Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
a beleza salvará o mundo?
breve introdução à relação entre estética e teologia
caderno de apontamentos para a academia de verão
rui fernandes sj
ESTÉTICA EM SENTIDO FILOSÓFICO E ARTÍSTICO
1. PRIMEIRO CONTRIBUTO: SOBRE A UNIDADE ENTRE ESTÉTICA E ÉTICA
A palavra estética liga-se a duas noções importantes: (1) sensibilidade (ou seja, aos
sentidos e emoções) e (2) percepção (ou seja, à compreensão e inteligência). Portanto, a noção
de estética interessa-se tanto pelas emoções provocadas por um objecto/situação como pelas
ideias que daí decorrem.
A relação com o mundo tem, por isso, uma dimensão estética: ou seja, apercebemo-nos
das formas das coisas (sejam elas sons, cores, linhas, texturas, movimentos, sabores, cheiros),
e elas deixam marcas em nós. Ora, os seres humanos também são construtores de objectos,
nomeadamente objectos artísticos.
No mundo grego, as artes eram valorizadas, antes de mais, pela sua capacidade de
imitar o mundo. Neste sentido, os artistas eram vistos, em primeiro lugar, como artesãos:
pessoas que dominavam uma técnica que permitia representar (ou imitar) as coisas como elas
são.
Porém, os artistas também são capazes de inventar novas imagens. Esta capacidade
não está isenta de riscos. A invenção é uma mais-valia para a tecnologia e ciência (cria novos
instrumentos, novas técnicas de produção, resolve problemas práticos) mas também pode ser
uma problema público. Inventar pode ser sinónimo de mentir («estás a inventar...») ou de ir
contra a ordem pública.
Autores como Platão e Aristóteles perceberam bem o poder da estética: a arte tem um
impacto profundo na nossa forma de pensar, mas também na forma de sentir e de agir. As
obras de arte (e, portanto, os artistas), são capazes de veicular ideias e suscitar sentimentos. O
problema é: e se uma obra de arte nos fizer amar uma mentira? Não será isso um perigo para
vida comum?1
1
Hoje em dia, com a questão das fake news, esta questão dificilmente poderia ser mais actual.
2 -
Platão e Aristóteles viram bem a gravidade da questão, mas adoptaram respostas um
tanto diferentes. Para ambos, o problema merecia uma resposta política: (1) são necessários
bons políticos e legisladores para impôr limites aos artistas; (2) para o fazer, os políticos devem
ser pessoas eruditas e virtuosas, para poderem distinguir entre o que é bom/belo e mau/feio.
Mas, enquanto, para Platão, o bem/belo estão inscritos na essência das coisas (ou seja, existe
um bem/belo único, verdadeiro e universal), Aristóteles percebe que há uma dimensão
histórica e social (ou seja, diferentes comunidades podem ter códigos morais e estéticos
próprios). Em qualquer dos casos, ambos concordam nisto: não se pode separar a moral/ética
da estética.
Esta ideia de unidade entre ética e estética era reforçada pela concepção geral que
tinham do universo. A realidade não é caótica: o universo rege-se por leis bem definidas. Existe
uma ordem lógica e matemática que rege o cosmos. Essa ordem garante a harmonia e
estabilidade das coisas. Para ser estável, essa ordem deverá ser constante/ imutável: deverá
ser sempre a mesma para todos os sítios e em todos os momentos. Ou seja, deverá ser eterna.
2
É daqui que resultam os princípios seja para a política, seja para a ética, seja para a estética:
tudo deve estar bem ordenado, respeitando as p roporções das coisas, com harmonia.
Esta concepção de uma harmonia global teve várias consequências para a estética.
Desde logo, a noção de ser artista: bom artista é aquele que observa esta ordem global (uma
ordem metafísica, física, política e moral). Em seguida, as próprias regras de como fazer «boa
arte»: proporção entre formas; a escolha e uso das cores; o significado das formas (e dos
sons).
2. SEGUNDO CONTRIBUTO: O DEBATE ENTRE RAZÃO E SENSIBILIDADE
Os séculos XV-XIX trouxeram novos ingredientes a esta reflexão. Numa primeira fase,
houve uma preocupação de regressar às grandes obras do passado clássico. Os artistas e
intelectuais procuraram redescobrir textos e obras-primas do passado. Personagens, temas,
estilos e técnicas foram reapropriados pelos artistas. Ao mesmo tempo, no campo das
ciências, inaugurava-se outro método de investigação: novos instrumentos de observação,
novas formas de medição dos fenómenos, uma atitude de dúvida (ou, dir-se-ia, de sentido
crítico) que obrigava a uma constante pesquisa e escrutínio dos resultados. Tal como os
antigos, havia a convicção de que o cosmos é regido por leis lógicas; tal como os antigos,
crê-se que a proporção e a harmonia garantem beleza às formas. Mas, ao contrário dos
antigos, que pensavam que as elites políticas poderiam fazer esse trabalho, agora percebe-se
que as elites por vezes erram e que, por isso, é necessário encontrar outras maneiras de
descobrir essas ‘certezas cósmicas’, e o instrumento fundamental para o fazer é a razão. O ser
humano pode, através da razão, descobrir as leis que regem o cosmos. Antes havia a
autoridade dos sábios a ensinar; agora havia o rigor do método a guiar a pesquisa (na ciência
como na arte).
A filosofia teve um papel muito importante nesta reflexão e viragem de paradigma.
Bacon e Descartes deram o pontapé de partida, mas foi Kant que deu a estocada final. Kant
2
Simplificando imenso (para quem se interessar por estas coisas): também aqui se nota uma diferença de fundo entre Platão e
Aristóteles. O primeiro pensa essa ordem em termos abstractos, como uma ideia eterna e universal que tudo governa -
portanto, uma noção antes de tudo filosófica. Já para Aristóteles, esse ser primordial (o motor imóvel) não se pode desligar
dos processos históricos e físicos. O s er dá ‘vitalidade’ às coisas, mas elas têm que agir para realizarem o seu potencial.
3 -
tentou mostrar as condições que nos permitem conhecer as coisas sem erro, de forma
racional. Porém, a sua explicação mudou radicalmente a nossa forma de percebermos o
mundo. Até aí pensava-se que o conhecimento, como a pintura, imitava a realidade (ou seja,
achávamos que conhecíamos as coisas como elas são, de facto). Mas Kant dirá que não é bem
assim. A nossa inteligência tem limites: nós conhecemos o mundo segundo os limites da
nossa razão. Portanto, nós não imitamos o mundo, nós representamo-lo (ou seja, fazemos
imagens aproximadas). Por isso, há uma fronteira entre as ideias e as coisas. É por isso que
nos enganamos; é por isso que precisamos de método.
Kant tentou abrir caminho para a certeza, através da razão, mas na verdade o que ele
mostrou foi que a certeza tem um limite fundamental: a nossa própria razão! Simplificando: a
razão permite-nos conhecer o mundo, mas não de forma perfeita/completa.
A pouco e pouco, começa a acentuar-se a ruptura entre razão e emoção. Ciência,
indústria e economia abraçam a razão e preconizam a construção de uma sociedade racional,
próspera e ordeira (e, sem dúvida, o crescimento tecnológico foi/é uma mais-valia). A arte (e,
por vezes, a própria religião) ficou conotada com o sentimento. Os artistas preocuparam-se
cada vez mais com o sofrimento, à medida que experimentam outras dimensões (cores e
temas). Com os antigos, a arte era avaliada em termos de perfeição técnica e justiça moral.
Agora passava a ser avaliada (e desvalorizada pelo racionalismo) em termos de gosto pessoal.
3. TERCEIRO CONTRIBUTO: SEPARAÇÃO ENTRE ESTÉTICA E ÉTICA
Com a separação entre razão e emoção, deu-se também uma separação entre ética e
estética. Segundo os padrões antigos e clássicos, a beleza estava associada à ideia de
proporção e simetria. As obras (e os artistas) visavam o eterno e universal. Embora não faltem
exemplos de obras subversivas (desde os graffitis pornográficos de Pompeia até às canções
de escárnio e maldizer - com figuras e termos nem sempre decorosos), a tendência geral era a
moralização pela arte. A arte deveria elogiar o bem e condenar o mal. O bom gosto puritano
continuava a associar a beleza ao respeito pelos bons costumes. Contudo, foi crescendo um
fascínio pelos aspectos sombrios da existência (o locus horrendus dos artistas românticos). O
feio e o mal começaram a entrar no vocabulário das artes. Com Nietzsche, esta perspectiva
encontrou um aliado de peso.
Em obras como Origem da Tragédia, Anticristo e, sobretudo, Para além do bem e do mal,
o filósofo alemão avançava com a ideia de que a moral religiosa (mas não só) teria pervertido o
sentido original das noções de bem e de mal. Segundo ele, a religião tem ódio à vida. Em
estado ‘normal’, a vida é feita de pulsões - violentas e pacíficas. São elas que nos movem e nos
fazem lutar por objectivos (comida; terras; carreiras; relações). Os fortes lutam e conquistam,
ao passo que os fracos encolhem-se, lamentam-se e perdem. O cristianismo teria fomentado a
inveja dos fracos contra os fortes, em vez de espicaçar nos fracos a vontade de lutar pela vida.
Todos os desejos de força e de vontade de viver (prazer, ambição, competitividade) teriam sido
condenados pelo cristianismo. Ora, Nietzsche via neste ‘elogio da fraqueza’ uma coisa
antinatural e doentia. Era preciso abandonar esta moral cristã para regressar a uma moral que
respeita a natureza humana: que vive e morre, que ama e odeia, que sonha e se desilude, que
luta e se arrisca a perder. Nietzsche está consciente da necessidade de regras, para haver
4 -
sociedade, mas frisa que estas regras são apenas fruto de uma decisão comunitária: não têm
origem divina nem ontológica, são apenas funcionais.
Para ele, esta perversão moral (que reprime os instintos de força e de poder) nota-se na
forma de conceber a arte e a estética. A estética da repressão valoriza a ordem, a calma, a
racionalidade (normalmente debaixo da alçada de uma hierarquia que quer manter o controlo
da carneirada), enquanto que a estética da pulsão valoriza as paixões, os impulsos, a
espontaneidade. Para ele, a arte vive de uma tensão entre repressão e pulsão, na medida em
que nos deixa ver as paixões garantindo porém uma certa ordem e protecção.3
O que se vai tornando claro, em muitos artistas e pensadores, é um desejo de
emancipação em relação às tradições. O que antes era visto como ‘descido dos céus’ era agora
tido como ‘produto histórico de comunidades’. Se as tradições são feitas pelos homens, porque
não podem ser mudadas? Por razões diferentes (e muitas vezes estando em desacordo),
cientistas, filósofos e artistas sentiram necessidade de se afastarem da religião (o cosmos não
precisava de Deus; a moral e a estética também não). Estética e ética tornam-se, assim,
campos autónomos.4
4. QUARTO CONTRIBUTO: DO BELO ETERNO AO BELO BANAL (E COMERCIAL)
O século XX foi palco de grandes mudanças ao nível da reflexão sobre o que é a arte (e,
por arrastamento, sobre o que é belo). Como vimos, para muitos artistas, a questão da boa arte
e do belo já não tinha nada que ver com questões éticas. Ou seja, um «estupor» pode ser um
grande artista; e não há propriamente temas proibidos. Ao distanciar-se da ética, a arte vai
distanciar-se também dos critérios antigos. Uma obra de arte não precisa de ser ‘bonita’. Não
precisa, sequer, de almejar a eternidade (como as estátuas antigas, que perduram). Mudam-se
os materiais e procuram-se novas técnicas.
As experiências traumáticas das grandes guerras mundiais trouxeram novas
interrogações aos artistas: pode a arte ser a mesma depois de tais barbáries? Por outro lado,
também a mudança das paisagens e ritmos urbanos (grandes cidades, grande agitação)
questionaram o modo de fazer arte. Que mundo é este em que vivemos?
Se a arte vai ganhando uma consciência social e política muito forte (quase profética),
torna-se também claro para muitos artistas que a arte não é uma imitação do mundo. A arte
não serve para descrever o mundo como ele é. Na verdade, o que a arte faz é mostrar quem nós
somos: como sentimos, como pensamos, como vivemos, como nos relacionamos com o
mundo. Por conseguinte, os artistas precisam de aprender técnicas de expressão não para
copiar o mundo (em cores, formas ou sons), mas para mostrar a maneira como o mundo nos
toca por dentro, por confuso que seja esse «mundo humano». Como diria o pintor Wassily
Kandinsky, a arte mostra a dimensão ‘espiritual’ do ser humano, isto é, a arte revela o nosso
íntimo. As grandes obras são boas porque captam bem a nossa forma de viver, pensar e sentir.
Com a multiplicação de meios de expressão artística, por um lado, e com a facilidade de
reprodução das obras, por outro, hoje torna-se impossível esquecer a dimensão comercial que
envolve a indústria da arte. Quando a beleza das obras passa a ser publicitada em termos do
3
Nietzsche fala destes dois tipos de estética em termos de proximidade ao deus Apolo (da ordem e da razão) e ao deus
Dionísio (do caos e das paixões).
4
A título de exemplo, seria interessante ler o Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, que reflecte bem este conflito entre ética e
estética.
5 -
seu «valor comercial», ou quando um artista é reconhecido pelos milhões que fez, estamos
naturalmente perante um problema. Valor monetário e factor ‘viral’ não podem bastar para
avaliar uma obra.
Alguns dos debates entre artistas e críticos têm girado precisamente em torno da
questão do ‘valor artístico’ e do ‘valor comercial’. Segundo alguns autores, a arte deve ser
totalmente independente: o bom artista não se preocupa com rankings nem com vendas. Para
outros, a arte faz parte da sociedade, e as obras de arte também são bens de consumo. Para
ser bom, o artista não tem que fugir da fama nem tem que ser ‘incompreensível’. Nesta
questão, como em muitas outras, o debate é difícil.
De qualquer modo, o que se torna cada vez mais evidente é que a arte contemporânea
tem um interesse crescente pelo banal (seja urbano ou doméstico; seja das relações afectivas
ou sociais; seja feio ou bonito; seja exterior ou interior; seja organizado ou caótico), ao ponto de
se tornar difícil de saber onde acaba uma obra artística e onde começa a vida. Será isto uma
forma de banalização da arte, ou antes uma forma de revalorização da vida? Será a arte a
deixar de ser arte, ou a arte a convidar a vida a tornar-se artística? Porque estará a arte a descer
dos seus pedestais (de beleza e perfeição)? Será isso uma forma de destruição da arte ou uma
forma artística de ‘redenção’ do quotidiano? Será a arte que se está a tornar feia, ou estaremos
nós com medo de enfrentar a beleza engelhada da vida? Estará a arte a tornar-se complicada,
ou será que fomos nós que perdemos a capacidade simples de apreciar cores, formas e sons?
As questões são imensas e nada lineares. Evidentemente, o mundo da arte não está isento dos
seus complexos de inferioridade e/ou superioridade. No entanto, as obras de arte, como as
pessoas, requerem tempo para serem descobertas.
5. QUATRO MOMENTOS DE PAUSA
1. Deus revela-se d
e que modo? Sob que f ormas? (Como podemos ver o invisível?)
2. Que relação existe entre a forma e o c
onteúdo da revelação? (O que é que a encarnação diz sobre Deus?)
3. Podemos fazer imagens de Deus? (Podem as coisas finitas representar o infinito, sem o falsear?)
4. Quem pode fazer essas imagens? (É preciso ser moralmente puro? É preciso ser crente?)
5. Como podemos interpretá-las? (A interpretação está fechada/aberta? As imagens têm u m significado?)
6. Fazemos imagens para quê? (A arte religiosa é sempre funcional? Haverá a rte pela arte, no cristianismo?)
7. As imagens mudam com as épocas históricas? (Como relacionar a tradição com a inovação artística? )
8. As imagens mudam com os lugares? (Como relacionar tradição com culturas e sensibilidades estéticas?)5
2. A QUESTÃO DA BELEZA NA BÍBLIA6
A tendência mais comum dos textos bíblicos, no que toca à relação com a beleza (da
criação, das pessoas, dos acontecimentos, da fé) é a do reconhecimento da grandeza de Deus.
Dito de outro modo: na Bíblia, a beleza das coisas é uma ocasião de reconhecer a presença de
Deus. Isto nota-se, desde logo, no vocabulário bíblico para falar de beleza:
tub yapheh
bom, belo, útil, verdadeiro bom (agathos), belo (kalos), útil (chrestos)
5
Neste texto só temos espaço para mencionar algumas das questões (antigas e actuais). Além do mais, quando falamos de
‘imagens’ estamos a pensar também em música, escultura, literatura, etc.
6
Cf. A. MARTO; Marko I. RUPNIK; G. RAVASI, O
Evangelho da Beleza. Entre Bíblia e Teologia, Lisboa, Paulinas, 2012.
7 -
Não faltam exemplos de textos que reflectem esta tendência útil do belo (isto é, do belo
que serve p
ara falar de Deus). Apenas alguns excertos:
Salmo 8
2 4
Ó SENHOR, nosso Deus, Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos,
como é admirável o teu nome em toda a terra! a Lua e as estrelas que Tu criaste:
Adorarei a tua majestade, mais alta que os céus.
Job 38
4 6
Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? Sabes em que repousam as suas bases,
Diz-mo, se a tua inteligência dá para tanto. ou quem colocou nela a pedra angular,
5 7
Sabes quem determinou as suas dimensões? entre as aclamações dos astros da manhã
Quem estendeu a régua sobre ela? e o aplauso de todos os filhos de Deus?
Salmo 18A [19]
2 3
Os céus proclamam a glória de Deus; Um dia passa ao outro esta mensagem
o firmamento anuncia a obra das suas mãos. e uma noite dá conhecimento à outra noite.
Salmo 148
1 5
Aleluia! Louvem todos o nome do SENHOR,
Louvai ao SENHOR do alto dos céus; porque Ele deu uma ordem e tudo foi criado.
louvai-o nas alturas! (...)
3 13
Louvai-o, Sol e Lua; Louvem todos o nome do SENHOR,
louvai-o, estrelas luminosas! pois só o seu nome é sublime
4
Louvai-o, alturas dos céus e a sua glória está acima do céu e da terra!
e águas que estais acima dos céus!
O que ressalta destes textos é que, ao mesmo tempo que descrevem, com encanto, a
criação, fazem-no como expressão do reconhecimento da grandeza (a glória) de Deus. O
biblista Gianfranco Ravasi nota que esta tendência continua no Novo Testamento. Quando
Jesus fala do mundo, nas suas parábolas por exemplo, fá-lo como pretexto para falar de outro
mundo. O elogio dos lírios, o espanto com as pérolas, a admiração pela descoberta da moeda
perdida, a alegria comovente do reencontro entre pai e filho, o convite dramático para o
banquete do rei: tudo isto fala-nos de um mundo ao mesmo tempo próximo/familiar e
distante/por realizar. O próprio exercício de contar histórias é um meio para introduzir numa
outra realidade. Resumindo: Jesus fala deste mundo para nos convidar a entrar noutro. No
entanto, há momentos em que o texto bíblico nos convida a contemplar a beleza pela beleza.
Vejamos:
Génesis 1
3
Deus disse: «Faça-se a luz.» E a luz foi feita. 4 Deus 8
Deus chamou céus ao firmamento. Assim, surgiu a
viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. 5 Deus tarde e, em seguida, a manhã: foi o segundo dia.
9
chamou dia à luz, e às trevas, noite. Assim, surgiu a Deus disse: «Reúnam-se as águas que estão debaixo
tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia. dos céus, num único lugar, a fim de aparecer a terra
6
Deus disse: «Haja um firmamento entre as águas, seca.» E assim aconteceu. 10
Deus chamou terra à
para as manter separadas umas das outras.» E assim parte sólida, e mar, ao conjunto das águas. E Deus viu
aconteceu. 7 Deus
fez o firmamento e separou as que isto era bom.
águas que estavam sob o firmamento das que
estavam por cima do firmamento.
8 -
Cântico dos cânticos
3
4E le Como fita escarlate são teus lábios
1
Ah! Como és bela, minha amiga! e o teu falar é encantador;
Como estás linda! Teus olhos são pombas, as tuas faces são metades de romã,
por detrás do teu véu. por detrás do teu véu.
4
O teu cabelo é como um rebanho de cabras O teu pescoço é como a torre de David
que descem do monte Guilead; erguida para troféus:
2
os teus dentes são um rebanho de ovelhas, dela pendem mil escudos,
a subir do banho, tosquiadas: tudo broquéis dos heróis.
todas elas deram gémeos
7
e nenhuma ficou sem filhos. Toda bela és tu, ó minha amada,
e em ti defeito não há.
Habituámo-nos a traduzir (sem erro): «Deus viu que era bom». No entanto, o relato
poético do livro do Génesis parece inclinar-se mais para outra tradução (igualmente possível):
Deus viu que era belo. O texto coloca-nos não só diante de um Deus que cria, mas sobretudo
diante de um Deus que se deleita com a beleza: Deus aprecia a beleza pela beleza. Este mesmo
deslumbramento com a beleza está presente nos versículos apaixonados do Cântico dos
cânticos, onde os amantes trocam elogios e se derretem com a beleza de quem amam.
Em ambos os exemplos, o belo não é «útil». Não se louva a beleza por causa do Criador,
mas simplesmente por ser bela. Ainda assim, em geral a beleza é vista no seio de uma relação
entre Deus e a humanidade. É um crente que reconhece a beleza das coisas, e essa beleza
fala-lhe de um Deus que cria e que acompanha o povo ao longo de uma história de aliança e de
salvação. Essa história, vivida e celebrada, alimenta no povo o desejo de ver o esplendor de
Deus. O templo e o culto traduzem esse mesmo desejo: é no templo que o povo celebra a glória
(kabod ou doxa) do Deus que cria e salva.
É em torno desta noção de glória (ligada à grandeza e perfeição divinas) que o
evangelista João vai desenvolver o tema da revelação paradoxal de Jesus. Nos textos joaninos,
a hora da glória é o momento em que Jesus revela quem é (Filho de Deus) e a vontade de Deus
a respeito da humanidade (ou seja, dar-se a conhecer e introduzi-la numa relação de amor que
salva). Contudo, Jesus fá-lo no lugar mais imprevisto: na cruz. Com «olho de teólogo», João faz
coincidir a hora da cruz, no Calvário, com a hora do sacrifício expiatório, no templo (único dia
do ano em que o sumo sacerdote pronunciava o nome de Deus, junto da arca da aliança). Deste
modo, para João, Jesus não é só o cordeiro de Deus, mas é também a revelação do nome de
Deus. Quem vê Jesus, vê o Pai. Estranhamente, o servo desfigurado mostra-nos a beleza de
Deus.
3. A BELEZA EM STO. AGOSTINHO E S. TOMÁS
O tema da beleza foi abordado por diferentes teólogos ao longo da história da Igreja.
Duas vozes importantes da tradição teológica ocidental são os santos Agostinho e Tomás de
Aquino.7 Agostinho parte de uma intuição fundamental: a beleza atrai, e essa atracção é
afectiva e gera amor (eros). Contudo, a experiência mostra que há uma «gradação» (ou ordem)
na beleza: existem muitas belezas (menores) que participam de algum modo numa Beleza
7
O bispo e teólogo Bruno Forte resumiu muito bem o pensamento destes autores num artigo importante. Cf. Bruno FORTE,
«Theology of Beauty: a Way to Unity?» (Melbourne, 5 Julho de 2012), disponível em http://www.webdiocesi.chiesacattolica.it
/cci_new/documenti_diocesi/55/2008-10/30-195/Beauty%20USA.pdf.
9 -
maior, na qual se concentram todas as qualidades. Essa Beleza seria, portanto, uma unidade
harmoniosa, cheia de bondade e verdade, e com alcance universal. De algum modo, as belezas
gravitam e apontam para essa Beleza.
Portanto, para Agostinho, a marca/traço/aspecto fundamental da beleza é a sua unidade
entre dimensão exterior e interior, entre forma e conteúdo, emoção e razão, estética e ética. No
limite, esta noção de beleza aplica-se não só às obras de arte, mas principalmente à vida
humana e à própria Igreja. A vida é bela na medida em que se for tornando íntegra, de tal modo
que as convicções e as acções, o pensamento e a afectividade, a razão e a paixão coincidam. A
Beleza por definição será, portanto, o próprio Deus.
Estando embora de acordo com santo Agostinho, Tomás de Aquino aborda a questão da
beleza de um modo particular. Tal como Agostinho, Tomás percebe que o ser humano suspira
pela perfeição. Ao reflectirmos sobre a vida e a natureza, apercebemo-nos de uma presença
que governa as coisas (dá-lhes uma origem e uma finalidade). Essa intuição alimenta em nós o
desejo de ver o Criador (a visão beatífica em que, finalmente, veremos Deus face a face). Mas a
questão é esta: como podemos ver Deus? Onde/como é que Ele se revela?
Tomás avança com a ideia de que Deus é a verdadeira Beleza; uma Beleza que se revela
através do seu Filho. Jesus reúne os ingredientes da verdadeira beleza:
(1) integridade de vida (perfeição)
(2) proporção (harmonia de formas)
(3) clareza (luz que ilumina a razão)
A encarnação do Verbo de Deus põe em marcha outro tipo de revelação, paradoxal. De
facto, a encarnação obriga-nos a colocar diversas questões: como pode um corpo humano,
limitado no espaço e no tempo, conter Deus? Como pode o Senhor de todas as coisas aparecer
como servo? Como pode a fonte da vida morrer numa cruz? Com toda a tradição teológica,
Tomás de Aquino não hesita em afirmar que Jesus revela o Pai: Jesus é o verbo abreviado do
verbo eterno. Porém, Tomás não esquece a intuição do evangelho segundo São João: a «hora»
10 -
da revelação é uma hora paradoxal, porque a beleza revela-se «sub contraria specie» (através
de sinais contrários). Por conseguinte, a cruz reflecte o esplendor de Deus mas, para que o
possamos contemplar e apreciar, temos que aprender a ver o infinito no finito, a grandeza na
pequenez, a beleza no sofrimento.
4. AS IMAGENS NO CRISTIANISMO ORIENTAL
«O ícone pretende ser imagem do invisível e, mais ainda, uma presença do Invisível».8 A
história das imagens, no cristianismo (como noutras religiões), é complexa. A herança judaica
do cristianismo provocou sempre algumas reservas quanto ao uso de imagens. No Antigo
Testamento encontramos alguns versículos contraditórios (pelo menos, à primeira vista).
O SENHOR disse a Moisés:
Não farás para ti nenhuma imagem esculpida, seja do «Faz para ti uma serpente abrasadora e coloca-a num
que está no alto do céu, ou em baixo, sobre a terra, ou poste. Sucederá que todo aquele que tiver sido
nas águas, debaixo da terra. mordido, se olhar para ela, ficará vivo.»
(Dt 5, 8) Moisés fez, pois, uma serpente de bronze e fixou-a
sobre um poste. Quando alguém era mordido por uma
serpente e olhava para a serpente de bronze, vivia.
(Num 21, 8-9)
A teologia judaica esteve sempre muito consciente da diferença radical que existe entre
Deus e a criação (e, nela, o ser humano). Deus é o Totalmente Outro, o Totalmente Santo: Deus
nunca se confunde nem se mistura com a criação, embora esteja presente e actuante. Ao fazer
imagens, a humanidade arrisca-se a diminuir e a desfigurar Deus. Este debate continuou
mesmo depois de Jesus, nos primeiros séculos do cristianismo.
Vários teólogos, para tentar salvaguardar a noção de mistério e de transcendência/
diferença de Deus a respeito da criação, insistiram na ideia de que Jesus (a sua identidade
profunda) não podia ser reduzido a imagens. Começava assim a crise iconoclasta, isto é, a
recusa das imagens sobre Jesus (e sobre Deus). Para resolver esta polémica foi necessário
desenvolver uma cristologia.
Quando dizemos que Jesus é «verdadeiro Deus e verdadeiro homem» estamos a afirmar
um paradoxo: o infinito (divino e invisível) pode estar todo unido ao finito (humano e visível). O
mistério invisível de Deus está unido à realidade visível da humanidade. Por conseguinte, a
encarnação torna possível a iconografia: podemos fazer imagens porque Deus se fez imagem e
nos deu o seu Filho como modelo.
Os autores posteriores desenvolverão uma teologia do ícone própria. O ícone aparece
como um duplo espelho: por um lado, o ícone expõe a nossa própria realidade humana. Por
outro, o ícone abre-nos para a realidade divina. A pouco e pouco, o observador percebe que
está a ser observado: há uma presença silenciosa. Nesta medida, o ícone abre-nos para uma
outra realidade. Ver um ícone implica paciência, mas também disponibilidade interior para se
deixar transformar.
8
Egon SENDLER, L’icône, Image de l’invisible. Éléments de théologie, esthétique et technique, Paris, Desclée de
Brouwer, 1981, p. 41.
11 -
5. DUAS VISÕES CONTRASTANTES: TEOLOGIA POSITIVA E TEOLOGIA NEGATIVA
> I sto não é um cachimbo
Este quadro famoso de Magritte resume uma
polémica ainda não resolvida em torno ao
valor objectivo/subjectivo das imagens. A
razão da polémica explica-se em poucas
palavras: a imagem de um cachimbo não
substitui o objecto real. Ou seja, há uma
diferença entre imagem e realidade.
o objecto o olhar do artista a imagem o olhar do observador
Os filósofos do século XVIII (com Kant à cabeça) levantaram a questão: será que nós
conhecemos as coisas tal qual elas são? O facto de nos enganarmos tantas vezes e de
divergirmos nas nossas concepções do mundo (às vezes de forma violenta) faz pensar que
não: há uma diferença entre as nossas ideias sobre as coisas e as coisas em si.
12 -
Esta perspectiva levanta questões sérias à teologia. Que valor têm as nossas ideias/
imagens sobre Deus? Mais ainda: se há uma fronteira entre nós (a nossa razão) e Deus, como
podemos conhecê-lo? Haverá espaço para a revelação (seja de Deus, seja das coisas)?
Estaremos condenados ao subjectivismo? A questão é, obviamente, complexa. O que é
importante reter:
teologia positiva teologia negativa
- afirma que, apesar das nossas - afirma que a realidade (de Deus e das
limitações, podemos conhecer as coisas) é sempre maior que as nossas
coisas (se não totalmente, ao menos ideias/ imagens. Deus é mistério
parcialmente)
- tudo o que dizemos sobre Deus deve
- afirma que as nossas imagens/ ideias ser atravessado pela consciência de
sobre Deus têm fundamento objectivo que Deus é d iferente de nós: a nossa
(isto é, em dados concretos da história forma de amar não é igual à de Deus,
e da tradição) etc.
6. TRÊS MOMENTOS DE PAUSA E UMA SUGESTÃO
Arnold Schönberg// Moses und Aron ( ópera) Olivier Messiaen// Quarteto para o Fim dos Tempos
sobre o risco da idolatria - será possível falar de escrita e estreada num campo de concentração, esta
Deus sem O diminuir? obra representa a procura de uma nova linguagem
para Deus - como falar de Deus depois dos horrores?
13 -
ESTÉTICA E VIDA ESPIRITUAL
1. ESTÉTICA, ESPIRITUALIDADE E VIDA
Neste terceiro ‘capítulo’, propomos uma abordagem mais prática, que passará por um
contacto directo com várias obras de épocas, disciplinas e estilos artísticos diversos. Convém
no entanto esclarecer alguns aspectos, desde logo a respeito da noção de «espiritualidade».
O «espiritual» corresponde, em linguagem bíblica, a uma dimensão do ser humano. O ser
humano que pondera as situações, avaliando-as e procurando nelas um sentido e uma
orientação; o ser humano que reflecte em si mesmo para distinguir entre bem e mal; o ser
humano que tem memória e desejos; o ser humano que toma decisões. Resumindo, a
dimensão espiritual liga-se à procura do sentido das coisas e da vida e, por isso mesmo, à
procura de Deus.
Mas os textos bíblicos exploram ainda outro significado. O «espírito» corresponde,
também, a um princípio vital, a um sopro de vida. No poema do Génesis, Deus infunde o seu
hálito divino para que o ser humano viva. Muito mais tarde, Paulo dirá que somos «templos do
Espírito Santo» e que «é pelo Espírito que dizemos: Abbá, Pai». Nesta segunda acepção, o
«espiritual» corresponde à iniciativa divina: Deus cria e acompanha-nos com o seu Espírito, por
dentro e por fora de nós. O «espiritual» tem, por isso, um aspecto biográfico: é expressão de
uma vida que está à procura de um sentido (da nossa parte), e de um sentido que toca a nossa
vida (da parte de Deus). Ou seja, a vida é o terreno da espiritualidade. É por esse motivo que
podemos falar de espiritualidade mesmo para lá dos limites da linguagem e gestos religiosos.
14 -
Também a estética e, especificamente, as artes, vai muito para lá das formas. A arte
ocupa-se da vida, nas suas diversas dimensões. Arte e espiritualidade têm a vida como o seu
ponto de encontro fundamental e fundante. Os exemplos que passamos a seguir exploram
estas afinidades.
a vida como bênção e como trabalho// o silêncio que mora por dentro das coisas//
Steve Reich, The Four Sections - IV. Full Orchestra Georg Philipp Handel, Messias ( 1:00:43)
Apresento este trecho sobretudo pelo diálogo entre Dentre os muitos aspectos interessantes, destaco
a música e a coreografia (como se pode ver na breve o modo como os encenadores captaram a força
apresentação, no início do vídeo). Nesta peça comunicativa do silêncio e do gesto. Muda,
coreográfica explora-se a ideia do quanto a vida é e exprimindo-se apenas com linguagem gestual, a
dá trabalho, e que esse trabalho corresponde, no personagem como que resume a música. A música
fundo, a um despir-se (dir-se-ia, a um descobrir a sua continua mesmo no silêncio. O que nos sugere a
própria identidade, ao mesmo tempo vulnerável e pergunta: qual a relação entre a música e o
esplêndida). silêncio? Como pode o silêncio cantar tanto?
15 -
2. O QUE AS ARTES PODEM TRAZER À VIDA ESPIRITUAL
corpo// M
aya Plisetskaya, o lago dos cisnes mesa// d
os homens e dos deuses
16 -
ouvir o corpo// S
teve Reich, Clapping Music ouvir o mundo// Paisagem sonora de uma cidade
ouvir o tempo// L
opes-Graça, Os homens que vão ouvir a natureza// J
ohn Luther Adams, I nuksuit
para a guerra
imaginação e realidade// Q
uentin Tarantino,
Inglourious Basterds
17 -