiosa. Dessa forma, Wittgenstein
motiva uma reabilitação da filosofia da religião nas últimas décadas do século XX.
Na segunda etapa, Wittgenstein elaborou uma concepção mais abrangente de
linguagem. A tese central da filosofia analítica de que a significação das palavras se
concretiza no uso regular coloca a linguagem comum no centro das reflexões. As
palavras adquirem sua significação dentro de jogos de linguagem. Como a linguagem
religiosa é parte da linguagem comum, cabe-lhe lugar importante.
A linguagem religiosa é jogo diferente da linguagem científica. Se afirmo ―creio
no juízo final‖, esta afirmação repercute nas atitudes de minha vida. Não formulo uma
hipótese científica ou afirmação probabilística. Nem se trata de conhecimento no sentido
comum. Crer indica, no sentido religioso, um regulador universal de vida, que
lingüisticamente é expresso em imagens. Esta fé é a base para toda fundamentação
religiosa e, como tal, não se fundamenta a si mesma.
Wittgenstein diz que a palavra Deus faz parte daquelas que se aprendem bem
cedo. Usa-se esta palavra como representando uma pessoa, passando por transformações.
―Deus nos ama‖, mas não como os homens amam. ―Deus é pai‖, mas não como nosso
pai físico. As modificações são negações. Parece que o acesso a Deus só é possível
através de negações. Mas, através desse processo modificador, a imagem Deus não perde
sua função reguladora. A não-existência de Deus, para Wittgenstein, seria impensável.
Nossas experiências e interpretações da realidade, que essencialmente contém
contingências, necessitam de Deus como palavra necessária de nossa língua.
L. Wittgenstein não elaborou uma filosofia da religião, mas tornou-se ponto de
partida para a interpretação da linguagem religiosa dentro da filosofia analítica. O grande
equívoco foi o uso de seu Tractatus como ―Bíblia do positivismo‖, pois é,
simultaneamente, antítese do positivismo. Nos escritos posteriores encontramos
numerosos elementos que permitem a elaboração de uma filosofia do discurso religioso:
fé como regulador universal de vida, expressa em imagens; Deus que não se pode
eliminar do pensamento e imagens religiosas como esquemas de linguagem que têm
conseqüências na ação e não se esgotam na conduta mundana.

Coleção Filosofia – 175 31


Os aforismos wittgensteinianos sobre o assunto permitem diferentes
interpretações. Destacamos três: formas redutivas, o jogo da linguagem religiosa e
religiosidade como momento integral da forma geral de vida.

2 — Filosofia da religião

Na filosofia analítica, a tarefa da filosofia da religião é limitada à análise do uso


religioso da linguagem. No início encontra-se a descrição da linguagem em contextos
religiosos. Como funciona a linguagem religiosa? Quais são suas regras específicas que
caracterizam uma linguagem como religiosa? Essas qualificações são consistentes e
expressáveis em nível intersubjetivo? Expressões religiosas têm conteúdos cognitivos ou
deverão ser entendidas a partir de suas funções?
De acordo com as formas redutivas, que mencionamos acima, está o ponto de
vista que orienta o ato normativo nos critérios de verificação e falsificação da tradição
empírica. Nessa linha situam-se A. Flew, W. W. Bartley, W. Kaufmann e H. Albert. A
argumentação de Flew rejeita a significação cognitiva da linguagem religiosa. Faltando a
essa linguagem a falsificação, deve ser excluída do âmbito do conhecimento. Entretanto,
não faltam autores que interpretaram a linguagem religiosa em outras perspectivas que não
a cognitiva. Assim, alguns reduzem os conteúdos a manifestações pragmáticas, éticas ou
pseudológicas. Com isso, expressões religiosas mantêm seu sentido, embora não
relacionadas com o conhecimento, um significado prático como expressão de atitudes.
A concepção do ―jogo da linguagem religiosa‖ tenta justificar o caráter
específico da linguagem religiosa pela dinâmica própria da constituição da linguagem. A
linguagem religiosa então é uma das muitas possibilidades da linguagem humana. Dessa
maneira substituem-se verificação e falsificação pelo princípio do uso. A significação de
cada expressão é dada pelo uso em determinada comunidade de vida. Expressões
religiosas têm significação porque usadas em numerosas situações.
Nessa perspectiva negligenciou-se o aspecto cognitivo da linguagem religiosa.
Foi mérito de Austin, em sua teoria da linguagem, apontar para o ato da fala, rejeitando a
alternativa cognitivo versus não-cognitivo.
Uma terceira alternativa para a filosofia da religião, na analítica, é considerar a
linguagem religiosa como um modo original, integrando-a com outros modos. Com isso as
fórmulas confessionais ou de determinadas comunidades não exercem função especial, mas
todo o nosso pensar e falar, inclusive os métodos das ciências exatas, contêm estruturas que
podem ser interpretadas de maneira religiosa ou profana. Dessa maneira, a filosofia da
religião, na analítica, perde seu caráter esotérico, tornando-se parte de nossa cultura.
Em síntese, as três concepções expostas excluem um juízo extralingüístico, caso
não se reduza a linguagem religiosa a expressões éticas ou pragmáticas. O juízo sobre
verdade ou falsidade do discurso religioso extrapola a analítica.

3 — A significação da palavra “Deus”

Wittgenstein mostra que, no uso, a palavra ―Deus‖ pertence àquelas palavras que
cedo aprendemos — através de imagens, catecismos etc. — Mas, diz ele, tais imagens não

32 Coleção Filosofia - 175


têm a mesma conseqüência como as imagens das tias. Não se me mostrou o que a imagem
figura. Usa-se a palavra ―Deus‖ como a palavra que representa uma pessoa. Deus vê,
recompensa etc. ―Deus nos ama‖, mas não à maneira dos homens; ―Deus é pai‖, mas não
como nosso pai físico... A palavra Deus mantém sua função regulativa original, mas, pouco
a pouco, do ponto de vista cognitivo, torna-se mais indeterminada.
Dessa maneira, toda a aproximação de Deus só se torna possível através de uma
teologia negativa. Aprendemos imagens e propriedades que atribuímos a Deus. Com
alteração de nossa experiência, no decurso do processo de formação, segue uma
limitação após outra. A palavra Deus perde cada vez mais seu conteúdo palpável.
Permanece apenas a função reguladora. Amor, justiça, permanecem determinados a
partir do conceito de Deus, deixando de ser derivados de conceitos mundanos, de
hipóteses científicas e de experiências cotidianas.
Na reflexão sobre as razões para a fé em Deus, Wittgenstein explica algumas
afirmações que parecem totalmente absurdas. Somos introduzidos na linguagem comum
profana, através de certas técnicas aceitas por todos, mas em relação à imagem de Deus
falta tal introdução.
Se se ensina a alguém que a palavra ―Deus‖ significa que se deve crer na sua
existência — primeiro, no sentido moral, e, mais tarde, no sentido regulador ou também
lógico — para ele, a existência de Deus se torna sem sentido. Pois Deus significa aquilo
que não pode ser pensado a não ser como existente: o simplesmente necessário. Aqui
somos lembrados da prova ontológica da existência de Deus, na qual, a partir do
conceito, se conclui a existência de Deus. Trata-se de uma variante lingüística ou
analítica do argumento anselmiano que afirma o sentido da palavra Deus como
existência de seu objeto de referência. A significação da palavra Deus, desta maneira,
contém formalmente o conceito oposto à contingência. Assim, Deus, em Wittgenstein, é
determinado gramaticalmente. De resto, nada se afirma sobre o conteúdo da existência.
Concebendo-se e experienciando a contingência, deve pensar-se, simultaneamente, o
conceito oposto ―Deus‖, no sentido de não-contingência. A questão decisiva é qual o
papel que esse conceito oposto exerce, ou seja, se permanece, no fundo, como conceito
estrutural lógico, abstrato e sem atuação, ou se atua como regulador pessoal e é aceito
como tal e, dessa maneira, determina todas as ações
Enfim, Wittgenstein esclarece a diferença da palavra Deus em relação a todas as
outras palavras na situação do ensino e da aprendizagem. Imagens religiosas de Deus
não representam no sentido estrito da teoria da figuração e, apesar disso, não são
funcionalizadas. O próprio argumento gramatical da existência de Deus também na
teologia negativa é pensado como nominador ou nome próprio. A razão é a
impensabilidade da não-existência de Deus. Nossas experiências e interpretações da
realidade, que contêm essencialmente contingências, necessitam ―Deus‖ como palavra
necessária de nossa linguagem. Pouco importa se nesse processo surgem sinônimos
como ―Ser‖, ―Totalmente outro‖, e só se refere à estrutura superficial da gramática.

Coleção Filosofia – 175 33


Referências

ALSTON, William P. Divine Nature and Human Language. Cornell: University Press,
1989.
RICKEN, Friedo. Sind Sätze über Gott sinnlos? In: Religionskritik, organizado por Karl-
Heinz Weger. Munique: Johannes Berchmans Verlag, 1976, p. 101-128.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-philosophicus. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1968.
______ . Investigações Filosóficas. S.Paulo: Abril Cultural, 1975.
WUCHTERL, K. Philosophie und Religion. Berna/ Stuttgart: Verlag Paul Haupt, 1982.
ZILLES, Urbano. O Racional e o Místico em Wittgenstein. 3. ed. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001.

34 Coleção Filosofia - 175


PANORAMA DA FILOSOFIA NO FINAL DO SÉCULO XX

Os currículos de Filosofia, nos seminários do Brasil e nas Faculdades em geral,


apresentam como coluna vertebral a disciplina de História da Filosofia. Esta, por sua vez, é
ministrada de acordo com um critério cronológico: antiga, medieval, moderna e
contemporânea. A opção cronológica tem como conseqüência que alunos, quando chegam
as Filosofias contemporâneas, ou já estão um tanto desmotivados ou absorvidos por outras
tarefas pastorais ou mesmo de currículo. Com isso, muitas vezes, o papel da Filosofia na
formação de padres torna-se, de fato, secundário. Se o conhecimento do passado, na
Filosofia, é necessário, contudo não é suficiente para dialogar com o mundo de hoje.
Acresce, ainda, que, nos seminários, por vezes se percebe que muitos estão no
Curso de Filosofia, não porque queiram, nem por vocação, mas por obrigação, por ser
condição para chegar ao sacerdócio. Essa situação pode chegar ao ponto de até
desanimar aquela minoria que tem vocação filosófica. Se tal é, muitas vezes, a situação
de fato, não duvidamos, no entanto, da importância da Filosofia na formação de teólogos
como o evidenciam os documentos do Magistério da Igreja, de modo especial a recente
encíclica Fides et ratio, de João Paulo II.
Para a elaboração crítica no campo da Teologia não satisfaz qualquer Filosofia.
Teologias recentes envelhecem rapidamente pela falta ou falha das Filosofias em sua base.
Parece-nos que, de modo geral, ao teólogo, e ao pregador seria muito útil um bom
conhecimento das Filosofias contemporâneas, mesmo daquelas que são incompatíveis com
a fé cristã, pois a ignorância, além de não ser virtude, não habilita ao diálogo.
No decreto Optatam Totius, o Concílio Vaticano II afirma que as disciplinas
filosóficas devem levar o estudante a adquirir um conhecimento sólido e coerente do homem,
do mundo e de Deus, apoiados no patrimônio perenemente válido. Mas logo acrescenta:
―Tenham-se em conta também as investigações filosóficas dos tempos modernos, em
especial as de maior influência na respectiva nação, bem como o mais recente progresso das
ciências, para que os alunos conheçam de maneira exata a índole da época presente e se
preparem convenientemente para o diálogo com os homens de seu tempo‖ (n. 15).
A Filosofia contemporânea, de modo semelhante à Filosofia de outras épocas,
sobretudo da clássica grega e do Iluminismo francês e da Aufklärung alemã, não
desenvolveu uma autocompreensão universalmente aceita. Enquanto na maioria das
ciências objetivas se impõe certo consenso sobre objeto, aspectos mais importantes do
método, na Filosofia tal consenso só se encontra dentro de algumas ―Escolas‖ ou
correntes. Por isso, como disse E. Husserl, nos congressos de Filosofia encontram-se os
filósofos, mas não as Filosofias. Thomas Kuhn definiu a Filosofia como aquela ciência
que não conhece pesquisa normal e universal, mas só a pesquisa científica
extraordinária. De acordo com Kuhn, a Filosofia seria aquela disciplina acadêmica que

Coleção Filosofia – 175 35


institucionaliza a crise dos fundamentos. Tal juízo, contudo, seria insuficiente para
valorar a Filosofia contemporânea por duas razões. Por um lado, para a Filosofia
contemporânea, a discordância sobre o lugar, os fundamentos metódicos e sua
racionalidade científica tornaram-se tão evidentes que isso não mais é considerado um
sintoma de crise. Por outro, existem programas de pesquisa cientifica em diversos
campos da Filosofia que são perseguidos através de longos espaços de tempo e
apresentam progressos que não ficam aquém das ciências particulares. Esse é, sem
dúvida, o caso da Filosofia orientada historicamente. Até reconhecemos que a esperança
de revolucionar a Filosofia a partir de dentro, garantindo-lhe o rigor de uma ciência,
através de desenvolvimento de seus métodos, deixou de estar em primeiro plano.
Tania Eden e J. Nida-Rümelin afirmam que a consciência de crise, hoje, na
Filosofia, concentra-se nos limites da capacidade de compreensão moderna da
racionalidade. Sabe-se que não só o conhecer mas também o agir humanos dependem
menos de como as coisas são de fato do que da maneira como elas se refletem nas
hipóteses e representações do homem, ou seja, daquilo em que este crê. O que diferencia
essencialmente o mundo ambiente do homem do mundo de outros animais é a crença
que lhe determina a forma do mundo perceptivo e do mundo real (p. XIV).
Segundo Fritz Heinemann, as grandes Filosofias dependem das diferentes
crenças e de sistemas de crenças dos povos, grupos e indivíduos que a partir daí se
desenvolvem. Embora permaneçam constantes determinadas tendências fundamentais
das crenças, através de séculos e milênios, outras mudam.
A Filosofia grega, v. g., surge a partir do mundo do mito, com as suas figuras de
deuses olímpicos, plantas, animais e homens. A religião dos mistérios, por exemplo, está
muito presente na obra de Platão. Os gregos crêem no mundo e na sua ordem (cosmo),
naquilo que é formado, estruturado, unívoco, no ser e nas forças da razão para captarem
o seu âmago.
Na obra enciclopédica A Filosofia no século X.X (Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1969), Fritz Heinemann escrevia: ―Se nos é permitido afirmar, numa simplificação de que
temos consciência, encontrar-se a Filosofia grega fundada sobre a crença no ser, no cosmo
e sua racionalidade, a Filosofia medieval sobre a crença em Deus, sua criação e revelação e
a Filosofia moderna sobre a crença no homem e na capacidade de realizar o reino de Deus
sobre a terra, o século XX caracteriza-se por levar a tendência moderna até o extremo,
embora, ao mesmo tempo, padeça de uma dissolução da substância da crença. O homem
atual já não crê, realmente, em nada e é capaz, por isso, de acreditar em tudo‖ (p. 255).
A Filosofia medieval, por sua vez, constitui-se no contexto determinado pela
crença num Deus transcendente que se revelou aos homens. Tanto no meio cristão como
no meio judaico e islâmico, acredita-se na verdade revelada. A crença religiosa aparece
com a exigência de ser um saber absoluto. Com isso o filósofo defronta-se com um
problema muitas vezes difícil: se e como é possível fazer concordar a sua verdade fundada
na razão autônoma com a verdade revelada? Dessarte o filosofar passou a ser exercido
pelos teólogos, tornando-se difícil separar a Filosofia da Teologia. Pela crença religiosa,
por um lado, se promove o filosofar e, por outro, se o limita. Promove-se, na medida em
que surgem novos interesses e impulsiona novas problemáticas e finalidades. A pessoa
sobrepõe-se à coisa; Deus é uma pessoa. Por outro lado, o filosofar é limitado porque, ou

36 Coleção Filosofia - 175


simplesmente colocado de lado ou apenas reconhecido como ante-sala à crença ou ainda
como um meio de completar e garantir as verdades fundadas na revelação.
Na Idade Moderna, a Filosofia tenta libertar-se dos compromissos religiosos e
cosmológicos, construindo Filosofias independentes da crença no mundo e em Deus. O
homem moderno crê na sua autonomia, ou melhor, na autonomia de sua razão; crê na
liberdade de decidir autonomamente sobre o que é e deve ser, sobre o verdadeiro e o
falso, sobre o bom e o mau. Abre uma multiplicidade de caminhos e doutrinas que, não
raro, se combatem mutuamente.
No mundo contemporâneo, as Filosofias carecem de bases comuns de crença. A
multiplicidade de correntes, quase tantas quantos os filósofos, parece basear-se em
pressupostos tão diversos e exprimir-se em linguagens tão diferentes que tornam quase
impossível o entendimento mútuo. Com isso toma-se difícil caracterizar a Filosofia
contemporânea in bloco. Tentaremos um panorama, agrupando tendências afins, sem
pretensão de esgotar nomes e idéias. Trataremos: 1. Filosofias antigas e contemporâneas;
2. Panorama das Filosofias contemporâneas; 3. Duas correntes em destaque: a
Fenomenologia e a Analítica.

1 — Filosofias antigas e contemporâneas

Numa obra de Vittorio Hösle, Philosophiegeschichte und objektiver Idealismus


(Munique: Beck, 1996), o autor preocupa-se, no primeiro capítulo, com as diferenças
essenciais entre Filosofia antiga e a dos tempos recentes (p. 13-36). Aqui seguiremos
algumas de suas idéias.
Há diferenças essenciais entre a Filosofia antiga e as Filosofias
contemporâneas? É necessário um conhecimento aprofundado da Filosofia antiga para
chegar a uma compreensão mais profunda das Filosofias contemporâneas? Parece, à
primeira vista, que certas posições se repetem no decurso da história da filosofia:
metafísica dogmática, empirismo, ceticismo, crítica do ceticismo e idealismo objetivo.
Por outro lado, parece haver diferenças essenciais quanto ao método e ao conteúdo; que
novas perguntas filosóficas postulam possíveis respostas novas. Ocorrem mudanças
imanentes como também ocorrem mudanças ou até rupturas na história da consciência
humana em geral. Tais mudanças referem-se a questões centrais no campo da metafísica,
da ética e da filosofia política.
Há, certamente, um ponto fundamental que diferencia as Filosofias contemporâneas
das antigas: a nova forma da subjetividade. Assim, autores como Hegel e Heidegger
concordam em reconhecer essa diferença com as categorias de objetividade e subjetividade.
O eu da modernidade apresenta incrível capacidade de abstração do mundo natural e social
no qual vive. As Meditações de Descartes, que introduzem a Filosofia moderna, não
encontram correspondente na Antiguidade. Partindo de um ponto de vista subjetivo,
reclamam o direito de duvidar de tudo aquilo que não é dado; é capaz de eliminar os próprios
fundamentos; só reconhece no mundo natural e social o que estiver construído sobre tal
fundamento. Ora, embora nem todos os filósofos modernos e contemporâneos concordem
com Descartes, se quiserem ser levados a sério, têm que se confrontar com o problema do eu.

Coleção Filosofia – 175 37


A modernidade é mais que um conceito cronológico. É a cultura marcada por esse eu. O que
distingue o espírito moderno do antigo é a dúvida metódica.
Para entender o sucesso da Filosofia moderna e contemporânea, é preciso
atender a três estruturas que lhe servem de base: o cristianismo, a ciência moderna e o
movimento do Iluminismo e da Aufklärung. A ciência moderna e o Iluminismo são
frutos de uma mesma árvore, cuja raiz se encontra no eu da modernidade. E o que une o
cristianismo, a ciência moderna e o Iluminismo? Decisivo é que o Deus cristão destruiu
o cosmo fechado da Antiguidade. Enquanto os deuses gregos são parte da natureza, a
transcendência do Deus cristão introduziu algo na consciência humana que está fora do
mundo que habitamos e tem o poder de criá-lo ou destruí-lo. Com isso a identificação
com o mundo deve ceder lugar e o eu, na modernidade, tenta usurpar o lugar de Deus,
derivando de si mesmo o mundo social e a natureza.
Sob certo aspecto, talvez se encontre algo em comum entre a gnose antiga e a
Filosofia cartesiana: a fuga do cosmo. Comum é, pois, o dualismo convicto de que a alma
só encontrará sua felicidade fora da natureza. O cristianismo representa uma correção à
postura gnóstica em relação à natureza. Mas a oposição absoluta entre o eu e a natureza é
apenas o primeiro passo na gênese do mundo moderno. Em Descartes, o eu apenas é
autônomo, mas ainda não todo-poderoso. O eu não mais é parte do mundo, mas o eu
constitui o mundo. Só o que o próprio homem cria pode ser entendido e reconhecido como
verdadeiro. Tenta-se uma construção da natureza sobre o fundamento do sujeito.
Esse postulado é o elo que une a ciência e a técnica. Esta tornou-se o prolongamento
da primeira. Por isso a ciência moderna tende para uma intervenção na natureza. Não quer ser
simples teoria no sentido clássico. Quer transformar o mundo. Tal objetivo encontra
expressão no Iluminismo. O eu intervém primeiro no mundo da natureza e depois no social,
através do poder técnico. Estabelece-se um dualismo entre ser e dever, Talvez por isso a
revolução na metafísica em Descartes provocasse em Kant a revolução na ética. Enquanto na
metafísica está no centro o que é, na ética somos nós que agimos. Na Antiguidade, a
metafísica é mais importante que a ética, pois trata do eterno. A ética é conseqüência.
Por isso a Filosofia da modernidade propõe-se mudar radicalmente o mundo
social. A nova autoconsciência não mais contempla o que já é como verdadeiro, mas só
aquilo que foi construído a partir da subjetividade. A subjetividade compreende-se a si
mesma como fonte, não só da verdade mas também do que é bom.
Uma diferença essencial entre as Filosofias modernas e as clássicas da
Antiguidade é a dúvida metódica, O ceticismo certamente já exerceu papel importante na
elaboração das Filosofias antigas. Mas a idéia de fundar toda a Filosofia sobre o
indubitável é moderna. Essa idéia, por um lado, salienta o papel do eu. Por outro, é a
vontade do eu que se torna o centro da Filosofia. Não mais a admiração, mas a dúvida
torna-se o ponto de partida. Dessa forma, por um lado, alimenta-se a desconfiança em
relação a tudo e, por outro, toda uma geração de filósofos tornou-se incapaz de mergulhar
na riqueza do mundo. A Escola fenomenológica, criada por Edmund Husserl, talvez seja
uma grande tentativa de buscar esse acesso através da ―volta às coisas mesmas‖.
A vontade para o sistema e a dúvida metódica só são as duas faces de uma
mesma moeda. Platão usou do diálogo como forma literária própria para expressar o
conceito grego de Filosofia. Nos tempos modernos, parece que a própria existência de

38 Coleção Filosofia - 175


um outro homem se tomou problemática. A vontade de objetividade para além de toda a
dúvida eliminou o interesse pelos pressupostos morais pessoais, ao menos enquanto não
considerasse a ética como fundamentada.
O princípio da Filosofia moderna é o eu. Para esse eu, que se absolutiza a si
mesmo, o mundo torna-se problemático. Perguntar se existe um mundo exterior é
tipicamente moderno. O mundo exterior resume-se sempre mais numa possibilidade.
Desde que o eu absorveu toda a subjetividade em si, a natureza ficou sem alma. O
objetivismo da ciência moderna é o resultado necessário do novo subjetivismo; a
homogeneidade do espaço e do tempo é o resultado do poder de abstração do eu. Desse
modo o mundo moderno tornou-se sem limites. Enquanto em Aristóteles, paradigmático
para o conceito do possível é a semente, ou seja, o possível é algo já real, embora ainda
imperfeito, o mesmo não acontece com o possível dos modernos e contemporâneos.
O empirismo moderno e contemporâneo é diferente do antigo. Os empiristas,
como o positivismo lógico, têm um interesse na vida do eu. O empirismo recente deve
seu sucesso à elaboração da nova ciência. O empirismo antigo carecia da filosofia da
matemática. O empirismo moderno e contemporâneo encontra-se sempre na tentação de
transformar-se num idealismo subjetivo. Só convence como empirismo ou positivismo
lógico. Mas, o problema da fundamentação da lógica transcende o próprio empirismo.
Aliás, o sucesso vitorioso da ciência trouxe uma conseqüência para a Filosofia.
Para os antigos, o conceito de ciência está vinculado à Filosofia. Também entre nós
falava-se em Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Entretanto, na modernidade,
considera-se a ciência, não a Filosofia, como verdadeiro conhecimento. Da antiga
Faculdade de Filosofia emanciparam-se várias faculdades de ciências: matemática,
física, química, etc. A metafísica moderna manifesta uma tendência de autodestruição.
Kant fez com que o eu, não mais Deus, se tornasse o princípio que garante a
unidade do mundo. Na Filosofia prática, Kant estabelece o dualismo entre ser e dever,
completando o poder do eu. Enquanto em Platão o mundo ideal fundamenta a ética, a
oposição platônica entre o mundo das idéias e o mundo sensível não é a mesma que a
kantiana entre ser e dever. A existência de um mundo das idéias, para Platão, transcende
o sujeito. Também a natureza está fundada nesse mundo ideal. A vontade moral, entre os
contemporâneos, só quer a si mesma.
Certamente Kant, com o imperativo categórico, tentou fundamentar uma ética
objetiva e universal, O formalismo deontológico é a razão principal para o caráter
universalista de sua ética. Mas esse universalismo abstrato também tem seus limites. Em
geral, o universalismo só se interessa em deveres gerais, enquanto os deveres concretos
entre homens como entre esposos, pais e filhos, professores e alunos recuam, restando-lhe
um lugar sem maior importância na ética contemporânea. Não é por acaso que o tema da
amizade, tão importante entre os antigos, quase desaparece nas Filosofias contemporâneas.
A vontade de autonomia do eu moderno dispensa a elaboração de princípios morais
concretos. A idéia da felicidade foi substituída pela idéia da utilidade. Hobbes, por
exemplo, reduz todas as virtudes àquilo que é útil para a paz, incapaz de reconhecer-lhes
seu valor intrínseco. Nesse sentido, a idéia central de Hobbes é que uma sociedade de
egoístas inteligentes não só pode substituir, mas seria o melhor para todos os participantes.

Coleção Filosofia – 175 39


A diferença entre a Filosofia moderna e a antiga toma-se clara, no campo
político, se considerarmos O Príncipe de Maquiavel e a Utopia de Thomas Morus. A
consciência do governante é moderna, quando diz que este deve agir diferentemente de
uma pessoa privada. Com Hobbes começa a tradição consciente na luta pelo poder.
Paralela à objetivação sociológica dos valores, nos tempos modernos,
desenvolvem-se forças utópicas desconhecidas para os antigos. Isso é a expressão do
distanciamento entre o eu e o mundo social. O eu elabora um poder utópico situado além
da realidade, considerando os valores sociais fáticos como coisas mortas sem vida
normativa própria, O resultado é um moralismo abstrato e uma política brutal de poder
como conhecemos no marxismo e em outras formas novas de totalitarismo.
A figura central de legitimação da Filosofia política moderna é o contrato. O
Estado é assunto meramente humano. A idéia de contrato pressupõe que todos os
participantes obtenham alguma vantagem do consenso. Assim o fundamento último do
Estado é o egoísmo racional de um grupo de homens isolados.
Por isso fala-se muito em direitos e pouco em deveres. Percebemos isso, quando
estudamos o que se entende por liberdade, fraternidade e igualdade entre os contemporâneos.
Em síntese, o triunfo do eu, na modernidade e entre os contemporâneos, não é
apenas uma bênção, seja no campo teórico, seja no campo prático.
Não ignoramos as tentativas de Leibniz, Hegel e outros na metafísica, ética e
Filosofia política, no sentido de superar esse eu. Há também aqueles que, como Heidegger,
rejeitam a modernidade, a ciência e a ética universalista. Outro grupo afirma que, depois da
objetividade e subjetividade, a intersubjetividade tornou-se o tema central da Filosofia.
Habermas e Apel falam até de um terceiro paradigma. E é indiscutível que a linguagem e
as relações intersubjetivas, no século XX, fascinaram as reflexões filosóficas.
Sem uma teoria da intersubjetividade será difícil entender adequadamente o eu. Mas
também as teorias da intersubjetividade multiplicam o subjetivismo moderno, quando não
reconhecem o papel mediador da tradição, e que existe algo que transcende o sujeito finito.

2 — Panorama das Filosofias contemporâneas

Enquanto, na Antiguidade e na Idade Média, a Filosofia tematizava o Ser, no


início dos tempos modernos, a reflexão passa a girar em torno do problema do conhecer
(Descartes e Kant) e, no século XX, volta-se para a linguagem como sendo um dos
problemas filosóficos centrais. A questão da linguagem foi formulada a partir de
diferentes posições: a partir da teoria do conhecimento, passando-se de uma crítica da
razão (Kant) para uma crítica da linguagem (Wittgenstein); a partir da antropologia (E.
Cassirer), salientando a linguagem como característica identificadora do homem (animal
symbolicum ou linguisticum), descobrindo-se correlações entre forma lingüística e visão
do mundo (W. von Humboldt); a partir da ética, através do estudo das formas de
proposições éticas e sua relação com proposições descritivas. Essa volta da filosofia à
linguagem, para alguns pensadores, foi tão radical que reduziram a Filosofia a uma mera
crítica da linguagem, não sendo outra coisa que ―uma luta contra o enfeitiçamento do
nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem‖ (Wittgenstein, Investigações, n.

40 Coleção Filosofia - 175


109). De maneira análoga como Frege tentou reduzir a matemática à lógica, alguns
tentam reduzir problemas filosóficos a meras questões de lógica e linguagem.
Na história do pensamento ocidental, o panorama do século XX é o da proliferação
de linguagens. A física torna-se cada vez mais uma construção formal do que a compreensão
daquilo que os gregos outrora chamavam physis. A psicanálise, a partir de S. Freud, tenta
interpretar a linguagem do inconsciente. Chega-se a reduzir o pensamento à linguagem.
Nessa verdadeira Babel há, também, tentativas de fazer coincidir a linguagem e o real.
Já no final do século XX, na Filosofia iniciou um grande movimento
denominado Filosofia analítica. Esse movimento contou com expoentes como o inglês
Bertrand Russell, o alemão Gottlob Frege e o austríaco Ludwig Wittgenstein. Não se
pode classificar a Filosofia analítica como uma Escola filosófica, pois nela há muitas
concepções diferentes. O que as diversas ramificações têm em comum é o uso do
método de análise da linguagem. A Filosofia faz-se análise da linguagem.
Desde a Antiguidade, a linguagem e a relação entre as palavras e as coisas ou os
fatos foram preocupação filosófica. No diálogo Crátilo, Platão tenta elucidar a
significação das palavras. Aristóteles tem estudos sobre os usos da linguagem com
regras da lógica. S. Agostinho, no De Magistro, aborda a questão. O tema aparece na
Filosofia da idade Média e no Renascimento. No século XVII destaca-se a abordagem
formal da linguagem feita pelo alemão Gottfried Leibniz. Nesse aspecto, Leibniz é, sem
dúvida, um precursor da análise lógica da linguagem.
Uma importante conquista matemática do século XIX foi a chamada
aritmetização da análise: a fundamentação de toda a teoria dos números e das funções
matemáticas sobre a aritmética elementar, a teoria dos números naturais. Friedrich
Ludwig Gottlob Frege (1848-1925) revoluciona radicalmente a lógica, no final do século
XIX. Pela primeira vez, na história, se formalizou e se axiomatizou em um só sistema
todo o universo matemático, a partir de conceitos lógicos, na obra Principia
mathematica, de Alfred North Whitehead e Bertrand Russell, expondo seu programa
logicista para reduzir as matemáticas à lógica, mas a uma nova lógica (1910 e 1913).
Não há dúvida, entre os filósofos, sobre a importância da linguagem para uma
compreensão profunda do próprio homem. Costuma caracterizar-se o homem como homo
loquens, como ser falante. Comparando-o com os animais, evidencia-se sua superioridade
intelectual pela linguagem. Esta revela a natureza complexa do ser humano, o vínculo entre
matéria e espírito articula-se em muitas formas, como poética, mística, religiosa, e, não a
limitando à ciência no sentido estrito, coloca o homem no limite da autotranscendência.
No século XX, a pesquisa filosófica aborda a linguagem do ponto de vista
semântico (positivismo lógico e Filosofia analítica); gnosiológico (hermenêutica e
Gadamer); ontológico (M. Heidegger); social (marxistas e estruturalistas) e psicanalítico
(discípulos de Freud). Certamente a determinação da natureza e funções da linguagem é
condicionada pelo ponto de vista escolhido, enquanto, por um lado, constroem-se
tentativas de reduzir questões filosóficas à linguagem e à lógica, por outro, no século
XX, surgiram filósofos e correntes filosóficas que só aceitam afirmações sintéticas a
posteriori, ou seja, juízos de experiência, cuja verificação cabe às ciências empíricas.
Nesse caso, a Filosofia é reduzida ao campo da lógica, da teoria da ciência ou da
pesquisa fundamental. Tais filósofos assumem posição crítica semelhante a Kant, em

Coleção Filosofia – 175 41


relação à metafísica, e certa desconfiança em relação a todos os assuntos transcendentes,
inclusive em relação ao próprio Kant.
O movimento filosófico conhecido como positivismo lógico (ou empirismo
lógico) tentou substituir a Filosofia tradicional por uma nova orientação lógica e
antimetafísica, Esse movimento nasceu ligado a um diagnóstico do estado da Filosofia
diante dos extraordinários êxitos científicos na física, na lógica e na matemática de sua
época. Diante da rápida evolução do conhecimento, no campo das ciências exatas e
empíricas, restava uma enorme proliferação de sistemas filosóficos em conflito, cada
qual afirmando-se de uma forma absoluta dentro de seu próprio domínio. Diante dessa
situação caótica, o positivismo lógico exigiu das teorias filosóficas o mesmo rigor e
controle característico da ciência. Essa postura tinha como conseqüência uma crítica
destrutiva da Filosofia tradicional, pois o discurso metafísico clássico, se submetido a
uma análise lógica da linguagem, mostra-se desprovido de sentido (cognitivo). As
proposições metafísicas deixam de ser verdadeiras ou falsas, porque são
pseudoproposições. Nessa perspectiva, representantes do Círculo de Viena, como Moritz
Schlick e Otto Neurath, defendem a tese de que a Filosofia deve ser uma reflexão sobre a
estrutura e os fundamentos do pensamento científico, única forma de saber verdadeiro.
Para Schlick, a Filosofia deveria exercer a função de elucidar as significações e eliminar
as obscuridades da linguagem filosófica tradicional.
A posição da Filosofia varia em relação ao mundo empírico como em relação
ao transcendente. Toma-se consciência de um abismo que separa o ―mundo da ciência‖
do ―mundo da vida‖. Surgem tentativas de reintegração, como no último Husserl e, de
certa maneira, no último Wittgenstein. Para isso, a primeira guerra mundial certamente
contribuiu, pois nela não morreram tanto idéias como homens concretos de carne e osso.
Começou a indagar-se: de que adianta toda a ciência e toda a Filosofia, senão estiverem
a serviço do homem todo e de todos os homens?
No século XX, também há filósofos que se voltam mais à experiência, deixando
a lógica pura em segundo plano. O problema da existência passa a ser o problema do
Ser. Pergunta-se: qual a relação entre a existência e o ser? Para alguns pensadores, como
J. P. Sartre, A. Camus, a existência justifica-se a si mesma. Para outros, como Gabriel
Marcel, a existência só tem sentido pleno em Deus.
A compreensão da própria existência condiciona a relação com o transcendente.
Assim surge a alternativa entre um humanismo imanentista e ateu e um humanismo
aberto à transcendência. Embora alguns alimentem certo ceticismo em relação à
metafísica, outros sentem necessidade dela para dar sentido à existência. Enquanto a
metafísica, para alguns, não é científica e é absurda, para outros continua sendo a
disciplina fundamental de toda a Filosofia.
Sem dúvida a Filosofia do século XX apresenta um caráter dialético. A
multiplicidade de correntes e expressões muito diversas não quer perder certa unidade.
Apesar da diversidade radical, não se coloca, por exemplo, o problema de uma simples
alternativa entre uma concepção do homem e do mundo que seja espiritualista e outra
materialista. Tenta-se desvelar, outrossim, as relações e a unidade entre espírito e
matéria, o homem e suas circunstâncias sociais, econômicas e políticas, não apenas as
diferenças. Busca-se uma unidade fundamental, a partir da qual se possa pensar a

42 Coleção Filosofia - 175


multiplicidade. Tal pensamento dialético vê o homem, simultaneamente, como
determinado e como livre; vê os fatos no contexto de uma teoria e ignora a teoria que
não seja uma teoria da realidade; pergunta pela relação entre o contingente e o absoluto;
reflete a tensão entre o pensar finito e a busca do infinito. Nem sempre tal tensão está
presente da mesma forma e na mesma proporção em todos os pensadores e em todas as
correntes. Assim, algumas Filosofias acentuam a subjetividade, como o existencialismo
e o personalismo; outras, como o empirismo lógico e o estruturalismo, tentam colocar a
subjetividade entre parênteses para refletir apenas a objetividade; outras, ainda, tentam
conceber ambos os pólos em tensão numa unidade dialética.
As aspirações da Filosofia, no século XX, diferem daquelas do século XIX. O
sonho do século XIX era o da criação de uma ciência unificante, conforme o método das
ciências da natureza. Tal sonho, no século XX, se desfez com a teoria do quantum, na
física de Max Planck, em 1900. O positivismo científico, em fim do século XIX e começo
do XX, que pretendia enclausurar a Filosofia dentro dos limites dos fatos, já foi superado.
A geometria não-euclidiana modificou radicalmente a concepção matemática tradicional e
a absoluta objetividade das leis científicas. O conceito clássico de ciência foi relativizado.
A noção clássica de causalidade perdeu seu valor ilimitado. Com isso o homem adquire
consciência da ambigüidade da ciência e da técnica nas quais confiava de maneira quase
irrestrita, no século passado. Enquanto o conceito clássico de causalidade permite a
determinação, projetando uma imagem do mundo e do homem que necessariamente é
como é, passou-se a considerar mais a estrutura deste cosmo do que sua história, ou, então,
olham-se estrutura e história numa unidade dialética. A relativização da lei da causalidade
permite reconquistar, todavia, a consciência do espaço para a própria liberdade humana.
A miséria de grandes massas no meio do progresso científico e tecnológico
formula, de maneira nova, a questão do sentido da existência humana. A pergunta pelo
sentido, inevitável na Filosofia, não se responde com respostas desta ou daquela ciência,
pois dimensiona-se numa globalidade que envolve o homem todo e todos os homens.
Toma-se consciência de que a Filosofia não se pode separar do contexto social, econômico,
científico e artístico de uma cultura, se não quiser tornar-se insignificante para a sociedade
e para o próprio indivíduo. As Filosofias orientadas nas estruturas da linguagem ameaçam
marginalizar a orientação em conteúdos da experiência e nos horizontes de sentido
existencial. E disso representantes da analítica aos poucos se deram conta.
Não se pode deixar de perceber certa tendência anônima, no sentido de
romper com a velha tradição, de destruir o ídolo do saber, libertando o pensamento da
hipoteca da tradição. Essa tendência parece tornar-se mais nítida, na segunda metade
do século XX, na chamada Filosofia ativa, que tematiza, de maneira quase anárquica,
a ordem social. Desenvolve-se à margem das instituições, despreocupada do discurso
doutrinal e das práticas institucionais. Através de análises que faz e pela ação,
contribui para minar instituições repressivas e ocupar o espaço da liberdade criadora
em todos os campos da atividade humana.
A relação entre Filosofia e religião entrou em crise. As raízes dessa crise são
diversas, como processos universais de emancipação e secularização, as radicalizações
de Nietzsche, Feuerbach e Freud. A ciência e a metafísica tradicional perderam muito
sua força de convencer como instrumentos de interpretação da experiência humana.

Coleção Filosofia – 175 43


Entretanto, Wittgenstein ocupa um lugar de destaque dentro da Filosofia analítica para o
pensamento sobre fenômenos religiosos, pois não só colaborou na determinação e no
desenvolvimento do empirismo lógico, mas, por causa de sua postura religiosa,
contribuiu para superar seu esquema fundamental.
No início da Filosofia analítica encontramos profunda aversão aos assuntos da
religião. Declaram-se absurdas as próprias perguntas. Com isso essa Filosofia apenas
assume a atitude dominante na época. Pesquisas mais recentes, também as de tipo
biográfico, reconhecem o lugar singular da religião para Wittgenstein. Alguns textos, no
final do Tractatus, merecem atenção especial. O senso místico permanece uma constante
em sua vida e obra.
Entre os filósofos contemporâneos não faltam aqueles que poderiam dar
impulsos novos à mística e à espiritualidade cristãs, como W. James (pragmatista), G.
Marcel (filósofo da existência) e E. Mounier (personalista francês).
Nesse contexto bem amplo, parece-nos dever situar-se a Filosofia de Ludwig
Wittgenstein, que, a nosso ver, é de uma singular originalidade, muitas vezes
incompreendida, porque lida em perspectivas unilaterais. Talvez em sua obra ainda não
se tenha dado a devida atenção à significação mística do silêncio.
Se a Crítica da Razão Pura de Kant, nos tempos modernos, parece superar a
metafísica clássica como ciência do ser enquanto ser, é o próprio Kant quem já nos adverte
que ela continuará a existir ao menos no estado de ―disposição profunda da natureza
humana‖. De fato observamos que o regresso da Filosofia à metafísica é cíclico. Depois dos
grandes sistemas idealistas ligados aos nomes de Fichte, Schelling e Hegel, depois das
inovações lógicas e metodológicas do neokantismo da Escola de Marburg (Cohen, Natorp e
Cassirer) e da Escola de Baden (Windelband e Rickert), surge com vigor a fenomenologia de
E. Husserl para buscar uma nova fundamentação da Filosofia como ciência de rigor. Dentro
da fenomenologia, para além do formalismo moral de Kant, redescobre-se uma ontologia dos
valores (M. Scheler, N. Hartmann, etc.). Dessa maneira, comprova-se a afirmativa com a
qual Kant encerra de maneira profética sua Crítica da Razão Pura: ―Podemos estar certos de
que voltaremos sempre à metafísica como a uma amada com a qual por vezes discutimos; e
isso porque a razão, uma vez que se trata de fins essenciais, tem de trabalhar sem descanso,
ou na aquisição de um saber sólido ou na destruição dos bons conhecimentos já adquiridos‖
(Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1985, p. 668).
Na Filosofia contemporânea poderíamos distinguir, quanto às tendências frente
aos problemas contemporâneos, uma tendência restauradora e uma tendência a um
pensamento novo. No primeiro grupo encontram-se as Filosofias que se apóiam em
grandes pensadores do passado, reinterpretando-os em busca de instrumentos categoriais
e conceitos. Nessa perspectiva situam-se o neotomismo, o neokantismo, o neo-idealismo,
o marxismo e, até certo ponto, o positivismo de A. Comte. No segundo grupo podemos
situar: a fenomenologia de E. Husserl, o pragmatismo americano, as Filosofias da
existência, o personalismo francês, as Filosofias analíticas, o estruturalismo, etc.

44 Coleção Filosofia - 175


3 — Duas correntes em destaque: a fenomenologia e a analítica

Há mais de dois séculos, dentro dessa linha, toda uma corrente filosófica se
concentra sobre o conhecimento. Essa corrente conquistou a consciência de uma relação
conosco mesmos, ou seja, da autoconsciência. Com essa palavra já sugere a tendência a
salientar a própria produção e as próprias qualidades, havendo raízes para indicar esse
conhecimento com o pronome pessoal eu e fazer da palavra Eu o conhecimento
elementar de nós mesmos como tema da Filosofia,
Além disso, outras razões levaram essa corrente filosófica a tornar-se uma
Filosofia do sujeito: o pensamento, que temos de nós mesmos, ofereceu-se como último
ponto de partida evidente de todo o conhecimento. Abriu-se, dessa maneira, a
perspectiva de uma seqüência que no fim se fecha em si mesma e crê poder concluir daí
tudo que é possível saber. Delineou-se, desse modo, uma nova ciência para superar o
conhecimento matemático quanto ao aspecto sistemático.
Por outro lado, como a vinculação do conhecimento a nós mesmos pareceu
auto-suficiente, cabe explicitar tudo adequadamente a partir de si próprio. Gerou-se,
assim, a esperança de que nosso pensamento poderia encontrar a única explicação
possível de um Absoluto.
Essa corrente adquiriu dimensões universais com o idealismo alemão: Fichte, Hegel
e Schelling. Este último intitulou uma de suas primeiras obras, Do eu como princípio da
Filosofia. Contra essa posição da Filosofia do sujeito afirma-se que, em nosso tempo, a
Filosofia se deva orientar na intersubjetividade e na linguagem. Nas últimas décadas do
século XX, o positivismo lógico, a Filosofia analítica da linguagem, o pragmatismo e
correntes fenomenológicas e da filosofia social rejeitaram a Filosofia do sujeito.
Tudo isso não significa que se deva rejeitar simplesmente a Filosofia que parte
da subjetividade. Mas também não significa que essa hoje seja aproblemática.
Durante séculos trabalha-se com a idéia de que a Filosofia é a mãe das ciências
particulares: gera-as, as desenvolve e, ao entrarem em maioridade, adquirem autonomia
com seus próprios métodos. Para representantes da Filosofia analítica, mais recentemente
surgem tendências de reduzir a Filosofia a um conhecimento do ―residual‖ (Austin) ou de
integrar disciplinas em ciências particulares. Isso ocorre, sobretudo, com a lógica simbólica
e a metamatemática, partes das teorias das ciência, da lingüística, da teoria política e da
ética aplicada. Representantes do empirismo lógico, que vêem a tarefa da Filosofia na
reconstrução das teorias das ciências particulares, entendem a Filosofia como metaciência.
O aumento do poder tecnológico à disposição do homem, a fusão entre
tecnologia e ciência gerou uma nova situação ética. A complexidade do desenvolvimento
técnico-científico complicou o caminho entre o agir humano e sua eficiência. A
dinâmica dessa evolução tornou problemática a distinção tradicional entre ação e
omissão, entre agir responsável e omissão irresponsável. Tudo indica que, no futuro, a
solução de problemas éticos e sua aplicação moral e política terão papel mais importante
que a solução de problemas técnicos. Com isso a Filosofia tenderá a uma orientação
prática, a uma tarefa que as ciências e a técnica são incapazes de exercer por si mesmas.
Entretanto, o papel orientador da Filosofia pode ser compreendido, não só num
sentido normativo, mas também no sentido epistêmico. Assim Quine defende de maneira

Coleção Filosofia – 175 45


radical a concepção da Filosofia como uma ciência orientadora para as ciências
particulares. Caberia, neste caso, à filosofia o papel de uma ciência (teoria) das ciências.
Para Quine, como para os representantes da Filosofia analítica em geral, a Filosofia não
tem objeto próprio de pesquisa nem um método próprio para a aquisição do
conhecimento. Por isso à Filosofia não cabe fundamentar a ciência.
A idéia de fundamentação absoluta das ciências acompanha a História da
Filosofia. O esforço de E. Husserl, para elaborar uma Filosofia científica, começa com
uma nova maneira de investigação que primeiro se dedica ao esclarecimento da teoria do
conhecimento de conceitos e leis lógicas fundamentais. ―Volta às coisas mesmas‖ é a
máxima da fenomenologia husserliana. Segundo esse princípio, só serve como ponto de
partida legítimo o que se da à nossa consciência. Meta da pesquisa fenomenológica é
uma análise da consciência humana, que Husserl assumiu da intuição de Brentano,
através do caráter intencional dos fenômenos psíquicos. A idéia fundamental de Husserl
é que cada ato da consciência é essencialmente consciência de algo...
Husserl entendeu a fenomenologia como instrumento de trabalho. Desta
maneira, pôde absorver diferentes correntes. Essa abertura para o diálogo fez com que
não só fosse considerado, mais tarde, como pai da psicologia cognitiva, mas fecundou a
ética dos valores de Max Seheler, a antropologia fenomenológica de Plessner, a teoria da
arte de R. Ingarden e muitos outros.
A virada transcendental de Husserl, que reduz todo o ser com sentido à
formação de sentido de uma subjetividade transcendental, não foi acompanhada por
todos os seus alunos. Ponto de partida da fenomenologia hermenêutica de Heidegger, por
exemplo, não mais é a questão da consciência e dos atos de consciência do
conhecimento, mas a questão ontológica fundamental do sentido do ser.
A obra tardia de Husserl, na fase da crise, transcende a fenomenologia por conceitos
fecundos como ―mundo da vida‖ e ―teleologia‖. A valoração das experiências concretas da
consciência lembra as formas de vida e os ―jogos de linguagem‖ de Wittgenstein, e, até certo
ponto, motiva ―os conceitos cotidianos‖ da teoria da comunicação de J. Habermas.
Pela mediação de Levinas, P. Ricoeur e Heidegger, a fenomenologia penetrou e
se estabeleceu na França e aí se alia, na época, com um renascimento do hegelianismo e
do marxismo. A redescoberta da obra de Kierkegaard também marcou as Filosofias do
século XX. Sartre reúne existencialismo, marxismo e hermenêutica numa síntese.
Merleau-Ponty acentua o papel da corporeidade e da percepção com ela relacionada,
assumindo motivos da Gestalttheorie, da psicanálise e do estruturalismo. Com Levinas,
a ética passa ao centro da fenomenologia.
O caráter fundamentalmente metafísico da fenomenologia distingue-a
essencialmente da Filosofia analítica. Enquanto a Filosofia analítica, na tradição de B.
Russell e R. Carnap, reconhece a física como critério decisivo, a fenomenologia se
orienta nas ciências que penetram no interior da consciência cartesiana.
A fenomenologia francesa discute, no que tange à crítica metafísica, a obra de
Nietzsche (Deleuze. Foucault, Bachelard, Sartre, Camus). A obra de Heidegger
Identidade e Diferença (1957) motivou a ―filosofia da diferença‖ (Foucault, Deleuze,
Lyotard). Constata-se que é impossível situar-se fora do discurso metafísico. O que
permanece é a construção gradativa e a deconstrução do discurso metafísico (Derrida)*.

46 Coleção Filosofia - 175


Enquanto a Filosofia de orientação fenomenológica predominou, durante três
décadas, no continente europeu, nos países de língua inglesa impõe-se a Filosofia
analítica. Embora seja difícil dizer o que é o específico dessa Filosofia, trata-se de certo
estilo de fazer Filosofia. Na origem dessa Filosofia encontram-se alguns positivistas do
século XIX: Mach, Avenarius e neokantianos como G. Frege. Um aluno deste último, R.
Camap, tornou-se o representante mais significativo do empirismo lógico. A obra
Principia Mathematica, de A. N. Whitehead e B. Russell, parte diretamente da tentativa
de Frege de reduzir as proposições da aritmética a proposições da lógica formal.
O que define a Filosofia analítica é a articulação intrínseca do binômio análise-
filosofia e a consideração da linguagem como a realidade sobre a qual incide o referido
método. Situa-se na confluência da tradição empirista e da análise lógico-matemática,
mas não se trata de um movimento homogêneo. No começo apresenta-se como anti-
essencialista e antimetafísica.
O grupo de filósofos e cientistas do Círculo de Viena (Carnap) e do círculo de
Berlim (Hempel) tentou vincular a atividade filosófica estreitamente às ciências da natureza.
Os representantes dessas Escolas são conhecidos como neopositivistas. O
positivismo lógico caracteriza-se por um radicalismo antimetafísico, pelo método de
verificação na detecção do sentido, pela concepção da linguagem como cálculo lógico-
metemático, pela unidade da ciência, enfim, pela identificação da Filosofia com a análise
lógica da linguagem científica (Carnap).
Formularam problemas centrais, como o problema básico das ciências, questões
da significação de proposições científicas, o problema da verdade, dos limites entre
proposições científicas e proposições metafísicas. Essa corrente de filósofos, que propõe
uma Filosofia científica, apresenta uma variedade de posições. Em geral, caracterizam-se
as diferentes posições por uma grande admiração pelo progresso das ciências naturais, de
modo especial da física, e um grande ceticismo em relação a métodos, projeção de
sistemas e reivindicações oriundas da Filosofia tradicional. Reconstrução das ciências
através dos recursos da lógica formal e interpretação empirista de nosso conhecimento
são as colunas mestras do empirismo lógico, muitas vezes, chamado de neopositivismo.
É verdade que, no decurso do tempo, amenizaram posições radicais referentes a um
método científico único, a interpretação fisicalista de nosso conhecimento e a rejeição da
metafísica. A teoria da verificabilidade foi relativizada.
Como problema central do empirismo lógico permanece a questão da indução.
Depois da crítica de Karl Popper quanto à teoria neopositivista de ciência também o
princípio da indução foi relativizado nas ciências objetivas. Para Popper, só a dedução
lógica pode reclamar um status a priori. Para o racionalismo crítico de Popper, ciência é a
seqüência de projetos teóricos (hipóteses) e a conseqüente rejeição pela falsificação.
Teorias não se confirmam, mas trabalha-se com aquelas que ainda não foram falsificadas.
Embora os inícios do racionalismo Crítico ocorram a partir das discussões do Círculo de
Viena, esse ponto de partida não mais é atribuído à Filosofia analítica (Popper, H. Albert,
Lakatos, Feyerabend). O racionalismo crítico liderado por Popper opõe-se ao linguistic
turn, no sentido de reduzir questões filosóficas a questões do uso da linguagem.
O linguistic turn forma duas correntes. Uma orienta-se no ideal de uma
linguagem formal e lógica (Carnap, Hempel), para eliminar as ambigüidades da

Coleção Filosofia – 175 47


linguagem comum, e a outra confia na univocidade pragmática de uma linguagem
comum como forma de vida do indivíduo e da sociedade e fundamento de todo o clarear
filosófico (Austin, Rylee outros). Essa separação das duas posições em suas origens
remonta, por um lado, a Russell e, por outro, G. E. Moore. Para ambas as correntes,
Wittgenstein exerce um papel importante através do Tractatus (linguagem ideal) e
Investigações Filosóficas (linguagem comum). Apesar das diferenças, ambas as
tendências convergem para uma limitação ou superação da Filosofia. Entretanto, com a
evolução, temas da tradição filosófica retornam em novo contexto.
A viragem linguística iniciada pela Filosofia analítica, na década de 1960,
também repercute em outras correntes da Filosofia contemporânea, em parte referindo-se
explicitamente a ela (Apel, Habermas). A Filosofia francesa também sofre a forte
influência da Filosofia do segundo Wittgenstein (Lyotard) e da ciência afim, que é a
Linguística (Saussure, Chomsky), repercutindo não só na Filosofia analítica, mas
também no estruturalismo (Lévi-Strauss, Piaget, Lacan, Derrida). As contribuições da
Filosofia analítica mais recente mostram um certo ceticismo em relação ao alcance das
análises lingüísticas (Rawls, Stegmüller, Evans).
Segundo alguns representantes mais recentes dessa corrente, a própria análise exige
a realidade da essência, impondo-se o regresso a certos problemas da ontologia e teologia
natural clássicas (Kripke, Angelelli, etc.). Enfim, autores oriundos da própria Escola de
Oxford (Anscombe, Geach, Dummet) reconhecem os reducionismos a que chegou a análise.
A contribuição mais recente da Filosofia inglesa e a discussão pública sobre
normas de bioética, do agir ecológico e político indicam que o limite entre Filosofia
analítica e não- analítica tende a desaparecer.
Entre as Filosofias contemporâneas destacam-se, pois, fenomenologia e a
analítica. Ao lado dessas, exerceram papel importante o estruturalismo francês, expressões
da Filosofia transcendental (Krings, Apel, Strawson), o neo-aristotelismo, vinculado a uma
velha tradição do pensamento filosófico (Gilson, Maritain e outros). Neste último caso, a
discussão de concepções filosóficas mais antigas (Aristóteles, Platão, Tomás de Aquino e
também Hegel) orienta-se num princípio heurístico de interpretação. Procuram-se
princípios de uma concepção perdida pelo cientismo do pensamento moderno.
No final da década de 1960, o marxismo foi fortalecido, em parte pelas
variantes cientistas (Althusser, Lukács), em parte pelas variantes anticientistas (W.
Benjamin, Adorno, Bloch, Horkheimer, Marcuse). A teoria crítica (Apel, Habermas)
unida a questões sociológicas, psicológicas e filosóficas reviveu, mas foi substituída pelo
projeto de uma modernidade esclarecida.
Percebem-se tendências convergentes também em outra perspectiva:
hermenêutica e Filosofia analítica encontram-se em reflexões inspiradas no segundo
Wittgenstein. A Filosofia do sujeito abre-se para argumentos analíticos (Tugendhat). As
oposições tradicionais de pragmatismo, positivismo, realismo e Filosofia transcendental
encontram novos pontos de contato na teoria do conhecimento.
Hoje o problema das relações entre Filosofia e ciências deixou de ser unilateral.
A admiração estonteante pelo progresso das ciências naturais entrou em desconfiança,
em vista de sua incapacidade de resolver problemas sociais e existenciais. Hoje se
reconhece maior importância aos aspectos filosóficos nas ciências. A discussão na teoria

48 Coleção Filosofia - 175


do conhecimento influenciou a discussão do fundamento fisical (Kuhn); a Filosofia da
linguagem repercute na lingüística (Austin, Searle, Chomsky, Fodor). A Filosofia do
espírito repercute na pesquisa da inteligência artística, e a ética dá impulso na teoria do
direito (Rawls, Höffe) e na teoria política (Rawls, Spaemann). A Filosofia, no momento
atual, encontra-se numa fase de intercâmbio e diálogo, sendo mais aberta, em seu
pluralismo, na reivindicação de fundamento, e mais humilde, com nova autoconsciência.

Conclusão

B. Russell, em sua História da Filosofia Ocidental, diz: ―A filosofia, conforme


entendo a palavra, é algo intermediário entre a Teologia e a ciência. Como a Teologia,
consiste de especulação sobre assuntos a que o conhecimento exato não conseguiu até
agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão humana do que à autoridade, seja
esta a da tradição ou a da revelação‖ (p. XI).
A Filosofia interpreta os fatos históricos enquanto significativos para o homem.
Este pergunta sempre de novo: quem sou eu na história? Senhor ou escravo? Por que
existe o mal? Qual o sentido da minha vida e do cosmo?
A filosofia constrói-se através dos tempos em contextos sociais e culturais mais
amplos. Não se esgota em nenhum de seus sistemas. E um produto histórico elaborado
por pensadores à custa de ingentes esforços para clarear a verdade do ser e agir humanos.
Como resultado da atividade racional humana conhece erros e desvios acerca de
questões fundamentais como Deus, homem e universo. Por isso cabe a cada nova
geração repensar as soluções apresentadas no novo contexto em que nos é dado viver.
Muitas vezes se objeta que as Filosofias contemporâneas se encerram na finitude
humana, que não deixam abertura ao transcendente. Ora, quem estuda conceitos básicos da
Filosofia de G. Marcel, como ser e ter, mistério e problema, pode encontrar abertura para o
discurso sobre Deus, a um Deus que é mistério, um mistério que não se conhece nunca, mas
se pode e deve reconhecer como sentido último do homem e do mundo. Coisa análoga ocorre
com Wittgenstein, com suas categorias de dizer e mostrar. Será que não caberia revermos
certo discurso tradicional filosófico-teológico racionalista para falar do Deus vivo?
Por outro lado, não é difícil encontrar conceitos importantes para falar do
homem. E. Mounier, por exemplo, apresenta três características da pessoa humana —
imanência, transcendência e singularidade — categorias relevantes para a compreensão
bíblica do homem. De forma análoga, prescindindo se E. Husserl no fim da vida se
converteu ao catolicismo ou não, entre seus discípulos, a judia Edith Stein converteu-se.
Assim também se poderia perguntar se a teologia, prescindindo da boa Filosofia, no se
expõe ao perigo de um fundamentalismo bíblico e de um dogmatismo acrítico como por
vezes encontramos na expressão do neopentecostalismo?
Enquanto a Filosofia no século XIX dava maior importância à análise, a
multiplicidade de Filosofias, no final do século XX, busca a unidade ou síntese do
conhecimento. Enquanto no século XIX estava subjacente a tendência de ver o todo
como a soma das partes, no final do século XX tematiza a totalidade e a liberdade do
homem. Busca-se a unidade ou síntese através da dialética. Há correntes filosóficas que
partem da subjetividade (existencialismo e personalismo) e outras que tematizam mais a

Coleção Filosofia – 175 49


objetividade (analítica e estruturalismo). O homem sabe-se situado na tensão entre a
determinação da palavra criada e a palavra criadora.
A técnica e a ciência hoje são vistas em sua ambivalência e limites. Toma-se
nova consciência do problema ético em todos os níveis. A consciência da determinação
pelas condições sociais, econômicas, políticas e da cultura em geral coloca de maneira
nova a questão da liberdade e de seus limites, a questão da ética e do sentido. E certo que
atrás dos conflitos entre os grandes grupos humanos de hoje ocultam-se Filosofias em
conflito. A Filosofia é o caminho para superar imediatismos e desmascarar ideologias
vigentes, O filósofo é aquele que reflete criticamente sobre os problemas de seu tempo.
Reflete-os na sua relação com o homem e na sua significação para o mesmo.
As ciências colocam problemas e soluções parciais. Mas o homem alimenta
perguntas que transcendem aspectos parciais. Indaga pelo sentido do todo, pois ele é um
todo. Por isso a Teologia católica não pode prescindir do estudo sério da Filosofia, pois
seu sujeito e destinatário é o homem como filho de Deus. Importa buscar um ponto
sólido de referência para descobrir a riqueza existente na variada e vasta produção
filosófica contemporânea para a formação de presbíteros em nosso tempo. De maneira
geral, creio poder dizer que não só está sendo superada a atitude antimetafísica, mas
buscam-se, de maneira crítica, novos fundamentos da metafísica. Nesse sentido, falta-
nos, quem sabe, o espírito crítico criador de um Tomás de Aquino.
Enfim, pessoalmente sou de parecer que a formação filosófica é fundamental
para os presbíteros na Igreja. É importante o conhecimento atualizado dos clássicos do
passado. Mas, se quisermos um verdadeiro diálogo da Teologia no mundo de hoje, o
mundo marcado pela ciência e pela técnica, é preciso dar maior destaque às Filosofias
modernas e contemporâneas. Não só problemas são abordados de maneira nova, mas
nelas encontramos problemas novos que exigem respostas novas. Para encontrá-las, a
atitude adequada não será a do simples antimodernismo ou a simples ignorância. Essas
atitudes tornam-se terreno fértil para novas formas de fideísmo, fora e dentro da Igreja.
Vale a advertência de S. Pedro em sua primeira carta: ―Estai prontos a dar as razões de
vossa esperança (fé) a todo aquele que vo-las pede‖ (1 Pd 3,15).
O estudo da Filosofia deixou de ser um privilégio dos clérigos. A investigação
filosófica tornou-se uma tarefa árdua, uma verdadeira ascese. Quem quiser ter lugar
reconhecido precisa profissionalizar-se. Com isso quero dizer que não basta ter um
diploma de curso de graduação para ser professor competente em um seminário maior.
Urge investir muito mais na preparação de recursos humanos, na preparação de professores
competentes. Isso vale sobremaneira para as Filosofias contemporâneas, para as quais, pela
natureza do assunto, os manuais, quando publicados, já estão superados. Por outro lado,
será preciso o ambiente adequado, a infra- estrutura de uma biblioteca sempre atualizada,
onde não faltem os melhores periódicos da área. Enfim, a Filosofia, para a Igreja católica, é
coisa séria, muito séria. Tem razão o Papa João Paulo II, quando diz: ―Com surpresa e
mágoa, tenho de constatar que vários teólogos compartilham certo desinteresse pelo estudo
da Filosofia‖ (Fides et ratio, n. 61). Contribua este nosso encontro para despertar novo
interesse pela Filosofia, pois, diz João Paulo II: ―Desejo insistir novamente em que o
estudo da Filosofia reveste um caráter fundamental e indispensável na estrutura dos
estudos teológicos e na formação dos candidatos ao sacerdócio‖ (ibidem, n. 62).

50 Coleção Filosofia - 175


Referências

EDEN, Tania; NIDA-RÜMELIN, Julian. Einführung. In: Philosophie der Gegenwart,


Stuttgart: Kröner, 1997.
HEINEMANN, Fritz. A Filosofia no século XV. Lisboa: C. Gulbenkian, 1969.
HENRICH, Dieter. Subjektivität als Prinzip. In: Deutsche Zeitschrift für Philosophie,
1998, Heft 1, p. 31-44.
HÖSLE, Vittorio. Philosophiegeschichte und objektiver Idealismus. München: Beck, 1996.
—. Die Krise der Gegenwart und die Verantwortung der Philosophie. München: Beck, 1997.
TUGENDHAT, Ernst. Lições introdutórias à Filosofia Analítica da Linguagem. Ijuí:
Unijuí, 1992.
ZILLES, Urbano. Grandes tendências na Filosofia do século XX Caxias do Sul:
EDUCS, 1987.
—. O Racional e o Místico em Wittgenstein Porto Alegre: EDIPUCRS, 1991.

Coleção Filosofia – 175 51


A IMORTALIDADE DA ALMA NO ORFISMO, EM
PLATÃO E PLOTINO

Antes de mais nada, cabe conceituar o que entendemos por imortalidade. Em geral,
por imortalidade quer designar-se a perenidade da vida, de um ser que não morre (deuses,
Deus), ou, então, de um ser que, através da morte, se transforma e continua a viver sem corpo
ou assume formas superiores ou inferiores de vida (metempsicose, reencarnação).
Com o termo imortalidade queremos exprimir, pois, uma vida-sem-fim. Neste
sentido geral compete essencial e absolutamente a Deus. Os seres espirituais criados são
imortais por natureza enquanto participam da vida divina. Num segundo momento,
significa a sobrevivência para além da morte. Neste sentido, a imortalidade se refere a
seres essencialmente relacionados com a morte. Quer dizer-se que a alma subsiste, por
ser espiritual e imortal. Poderá entender-se, outrossim, que ―o homem todo‖,
ressuscitado, viverá sem fim. Portanto, não se trata apenas da imortalidade metafórica
(sobrevivência na memória dos homens), mas inclui a permanência consciente de
―identidade do sujeito‖ que sobrevive.
A imortalidade é um dos problemas que mais tem preocupado o espírito do
homem, pois sua importância na interpretação da existência humana é indiscutível.
Relacionado com a existência de Deus, fundamenta a religião e a moral. Trata-se da
sobrevivência da ―alma‖ ou pessoa humana depois da morte.
A idéia de imortalidade encontra-se em múltiplas doutrinas e tradições
religiosas. Na Índia, nas religiões e filosofias da Grécia, no judaísmo, no cristianismo e
no islamismo. A crença em uma vida para além da morte é testemunhada nos rituais
fúnebres das religiões primitivas. Nas religiões que admitem a migração de almas, a
idéia de recompensa e castigo está associada à idéia de uma purificação lenta, tanto faz
ser a meta última o nirvana, o bramã ou a libertação da alma do corpo.
Quando os filósofos falam da imortalidade da alma humana ou da pessoa,
geralmente consideram tal idéia o mero resultado de uma visão dualista. Por isso muitos
teólogos cristãos rejeitam a idéia filosófica de imortalidade e se contentam com a idéia
da ressurreição. Será que a idéia filosófica de imortalidade da alma simplesmente exclui
a fé na ressurreição? Nos tempos mais recentes, teólogos muitas vezes polemizaram
contra a idéia da imortalidade a partir da esperança na ressurreição. Argumentavam que
só nela estava garantida a seriedade da morte, a responsabilidade do homem todo, sua
dependência da graça criadora de Deus e eliminada a idéia de um falso dualismo corpo-
alma na concepção do homem. Do contrário, a imortalidade se basearia num valor eterno
do homem ou sua identidade com a essência eterna de Deus.
A oposição excludente entre imortalidade e ressurreição não encontra
fundamento na tradição da Igreja. A Igreja antiga e medieval não a conhece. Martinho
Lutero não polemizou contra a imortalidade da alma, embora destacasse a ressurreição.

52 Coleção Filosofia - 175


O mesmo vale de Calvino e Zwinglio. Entre os teólogos da Reforma fala-se da vida além
da morte. Parece, entretanto, que a fé cristã na ressurreição não necessariamente precisa
excluir a idéia filosófica da imortalidade da alma. Tampouco a idéia da imortalidade da
alma precisa estar vinculada ao dualismo corpo-alma, pois trata-se da imortalidade da
pessoa responsável perante Deus.
Discutir o problema da imortalidade da alma é referir-se à luta do homem
contra a morte. Se, por um lado, de acordo com nossa experiência cotidiana, o homem
parece não coincidir adequadamente com as dimensões corpóreo-empíricas, por outro, é
indiscutível a morte como limite da existência humana. Poderá, então, a morte anular
radicalmente todas as dimensões da existência humana? Poderá o homem realizar e
totalizar o significado da sua existência pessoal dentro dos quadros de uma pura
imanência histórica? Terá o homem em si mesmo um fundamento suficiente que exija,
ou pelo menos possibilite, a afirmação da perenidade pessoal? Para filósofos da
antigüidade, o desejo de sobrevivência e eternidade é um constitutivo antropológico do
ser humano. O tema certamente é demasiado complexo para ser esgotado numa
conferência. Aborda-lo-emos resumidamente nos seguintes passos:

1 — A imortalidade da alma no orfismo e no pitagorismo;


2 — A imortalidade da alma em Platão;
3 — A imortalidade da alma em Plotino.

1 — A imortalidade no orfismo e no pitagorismo

À margem dos cultos oficiais, na Grécia antiga, durante o século VI a. C.,


houve uma corrente mística na qual se expressam novas aspirações sobre o destino
humano e sobre as relações do homem com o divino. Tal renovação religiosa comprova-
se na religião dos mistérios de Elêusis e Dionísio e através do orfismo e do pitagorismo.
O movimento religioso que recebeu o nome do poeta Orfeu, considerado pelos
seguidores como seu fundador, é testemunhado desde o século V a. C., de modo especial
por Platão. Sobre a avaliação deste movimento há, hoje, muitas discordâncias.
Os estudos mais recentes chegaram a duas conclusões opostas quanto à influência
do mesmo sobre a filosofia. Por um lado, encontram-se aqueles que acreditavam poder
reconstruir o fenômeno do orfismo em seus diferentes aspectos, para compreender não só
grande parte da vida espiritual grega, mas até grande parte do pensamento filosófico. Por
outro, há uma tendência crítica que minimiza suas influências, afirmando que certas teses
atribuídas ao orfismo são criações de filósofos, como Pitágoras, Empédocles e Platão.
Entre esses extremos, há aqueles que buscam um equilíbrio.
O pitagorismo e o orfismo tinham pontos fundamentais em comum como a
doutrina de que o corpo é a prisão da alma e a crença na metempsicose. Entretanto o
Deus dos pitagóricos era Apolo e o dos órficos era Dionísio. Os primeiros eram
aristocráticos e os órficos de caráter popular.
De acordo com a mitologia, Orfeu era filho de Apoio e da musa Calfope.
Supõe-se, geralmente, que o personagem fosse de origem trácia, considerando-o filho de
Oiagros. Ao mágico poeta Orfeu atribuiu-se a introdução dos mistérios. A influência de

Coleção Filosofia – 175 53


Orfeu é testemunhada amplamente. O poeta Ibico, no século VI a.C., fala de ―Orfeu de
nome famoso‖. Eurípides e Platão atestam que em seu tempo circulava grande número
de escritos sob o nome de Orfeu, referentes aos ritos e às purificações órficas (Eurípides,
Alceste, 962-972; Platão, República II, 364 e ss). A antigüidade do movimento é
indiscutível. Discute-se, isto sim, em torno de sua doutrina.
Segundo Giovanni Reale, o orfismo significa um elemento de um novo
esquema de civilização: ―Começa-se a falar da presença no homem de algo divino e não
mortal, que provém dos deuses e habita no próprio corpo, de natureza antitética à do
corpo, de modo que este algo só é ele mesmo quando o corpo dorme ou quando se
prepara para morrer e, portanto, quando enfraquecem os vínculos com ele, deixando-o
em liberdade‖ (REALE, G. História da Filosofia Antiga, v. 1, p. 374).
O orfismo apresentou um novo esquema de crença, numa concepção dualista do
homem, que contrapõe a alma imortal ao corpo mortal. Esta crença considera como o
verdadeiro homem a alma. No Crátilo, Platão atribui explicitamente esta concepção aos órficos:
―De fato alguns dizem que o corpo é túmulo (sema) da alma, como se este
estivesse nele enterrada: e dado que, por outro lado, a alma exprime (semainei) com ele
tudo o que exprime, também por isso foi chamado justamente sinal (sema). Todavia,
parece-me que foram sobretudo os seguidores de Orfeu a estabelecer este nome, como se
a alma expiasse as culpas que devia expiar, e tivesse em torno de si, para ser custodiada,
este recinto, semelhante a uma prisão. Tal cárcere, portanto, como diz o seu nome, é
custódia (soma) da alma, enquanto esta não tenha pago todos os seus débitos, e não há
nada a mudar, nem mesmo uma só letra‖ (Crátilo, 400c).
O conceito de divindade da alma também se encontra presente no Górgias,
postulando uma mortificação do corpo e de tudo o que lhe é próprio, propondo uma vida
em função da alma e do que é alma.
Quanto à crença na metempsicose, o grande estudioso Ziller, embora
desconfiando da opinião de que foram os órficos que a difundiram, já escrevia: ―em todo
caso, parece seguro que, entre os gregos, a doutrina da transmigração das almas não veio
dos filósofos aos sacerdotes, mas dos sacerdotes aos filósofos‖ (Zeiler–Mondolfo. La
Filosofia dei greci nel suo sviluppo storico, 1, p. 137).
No texto citado do Crátilo, Platão menciona expressa-mente os órficos,
atribuindo-lhes a doutrina do corpo como lugar da expiação da culpa original da alma,
num contexto que pressupõe a metempsicose. Aliás, em Aristóteles encontramos
referências semelhantes aos órficos.
No Mênon, Platão afirma, referindo-se a Píndaro: ―Dizem de fato, que a alma
do homem é imortal, e que às vezes chega a um fim — o que chamam morte — às vezes
ressurge novamente, mas nunca é destruída: justamente por isso é preciso transcorrer a
vida da maneira mais sensata possível‖ (Mênon, 81 b-c).
Segundo a doutrina órfica, o corpo é prisão da alma, ou seja, o corpo é lugar
onde a alma paga a pena de uma antiga culpa, e se a reencarnação é como a continuação
desta pena, é claro que a alma deve libertar-se do corpo. O orfismo afirma a purificação
para todos. Mas o que será das almas purificadas? Se Píndaro não responde a esta
pergunta, as lâminas órficas o fazem. Numa lâmina encontrada em Petélia, diz-se que a
alma reinará junto com outros heróis. Numa das lâminas encontradas em Turi, diz-se que

54 Coleção Filosofia - 175


a alma purificada, como originariamente pertencia à estirpe dos deuses, será Deus e não
mortal: ―De homem nascerás Deus, porque do divino derivas‖.
Parece que o orfismo se identifica por temas dualistas. A alma humana, de essência
divina, é prisioneira de um corpo de origem titânico. Por causa de uma mancha primitiva,
está condenada a reencarnar-se sem fim. Só pode libertar-se do ciclo infernal da geração
através da iniciação ensinada pelos órficos. A salvação prometida consiste numa vida feliz
além do túmulo, quando a alma se une ao divino, enquanto os condenados continuam a
peregrinar. Segundo o orfismo, a alma humana é, pois, imortal porque divina.
O pitagorismo desenvolve-se sobre o mesmo fundo de doutrinas dualistas. Seu
fundador é um personagem histórico. Pitágoras, fugindo da tirania de Polícrates em
Samos, estabeleceu-se na Magna Grécia na segunda metade do século VI a.C. Em
Crotona reuniu a seu redor uma verdadeira comunidade para a qual ensinou um novo
gênero de vida. Mas a escola pitagórica nasceu como confraria ou, melhor, como seita
ou ordem religiosa, organizada segundo regras bem precisas de convivência, para a qual
a ciência era um meio para alcançar um fim.
A doutrina pitagórica aparece mais elaborada que a do orfismo, tendendo a
converter-se numa verdadeira filosofia. Pitágoras fez do filosofar um sistema de vida, e
urna tradição antiga lhe atribui a criação do termo filósofo. O pitagorismo une misticismo e
racionalismo. Os pitagóricos atribuíam sobretudo à ciência a via de purificação. Para eles,
o culto à ciência era o mais elevado dos ―mistérios‖. As práticas de purificação deviam,
primeiro, concentrar-se na música. O princípio divino da natureza, que os jônios situavam
num dos elementos, para os pitagóricos, reside nos números. Deve-se aos pitagóricos, a
divisão do mundo em uma região celeste, onde reina a perfeita harmonia, e uma região
sublunar, na qual ocorre o ciclo da geração e da corrupção. Na perspectiva escatológica, o
sol e a lua tornam-se as ilhas dos bem-aventurados. Neste contexto, elabora-se a idéia da
imortalidade da alma. A vida ascética, respeitando certas proibições e os exercícios
espirituais, favorece a recordação de existências passadas e a busca incansável do número e
da harmonia, que abrem o caminho ao destino divino.
Apresentamos, embora em forma de tópicos, alguns aspectos relevantes desta
visão religiosa. Nos albores da reflexão racional certamente representa uma importante
etapa e inaugura uma corrente de pensamento na qual se alinha uma série de pensadores,
entre o quais se destaca Platão.
Em síntese, a novidade do orfismo na interpretação da existência humana é que
fala da presença, no homem, de algo divino e não mortal. E a alma, proveniente dos
deuses, de natureza oposta ao corpo. Na medida em que é de origem e natureza divinas,
a alma preexiste e sobrevive ao corpo. Nasce, assim, a contraposição entre alma e corpo,
uma concepção dualista na qual se contrapõe a alma imortal ao corpo mortal. O orfismo
preocupa-se com a alma individual, com sua origem divina e sua natureza imutável e
com sua sobrevivência enquanto indivíduo, pelas reencarnações num processo de
purificação através de severas regras de vida ascética, incluindo a abstenção de carnes. A
purificação da culpa confia, em grande parte, ao elemento não-racional ou mágico,
enquanto os pitagóricos o atribuem à música e, mais tarde, à ciência.

Coleção Filosofia – 175 55


2 — A imortalidade da alma em Platão

A doutrina da imortalidade da alma é um elemento típico da filosofia antiga,


menos do cristianismo, que fala, propriamente, de ressurreição do corpo, com implicações
teológicas e antropológicas muito diferentes com relação às doutrinas do mundo helênico.
A crença na imortalidade entra na cultura, e, portanto, na filosofia grega, através do
orfismo. Platão (428 — 348 a.C.) elaborou o fundamento para a recuperação especulativa
dessa crença em nível filosófico com sua doutrina ou teoria das idéias.
Se Platão cita muitas vezes a tradição religiosa do orfismo e do pitagorismo, é
provável que dele recebeu, pelo menos, alguma influência. A novidade é que Platão
busca um fundamento racional para idéias e crenças já existentes. Em sua obra os
críticos distinguem duas tendências doutrinais. A primeira é dualista e nas últimas obras,
sobretudo a partir do Timeu, é mais equilibrada.
No livro Fédon, Platão apresenta-nos provas da imortalidade da alma. A
primeira, baseada na teoria das formas ou idéias, o próprio Platão, mais tarde, considera
sem maior importância por seu recurso a categorias de caráter físico, argumentação de
procedência heraclitiana, para, enfim, apoiar-se na reminiscência.
Outra prova é a da teoria da reminiscência. Platão diz que a alma humana é
capaz de conhecer as coisas imutáveis e eternas. Para isso é necessário que tenha uma
natureza que lhes seja afim. Portanto, a própria alma humana deve ser imutável e eterna.
O raciocínio platônico é o seguinte: as realidades visíveis, ou seja, perceptíveis e
sensíveis, mudam sempre; as invisíveis, ao contrário, são imutáveis. Ora, no homem, o
corpo pertence ao mundo sensível. Por isso é mortal. A alma pertence ao invisível e
inteligível. Por isso a alma é imortal.
Segundo Platão, a matemática mostra-nos que nossa alma está de posse de
conhecimentos perfeitos, que não derivam das coisas sensíveis e que, ao contrário,
espelham modelos ou paradigmas aos quais tendem as coisas. Esse conhecimento só se
pode justificar a partir de uma originária e pura posse de nossa alma, recuperada de
maneira explícita como reminiscência.
Vale a pena ler o diálogo de Fédon (79a-80b), que conclui: ―Observa, agora,
Cebes, se de tudo o que dissemos não se segue que a alma seja semelhante em grau sumo
ao que é divino, imortal, inteligível, uniforme, indissolúvel e sempre idêntico a si
mesmo, enquanto o corpo é semelhante em sumo grau ao que é humano, mortal,
multiforme, ininteligível, dissolúvel e jamais idêntico a si mesmo‖.
Outra prova apresentada por Platão no Fédon busca-a no mundo das idéias.
Baseia-se na teoria dos contrários. Afirma que idéias contrárias não podem combinar-se
entre si e permanecer juntas porque, enquanto contrárias, excluem-se mutuamente. A alma
tem como característica essencial a vida e a idéia da vida. Ela dá vida ao corpo e o mantém
vivo. Ora, sendo a morte o contrário da vida, a alma não poderá acolher estruturalmente em
si a morte e será, por isso, imortal. Logo, na morte, o corpo se corrompe, mas a alma se
retira para outro lugar. A idéia de vida e de morte excluem-se totalmente.
Na obra República, Platão elaborou mais uma prova em favor da imortalidade
da alma. Diz que o mal é o que corrompe e destrói. Qualquer coisa tem, não só um bem
peculiar, mas também um mal peculiar. Por este mal pode ser destruída, porque lhe é

56 Coleção Filosofia - 175


próprio. Ora, se encontrarmos algo que tenha o mal que o torna mau, mas não o pode
destruir, devemos concluir que tal realidade se torna estruturalmente indestrutível, pois
com mais razão não poderá ser destruída pelo mal das outras coisas. Platão diz que este é
o caso da alma, Ela tem o mal do vício, mas este não consegue destruí-la. Portanto, se a
alma não pode ser destruída pelo mal do corpo por este lhe ser alheio, nem pelo próprio
mal, então ela é indestrutível. Diz Platão: ―Quando a corrupção que lhe é própria e o mal
que lhe é próprio (i. é, a injustiça e o vício) não são capazes de matar e destruir a alma,
dificilmente o mal que está ordenado para a destruição de outra coisa poderá destruir a
alma ou outra coisa diferente daquela para a qual está ordenado (...). Quando, pois, uma
coisa não perece de mal algum, nem próprio nem estranho, é evidentemente necessário
que tal coisa exista sempre; e se sempre existe, é imortal‖ (República, 610c-611a).
Na obra Fedro, Platão deduz a imortalidade da alma da própria psique (psychê),
entendida como princípio do movimento, pois dizer vida significa movimento. Dizer que
a alma é o princípio do movimento significa, então, dizer que nunca poderá cessar. Diz
Platão: ―Toda alma é imortal. Com efeito, o que se move a si mesmo é imortal, mas o
que move um outro e, por sua vez, é movido por outro, cessando seu movimento, cessa a
sua vida. Somente o que se move a si mesmo nunca cessa o movimento, pois não pode
abandonar a si mesmo e, antes, é fonte e princípio do movimento para as outras coisas
enquanto são movidas (...) Assim, pois, o princípio do movimento é o que se move a si
mesmo. E este não pode nem perecer nem morrer, caso contrário todo o céu e todo o
mundo da geração se precipitariam juntamente e parariam, e não haveria de onde
pudessem retomar o movimento. Portanto, tendo-se manifestado imortal, o que se move
a si mesmo, ninguém tenha receio de dizer que é esta a essência da alma (...) Sendo
assim, a alma será necessariamente ingênita e imortal‖ (Fedro, 245c-246a).
De início, nos diálogos de Platão, as almas pareciam ser sem origem e sem
termo. No Timeu e posteriormente, as almas são geradas pelo Demiurgo, tendo um
nascimento mas não estão sujeitas à morte por disposição divina.
Para Platão, a existência e a imortalidade da alma têm sentido porque admite
um ser supra-sensível que chama de mundo das idéias. Seu significado é que a alma é a
dimensão inteligível, metafísica, incorruptível do homem.
A imortalidade da alma coloca, para Platão, o problema do que acontece com ela
após sua separação do corpo. Neste ponto, Platão vale-se de mitos. Sua concepção parece
resumir-se no seguinte: o homem está sobre a terra como caminhante e a vida terrena é
uma provação. A verdadeira vida é invisível, está no Hades. Lá a alma é julgada segundo o
critério da justiça e da injustiça, da virtude e do vício. Este juízo será proferido pelos três
filhos de Zeus. A sentença para quem viveu em plena justiça é um prêmio, um lugar
maravilhoso nas ilhas dos Bem-aventurados; para quem viveu na injustiça plena, receberá
castigo eterno, sendo precipitado no Tártaro; para quem somente cometeu injustiças leves,
arrependendo-se delas, será temporariamente punido (Górgias, 525b-c).
A dor e o sofrimento, segundo Platão, exercem função purificadora. Trata-se
aqui de um dos aspectos mais delicados do pensamento platônico que, sobretudo no
Górgias e no Fédon, traduz uma verdade essencial, mas que a crítica recente tende a
calar ou, pelo menos, desvalorizar. Parece que Platão recebeu a idéia de purificação da
alma da tradição antiga, do orfismo e do pitagorismo e de Empédocles, segundo a qual

Coleção Filosofia – 175 57


separar a alma do corpo é a morte. Os que conseguem fazê-lo são os verdadeiros
filósofos, pois separar a alma do corpo é o objeto próprio da filosofia (Fedro 76 c). O
corpo é para a alma um túmulo (Crát. 400 c).
No Fédon, Platão formulou de maneira exemplar que a verdadeira força
purificadora está na filosofia, apresentando esta sua formulação como a verdade da
antiga intuição órfica:
―E certamente não foram tolos aqueles que instituíram os mistérios: e na verdade
já dos tempos antigos nos revelaram de maneira velada que aquele que chega ao Hades
sem ter-se iniciado e sem ter-se purificado jazerá em meio à lama; ao invés, aquele que se
iniciou e se purificou, chegando lá, habitará com os deuses. De fato, os intérpretes dos
mistérios dizem que ‗os portadores de tirso são muitos, mas são poucos os Bacantes!‘ E
estes, penso eu, não são senão aqueles que praticam retamente a filosofia‖ (Fédon, 69 c-d).
E notável o texto de Fédon (114d-115a) que parece a chave de leitura de toda a
mitologia platônica:
―Sem dúvida, sustentar que as coisas sejam de verdade assim como as descrevi
não convém a um homem que tenha bom senso; mas sustentar que isso ou algo
semelhante deva acontecer às nossas almas e ao lugar para onde vão, uma vez que se
afirma ser a alma imortal: pois bem, isso me parece perfeitamente sensato, e vale a pena
arriscar-se a crê-lo, pois o risco é belo! E é necessário que com essas crenças façamos
como encantamento a nós mesmos: e é por isso que desde muito tempo me ocupo com
este mito. Por esse motivo deve ter muita confiança com respeito a sua alma o homem
que, durante a sua vida, renunciou aos prazeres e aos adornos do corpo considerando as
coisas que não lhe dizem respeito e pensando que só fazem mal e, ao contrário,
preocupou-se com as alegrias do aprender e, tendo ornado a sua alma não com
ornamentos exóticos, mas com os ornamentos que lhe são próprios, isto é, de sabedoria,
justiça, fortaleza, liberdade e verdade, assim espera a hora de tomar o caminho de Hades,
pronto para partir quando o destino o chamar‖ (Fédon, 114d-115a).
Platão entrelaça sua concepção do além com a doutrina órfico-pitagórica da
metempsicose. Apresenta-a em duas formas e dois significados distintos entre si. No
próprio Fédon diz que as almas que viveram excessivamente ligadas aos corpos, às
paixões, aos amores e aos seus prazeres, com a morte não conseguem separar-se
totalmente do corpóreo. Ligam-se, então, novamente aos corpos e não são somente de
homens, mas também de animais, segundo a baixeza de seus vícios na vida anterior
(Fédon, 81c-82c).
Na República, Platão fala de outro tipo de reencarnação das almas. Sendo as
almas um número limitado, se todas no além recebessem um prêmio ou castigo eterno,
chegaria o momento em que nenhuma viveria na terra. Por isso atribui tanto ao prêmio
como ao castigo ultraterrenos um tempo de mil anos. Depois desse prazo as almas
deveriam voltar a encarnar-se. Terminada a viagem de mil anos, as almas concentram-se
numa planície para que seja decidido seu futuro. Caberá às almas a escolha, pois o
homem não é livre para escolher entre viver e não viver, mas é livre para escolher como
viver, ou seja, segundo a virtude ou o vício. Enfim, não queremos entrar em mais
detalhes da visão complexa de Platão.

58 Coleção Filosofia - 175


Para Platão, a alma não morre, graças a sua natureza divina e imortal. Cai num
corpo, que para ela é exílio e impureza. Se souber purificar-se pelo conhecimento, pela
filosofia e pela ascese, volta a sua existência primitiva. Se, ao contrário, não conseguir
purificar-se suficientemente, deve reencarnar-se. Platão reitera muitas vezes sua
convicção na imortalidade da alma: “Toda psiqué é imortal‖ (Fedro 245 c). ―E evidente
que a psiqué tem de existir sempre; ora, existir sempre é ser imortal‖ (República, 611 a)
No fim de sua vida insiste: ―Aquilo que constitui verdadeiramente o nosso ser, isto é, a
psiqué, é imortal‖ (Leis, 95-96).
Em síntese, Platão fundamenta a imortalidade da alma: a) no ciclo da natureza
vinculando a sua teoria da anamnesis (à preexistência da alma corresponde sua
existência após a morte); b) na simplicidade da alma (por isso não se pode decompor
com o corpo); e) na capacidade da alma de compreender idéias, ou seja, conteúdos
eternos da Verdade, do Bem e do Belo (como só igual pode ser conhecido por igual, a
alma deve ser igual às idéias); d) na sua essência como princípio de vida.
Contra o platonismo e a gnose, os Padres da Igreja argumentam que a alma não
é parte da substância divina porque é criada. Irineu afirma: ―Só Deus é sem princípio e
sem fim, verdadeiramente e sempre o mesmo... Todas as coisas, pois, que provêm dele,
que são e que foram criadas, recebem o princípio da sua origem e por isso são inferiores
àquele que os criou, porque elas não são incriadas. Se perduram a existir através dos
séculos é pela vontade do Criador. É Deus, por tanto, que dá a elas no início o existir e
sucessivamente o perdurar no existir. Todas as coisas criadas têm um princípio da sua
criação e persistem no ser até quando Deus quer que sejam e perdurem... Não é de nós,
não é da nossa própria natureza que provém a vida: ela nos é dada conforme a graça de
Deus... A alma não é a própria vida. Ela participa da vida que Deus lhe dá... É Deus que
dá a vida e a duração eterna do ser. Se as almas que antes não existiam, depois persistem
no ser, é porque Deus quis que existissem e que perdurassem‖ (Adv Haer. II, 34).
Afirmações semelhantes encontramos em Justino (Dial. 6), Tertuliano (De An. 24).
O que os Padres da Igreja afirmam é que a imortalidade da alma não é
privilégio da natureza, mas dom da graça, desenvolvendo uma metafísica cristã da
criação na perspectiva de uma teologia da graça.

3 — A imortalidade da alma em Plotino

A doutrina da imortalidade da alma constitui uma das cifras típicas da filosofia


antiga. Como Platão, também Plotino (204-270 d.C.) admite a imortalidade da alma. Os
quatro argumentos do Fédon de Platão reencontramos nas Enéadas, IV, 7: o da
reminiscência, o da simplicidade da alma, o contra-argumento da alma-harmonia e o da
alma como princípio da vida.
Para Plotino, ―o homem verdadeiro‖ é só a alma, melhor, ―a alma separada‖.
Em vários momentos, nas Enéadas, afirma que em nós existem três homens. Esses três
homens podem ser considerados no sentido de três almas, ou melhor, três potências da
alma: a) a alma considerada na sua tangência com o Espírito; b) a alma ou o pensamento
discursivo, mediador entre o inteligível e o sensível; c) a alma que vivifica o corpo
terreno: ―Quanto à nossa alma, em parte, está sempre aplicada aos seres inteligíveis, em

Coleção Filosofia – 175 59


parte está voltada às coisas terrenas, em parte está no meio entre inteligível e sensível.
Natureza única, sim, mas em muitas potências, às vezes está inteiramente concorde com
a sua parte ótima — que é a ótima parte do ser —; às vezes é a sua parte pior que,
arrastada para baixo, arrasta também a parte intermediária. Mas que o todo da alma seja
arrastado para baixo, isso não seria consentido!‖ (Enéadas, II, 9,2).
Para Plotino, o homem só é compreensível nesses três momentos: o homem
intermediário (o pensamento discursivo), que pode tender para o melhor (o Espírito) ou
para o pior (o sensível, o terceiro homem). O homem é uma alma que se serve de um
corpo. Este é apenas a ―queda da alma‖, todavia ―a nossa alma humana não despencou
totalmente no abismo; mas, ao contrário, há algo dela que permanece eternamente no
seio do Espírito‖ (Enéadas, IV, 8, 8). Decidimos nosso destino deixando predominar a
parte sensível ou a parte superior.
Segundo Plotino, a alma é livre na medida em que, através do próprio Espírito,
tende ao Bem (Uno). Por isso, rejeita o dogma cristão da ―ressurreição da carne‖, pois
parece- lhe uma forma de materialismo.
Como a alma alcança o Bem? Para Plotino só resta o recurso à metempsicose,
que reafirma com Platão. Entretanto, melhor que Platão, Plotino afirma que o destino
último das almas que viveram neste mundo é reunificar-se com Deus:
―Só com o corpo as almas percebem os castigos corporais. Ao invés, às almas
que estejam puras e não arrastem consigo nada, nem mesmo um pouquinho de corpo,
será dado não pertencer a esse tipo de corpo. Se, portanto, não estão em lugar nenhum no
corpo — justamente porque não têm corpo — então, lá onde há a essência e o ser e a
divindade — isto é, em Deus — lá, justamente, e na sua companhia, mais ainda, no seio
de Deus, está aquela alma da qual falamos. Mas se ainda procuras onde ela esteja, pois
bem, busca, então, onde estão as coisas supremas: mas, escrutando. não escrutes com os
olhos e nem como se escrutasses coisas corpóreas‖ (Enéadas, IV, 3, 24).
Ao contrário de Aristóteles e Platão, Plotino não atribuiu mais qualquer significação
aos valores físicos. Segundo Porfírio, seu biógrafo, ―envergonha-se de estar num corpo‖. O
sábio verdadeiro, segundo Plotino, deve procurar viver a vida dos deuses: ―A aspiração
humana não deveria limitar-se ao estar isento de culpa, mas a ser Deus‖ (Enéadas, 1, 2, 6).
O mundo inteligível de Plotino é a tríade: o Uno (Deus. Bem, Beleza), o
Espírito ou Intelecto e a Alma do Mundo, O Uno, segundo Plotino, existe
necessariamente antes de tudo (Enéadas, III, 9, 7-8). O Uno, também denominado o
Bem, fonte e origem de toda a vida e de todo o pensamento, situa- se, para Plotino, além
de qualquer possibilidade de ser pensado, pois o pensamento, segundo ele, já implica a
divisão entre um pensante e um pensado. Dele origina-se o Intelecto. Sendo eterno, o
Intelecto situa-se fora de qualquer tempo. O Intelecto produz a terceira hipóstase: a
Alma. Esta pode ser considerada como Alma do Mundo e como alma individual. Essa é,
pois, una e múltipla. A Alma do Mundo multiplica-se nas almas individuais. Assim, a
Alma enquanto hipóstase, multiplica-se nas almas individuais. A Alma situa-se entre o
Uno e a matéria. O Uno é seu princípio e seu fim. Se a alma olhar para o múltiplo, se
dispersará, mas se olhar para o Uno, encontrará o seu fim.
Quanto à imortalidade da alma, Plotino é taxativo: ―Se a alma não pode ser
destruída (por ser simples), ela é necessariamente incorruptível‖ (Enéadas, IV, 7, 12, 20-22).

60 Coleção Filosofia - 175


Aceitando a imortalidade da alma, resta perguntar como será. Segundo Platão,
ao final da primeira encarnação, as almas serão julgadas de acordo com os seus feitos.
As almas dos justos irão para os campos Elíseos, onde viverão em companhia dos
deuses. Os maus irão para o Tártaro. Platão defende a reencarnação como processo de
purificação. Mas, depois de mil anos, todas as almas deverão reencarnar-se.
Se o destino da alma é o retorno à união com o Uno, Plotino afirma que já nesta
terra é possível realizar a separação do corpóreo. Afirma que é possível ser feliz mesmo
entre torturas, porque há em nós um componente transcendente que, enquanto o corpo
sofre, pode unir-nos ao divino. As hipóstases do intelecto (noús) e da alma do mundo
procedem do Uno e criam uma espécie de diferenciação ou alteridade ontológica.
Retirando essas, o homem pode unir-se ao divino:
―Imune da alteridade como é, o Uno está eternamente presente; nós, porém, só
estamos junto dele quando não a temos‖. O homem deve, pois, despojar-se de toda
alteridade: ―Deixando as outras coisas, aumentas a ti mesmo; e a ti que tudo deixaste, o
todo se faz presente. Mas, se, ao que a tudo renuncia, ele se faz presente, ao que fica com
as outras coisas, ele não aparece; ele não veio para estar junto de ti, mas, se não está
presente, foste tu a deixá-lo. E se o deixaste, não foi a ele que deixaste — pois está
sempre presente — nem foste para longe, mas estando ele presente, te voltaste para a
parte oposta (para a parte das coisas particulares)‖ Enéadas VI, 5, 12).
Segundo Plotino, o tempo tem origem na eternidade, caracterizada como a vida
do Intelecto (2ª hipóstase). A alma se temporalizou, produzindo no lugar da eternidade o
tempo. O cosmo sensível, segundo ele, em sua totalidade encontra-se na alma, e nela o
cosmo se move no tempo. Enquanto o Intelecto atua de maneira simultânea, sempre no
presente, a alma produz uma coisa depois da outra, gerando assim a sucessão. Assim
cosmo e tempo são coletâneos. A alma, através do movimento hipostático, produz o
tempo e o cosmo, mas ela mesma é eterna, tanto a alma do mundo como a alma
individual, pois é ―o uno e o múltiplo‖, estando o tempo tanto na alma do mundo como
na individual, pois é uma única alma que se manifesta na pluralidade. O tempo se
manifesta em cada alma como sua própria vida. Dessa maneira, a unidade do tempo se
fundamenta na unidade da alma (Enéadas, III, 5, 4, 12) e a continuidade se fundamenta
na continuidade da alma (Enéadas, IV, 3, 32, 35). Entretanto nem a alma do mundo nem
as almas individuais estão integralmente no tempo. Segundo Plotino, a eternidade é o
modelo, a vida do intelecto, segundo o qual o tempo, a vida da alma, é criado. Para ele, o
tempo é, pois, a imagem da eternidade.

Conclusão

No percurso de nossa exposição sobre o Orfismo, Platão e Plotino, percebemos a


tentativa filosófica de fazer da existência de uma alma imortal não apenas uma crença, uma
fé e esperança, mas uma demonstração racional. Se o raciocínio platônico e posteriormente
o plotiniano não produziram uma prova racional da imortalidade da alma — certamente
não produziram uma ―prova‖ no sentido das ciências recentes — contudo mostraram a
plausibilidade de tal crença. Mostraram que é possível crer na imortalidade da alma sem
renunciar à responsabilidade racional. Platão e Plotino tentam uma fundamentação

Coleção Filosofia – 175 61


especulativa para a fé e a ética. Descobrindo o supra-sensível, mostram que a verdadeira
tarefa do homem deve ser, não o cuidado do corpo, mas o cuidado da alma. E o
fundamento racional que distingue Platão e Plotino do orfismo e do pitagorismo.
A concepção aristotélica de matéria e forma (hilemorfismo), que defende uma
maior unidade entre alma e corpo, por outro lado, dificulta a aceitação da imortalidade.
Aristóteles só conhece a imortalidade do noús universal. Mas quem, nos primeiros
séculos, influencia de maneira determinante o Cristianismo é o pensamento de Platão e
dos neoplatônicos.
Entre os Padres da Igreja, muitas vezes se deduz a imortalidade da alma de sua
natureza espiritual, embora até o século V também encontremos quem ensinasse que a alma é
material e mortal como qualquer criatura. Houve, também, quem interpretasse o texto de
Paulo aos Colossenses (1, 16) em favor da imortalidade, como Orígenes e S. Agostinho que
leram ―invisível‖ como sinônimo de ―incorpóreo‖. Entretanto, não faltam entre os Padres da
Igreja os que consideram a imortalidade própria de Deus e a alma, embora invisível, não
imortal. Só poderia tornar-se imortal por dom de Deus. Mas a tese de Tertuliano sobre a
imortalidade, depois do século II, impôs-se sempre mais. Dizia ele: ―Algumas verdades nos
são conhecidas precisamente por natureza, como a imortalidade da alma‖ (De ressur. 3, 1-3).
Os filósofos cristãos apresentaram, no decurso do tempo, como argumentos:
a) A natureza da alma humana é simples e espiritual e, portanto, incorruptível.
Simples, pois nela não se pode dar qualquer dissociação de partes; espiritual, pois não
depende essencialmente do corpo na sua existência. Por isso não se pode corromper com
ele. Logo, é por natureza imortal. Este é o argumento metafísico.
b) A alma humana aspira naturalmente à vida, e à vida sem fim. Não se trata de um
desejo adquirido, mas natural. Ora, tal desejo não pode ser frustrado, pois, se o fosse, a
própria natureza seria absurda. Mas não se pode crer que o ser humano seja o único absurdo
em meio a um mundo cheio de ordem e harmonia naturais. Este é o argumento psicológico.
c) A alma humana aspira naturalmente à justa sanção ou à retribuição devida ao
bem ou ao mal. Ora, na vida presente esta só ocorre precariamente. Por isso deve haver
outra vida na qual a justiça seja exercida de maneira plena, pois do contrário a história
seria absurda. Este é o argumento moral.
Esses argumentos, a rigor, já encontramos entre os antigos gregos. Mas, diga-se
com clareza, o Magistério da Igreja católica não dogmatizou nenhuma concepção filosófica.
Outro argumento filosófico a favor da imortalidade da alma mais divulgado é o
extraído do consensus gentium. Cícero formulou-o nos seguintes termos: ―Se o
consentimento universal é voz da natureza e todos em qualquer lugar estão de acordo em
julgar que existe algo que interessa àqueles que são defuntos, também nós devemos ser
do mesmo parecer e se julgarmos que aqueles dotados de uma alma superior por
engenho ou virtude estão em melhor condição para reconhecer a força da natureza
porque são perfeitos por natureza, é verossímil — pois que todos os melhores se
preocupam muitíssimo com a posteridade — que exista algo do qual sejam destinados a
ter sensação depois da morte‖ (Tusc. Disp., 1, 15, 35). Entretanto, boa parte dos
iluministas, nos tempos modernos, já pensava com Voltaire que ―a mortalidade da alma
não é contrária ao bem da sociedade como é provado pelos antigos Hebreus que
acreditavam na alma material e mortal‖ (Traité de Métaphysique, 6).

62 Coleção Filosofia - 175


Na Aufklärung alemã, depois de Leibniz, a imortalidade da alma torna-se
―dogma‖ central. Mas no Iluminismo francês (Voltaire) e inglês (D. Hume), predominam
o ceticismo e a rejeição.
Assim, parece que, há muito tempo, o problema da imortalidade da alma deixou
de ser um problema atual na filosofia, sobretudo depois de esta entrar na crise metafísica. E
isso por uma dupla razão. Primeiro, porque a ética moderna exclui a moral de toda
dependência de uma sanção ultramundana, eliminando o interesse mais imediato numa
solução positiva do problema da imortalidade. Segundo, porque a filosofia moderna negou,
em princípio, a legitimidade e a conclusividade do próprio debate sobre a imortalidade,
pois trata-se de uma questão além da experiência atingível pelos instrumentos que o
homem possui. Kant, retomando a tese de Rousseau, aceitou a imortalidade da alma como
um dos postulados da razão prática. Para ele, a imortalidade da alma e a existência de Deus
são as condições para a realização do sumo bem, ou seja, da união de virtude e felicidade.
Para Kant, na verdade, não se trata de uma verdade teorética, mas de uma necessidade do
ser moral finito. Se as considerações morais não demonstram a imortalidade, contudo
mostram que é uma aspiração legítima de quem age moralmente.
Mais recentemente o problema da imortalidade da alma limita-se à esfera da
religião e da apologética religiosa. Os estudos filosóficos, depois de Kant, não são
apenas escassos mas pobres em consistência.
Supondo a total coincidência de todas as dimensões da vida com os dinamismos
biológicos, alguns pensadores, como Unamuno, Camus e Sartre, apresentam a morte
radical como a palavra decisiva, como se de um ―dado de facto‖ se pudesse tirar uma
conclusão necessária. A questão da imortalidade da alma não trata de uma tese empírica,
mas de ordem metafísico-religiosa. Ora, a morte radical evidencia-se mais como um
pressuposto que uma prova, pois contradiz alguns dados de nossa existência.
Desta maneira, desde os gregos, as provas clássicas da imortalidade se regem,
de um lado, pela qualidade subsistente e incorruptível da ―alma intelectiva‖ (capaz de
verdades eternas, simples e espiritual) e, de outro, pela exigência da perenidade da alma
para além da morte, para se justificar uma perfeita sancionalidade moral.
Como valorizar as chamadas provas clássicas da imortalidade da alma?
Por um lado, existem os que as aceitam por via fideísta (fé filosófica ou
religiosa) sem dar maior importância à argumentação racional. Por outro, há aqueles que
negam a possibilidade de qualquer demonstração filosófica, embora rejeitem o
materialismo e a mortalidade total (Unamuno, Scheler, Jaspers). Entre as duas posições
extremas há aqueles (Blondel, Maritain) que postulam um conjunto de convicções e
certezas pré-filosóficas para proceder a uma demonstração rigorosa. Entre esses
pressupostos, certamente, está o discurso da fé.
O cristianismo costuma usar dois termos para designar a participação individual
na Vida Eterna: imortalidade e ressurreição. O segundo é bíblico, O primeiro, como vimos,
ocorre na doutrina platônica, mas também foi usado muito cedo na teologia cristã.
O teólogo Paul Tillich, em sua Teologia Sistemática, diz que ―se o termo é
usado na forma em que 1 Tm o aplica a Deus, ele expressa negativamente aquilo que o
termo eternidade expressa positivamente: não significa uma continuação da vida

Coleção Filosofia – 175 63


temporal após a morte, mas significa uma qualidade que transcende a temporalidade‖ (p.
698). Portanto, nesse sentido não se justificaria a rejeição do termo pelos teólogos.
Quando se usa o termo ―imortalidade da alma‖, diz Tillich, introduz-se um
dualismo entre alma e corpo. Mas o conceito de imortalidade não necessariamente implica
esse dualismo, como mostra Aristóteles. Segundo Tillich, os ataques críticos referem-se
não ao símbolo ―imortalidade‖, mas ao conceito de uma substância naturalmente imortal, a
alma. ―Os deuses imortais‖ são representações simbólico-míticas da infinitude da qual os
homens enquanto mortais estão excluídos, mas que são capazes de receber dos deuses. Se
Deus é o fundamento e alvo de tudo que é, pode ―revestir este ser corruptível pela
incorruptibilidade e este ser mortal pela imortalidade‖ (1 Cor 15, 53).
Certamente a imortalidade da alma não depende só da reflexão filosófica. Deve
precedê-la. Além disso, a teoria da imortalidade da alma é insuficiente, pois em si não nos
oferece resposta adequada aos problemas após a morte. Tudo indica que a antropologia
filosófica tem seus limites para responder à pergunta de Kant: ―o que posso esperar?‖
Neste ponto talvez caberia recordar Wittgenstein quando diz que o sentido do
mundo não está no mundo — e só pela oração e invocação se deixa entrever. Seria
necessário descer à profundidade metafísica, ao núcleo oculto, pressuposto, dos
problemas humanos, à questão de sua transcendência espiritual. Se Deus nos quer como
pessoa, nos quererá para sempre. O futuro absoluto deverá incluir também o tempo
histórico. Apesar da misteriosa presença do mal no mundo, o pouco apoio racional é
suficiente para justificar nossa entrega fiducial a Deus, pois só Ele nos poderá salvar.
Como somos seres racionais, a reflexão filosófica, que não substitui a fé, pode ajudar-
nos a buscar ―as razões de nossa fé‖ (1 Pd 3, 15).

Referências

LOGOS — Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. 5 v. Lisboa — São Paulo:


Editorial Verbo, 1989-1992.
PLATO. Plato in Twelve Volumes. Cambridge, Ma: Harvard University Press, 1967-68.
PLATÃO. A República. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987.
_____ Diálogos (Fédon). São Paulo: Nova Cultural, 1996.
PLOTINO. Enéadas III-IV, Introducción, Traducción y notas de J. Igal. Madrid: Gredos, 1985.
PLOTINUS. The Enneads. Ed. A. H. Armstrong. Cambridge Mass Loeb Classical
Library, v. I-III, 1966-1968.
PAULO, Margarida Nichele. Indagações sobre a imortalidade da alma em Platão. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1996.
PUENTE, Fernando Rey. O tempo e a alma em Plotino e Aristóteles. In: SOUZA, Draiton
Gonzaga de (Org.). Amor Scientiae. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 245-270.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. v. IV. São Paulo: Loyola, 1994.
SANTOS, Bento Silva. A imortalidade da alma no Fédon de Platão. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1999.
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. S. Paulo: Paulinas e Sinodal, 1984.
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Plotino: um estudo das Enéadas. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2002.

64 Coleção Filosofia - 175


FÉ E RAZÃO
No dia 14 de setembro de 1998, o Papa João Paulo II publicou a encíclica Fides
et Ratio, dirigida aos bispos da Igreja católica e, através deles, ao clero e aos leigos. Este
documento, que trata sobre as relações entre fé e razão, e mais diretamente entre teologia
e filosofia, parece-me um dos mais importantes dentre os numerosos publicados nos
mais de vinte anos de seu pontificado.
Tudo indica que, por seu teor doutrinal, permanecerá para o futuro como um
dos documentos mais significativos do Magistério católico no século XX. Essa
importância decorre do próprio tema, cujas raízes já se encontram na antiga Grécia,
passando os vinte séculos de Cristianismo, e da maneira como o assunto é abordado.
O tema desta encíclica é, praticamente, o mesmo que o da Aeterni Patris
(1879), de Leão XIII. Entretanto, formula as seguintes questões específicas: por que a fé
deve ocupar-se da filosofia e por que a razão não pode prescindir da contribuição da fé?
O objetivo do texto pontifício é um apelo a todos os cristãos de superar a
situação insustentável de hoje, quando chegamos ao extremo de separar fé e razão. O
tema, que provavelmente será o mais discutido entre os filósofos, teólogos e cientistas, é
o seguinte: por que é que a razão se quer impedir a si mesma de tender para a verdade,
enquanto, por sua própria natureza, está inclinada para alcançá-la e até possui os
instrumentos necessários para isso?
A encíclica Fides et Ratio é o primeiro documento do Magistério eclesiástico a
tratar ampla e profundamente dessa questão que, de resto, permanecia limitada às
considerações de teólogos e filósofos. O Papa justifica sua iniciativa dizendo que
―testemunhar a verdade é um encargo que nos foi confiado a nós, os bispos‖ (n. 6), um
encargo ao qual ―não podemos renunciar, sem faltar ao ministério que recebemos‖ (ibid.).
Um segundo motivo, que levou o Papa a escrever este documento, é continuar a
reflexão de sua carta encíclica Veritatis Splendor, ―concentrando a atenção precisamente
sobre o tema da verdade e sobre o seu fundamento em relação com a fé‖ (ibid.).
O texto da encíclica apresenta os seguintes aspectos da questão: histórico,
doutrinal e exortativo. Antes de tudo, parecem oportunas algumas observações sobre a
leitura deste gênero de documentos.

1 — Como ler o documento? Qual seu conteúdo?

Por carta encíclica, na Igreja católica, desde meados do século XVIII, entende-
se uma carta-circular do Papa, dirigida a toda a Igreja, ou a parte dela, ou também a não-
católicos. Como outros documentos pontifícios, costuma designar-se as encíclicas pelas
duas ou três primeiras palavras do texto original. As palavras iniciais desta, na língua
latina (original), são Fides et Ratio.

Coleção Filosofia – 175 65


Para ler uma encíclica como esta, dever-se-ão observar algumas regras
elementares de hermenêutica do discurso. Assim deverá respeitar-se o gênero literário do
texto. Não se trata de um discurso da ciência experimental, nem de um tratado de
filosofia ou de teologia, mas de um pronunciamento de alguém com incontestável
autoridade, que se dirige aos bispos e, através deles, ao clero e aos leigos. Evidentemente
também não se trata de uma definição dogmática.
O Magistério ordinário da Igreja escreve encíclicas para expor doutrina,
questões pastorais, ou ainda exortar. Na Fides et Ratio encontramos todos esses aspectos
visando um diálogo fecundo entre os teólogos, filósofos e cientistas.
O recente documento pontifício logo encontrou ampla repercussão para além
dos muros da Igreja católica, sobretudo nos meios intelectuais. As reações foram
diversas e até contraditórias, tanto entre o clero como entre os leigos. Algumas leituras
parecem apressadas e superficiais, dando a impressão de que foram feitas à luz de
ideologias estranhas a ele. Pessoalmente julgo que o tempo evidenciará esta encíclica
como sendo de importância decisiva para definir rumos seguros à formação filosófico-
teológica na Igreja e para definir o sentido da presença cristã no mundo da cultura pós-
moderna, no início do terceiro milênio.
O conteúdo é o seguinte:
Cap. 1 - A Revelação da sabedoria de Deus - introduz o tema da Revelação
como conhecimento oferecido ao homem pelo próprio Deus. Expressando o mistério, a
Revelação convida a razão a intuir as razões que ela mesma só pode acolher ou rejeitar.
Cap. II - Credo ut intelligam - apresenta a unidade entre o conhecimento pela
razão e o conhecimento pela fé.
Cap. III - Intelligo ut credam - aborda questões mais detalhadas. Descrevendo o
homem como aquele que procura a verdade, o n. 33 resume: ―O homem, por sua natureza,
procura a verdade. Esta busca não se destina apenas à conquista de verdades parciais,
físicas ou científicas; não procura só o verdadeiro bem em cada uma de suas decisões. Mas
a sua pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da
vida; trata-se, por conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no absoluto‖.
Cap. IV - A relação entre a fé e a razão - traça uma síntese histórica, filosófica
e teológica do modo como o Cristianismo entrou em relação com o pensamento
filosófico antigo. Já os primeiros cristãos explicitam sua fé na linguagem filosófica de
seu tempo. Apresenta uma visão sintética através da história até à ―nefasta separação‖,
com destaque para S. Agostinho, S. Anselmo e Tomás de Aquino.
Cap. V - Intervenções do Magistério em matéria filosófica - relaciona as
diversas intervenções relativas, sobretudo, ao fideísmo e ao racionalismo, e lembra como
a Igreja estimulou a filosofia no decurso de sua história.
Cap. VI - Interação da teologia com a filosofia - fala da necessidade que as
diversas disciplinas teológicas têm da filosofia, sobretudo na relação com as culturas.
Para a teologia, o ponto de partida sempre é a Palavra de Deus revelada na história. A
justa relação a ser instaurada entre a teologia e a filosofia será pautada por ―uma
reciprocidade circular‖ (n. 73).
Cap. VII - Exigências e tarefas atuais - a filosofia deve reencontrar sua
dimensão sapiencial de procura do sentido último e global da vida (n. 81); verificar a

66 Coleção Filosofia - 175


capacidade de o homem chegar ao conhecimento da verdade (n. 82); ser capaz de
transcender os dados empíricos, ou seja, ser metafísica para chegar a algo absoluto (n.
83). O documento cita como modelos filosóficos incompatíveis com a fé: ecletismo,
historicismo relativista, pragmatismo e suas conseqüências niilistas (n. 86-91).
A filosofia parte do homem, apelando ao seu intelecto, tratando de noções e
problemas puramente naturais; a fé, ao contrário, é o sim da pessoa a Deus, ao Deus que
se revela. A filosofia tem o objetivo de proporcionar uma interpretação racional do
mundo, da natureza, da sociedade, do homem e de sua vida interior. A fé, para o cristão,
é dom de Deus que o homem, em sua liberdade, acolhe ou rejeita.

2 — Aspectos históricos da questão “fé e razão”

O documento pontifício mostra, resumidamente, as etapas significativas do


encontro entre a fé e a razão, no cap. IV (n. 36-48).
Por vezes, o leigo pode ter a impressão de que o tema da fé e razão tenha suas raízes
nos tempos modernos. Isso é um grande equívoco, pois os antecedentes dessa questão já se
encontram na antiga Grécia, no caminho do mito ao lógos (razão). Por isso já está presente no
querigma apostólico. Enquanto os gregos, com a luz natural da razão, perguntavam por Deus,
os judeu-cristãos partiam da resposta, do Deus que se revelou, no Antigo Testamento, aos
patriarcas e profetas e, de maneira plena, no Novo Testamento, em Jesus Cristo.
A filosofia ocidental é, na sua origem, uma criação própria do gênio dos antigos
gregos. Ela surgiu como empreendimento intelectual de caráter teórico com os
cosmólogos gregos, e a fixação de seu significado como disciplina rigorosa com
exigências metodológicas para o exercício de determinado tipo de reflexão remonta a
Platão e se formula definitivamente com Aristóteles. De certa maneira foi ela, com suas
categorias racionais, a geradora da ciência moderna.
O Cristianismo nasceu no meio do judaísmo e do helenismo. Compreende-se e
apresenta-se a si mesmo como aperfeiçoamento do judaísmo, pois a Revelação divina,
iniciada no tempo dos patriarcas e profetas, conclui-se com a pregação do Evangelho. Os
filósofos cristãos, por sua vez, consideram o helenismo a expressão mais acabada da
cultura antiga. O contraste se estabelece entre Evangelho e sabedoria pagã. Os
pensadores cristãos entendem o Evangelho como sabedoria divina, que se dirige à fé, e o
helenismo como uma sabedoria humana que fala à razão.
S. Paulo tinha consciência do problema em Atenas e Corinto, sabendo da
dificuldade entre os gregos para acolherem o Evangelho. Em Atenas, discutia na
sinagoga com judeus e convertidos ao judaísmo. Levado ao Areópago, perante filósofos,
tanto epicureus como estóicos, falou: ―Atenienses, em tudo vos vejo extraordinariamente
religiosos. Ao passar e contemplar os objetos de vosso culto, achei um altar em que está
escrito: ‗Para o deus desconhecido‘. Pois aquele que venerais sem conhecer, é esse que
vos anuncio‖ (At 17,22-23).
O problema da relação entre fé e razão acompanha o Cristianismo, como herdeiro
da filosofia grega, através dos séculos até hoje. Já nos primeiros séculos encontramos
filósofos, como Celso (século II), que tentam demonstrar a incompatibilidade entre

Coleção Filosofia – 175 67


Cristianismo e razão filosófica. Por outro lado, também não faltam homens que, como
Orígines (século III), tentam, contra Celso, conciliar a razão com a fé através do diálogo.
Desde o começo do Cristianismo, por exemplo, em Tertuliano, na Reforma e em
nossos dias entre os neopentecostais, não faltam aqueles que menosprezam o papel da razão e
partem do fideísmo. Por outro lado, desde a antiga Grécia até nossos tempos, não faltam
aqueles que, como Kant e Hegel, tentam manter a religião (fé) dentro dos limites da pura
razão (racionalismo). A Igreja católica, através dos tempos, sempre tentou caminhar entre
esses dois extremos, não absolutizando a razão, nem a fé. Já S. Pedro, em sua primeira carta,
adverte que o cristão deve saber dar as razões de sua esperança (fé) (1 Pd 3,15).
A encíclica Fides et Ratio destaca dois momentos fortes e decisivos nessa longa
história, momentos ligados aos nomes de S. Agostinho e de S. Tomás de Aquino.
Reconhece em Agostinho (354-430) a primeira grande síntese bem-sucedida entre fé e
razão, entre fé cristã e filosofia, no caso do neoplatonismo (n. 40). A posição de Agostinho
de Hipona está caracterizada na frase “intellige ut credas. Crede ut intelligas” (Serm.
43,7). Segundo ele, primeiro a inteligência prepara para a fé; depois a fé dirige e ilumina a
inteligência. Finalmente, a fé, iluminada pela inteligência, conduz ao amor. Dessa forma,
vai do entendimento para a fé e da fé para o entendimento e de ambos para o amor.
Algumas fórmulas de Agostinho tornaram-se clássicas, marcando também a
encíclica papal, pois servem de título para o cap. II: crede ut intelligas (crê para
entender) e para o cap. III: Intellige ut credas (entende para creres). Por isso diz o Papa
que ―a síntese feita por S. Agostinho permanecerá como a forma mais elevada de
reflexão filosófica e teológica que o Ocidente, durante séculos, conheceu‖ (n. 40).
O segundo momento forte do encontro entre a fé e a razão está vinculado ao
nome de Tomás de Aquino (século XIII). Trata-se da tentativa bem-sucedida de
harmonizar fé cristã e razão, respeitando a autonomia de ambas. No caso do grande
Aquinate trata-se da razão aristotélica.
Tomás de Aquino determina a relação entre a fé e a razão da seguinte maneira:
a) Fé e razão são modos diferentes de conhecer;
b) Fé e razão, filosofia e teologia, não podem contradizer-se, porque Deus é o
autor comum de ambas;
c) Embora a razão seja suficiente para conhecer as verdades fundamentais de
ordem natural e seja autônoma no estudo das coisas naturais, é incapaz, por si só, de
penetrar nos mistérios de Deus. Por isso Deus veio bondosamente ao encontro do
homem com sua Revelação. Essa orienta o filósofo em suas pesquisas;
d) Mas a razão pode prestar um grande serviço à fé, seja para demonstrar
aquelas coisas que são preâmbulos da fé; seja para ilustrar, por meio de semelhanças e
dissemelhanças, as coisas que pertencem à fé; seja para opor-se às coisas que são ditas
contra a fé.
Diz o Papa que o Aquinate ―ocupa um lugar absolutamente especial, não só
pelo conteúdo da sua doutrina, mas também pelo diálogo que soube instaurar com o
pensamento árabe e hebreu de seu tempo (...); ele teve o grande mérito de colocar em
primeiro lugar a harmonia que existe entre a razão e a fé. A luz da razão e a luz da fé
provêm ambas de Deus, argumentava ele; por isso, não se podem contradizer‖ (n. 43).

68 Coleção Filosofia - 175


Tomás de Aquino foi sempre proposto pela Igreja como mestre de pensamento
e modelo quanto ao reto modo de fazer teologia, ―porque se consagrou sem reservas à
verdade, no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade. A sua filosofia é
verdadeiramente uma filosofia do ser, e não do simples aparecer‖ (n. 44).
Nunca houve uma síntese entre fé e razão que fosse aceita por todos, nem nos
tempos medievais. Aliás, Tomás de Aquino foi rejeitado e muitas de suas teses, na Idade
Média, condenadas. E muita ignorância afirmar que o conflito surgiu nos tempos modernos.
Se a doutrina do Aquinate orienta, nos tempos modernos, o Magistério da
Igreja, já no século XI S. Pedro Damião objeta que a dialética, se for usada no estudo da
Bíblia, não deve arvorar-se em guia doutrinário, mas comportar-se como a escrava em
relação à senhora, ou seja, ajudar na interpretação da Bíblia. S. Pedro Damião dizia:
―Deus não precisa de nossa gramática para converter homens, pois no começo de nossa
redenção não enviou filósofos e oradores para difundir as sementes da nova fé, mas
pescadores simples e rudes‖ (De sancta simplicitate, III; PL 145, col. 697B). Com
humor diz ainda: ―Queres aprender gramática? Aprende a declinar Deus no plural‖.
Pedro Damião pergunta: ―Donde vem a filosofia?‖ Responde: ―E uma invenção
do diabo, corrompida desde a gramática‖. Lamenta que alguns monges prefiram as
regras de Donato às de S. Bento. Para Pedro Damião, o primeiro professor de gramática
foi o próprio diabo: ―Sereis como deuses, distinguindo o bem e o mal‖ (Gn 3,5).
No auge medieval, no século XIII, com o filósofo islâmico Averróis, também
começou a formular-se o problema moderno da oposição entre razão e fé, afirmando-se,
de um lado, o racionalismo e, de outro, o fideísmo. Nesse contexto também ocorre a
separação entre luteranos e católicos, no século XVI. Portanto, não se trata de uma
questão provocada pela revolução científica do século XVII.
Esse é o drama da separação da fé e da razão (n. 45-48). Nesse contexto também
seria equivocado querer situar o caso Galileu em torno do problema teórico fé versus ciência.
O caso Galileu está vinculado mais à sua teimosia pessoal de querer subordinar a leitura da
Bíblia à hipótese científica do heliocentrismo, a qual, na época, ainda carecia de qualquer
comprovação científica. Só com Newton, no fim daquele século, se chega a tal comprovação.
De resto, Galileu era crente, e João Paulo II refere-se ao mesmo com simpatia (n. 28 e 29).
Portanto, o equívoco de Galileu consistiu em querer julgar a verdade da fé
(Revelação) pela verdade da ciência, entrando, assim, em conflito aberto com os
teólogos de seu tempo.
Antes de ser questão científica, o problema da relação entre fé e razão é um
problema filosófico. Muitas vezes a ciência foi usada mal contra a fé, nos tempos modernos,
menos por cientistas e mais por filósofos. Os fundadores da ciência moderna, Galileu Galilei,
R. Descartes, Blaise Pascal, I. Newton, Gottfried Leibniz eram homens de fé. Da mesma
forma, no século XIX, no auge do cientificismo, homens como Jean-Marie Ampère, Louis
Pasteur, Gregor Mendel, fundador da Genética moderna, eram conhecidos por sua fé.
Também o era o pai da Física moderna, Max Planck, e muitos outros eram crentes.
Evidencia-se, desse modo, que o problema da relação entre fé e ciência não nasce da
ciência como tal, mas de pressupostos ideológico-filosóficos, adotados por determinados
cientistas. Com isso entra, nessa questão, antes de mais nada, a razão filosófica. Certa
oposição entre ciência e fé encontrou apoio no idealismo racionalista de Descartes,

Coleção Filosofia – 175 69


postulando uma autonomia absoluta da razão. O próprio homem é reduzido à razão e esta,
por sua vez, é reduzida à razão instrumental ou científica, criando-se, assim, a oposição
polêmica e hostil da razão à fé. Essa oposição chega a seu auge com o Iluminismo francês e a
Aufklärung alemã, ou seja, no processo histórico-cultural do Ocidente que se costuma
designar com o nome genérico de Modernidade, entronizando a deusa razão na revolução
francesa de 1789 e caracterizando a razão como a luz e a fé como trevas.
Esse conflito foi ideologizado na busca da hegemonia da razão sobre a fé. A
ciência passou a ser usada muitas vezes de maneira sistemática como ingrediente
ideológico na crítica contra a fé. Em tentativas de superar esse conflito recorreu-se ao
concordismo entre a Bíblia e a ciência (E a Bíblia tinha razão); ou então alimentou-se a
ruptura, como no caso do positivismo de A. Comte e no materialismo de Karl Marx.
Usa-se uma versão ideologizada da ciência para combater a fé.
Dessa maneira, o documento pontifício constata que ―tudo o que o pensamento
patrístico e medieval tinha concebido e atuado como uma unidade profunda, geradora de
um conhecimento capaz de chegar às formas mais altas da especulação, foi realmente
destruído pelos sistemas que abraçaram a causa de um conhecimento racional, separado
e alternativo da fé‖ (n. 45).
A constatação de uma progressiva separação entre a fé e a razão filosófica
repercute hoje para dentro da própria Igreja. Embora a velha questão ―fé e razão‖ hoje
passe por um momento de certa tranqüilidade, dentro da Igreja católica encontramos
movimentos opostos em expressões radicais, como a ―teologia da libertação‖ (razão
científica) e a Renovação Carismática (fideísmo).

3 — Aspectos doutrinais

Como se formula a questão da fé e razão hoje? De diversas maneiras, como, p.


ex., posso eu responsabilizar minha fé cristã com honestidade intelectual? Posso eu ser
cientista, sem ter que deixar de ser cristão?
Para responder a tais perguntas, João Paulo II parte do pressuposto
antropológico de que, independentemente de qualquer diferença cultural, raça ou
religião, existem algumas questões fundamentais que definem o homem como ser
humano. Já na introdução, a encíclica caracteriza a existência humana nas diferentes
culturas com perguntas universais: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Por
que existe o mal? O que existirá depois desta vida? A resposta a essas perguntas
dependerá, não da ciência, mas da visão antropológica.
O documento pontifício começa com o título ―Conhece-te a ti mesmo‖ (introdução),
recomendação esculpida no dintel do templo de Apolo em Delfos, que serviu ao filósofo
Sócrates, em Atenas, para orientar os jovens na busca do sentido para a existência. E entre
Sócrates e as filosofias modernas há um ponto em comum: concentram sua atenção sobre o
homem. Entretanto, há também o perigo de investigar unilateralmente o homem como objeto,
esquecendo-o como sujeito e silenciando a realidade que o transcende.
Dessa maneira, em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de
conhecer a verdade, prefere sublinhar-se as suas limitações e condicionalismos. O resultado
são as várias formas de agnosticismo e relativismo, o niilismo ou um ceticismo geral, ou

70 Coleção Filosofia - 175


ainda o homem se contenta com verdades parciais e provisórias, deixando de colocar
perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento último da vida humana, pessoal e social.
Todo o conhecimento é atividade do sujeito humano. Este, todavia, não parece
ser exatamente o mesmo, quando se trata de conhecimento e de fé. No primeiro está
envolvido o eu pensante, a razão; no segundo, o eu em todo o seu ser. O conhecimento
defronta-se com problemas, que a ciência resolverá. Problemas podem ser definidos e
detalhados. Quando falamos da fé, esta defronta-se com o mistério. Este não se conhece,
mas se reconhece ou rejeita. Quando falamos de Deus ou das realidades mais
profundamente humanas. movemo-nos no âmbito do mistério. Ao falarmos de Deus
como mistério, podemos aceitá-lo ou rejeitá-lo como sentido de nossa existência.
A estrutura do conhecimento científico é triádica. Provo algo a alguém. A
estrutura da fé é diádica, pois a fé não se demonstra com um ato da razão, mas se
testemunha. Fé, esperança, amor e fidelidade são realidades que não se demonstram
cientificamente, mas se testemunham.
João Paulo II mostra-se, neste documento, um defensor da grandeza e da forca
da razão, que deve buscar, todavia, auxílio na fé. Segundo o Papa, a fé cristã não pode
confrontar-se, por muito tempo, com uma razão debilitada. Só uma razão forte pode
confrontar-se com a Revelação. E o Papa quer devolver ao homem a confiança na razão.
Segundo a encíclica, a razão é preâmbulo necessário para a fé. O intellectus fidei é
tarefa fundamental da teologia. Essa é a grande tradição da Igreja católica. Quando
Agostinho propõe o crede ut intelligas, postula a utilização dos procedimentos lógicos,
metodológicos e epistemológicos próprios da razão para compreender a realidade.
De acordo com Tomás de Aquino, o ato de fé não tem como objeto uma
proposição, mas a realidade nela enunciada. Sendo Sócrates o primeiro a usar a razão como
universal por natureza, mostra-a apta para anunciar a universalidade da Revelação e da
Salvação por Jesus Cristo na linguagem humana. Assim a universalidade da razão torna-se
o veículo privilegiado para comunicar a universalidade da fé e expressá-la na variedade das
culturas. Diz o Papa: ―Estendendo o olhar para os princípios universais, deixaram (os pais
da filosofia) de contentar-se com os mitos antigos e procuraram dar fundamento racional à
sua crença na divindade. Embocou-se assim uma estrada que, saindo das antigas tradições
particulares, levava a um desenvolvimento que correspondia às exigências da razão
universal‖ (n. 36). Nessa base instaurou-se um diálogo fecundo dos Santos Padres com os
filósofos antigos. abrindo estrada ao anúncio e compreensão do Deus de Jesus Cristo.
Pressupondo que o caminho da razão se abre à acolhida da fé, compreende-se
que a categoria de verdade ocupe necessariamente o centro da encíclica. Ela constitui o
ponto de convergência de todo o seu conteúdo doutrinal. O Papa não propõe uma teoria
da verdade, mas apresenta seus diferentes rostos (n. 28-35). Só ela é o lugar de legítima
convivência da fé e da razão em harmonia. Ora, sendo a verdade filosófica a forma mais
apta para o diálogo com a fé, compreende-se a importância dada ao cap. VI sobre a
interação da filosofia com a teologia. Se há correntes filosóficas modernas que partem de
pressupostos incompatíveis com a fé, isso significa que nem todas as filosofias se
prestam a um diálogo construtivo com a teologia.

4 — Aspectos exortativos

Coleção Filosofia – 175 71


O Papa não propõe novas doutrinas filosóficas, mas indica caminhos
compatíveis com a fé. E aqui desmascara preconceitos de algumas correntes filosóficas
contemporâneas em relação à fé.
A Fides et Ratio expressa uma ampla abertura de espírito e uma enorme
confiança na razão. Inicia com as palavras: ―A fé e a razão constituem como que as duas
asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus
quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última
análise, de conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à
verdade plena sobre si próprio‖.
O Papa também adverte para as condições essenciais para uma filosofia oferecer
instrumentos conceituais adequados à teologia em sua tarefa própria de ―inteligência da
fé‖. Tal filosofia não poder negligenciar seu papel sapiencial e deve verificar a capacidade
do homem de chegar ao conhecimento da verdade (n. 81 e 82). Só uma filosofia sapiencial
será capaz de buscar o sentido último e unificador da vida humana e de toda a realidade.
Por isso não poderá renunciar à ambição metafísica da razão. A crise de sentido no mundo
contemporâneo é, em última análise, uma crise metafísica.
Se o problema ―fé e razão‖ se confunde com a história do Cristianismo, ao menos
no Ocidente, a recente encíclica do Papa deverá ser lida como uma das expressões
intelectuais mais relevantes de nosso tempo. Sua mensagem resume-se: ―Verdade e
liberdade, com efeito, ou caminham juntas, ou juntas miseravelmente perecem‖ (n. 90).
Um olhar para certas filosofias contemporâneas logo manifesta certo prazer
doentio em afirmar a fragilidade do pensamento e proclamar a morte do sujeito, o fim da
metafísica. Nesse contexto, a tradição tomista poderá oferecer uma metafísica como
fundamento para compreender o sentido da existência humana, culminando no
reconhecimento do transcendente absoluto, que a tradição judaico-cristã chama Deus.
Essa tradição é capaz de fundamentar uma ética e uma antropologia, articulando o reino
da natureza e o da liberdade como reino do espírito.
Exorta, finalmente, o Papa: ―A todos peço para se debruçarem profundamente
sobre o homem, que Cristo salvou no mistério do seu amor, e sobre a sua busca
constante de verdade e de sentido. Iludindo-o, vários sistemas filosóficos convenceram-
no de que ele é senhor absoluto de si mesmo, que pode decidir autonomamente sobre o
seu destino e o seu futuro, confiando apenas em si próprio e nas suas forças. Ora, esta
nunca poderá ser a grandeza do homem. Para a sua realização, será determinante apenas
a opção de viver na verdade, construindo a própria casa à sombra da sabedoria e nela
habitando. Só neste horizonte da verdade poderá compreender, com toda a clareza, a sua
liberdade e o seu chamamento ao amor e ao conhecimento de Deus como suprema
realização de si mesmo‖ (n. 107).
Em síntese, com esta encíclica do Papa não estão resolvidos todos os problemas
que a questão abordada envolve. Mas é proposto um caminho de conciliação possível.

72 Coleção Filosofia - 175


FÉ E RAZÃO NA DOUTRINA SOCIAL CATÓLICA

O cristão muitas vezes pode colocar-se a questão de como conciliar a


secularização do mundo com a radicalidade do Evangelho. Pergunta-se: posso
responsabilizar minha fé perante a razão crítica? Não é a fé cristã uma maneira hábil de se
acomodar às coisas, fugindo da responsabilidade histórica neste mundo para um mundo
eterno no além? Não é a fé cristã um obstáculo ao desenvolvimento científico social?
Tradicionalmente, sobretudo com Tomás de Aquino, costuma responder-se que
a luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus e que, por isso, não se podem
contradizer. Entretanto é preciso não esquecer que também o sujeito da ciência e da fé é
o mesmo homem, que empenha parte de sua capacidade — a razão — quando faz
filosofia ou ciência, mas envolve todo o seu ser — razão, coração, sentimento e emoção
— quando crê. Neste sentido, o teólogo católico confia na razão. Como a graça supõe a
natureza e leva-a à perfeição, a fé não é obstáculo à razão, mas a supõe e aperfeiçoa. A
fé é decisão livre e consciente do homem, que brota da liberdade do espírito com
coragem e honestidade intelectual.
Neste ensaio pretendo abordar o problema da fé e da razão sob os seguintes
aspectos:
1. Contexto histórico
2. Doutrina social católica
3. O conceito cristão de fé
4. Relação entre fé e razão

1 — Contexto histórico

O encontro entre judeu-cristianismo e helenismo, nos primeiros séculos da


nossa era, deixou problemas que nunca foram totalmente resolvidos. Os gregos indagam
por Deus com a luz natural da razão, Perguntam. Os judeus, os cristãos e os muçulmanos
afirmam ter a resposta: a revelação divina. Sentem-se, pois, de posse da resposta para as
grandes perguntas da humanidade. Esta é a raiz da questão que abordaremos.
O modelo desse confronto encontramo-lo nos Atos dos Apóstolos quando Paulo,
na praça, se dirige aos atenienses: ―Ao passar e contemplar os objetos de vosso culto,
achei um altar em que está escrito: para o deus desconhecido. Pois aquele que venerais
sem conhecer, é esse que vos anuncio‖ (At 17. 23).
Se, inicialmente, houve diálogo entre teologia e filosofia, entre fé e razão, como o
testemunham os santos padres, também ocorreu uma paulatina absorção da filosofia pela
teologia. As escolas de filosofia, aos poucos, cerraram suas portas e a razão, muitas vezes,
renunciou à sua autonomia para servir à teologia. Na Idade Média, torna-se difícil discernir
o que é teologia ou filosofia. Uma das conseqüências negativas é que até hoje, na chamada
cultura cristã, é difícil discernir até que ponto o helenismo foi cristianizado e o

Coleção Filosofia – 175 73


Cristianismo foi helenizado. Esta fusão criou separações dentro do próprio Cristianismo
entre Ocidente e Oriente, cujas raízes acham-se nas diferenças culturais; para povos
orientais, o obstáculo não foi Cristo, mas o Cristianismo na sua roupagem ocidental.
Alguns teólogos medievais, como Alberto Magno e Tomás de Aquino,
souberam distinguir entre filosofia e teologia como dois diferentes tipos de
conhecimento. Mas, se o pensamento patrístico e medieval tinha concebido e atuado
como uma unidade profunda, esta unidade foi rompida nos tempos modernos.
Desenvolveu-se, sobretudo no Ocidente. um espírito racionalista tão radicalizado, que
levou não só a uma separação, mas até a uma oposição. Cultivou-se uma filosofia
absolutamente autônoma dos conteúdos da fé. Como, nos tempos modernos, a exegese
bíblica foi negligenciada. sob a aparência de teologia opõe-se uma filosofia teológica a
outra filosofia meramente racional. Por isso, de um lado, cresce uma desconfiança geral
contra a razão e. de outro, em nome da mesma razão, apresentam-se conclusões como
necessárias quando apenas possíveis. Na revolução francesa entroniza-se a deusa razão.
Tenta-se uma religião dentro dos limites da mera razão (Kant).
Se o sujeito que conhece e crê é o mesmo, isto é, racional, a própria fé postula
suas razões. A separação entre fé e razão criou um racionalismo que se distanciou da fé
e, de outro lado, muitos cristãos se refugiaram no fideísmo. Para alguns, a fé tornou-se
prejudicial e alienante para o pleno desenvolvimento da razão e, para outros, a razão
tornou-se ameaça para a fé.
O respeito à autonomia da razão e da fé é condição para o diálogo entre ambas,
para o desassombro da fé e a audácia da razão. Para crer, segundo a doutrina católica,
ninguém precisa renunciar à maioridade de sua razão. O percurso de dois milênios de
história mostra que, quando fé e razão se respeitam mutuamente em sua autonomia, uma
pode fecundar a outra. Entretanto, o fato de a Igreja católica não ter examinado
suficientemente a base e o contexto cultural na formulação de sua doutrina de fé impõe-
lhe limites não só horizontais para a evangelização de outras culturas, mas para a própria
inculturação do Evangelho no Ocidente. Este fenômeno parece evidenciar-se não só na
fragmentação do Cristianismo ocidental em igrejas e seitas, mas dentro da própria Igreja
instala-se um silêncio contestador para contrariar normas éticas, como no caso da
regulação da natalidade e do divórcio, proclamadas em nome da fé. Proclamar a
autonomia da razão de seres racionais e a liberdade da fé provoca atitudes por vezes
inesperadas. A ciência e a técnica mudaram profundamente o mundo e o homem.
Surgiram novos problemas nas relações interpessoais e internacionais, no campo da fé
como da ciência, que não se resolvem com respostas velhas e prontas.
Dos primeiros evangelizadores, dos apóstolos e discípulos de Cristo, a Igreja
recebeu um precioso tesouro. Mas quem tem um tesouro, deve estar consciente de que
este lhe pode ser roubado. A modernidade, como processo histórico- cultural complexo
de transformação de mentalidades no Ocidente, trouxe conseqüências para a fé que nos
desafiam não só à maior honestidade intelectual, mas também a uma maior auscultação e
discernimento das mudanças que ocorrem.
O processo de modernidade apóia-se na luz da razão. No século XVIII,
desencadeou-se, na França, um movimento espiritual chamado Iluminismo. Desde Platão,
a luz é metáfora da razão. O Iluminismo caracteriza-se por uma confiança quase cega na

74 Coleção Filosofia - 175


razão humana e no seu poder ilimitado para libertar o pensamento de preconceitos. Crê-se
que só ela é capaz de dissipar as trevas da ignorância e do mistério, combater o despotismo
e a superstição religiosa e conquistar dias melhores para a humanidade. O Iluminismo
funda-se em um ato de fé na razão humana. E, até certo ponto, uma reação a um
totalitarismo eclesiástico na França da época. E conhecida a frase de Voltaire: ―esmagai a
infame!‖ (referindo-se à Igreja católica). Voltaire ataca a tradição religiosa, a autoridade
política, questionando, em princípio, todo o tipo de autoridade, inclusive a de Deus. Tudo
isso para conquistar um espaço para o livre exercício da razão, pois, segundo ele, só este
pode conduzir os homens à verdadeira liberdade.
O Iluminismo francês caracteriza-se pela veneração da ciência, sobretudo do
empirismo, por um antitradicionalismo, por um otimismo e por um liberalismo.
Na Alemanha, a Aufklärung foi menos anticlerical, pois a Reforma já havia
aberto um caminho para a liberdade de espírito. Segundo princípios racionais, os
iluministas alemães querem conduzir o homem a sua maioridade e conhecer Deus
racionalmente. Buscam uma religião natural à luz da razão, pois os iluministas alemães
reconhecem certo papel à fé revelada, embora a tentassem restringir à esfera moral.
O iluminismo foi um grande processo de secularização do pensamento. Ataca, em
nome da razão crítica, os mitos e as superstições das religiões positivas. Dentro do
Iluminismo desenvolveu-se uma religião racional, natural e leiga. Tudo isso leva ao paradoxo
de, por um lado, o racionalismo iluminista conduzir à crença e, por outro, à incredulidade.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) afirma que ―o Cristianismo é uma religião
inteiramente espiritual, que distancia os homens das coisas da terra. A pátria do cristão
não é de modo algum este mundo (...) O Cristianismo é muito favorável à tirania,
embora esta nem sempre tenha se aproveitado‖. Diz Rousseau que o Cristianismo abriu,
no plano das relações sociais e terrenas, as portas a toda forma de tirania e egoísmo.
Não esqueçamos que o Iluminismo surgiu na França após uma experiência
dolorosa de 150 anos de guerra religiosa na Europa, que apontava o Cristianismo como
fator de divisões da sociedade, intolerante e excludente. Os iluministas buscavam um deus
unificador. Nessa época, na Inglaterra, nasce a maçonaria, com objetivos semelhantes.
Neste contexto, em 1789, a Assembléia Constituinte da França proclama solenemente a
Declaração dos direitos do homem e do cidadão. Em síntese, podemos dizer que a
modernidade designa um movimento revolucionário de idéias centrado no culto à razão.
A reação da Igreja católica, às vezes sem o necessário discernimento, foi muito
negativa. Com isso criou-se um distanciamento da Igreja em relação às ciências e ao
mundo da vida, da experiência humana concreta, enquanto teologia, liturgia e moral
foram racionalizadas. Como conseqüência, muitos, ainda hoje, quando buscam respostas
aos seus problemas existenciais, recorrem às seitas ou aos movimentos carismáticos.
Assim, se a Igreja católica, por um lado, condenou o modernismo, por outro, tornou-se
vítima de um racionalismo, negligenciando a mística e a experiência religiosa.
As tentativas de renovar a Igreja não obtiveram sucesso no concilio Vaticano I
(1870). O modernismo, geralmente identificado com a modernidade, foi condenado
como ―compêndio de todas as heresias‖ (Encíclica Pascendi, 1907). A condenação por
Pio X dos erros do modernismo criou a imagem de uma Igreja católica hostil à cultura
moderna em geral. Por outro lado, o próprio Vaticano I assumira postulados da

Coleção Filosofia – 175 75


modernidade, afirmando que ―a existência de Deus não só pode ser conhecida, mas
demonstrada com certeza‖ (DS 3538) e fundamentando princípios morais nas leis da
natureza com repercussão até o presente.
A modernidade insistiu na experiência pessoal pela qual cada pessoa percebe a
realidade de Deus. Tentou basear fé e moral na experiência subjetiva. Instaurou-se, dessa
maneira, uma dualidade entre fé e ciência, entre subjetividade (fé) e objetividade
(ciência). O anti-modernismo da Igreja católica foi identificado com anti-modernidade,
e, por isso, a Igreja passa a ser vista como conservadora e reacionária.
O espírito iluminista também repercutiu positivamente sobre a Igreja católica,
levando a teologia e a pregação às fontes da Sagrada Escritura e dos Santos Padres, reduzindo
o exagerado dogmatismo e favorecendo a busca de uma fundamentação mais crítica ao
próprio dogma, à liturgia e à moral. No concílio Vaticano II, a Igreja católica passou a ocupar
posição conciliadora e estimuladora em relação ao progresso, mas encontrou um espírito
acomodado. Sob o pretexto de não querer errar, os católicos se omitem muito.
A modernidade, por um lado, foi um processo longo que anulou certezas e
convicções herdadas do passado. Enfraqueceu os critérios de vida, de julgamento moral,
critérios antes buscados na religião. O homem moderno passou a viver com o sentimento
de um mundo à deriva, sem rumo, caracterizado pela anarquia do pensamento. O mundo
cindiu-se entre a lógica sistêmica e a experiência vivida, imperando no primeiro a razão
instrumental e técnica e, no segundo, a liberdade subjetiva.
A modernidade obteve sucesso indiscutível, modificando a mentalidade humana
do Ocidente. O sucesso, no campo da ciência e da técnica, modificou sistemas políticos
e, dessa forma, a convivência humana. Mas nem tudo é progresso, pois o homem ficou
com uma única certeza: o pensamento. O cogito cartesiano é solitário e tende a reduzir
toda a racionalidade à racionalidade científica. Ora, a razão não é só a instrumental. Ao
comunicarmo-nos não deixamos de ser racionais. Assim constatamos que a modernidade
significou, não propriamente um antropocentrismo, mas um raciocentrismo. Como já
advertia B. Pascal, o homem não é somente razão, mas também coração, sentimento e
emoção: ―O coração tem razões que a própria razão desconhece.‖
A vida humana passa a ser sempre mais racionalizada. A máquina é sua expressão
típica. Não exige religião, nem fé, mas competência de manipulá-la. A máquina precisa da
criação de um modelo para reproduzi-lo em série, modificando a relação entre capital e
trabalho. Aparentemente a razão triunfa. As revoluções pela conquista da liberdade
sucedem-se. A valorização do homem de assumir o rumo de seu próprio destino faz cada
qual agir e pensar por conta própria, favorecendo o egoísmo. O desejado progresso deixa
um número sempre maior de marginalizados para trás. E preciso reconhecer a autonomia e
o direito originário de pensar livremente. Isso, por sua vez, exige tolerância, também no
campo religioso. Mas a própria organização dos movimentos de solidariedade de classe
exige hoje revisão crítica. A modernização traz, desde Descartes, uma raiz individualista.
Usando livremente a razão, o indivíduo quer ver, julgar e decidir por si mesmo; o
indivíduo torna-se a medida para o homem e o centro de gravidade do mundo, O exercício
da autoridade, também na Igreja católica, passa por uma crise, pois o Iluminismo
instaurou-se como movimento de emancipação de toda a tradição e de todo o
autoritarismo, com exceção da própria razão. Mas também a razão tem seus limites.

76 Coleção Filosofia - 175


Se, desde meados do século XIX até meados do século XX, o homem ocidental
apostou na razão como caminho para solução de todos os problemas humanos, a partir
de meados do século XX percebe-se o surgimento de uma desconfiança contra a mesma.
Toma-se consciência de que é limitada. Esta mudança percebe-se na busca das religiões
e seitas. Desta maneira as ciências da racionalidade científica não cumpriram a promessa
de tornar a vida mais bela e melhor em busca do bem-estar e da felicidade de todos.
A tentativa de condenar as questões referentes a Deus, à alma e ao destino do
homem ao ostracismo vingou-se. O mito do progresso passou, não raro, a ser substituído
pelo mito do homem primitivo (natural).
A modernidade, com seu culto à razão, centralizou-se na subjetividade, O
antropocentrismo moderno apresenta algumas características:
1. No campo teórico, a ciência e a técnica têm pretensões universais
pela racionalidade e objetividade; na vida prática, o homem refugia-se no
individualismo e no subjetivismo. Instaura-se, assim, um divórcio entre a
vida profissional e a vida privada.
2. A ciência aplicada à técnica produz máquinas sempre mais
complexas. A máquina pode ser usada por aquele que tem competência e
habilidade. Quem tem esse conhecimento sente-se autônomo, esquecendo-
se da dimensão ética, social e religiosa.
3. O subjetivismo leva à reivindicação da liberdade individual, ao
egoísmo.
4. A idéia de progresso ao infinito dá, para o homem ocidental, a
ilusão de poder salvar-se a si mesmo, através da ciência e da técnica.
5. A tolerância leva a uma indefinição. Na vida prática, cada
indivíduo deve decidir por si e Deus por todos.
6. A modernidade unilateralizou as reivindicações em todos os
níveis, limitando-se aos direitos, omitindo os deveres. Quem ainda ousa
falar em deveres, exceto em alguns discursos kantianos?
7. Submetendo a tradição ao tribunal da razão crítica, o que vale é o
novo.
Se acompanharmos a Igreja católica ao longo da modernidade, constatamos que
não faltam belas doutrinas, mas esta evolução trouxe novos e agrava velhos problemas
sociais. A separação entre Igreja e Estado trouxe não só uma dupla legislação, mas esta
muitas vezes é contraditória. Cabe, então, ao sujeito decidir livremente. Mas tem ele
condições para decidir-se como cristão? Enquanto teólogos e filósofos se deleitam em
discutir sistemas hegelianos, kantianos ou outros, e os pastores se preocupam consigo
mesmos e sua posição ideológica, através de uma pregação vazia, a grande massa de
intelectuais bate em retirada progressiva das escolas e universidades, assumindo atitude
indiferente para com o Catolicismo. Não são discursos ideológicos de direita ou de
esquerda, nem uma teologia ou filosofia de acomodação que mostrarão novos caminhos
à Igreja e à sociedade. É preciso despertar uma inteligência crítica que ouse crer e
traduzir a mensagem de Cristo de maneira fidedigna aos homens de hoje, sem ideologia
partidária, e ouse o pensamento crítico construtivo.

Coleção Filosofia – 175 77


O concílio Vaticano II representa uma mudança profunda na atitude oficial da
Igreja em relação à modernidade, por exemplo, no reconhecimento do princípio da
liberdade religiosa e da autonomia da atividade técnico-científica. Proclama a dignidade
humana, de modo especial da liberdade:―A consciência é o núcleo secretíssimo e o
sacrário do homem onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa sua voz‖ (GS n. 16).
Aponta perspectivas possíveis para a solução dos grandes problemas. Mas, o concílio
Vaticano II realizou-se quando a ―modernidade‖ já se encontrava no ocaso, quando a
cultura ocidental já estava tomando consciência de seus limites; quando já se começara a
desconfiar da razão como critério único e supremo da verdade. Percebeu que o usufruto
do progresso tornou-se o privilégio para minorias, que agrediu o ambiente ecológico...
As conquistas da racionalidade e da técnica trouxeram novos problemas no campo social
e político, novas formas de tiranias totalitárias de direita e de esquerda. Enfim, o
racionalismo absoluto provocou uma profunda crise moral de dimensões universais e
uma crise de sentido para a vida.
O homem de hoje preocupa-se, em primeiro lugar, com saúde, natureza e prazer.
Valoriza emoções, sexo e dinheiro. No campo religioso, a nova geração procura
experiência com fortes emoções. Se não as encontra na Igreja católica, procura-as
alhures. Valoriza-se não só a razão, mas também o coração, o sentimento, o que dá
prazer ao indivíduo. Foi superada a era da razão absoluta, O racionalismo aparece como
um esqueleto, necessário mas não suficiente para viver e viver bem. Neste sentido, a
doutrina é necessária na Igreja, mas não suficiente para educar novas gerações. Urge a
vivência do amor. Ao olharmos para o campo social e político, constatamos um grande
divórcio entre a doutrina da Igreja e a realidade. Com Tiago, não-cristãos podem objetar-
nos: ―onde estão as obras de vossa fé?‖ Por outro lado, precisamos da teologia crítica,
mas esta não é suficiente para quem procura viver a fé no mundo de hoje, pois a fé do
povo é muito mais rica e mais ampla que as pequenas clareiras oferecidas pela teologia.

2 — Doutrina social católica

Tomando consciência da ruptura entre doutrina cristã e sociedade, pois a Igreja


católica tornou-se uma grandeza social ao lado de outras, a partir da segunda metade do
século XIX, os papas preocuparam-se com os graves problemas sociais através de
numerosas encíclicas como a Rerum Novarum de Leão XIII, Quadragesimo Anno, de
Pio XI (1931), Mater et Magistra, de João XXIII (1961), e tantos títulos mais
conhecidos que seu conteúdo. Também o concílio Vaticano II manifestou essa
preocupação na constituição A Igreja no mundo de hoje e em outros documentos, O que
se entende por doutrina social católica?
Por um lado, o racionalismo moderno, através da ciência e da técnica, possibilitou
ao homem tornar-se cada vez mais senhor da criação, planejá-la racionalmente e
manipulá-la a bel-prazer. Por outro, voltou-se contra o próprio homem. Bastaria lembrar
as guerras, os campos de concentração nazistas e as bombas atômicas. A racionalidade
científica hoje chega a seu limite na fome e miséria de grandes massas. Constatamos que
não basta o conhecimento. E preciso querer. E esta é uma questão ética.

78 Coleção Filosofia - 175


A ciência e a técnica reclamam um sentido. De que adiantarão se não estiverem a
serviço do homem todo e de todos os homens? Será preciso humanizar ciência e técnica.
A modernidade também produziu o desencanto da razão, pois não resolve problemas
fundamentais da existência; produziu o desencanto da política, pois nenhum sistema
apresenta uma utopia que satisfaça todas as aspirações do homem; produziu um
desencanto com as instituições tradicionais, pois perderam a solidez. Esta situação abre
um novo caminho para o anúncio do Evangelho e a busca de uma nova ordem social
inspirada na fé cristã em toda a sua pluralidade de articulações. Neste campo a Igreja
católica tem uma contribuição a dar através de sua doutrina social.
Por doutrina social pode entender-se a tentativa da Igreja católica de analisar as
estruturas fundamentais da convivência humana que se devem realizar em todo e
qualquer sistema social e político. Tal tentativa não propõe nenhum modelo concreto,
mas busca princípios que possam inspirar todos os modelos. Entre tais princípios
podemos citar o da solidariedade, do bem-comum e o da subsidiaridade.
O ensinamento social da Igreja é tão antigo como a própria Igreja. Entretanto a
preocupação de sistematizar este ensinamento cresceu a partir do século XIX. Nasce da
exigência evangélica do mandamento do amor e das exigências da vida em sociedade.
Constitui-se como doutrina, baseando-se na sabedoria e, sobretudo, nas ciências humanas,
sempre na perspectiva da fé e da ética, considerando, evidentemente, aspectos técnicos dos
problemas sociais. E, pois, um ensinamento voltado para a ação em função de circunstâncias
históricas. Como as circunstâncias históricas mudam rapidamente, tal ensinamento não é um
sistema fechado, pois não só deve estar aberto às novas questões, mas também deve ousar
juízos contingentes, porque não se pode contentar com a exposição de princípios sempre
válidos e válidos em todas as circunstâncias. Assim a Igreja católica oferece um conjunto de
princípios de reflexão, critérios de julgamento e diretrizes para transformar a sociedade em
mais humana, reduzindo a fome, a miséria e as injustiças sociais.
A Igreja parte do pressuposto de que a fé em Deus é condição, embora não
suficiente, para construir uma sociedade fraterna, pois somente onde os homens
reconhecem um Pai comum respeitar-se-ão como irmãos. Do contrário tentarão usurpar
o lugar de Deus para explorar os semelhantes. Onde os homens aceitam a Deus como Pai
não há espaço para totalitarismos e individualismos, pois ―um só é vosso Pai, e um só é
vosso mestre, e vós todos sois irmãos‖.
O judeu-cristianismo ensina que o homem foi feito à imagem e semelhança de
Deus. Isso lhe dá uma dignidade única. A eminente dignidade da pessoa humana se
caracteriza pela imanência, transcendência e singularidade. Pelo corpo, cada pessoa
encontra-se em comunhão com o universo material, pois o corpo é nossa maneira de ser no
mundo. Por outro lado, a pessoa, pelo espírito, transcende esse mundo material, o que
permite B. Pascal afirmar que ―o homem transcende infinitamente o homem.‖ Entretanto
não se deve esquecer que cada pessoa é, também, singular e única. Da eminente dignidade
da pessoa humana decorrem não só direitos, mas também deveres. Deus criou o homem
com a prerrogativa da liberdade. Só homens livres são responsáveis por seus atos.
As pessoas constituem a sociedade, pois ninguém se realiza sozinho. A dignidade
está vinculado o princípio da solidariedade humana. Cada qual deve contribuir, não só
exigir, com os semelhantes para o bem-comum. Sob este aspecto, a doutrina social

Coleção Filosofia – 175 79


católica opõe-se não só aos individualismos sociais e políticos, mas postula o princípio
da subsidiaridade. Segundo este, nem o Estado, nem a sociedade podem substituir a
iniciativa e a responsabilidade dos cidadãos e das organizações intermediárias, nem
eliminar o espaço necessário para seu livre desenvolvimento. A inteligência é um dom
de Deus para ser usado, e bem usado na transformação do mundo. Uma doutrina social
da Igreja católica pressupõe um compromisso dos católicos com o uso da razão no
desenvolvimento técnico-científico do mundo. Pressupõe a apropriação crítica das novas
conquistas a serviço do homem todo e de todos os homens.
Estruturas e sistemas sociais e políticos, antes de serem causa, são efeito da
inteligência e da ação humanas. Para discernir o que convém ou não, ou o que é
compatível com a fé cristã ou não, pressupõe-se o uso da razão e do bom senso. A
doutrina social não propõe um sistema particular, mas quer mostrar critérios que
permitem ver possibilidades e limites nos sistemas existentes para garantir que as
exigências da dignidade humana de todos e de cada um, à luz do Evangelho e da fé,
possam ser satisfeitas. Para isso, o cristão deve recorrer não só à fé, mas igualmente à
razão, surgindo o problema do relacionamento entre ambas. A visão cristã defende ―um
para todos‖ (contra o capitalismo) e ―todos para cada um‖ (contra o socialismo).

3 — O conceito cristão de fé

A fé ou crença é bem mais ampla que a ciência. Faz parte da vida. Nascemos e
crescemos numa circunstância interpretada e acreditamos que as coisas se comportam
desta ou daquela maneira. Formam-se, assim, as crenças individuais, de grupos, de
povos, de gerações. Nascemos para dentro de um sistema de crenças. Habituamo-nos a
elas. Há momentos em que se tornam problemáticas e surge a dúvida, o conflito.
Enquanto o homem crê, não precisa pensar. Antes de ser capaz do conhecimento
científico, o homem vive do conhecimento da fé nos pais, nos deuses ou em Deus.
Assim a crença não só fundamenta historicamente a própria ciência, mas está
presente na experiência cotidiana. Se hoje a concepção científica goza da preferência da
opinião pública, nada impedirá que amanhã ou depois uma nova geração dê preferência a
uma interpretação do mundo e da sociedade a partir do amor, de tipo religioso. Em sua
gênese, a fé é anterior à ciência, ao próprio uso da razão, sendo pressuposto da ciência. É
a questão do sentido para a própria existência humana. Na convivência humana articula-
se como confiança no outro. A fé religiosa orienta-se para Deus.
Antes de mais nada, do ponto de vista cristão, é dom de Deus. É o sim do
homem a Deus que se revelou no homem histórico Jesus como o Cristo. Religião e fé
não são sinônimos, pois há religiões nas quais a fé não é o fundamento e centro. Para o
cristão, a fé é o fundamento da existência, uma fé que se articula na vida concreta.
A fé cristã tem, por um lado, o motivo da obediência a Deus a exemplo de Abraão,
o pai dos crentes e de Maria, mãe de Jesus e da Igreja. Por outro, tem o motivo do êxodo e da
contestação do que já é em nome do que ainda não é. A fé de Abraão obriga-o a abandonar
seu país e entregar seu filho Isaac em sacrifício. Deixa a segurança (terra, bens) e aventura-se
com Deus em busca de novos caminhos, de rumos desconhecidos. E a fé sempre a caminho,

80 Coleção Filosofia - 175


a fé do peregrino rumo à meta. O mesmo motivo encontramos no exemplo de Maria. Desta
maneira a própria fé abre-nos para a surpresa de Deus, para o novo.
Crer em Deus é aceitá-lo como sentido da vida e do mundo. A fé situa-se no
plano do reconhecimento, pois aceita-se ou rejeita-se Deus, mas não se demonstra Deus
racionalmente. O Deus cientificamente demonstrado é um pobre deus. O Deus da fé
cristã é e permanece mistério, O mistério se reconhece, mas não se conhece. Entretanto
ninguém deixa de crer em Deus por causa da ciência. Esta também não demonstra sua
não-existência. Pode mostrar-se a plausibilidade da fé, pois não contraria a razão e faz
sentido. A fé se testemunha, pois envolve todo o nosso ser, razão e coração. Neste
sentido, a fé cristã deve ser decisão livre e responsável.
A fé cristã fundamenta-se em Deus, não nos homens. Estes podem decepcionar-
nos, Deus não. Crer em Deus significa encontrar um sentido e um valor profundo para o
mundo; significa encontrar-se com Ele através do mundo. Da mesma forma como é falsa
a alternativa ―ou Deus ou mundo‖ é falsa a alternativa ―ou fé ou ciência‖, porque seria
absurdo dizer sim a Deus Criador e não a sua criatura, que é o mundo. Por isso crer em
Deus significa crer no próximo, no mundo e em si mesmo.
Em síntese, o cristão, em nome da própria fé, deverá ser, não apenas um bom
profissional, mas deverá procurar ser o melhor cientista, o melhor pesquisador. Por seu
dinamismo constitutivo, a fé cristã tende a unir a santidade e a competência. A fé
impulsiona o cristão a transformar o mundo, a consagrá-lo pela pesquisa e pelo trabalho
como o sacerdote consagra a hóstia no altar. Se é difícil crer em Deus, mais difícil é
viver sem Ele, pois dizer sim a Deus faz sentido e não diminui mas aperfeiçoa o homem
em sua humanidade. O sim. pronunciado no silêncio orante à proposta de Deus,
engrandece o próprio homem e o impulsiona ao bom uso de sua razão, pois crer em Deus
de modo algum significa cruzar os braços e esperar que as coisas aconteçam por si ou
que Deus faça um milagre. Antes é ter consciência de que normalmente Deus age no
mundo através de sua criação, ou seja, através de nós, de nossa inteligência.

4 — Relação entre fé e razão

Na Europa medieval dominava o Cristianismo. O que mais absorvia os homens


era a religião. Construíram-se catedrais com torres apontando para o alto. Na sociedade,
a hierarquia eclesiástica ocupava o topo. A língua comum era o latim. Realizavam-se
guerras (cruzadas, inquisição) por motivos religiosos. Toda a vida humana estava
orientada para o além. Assim a religião gozava de um prestígio quase total.
Hoje mudou muito. O que domina no Ocidente, e cada vez mais também no
Oriente, é a crença na ciência e na técnica. Embora os cientistas não estejam no topo,
lugar ocupado pelos políticos e empresários, exercem a função de assessores, integrados
em equipes de técnicos. Nesse mundo, a língua comum é a ciência, a matemática. Se
outrora, nas cruzadas, se morria em nome da fé, hoje se morre em nome da ciência e da
técnica, como em acidentes automobilísticos, acidentes de usinas nucleares, acidentes de
aviões etc. Multidões morrem de fome, porque não têm trabalho, pois este é feito pelas
máquinas. O homem voltou-se para o bem-estar neste mundo, para o qual a ciência e a
técnica conquistaram prestígio. Há quem diga que a nova moeda no século XXI é o

Coleção Filosofia – 175 81


conhecimento. Neste mundo novo, os teólogos parecem muito ausentes e omissos,
quando não hostis a ele. Falta a presença e o discernimento crítico à luz da fé cristã.
A discussão do relacionamento entre fé e razão é tão antiga como a própria
Igreja. S. Pedro, em sua primeira epístola, adverte os cristãos ―a saberem dar as razões
de sua fé‖ (3, 15). Na patrística, por vezes, encontramos resquícios de fideísmo. Neste
sentido, poderia citar-se a afirmação de Tertuliano “credo quia absurdum”. Tal postura
reencontramos em M. Lutero, no século XVI.
Desde Irineu de Lião é constante uma linha de pensamento que, sem identificar
fé e razão e sem subordinar uma à outra, busca uma plausibilidade racional para a fé.
Quem deu formulação clássica a essa questão foi Tomás de Aquino, na Idade Média.
A doutrina do Cristianismo foi elaborada durante séculos. Por outro lado, na
Idade Média, a filosofia grega passou a ser recuperada, no Ocidente, através de traduções.
Pela primeira vez o Cristianismo defrontou-se com um conjunto sistemático de filosofia.
Urgia demarcar os limites da teologia e da filosofia e as relações entre ambas.
Tomás de Aquino primeiro distingue as duas e depois as reconcilia. Como
cristão, aceita o ensinamento da revelação e a ela se submete na fé. Para distinguir fé e
razão, Tomás de Aquino recorre à distinção entre ordem natural e ordem sobrenatural.
Para ele, trata-se de duas ordens distintas, mas não opostas, nem contraditórias, pois o
Deus da criação e o Deus da revelação é o mesmo. Ambas se complementam em
harmonia, pois a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa.
Tomás de Aquino distingue uma dupla ordem de conhecimento: a) natural, que
é produto da razão humana, tem suas leis e seus métodos próprios. b) sobrenatural, que
não procede da razão humana, mas da revelação de Deus. Este conhecimento, baseado
na revelação, leva a numerosas verdades das quais algumas estão ao alcance da razão e
outras transcendem seus limites. O crente aceita essas verdades em virtude do dom
sobrenatural da fé. Ambos conhecimentos, em última análise, originam-se de uma e
mesma fonte, que é Deus. Por isso não pode haver contradição entre ambos. A filosofia,
por sua vez, é autônoma em seus procedimentos racionais como é completa em sua
ordem. Mas ambas ordens, filosofia e teologia, podem beneficiar-se de uma colaboração
mútua. A revelação pode orientar a razão. A razão também pode servir à fé, colocando-
se a seu serviço para esclarecer, explicar e defender os mistérios da revelação. Surge,
dessa colaboração mútua, uma ciência tipicamente cristã, que é a teologia.
A partir de Tomás de Aquino passa a tratar-se, na Igreja Católica, a relação
entre fé e razão nos seguintes termos:
a) Cristianismo e filosofia são coisas especificamente distintas em
virtude de seus objetos e motivos formais. O Cristianismo é uma religião,
baseada no assentimento da fé em Deus como sentido da existência humana
e do mundo. A filosofia e, por conseqüência, a ciência é conhecimento
adquirido pela razão. A fé baseia-se na autoridade de Deus que se revelou,
embora quem crê, é o homem como um todo, com coração e razão. Na
filosofia e nas ciências trabalhamos à luz natural da razão. Enquanto
cristãos, olhamos o mundo à luz da fé. O cristão crê as verdades da fé; o
filósofo e o cientista sabem o objeto sobre o qual trata seu conhecimento, O
assentimento do filósofo e do cientista a um objeto de seu conhecimento

82 Coleção Filosofia - 175


acontece por intuição ou por demonstração; envolve o sujeito enquanto
racional. O assentimento da pessoa a um objeto da fé é livre. A ciência e a
filosofia, a rigor, não têm partido político, nem religião. Exigem
competência racional e prática. O cientista e o filósofo podem ser cristãos ou
não. O conhecimento científico ou filosófico é verdadeiro ou falso. Por isso
deve evitar-se querer esconder a ignorância científica sob o manto da fé. O
saber da ciência e o saber da fé são distintos. Este último envolve a pessoa
toda. Trata-se de duas ordens de conhecimento que não devem ser
confundidas. O conhecimento filosófico e científico pode tornar-se um
auxiliar importante ao crente para clarear os preâmbulos da fé, para explicar
e compreender os dogmas e para defendê-los. Quando se quer reduzir a
ciência à fé, facilmente se cai num falso fideísmo, renunciando à razão, ou
se reduz tudo à razão, caindo num racionalismo absoluto.
b) Ciência e fé, Cristianismo e filosofia, podem coincidir
parcialmente em seu objeto material, mas são dois campos distintos quanto
a seus motivos formais de assentimento à verdade e quanto à fonte de suas
certezas. A certeza do cristão apóia-se na fé, e a do filósofo na razão.
c) As relações entre fé e razão podem ser diversas. Podem ser de
neutralidade, quando a razão procede com método puramente racional, como é
o método próprio das ciências, prescindindo da fé. As relações podem ser
ainda de hostilidade ou de harmonia. Diz João Paulo II na Fides et Ratio:
―Confirma-se assim, uma vez mais, a harmonia fundamental entre o
conhecimento filosófico e o conhecimento da fé: a fé requer que o seu objeto
seja compreendido com a ajuda da razão; por sua vez a razão, no apogeu da
sua indagação, admite como necessário aquilo que a fé apresenta‖ (n. 42).

Conclusão

Não existe nem pode existir uma doutrina social pronta e acabada, uma vez que a
sociedade encontra-se em mudança permanente. E essas mudanças são imprevisíveis,
pois dependem do livre uso que o homem faz de sua inteligência e de suas conquistas.
Para elaborar uma doutrina social católica, não basta ler encíclicas e
comentaristas. Pressupõe-se, de um lado, um conhecimento profundo da Bíblia e da
tradição da Igreja; por outro, um conhecimento das filosofias e das ciências. Só assim se
conseguirão elaborar princípios para uma transformação da sociedade atual numa
sociedade mais humana e mais fraterna. Para esta elaboração de uma doutrina social
católica. vale o que João Paulo II diz na introdução da encíclica Fides et ratio: ―A fé e a
razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a
contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de
conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-o e
amando-o, possa chegar à verdade sobre si próprio‖.
O maior pecado dos católicos hoje é, sem dúvida, a omissão, isto é, não o mal que
fazem, mas o bem que deixam de fazer. Neste mundo urge que os católicos despertem
para lutar contra o pessimismo e a acomodação e anunciem urna grande esperança. Neste

Coleção Filosofia – 175 83


mundo da ciência e da técnica, Cristo atua amorosamente com sua graça. Basta ter olhos
para ver. Prometeu ―estarei convosco até a consumação dos séculos‖. Ora, se Cristo está
conosco, quem poderá contra nós?

84 Coleção Filosofia - 175


FÉ E SIGNIFICADO DAS CIÊNCIAS
Ninguém, a rigor, crê ou deixa de crer em Deus por causa da ciência. De
maneira análoga, ninguém deixa de ser cientista por causa da fé ou descrença. O sujeito
do conhecimento científico é o homem em sua racionalidade. O sujeito da fé é o homem
em sua globalidade: razão, coração, sentimento e emoção. Em nossa civilização e cultura
ocidentais, nos tempos modernos, entretanto, reduziu-se o homem unilateralmente à
razão e esta, por sua vez, à razão científica ou instrumental. Dessa maneira, com
Descartes não houve, propriamente, uma viragem antropocêntrica mas raciocêntrica. O
conhecimento científico e a fé designam diferentes atividades do ser humano, que
certamente não se excluem, mas podem completar-se mutuamente.
O conhecimento científico obteve aplicações com grande benefício para a
humanidade. Aumentou consideravelmente a expectativa de vida; para muitas doenças
encontrou cura ou prevenção, e o cuidado pela saúde melhorou em muito. No campo da
agricultura proporcionou meios de maior produção de alimentos para a população. O
desenvolvimento tecnológico e a exploração de fontes de energia libertam a humanidade
do trabalho mais árduo. As novas tecnologias de comunicação e informação trouxeram
oportunidades sem precedentes para a interação entre povos e indivíduos.
Por outro lado, os benefícios conquistados ainda se encontram distribuídos de
maneira desigual, estabelecendo um abismo entre os países industrializados e os ainda
em desenvolvimento. Além disso, o avanço científico e tecnológico também causou uma
degradação do meio ambiente, tornando-se motivo de exclusão social. O progresso
científico e tecnológico também possibilitou a construção de armas sofisticadas,
incluindo as atômicas, biológicas, químicas etc., com o potencial de destruir a vida em
massa, colocando em risco todo o planeta. Mas, a ciência e a técnica também poderão
exercer um papel importante para a paz entre os povos.
Por isso, quando hoje prevemos avanços gigantescos na ciência, urge um debate
democrático, sobre os aspectos éticos, culturais, econômicos e ambientais do
conhecimento científico. Neste trabalho, entretanto, ocupar-nos-emos com o velho tema
da relação entre fé e ciência.
O que significa ou pode significar a fé para a ciência?

1 — Gênese da fé e da ciência

O acesso ao conhecimento científico é parte do direito à educação e à


informação do povo. A educação na ciência é essencial ao desenvolvimento humano.
Do ponto de vista da gênese, a fé precede a ciência e é muito mais abrangente.
A ciência emerge do mundo da crença. Antes do uso da razão, a criança crê nos pais e
nos adultos. Entra em crise, quando se dá conta de que o pai não é tão forte e poderoso
como imaginava; quando percebe a fragilidade da mãe e dos adultos em geral.

Coleção Filosofia – 175 85


O conhecimento científico emerge lentamente do mundo das crenças, e a
aquisição do conhecimento científico é um processo vagaroso e permanente, nunca
completo. A ciência abre pequenas clareiras no vasto mundo da vida, um mundo sempre
mais amplo e mais rico que o da pura razão. A própria razão científica é impulsionada
pela crença, crença em nossa capacidade de clarearmos racionalmente o mundo da vida,
e sua abrangência sempre será limitada.
Há, na pessoa humana e na humanidade, necessidades espirituais que a ciência e
a tecnologia não têm condições de satisfazer. Do ponto de vista histórico, a religião
nasceu primeiro e dela nasceu a ciência. Mas seria temerário afirmar que alguma vez a
ciência e a tecnologia substituíram a religião enquanto crença, e nada indica que, algum
dia, por mais longínquo no futuro, venham substituí-la.
E certo que, no caminho histórico da humanidade, a ciência anulou e relativizou
certezas e convicções herdadas do passado nas pessoas, enfraqueceu os critérios de vida,
de julgamento moral e, nos tempos modernos, forneceu uma orientação só
aparentemente segura. O homem moderno passou a viver com o sentimento de um
mundo à deriva, sem rumo, caracterizado pela anarquia do pensamento, apostando no
conhecimento científico e na tecnologia como solução de todos os seus problemas. Isso
aconteceu, sobretudo, a partir de meados do século XIX. Mas, a partir de meados do
século XX, este mesmo homem, no Ocidente, passou a desconfiar da razão científica,
reconhecendo sempre mais os seus limites. E no mundo da vida reagiu, com a liberdade
subjetiva. Reagiu de uma maneira rápida e nunca dantes imaginada, e as crenças
religiosas tomaram conta. Nunca a crença e as religiões ocuparam espaço tão marcante
no passado como em fins do século XX.
A razão científica conduziu o homem, através da ciência e da técnica, a cada
vez mais sentir-se senhor da realidade, a planejá-la racionalmente e manipulá-la a seu
bel-prazer. Num primeiro momento, até pode parecer que, na cultura e civilização
modernas, não há mais lugar para a vida cristã, pois o Cristianismo caiu na suspeita de
ser a ideologia de uma ordem superada a travar o progresso.
Na sua obra, conhecida pela posteridade como Metafísica, Aristóteles constata:
―Todo homem naturalmente deseja conhecer‖. Descreve como essa característica
humana se manifesta continuamente e indaga sobre as diversas formas de conhecer: a
experiência, a técnica, a ciência, a sabedoria... E através dos tempos, costuma-se falar do
conjunto dos saberes: conhecimento religioso, filosófico, científico, técnico, popular etc.
São muitas as formas pelas quais o homem tenta satisfazer sua ânsia de conhecer.
Nenhuma pessoa encontrou todo o seu saber por si mesma. Cada pessoa recebe
conhecimentos por tradição, pelo ensino, através da leitura etc. Um dia, perguntaram a S.
Agostinho como se deveria comportar um cristão em relação ao conhecimento não
provindo da Revelação cristã. Respondeu que a verdade é do Senhor, onde quer que se
encontre. É tarefa de cada qual discernir o que é e o que não é verdade.
Há mais de dois mil anos, Aristóteles concebeu a ciência como conhecimento
universal, necessário e certo das coisas. Para ele, a ciência é conhecimento da realidade
em seus fundamentos ou causas. Como a realidade é complexa, os homens distinguem
aparência e realidade, a realidade imediata e a subjacente ou última. Tudo isso trará
mudanças no modo de enfrentar o conhecimento da realidade e no sentido da ciência, na

86 Coleção Filosofia - 175


classificação e na relação dos saberes. Enfim, uma ciência será uma prolongação do
conhecimento natural espontâneo.
Nos tempos modernos, por exemplo, em Galileu, surge a tendência de medir
quantitativamente os fenômenos. Com isso, surgem também novas posturas para unir o
experimental com o inteligível, dentro do pressuposto de que na natureza há
regularidade. Alguns vêem essa regularidade pressuposta como expressão da vontade do
Criador. Outros admitem que a ciência apenas estuda o visível, em geral o sensível.
Surge a experiência experimental: seus princípios, seus métodos, fundando suas
conclusões na experiência.
A ciência experimental cada vez mais se realiza em laboratórios. Dessarte
transcende a mera observação. Enquanto a ciência antiga aceita a realidade em suas
aparências, tal qual se apresenta aos sentidos, a ciência moderna experimental estuda os
fenômenos nos quais a realidade sensível foi preparada no laboratório, com o objetivo de
torná-la acessível à mensuração. Com isso pretende-se obter a matematização de um
conteúdo do conhecimento sensível, não como aparece na natureza, mas como resultante
da manipulação de laboratório. Daí Karl Marx poder afirmar que ―não basta observar o
mundo. É preciso transformá-lo‖.
Dessa maneira surgem muitas possibilidades de estudar o objeto da ciência.
Muda o significado da ciência. Multiplicam-se as concepções de mundo e dos métodos
da ciência, p. ex., no positivismo comtiano, no empirismo...
Se, no campo teórico da ciência, se universalizam as pretensões da
racionalidade e objetividade, na vida prática, as pessoas refugiam-se num individualismo
subjetivista, instaurando-se um divórcio entre sua vida profissional e a vida pessoal. O
objetivismo, no campo científico, provocou um subjetivismo prático do cientista, de
modo especial no campo ético e religioso.

2 — Autonomia da ciência

Aristóteles classificou as ciências em três gêneros: a) teoréticas: física, matemática


e filosofia primeira ou metafísica; b) práticas: ética e política; c) poéticas: as artes em geral,
tanto as belas como as úteis. Para Aristóteles, a Lógica é instrumento das ciências.
René Descartes distingue ciências do Espírito e ciências da Matéria. Mas o
desenvolvimento da ciência moderna e contemporânea urgiu a necessidade de
reclassificar os conhecimentos, colocando a questão específica da autonomia. Com essa
última questão entende-se que cada ciência possui leis, campos e métodos que a
distinguem e devem ser respeitados e, sobretudo, a independência em relação a outras
formas de saber, como a religião, a filosofia, a teologia, a política. A ciência somente
aceita o que decorre dos métodos e princípios próprios.
O que significa essa autonomia? E a ciência absoluta?
O cientista, conseqüentemente, a ciência, também deve respeitar leis, direitos
humanos, deveres éticos. Portanto, a atividade científica tem limites éticos e sociais, como é o
caso de experimentos genéticos em seres humanos. Os direitos e deveres humanos estão
acima do experimento científico. Dessa maneira a autonomia externa torna-se inaceitável.

Coleção Filosofia – 175 87


Hoje reconhecemos que habitamos todos o mesmo planeta e todos somos parte
da biosfera. Ao mesmo tempo adquirimos a consciência de que o futuro da humanidade
depende intrinsecamente da preservação dos sistemas básicos globais da vida e da
sobrevivência de todas as formas de vida. Todas as nações hoje devem usar o
conhecimento natural e das ciências sociais para atender as necessidades humanas sem
desperdícios. A ciência deverá estar a serviço da humanidade como um todo,
contribuindo para uma compreensão mais profunda da natureza e da sociedade, para uma
melhor qualidade de vida para cada um, com um meio ambiente saudável e produtivo
para gerações presentes e futuras.
A pesquisa científica e o uso do conhecimento científico devem respeitar os
direitos humanos e a dignidade dos seres humanos.
Quanto à autonomia interna deve reconhecer-se a cada ciência sua conformação
interna. Mas isso significa que cada ciência por si mesma deve dar razão dos princípios
nos quais se fundamenta e dos métodos que emprega. Ou deve solicitar essa tarefa a uma
classe superior de conhecimento?
Na Antigüidade e na Idade Média, reconhece-se a diversidade de ciências
com métodos próprios, mas atribui-se à Metafísica, enquanto ciência primeira, a tarefa
de justificar as demais.
No século XIII, estabelece-se uma relação de dependência precisa e definida em
relação à filosofia. Kepler, p. ex., estabelece as condições de inteligibilidade de uma
teoria científica; Newton define as noções filosóficas de espaço absoluto e tempo
absoluto em vista da aplicação mecânica; Leibniz propõe o cálculo infinitesimal
vinculado a uma teoria filosófica do infinito; Descartes apresenta sua árvore da ciência,
cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física e os ramos as ciências principais. Nessa
época clássica reconhece-se, pois, uma explícita relação de dependência da ciência
relativamente a certos princípios e conceitos de natureza filosófica.
No século XVIII, a ciência busca metodicamente sua independência em
relação à filosofia. Laplace tenta purificar os métodos científicos, cortando todo o
vínculo com a filosofia.
No século XIX, proclama-se o dogma da independência da ciência. Adverte-se
o cientista: ―Físico, cuida-te da metafísica!‖
Hoje surge a surpresa. Libertando-se de todo o compromisso com a filosofia, a
ciência atrapalha-se com questões filosóficas no interior de sua própria atividade. Assim,
alguns cientistas tentam tratar questões de natureza filosófica, que surgem no interior da
própria ciência, como definição de conceitos etc.
Os cientistas perseguem um saber exclusivo de tipo racionalista, absolutizando
esta ou aquela ciência. Em vista das conseqüências de tal procedimento fechado, hoje se
pode perceber maior abertura dos cientistas em relação à filosofia, à religião e à teologia.
Constatamos que o próprio conceito de ciência não é unívoco. As ciências
formais, como é o caso da lógica pura e da matemática pura, tratam de entes ideais; que
as ciências empírico-formais se servem das primeiras, mas não abrangem todo o
universo material. Por isso falamos também das ciências hermenêuticas que tratam da
interpretação do ser humano sob os mais diversos aspectos.

88 Coleção Filosofia - 175


3 — Limites do conhecimento científico

O conhecimento científico é fragmentário. Em todo o trabalho científico


delimita-se um assunto, coloca-se um problema definido. Ora, colocando problemas
definidos, não cabe esperar uma conclusão global. Assim, a imagem que as ciências hoje
nos oferecem do mundo assemelha-se a um espelho quebrado. Quando nele nos olhamos
também o nosso rosto aparece fragmentado.
O conhecimento científico e a tecnologia muitas vezes esquecem a dimensão
ética, social e religiosa. Assim todos nós sabemos que a ciência, hoje, tem condições
para alimentar dignamente uma população duas vezes maior que a atual de nosso
planeta. Sabemos como produzir alimentos. Mas não basta produzir alimentos e deixá-
los apodrecer nos armazéns. E preciso reparti-los. Essa não é uma mera questão
científico-tecnológica. E, antes de tudo e sobretudo, uma questão ética. Ora, também é
sabido que, nos países latino-americanos, se joga muita comida nas lixeiras. O que
alguns jogam no lixo falta na mesa de outros.
A fragmentação da ciência levou à especialização. O especialista é aquele que
sabe quase tudo sobre nada e quase nada sobre o todo.
Por isso cabe questionar alguns pressupostos fundamentais do conhecimento
científico. A idéia de que a obra de Deus é racional e pode ser descrita sob a forma de
leis universais possibilitou ou, pelo menos, facilitou a investigação científica.
Certamente foi um estímulo para a difícil tarefa dos cientistas. Nesse sentido, podemos
reconhecer que a idéia cristã sobre as relações entre Deus, o homem e o universo
constitui o fundamento teórico da atitude científica. Até se pode compreender por que as
tentativas de elaborar a ciência experimental não obtiveram êxito na Antiguidade. De
fato, a base da ciência moderna sempre foi um realismo metafísico e gnosiológico.
O caminho da ciência experimental é um realismo no qual se admite a
racionalidade do mundo, uma ordem racional da natureza, que tal ordem natural pode ser
conhecida pela inteligência humana. Tal realismo só se impôs, como uma convicção
generalizada, graças ao Cristianismo. Uma cultura inteira admitiu que o mundo tem que
ser racional, por ser obra de um Deus infinitamente inteligente e que o homem tem a
capacidade de conhecer essa ordem racional, por ter sido criado à imagem e semelhança
de Deus. Por isso pode-se dizer que o rumo da ciência e do conhecimento racional de
Deus é a condição que possibilitou o moderno desenvolvimento científico e
compreende-se por que muitos dos maiores cientistas foram crentes convictos.
Parece-me, portanto, errôneo dizer que a ciência experimental moderna nasceu
à margem da teologia ou apesar dela. Desenvolvida, não se opõe a ela, nem à fé cristã.
Com esse pressuposto, na teologia católica defende-se a tese de que ciência e fé
são duas formas de conhecimento diferentes entre si, mas não se opõem, não se excluem,
nem se substituem mutuamente. No exercício da função crítica, uma pode exigir maior
rigor da outra.
Até certo ponto, poderia dizer-se que o mesmo caminho racional, que a ciência
segue, é o que conduz ao reconhecimento da existência de Deus e da alma espiritual humana

Coleção Filosofia – 175 89


4 — Que significa crer?

Como cristãos, sabemos que o fundamento da existência cristã é a fé e o


batismo. O que significa ―crer‖ ou ―ter fé‖?
Muitos definem a fé como atitude de ―considerar como verdadeiras proposições
que não conseguimos demonstrar cientificamente‖, qual é o caso dos dogmas católicos.
Por essa razão, crer parece uma atitude de menoridade, uma atitude infantil de quem
obedece à autoridade, por falta de coragem de servir-se de sua própria razão.
Em relação a nossos semelhantes, dependemos da confiança e da fé. Que
alguém nos quer bem ou até nos ama, em última análise, cremos. A fé se testemunha.
Um testemunho digno de crédito é uma pessoa em que se pode depositar confiança até
ao ponto de acreditar em suas palavras. Tem-se fé, mas pode-se ser uma pessoa de
muita ou de pouca fé. Assim, na fé é difícil separar a atitude do crente, do sujeito que
crê, do ―objeto‖ no qual crê.
Na tradição católica, muitas vezes surgiu o conceito de fé como ciência
deficiente. Certamente a fé é graça de Deus. Mas não é um sacrifício do intelecto. E um
ato humanamente responsável, ou seja, tem sua dimensão racional, como no-lo ensina o
apóstolo S. Pedro: ―Estai sempre prontos a responder para vossa defesa a todo aquele
que vos perguntar a razão de vossa esperança (fé)‖ (1 Pd 3, 15).
A concepção da fé como ciência deficiente também oculta determinado
conceito de ciência, restrita à ciência daquilo que é empírica e racionalmente
demonstrável. Ora, esse ideal de ciência fracassa onde se trata do sentido do todo.
Quando falamos em fé, situamo-nos na profundidade de nosso ser e do sentido de nossa
existência. O sujeito crente é racional, mas não se reduz à razão e à vontade. A fé não é
uma ciência de segunda categoria ou saber provisório. É. antes, um ato originário, a
dimensão da esperança e do sentido, que se abre na própria ciência como condição de
possibilidade e de sentido último. A fé coloca-se onde se trata do projeto global da
existência humana. Fé e descrença situam-se no mesmo plano, de modo que ninguém se
torna descrente por causa da ciência que jamais provará a não-existência de Deus. Crer
em Deus significa reconhecê-lo ou aceitá-lo como sentido último de nossa vida.
A fé é um ato pessoal, não um ato isolado da razão ou da vontade. E um ato
da pessoa como um todo, Cremos em pessoas, embora nos decepcionem muitas vezes.
Por que tanta dificuldade para crer em Deus? Crer significa apoiar sua vida no Deus
vivo, entregar-se a Ele.
No dia-a-dia vivemos mais da crença do que da certeza científica. A fé é um
caminho. Crer, teologicamente, é aposta ou confiança no futuro de Deus. A fé não é pura
razão, mas tem uma dimensão racional, pois o sujeito da fé é um ser racional.
A fé judaico-cristã sempre tem, não só um momento de aposta e risco, mas
também de êxodo e contestação. A exemplo do patriarca Abraão, no Antigo Testamento,
e de Maria, a mãe de Jesus, o crente nunca pode estar plenamente satisfeito com as
coisas como já são, pois somos peregrinos, imperfeitos, mas perfectíveis. Aprendemos
dos erros, das falhas e faltas, para melhorar.
A fé produz obras. S. Paulo diz-nos que a fé vem do ouvir a Palavra de Deus, mas
atua na caridade. S. Tiago, em sua carta, pergunta: ―Onde estão as obras de vossa fé?‖ (Tg

90 Coleção Filosofia - 175


2, 14). Se a fé é o fundamento da existência cristã, ela não existe sem frutos. Cristo falou
mais vezes da fé que do amor. Pela caridade atuante conhecer-se-á a comunhão com Deus.
Certamente a fé é, antes de tudo, graça de Deus, mas, ao mesmo tempo, tarefa do homem.
É a tarefa de descobrir e viver Deus aqui e agora, em toda parte e sempre.
Ter fé ou crer não significa apenas certeza ou certeza plena. O crente, a todo
momento, pode ser assaltado pela dúvida: será que não me engano a mim mesmo?
Será que não estou sendo enganado? A Sagrada Escritura está cheia de grandes figuras
que passaram por crises de fé: Abraão (Gn 22), o povo israelita no deserto (Ex 17, 4-
7), os profetas (1Rs 19), Jeremias (Jr 15, 10-21), o apóstolo Tomé. Mas a fé fundada
em Deus é capaz de superar a dúvida.
A fé bíblica tem, não só uma dimensão pessoal, mas também comunitária e
eclesial. Não se é cristão sozinho. Da mesma maneira como nascemos para dentro de uma
comunidade lingüística, cultural e religiosa, pela fé e pelo batismo somos introduzidos para
dentro de uma comunidade. Sob esse aspecto, a fé sempre pressupõe o testemunho de
outrem. O testemunho tem uma estrutura diádica. Envolve todo o nosso ser. Se declaro a
alguém: ―Eu te amo!‖, esta declaração vale enquanto estou com todo o meu ser por ela.
Diferente é a prova científica, que tem uma estrutura triádica: ―Eu demonstro algo a
alguém‖. Tal declaração não envolve todo o nosso ser, mas somente nossa razão.
Como cristãos, hoje estamos ligados historicamente a Jesus Cristo, através do
testemunho da Igreja. Assim, a fé nos situa para dentro de uma tradição e, ao mesmo
tempo, funda tradição. Chega a nós, através de outros. Não é, pois, invenção subjetiva.
Baseia-se no ouvir. Ouvimos dizer o que não vemos. Através da palavra da Igreja,
ouvimos a palavra de Cristo, revelando-nos o Pai e, na palavra humana de Cristo,
ouvimos a Palavra de Deus.
A fé começa, quando procuramos Deus como sentido para a nossa vida.
Conhece etapas de crescimento, mas sempre será imperfeita nesta vida. Por isso sempre
perfectível. Jesus, para o cristão, é o ―autor e consumador de nossa fé‖ (Hb 12, 2).
Nossa fé depende da tradição, porque tem um conteúdo historicamente revelado
que chega a nós, através do testemunho histórico da Igreja. Nesse sentido, a fé implica
um elemento institucional, ou seja, tem uma forma essencialmente eclesial, pois
pressupõe a convivência com outros e para outros, na comunidade de crentes.
A fé tem uma dimensão profundamente humana. E o homem quem crê. O
concílio Vaticano I (1870) ensina que a fé é um “obsequium rationi consentaneum”, ou
seja, corresponde, de alguma maneira, à razão. Mas não se pode reduzir a razão à fé,
nem a fé à razão. A filosofia e a ciência partem do dinamismo humano de busca. A fé
baseia-se no Deus que se revelou. Nesse sentido, a fé é um ato verdadeiramente humano.
Como tal deve ser razoável, isto é, deve ser intelectualmente responsabilizada. Do
contrário, seria indigna, não só do homem, mas também de Deus.
A fé articula-se dentro dos limites da linguagem humana. Esta tem o caráter da
mutabilidade histórica. Por isso, é importante sua tradução permanente para dentro de
novas situações. A linguagem da fé não é do tipo empírico-objetivo. Leva-nos para além
da dimensão estritamente empírica.
O ideal da verificação empírica de todas as nossas afirmações é impossível no
dia-a-dia. Dependemos muito mais de realidades não-verificáveis empiricamente. Blaise

Coleção Filosofia – 175 91


Pascal dizia: ―Somos incapazes de saber algo com certeza e ser totalmente sem certeza‖.
No campo existencial sempre transcendemos a certeza objetiva da ciência. A mania de
querer reduzir a realidade toda à ciência objetiva é a expressão de uma cultura tardia,
exausta, decadente, cética, resignada, mas já superada do Ocidente, à qual falta a
vitalidade do risco e da aventura.
A fé é obra inseparável da graça divina e dos dons do Espírito Santo, da
liberdade humana, da confiança obediente a Deus, que se revelou, e do reconhecimento
dócil da verdade divina, do compromisso da pessoa e dos atos da inteligência e da
vontade, da atitude subjetiva e do conteúdo objetivo da revelação divina.
A fé emerge do núcleo da pessoa humana, onde se nos colocam perguntas, como:
donde venho e para onde vou? O problema do sentido da vida e do mundo une-nos, de
maneira solidária, com todos os homens. O homem é o lugar, no qual se realiza a
transcendência ―para cima‖ e ―para frente‖. Na fé, o homem transcende o mundo para um
mais. Vale aqui o velho axioma: ―A fé não destrói a natureza, mas a eleva‖. Assim
podemos dizer que a fé é a atitude específica do homem como ser aberto para o todo, onde
―o homem transcende o homem por um infinito‖, na feliz expressão de Blaise Pascal.
O homem abre-se para o mistério infinito. Mais do que conhecê-lo, no sentido
estrito da palavra, pode reconhecê-lo, aceitá-lo ou rejeitá-lo. A ciência conhece
problemas e os resolve. Se a ciência não nos conduz, por via de demonstração, até Deus,
é porque Deus não é mera conclusão científica.
Aqui, a meu ver, situa-se um dos limites mais delicados e críticos de toda a
teologia absorta unilateralmente no social, hoje, como parece ser o caso da Teologia da
Libertação. Mas, por outro lado, este também me parece ser o perigo dos espiritualismos
neopentecostais, nos quais a mediação histórico-concreta da salvação é insignificante,
pois tudo se resolve no campo espiritual. Atribui-se todo o mal do mundo ao diabo. Para
curar doenças, não mais se precisa do médico. Basta exorcizar o diabo, para ser liberto, e
as doenças todas estão curadas.
Se, no primeiro caso, a preocupação se volta única e exclusivamente para o bem
material neste mundo, o objetivo, no segundo caso, parece ser o mesmo. Apenas o
caminho é outro. No primeiro caso, busca-se o bem-estar nas transformações sociais, e,
no segundo, no campo espiritual.
Ora, como cristãos, professamos que Deus se fez homem em Jesus de Nazaré.
Portanto, não podemos menosprezar o mundo material, que é obra sua. Mas também não
podemos absolutizá-lo, pois é caminho para nos conduzir ao Criador. No homem-Deus,
Jesus de Nazaré, Deus não só se nos revela, mas, ao mesmo tempo, se nos oculta.
A fé em Deus dá sentido e profundidade ao nosso ser humano. Cabe-nos evitar,
de um lado, o imanentismo, que quer fundamentar a fé exclusivamente a partir do
homem, negligenciando a graça; de outro, o extrinsecismo, que considera a fé como uma
espécie de segundo andar, sobreposto à razão humana, ideologizando ou transformando
a realidade concreta numa mera superestrutura.
Se a cultura, manifesta e expressa na ciência e na tecnologia, é o modo próprio
da existência e do ser humano, e a fé tende a renovar a vida da pessoa, fica claro que a fé
deve inserir-se na cultura de um povo. Por isso a Igreja primeiro anunciou a fé e a viveu
no mundo palestino da cultura judaica e, depois, no mundo mediterrâneo da cultura

92 Coleção Filosofia - 175


greco-latina. Enquanto, no centro da piedade judaica, encontra-se a lei de Moisés, no
mundo helênico convergia para a busca da sabedoria. S. Paulo entendeu bem esse
problema, quando reconheceu que, enquanto ―os judeus pedem milagres‖ e ―os gregos
buscam a sabedoria‖, ele prega ―um Messias crucificado, escândalo para os judeus e
loucura para os pagãos‖ (1Cor 1, 22-23).
Resumindo, a fé é um projeto global de vida e uma atitude que envolve a vida
em todas as dimensões. Crer, para o cristão, significa fundar sua existência em Deus. Por
isso, a Igreja deveria ser vista menos como organização, instituição ou sistema, no qual
se trata de influência de poder, e mais como comunidade dos que crêem que Jesus é o
Cristo. A grandeza da Igreja consiste em ter transmitido essa fé, desde o tempo
apostólico até nossos dias. Igreja somos todos os que cremos e testemunhamos a fé em
Cristo. A oração e os sacramentos são expressões valiosíssimas de nossa fé e adesão a
Cristo. Mas não existe expressão maior dessa mesma fé do que a caridade e o amor que
ele nos ensinou. ―Nisso conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos
outros‖ (Jo 13, 35). Ora, hoje ciência e tecnologia tornaram-se, muitas vezes, condição
necessária para a caridade efetiva e eficiente. Nesse sentido, não precisamos apenas
cientistas, mas bons e ótimos cientistas.

5 — O sentido das ciências

A ciência não tem religião, nem partido político. Os governos e a igreja


deveriam empenhar-se pelo uso da ciência natural e social e da tecnologia, para
solucionar conflitos sociais, como o das desigualdades sociais, pobreza, falta de justiça e
democracia, educação inadequada, cuidados melhores com a saúde e produção de
alimentos, e diminuir a degradação ambiental. A educação na ciência, em todos os
níveis, sem discriminação, é uma necessidade fundamental para assegurar um
desenvolvimento sustentável. A informação científica hoje é indispensável para aqueles
que exercem funções de decidir e para a sociedade em geral.
O Cristianismo não se impõe no mundo como um sistema lógico de doutrina,
mas como forma de vida, que envolve o homem como um todo. Se a ciência é,
essencialmente, atividade da razão instrumental, na qual se demonstram ou provam as
afirmações, realidades as mais profundamente humanas, como a fé, o amor, a confiança
e a fidelidade não se provam, mas se testemunham, isto é, valem enquanto nos envolvem
em todo o nosso ser, não só nossa razão.
A trajetória do desenvolvimento da ciência moderna mostra-nos o Cristianismo
como condição de possibilidade, apesar de muitas incompreensões e dos conflitos históricos.
Os aparentes conflitos entre ciência e fé muitas vezes se baseiam em pré-juízos ou
doutrinas equivocadas, que se apresentam como científicas sem sê-lo. Assim acontece com
o materialismo que nega a imortalidade da alma humana, sob alegação de que a ciência não
pode prová-la. Claro, trata-se da falácia do argumento: ―O que a ciência não prova, não
existe‖. Sequer cogita ponderar se a ciência experimental é apta para estudar realidades
espirituais. Dentro dessa linha, às vezes, nega-se a criação por Deus, porque se opõe a
criação bíblica simplesmente à teoria evolucionista como se fossem conceitos excludentes.

Coleção Filosofia – 175 93


A ciência é, sem dúvida, confiável por causa da certeza de seus conhecimentos,
do êxito de suas aplicações práticas e do progresso em ambos os campos. Mas fora da
ciência experimental também se pode alcançar a certeza. A certeza científica não é a
única certeza. E isso é assim, porque há outras formas de conhecimento. Ademais, a
ciência experimental tem limites, por desconsiderar as questões vitais mais importantes.
Além disso, pensar que tudo que circula como ciência está provado
definitivamente é um mito prejudicial à própria ciência e conduz ao erro do cientismo.
Considerar o conhecimento científico como o único ou principal modelo de todo o
conhecimento válido é um dos mitos modernos.
Muitos e diversos são os caminhos para conhecer a verdade. A ciência refere-se a
uma parte da realidade, pois são várias as ciências. A fé funda-se no testemunho de quem
viu o que vale saber para viver melhor e tentar satisfazer as aspirações mais profundas do
espírito humano. De fato, a fé judaico-cristã ilumina o âmbito das verdades básicas que se
podem atingir pela razão, proporcionando uma perspectiva superior que indica o sentido
último do homem e da natureza. E isso tentaram viver figuras como Galileu, Descartes,
Kepler, Newton que, embora grandes cientistas, foram homens de fé profunda.
O desenvolvimento integral do cientista como pessoa exige a abertura ao
sentido total da existência. Para cientistas, as verdades do Cristianismo, terreno fértil no
qual nasceu a ciência no Ocidente, dão-lhes um referencial importante e para sua
condição de pessoas os orientam para a transcendência. O homem necessita da fé e da
ciência para realizar sua eminente dignidade de filho de Deus.
Há duas maneiras para relacionarmo-nos com a realidade, ou seja, dispomos de
dois caminhos para conhecer as coisas: a análise e a síntese. Isso significa que posso
iniciar o processo cognitivo a partir do conjunto, para, depois, estudá-lo em suas partes,
ou posso partir das partes, para chegar ao todo, ou seja, à síntese.
Os tempos modernos caracterizam-se pela análise, pela fragmentação do saber e
da vida humana. Neste final de milênio, a desconfiança contra a pura racionalidade e
objetividade científicas leva os cientistas à busca de respostas para as grandes
indagações existenciais no campo da religião. Só numa visão de síntese as partes
adquirem seu devido valor, e o todo seu sentido. Sob esse aspecto, a fé cristã também
pode contribuir na perspectiva teleológica da própria atividade científica do cientista.
Em síntese, para concluir, ciência e fé são duas formas de conhecimento, que
não se excluem e não se substituem uma à outra. De forma exterior, pelo menos pode
haver diálogo e cooperação entre ambas as ordens de conhecimento. Crer ou não crer,
em princípio, não é condição para ser um bom cientista, assim como o conhecimento
científico não atrapalha o crente. Entretanto, teólogos e cientistas precisam aprender a
ser mais humildes em suas afirmações, cada qual sem extrapolar o âmbito de sua
competência. E isso contribuirá tanto para a fé como para a ciência.

94 Coleção Filosofia - 175


ÉTICA E FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO
No livro X das Leis, Platão afirmou: A religião foi considerada por todos os
homens, em todos os tempos, como o fundamento indestrutível das sociedades
humanas. A concepção de uma sociedade fundada na religião apresenta-se ainda hoje
como uma das alternativas para os restauradores da ordem social e política. Mas há
também outras alternativas.
Nas sociedades contemporâneas, tenta-se construir uma concepção de sociedade
democrática como sociedade baseada na idéia de justiça, que se apóia no núcleo da
consciência moral coletiva. Essa concepção precisou-se mais durante as últimas décadas,
através de filósofos políticos, destacando-se Jürgen Habermas e John Rawls. Mas ambos
apresentam restrições importantes a essa complexa sociedade em transição. Afirmam
que uma moral pública, fundada numa ética universalista, deve renunciar expressamente
a impor uma única concepção ontológica, metafísica ou científica do mundo e,
conseqüentemente, uma única concepção antropológica ou religiosa do ser humano
como base de seus preceitos.
Segundo os autores citados, é impossível estabelecer uma moral pública sustentada
por uma concepção universalmente compartilhada da vida feliz, O que se pode conseguir é a
regulação procedimental das interações sociais, que asseguram a igualdade de todos os
membros da comunidade moral e a garantia de usufruir aquelas oportunidades mínimas, para
que cada um encontre o caminho de auto-realização livremente escolhido.
Depois do dia 11 de setembro de 2001, quando aviões foram jogados
intencionalmente contra as duas torres do centro financeiro em Nova Iorque e contra o
centro militar norte-americano, o Pentágono. em Washington, uma determinada
interpretação religiosa do mundo passou a ocupar as páginas dos jornais e as imagens da
televisão: o fundamentalismo religioso. Os atos de terrorismo foram atribuídos a
fundamenta-listas islâmicos.
Encontramo-nos, pois, diante da alternativa de construir uma sociedade de
acordo com uma postulada ética universal, baseada na razão e no consenso humano, ou
sobre uma moral fundada em Deus, através das leituras que as religiões fazem de suas
Sagradas Escrituras e tradições. Será que essa alternativa é bem-fundamentada? As duas
posições necessariamente se excluem? Entre as diferentes maneiras de leitura religiosa, o
fundamentalismo é uma.
Nesse contexto, primeiro perguntamos: o que entendemos por moral ou ética? O
que entendemos por fundamentalismo religioso?

Coleção Filosofia – 175 95


1 — Conceituação

a) Ética

Antes de mais nada, cabe esclarecer alguns termos usados nesta abordagem. As
palavras ética (éthos), derivada do grego, e moral (mores), derivada do latim, a rigor,
têm a mesma etimologia. Ambas, entretanto, são entendidas de diferentes maneiras,
sempre referentes à conduta e ao agir humanos. Antes da moral filosófica existe a moral
vivida. As ciências humanas que estudam o comportamento humano, como a sociologia
e psicologia, de modo algum substituem a ética ou moral.
Para alguns autores, é fundamental distinguir ética e moral. Por ética
entendem a análise da dimensão pessoal da ação, mostrando o modo como o agir surge
da própria interioridade da pessoa que age. A moral, por sua vez, considera o agir na
sua relação com a lei.
Os dois termos, para nós, abrangem as mesmas áreas de problemas, embora a
ética se proponha o nível da fundamentação da lei e da moral, e a moral se ocupe mais
do campo da lei e da regra.
Ernst Tugendhat distingue o conceito de moral em três níveis:
a) um sistema de obrigações intersubjetivas. Considera-se, então, imoral uma
ação que transgride as normas consideradas intersubjetivamemte válidas;
b) um comportamento altruísta. Este pode fazer parte de um sistema, mas
existem ações altruístas que não são normativas. Pode funcionar por simpatia,
compaixão e não só por normas;
c) qualquer coisa que uma pessoa crê dever fazer, como deve viver. A palavra
moral pode ter o sentido de dever, no sentido de uma obrigação. Neste significado em
geral se usa a palavra ética.
Quando usamos a palavra moral, geralmente, designamos aquelas regularidades
do comportamento que se baseiam na pressão social. Nesse sentido, a moral é um
sistema de exigências recíprocas. E bom o membro de uma sociedade moral, quando ele
se comporta como os membros o exigem mutuamente uns dos outros; é mau, quando
transgride tais normas.
A moral é um sistema de normas que restringe ou condiciona a liberdade dos
membros da sociedade. E um peso que nos impomos mutuamente uns aos outros. Por isso
tais normas somente são aceitas quando justificadas. Aceitar um sistema de normas é dispor-
se a observá-las. A aceitação implica uma atitude, não apenas racional, mas também afetiva.
Segundo E. Tugendhat, somente existem dois tipos de justificação recíproca de
normas: o religioso e o relacionado aos interesses dos membros da sociedade. O religioso
pode ser denominado de justificação vertical ou autoritária, e o segundo de justificação
horizontal. Diz Tugendhat: ―Em todas as sociedades tradicionais, a justificação era vertical.
Nietzsche e Dostoiewski pensavam que, quando a justificação vertical se torna impossível, a
moral simplesmente não é justificável e muitos pensam assim ainda hoje‖ (p. 17).
Certamente a justificação religiosa pode conduzir para além de si mesma, pois a
justificação feita só de maneira autoritária pode não convencer. Pode perguntar-se: as

96 Coleção Filosofia - 175


normas são boas, porque Deus as promulgou, ou Deus as promulgou, porque são boas?
No segundo caso, a justificação vertical conduz de per si à justificação horizontal.
Se, por um lado, não faltam aqueles que pensam que não mais se pode justificar
religiosamente a moral, há, por outro, aqueles que só admitem a justificação religiosa.
Essa última facilmente se associa a um fundamentalismo religioso, que não é privilégio
do judaísmo e do islamismo. Ocorre também no cristianismo, em grupos mais ou menos
piedosos, os quais fundamentam nas Sagradas Escrituras radicalismos puritanos, para
justificar excessos e desequilíbrios, que a Igreja católica muitas vezes condenou. E
verdade que os exageros encontram menos resistência nos meios eclesiásticos, porque,
não raro, são considerados pouco prejudiciais.

b) Fundamentalismo religioso

O conceito de fundamentalismo deriva de fundamento. Sem bom fundamento


nenhum edifício fica de pé por muito tempo. Uma argumentação sem fundamento é
inconsistente. Buscamos o fundamento de nossa existência. Nesse sentido, todos somos
fundamentalistas.
O termo fundamentalismo, no campo religioso, é recente, mas a postura
fundamentalista é antiga. Durante a Primeira Guerra Mundial, nos Estados Unidos,
surgiu uma corrente teológica de origem protestante que admite apenas o sentido literal
das Escrituras, opondo-se a toda interpretação histórico-crítica e identificando-se com
um conservadorismo. Essa corrente passou a ser chamada fundamentalista. Dessa
maneira, o termo fundamentalismo, no campo religioso, passou a ser associado a
ortodoxo ou conservador. Essa tendência marcou, inicialmente, certas denominações
protestantes. O movimento não é unitário, mas atinge certos setores que pretendem
defender e conservar os elementos ―fundamentais‖ da fé cristã. Por isso, o
fundamentalismo encontra-se dentro das mais diversas denominações. Mas algumas
Igrejas podem ser consideradas, pela sua posição oficial, de tendência mais
fundamentalista. Aparentemente, a Igreja católica deveria estar menos afetada por essa
tendência pelo papel que nela ocupa o Magistério. Mas nela também ocorrem
manifestações fundamentalistas, acentuando exageradamente a autoridade do Papa.
Quando, no cristianismo, se esquecem idéias centrais do Evangelho, como o
ensinamento do amor e a reconciliação, ou se as marginalizam, ele também se expõe
facilmente ao fundamentalismo farisaico, tão criticado por Jesus, de contentar-se com a
observância de leis e ritos ou então degenera em espiritualismos alienados.
No centro do fundamentalismo americano, no início do século XX, está o
conceito da infalibilidade da Bíblia, considerada como fonte absolutamente autorizada e
digna de total confiança para o correto conhecimento de Deus e de sua ação no mundo.
Nessa perspectiva, o fundamentalismo se opôs à teoria evolutiva de Darwin por não estar
de acordo com a narrativa literal da criação no Gênesis.
O fundamentalismo originado nos Estados Unidos, em círculos protestantes,
pregava, pois, a interpretação literal da Bíblia em oposição a tendências modernistas. A
polêmica entre fundamentalistas chegou ao auge, quando, em 1925, um professor do
Tennessee, J. T. Scopes, foi processado (processo dos macacos), por ensinar teorias

Coleção Filosofia – 175 97


evolucionistas. Para defender a fé no criacionismo, numa fidelidade intransigente à
interpretação literal da Bíblia, os fundamentalistas fecham-se ao diálogo com novos
problemas e, por outro lado, tomam a letra da Bíblia como palavra pura de Deus. Com
isso criam um chão fértil para fanatismos e radicalismos.
Por fanáticas entendemos aquelas pessoas que se tornam escravas de suas próprias
idéias, não muitas e geralmente pobres. Por isso o fanático torna-se incapaz de verdadeiro
diálogo, pois nega, condena ou tenta destruir tudo que questiona ou contraria suas idéias.
O fundamentalismo americano, reagindo a tendências liberais e modernistas,
entre 1910-12, publicou uma obra em 12 volumes sob o título The fundamentals: A
testirnony to the Truth, com uma primeira edição de um milhão de exemplares. Assim
obteve influência significativa. Contra a aceitação do pensamento científico na exegese
bíblica, responsabilizado pela descristianização da vida, os fundamentalistas defendem a
fé na inspiração verbal da Sagrada Escritura e a infalibilidade de todas as suas
afirmações, entre outras coisas, também sobre a concepção virginal de Maria. Depois da
Primeira Guerra, houve um renascer fundamentalista que se expandiu para a Europa e
para as jovens Igrejas em terras de missões. Em 1919, foi fundada a World‟s Christian
Fundamental Association. No fundo, trata-se de um movimento ao qual faltou a
capacidade de assimilar teologicamente as novas conquistas da ciência e libertar a
revelação de seus condicionamentos histórico-culturais. Isso trouxe conflitos terríveis
para o protestantismo e, muitas vezes, foram associados a sentimentos anti-semitas e
anticomunistas. Em 1952, os protestos contra a tradução da Bíblia, Revised Standard
Version, mostraram que o fundamentalismo ainda estava vivo.
Enfim, o fundamentalismo nasce como emergência de uma atitude defensiva,
frente a um mundo em transformações profundas, tanto nos aspectos técnicos e
econômicos, como sociais, culturais e religiosos. Provocado entre os protestantes,
significa uma reação contra tendências muito fortes chamadas de liberalismo, e suas
posições tornaram-se radicais. Em geral, o fundamentalismo ainda se associa a um
rigorismo moral. Aparece sob diversas formas, como o tradicionalismo, que escolhe um
momento da tradição, absolutizando-o e fazendo-o norma para a Igreja e a Teologia.

2 — Ética e fundamentalismo religioso

Relacionar os dois temas significa indagar por um critério orientador na conduta


humana em comunidade. Cada pessoa sempre se encontra diante da pergunta do que
deve fazer ou deixar de fazer em determinadas situações. Cada pessoa também faz a
experiência de que fez algo que não deveria ter feito. Cada pessoa julga sua própria
conduta e a de outros, segundo critérios.
A ética torna-se problema onde e quando as evidências se tornam questionáveis. A
reflexão sobre o que é bom ou mau, certo ou errado, inicia quando encontramos respostas
contraditórias sobre o que devemos fazer ou deixar de fazer. A ética é o esforço racional de
encontrar critérios gerais válidos para medir e julgar nossas ações e formas de vida.
Se, por um lado, a ética visa critérios universais, por outro, deve reconhecer que, no
contexto ético, a instância última não é uma razão universal abstrata, mas o sujeito agente ou
a consciência. Esta é sinal e expressão da dignidade do homem. A consciência torna o

98 Coleção Filosofia - 175


homem capaz de reconhecer o bom e o mau e agir de acordo, assumindo a responsabilidade
por suas ações. A dignidade humana designa, pois, o homem em sua subjetividade ética
como ser livre para autodeterminar-se. A consciência, como expressão da dignidade humana,
coloca-nos, não só diante da responsabilidade perante a própria consciência, mas também de
como nos comportamos perante a consciência dos outros. Todos, também o Estado, devem
respeitar a liberdade de consciência. Esse respeito, entretanto, não obriga a aceitar tudo,
porque alguém apela para sua liberdade de consciência. Impedir alguém de matar outro não
seria agir contra a liberdade de consciência.
Se, em última análise, cada pessoa deve seguir sua consciência, isso não
significa que já nascemos com uma consciência pronta. Nossa consciência constitui-se e
se forma no encontro com outras consciências. A concordância consigo mesmo e suas
convicções é uma condição necessária, mas não suficiente, para determinar o que é
eticamente bom, pois a consciência também pode errar. Quando constatamos que nossa
consciência está errônea, devemos tentar esclarecê-la.
Para falar em ética, é preciso reconhecer a si e a todos os homens como seres
dotados de razão e liberdade. Tal reconhecimento é o critério do agir. Isso significa que
o homem, como sujeito ético, não é propriedade de ninguém. Mas se alguém não
conhece esse princípio ou não o reconhece, erra, pois só reconhece a razão e a liberdade
para si mesmo. Assim a razão e a liberdade constituem o último critério de nosso agir,
pois algo manifesta-se como bom, porque reconhece a dignidade do homem em sua
pessoa e na pessoa do outro. O teólogo naturalmente perguntará se a razão e a liberdade
não se fundam em algo que transcende a razão finita.
Tomás de Aquino, em seu tratado sobre a lei (S. Th. I-II, q. 90-97), examina a
questão do fundamento e da relação entre mensagem cristã e ética natural 3.
Primeiramente, Tomás de Aquino examina o conceito de lei. Define-a: ―Uma
lei não é outra coisa que uma ordenação da razão em vista do bem comum, proclamada
por aquele que tem o cuidado da comunidade‖. Essa definição corresponde à experiência
política e vale para leis positivas no campo civil e eclesiástico. Segundo essa definição,
fazem parte da essência da lei:
a) o legislador;
b) o bem comum, pois trata-se, não do bem individual, mas da comunidade;
c) a promulgação, pois a lei deve ser conhecida publicamente;
d) a razão.
Para Tomás de Aquino, a razão é princípio de ação, regra e critério da ação
humana. Como teólogo, pressupõe que Deus é a origem de todos os acontecimentos da
criação. Por isso estão sob a Providência Divina. Chama lei eterna a direção universal do
mundo pela razão divina.
A idéia da lei eterna implica duas dificuldades. A primeira relaciona-se com sua
definição de lei quanto ao elemento da promulgação. Como pode ser promulgado o
conteúdo da lei eterna, válida para toda a criação, se o mundo é temporal? Tomás resolve
o problema colocando a promulgação no próprio ato da criação.

3
Servimo-nos do texto de G. Wieland. In: Honnefelder/Krieger. Philosophische Propädeutik. Paderboen-
München: F. Schöningh, 1996, vol. II, p. 61-68.

Coleção Filosofia – 175 99


A segunda é esta: se a Providência Divina dirige o curso do mundo, então a
razão divina também é fundamento e critério das ações humanas. Só resta submeter-se à
lei eterna. E Tomás tira as conseqüências. Para ele, toda lei humana deve ser derivada da
lei divina. Nesse caso, não se elimina o espaço da autonomia do homem?
Para o Aquilate, a lei eterna não é uma grandeza prática, mas teórica. Deve ser
aceita, quando se indaga o agir humano por suas condições metafísicas.
Tomás de Aquino opõe à lei divina a lei natural, como regra original e
fundamental para o homem orientar sua vida. Essa é uma grandeza prática. Relaciona a
lei divina e a lei natural, sendo a última participação na primeira. A lei natural é a forma
pela qual o homem participa na lei divina. A diferença está na capacidade limitada da
razão humana. A lei eterna é a regra e medida da criação em seu desenvolvimento. Mas
o homem só consegue compreender princípios gerais dessa lei. E aqui a razão humana
deve agir por si mesma para a conduta concreta.
Tomás de Aquino não desenvolveu uma ética teológica que partisse de uma lei
divina. Entende a nova lei antes como ―lei da liberdade‖ e, por isso, reconhece liberdade
a todo o agir que não contraria a fé. Tomás desenvolve uma ética teológica, que coloca o
fiel numa situação correspondente à da razão natural. Também o fiel deve medir suas
experiências concretas no critério da fé. Mas a fé não substitui a inteligência.
Ainda que a inteligência, na perspectiva teológica, tenha o impulso da graça,
permanece a forma relacionada com a experiência da razão prática, que dirige e conduz a
ação humana. A mensagem cristã, a lei divina, não suspende a razão prática. A rigor, segundo
Tomás de Aquino, existem duas formas de ação divina na formação do mundo humano:
a) a lei natural como participação do homem na lei divina;
b) a relação histórica concedida ao homem pela vontade salvífica e a obra redentora
de Deus que encontra sua expressão na lei divina. A segunda pressupõe a primeira. Tomás de
Aquino entende a lei divina como lei da liberdade que abre imenso espaço à responsabilidade
e à criatividade humanas no espaço da fé. Esse é o espaço da razão prática.
As religiões incluem em suas doutrinas orientações e normas de viver e agir.
Algumas acompanham a vida de seus membros até nos detalhes. Por isso excluem todo
espaço para uma moral não-religiosa e, por isso, não deixam espaço para uma ética
filosófica. Mas isso ocorre, sobretudo, em visões fundamentalistas.
Ao conceito de fundamentalismo, seja religioso, político ou intelectual, associa-
se, antes de tudo, a volta ao passado, vinculando a consciência humana a princípios e
valores tradicionais, perdidos nos últimos séculos. Manifesta-se como um
neotradicionalismo religioso radical e isso no mundo inteiro.
Segundo alguns analistas, o fundamentalismo nasce como uma reação contra a
modernidade (Thomas Meyer, Fundamentalismo: a rebelião contra a modernidade,
Hamburgo, 1989 e Richard Webster, Os herdeiros do ódio, Frankfurt, 1992). Outros,
como Helmut Dubiel (in: Fundamentalismo: Porto Alegre: Edipucrs, 1995, p. 9-27),
tentam mostrar que as correntes fundamentalistas são genuinamente modernas, ―pois
elas só podem ser decifradas com referência aos processos de modernização, que elas
combatem‖ (p. 10).
Se o livro de Meyer confronta o fundamentalismo, no quadro de uma teoria da
modernidade, o de R. Webster foi provocado pela campanha de solidariedade de

100 Coleção Filosofia - 175


intelectuais do Ocidente contra a ordem do aiatolá Khomeini de matar o escritor Salman
Rushdie. Para Meyer, não está em jogo o confronto entre modernidade ocidental e
tradição islâmica, nem entre fundamentalismo e liberdade. Trata-se de uma guerra entre
duas facções oriundas de uma mesma tendência religiosa, com as armas intelectuais.
Quando falamos do fundamentalismo islâmico, entendemos, em geral, uma
corrente que defende os valores tradicionais do islamismo e prega a adoção do Corão
como Constituição dos Estados. Atualmente, os fundamentalistas islâmicos agem,
sobretudo na esfera política, algumas vezes por violência, recorrendo ao ―olho por olho e
dente por dente‖, caracterizando-se por uma intolerância radical.
Desde 1979, quando o aiatolá Khomeini assumiu o poder no Irã, o
fundamentalismo islâmico assumiu novas conotações. Existe não só no Irã, e é
diferenciado, com múltiplas correntes, entre sunitas e xiitas. Em alguns países árabes, os
fundamentalistas estão no poder e, em outros, constituem uma poderosa oposição.
Propõem uma revitalização religiosa. Se, no passado, o antimodernismo religioso estava
restrito aos conhecedores das Sagradas Escrituras, mais recentemente tornou-se o fermento
cultural de um movimento de massas. O islamismo, fechando-se ao progresso científico
das democracias ocidentais, na sua expressão fundamentalista volta-se diretamente aos
textos sagrados e à tradição religiosa, fundando a vida política nas mesmas. E muitas vezes
recorre à força para eliminar os inimigos de Alá, através da violência (guerra santa).
Também no judaísmo mais recente constatamos tendências fundamentalistas. De
maneira semelhante aos islâmicos, mostram uma forte intolerância religiosa e nacional, em
nome de uma verdade religiosa declarada como fundamento da vida política.
O fundamentalismo protestante, nos Estados Unidos, é, dentro da Igreja
protestante, uma reação contra o liberalismo, rejeitando o uso das ciências modernas na
exegese bíblica. De maneira semelhante ao fenômeno fundamentalista no islamismo, o
protestante tornou-se politicamente virulento, quando não conseguiu proibir o ensino do
evolucionismo nas escolas na década de 1920. A partir de 1960, seus representantes lutam
pela proibição do aborto, contra a equiparação das mulheres, o homossexualismo etc.
No catolicismo não há um movimento com expressão semelhante. Entretanto,
não faltam pequenos grupos, como o do bispo Lefevre, na França, que se rebelou contra
as reformas promovidas pelo concílio Vaticano II. Alguns querem ver o movimento
leigo da Opus Dei como sendo de tendência fundamentalista por causa de seu aparente
conservadorismo. Mas trata-se de uma interpretação equivocada, pois a Opus Dei e a
Comunione e Liberazione não só contam com os favores do Papa João Paulo II, mas
desenvolvem um diálogo crítico com as ciências modernas.
Parece insuficiente querer ver e analisar o fenômeno do fundamentalismo como
simples choque entre modernismo e regressão. O que há, num primeiro momento, é a
criação de dois diferentes meios de moral social, de duas maneiras diferentes de reagir a
uma sociedade em vias de urbanização e industrialização. O fundamentalismo protestante
dos Estados Unidos, no início do século XX, concentra-se na luta contra o ensino do
evolucionismo, defendendo o criacionismo, e contra o uso da crítica histórica, na leitura e
interpretação da Bíblia. Claro, abrange a nova imagem das cidades com seus bares, motéis,
o desenvolvimento de uma moral sexual permissiva e a mudança do status social da
mulher, a elevação do índice de divórcios etc. Tudo isso, para os fundamentalistas, é uma

Coleção Filosofia – 175 101


decadência moral da sociedade. Quando o número de crenças religiosas institucionalizadas
aumentou nos Estados Unidos, o papel do Estado tornou-se cada vez mais neutro no campo
religioso. Surgem, todavia, situações de conflito, na vida prática, quando se trata de
questões como o aborto, o divórcio e a definição de conteúdos escolares.
Por outro lado, constata-se também que nem todas as áreas da vida moderna
podem ser subsumidas ao regime da racionalidade formal. Também a modernidade tem
limites. Embora se busquem fontes imanentes ao mundo, para legitimar a nova política, e
seja irreversível a pluralidade de sistemas interpretativos seculares e/ou religiosos e a
diferenciação de nexos funcionais da economia, da técnica e da organização burocrática,
não se pode concluir que as fontes de legitimidade da política sejam totalmente
secularizadas. No contexto atual, será difícil querer fundamentar a ética apenas numa
fonte sagrada de legitimidade determinada pela religião, menosprezando ou
neutralizando os nexos funcionais técnicos de maneira apenas simbólica. A contradição
dos fundamenta- listas, na sua reação contra a modernidade, manifesta-se, por exemplo,
no uso desinibido dos modernos meios de comunicação de massa. A partir da década de
1960, surge o fenômeno religioso com o uso de TV. E um movimento de massas sem
preocupação de criar comunidades. Esses movimentos foram chamados de ―igrejas
eletrônicas‖. Em geral vendem um produto fundamentalista em forma de shows, com o
objetivo de obter muitas doações.
Como superar o choque entre o fundamentalismo tecnocrático e o
fundamentalismo religioso?
As democracias ocidentais caracterizam-se por um pluralismo nas suas redes de
instaurações de sentido. Distanciam-se sempre mais da possibilidade de eliminar
conflitos, e a esperança dos fundamentalistas de um consenso tradicional unitário, em
escala mundial, que reintegre a sociedade, evidencia-se como ilusão.
Nas sociedades atuais, nas quais a pluralidade de formas de vida e a relatividade
social da própria religião e do próprio interesse tornaram-se parte integrante da
experiência cotidiana, será difícil a integração das religiões por semelhanças entre si
Tudo indica que as disputas, que dividem essa sociedade, em torno de questões,
como a distribuição de bens, a ecologia ou a questão dos sexos, permanecem sem
perspectivas de solução. Da mesma maneira, não se pode esperar um consenso universal
de uma ética fundada verticalmente. É preciso ponderar sempre mais a dimensão
horizontal, o que a rigor me parece uma conseqüência da maneira como no catolicismo
se relacionam fé e razão. Não mais se pode querer eliminar simplesmente o diferente,
pois ele pode enriquecer a convivência. Em outras palavras, para superar os
fundamentalismos, o caminho parece ser o da tolerância mútua e do diálogo respeitoso.

3 — Fundamentalismo e teologia católica

O fenômeno do fundamentalismo religioso tem suas raízes num processo de


transformações rápidas que atingiram nossa existência, trazendo-nos muitas incertezas.
Por isso é um fenômeno de crise. O problema central não são questões de conteúdo, mas
o interesse formal do homem por um apoio ou fundamento sólido que o suporte na vida e
na morte. Essa necessidade fundamental não se discute.

102 Coleção Filosofia - 175


Quando Nicolau de Cusa, um dos grandes pensadores do século XV, em suas
reflexões filosóficas, manifestou a convicção de que a Terra não poderia ser o centro do
Universo, isso deixou de ser uma idéia qualquer, quando Copérnico e Galileu elaboraram
a prova. Era o desenraizamento total do homem. Restou o medo que, desde então,
determina o sentimento existencial e a consciência do homem.
A questão decisiva é saber onde encontrar um apoio firme. Trata-se do
problema central da verdade absoluta do cristianismo. Diz-se que o cristianismo só pode
ser verdade de Deus e oferecer apoio inabalável ao homem, se não estiver sujeito à
mutabilidade histórica.
A significação da Sagrada Escritura, nesse contexto, é indiscutível. Afirma-se,
entre os fundamentalistas, que foi inspirada literalmente por Deus e, por isso, é infalível.
Embora este tipo de fundamentalismo não seja tão comum na Igreja católica, seu lugar é
ocupado pelo exagero atribuído à autoridade do Papa, por uma falsa absolutização da
doutrina da infalibilidade. O próprio concílio Vaticano 1(1870) impôs limites claros. A
liberdade de consciência é desprezada, porque incompatível com a autoridade do Papa. A
isso, muitas vezes, acresce um rigorismo moral ou ainda um tradicionalismo que escolhe e
absolutiza um momento da tradição como norma para a Igreja e para a teologia.
Faz parte do fundamentalismo defender acriticamente a própria posição. Seria
oportuna uma reflexão sobre o homem e sua capacidade de conhecer. O homem é um ser
finito, e seu conhecimento é condicionado por essa finitude. Ora, se a revelação de Deus
em Jesus Cristo pressupõe as estruturas naturais da inteligência humana, também a
revelação e a teologia estão sujeitas a essa lei. Deus falou ao homem de maneira
correspondente e adequada ao homem. Com isso também se diz que o homem só tem a
verdade da fé, de maneira provisória.
O homem só consegue falar de Deus de maneira finita. Um deus compreendido
não é Deus, mas ídolo, uma projeção do pensamento humano. Isso significa que todas as
formulações do cristianismo não são a realidade, mas falam de uma realidade que nunca
entenderemos totalmente. Deus sempre permanece mistério, que não se conhece, mas se
aceita ou se rejeita. O Novo Testamento não é a revelação de Deus, não é a Palavra de
Deus, mas fala de maneira humana a Palavra de Deus que se tornou humana. Contém
revelação, mas não se identifica com ela, pois não podemos responsabilizar Deus pelas
inexatidões científicas ou históricas.
Admitindo que o Espírito Santo assista a Igreja, com isso não se diz que os
dogmas são a realidade, mas falam, em linguagem e modelos de pensar humanos, da
realidade para a qual indicam. Ora, se isto vale da Sagrada Escritura e da Igreja, vale
ainda muito mais de sua ação na história.
A essência do Cristianismo não é uma verdade que se pudesse formular em
frases; não é uma doutrina, mas uma ação de Deus: sua encarnação em Jesus Cristo, sua
morte e ressurreição. Nessa perspectiva compreende-se como são limitadas as teorias do
homem finito e como têm caráter transitório.
Portanto, se afirmamos a verdade absoluta do cristianismo, isso não significa que
o homem possa ter essa verdade de maneira absoluta. A verdade que temos sempre será
provisória em sua formulação durante nossa peregrinação terrestre. Todas as posições, que
afirmam possuir a verdade absoluta, são fundamentalistas. Proposições falam da realidade

Coleção Filosofia – 175 103


ou indicam para ela, mas não são a realidade, da mesma forma como uma fotografia não é
o fotografado, uma imagem ou conceito de Deus não são o próprio Deus. Não se devem
confundir projetos e absolutizações humanas com o cristianismo. Quem se julga na posse
da verdade absoluta, em geral não vê motivos para uma discussão e expõe-se à tentação de
se impor sobre outros. Por conseqüência, tende a limitar a liberdade ou até a eliminá-la.
Com isso perdem-se os pressupostos da existência e moral cristãs.
Aqueles que planejaram e realizaram os ataques suicidas contra as torres
gêmeas do World Trade Center e o Pentágono certamente estavam convencidos de fazê-
lo em nome da luta do bem contra o mal, Da mesma maneira, o presidente Bush reage ao
jurar vingança: ―Vamos eliminar o mal deste mundo‖. Quando os fundamentalistas
procuram argumentos, para justificar seus atos, procuram inimigos, que encarnam o mal.
Por isso devem ser eliminados.
Portanto, é preciso distinguir fundamento e fundamentalismo.

Conclusão

Quem se ocupa com o tema do fundamentalismo logo perceberá que se trata de


um tema difícil, pois carece de contornos precisos. No início, era diferente, pois um
grupo de cristãos protestantes deu-se a si mesmo esse nome. Esse grupo queria preservar
os conteúdos fundamentais de sua fé, frente à ciência e frente ao método histórico-
crítico, em vista das conseqüências práticas nas comunidades. Para eles, as verdades
fundamentais da fé eram: a inspiração verbal, literal, da Bíblia; a afirmação da
verdadeira divindade e do nascimento virginal de Cristo, seu sacrifício expiatório
vicário; a segunda vinda de Cristo, rejeição dos resultados das ciências modernas,
quando contrariassem a fé bíblica.
Se o fundamentalismo, no início do século XX, era oposição às crenças seculares,
ao cientificismo da modernidade, hoje é diferente. As promessas da modernidade não se
cumpriram, O processo das ciências não eliminou, mas agravou a miséria. Perdida a
certeza secular, o homem busca respostas alhures. Nesse ponto, para muitos, o
fundamentalismo religioso promete esse apoio ou fundamento seguro e, por isso, atrai.
Positivamente, o fundamentalismo religioso mais recente significa que a
religião retornou à história como um fator do processo histórico. Os fundamentalistas
defendem sua religião, que vêem ameaçada pelos efeitos da modernidade: pluralismo,
relativismo, historicismo e destruição de autoridades. Assim, os fundamentalistas
islâmicos lutam por uma reislamização do mundo islâmico; os judeus não buscam uma
secularização do Estado de Israel, mas sua fundamentação teocrático-religiosa; os
cristãos empenham-se por uma recristianização do mundo ocidental.
Por outro lado, os fundamentalistas estabelecem um vínculo entre religião e
política. Os cristãos querem uma política cristã, tendo a verdade religiosa como
pressuposto da ação política do Estado. Nesse sentido, o Papa Pio IX, através do
Syllabus de 1864, tornou-se um aliado do fundamentalismo. Esse fundamentalismo
amplia-se no final do século XX. Em Israel, o Partido Trabalhista baseia-se na religião.
Em 1979, o aiatolá Khomeini reinstaura a República islâmica no Irã, com o objetivo de
expansão do islamismo da Malásia ao Senegal.

104 Coleção Filosofia - 175


Na Igreja católica formam-se grupos tradicionalistas, integralistas, como
Lefevre, na França, e Plínio Correia de Oliveira, fundador do movimento Tradição,
Família e Propriedade (TFP), no Brasil. Este contava com apoio de bispos, como Dom
Sigaud e Dom Eugênio de Castro Meyer. No protestantismo brasileiro, na década de
1980, surgiu o ―Bloco Parlamentar Evangélico‖, que pretendia introduzir na Constituição
Brasileira parágrafos que proibiam, por exemplo, o homossexualismo. Tudo isso mostra
que o curso da história tomou rumo diferente do proclamado pelo Iluminismo, através do
culto à razão. A religião saiu do espaço privado para o público.
O fundamentalismo, como filho da Modernidade, não é mero conservadorismo.
Quer retornar à vida pública, de acordo com a vontade de Deus. Reconhece, outrossim,
importância para o comportamento ético individual, sendo a conversão garantia de uma
postura fundamentalista, frente à experiência de crise do mundo atual.
Se o fundamentalista experimenta a sociedade atual como estando em
decadência moral, sem rumo certo e sem lei, na vida prática apela a regras severas.
Justamente isso torna-o atraente para muita gente que busca segurança e uma nova
ordem de valores, longe das inseguranças, dissoluções e relativizações, no campo
religioso como no político-social.
Para um diálogo, no campo religioso, talvez devamos aprender da área técnico-
científica. Uma das conseqüências da especialização é que ninguém mais se pode
considerar auto-suficiente. Precisamos aprender uns dos Outros, da ajuda de outros. S.
Agostinho afirmou que em toda religião há uma semente de verdade. O cristianismo do
Evangelho aponta-nos para o equilíbrio entre posições fundamentalistas e liberais.

Referências

DE BONI, Luis A. (Org.). Fundamentalismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.


DREHER, Martin N. Para entender o fundamentalismo. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2002.
TUGENDHAT, Ernst. O problema da moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
HONNEFELDER, L.; KRIEGER, G. (Org.). Philosophische Propädeutik, v. II.
Paderborn-München-Wien-Zürich: Ferdinand Schöningh, 1996.

Coleção Filosofia – 175 105


ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
Em meados do século XX, muitos temiam que o processo de secularização não
só minaria as bases da fé, mas também eliminaria o espaço da religião. Apostava-se na
ciência e na técnica como caminho para a solução de todos os problemas humanos. E
tudo indica que o subconsciente espiritual se vingou. Nunca houve tamanha proliferação
religiosa como na segunda metade do século XX. Tomou-se consciência não só dos
limites da ciência e da técnica, mas que a religião brota de fontes profundas do homem.
A sociedade ocidental cristã, marcada pela racionalidade científica e despreocupada de
promover o cultivo da oração contemplativa, importou gurus da Índia, do Paquistão e de
alhures para orientar seus jovens na busca do contato com o Deus transcendente.
Milhares de jovens universitários procuram “ashams” hindus para exercitar a meditação
transcendental ou se fecham nos mosteiros zen-budistas, para iniciar-se e progredir nas
fortes experiências extrasensoriais ou no relacionamento imediato com Deus.
Por outro lado, encontramos em nossa juventude grandes interrogações: que
significa, por exemplo, o consumo alarmante de narcóticos? Neste fenômeno complexo
certamente há fuga, alienação, hedonismo. Mas não expressará este fenômeno uma
aspiração para algo transcendente‘? Não será um substitutivo para um vazio religioso?
Nos últimos anos, em alguns ambientes acadêmicos, percebe-se não só certa
valorização positiva da religião, mas surge uma revitalização da vida religiosa, uma
recuperação do sentido de Deus. Entre os cristãos podemos exemplificar com o
movimento de oração carismática. Ensaiam-se muitas formas, estilos e métodos para
avançar na experiência de Deus. Há, sem dúvida, uma forte busca do espiritual.
Há cerca de três séculos, a palavra espiritualidade passou a ser muito usada no
Ocidente cristão. Mas, quando se indaga pelo significado constatamos que este é vago,
como é vago o significado da palavra espírito, que lhe deu origem. Ocorre um processo
semelhante ao desgaste de moedas em circulação durante muito tempo, que
falsificadores facilmente substituem e multiplicam.
Quando se indaga a filósofos e teólogos ―o que é espiritualidade?‖, as respostas
são evasivas ou vagas. Parece uma daquelas palavras que todo o mundo pode usar sem
medo de equivocar-se. Desta maneira, por um lado, encontramo-nos diante de uma
realidade difícil de definir e, por outro, difícil de excluir do vocabulário.

1 — Conceituação de espiritualidade

Para os filósofos, em geral, trata-se mais de uma qualidade que de uma entidade.
Contrapõe-se à materialidade. Refere-se a uma qualidade que transcende toda materialidade.
Assim Deus, os anjos, a alma são exemplos perfeitos de seres espirituais. Neste caso
emprega-se espiritual como negação de material. Espiritual então é a qualidade que convém a
seres situados fora do espaço e do tempo. Via de regra aí pára a eloqüência dos filósofos.

106 Coleção Filosofia - 175


Os teólogos, por sua vez, conhecem diferentes respostas. Alguns repetem mais
ou menos os filósofos. Outros se referem aos escritos e aos ensinamentos da teologia.
Recorrem, então, ao binômio da ascese e da mística.
Para conhecer a história dos tratados de espiritualidade, é preciso voltar ao século
XVI. Naquela época, os ―espirituais‖, desejosos de ampliar seu público e fazer-se
entendidos pelos leigos, abandonaram a linguagem aristotélica e tentaram expressar-se na
linguagem popular. Alguns textos de S. Paulo estimularam certa liberdade em relação a
uma espiritualidade por demais especulativa, pois, ―o homem dotado de espírito pode
examinar todas as coisas, mas ele não pode ser examinado por ninguém‖ (1Cor 2, 15). De
acordo com Blaise Pascal, ―honram devidamente a natureza aqueles que se convencem de
que esta pode falar de tudo, inclusive de teologia‖. Ora, se o homem caído foi resgatado
pelo sacrifício de Cristo, agora se encontra numa situação melhor que na ―natureza pura‖.
O Verbo de Deus, fazendo-se homem, integrou-se na humanidade, nela permanecendo
misteriosamente, podendo Pascal afirmar que ―o homem supera infinitamente o homem‖.
Por vezes o termo espiritualidade foi extraído de uma filosofia, ideologia ou
síntese doutrinal: espiritualidade judaica, espiritualidade cristã, a ortodoxa, a protestante
e até a marxista... Algumas vezes recorreu-se à espiritualidade para designar a
reivindicação de homens que se negavam identificar-se com meras máquinas:
espiritualidade do trabalho, dos doentes, dos médicos, da ação católica. Outras vezes
designa uma demanda religiosa: a espiritualidade dos sacerdotes diocesanos, dos leigos...
Mais complexo torna-se o termo quando empregado para designar a identidade
religiosa de confrarias, ordens, congregações e institutos ou movimentos leigos. Quer
mostrar-se que tais comunidades ou coletividades situam-se numa ordem diferente, como
dizia Pascal, na ordem do ―coração que sente a Deus‖ (Pensées, 424). Todos e cada um
queriam ser memória viva dos ―estados de Jesus‖ e portadores do espírito de Jesus. Na ordem
efêmera das coisas visíveis queriam sinalizar a ordem invisível e intemporal graças à sua
adesão à inspiração religiosa de seu fundador. A espiritualidade de um instituto religioso
supunha, pois, uma maneira de ser fiel ao Espírito de Deus vivo na Igreja, um modo humano-
divino de ser seu intermediário e de secundar a obra de regeneração do mundo.
Se examinarmos os múltiplos usos da palavra ―espiritualidade‖, podemos
encontrar o sentido fundamental da espiritualidade cristã e situá-la no contexto da
revelação. Para o judeu-cristianismo, a palavra espírito, da qual deriva espiritualidade, não
designa espírito do homem, mas o Espírito de Deus, o Espírito Santo. Quando a Bíblia fala
do espírito do homem, refere-se, não a uma parte do homem, mas ao todo em sua relação
com Deus. Desta maneira, a espiritualidade não é a exclusão da materialidade, mas a
relação ou união do homem todo — corpo e alma — com o Espírito de Deus.

2 — Conceito cristão

Sob certo aspecto, a espiritualidade é o lado subjetivo da religião. Para o cristão, a


espiritualidade não se reduz à interioridade da pessoa, nem ao sentimento (Schleiermacher)
ou à necessidade subjetiva (modernismo). Relaciona, antes de mais nada, o homem finito
com a realidade divina, com Deus que se revela na obra da criação e no mistério de Cristo.

Coleção Filosofia – 175 107


O conceito de espiritualidade é moderno, não se encontrando como tal nos
antigos. Estes preferiam falar de teologia espiritual, de ascese e de mística ou,
simplesmente, de vida cristã e evangélica. Chegaram até nós alguns escritos, como a
Didaqué, o Pastor de Hermas e outros que espelham a vida espiritual vivida nas
comunidades. A Didaqué descreve as práticas de jejuns, orações e obras. A Carta de
Barnabé apresenta uma espiritualidade do batismo e aconselha que o cristão não trabalhe
pela salvação na tristeza, mas é filho da alegria (4, 11). Todos esses textos judaico-cristãos,
em particular a Didaqué. acentuam a escatologia, que polariza toda a vida espiritual.
Em Inácio de Antioquia, a vida espiritual realiza-se na igreja, nas assembléias,
lugar das orações, na eucaristia. Na vida individual, a espiritualidade consiste em
revestir-se de Cristo, de sua paixão, morte e ressurreição. O martírio parece-lhe o
caminho mais curto para encontrar Cristo.
A Carta a Diogneto mostra a ação dos cristãos no mundo: ―os cristãos são a alma
do mundo‖ (6). Na literatura apócrifa encontramos a irrupção da redenção no mundo através
de Cristo, recuperação universal do cosmo pela ressurreição e exaltação da mulher-virgem.
No século III, dois centros principais, apesar das perseguições, brilham:
Alexandria e Cartago. As comunidades vivem unidas. Tertuliano desenvolve temas
espirituais: batismo, oração, martírio, castidade etc. Cipriano reflete sobre a Igreja una, a
oração, o martírio, a vigilância. Clemente convida à imitação de Cristo. Mas o mais
influente torna-se Orígenes para a vida espiritual. Centra sua espiritualidade na presença
de Deus e de Cristo na Escritura, na Igreja e no cristão.
No período entre o concílio de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381), passadas
as grandes perseguições, a espiritualidade concentra-se no convite à conversão e à fé
através da vida evangélica. S. Agostinho, com sua teologia da graça, sua Regra para os
religiosos, seu itinerário para Deus, exerceu influência na idade Média até nossos dias.
A experiência do renascimento no Espírito de Verdade e de Amor leva os
escritos paulinos e joaninos a intuir não só a pessoa do Espírito Santo na Trindade, mas
também a espiritualidade da existência cristã, seja do indivíduo, da comunidade e da
Igreja. Assim, desde S. Paulo, pneumatikós torna-se o termo técnico para a existência
cristã (1Cor 2, 13; 9, 11; 14, 1). O adjetivo spiritualis designa o coração da existência
cristã. O substantivo correspondente, espiritualidade, expressa o aspecto formal da
estrutura central da vida cristã para designar a relação pessoal do homem com Deus.
A espiritualidade cristã enraíza-se no acontecimento da revelação de Deus e da
concretização histórica da revelação em Jesus Cristo como na tradição da Igreja. S. Paulo já
teve que frear um entusiasmo mal-entendido dos dons do Espírito Santo na comunidade de
Corinto. A busca do extraordinário e milagroso permanece a tentação através dos tempos e já
conta com a advertência de Jesus (Mt 16, 1-4). Por outro lado, não é menor a tentação de
identificar ministérios e normas com espiritualidade. Há uma tensão autêntica entre
ministério hierárquico e carisma. S. Francisco de Assis, em seu movimento entusiástico de
pobreza, sofreu as limitações impostas pela hierarquia. Muitas iniciativas autênticas da
espiritualidade cristã, quem sabe, foram banidas e se estabeleceram fora da Igreja.
Existem desvios ou pseudo-espiritualidades. Por exemplo, a tentativa de reduzir
filosoficamente a espiritualidade ao estritamente racional ou à psique dos psicólogos. Se
admitimos um subconsciente psíquico, não temos porque não admitir um subconsciente

108 Coleção Filosofia - 175


espiritual. A realização humana global não se reduz ao saber racional. Também o
dualismo — corpo e alma — cedo teve influência negativa na espiritualidade cristã,
sobretudo certo menosprezo do material.
Podemos resumir, dizendo que a espiritualidade cristã tem algumas
características essenciais:
a) E teocêntrica. Não se trata apenas de uma satisfação subjetiva, nem somente
da salvação da alma, mas da entrega a Deus, a seu amor.
b) É cristocêntrica. Em Cristo, como cabeça, toda a criação está unida ao Pai.
Através Dele recebe salvação e bênção.
c) E eclesial. A Igreja é o lugar no qual o Senhor reúne os que se confiam a Ele
na fé, no amor e na esperança para a adoração.
d) E sacramental. Os sacramentos são maneiras pelas quais o Senhor glorifica o
Pai na sua Igreja e conduz os homens à salvação.
e) E pessoal. Os sacramentos agem pela sua realização, mas só frutificam na
medida em que recebidos com fé e amor e levados à eficiência ética.
O E comunitária. Por mais que se acentue o aspecto pessoal, o cristão ativa sua
espiritualidade na comunidade.
g) E escatológica. A espiritualidade cristã é marcada pela esperança. Esta
mantém o cristão vigilante e o prepara para a parusia ou vinda gloriosa de Cristo no fim
dos tempos.
Em síntese, podemos dizer que espiritualidade cristã é a dimensão do mistério
das verdades objetivas da doutrina traduzidas para a vida cotidiana. A espiritualidade
vivida transcende a univocidade dos conceitos e não se identifica com espiritualismo,
muito menos com espiritismo.

3 — Uma e muitas espiritualidades

Todas as religiões têm sua espiritualidade e mística. O pensador francês H.


Bergson dizia que uma religião sem mística não passa de ideologia. Aqui nos
limitaremos ao cristianismo.
Se o Espírito de Deus é um, num primeiro momento, podemos dizer que só há
uma espiritualidade. Todos na Igreja são chamados à santidade, embora esta se exprima
de vários modos (LG 5 , 39). Cristo pregou o mesmo Evangelho a todos, enviou o
mesmo Espírito Santo. Todos são chamados ao seguimento de Cristo, à oração, aos
sacramentos, à caridade.
Mas, sendo uma, a espiritualidade também é múltipla, segundo a condição do
sujeito, segundo seu carisma, os dons da natureza e da graça, a vocação de cada um. O
concílio Vaticano II fala dos ―vários gêneros e ocupações de vida‖: os pastores, os
presbíteros, os clérigos, os esposos. pessoas viúvas ou celibatárias etc. (LG, V, 41).
Reconhece lugar importante, na Igreja, às almas consagradas pela Perfeição dos
Conselhos Evangélicos. Mas o critério de santidade é o mesmo para todos: a caridade.
A espiritualidade não é um estado, mas uma forma de viver a fé cristã a partir
de um impulso da graça para participar da vida divina na peregrinação terrestre, pois a
consumação só terá lugar quando Deus for tudo em todos (1Cor 15, 28). A vida nova do

Coleção Filosofia – 175 109


homem exige algo mais que uma descomprometida adesão intelectual a Deus. Requer
uma adesão de todo seu ser, uma entrega total a Deus. O Evangelho possibilita uma
transformação através da renúncia, obediência até a morte na cruz, ressurreição e
elevação, esvaziando-se de si mesmo e enchendo-se de Jesus Cristo. Por outro lado, a
vivência do evangelho pressupõe um equilíbrio emocional das pessoas e não elimina a
responsabilidade perante a razão. A imersão na água do batismo simboliza a ação da
morte e sepultura com Cristo e a emersão simboliza a ressurreição e a vida nova.
A transformação cristã não se realiza à maneira dos estóicos através de uma
ação solitária para conquistar a santidade através do próprio esforço. No batismo e na
crisma recebemos a seiva do Espírito de Cristo e de sua graça. O Espírito Santo,
habitando em nós, concede-nos as inclinações e disposições para seguir Jesus Cristo.
Independentemente das formas e variedades dos meios propostos pelas diferentes escolas
de espiritualidade, o objetivo único e invariável é a união com Deus já aqui na terra
como preparação à união definitiva no além.
Para evitar um palavrório vazio sobre espiritualidade cristã, pois esta pode tanto
evocar e proteger uma presença misteriosa e indefinível como desviar nossa atenção
dessa presença, cabe perguntar: Como viver em Cristo e no Espírito, sendo Cristo, para
nós, o caminho, a verdade e a vida? (Jo 14, 6). A existência visível, por maior que seja
sua fascinação, é temporal e provisória, enquanto a existência no Espírito e em Cristo,
embora oculta, é eterna (2Cor 4, 18). Através de que sinais, de que critérios, o cristão
pode sentir-se seguro da presença nele da Santíssima Trindade, que transcende toda
investigação sensível e é inacessível à inteligência humana imersa na matéria? Como o
cristão pode avaliar, ainda que de maneira aproximada, suas atividades passadas e assim
garantir uma melhor orientação para seu futuro? O certo é que a espiritualidade, reduzida
a uma sedimentação em conceitos e em doutrina, pode permanecer alheia à verdadeira
vida. A verdadeira vida não se descreve, experimenta-se, vive-se.
Através da história da Igreja apareceram várias escolas de espiritualidade. No
essencial coincidem, pois propõem o seguimento a Cristo. Entretanto se distinguem nos
meios especiais e modos de santificação. Assim os cristãos, no início de nossa era, tinham
o desejo de imitar Cristo no martírio. Acabadas as perseguições, o novo ideal passa a ser o
ascetismo e a virgindade. Claro, por exageros e falta de orientação houve desvios e erros.
Na Idade Patrística, a mística cristã é caracterizada pela conjunção de uma
concepção teológico-ontológica e psicológico-experimental. Caso típico é a ―mística do
logos‖. Encontramo-la em Orígenes. A vida ascética, com a finalidade de conseguir a
indiferença às paixões, é vista como condição indispensável para a contemplação mística
e a união com Deus. O centro da mística cristã, nesta época, é a humanidade de Cristo.
Acentua-se, por vezes, a incognoscibilidade de Deus, como ocorre em Gregório Nisseno
e no Pseudo-Dionísio, e, por conseqüência, a obscura visão mística (teologia negativa).
Logo depois surgiu o monaquismo que se caracterizou pela fuga do mundo e
pela vida contemplativa, seja na vida solitária dos anacoretas ou na forma de vida
comunitária dos cenobitas. Assim, surgem os beneditinos, cuja espiritualidade está
resumida no ora et labora. Da ordem beneditina, na Idade Média, originaram-se várias
escolas como Cluny, Claraval e outros ramos. Trata-se de uma espiritualidade apoiada
em três princípios: trabalho, leitura e oração.

110 Coleção Filosofia - 175


Na Idade Média registra-se um paulatino regresso da visão teológica em favor
de uma mais psicológica. Acentua-se sempre mais o elemento afetivo sobre o intelectual.
A mística afetiva do matrimônio espiritual, da paixão e a do Coração de Jesus vividas
por Bernardo de Claraval, Francisco de Assis, Catarina de Sena expressam uma riqueza
da vida mística medieval. Mas o caráter eclesial empalidece sempre mais. A mística
torna-se uma ocupação de poucos privilegiados. Às vezes, é difícil distinguir a
verdadeira mística da simples afetividade. A falta de preparação teológica, não raro,
conduz a um desenfreado sentimentalismo.
S. Francisco de Assis foi um apaixonado de Cristo e de sua humanidade,
adotando o ―evangelho sem glosa‖, o desprendimento das criaturas pela dama ―pobreza‖.
S. Domingos descobriu o caráter dinâmico da Verdade que tinha que ser vivida e
anunciada. As alturas do Carmelo ofereciam à alma separada do mundo a perfeita
contemplação de Deus sob o olhar de Maria: S. João da Cruz, Sta. Teresa, Sto. Inácio de
Loyola, sintetizando escolas anteriores, levado pelo lema ―para a maior glória de Deus‖,
cria a mística do serviço à Igreja, fundando a ordem dos jesuítas, formada por homens
temperados na ascética dos Exercícios (retiro). Mas a espiritualidade de cada escola
transcende as mesmas, encontrando seus adeptos entre os leigos.
Na Idade Moderna, Teresa d‘Avila aperfeiçoou a descrição psicológica da
experiência mística. Distingue sete ―moradas‖ ou degraus da subida mística, dos quais os
três primeiros servem de preparação à experiência de Deus que se desenvolve nos quatro
seguintes. Caminho semelhante segue S. João da Cruz, com base mais teológica.

4 — Espiritualidade e mística

O vocábulo místico aparece no século V a.C. (Ésquilo, Sófocles, Heródoto)


significando algo concernente aos mistérios. No platonismo e no gnosticismo deixou de
se referir à relação cultual com a divindade para significar o fundamento divino do ser
do mundo, escondido e velado nos ritos, nos mitos e nos símbolos, acessível somente a
quem é capaz de um tal tipo de conhecimento.
No século V d.C., o teólogo cristão Pseudo-Dionísio usa a palavra teologia
mística no sentido de doutrina da subida aos degraus mais altos da experiência de Deus e
da íntima união com Ele. O termo relaciona-se com o mistério, indicando um movimento
para um ―objeto‖ que está além dos limites da experiência empírica. A mística cristã
relaciona-se com o ―mistério‖ de Cristo.
Para os padres gregos, a partir do século IV, a perfeição cristã parece coincidir
com a theoria ou contemplação. Segundo Platão (Rep. IV, 532c), esta vê ―aquilo que de
mais alto existe nos seres‖, a ―beleza divina‖, e nisto está o puro inteligível. Desta maneira,
os contemplativos cristãos encontram-se diante do difícil problema: a experiência de Deus
deve ser posta unicamente no plano intelectual ou se deve, ao invés, postular um contato
direto com Ele, fora de toda mediação, seja ela conceito ou imagem. Mas a realidade
―espiritual‖ não se pode identificar com a realidade ―intelectual‖ dos gregos, pois é mística.
Há diferença entre espiritualidade e mística, mas muitas vezes os dois termos são
usados como sinônimos. Usa-se o termo mística para designar a experiência íntima de uma
realidade transcendente, a vivência de ideologias fortemente arraigadas e absorventes ou,

Coleção Filosofia – 175 111


no que nos interessa, a comunhão com Deus que o homem julga conseguir mediante seu
esforço (prática generalizada entre as religiões orientais) ou por condescendência de Deus
(concepção judaico-cristã). Segundo os próprios místicos, a experiência mística tem caráter
repentino e breve do instante necessário para esta experiência. Tal pode ser um êxtase, uma
saída ou perda de si mesmo, uma irrupção repentina do Absoluto. Não se trata de um
privilégio de poucos eleitos, mas de um aspecto e de um fruto da fé e do amor-divino, dado
por Deus. A causa imediata da experiência mística de fé é o Espírito Santo. Seus carismas
permitem-nos experimentar o amor de Deus e de Cristo como uma luz, inaugurando uma
nova esperança, garantindo um novo modo de existir. Os dons do espírito são concedidos a
cada um. Ninguém recebe todos, mas cada um recebe alguns. E a diversidade de dons que
enriquece a vida em comunidade.
Em 1910 o grande escritor francês Peguy declarou: ―Tudo começa pela mística
e termina na política‖ (Notre Jeunesse). O místico parece ver e perceber o que os demais
não vêem nem percebem.
Os termos místico, mistificação, misticismo e mística cedo foram despojados de sua
raiz religiosa. A mística existe antes e fora do cristianismo. A palavra mística, entretanto, não
se encontra na Sagrada Escritura. Há, por isso, no Ocidente, toda uma Teologia mística
desvinculada da revelação, que é uma teoria filosófica ou psicológico-religiosa na qual se
descrevem as etapas necessárias para chegar a certa união com Deus. Mas quem é este Deus?
O organizador do mundo, o demiurgo ou o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó?
O que a revelação cristã nos dá a conhecer de Deus e do homem é muito
distinto do que nos apresentam Platão e Aristóteles. Acaso alguém amou o deus de
Aristóteles ou rezou a ele?
Certamente na Sagrada Escritura, embora não ocorra a palavra mística, há um
impulso místico que arrasta o povo de Deus. Mas este Deus não se parece com nenhum
outro. Israel sabe isso, sente isso, pois nenhum deus lhe é tão próximo nem tão forte
como o Deus de Israel. Os profetas de Israel, começando por Moisés, foram
surpreendidos pela irrupção de Deus em sua vida.
A presença de Deus está cercada, nos profetas de Israel, de uma obscuridade
impenetrável. Os profetas não encontram linguagem para expressar o inefável de sua
experiência de Deus. Moisés declara: ―Pobre de mim, Senhor! Nunca fui bom orador,
nem antes, nem agora que falas a teu servo. A minha pronúncia e a minha fala são
pesadas‖ (Ex 4, 10). Jeremias clama: ―Senhor Javé, não sei falar, pois sou um menino‖
(Jer 1, 6). Cristo resume os grandes profetas em sua pessoa.
Para os cristãos, os místicos autênticos são os que vivem de Deus pela fé e a
graça. Cristo é a manifestação visível e palpável do amor do Pai aos homens. Por isso
diz: ―Quem me ama, será amado pelo Pai e eu o amarei e a ele manifestar-me-ei‖ (Jo 14,
21). No amor de Cristo estamos em comunhão com Ele. A mística cristã é a experiência
do amor de Cristo crucificado e ressuscitado que supera todo o conhecimento, pois é a
experiência do imenso amor do Pai. S. Paulo considera a experiência da fé característica
da mística cristã, pois inclui fundamentalmente a união com Cristo, que entregou sua
vida por amor. Limitar o objeto da mística aos fenômenos extraordinários é inadmissível,
pois o conhecimento de Deus e a comunhão com Ele no mais elevado grau não
necessitam dessas manifestações. A mística de S. Paulo tem sua raiz sacramental no

112 Coleção Filosofia - 175


batismo (Rm 6, 3-11) e na Eucaristia. Tem seu caráter social, a sua orientação para o
―Corpo de Cristo‖, isto é, para a comunidade dos irmãos.

Conclusão

As afirmações bíblicas sobre a experiência de Deus e de Cristo, que chamamos


místicas, evoluíram na história da piedade cristã nos seus diversos elementos. Esta
evolução é, até certo ponto, um reflexo das concepções teológico-filosóficas de uma
determinada época.
A nova imagem do homem impede-nos de reduzir espiritualidade à interiorização.
A indissociabilidade de querer (vontade) e saber (ciência) humanos com fatores pré-
pessoais e sociais leva-nos a desconfiar de dados puramente interiores. A tendência
moderna da objetividade deverá indicar-nos o caminho para a realidade da revelação.
Não podemos ignorar, outrossim, a nova imagem de cosmo. Cada vez mais a
tarefa do homem se desloca do conhecimento para a transformação do mundo. A visão
de um Teilhard de Chardin do encontro com Deus na ação parece distante do tema
tradicional da contemplatio versus actio.
Também a imagem da sociedade mudou. A vinculação da consciência religiosa
individual à sociedade manifesta-se no diálogo com o marxismo e postula o retorno ao
tema bíblico do engajamento social da fé cristã. Hoje a tradição judaico-cristã está em
confronto ou diálogo com outras tradições.
Espiritualidade e mística são caminhos para Cristo. Não são metas, mas meios
de perfeição cristã com diferentes métodos de vida. Todas as diferentes escolas de
espiritualidade e mística cristãs concordam no essencial, reconhecendo Cristo como
Mestre. Distinguem-se pela acentuação de uma ou de outra faceta no seguimento a
Cristo em relação à qual são iluminados os demais aspectos da vida cristã
Espiritualidade e mística proporcionam sentido transcendente à vida passageira.
Deus é, antes de mais nada, este sentido. Com isso espiritualidade e mística fazem bem não
só à vida da mente mas também à do corpo, garantindo equilíbrio existencial ao homem.

Coleção Filosofia – 175 113


TEILHARD DE CHARDIN
Uma Espiritualidade de Engajamento

No tempo em que os mistérios da natureza se nos manifestam de maneira


completamente nova, seja em forma de ameaça, seja em forma de promessa, nós cristãos
sentimos cada vez mais a necessidade de nos abrirmos ao mundo e seu desenvolvimento.
Em nossa vida prática o pensamento religioso tende a conquistar uma posição que, de
um lado, esteja radicada na fé sobrenatural e, de outro lado, na realidade do mundo em
mudança. Nessa perspectiva parece convergir todo o esforço de descobrir uma
espiritualidade leiga, uma espiritualidade de engajamento cristão, na qual reconheçamos
a realidade divina na transparência dos acontecimentos históricos do universo em
constante mudança. Em outras palavras, trata-se de unificar a fé sobrenatural e a
responsabilidade frente ao mundo, de compatibilizar o trabalho profano com o serviço
divino, ou seja, de santificar-se no engajamento do mundo.
O mundo, transformado pela ciência e pela técnica humanas, colocou o cristão
diante de novas tarefas. Muito antes de o Concílio Ecumênico Vaticano II publicar o
documento A Igreja no Mundo de Hoje, homens de fé já se preocuparam com uma nova
forma de engajamento cristão. Aqui nós nos limitaremos a expor algumas idéias do falecido
jesuíta francês, Teilhard de Chardin, porque essas talvez encontraram a ressonância mais
profunda em todo o mundo. Quem hoje quiser falar de espiritualidade de engajamento não
deverá ignorar o trabalho do citado jesuíta. Trata-se de um trabalho pioneiro.
As bases teológicas da espiritualidade de engajamento de Teilhard são: a
unidade da criação, o acontecimento salvífico da redenção universal em Cristo e o
acabamento do mundo como condição necessária à parusia.

1 — A unidade da criação

Se Deus se engajou de maneira imanente na criação do mundo, certamente espera


resposta do homem. O homem não precisará procurá-lo no além. Deve reconhecê-lo e
respeitá-lo no mundo. O próprio desenvolvimento da criação relaciona- se intimamente
com a unidade trinitária de Deus. Certamente a idéia de uma criação em desenvolvimento
evolutivo à unidade — como é a de Teilhard — dá novo sentido à incumbência do Gn 1,
28 de ―dominar a terra‖, como prolongação do ato criador de Deus.

―Na vida cristã, também nos domínios inexatamente chamados profanos, o


esforço humano deve assumir o lugar de uma ação santa e unificante. O esforço,
impregnado de amor, é nossa colaboração prestada às mãos divinas, ocupadas em
embelezar a nós e preparar-nos a nós e ao mundo para a união final através do
sacrifício‖ 4.

4
T.de CHARDIN, Le Milieu Divin. Paris: Ed. Du Seuil, 1957, p. 108.

114 Coleção Filosofia - 175


Em Pequim o padre Teilhard redigiu um memorandum, dirigido a um congresso
de cientistas, filósofos e teólogos, reunidos em New York, em setembro de 1941:

―(...) o sentido da terra abre-se para o alto, desabrochando no sentido de Deus. E


o sentido de Deus enraíza-se e alimenta-se para baixo, no sentido da terra. O Deus
transcendente e pessoal e o universo em evolução não formam mais dois centros
antagônicos de atração, mas entram em conjunção hierarquizada, a fim de elevar a
massa humana numa única maré. A idéia de uma evolução espiritual do universo
produziu tão notável transformação, que, teoricamente, já é previsível e, de fato,
começa a operar sobre um crescente número de espíritos tanto sobre livres —
pensadores como sobre crentes‖5.

Um dos pensamentos centrais da espiritualidade de Teilhard é a transparência


ou diafania da matéria. Nada no mundo nos poderá privar dela. Na sua essência consiste
em nossa alma ser atraída a Deus através do mundo sensível. Por que, pois, temer este
mundo? Deus é a origem dinâmica de todo o movimento evolucionista da matéria. Ele
opera por meio de sua graça ―na‖ e ―através‖ da matéria. Domine, fac ut videam! Senhor,
faça que eu veja!
Em seu maior tratado de espiritualidade — Le Milieu Divin — Teilhard de
Chardin redigiu um capítulo sobre ―a potência espiritual da matéria‖ 6. Escreve:

―Na aspiração de levar uma vida mística, os homens muitas vezes se


entregaram à ilusão de opor brutalmente, um ao outro, o corpo à alma, o espírito à
carne, como se opõe o bem ao mal. Mas a Igreja nunca aprovou a tendência
maniqueísta de tal atitude‖7.

Uma retrospecção à história obriga-nos a reconhecer que os cristãos fracassaram


muitas vezes diante da matéria. Deve dizer-se que, até certo ponto, o materialismo ateu de
K. Marx nasceu dentro do cristianismo como reação contra o hegelianismo espiritualista, o
qual muito influenciara a ascese cristã. K. Marx só conhecera o deus filosófico de Hegel,
um deus — idéia, um deus abstrato, isto é, urna caricatura do Deus autêntico e pessoal da
Revelação. Marx revoltou-se contra tal deus alienado à vida concreta do homem de cada
dia. As influências do hegelianismo e do cartesianismo, na ascese cristã, certamente
repercutiram mal na vida social. E claro, tudo isso, apesar da doutrina profundamente
humana de Cristo no Evangelho, onde, por exemplo, as perguntas do juízo não contêm
grandes acrobacias intelectuais: ―Tive fome, sede... estive nu...‖.
Teilhard tenta interpretar o sentido da matéria com passos mui decididos. Mesmo
que abstraíssemos de seus resultados concretos — sem dúvida relevantes —, sua
iniciativa ficará sendo seu grande mérito. Está na hora de escrevermos novo capítulo
sobre a matéria na teologia.

5
Id., Sur les Bases Possibles d‟um Credo Commun. Caderno 1 (Construire La Terre). Paris: Ed. Du Seuil,
1958, p. 42-43.
6
Id., Le Milieu Divin, p. 121.
7
Id., ibid., p. 122.

Coleção Filosofia – 175 115


Teilhard não se perdeu nas forças anticristãs ativas no mundo, porque elas não se
identificam com a matéria. O antagonismo absoluto entre matéria e espírito é
absolutamente incompatível com a vida do cristão, por ser desumano. A prática da Igreja
sempre favoreceu, estimulou e abençoou abertamente o esforço e o trabalho humanos.
Ademais, a psicologia da religião ensina a estreita inter-relação entre o desenvolvimento
natural das forças humanas e a potência de amar a Deus. Gratia supponit naturam.
A matéria se nos apresenta ―sob os traços misteriosos de um poder de duas
forças‖8. Antes de qualquer ação, deveremos considerar dois aspetos da matéria: de um
lado, ela constitui um peso obstruidor, uma corrente a nos amarrar, uma dor, o pecado e
a ameaça de nossa vida. A matéria aleija nosso movimento, nos faz sofrer, nos fere, nos
tenta e nos envelhece. ―Quem nos livrará deste corpo pecaminoso?‖ 9
A ascese facilmente se restringe a esse primeiro aspeto. De outro lado, não
deveremos esquecer que, simultaneamente, a matéria proporciona alegria corporal, o
contato que eleva, a força viril e a beleza feminina. A matéria atrai, renova, une e
floresce. Alimenta-nos e comunica-nos com o resto do mundo, transpenetrado pela vida.
Seria insuportável estarmos privados dela por um só momento. Non volumus expoliari,
sed supervestiri. Quem nos dará um corpo imortal? 10
A matéria bem pode ser um meio a nos conduzir a Deus como dele nos poderá
afastar. Estimula-nos ao prazer como ao heroísmo. Teilhard usa do exemplo do alpinista,
escalando uma montanha, cujo cume aparece à luz e cujo pé está encoberto de neblina. O
espaço está, pois, dividido em duas partes de qualidades opostas. Abaixo dele escurece
sempre mais, à medida que sobe, e, acima, clareia sempre mais. A ascensão do alpinista
consiste em apoiar-se em tudo que o rodeia. Cada avanço torna mais clara a luz à sua
frente e o espaço superado atrás recai na escuridão. A matéria é simplesmente a encosta
da montanha, na qual se pode subir ou descer. E nosso circum-mundo, que ora resiste,
ora cede. Segundo sua natureza e em conseqüência do pecado original, tende
continuamente à decomposição. Segundo a mesma natureza e em vista da encarnação de
Cristo, dispõe-se a ser nosso auxílio para ―ser mais‖ (plus-être). E certo que não
conseguiremos subir à montanha até Deus, a não ser através da matéria, dessa mesma
matéria, que não precisa vir a ser-nos impedimento na ascensão, mas deverá servir-nos
de apoio, de alimento, de elo de união11. Ela sempre está dividida em duas zonas: a zona
vencida é mais material ou carnal. A que se nos oferece ao nosso esforço, à frente, é a
zona mais espiritual. ―O limite entre as duas zonas é essencialmente relativo‖. De um
lado, é uma distância que separa e, de outro lado, é um caminho que une. Cada um de
nós tem sua própria escada de Jacó 12.
Nossa geração técnica angustia-se hoje, porque no passado profanou muitas vezes
a matéria, penetrada pelo espírito de Deus até às últimas fibras. Teilhard tenta ―sacralizá-
la‖, integrando o novo mundo com todas as suas grandiosas dimensões na síntese

8
Id., ibid., p. 122.
9
Id., ibid., p. 122.
10
Id., ibid., p. 122.
11
Id., ibid., p. 123-125.
12
Id., ibid., p. 126.

116 Coleção Filosofia - 175


orgânica de uma espiritualidade engajada, que na ascensão do homem desloca sempre
mais o limite entre as duas zonas em direção do espírito à frente, até que algum dia toda
a substância da matéria será divinizada. Então nosso mundo está preparado para a
parusia do Senhor, como fora preparada sua encarnação no povo de Deus.

2 — O acontecimento salvífico

O acontecimento redentor histórico-salvífico em Jesus Cristo é central na


evolução. Uma espiritualidade leiga apenas possuirá caráter cristão, se ela for capaz de
dar o lugar teológico à nossa redenção. E o cristão sabe que a história salvífica não
estagnou na criação. A criação foi redimida. Na sua síntese, Teilhard salienta
sobremaneira a verdade de Cristo e de nossa redenção por Ele. Pela encarnação do
Verbo de Deus no coração da matéria, a criação evolutiva é ―cristificada‖ radicalmente.
Cristo penetra no coração do cosmos e da evolução para desenvolver sua ação salvífica e
redentora. A presença de Deus no mundo torna-se presença de Cristo, uma presença de
aspeto cosmológico e divino. Atribuindo a Cristo as qualidades de centro de forças
naturais-sobrenaturais do universo em evolução, Teilhard ultrapassa a teologia
tradicional. A conseqüência dessa nova concepção é que toda a aspiração natural do
homem só obterá acabamento em Cristo. Assim sendo, a dedicação ao mundo torna-se
uma possibilidade de encontro com Cristo e, conseqüentemente, tal encontro se torna um
ato de certa maneira religioso. A presença de Cristo na criação redimida exige de cada
cristão especial relação com o mundo como dever de consciência.
Em nossa condição humana, a matéria, santificada pela imersão salvífica de Cristo,
é indispensável à salvação. Nós temos acesso ao divino, através de todas as criaturas.
Através da matéria santificada, Deus nos renova nos santos sacramentos. A onipresença de
Deus é uma realidade existencial. Quem despreza ou profaniza a matéria torna-se suicida,
porque toda ela não só foi criada por Deus, mas também foi redimida por Cristo e
destinada a ser-nos meio de salvação. Teilhard considera a terra como altar sobre o qual o
homem oferece o sacrifício do seu trabalho. Em certa oportunidade compara o globo com a
hóstia, na qual se oculta Deus. A grande hóstia deve ser preparada por nós para a
consecratio mundi (consagração do mundo). Se o mundo em evolução é um lugar santo, a
exemplo de Moisés, deveríamos descalçar nossas sandálias ao pisá-lo. E é santo, porque
―Cristo imerge nas águas do Jordão, símbolo das forças da terra‖13.
A concepção teilhardiana não deixa lugar para o dualismo platônico na ascese
cristã. No homem matéria e espírito apenas constituem dois diferentes aspetos de um e
mesmo todo orgânico. Essas duas dimensões — matéria e espírito — encontram-se em
tão estreita união que, sem o corpo, não conseguimos imaginar vida psíquica. De outro
lado, um corpo sem vida psíquica é cadáver. Ao cristão cabe a tarefa de santificar todo o
homem. Também o corpo está destinado à transformação gloriosa. Todo o cosmos está
destinado à transformação gloriosa na parusia. No trabalho nosso corpo é nada menos
que prolongação da força criadora de Deus na evolução histórica do universo. Valorizar
em Cristo o mundo é condição para uma espiritualidade de engajamento.

13
Id., ibid., p. 128.

Coleção Filosofia – 175 117


―Por que, pois, homens de fé pequena, temer ou fechar a cara aos progressos do
mundo? Por que multiplicar imprudentemente as profecias e as proibições: não vás... não
lutes... tudo já é conhecido. A terra está vazia e velha: não há mais nada a descobrir...
Tentar tudo por Cristo! Esperar tudo por Cristo! Nihil intentatum. Eis exatamente, ao
contrário, a verdadeira atitude cristã. Divinizar não é destruir, mas supercriar. Nunca nós
saberemos inteiramente o que a encarnação ainda espera das potências do mundo. Nós
nunca esperaremos demais da crescente unidade humana.
Ergue a cabeça, Jerusalém. Olha a multidão imensa daqueles que constroem e
daqueles que procuram. Nos laboratórios, nos estúdios, nos desertos, nas usinas, no
enorme cadinho social, tu vês todos esses homens que labutam? Pois bem: tudo que
neles fermenta de arte, de ciência, de pensamento, tudo isso é para ti. Vamos, abre teus
braços, teu coração, e escolhe teu Senhor Jesus, a onda, a inundação da seiva humana.
Percebe-a, esta seiva, porque, sem seu batismo, tu te estiolarás sem desejo, como uma
flor sem água (...). A terra que se apodere de mim com seus braços gigantes (...) seus
encantamentos não saberiam mais prejudicar-me, depois que ela se tornou para mim,
além de si própria, o corpo daquele que vem‖14.

3 — O acabamento do mundo

As idéias, que Teilhard esboça sobre a criação, encarnação e redenção, não se


restringem ao passado e ao presente. Voltam-se especialmente ao futuro, ao acabamento
da evolução. Na mundividência evolucionista, o futuro determina sentido e meta do
desenvolvimento universal. A encarnação do Verbo Divino colocou a humanidade no
estádio decisivo da evolução, mas não a acabou. Com ela começou o processo histórico
da marcha à perfeição. O acabamento do processo evolutivo cósmico só terá lugar na
erupção de Cristo em Ômega. Assim está determinado o caminho a seguir pela evolução.
O entre-período apenas é um tempo de amadurecimento, sob influência de Omega
(Cristo). Cristo conduz o mundo à plenitude, e o Cristo universal é acabado pelo mundo.
Dessa maneira a parusia torna-se acontecimento que conduz o mundo unido e a
humanidade acabada ao reino de Deus. Teilhard crê num acabamento intramundano da
história, sem encarnar, todavia, a idéia materialista de um paraíso terrestre.
A concepção teilhardiana distingue-se das escatologias utópicas, porque, de um
lado, no estado final do mundo só vê uma preparação imediata do acabamento
sobrenatural à parusia de Cristo e à união da criação com Omega. De outro lado, a fase
final da evolução cósmica não é um desenvolvimento puramente natural, mas conduzido
por Cristo e orientado para Ele. Teilhard desenvolveu essas idéias a partir da doutrina do
Corpo místico de Cristo e do pleroma de Cristo, esquematizado por S. Paulo. Teilhard
entende não só uma realidade exclusivamente psíquico-pneumática, mas também uma
realidade físico-biológica.
A estreita conexão entre o acabamento imanente da evolução e a parusia coloca
Teilhard diante do problema da graça e da liberdade. Responde-nos que a evolução
cósmica, cristificada desde a encarnação do Lógos, não força a parusia, mas apenas a

14
Id., ibid., p. 201-202.

118 Coleção Filosofia - 175


possibilita, havendo, porém, uma relação necessária entre o ponto do amadurecimento
imanente da humanidade e da parusia. Ambos os pontos coincidirão no fim.
Se, na visão teilhardiana, o pleroma representa a suma orgânica de todas as
energias evolutivas e atrai a divinização do cosmos, então está claro que o trabalho do
homem no mundo não só tem sentido natural, porque relacionado a um acontecimento
imanente, mas também tem um sentido sobrenatural. Cada uma de nossas obras
contribui, de maneira atômica, na construção do pleroma.
Os preâmbulos teológicos de Teilhard permitem um desenvolvimento de
profundas conseqüências na piedade e na vida prática do cristão.
A relação entre mundo-homem-Deus é a prova para toda a piedade. Teilhard
primeiro expõe a estreita relação entre o mundo e a pessoa humana, na qual a evolução
adquiriu expressão máxima no estado de auto-reflexão. Graças à dimensão espiritual, o
homem supera a matéria.
Teilhard gosta de acentuar a presença imanente de Deus no mundo. Formulou-a em
formas poéticas, como no Hino à matéria, no qual considera a matéria como ‗mão de Deus‘,
carne de Cristo, mar movido pelo espírito. Em La messe sur le monde, cristifica a presença de
Deus. No Le Milien Divin, fala do cosmos como sendo o corpo daquele que é e que vem.
A imanência de Deus no mundo é verdade teológica. Resta-nos, porém, verificar
se a imanência, como Teilhard a concebe, ainda deixa lugar à transcendência. Às vezes,
Teilhard parece exagerar realmente o aspeto da imanência. quando, por exemplo, fala da
adoração, concebida como dedicação do homem à criatura, para nela encontrar Deus.
Assim a paixão de conquistar o mundo e a paixão de unir-se a Deus encontram-se
harmoniosamente. A adoração significa, pois, dedicar-nos de corpo e alma ao ato criador
para aperfeiçoar o mundo pelo trabalho e pela pesquisa. Deus se nos manifesta na
diafania das coisas, a tal ponto de nenhuma alma chegar a ele, a não ser mergulhando na
matéria. Evidentemente não desconhece a diferença entre Criador e criatura, como seria
no caso de um panteísmo crasso.
O mundo em evolução só chegará ao acabamento pleno pela colaboração do
homem. Estando, porém, Deus presente na matéria, todo o contato com ela é, ao mesmo
tempo, um contato com Deus, isto é, um serviço divino, O trabalho, por mais profano e
banal que nos pareça, possui também um aspeto divino em si. Teilhard tenta sintetizar a
oração e o trabalho, cuja tensão existente na história da piedade não poucas vezes conduziu
a um dualismo. A síntese entre serviço profano e serviço divino preocupou-o precisamente
em Le Milieu Divin, onde considera a ação como sendo prolongação viva da força criadora
de Deus. Se admite a distinção entre profano e divino, de nenhum modo tolera a separação
entre dedicação ao mundo e amor a Deus. Por isso, nossa união com o mundo poderá
conduzir-nos à união com Deus num mesmo ato. De um lado, mostra-nos uma profunda
―humanização do divino‖ e, de outro lado, uma ―divinização misteriosa do trabalho
humano‖. Uma limitação estrita de ambos os aspetos lhe parece impossível.
A imitação de Cristo consiste, pois, em mergulharmos decididamente na evolução
para conduzir a obra de Cristo ao acabamento.

Coleção Filosofia – 175 119


4 — Ascese de engajamento

A ascese tradicional está determinada por um senso emotivo, no qual o homem se


abstrai do circum-mundo para entrar em relação direta e abstrata com Deus. Teilhard
situa e fundamenta a ascese em outro plano. A síntese entre o divino e o humano da
ascese consiste na renúncia ao egoísmo, enquanto o homem se dedica inteiramente ao
trabalho no mundo, renunciando a si mesmo, a fim de conduzir a evolução à frente.
Trata-se, pois, de uma ascese de engajamento.
No seu aspeto dinâmico de técnica, ciência ou indústria, a matéria, de nenhum
modo, fica à margem da corrente vital cristã. Ela tem profundas ressonâncias no destino
eterno de cada pessoa e da sociedade inteira. Não devemos esquecer que Teilhard viveu
no tempo em que grandes massas humanas de técnicos e cientistas se afastaram da Igreja
— especialmente na França —, porque nela não encontravam sentido para a sua vida,
uma vida tão necessária à sociedade humana.

―Olha a multidão imensa daqueles que constroem e daqueles que procuram. Nos
laboratórios, nos estádios, nos desertos, nas usinas, no enorme cadinho social, tu vês
todos estes homens que labutam? Pois bem: Tudo o que neles fermenta de ciência e de
arte, de pensamento, tudo isto é para ti‖ 15.
―Terra fumegante de usinas, terra trepidante de negócios. Terra vibrante de cem novas
irradiações. Este grande organismo vive em definitivo para e por uma alma nova‖16

Poderemos nós ainda cruzar resignadamente os braços diante da dura realidade


histórica da apostasia da técnica, uma vez que não dispomos de nenhuma razão
teológica, nem histórica, para atribuir — nem inconscientemente — um menor valor à
ciência ou à técnica?

―Em que momento, na noosfera, existiu uma necessidade mais urgente de encontrar
uma fé, uma esperança, a fim de dar um sentido, uma alma ao imenso organismo que nós
construímos? Em que época a crise foi mais violenta entre o gosto e o desgosto da vida?
Nós oscilamos hoje entre duas paixões: a de servir ao mundo, ou de lhe fazer greve‖ 17.

Precisa o cristão despir a veste humana para ser integral? Acaso temos alguma
razão para pensar que uma mãe, trabalhando todo o dia em casa, a fim de sustentar seis
ou sete filhos, seja menos santa que a religiosa carmelita ou beneditina, só porque a
última dispõe de mais tempo para a contemplação?
Na Igreja há monges e religiosos de todos os tipos: missionários, contemplativos,
mendicantes etc. Por amor à verdade também devemos reconhecer que já houve monges
antes de Cristo e que ainda hoje existem monges fora do cristianismo, como sejam os
monges das grandes religiões orientais. Com razão Teilhard pergunta, pois, por que não
haveria também homens na Igreja com finalidade de mostrar o caminho à santificação,

15
Id., ibid., p. 202.
16
T. de CHARDIN, Le Phénomène Humain. Paris: Ed. Du Seuil, 1955, p. 238.
17
Id., L‟Energia Humaine. Paris: Ed. Du Seuil, 1962, p. 54.

120 Coleção Filosofia - 175


por meio do pensamento, da arte, da indústria, do comércio, da política e da técnica, ou
seja, da carpintaria de José em Nazaré, aos que não foram chamados aos conventos e
mosteiros. Onde dever-se-á procurar a base para uma espiritualidade de engajamento do
leigo? Por que a técnica, nas suas mais diversas manifestações, apenas seria filha adotiva
da mística cristã? Tal atitude traz em si o perigo de os cristãos negligenciarem as tarefas
terrenas, chegando assim a uma espécie de divisão interior, a uma separação entre a vida
espiritual, de um lado, e a atividade humana, de outro. Tal perigo é muito grave, porque
muitos cristãos não reconhecem mais o elo de união entre a própria vida humana e Deus.
Muitos mestres da vida espiritual afirmam a necessidade do trabalho no mundo,
mas logo acrescentam, cuidadosamente, ―com desapego absoluto do mesmo‖, confiando
a solução do dualismo à reta intenção: fazer, não considerando a obra em si, mas só a
vontade de Deus. A primeira vista, isso pode convencer. Mas na realidade trata-se de
uma atitude dupla que, sob o ponto de vista da unidade psicológica do homem, é muito
perigosa. Teilhard constrói Le Milieu Divin, à base de dois momentos de nossa vida: a
ação e as passividades. Na primeira parte, chama tal solução de incompleta e
insatisfatória, porquanto ―a ação humana tem valor, mas adquire este valor da intenção
com que a realizamos‖. Tal solução incompleta e insatisfatória garante sua veracidade,
porque acentua o papel decisivo e fundamental da intenção, que é a chave de ouro de
nosso mundo interior à presença divina 18. A divinização de nossa atividade pelo valor da
intenção inspira vida preciosa a todas as ações. Priva, contudo, o corpo da esperança de
ressurreição. Nossa alegria só pode ser completada com essa esperança.
Se me foge o sentido e todo o valor da obra em si mesma, como posso então
dedicar-me com entusiasmo e paixão à minha tarefa? Uma motivação extrínseca é
insuficiente. Até meu estudo deve dispor-me à abertura para o transcendente, a fim de que
eu possa dedicar-me com sinceridade totalmente à pesquisa. A motivação meramente
extrínseca, de alguma maneira, se assemelha à atitude de uma mestra de noviças que
manda as noviças regar paus secos, só para experimentá-las na obediência. Que gosto terão
elas no trabalho absurdo? Podemos estar convencidos de que Deus exige de nós mais
inteligência que de tal mestra de noviças. Deus não é tirano. Responsabiliza-nos perante
nossa razão. A presença divina age intrinsecamente à nossa ação. Assim o cristão fica
engajado no mundo com um sentido transcendental e não como um autômato. A atitude de
autômatos é prejudicial, não só do ponto de vista apologético, pois cientistas não-cristãos
— os pagãos e os marxistas — não confiam em tal cristão, mas ela também está em
desarmonia com o preceito de Deus de ―trabalhar a terra‖ (Gn 1, 28).
Depois de rejeitar a primeira solução, que se restringe à intenção, por ser
incompleta, Teilhard apresenta a verdadeira solução: ―Todo o esforço coopera para
completar o mundo em Cristo Jesus‖19. Esclarece essa afirmação na forma de um
silogismo: ―No seio de nosso universo cada alma é para Deus, em Nosso Senhor. Mas,
de outro lado, toda a realidade, mesmo material, ao redor de cada um de nós existe para
nossa alma, para Deus em Nosso Senhor‖ 20. Em virtude da inter- ligação matéria-alma-

18
Id., Le Milieu Divin, p. 39.
19
Id., ibid., p. 41.
20
Id., ibid., p. 41-42.

Coleção Filosofia – 175 121


Cristo, nós colaboraremos na construção do pleroma, isto é, na obra de levar ao Cristo
um pouco de acabamento. O raciocínio acima é tão simples, e justamente por isso lembra
S. Paulo, quando escreve aos Coríntios: ―Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo e Cristo é
de Deus‖ (1Cor 3, 22-23).
Numa linda página de Le Milieu Divin, Teilhard descreve ―a comunhão pela ação‖:

―Pela repercussão mais ou menos profunda e direta sobre o mundo espiritual, cada
uma de nossas obras contribui a perfazer o Cristo na sua totalidade mística. Eis a
resposta à nossa questão do modo mais completo possível: como poderemos nós,
seguindo o convite de S. Paulo, ver Deus em todo o meio ativo de nossa vida? — Pela
operação sempre ativa da encarnação, o divino penetra nossa energia de criaturas de tal
maneira que não saberíamos encontrar outro meio mais apropriado que nossa ação
mesma, a fim de reencontrarmos e abraçarmos o divino.
Na ação adiro à potência criadora de Deus. Identifico-me com ela. Torno-me, não só
um instrumento, mas seu prolongamento vivo. E como no ser nada há de mais íntimo que
sua vontade, confundo-me, de alguma maneira, por meu coração, com o coração de Deus.
Este contato dura sempre, porque sempre estou ativo. E como não existem limites à
perfeição de minha fidelidade e ao fervor de minha intenção, este mesmo contato
simultaneamente permitirá assemelhar-me sempre mais estreita e indefinidamente a Deus.
A alma não mantém esta comunhão para gozar ou para perder de vista o objeto
material da ação. Não é, pois, criadora a atividade a que ela se decide? O desejo do
sucesso e certo amor apaixonante à obra a realizar constituem parte integrante de nossa
fidelidade de criaturas. Disso até depende a sinceridade com que nós desejamos o
sucesso de Deus, como um novo fator — outrossim ilimitado — a nos impulsionar à
união mais perfeita com o Todo-Poderoso, o qual nos anima. No começo estávamos
associados a Deus no simples exercício comum das vontades e agora nos unimos a Ele
no amor comum ante o resultado a obter. E maravilha das maravilhas é que, no resultado
obtido, temos a alegria de encontrá-lo ainda presente‖.

Esta é a conclusão imediata do que acima dizíamos sobre a interligação da ação


natural e sobrenatural do mundo. Todo o crescimento, que conquisto a mim ou às coisas,
aumenta minha força de amar e significa um progresso na feliz posse do universo por
Cristo. Nosso trabalho, sobretudo, nos parece um meio de ganhar o pão cotidiano. Mas
seu valor último é muito mais elevado: por ele aperfeiçoamos em nós o sujeito da união
divina, e, até certo ponto, também fazemos crescer — em relação a nós — o termo dessa
união, Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim artistas, operários, sábios, qualquer que seja
nossa função humana, sendo cristãos, nós podemos precipitar-nos sobre o objeto de
nosso trabalho como sobre a porta aberta à maior perfeição de nosso ser. Na verdade,
pela simples confrontação das verdades fundamentais de nossa fé e da experiência, sem
exaltação nem exagero, constataremos o seguinte: Deus é atingível ilimitadamente na
totalidade de nossa ação. Este prodígio da divinização só pode ser comparado com o
carinho com que se realiza uma metamorfose. De modo algum obscurece a perfeição e a
unidade do esforço humano. Non minuit, sed sacravit21.

21
Id., ibid., p. 50-53.

122 Coleção Filosofia - 175


Na primeira parte de Le Milieu Divin (onde Teilhard fala da ação humana), há um
capítulo intitulado ―A perfeição do esforço humano‖, com dois subtítulos muito
significativos para sua espiritualidade: a) a santificação do esforço humano; b) a
humanização do esforço cristão22. Na última parte ocupa-se diretamente com as graves
censuras, que homens da técnica e da ciência de nosso tempo levantam contra os
cristãos:

―A grande objeção de nosso tempo contra o cristianismo, a verdadeira fonte de


desconfianças, que separa grupos inteiros da humanidade da influência da Igreja, não
consiste necessariamente em dificuldades históricas ou teológicas, mas na suspeita de
que nossa religião torne os fiéis desumanos‖23.

Os cristãos são acusados de fugirem da sociedade para formar grupos sectários,


de não exercerem a profissão de maneira convicta, mas apenas por causas extrínsecas.
Quando se dedicam às profissões profanas, muitas vezes só o fazem com o propósito
apologético de mostrar aos não-cristãos que eles, os cristãos, não são bobos.

―Em resumo, quando um católico trabalha conosco. nós sempre levamos a impressão
de que ele não procede com sinceridade, mas por condescendência. Parece interessar-se
só até certo ponto. Mas no fundo ele não crê no esforço humano‖24.

Os cristãos são acusados de não irem até à raiz do ser humano. Teilhard reage
contra tais acusações:

―Suspeitais que não partilhamos vossas angústias, vossas esperanças e vosso


entusiasmo de penetrar os mistérios e de dominar as forças da natureza. Em nome de
nossa fé temos o direito e o dever de nos apaixonarmos pelas coisas da terra‖ 25.

O cristianismo não amarra as forças da sociedade humana. O caminho traçado


pelo cristianismo nos conduz a cumes mais elevados, tão altos que ainda são invisíveis.
Mas a encosta, que conduz àquelas alturas, está tão estreitamente identificada com o
chão, que ora pisamos, que para nós não existe nada mais humano que o desapego, mas
um desapego inteligente e cristão no sentido autêntico. Resumindo, Teilhard encerra a
primeira parte de Le Milieu Divin: ―Aquele que se apega ao dever humano, seguindo a
fórmula cristã, apesar de exteriormente parecer mergulhado nas solicitudes da terra, é,
até o fundo de si mesmo, um grande desapegado‖ 26.
―Na realidade, ele (o cristianismo) é uma alma poderosamente ativa‖ 27, que dá um
sentido e maior atração à vida da sociedade humana.

22
Id., ibid., p. 55 e 59..
23
Id., ibid., p. 59.
24
Id., ibid., p. 59-60.
25
Id., ibid., p. 61.
26
Id., ibid., p. 63-64.
27
Id., ibid., p. 62.

Coleção Filosofia – 175 123


Conclusão

Sem dúvida alguma, torna-se difícil dizer até que ponto as suspeitas e desconfianças
contra os cristãos, especialmente contra os católicos, são justas. Contudo, podemos crer
que não foram tiradas inteiramente do ar. Parece-nos certo que os ateístas não nos objetam,
em primeiro lugar, por causa de nossa fé, mas porque dedicamos muito tempo — na visão
deles — às formalidades do culto e, na vida prática, nada se altera, especialmente lá, onde
se trata de grandes massas em miséria. Devemos ter clareza de que não poderemos iludir os
miseráveis com bons conselhos. Em outras palavras, os ateístas nos criticam, em primeiro
lugar, onde negligenciamos nossos deveres humanos e sociais. Na situação atual não
cumprimos nossos deveres de cristãos autênticos, dando apenas uma esmolinha ao pobre,
quando bate à nossa porta. Hoje se nos impõe a tarefa de fazer com que o pobre não
precise mais de esmola, que se possa ajudar a si mesmo. E preciso proporcionar-lhe
chances de auto-realização, na medida em que tal é possível. Precisaremos usar as ciências
e a técnica não só contra a pobreza e as doenças. ―O interesse do cristão está nas coisas, em
dependência absoluta da presença de Deus nas mesmas‖.
Teilhard tenta superar o abismo entre o ―filho da terra‖ e o ―filho do céu‖. Na sua
mística da ação cremos divisar novo tipo de ascese, isto é, de ir a Deus através do
mundo. Claude Cuénot pensa que a espiritualidade de Le Milieu Divin, da qual
expusemos alguns aspetos concernentes à ação. marca um avanço da Igreja em direção à
sua unidade, porque a faz tomar consciência dos efeitos universalmente purificadores e
santificantes da encarnação 28.
A síntese teilhardiana certamente exige uma reflexão mais crítica. Desde já temos
certeza de que não a poderemos rejeitar totalmente. A unidade entre a dedicação ao
mundo e o amor a Deus, entre a vida de todos os dias e a religião dominical fundamenta-
se na idéia cristã de criação e de redenção. E verdade de fé que Deus também está
imanente à criação em todos os seus momentos. Por isso a atividade humana é meio
salvífico. Não pode existir um cristianismo alheio ao mundo, mesmo para o monge
enclausurado. Na visão de Teilhard, essas motivações convencem de tal maneira, que no
fim conseguem libertar novos impulsos à tarefa do cristão no mundo, mostrando que o
trabalho profano não contradiz a santificação. Contudo, Teilhard talvez distinga de
menos mundo e Deus, aquém e além, dando-nos, às vezes, a impressão de suspender a
tensão real entre matéria e espírito. Corre o perigo, ao menos na interpretação, de
restringir a religião às dimensões intramundanas, identificando, por exemplo, o trabalho
profano com a construção do Reino do céu, a ação terrena com a ação redentora e
salvífica da graça, porque lhe falta um pouco o pensamento polar. Numa leitura
superficial, facilmente nos poderá escapar a intencionalidade sobrenatural e grandiosa da
criação orientada toda ela para Cristo (Cl 1, 15-20). Dizer, contudo, que a síntese
teilhardiana carece de fundamentos bíblicos parece-nos mui precipitado. Na Bíblia
encontramos apoio para dizer que até ao fim dos tempos a santidade de Deus terá
transpenetrado tudo (Nm 14, 21), pois naqueles dias mesmo os ―cincerros dos cavalos‖ e

28
Cl. CUÉNOT, Teilhard de Chardin. Paris: Ed. Seuil, 1962, p. 155. Col. Écrivains de toujours

124 Coleção Filosofia - 175


as ―panelas‖ serão santas como os vasos do templo (Zc 14, 20s). Então terá desaparecido
toda a profanidade, e a santidade de Deus encherá o universo.

Principais obras de Teilhard

Le Phénomène Humain (1955) — L‟ Apparition de l„Homnie (1956) — La Vision


du Passé (1957) — Le Milieu Divin (1957) — L„Avenir de l„Hornine (1959) —
L„Energie Humaine (1962) — L‟Activation de l‟Energie (1963) — Construire la terre
(caderno publicado em 1958).
As acima citadas obras foram publicadas póstumas pela Editora Du Seuil, de Paris.
A coleção de cartas:
1) Génèse d„une pensée. Lettres (1914-1919).
2) Lettres de Voyage (1923-1955) publicadas pela Editora Grasset de Paris.

Coleção Filosofia – 175 125


UMA MÍSTICA CRISTÃ?
A situação religiosa, no Ocidente, passa por transformações profundas. O
homem ocidental transferiu seu interesse da doutrina para a experiência prática. Busca o
caminho a Deus através de experiências individuais. Essa busca ocorre, muitas vezes, à
margem das Igrejas tradicionais. Observamos que as próprias experiências espirituais, no
Ocidente, não só se inspiram nas religiões orientais ou em práticas como Yoga e Zen,
mas não faltam caminhos novos que vão do Channeling ao Tantra.
No contexto dessa nova procura, redescobriu-se a mística, embora de maneira
difusa, como um conceito bastante vago. Nessa redescoberta manifesta-se a necessidade
do recolhimento e de volta para o próprio interior que hoje o homem sente. Infelizmente
essa idéia de uma nova mística não raro é associada a sistemas esotéricos, a doutrinas
ocultas e práticas mágicas.
O fascínio de uma ―nova era‖ que, sob o signo do peixe, viria para substituir a
―era cristã‖ despertou muitos para a mística. Mas também entre os cristãos surgem
tentativas de renovação espiritual, como o revelam os movimentos neopentecostais e a
Renovação Carismática católica. Em continuidade às correntes místicas da tradição
cristã, busca-se, então, uma renovação e um aprofundamento da própria fé.
Nesse processo de transformação, dentro e fora das Igrejas tradicionais, a
palavra mística tenta expressar uma dupla preocupação: a) por um lado, busca-se
autenticidade. Fé e religião não toleram vivência apenas superficial. Os cristãos
perguntam-se a si mesmos: também vives o que crês? Através dessa pergunta, procura-se
discernir a autenticidade da própria fé. Verdadeira religião ou se baseia na experiência da
vida ou não é. b) Por outro lado, busca-se a transcendência, o sagrado. Muitas pessoas
sentem desconforto e mal-estar frente às formas tradicionais da vivência cristã. Por isso
tentam encontrar novas formas de viver a piedade, caminhos novos para o crescimento
espiritual e o aprofundamento de sua fé.
Não raro até se pode ter a impressão de que as instituições tradicionais carecem
de competência para orientar o povo, um povo sedento de Deus. Quando Max Weber
proclamou a ―desencantamento do mundo‖, parecia não haver mais espaço no mundo da
ciência racionalista e da técnica para o cristianismo. Hoje temos a impressão de que todo
o cristão do futuro será um místico.
Muitas pessoas identificam mística cristã com fenômenos espirituais extraordinários
como visões, êxtases, audições especiais, estigmas, levitação etc. O termo ―mística‖ é sem
contornos precisos. Ocorre no campo religioso e no campo profano. Todas as grandes
religiões tradicionais têm a sua mística como caminho para atingir a mais alta perfeição.

126 Coleção Filosofia - 175


1 — O que se entende por mística?

A palavra mística não é de origem cristã, e a mística cristã não é a única. O termo
mística provém do adjetivo grego mystikós, relacionado com o verbo mýo (fechar os olhos
e a boca para penetrar num mistério sem divulgá-lo) e myéo (iniciar-se nos mistérios),
significando oculto ou relativo a um mistério. Fechar os olhos corporais, para que os olhos
espirituais vejam o que deve ser visto; e a boca, para que não diga o que não sabe ou não
pode dizer. Fechar os olhos corporais para que, recolhido à sua própria intimidade, abra os
olhos espirituais para o abismo insondável e indizível de si mesmo e das coisas. Assim a
palavra mística indica ―algo indeterminado‖ para além do que se vê, se descreve ou
designa, algo muito importante, que permanece na esfera do inefável. Por outro lado, o
místico parece ver o que os demais não percebem.
Na filosofia platônica, sobretudo no neoplatonismo e no gnosticismo, mística
passou a designar conhecimento, falar místico como discurso inadequado de uma última
verdade envolvida de mistério inexprimível, porque eleva acima de tudo o que é lógico e
racional. A partir do século XVII, a palavra mística é empregada para designar o campo dos
fatos místicos (a mística) e a quem passa por uma experiência deste gênero (os místicos).
A palavra mística é usada para designar: a) na linguagem profana: a vivência de
ideologias fortemente arraigadas e absorventes, por exemplo, a mística marxista; b) nas
religiões orientais: a comunhão com Deus ou com deuses que o homem julga conseguir
mediante próprio esforço; c) na concepção bíblico-cristã: comunhão obtida por
condescendência ou graça de Deus, o qual se revela e comunica ao homem que se dispõe
a acolhê-lo e a colaborar na santificação própria e dos outros.
De maneira genérica, por estados místicos entendem-se estados que, por um
lado, se caracterizam por uma desvalorização e uma espécie de desaparecimento dos
símbolos sensíveis e das noções do pensamento abstrato e discursivo e, por outro lado,
pelo contato direto e imediato do espírito com a realidade transcendente possuída em si
mesma. A primeira característica nem sempre é evidente. A segunda, entretanto, está
presente em todos os estados místicos.
No estudo comparativo das religiões, no concernente à realidade possuída ―em
si mesma‖, distingue-se uma mística de imanência e uma mística de transcendência. O
primeiro caso é o de numerosos místicos hinduístas, para os quais a realidade não é outra
coisa que o próprio sujeito em sua profundidade abissal, o atmã descoberto e percebido
na experiência última, num recolhimento em si mesmo, num êxtase sem diferença entre
o sujeito e o objeto.
No caso da mística da transcendência, como entre judeus, cristãos e
muçulmanos, a experiência desenvolve-se no interior e não fora da fé teologal. A
realidade última, concebida como transcendente, eleva o sujeito até ela.
Desde a Idade Média tornou-se clássica a definição de mística como ―o
conhecimento de Deus pela experiência‖. A mística encontra seu ápice na união de Deus
com a alma. Tal experiência, por breve que seja, é uma mística da vivência, um
fenômeno extraordinário, concedida a poucas pessoas.
A experiência almejada exige uma preparação. Em sentido mais amplo, faz
parte da mística a atitude religiosa global. Geralmente essa preparação é designada como

Coleção Filosofia – 175 127


caminho ou viagem de ascensão por, pelo menos, três degraus: purificação (purgatio),
iluminação (illuminatio) e união (unio). O primeiro passo compreende a conversão, a
vigilância, abstinência etc. O segundo é a iluminação ou transformação. Nessa etapa, o
homem é transformado por Cristo através de uma experiência que, de maneira
extraordinária, pode assumir a forma de êxtase e conduzir, num terceiro momento, à
união com o divino (Deus). E claro, a meta da ascensão não é o sentimento nem a
emoção, mas a clareza e a liberdade na ação. Também não se trata de fugir do mundo,
mas do fundamento do cotidiano.

2 — Na Sagrada Escritura

No Antigo Testamento, o Deus da aliança impõe a seu povo o dever do culto e


da lei. Não se fala de mística. As pessoas relacionadas mais intimamente com Deus
encontram-se distantes da mística.
No Novo Testamento, em vista da experiência salvífica e da posse do Espírito,
há indícios de mística. Mas a atitude predominante é a fé, não a visão mística (1Cor 13,
12); a esperança escatológica, não a felicidade presente (Rm 8, 24); o dever ético, não a
posse de Deus (1Jo 2, 3-6); a sobriedade e a vigilância. Paulo e João, os autores com
certa tendência mística, distanciam-se da gnose.
A mística da Igreja apostólica pressupõe o modo de ser pneumático de Cristo,
que se une com os seus através do pneûma. Neste sentido, o Lógion de Mt 18, 20, refere-
se apenas à união espiritual, não indicando uma experiência mística. A mística
cristocêntrica de Paulo desenvolve-se na consciência da fé de uma união viva com
Cristo, que só chega à plenitude no além, impulsionando, não para uma fuga do mundo,
mas para ação apostólica. Só com reserva São Paulo fala de uma experiência mística
extraordinária (2Cor 12, 2), preocupado em não estimular uma busca falsa (1Cor 14,
18). Tanto Paulo como João evitam expressões de identidade, preservando a união a
Cristo pela fé, acentuando a união com Deus pela graça (Jo 6, 56) e estimulam os frutos
do amor (Jo 15, 4-10). Mas, a concepção do envio do Espírito fecunda a piedade cristã
na profundidade do ser. Entretanto, a Bíblia permite interpretações místicas.
Desde o começo, a mística cristã é a tentativa de viver para e a partir do
mistério de Deus. Esse mistério é designado mistério de encarnação, ressurreição e
presença de Cristo (1Tm 3, 16). Se é verdade que a Sagrada Escritura é a palavra de
Deus, o é na palavra humana. Uma teologia e uma liturgia, que se fixam exteriormente
na palavra, incorrem no perigo de exagerar a palavra e excluir o mistério indizível.
Palavra e mistério não se excluem mutuamente. Entre ambos persiste uma tensão. A
palavra viva cria vida que também se pode expressar na atitude mística do silêncio. O
mistério não se conhece mas se reconhece na adoração, se aceita ou se rejeita.

3 — Na história do cristianismo

Os Padres da Igreja acolheram a palavra mística, que na teologia alexandrina


(Orígenes) assumiu sentido tríplice: cultural, querigmático e teológico. Denominam-se,
então, místicos os objetos do culto e os ritos litúrgicos enquanto simbolizam um mistério

128 Coleção Filosofia - 175


divino, o mistério de Cristo e da redenção; místico é o sentido espiritual da Sagrada
Escritura; mística é, sobretudo, a misteriosa comunhão do cristão com Cristo. No sentido
teológico, mística é a gnose carismática, plena de amor, do perfeito homem espiritual.
Desenvolve-se a ―mística do Lógos”.
No cristianismo a palavra mística passou a ser usada, a partir do século III, como
sinônimo de gnose ou conhecimento profundo das verdades da fé (Escola de Alexandria),
no sentido de misterioso conhecimento de Deus (Marcelo de Ancira), de inefável
conhecimento de Deus, resultante da contemplação (Pseudo-Dionísio Areopagita).
A partir do século IV, passa a empregar-se teologia mística para designar a
doutrina de subida aos degraus mais altos da experiência de Deus e da comunhão íntima
com Ele. Na história da piedade cristã, a descrição da experiência de Deus e de Cristo
varia nos modos de união com Deus e com Cristo, refletindo, muitas vezes, as
concepções teológico-filosóficas de uma determinada época. Por vezes, predominam os
traços ontológicos, teológicos ou psicológico-afetivos. Nos tempos mais recentes, o
termo mística também passou a ser usado no campo religioso, no sentido de
espiritualidade de movimentos ou grupos ou vivência de ideologias. Torna-se um estilo
de viver o mistério da fé cristã. No sentido de buscar a perfeição cristã, por diversos
caminhos, pode falar-se, por exemplo, de uma mística beneditina, baseada na fórmula
ora et labora; de uma mística dos jesuítas, formulada na frase omnia ad maiorem Dei
gloriam; de uma mística marista, fundada na vivência da humildade e da simplicidade
etc. Evidentemente, no catolicismo, tais místicas são formas concretas de viver
determinados aspectos do mistério fundamental da fé cristã. Por mais que difiram os
místicos e as místicas e a forma de manifestar suas experiências, sempre se trata de uma
orientação da vida na dimensão profunda.
Seria errôneo querer limitar o objeto da mística aos fenômenos extraordinários,
pois o conhecimento de Deus e a comunhão com Ele no mais elevado grau não necessitam
dessas manifestações externas. A perfeição cristã, considerada como dom de Deus e obra
do homem, admite caminhos diversos nos quais a contemplação ocupa um lugar natural,
pelo menos nas fases mais adiantadas. Devem salvaguardar-se a unidade e convergência da
ação de Deus e do homem. A iniciativa sempre é de Deus que busca e realiza a comunhão
com o homem em seu Filho Jesus Cristo como perfeição. Nesse sentido, Cristo é o místico
por excelência em virtude de sua comunhão íntima com o Pai no Espírito Santo.
Nos primeiros três séculos, as formas mais elevadas do seguimento de Cristo
foram o martírio, a virgindade e a oração. Salienta-se a figura de Inácio de Antioquia,
homem investido da dignidade episcopal, enfrentando o martírio. Um século depois, a
jovem mãe Perpétua, natural de Cartagena, foi jogada às feras e fortalecida na fé por
uma visão mística. O espírito grego e a língua helênica unem a teologia cristã do
Ocidente e do Oriente, nos séculos III e IV, para fundamentar um sistema místico cristão
frente à gnose. Ireneu de Lião afirma: ―A redenção aconteceu, a união com Deus por
Cristo na fé e no amor é a essência do cristianismo‖. Nos séculos IV a VII, a mística
continuou a ter como campo predileto de vivência e reflexão a virgindade e, em relação
ao contexto histórico, o ministério sacerdotal e o monaquismo. Clemente de Alexandria,
sem referir-se a êxtase, delineia a imagem do ―gnóstico perfeito‖, do ―homem
divinizado‖, iluminado pela fé e movido pelo amor (Strom VI, 9: VII, 3,1). Orígenes,

Coleção Filosofia – 175 129


frente ao crescente neoplatonismo, acentua a transcendência divina e o nascimento de
Deus no interior do homem. São Basílio reúne os monges solitários do deserto em
comunidades, cujos ―pais espirituais‖ tornaram-se da maior importância para a pastoral
dos leigos no cristianismo oriental, como S. Bento para a cultura ocidental. Os mosteiros
tornam-se lugares de contemplação e mística.
No Ocidente, não se devem separar nem igualar doutrina mística e experiência
pessoal. Entre os Padres da Igreja merece destaque especial S. Agostinho, ao lado de
Gregório Magno, por sua influência na mística medieval. Do neoplatonismo, Agostinho
herdou o anseio da ―visão de Deus‖, mas como cristão rejeitou a idéia neoplatônica da
unidade essencial entre Deus e alma. Quando descreve a ascensão, até tocar ―de leve o
eterno‖ (Conf IX, 10), esta não deve ser interpretada como visão de êxtase. Como
teólogo, inclusive considera Moisés e Paulo como exemplos da visio Dei imediata (Gn
ad lit 27 e 28); posteriormente, no estudo do Evangelho de S. João, abandonou tal idéia,
na segunda fase de sua vida, acentuando a comunidade no Corpo de Cristo, ou seja, o
amor prático com o desejo da visão eterna.
Na Idade Média desenvolvem-se místicas que inculcam a caridade, a
virgindade, a obediência, a pobreza, a contemplação e a oração como meios para chegar
à perfeição cristã, como S. Bento propusera a seus discípulos o trabalho manual e a
oração litúrgica: ora et labora. Surgem as chamadas Escolas de espiritualidade enquanto
métodos de vida e perfeição cristã. Essas Escolas concordam no essencial, pois Cristo é
o Mestre e Modelo a ser seguido por todos os seus discípulos. Podemos exemplificar: a
Escola beneditina com os ramos de Cluny e Cister, a dominicana, a franciscana, a
flamenga ou devotio moderna, que surgiu em reação ao intelectualismo da Escolástica.
Essas Escolas continuam florescendo nos tempos modernos e surgem novas, como a
inaciana ou jesuítica, a carmelitana (Santa Teresa de Ávila, S. João da Cruz), a salesiana
(S. Francisco de Sales). Mais recentemente, surgiram místicos notáveis, como S. João
Maria Vianney, Santa Teresa de Lisieux, Charles de Foucault, entre outros. O concílio
Vaticano II proclamou a vocação universal à perfeição cristã. reconhecendo lugar
eminente à contemplação e ao trabalho.
Há místicas leigas e até atéias. Podemos dizer que a mística marxista é
constituída pela meta da justiça plena e igualitária entre todos os homens, tendo por
instrumento a luta de classes, a qual deve superar a trágica situação presente. Diante das
opressões concretas, os marxistas fazem opção em favor dos pobres. Se a mística
marxista parece coincidir com a mística cristã, quanto à meta social proposta, discorda,
quando apresenta como caminho essencial e como orientação básica de sua ação a luta
organizada da classe dos oprimidos contra os opressores.
Podemos dizer que por mística cristã entende-se, tradicionalmente, um estilo ou
forma de vida para testemunhar a fé cristã no mundo. Assim, fala-se da mística fé cristã
no mundo. Assim, fala-se da mística deste ou daquele sistema, grupo, movimento, época
etc., entendendo-se por mística as idéias-chaves de atitude, comportamento e ação no
mundo. Qual a mística cristã nos dias de hoje?

130 Coleção Filosofia - 175


4 — Limites e desafios da mística

Movimentos místicos existem em todas as grandes religiões. Parece que todos


têm a mesma meta: chegar ao fundamento último do ser e à união com o princípio
divino. A experiência mística, que rompe os limites estreitos de toda a doutrina e
transcende as barreiras confessionais, é, por isso, muitas vezes, apresentada como
fundamento de toda religião, a unidade para além ou aquém de todas as diferenças.
Chega- se mesmo a afirmar que a diferença entre as religiões, em última análise, existe,
porque algumas se baseiam em Escrituras, dogmas, ritual ou símbolos, e outras partem
da experiência e para ela se orientam.
Muitas coisas, que hoje circulam no mercado esotérico, não passam de mistificação.
Coisas banais e triviais apresentam-se como misteriosas. Por isso torna-se importante
discernir entre mística verdadeira e falsa. Mística cristã não é ocultismo, nem magia ou
superstição. Êxtases, visões extraordinárias não pertencem à essência da mística cristã.
Podemos trabalhar com a hipótese de que, nos próximos anos, aumentará o
número de pessoas que encontram acesso à dimensão religiosa através de experiências-
limites. Essas pessoas dificilmente encontrarão parceiros nas Igrejas tradicionais para o
diálogo. Este é hoje um grande desafio pastoral. Certamente o homem procura a
meditação, que hoje está muito ausente das rotinas paroquiais e dos próprios conventos e
seminários. A meditação exercita e ajuda a encontrar sentido. O exercício da meditação
abrange a situação global da pessoa, que não se limita a exigências éticas e formulações
dogmáticas, pois a vida da fé envolve o homem em todas as dimensões de seu ser. Na
meditação leva-se a sério a Deus que nos fala, não só através da Bíblia e da Igreja, mas
também através de nós mesmos.
O interesse de pessoas, dentro e fora da Igreja, na vida e obra de místicos
cristãos como Mestre Eckhart, Teresa de Ávila, S. João da Cruz, Thomas Merton e
muitos outros, indica uma grande chance, para a mística cristã, em nossos dias, de
introduzir o povo no mistério da fé cristã. Tal caminho pode ser andado individualmente
ou em grupos. Nessa linha situam-se os exercícios espirituais inacianos, através de um
retiro de semanas, dentro do princípio de que ―não é o saber muito que satisfaz a alma,
mas a contemplação interior e o saborear as coisas‖ (Inácio de Loyola).
A mística não deixa de ser uma forma mais acentuada da experiência religiosa
perceptível. Como se parte da percepção fácil, e a literatura espiritual quase só se
preocupa com essa forma, pode surgir a impressão de que não se trata apenas de um
acento mais forte, mas que a mística só é acessível a poucos. Com isso esconde-se a
realidade de que a mística também faz parte daquele fenômeno da experiência do
Absoluto que, através dos séculos, manifesta os diferentes aspectos da vida espiritual da
humanidade e do cristianismo.
Na verdade, tudo que, geralmente, se atribui como sendo característico da
mística, é essencial para a experiência religiosa fundamental: o fato de que em seu
movimento para o. Absoluto este se expressa a si mesmo e se manifesta na experiência;
ausência total de imagens, conceitos e, com isso, simplificação da vida interior; falta de
objetividade, da plenitude, da paz e da alegria; acolhimento da manifestação divina e
percepção da novidade singular. Nesse sentido, a forma acentuada da experiência mística

Coleção Filosofia – 175 131


pode ser o resultado de uma influência da parte do Absoluto ou, também, o resultado de
uma perceptibilidade maior da ação ordinária do Absoluto.

132 Coleção Filosofia - 175


EXPERIÊNCIA DE DEUS EM TERESA DE ÁVILA E
HOJE

A experiência mística de Teresa de Ávila deverá ser considerada no contexto da


situação histórico-teológica de seu tempo. Por isso, em nossa exposição, procederemos
em dois passos:
1 - A experiência mística de Teresa de Ávila
2 - Experiência de Deus hoje

1 - A experiência mística de Teresa de Ávila

Teresa de Ávila é uma mística dos tempos modernos. Depois do período áureo
da teologia da Alta Idade Média, i. é, depois do século XIII, surgiu na Europa uma
separação sempre mais profunda entre a teologia das universidades e a vida de piedade
do povo cristão. Os cristãos, sobretudo os religiosos, se queixaram de que a teologia dos
doutores não os orientava para a vida prática, que não era fonte de vivência cristã. Por
outro lado, os teólogos se queixavam de que os homens religiosos ou místicos não se
inspiravam na teologia, nem se deixavam orientar por ela. Esta situação levou a uma
série de famosas disputas nas quais não raro intervinha a inquisição. Assim o grande S.
João da Cruz, um dos colaboradores de Teresa na reforma das carmelitas, e a própria
Teresa foram suspeitos da inquisição.
Como se explica este abismo entre teologia-ciência e vida prática?
O reavivamento da filosofia grega no Ocidente cristão por Tomás de Aquino e
outros tivera como conseqüência que a teologia posterior, sobretudo depois do século
XIV, se abastecia mais na filosofia que na Bíblia. A função dos teólogos consistia em
fundamentar filosoficamente a doutrina positiva do magistério eclesiástico, sem
questionar mais uma vez a própria doutrina do magistério à luz da revelação bíblica.
Surgiu, assim, o que na história da teologia chamamos de positivismo doutrinário do
magistério. Contra esta atitude positivista protestou a Reforma de Lutero, voltando-se à
Bíblia. Mas, na teologia católica, este desenvolvimento teológico continua, em suas
grandes linhas, até o concílio Vaticano II.
Nesta situação formou-se, paralelamente à teologia dos doutores, nas
universidades, a mística. Etimologicamente a palavra ―mística‖ deriva do grego
mystikós, proveniente dos verbos mýo, que significa fechar os olhos e boca para
interiorizar-se de um mistério, e do verbo myéo, que significa ser introduzido nos
mistérios. Os místicos não só falavam uma linguagem própria, mas até polemizavam —
contra a esterilidade da teologia dos acadêmicos. Os místicos são homens que procuram,
na vida prática, a experiência imediata de Deus através da oração. Têm como meta a
contemplação — por isso na Idade Média também se diz contemplatio de Deus na linha

Coleção Filosofia – 175 133


do crescimento da fé, da ascensão espiritual, do crescimento na santidade. São os
místicos que orientam a piedade nos conventos e do povo cristão em geral.
Nos primeiros 13 séculos, os místicos escondiam suas experiências pessoais por
detrás da Bíblia. Os santos padres, não raro, descrevem a vida mística como o
nascimento de Deus no coração do homem. Acentua-se o velamento ou mistério de Deus
na revelação em Jesus Cristo.
Desde o século XIV, os místicos expõem sempre mais sua experiência pessoal
com Deus, salientando menos o elemento especulativo intelectual e mais o elemento
afetivo e psicológico da contemplação. S. Agostinho tornou-se o grande mestre dos
místicos da Idade Média. Surgem tentativas de descrever os diversos graus e o lugar
propriamente dito da experiência mística, ou seja, de Deus. Cresce a devoção à
humanidade de Jesus, o que favorece a interpretação psicológica. A mística se expressa
nas devoções afetivas do matrimônio espiritual, da Paixão do Senhor, do S. Coração etc.
Sobretudo os dois primeiros modos encontramos na obra de Teresa. Nas meditações
sobre o Cântico dos Cânticos, p. ex., desenvolve a mística do matrimônio espiritual de
um modo que hoje nos poderia chocar em nosso relacionamento intelectual e frio com
Deus. Nos Opúsculos escreve: ―Beije-me com o beijo de sua boca (...) E juntar-se com a
vontade de Deus, de maneira que não haja divisão entre Ele e ela; e a vontade de ambos
seja a mesma, não por palavras, ou só por desejos, mas pela realização das obras‖ 29. E
segue meditando sobre os versos do Cântico: ―Mais valem teus peitos que o vinho,
fragrantes como os mais preciosos bálsamos (...) Meu amado é para mim, e eu sou para
meu amado (...) Se assim é, de hoje em diante, Senhor, quero esquecer-me de mim, e
olhar só em que vos poderei servir; e não ter outra vontade senão a vossa (...) E se a mim
vos chegais, como posso duvidar que serei capaz de prestar-vos muitos serviços?‖
Nos tempos modernos, a mística tornou-se sempre mais coisa do homem
individual em seu relacionamento individual com Deus. Desta maneira, por vezes, é
muito difícil distinguir a mística autêntica da simples afetividade subjetiva. Também a
experiência que Teresa faz de Deus distingue-se, em grandes linhas, das experiências
místicas de épocas anteriores. Teresa procura Deus não tanto na natureza, mas em si
mesma, em sua profundidade. Isto se compreende, porque se situa na transição do
cosmocentrismo e do teocentrismo para o antropocentrismo. Sem dúvida, a descrição
psicológica da mística nos tempos modernos chegou a certo acabamento na obra
magistral de Teresa de Ávila. Teresa é, em primeiro lugar, reflexo de seu tempo. Busca
como fontes de sua sabedoria leituras, colóquios com os grandes mestres de teologia e de
espiritualidade. Leu as cartas de S. Jerônimo, as Confissões de S. Agostinho etc. Não
assume posições anti-intelectualistas. Pessoalmente insiste, p. ex., em que os diretores
espirituais ou confessores sejam letrados. Na escolha entre um douto e outro santo,
Teresa preferiria o primeiro. Fez experiências não mui felizes com homens santos, mas
pouco letrados. Talvez por influência da escola franciscana, busca o caminho ou
itinerário da ascensão a Deus através (não à margem) das realidades sensíveis, não em
último lugar através do co-homem. No livro Castelo Interior ou Moradas, fala das sete

29
Opúsculos. Petrópolis: Vozes, 1951, p. 31-32.

134 Coleção Filosofia - 175


moradas na ascensão mística, das quais as três primeiras são de preparação para a
experiência propriamente dita de Deus. As últimas quatro se referem a esta experiência.
Nas Moradas, Teresa fala a linguagem de seu tempo. Quando menina fora
assídua leitora dos livros de cavalaria. Descreve então a ascensão a Deus recorrendo às
imagens conhecidas dos castelos encantados. Teologicamente se inspirou no livro
Subida do Monte Sião, do padre Bernardo de Laredo (1540). O itinerário se desenvolve
através de um castelo de luz refulgente com sete moradas, permanecendo a alma
agraciada por Deus, durante algum tempo, em cada uma, para sair mais purificada e mais
perfeita em virtude da oração do estado de ―purificação‖ ao estado de ―iluminação‖ e
deste passar ao estado de ―união‖ com Deus.
O ponto de partida de Teresa permanece muito atual: o homem, quem é ele? 30
Não habita Deus em sua alma? E Teresa explica: ―Segundo me parece, se não
procuramos conhecer a Deus jamais nos acabaremos de conhecer‖ 31. Mas a Deus nunca
verá por experiência quem se recusar a crer 32. A porta de acesso a Ele é a oração.
Conhece-se a si mesma à luz de Deus, e isto lhe assegura equilíbrio em sua vida
espiritual, a torna humana, bem humana.
A verdade fundamental para Teresa é Deus presente e atuante na profundidade
de sua alma. Com grande tino psicológico, penetra nesta profundidade obscura e
ilumina-a com a luz de Deus. Daí a vida espiritual é, para Teresa, uma interiorização
progressiva, O caminho a Deus será uma interiorização progressiva para o encontro com
Deus, um caminho por etapas (moradas).
O Deus que habita no castelo é amor. O amor se encontra num movimento
contínuo de doação de si mesmo e de tudo que lhe pertence, fazendo o homem partícipe
de seu amor. Neste encontro, dom de Deus, um Deus bem próximo, realidade da vida, o
homem experimenta o que é graça. Teresa observa que se fala muito do que nós mesmos
podemos fazer por nós e pouco dos prodígios que Deus opera33. O matrimônio espiritual
com Deus, i. é, a união da alma com seu Esposo gera obras: ―Com efeito, pouco me
importa estar muito recolhida, na solidão, fazendo maravilhas em seu serviço, se, ao sair
dali, em se apresentando ocasião, faço tudo ao revés‖34. E logo acrescenta: ―Buscai
meios e modos de causar prazer e prestar serviço a todos‖. Na vida de Teresa tudo isso é
realidade. E essa realidade lhe dá forças para renovar o carmelo.
Hoje facilmente estamos inclinados a dizer que tal modo de tomar consciência de
estarmos envolvidos pelo mistério de Deus em nosso ser e agir está superado. Hoje,
dispomos dos recursos da psicologia, da psiquiatria, da psicanálise para nos analisarmos.
Essas ciências conseguem dar uma explicação natural a todos os fenômenos psíquicos. Não
há nada de extraordinário. Mas, onde está dito que Deus só se quer revelar ao homem nas
coisas extraordinárias e nos prodígios? Não são os maiores prodígios de Deus a criação e
sua conservação, sua redenção por Cristo? Não é o homem o maior prodígio da criação?

30
Castelo Interior ou Moradas. 2. e. Petrópolis: Vozes, 1956,p. 10.
31
Ibidem, p. 10.
32
Ibidem, p. 12.
33
Castelo interior ou Moradas. 2. e. Petrópolis: Vozes, 1955, p. 17.
34
Ibidem, p. 188.

Coleção Filosofia – 175 135


Não foi o homem criado à imagem e semelhança de Deus? Talvez Deus deverá ser
procurado e glorificado mais nas coisas cotidianas, no e através do homem.

2 - Experiência de Deus hoje

Parece-me óbvio certo paralelismo entre a situação histórico-teológica de Teresa de


Ávila e a nossa de hoje. A Igreja, i. é, nós crentes, sempre nos encontramos diante de novas
situações, situações que apresentam não apenas perigos para a fé, mas também novas
chances. E a história do passado na Igreja mostra tantos exemplos, como o de Catarina de
Sena e de Teresa de Ávila, que iniciativas marcantes e significativas para todo o povo de
Deus nem sempre partem da hierarquia, mas muitas vezes partem dos pequenos do remos
dos céus, de homens e mulheres carismáticas, sensíveis ao sopro do Espírito de Deus.
Os exemplos dessas pessoas, evidentemente, não poderão ser copiados
literalmente para dentro de novas situações, mas poderão ser assumidos de maneira
criadora. Aliás, onde a tradição não for assumida de maneira criadora, também a tradição
da fé, tornar-se-á bem depressa artigo de museu.
Que analogias poderemos observar entre a situação de Teresa e a nossa de hoje?
Vimos que Teresa iniciou a renovação, assumindo a realidade na qual vivia. Estamos nós
realmente dispostos a assumirmos nós mesmos a renovação da Igreja?
Também em nosso meio brasileiro do século XX, observamos uma discrepância
abismal entre aquilo que se ensina oficialmente na Igreja sobre Deus e Cristo e a
realidade da prática da fé popular. Há uma mística popular pouco ou nada abarcada pela
Igreja oficial, i. é, por nós. De um lado, ternos um povo dado a crendices, vivendo num
mundo religioso próprio, no qual o clero durante 400 anos de história nunca conseguiu
penetrar. A hierarquia facilmente se inclina a falar da ignorância religiosa desta parte do
povo. Na realidade, o clero não é menos ignorante neste cristianismo popular que o povo
no do clero. De outro lado, em nosso Brasil aumenta, dia a dia, o mundo dos
acadêmicos, pouco ou quase nada atingido pela pregação da palavra de Deus, apesar de
todo o falar sobre renovação litúrgica, pastoral e bíblica. Em nosso meio, a renovação
conciliar não conseguiu penetrar, propriamente, no mundo dos leigos, se abstrairmos de
exceções, permanecendo mais uma vez um movimento clericalizado.
O clero, por sua vez, tende a inculpar o mundo acadêmico de descrente, porque
não consegue penetrar neste meio intelectual, no qual reina a opinião mais ou menos
generalizada de que o modo de falar de Deus dos padres e das freiras é um relicto
arcaico do passado, que não lhes significa nada para a vida concreta. Em resumo, que o
cristianismo ensinado pelos padres e pelas freiras é tão abstrato da realidade de hoje que
é impossível de ser vivido. Se muitos ainda crêem em Deus, sua fé é vaga. Ou qual é a
experiência concreta de Deus hoje?
Para muitos a palavra ―Deus‖ hoje se tornou um vocábulo vazio, sem conteúdo.
Seu uso se assemelha à circulação de uma moeda inflacionária, à qual falta o fundo real,
o ouro. Parece que a experiência mais ou menos generalizada é a experiência do Deus
ausente, do Deus que não tem lugar no contexto de nossa experiência cotidiana. Crentes
e descrentes hoje se encontram nesta experiência comum do Deus ausente, embora a
interpretem de diferentes maneiras.

136 Coleção Filosofia - 175


Teresa foi uma pessoa que testemunhou a presença de Deus em seu tempo e
meio. Só se poderá falar de maneira fidedigna de Deus ao homem de hoje, se este falar
for inserido no horizonte da experiência humana. Todavia, o magistério e a teologia
ainda não se deram bastante conta das mudanças radicais no mundo da experiência do
homem. Assim experimentamos uma crise diferente de outros tempos, porque não se
refere apenas a um ou outro dogma marginal da fé cristã, mas à própria base, ao
fundamento, i. é, ao problema de Deus. Não será porque ligamos por demais nossa
experiência de Deus à cultura ocidental do passado? Trata-se realmente de uma crise de
fé ou antes de uma crise da cultura ocidental, na qual se inseriu o cristianismo? O certo é
que as teologias da ―morte Deus‖ não conseguem solucionar o problema. O problema do
Deus ausente só encontrará solução quando os teólogos, pregadores e catequistas
conseguirem falar outra vez do Deus vivo no horizonte da experiência humana de hoje.
A obra de Teresa de Ávila necessita de uma interpretação criadora. Hoje
experimentamos o mundo de maneira qualitativamente diferente de então, qualitativamente
diferente da Idade Média. Para nós o mundo já não é mais numinoso, cheio de forças
divinas, diáfano para Deus. O homem experimenta o mundo como uma missão, uma
tarefa, como material para sua obra histórica. Neste mundo em transformação pela
inteligência e pelas mãos do homem não encontramos mais diretamente os vestígios de
Deus, e, sim, os vestígios do próprio homem. Isto significa que Deus recua sempre mais do
campo estrito da experiência humana hodierna. Desta maneira a realidade Deus se dilui
sempre mais. Forma-se uma separação sempre maior entre a experiência humana concreta
e a fé em Deus. Nos tempos modernos observamos uma retirada contínua da teologia para
a margem da vida, marginalizando sempre mais Deus da experiência do homem em seu
dia-a-dia. Geralmente se diz que a realidade Deus transcende infinitamente a experiência
humana, que Deus é totalmente diferente, o mistério absoluto, o Deus oculto. Por isso não
pode ser encontrado de maneira direta e imediata em nosso conhecimento científico, nem
na práxis técnica e transformadora deste mundo.
Se bem que tudo isto seja verdade, isto não é a verdade toda sobre Deus. Tais
tentativas querem harmonizar uma coexistência pacífica entre ciência, técnica e teologia.
Contudo, por mais hábeis que sejam, essas tentativas facilmente esquecem que com isso
sancionam a separação entre realidade da fé e realidade da vida. Ou pode tal fé ser ainda
um ato plenamente humano? Não deve haver também uma conexão entre a experiência
de nossa existência e a realidade da fé? Não se tornou vazio nosso modo de falar de
Deus justamente porque lhe falta o conteúdo da experiência? E onde faltar o fundamento
na experiência, a fé perde sua força vital e sua força de convencer.
Por outro lado, teremos que perguntar se, dizendo que Deus está morto,
interpretamos adequadamente a experiência do homem de hoje. Nas teologias da morte
de Deus não nos deve passar desapercebida certa tendência de nivelar Deus
simplesmente à experiência do mundo. O único critério para o ser cristão então é a
atividade social e técnica. Mas, essas tentativas não representam nada mais que uma
espécie de religião da natureza de nossa sociedade moderna. Se Deus não quiser perder
sua atualidade, não poderá ser nivelado acriticamente a tudo o que acontece, mas deverá
significar realmente algo para o ser homem do homem, para o mundo e a história, deverá
significar algo para além do que já é o mundo enquanto este mundo do homem.

Coleção Filosofia – 175 137


Em resumo, encontramo-nos, hoje, diante de duas tendências: uma coloca Deus
numa oposição radical ao mundo (Deus transcendente) e a outra nivela ingenuamente (Deus
imanente). A primeira situa Deus fora da experiência humana, e a segunda o identifica com a
mesma. Isto coloca, para a teologia, a difícil tarefa de esclarecer o relacionamento entre fé e
experiência. A teologia deverá esclarecer a dimensão da experiência para encontrar um lugar
em que é possível falar outra vez de tal modo de Deus e de sua graça, que este falar adquira
sentido e significação para o homem. Isto só acontecerá quando deixarmos para trás toda uma
bagagem de positivismos dogmáticos, biblicistas e sobrenaturalistas. Sobretudo em nosso
meio brasileiro e sul-americano, está sendo reclamada como urgente a tarefa criadora por
parte de teólogos, catequistas e pregadores. Do contrário não só nosso falar de Deus se
tornará sempre mais vazio, mas também nosso falar com Deus. Em Teresa de Ávila, o falar
de Deus se baseia no falar com Deus, na oração,
Mas, que significa ―experiências‖ de Deus?
Em nossos encontros de pastoral não raro as discussões pressupõem que só o
conceito de Deus seja vago e obscuro. Mas, na realidade, também o conceito de
―experiência‖ o é. Quando falamos da experiência de Deus, não se trata apenas de
experiências interiores, individuais, ocultas ou místicas de pessoas perfeitas. Trata-se
antes do problema de como hoje experimentamos a realidade de ser homem, como hoje
estamos no mundo e o mundo em nós. Trata-se de como visualizar indícios da presença
de Deus neste mundo atual, em nossa vida cotidiana.
Uma das características essenciais da experiência no mundo de hoje é certa
abertura para o novo. Mas, isto não nos deve levar à falsa ilusão de pensar que no
passado os homens não encontraram Deus de maneira válida, pois o Deus que não foi
encontrado no passado também hoje não será encontrado por nós.
Em grandes linhas, poderíamos dizer que a experiência é o horizonte pré-
reflexivo e a totalidade de como nós nos encontramos, de maneira imediata, com o
mundo e o mundo se encontra conosco. E a maneira histórica da atitude prática e da
compreensão da realidade. A reflexão racional constitui sempre um momento da
experiência humana. Por isso é ridículo querer opor simplesmente reflexão e
experiência, empiria científica e experiência.
A maneira de experimentar a realidade pode mudar historicamente. Hoje nos
encontramos com o mundo de maneira qualitativamente diferente da do homem místico,
antigo e medievo. Nossa experiência do mundo hoje está sendo determinada sempre
mais pelas ciências naturais e pela técnica. Por esta razão, chamam-se essas ciências
―experimentais‖ por excelência. Muitos homens estão tão fascinados por essas ciências
que encontram dificuldades para dar lugar a Deus em sua vida. Há mesmo teólogos que
se contentam em dizer que, no nível dessas ciências, não se pode encontrar Deus. Não
percebem que, se tal fosse toda a verdade, teríamos que sancionar realmente a
discrepância entre fé e experiência. Mas, é aí que começa a tarefa propriamente dita do
teólogo e do pregador, pois esses deverão examinar criticamente as pressuposições
interiores e os impulsos humanos deste tipo de experiência humana. A experiência
científico-técnica certamente não poderá reduzir ou não poderá ser reduzida ao esquema
causa-efeito para o homem. Problemas humanos e sociais, como amor, paz, fidelidade,
justiça etc. não se exaurem em problemas de simples planejamento técnico. Encontram

138 Coleção Filosofia - 175


seu limite científico-técnico onde se trata de decisões ou opções por certas preferências
sobre diferentes objetivos, igualmente possíveis no horizonte científico, ou seja, onde se
trata de refletir os interesses visados pela técnica.
Na verdade o problema de Deus é um desses problemas que encontramos na
tradição da experiência da humanidade. Encontramos a palavra de Deus como uma
possibilidade passada e presente de compreender a nós mesmos e ao mundo. Antes de
tudo, encontramos o problema de Deus em nossa tradição ocidental como uma
possibilidade da experiência humana. Essa experiência encontramo-la no testemunho
histórico concreto de muitos homens anteriores a nós. Tal testemunho não nos obriga,
mas nos provoca ou nos chama a assumirmos nós mesmos uma atitude pessoal de nossa
parte. A experiência de Deus é o fundamento e a origem de toda a nossa cultura. Por isso
ninguém pode fugir desse problema. Poderá perguntar-se se nossa fé não se ligou de tal
maneira à determinada cultura que, encontrando-se hoje em crise, essa cultura, a crise da
cultura ocidental se manifesta como crise de fé aos olhos de muitos.
Na tradição encontramos o falar de Deus onde se trata do sentido do todo, da
existência humana e do mundo. Ora, esta dimensão do todo na experiência humana hoje se
tornou um tanto estranha a muitos homens que vivem tão fascinados pela ciência
especializada e pela técnica que não se colocam mais a questão do sentido do todo. Tal
visão estreita constitui uma ameaça para o homem ocidental, pois também no mundo
secularizado há situações decisivas na vida do homem — na confiança humana, na
amizade e no amor, na doença e na frustração e em vista da morte — em que se nos coloca
o problema do sentido ou do absurdo do todo. Nesta situação, caberá ao cristão mostrar de
maneira não só audível mas visível, como no testemunho histórico de Teresa de Ávila, que
a verdade de Deus sempre é também a verdade de nossa existência, havendo uma conexão
íntima entre o mistério da revelação divina e nossa existência humana.
O sentido do todo não é encontrado sem o mundo ou à margem do mundo em que
vivemos. Talvez hoje a pergunta pelo sentido do todo esteja mais subjacente onde o
homem procura amor, felicidade, esperança, sucesso, poder etc. Mas, neste mundo em
parte alguma conseguiremos agarrar ou apoderar-nos do sentido do todo de uma vez para
sempre. Talvez o lugar mais adequado para experimentarmos o sentido do todo da vida
seja o encontro com outros homens, em boas obras, em obras de arte, em homens que são
fiadores com o testemunho de vida da sua fé. Mas, a dimensão total da experiência não
pode ser objeto de nenhuma ciência particular, cuja experiência sempre é limitada por
definição. O sentido do todo se nos manifesta antes na dimensão pessoal do testemunho.
Também na vida do homem de hoje há situações fundamentais em que ele se
experimenta como alguém que se transcende a si mesmo por um infinito (Pascal), um
infinito que ele não mais consegue objetivar. Pode experimentar-se em sua existência
como abertura para o ilimitado. Esta abertura do homem para além de si mesmo pode ser
interpretada de diferentes maneiras. Pode ser interpretada, p. ex., como o ser para o
absurdo. Então Sísifo é o símbolo originário do homem. Pode ser interpretada também
como o êxodo do homem para o super-homem. Então Prometeu é a apresentação originária
do homem. Portanto, diante desta abertura radical, o homem deve ousar o risco. Deverá
decidir, ele mesmo, sobre o sentido último de sua transcendência. Porque a transcendência
é a liberdade do homem, o homem só poderá decidir sobre o sentido desta transcendência

Coleção Filosofia – 175 139


em liberdade. Para o cristão esta decisão foi dada no homem Jesus Cristo. Nele esta
transcendência, que de início parece aberta e vazia, é experimentada e proclamada como o
mistério indizível, indisponível do amor de Deus, que o homem só pode receber no
agradecimento e na obediência. Nele a transcendência é determinada como mistério do
amor pessoal de Deus. No homem Jesus Cristo se manifesta, de maneira visível, uma nova
possibilidade de ser homem. Nele o homem é definido como sendo a partir do Pai, como
aquele que não é só aquilo que faz de si mesmo, mas que é, antes de tudo, naquilo que tem
de mais humano e de mais precioso, dom, graça. Nele se manifesta que o homem chega a
sua maior plenitude sendo totalmente a partir de Deus e para Deus. No seguimento a este
testemunho de Jesus, os santos assumiram esta atitude na fé e na caridade.
No mundo determinado pelo pensamento cosmológico-ontológico, o homem
experimentava algo de Deus como razão e fundamento da ordem do todo. Nos tempos
modernos, foi abalado tal modo de falar de Deus, pois a visão cosmocêntrica caiu por terra. O
homem perdeu seu apoio no cosmos e voltou-se sobre si mesmo, sobre sua subjetividade.
Além disso, hoje experimentamos o mundo como história, o mundo em seu vir-a-ser, um
mundo que é feito pelo próprio homem. Coloca-se-nos então o problema de Deus como
Senhor da história. Como poderemos experimentar Deus como Senhor da história?
O homem não se contenta em sofrer a história, mas faz história. A história é co-
determinada pela liberdade do homem. Ela caminha diretamente para o seu acabamento.
Sempre encontramos injustiças, ódios, guerras e misérias, que parecem ser os maiores
argumentos contra o sentido global da história, as objeções mais graves contra a fé em
Deus. Caberá então a última palavra ao absurdo? Está aí o testemunho de pessoas, como
Teresa de Ávila, para dizer-nos o contrário, i. é, para dizer-nos que tudo tem um sentido
em Deus, um sentido sobre o qual nós homens não podemos dispor livre e arbitrariamente.
Também no mundo técnico-científico podemos fazer a experiência de que aquilo que de
mais precioso possuímos, não é conquista nossa, mas é graça, dom. Esta é a resposta que
Teresa deu a seu tempo com seu testemunho de vida. E nós, o que faremos?
Falar de Deus, de sua graça, de Cristo e salvação será sempre um falar vazio
enquanto neste mundo não experimentarmos algo dele, enquanto o mundo não
experimentar a sua realidade em e através de nós. O testemunho de Teresa deverá ser
reinterpretado de maneira criadora para dentro de cada hoje.
Também hoje não podemos falar de Deus como se fala de objetos, como
alguém que de resto se sente descomprometido com ele em sua vida. Hoje não
encontramos Deus na ordem da natureza, mas o Deus da história chega a nós através do
outro, e ao outro através de nós. No homem, a transcendência de Deus torna-se
imanência e, tornando-se imanente à história, contudo permanece o transcendente. E isto
não é mais objeto de conhecimento científico, mas acontece na dimensão mais pessoal e
mais humana do testemunho de pessoas que são o que dizem, que são fiadores de sua fé
em Deus pelo testemunho de sua vida. O abismo entre teologia-ciência e prática cristã só
será superado pelo testemunho. E como a experiência humana só é realmente humana
onde não se prescinde da dimensão reflexiva, o lugar para a experiência de Deus é
também a oração. Teresa de Ávila escreveu: ―De falar ou ouvir falar de Deus, quase

140 Coleção Filosofia - 175


nunca me cansava desde que comecei a ter oração‖ 35. A oração é o lugar em que
tomamos consciência de que o todo se realiza no horizonte de Deus. Às vezes, pode ser
muito difícil articular esta oração indireta, pois nem todos temos o dom de Teresa de
formular nossa oração. Formas e fórmulas tradicionais, muitas vezes, nos parecem tão
gastas que nos impedem de rezar. No fundo, a oração expressa que o amor é a realidade
última para o homem. Falamos muito sobre dificuldades ligadas à oração, mas temos
realmente a coragem de rezar? Quem está autorizado a falar de amor sem amar?
Quem pede alguma coisa a Deus pelo irmão atribui importância à coisa que pede.
Consequentemente terá ele mesmo que fazer tudo que está a seu alcance para tornar
realidade o que pede. Do contrário, ele mesmo não toma a sério o que pede. Outrora, a
ordem de rezar se orientava pela natureza (horas do breviário, oração da manhã, da noite
etc.). Parece que hoje conviria mais uma visão dinâmica das situações da vida. Talvez hoje
não se devesse perguntar: rezei eu? pensando em hora de oração. Seria melhor perguntar:
sou eu alguém que reza? Contudo ser homem de oração pressupõe, também hoje, certo
ritmo, sobretudo onde se trata de concretizar a dimensão social da oração em comunidade,
sendo aí também inevitável certa articulação da mesma.
Concluindo, podemos dizer que onde o homem crer, rezar e sua fé atuar no
amor, o ocultamento de Deus não significa distância. Está presente e atuante neste
mundo. Neste caso, a própria fé em Deus não significa alienação do mundo, fuga da
história, mas inserção na história, volta para o próximo, voltando-se para o Deus vivo,
presente e atuante em nós e no mundo.
Trata-se de redescobrir na fé, de uma maneira nova, a onipresença criadora,
vivificante e santificadora de Deus: ―Nele vivemos, nos movemos e somos‖ (At 17, 28).
Talvez Teresa de Ávila nos possa orientar neste caminho.

35
Livro da Vida, 3. e. Petrópolis: Vozes, 1961, p.68.

Coleção Filosofia – 175 141

Você também pode gostar