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Cárie dentária:
conceitos e
terminologia
Marisa Maltz Sonia Groisman
Livia Maria Andaló Tenuta Jaime A. Cury

A cárie dentária é uma doença complexa causada pelo desequilíbrio OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
no balanço entre o mineral do dente e o fluido do biofilme.1 O microe-
• Estudar a doença cárie
cossistema bacteriano do biofilme dental apresenta uma série de
dentária, suas causas, sinais
características fisiológicas. A produção de ácido por meio da metaboli- (lesões) e controle
zação de nutrientes pelas bactérias do biofilme e consequente baixa
• Conhecer os tipos de
do pH é o fator responsável pela desmineralização do tecido dentário
lesões de cárie
que pode resultar na formação da lesão de cárie. É importante ressal-
tar, no entanto, que o processo de desmineralização que ocorre na
superfície dentária na presença de carboidratos fermentáveis é um
processo fisiológico. A atividade metabólica das bactérias do biofilme
decorrente da disponibilidade de nutrientes causa constante flutuação
do pH, e, como consequência, a superfície dentária coberta por
biofilme vai experimentar perda mineral e ganho mineral. Este
processo de des-remineralização dos tecidos dentários é onipresente.
Frente a um aumento no consumo de carboidratos fermentáveis Perda mineral (sinais e sintomas)
(especialmente aumento na frequência), a produção de ácidos se Destruição A
intensifica, e os eventos de desmineralização não são compensados total

pelos de remineralização. Dessa forma, a lesão de cárie se forma Formação


de cavidade
somente quando o resultado cumulativo de processos de des-remine- B
ralização acarreta perda mineral. Lesão no
esmalte Visível
Thylstrup e Birkeland2 descreveram que os sinais da doença cárie
podem ser distribuídos em uma escala que inicia com a perda mineral Microscopia
C
de luz
em nível ultraestrutural até a total destruição do dente (FIG. 1.1). Esta
Microscopia
afirmativa, acrescida do fato de que o processo de des-remineraliza- eletrônica
Tempo
ção é um fenômeno natural que não pode ser prevenido devido ao
metabolismo constante no biofilme dental, dá origem à pergunta: o Figura 1.1 – Perda mineral em relação
que é cárie dentária? Quando podemos considerar que um paciente ao tempo. A visualização clínica da
apresenta a doença cárie? No nosso entendimento, quando o processo lesão pode variar de semanas, meses
de desmineralização fica restrito ao nível subclínico e não causa uma ou anos. A inclinação da curva
(velocidade de desenvolvimento da
lesão visível clinicamente, o indivíduo não pode ser classificado como
lesão) pode variar de acordo com a
portador da doença cárie e, portanto, não necessita qualquer trata- atividade de doença do paciente.
mento deste processo (a doença está sob controle). A perda mineral As curvas A, B e C representam
que se conserva em nível subclínico durante a vida do indivíduo não se pacientes com diferentes níveis de
enquadra no conceito clássico de doença, a qual se caracteriza como atividade de doença.
um distúrbio das funções de um órgão (dente), da psique ou do Fonte: Thylstrup e Birkeland.2

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CAVIDADE organismo como um todo, que causa dor, disfunção, desconforto,


problemas psicossociais ou morte.
Nicho ecológico protetor onde as
bactérias adaptam-se ao pH A cárie dentária é uma doença multifatorial na qual várias característi-
reduzido. cas genéticas, ambientais e comportamentais interagem. Fejerskov e
Manji3 elucidaram os diversos fatores determinantes do processo de
doença cárie em um diagrama (FIG. 1.2), e os classificaram em:
Fatores que atuam no nível da superfície dentária (círculo interno) –
determinantes biológicos ou proximais;
Fatores que atuam no nível do indivíduo/população (círculo externo)
– determinantes distais.
LEMBRETE O controle da cárie dentária, assim como o da maioria das doenças
crônicas como câncer, doenças cardiovasculares e diabetes, deve
O biofilme se desenvolve em incluir estratégias múltiplas direcionadas aos determinantes no nível
superfícies onde possa amadurecer do indivíduo, da família e da população. Sempre que possível, tais
e permanecer por longos períodos.
estratégias devem abordar fatores de risco comuns à doença cárie e a
Se o biofilme não é removido e as
outras doenças crônicas,4 por exemplo, o consumo racional de açúcar.
bactérias têm acesso a substrato
que induz a produção de ácido, a Apesar da importância desta abordagem que considera a relevância
doença cárie se estabelece. dos determinantes distais do processo de doença cárie, o estudo dos
fatores biológicos e o monitoramento de seus sinais clínicos são
imprescindíveis para o controle do processo da doença.
O biofilme dental é o fator biológico indispensável para a formação da
lesão de cárie. As lesões de cárie só ocorrem em áreas nas quais o
biofilme encontra-se estagnado (FIG. 1.3), tendo como localização
preferencial a margem gengival, as superfícies proximais logo abaixo
do ponto de contato e o sistema de fóssulas e fissuras das superfícies
oclusais. Dificilmente formam-se lesões de cárie em áreas submetidas
constantemente à autolimpeza decorrente da mastigação e dos
movimentos das bochechas e da língua. É importante salientar,

Classe social

Saliva
o

(índice de fluxo)
çã

Re
ca
u

Biofilme
Ed

da

dental Dente
pH
Flúor
Capacidade
Dieta tampão
composição Tempo Taxa de
frequência
metabolismo
Espécies do açúcar
microbianas
Co

Figura 1.2 – Fatores determinantes e Biofilme


to

Dente
m

dental
en

modificadores do processo de doença


po

pH
cim

cárie. Fatores que atuam no nível da


rta

superfície dentária estão apresentados


he

Saliva
m

no círculo verde. O círculo amarelo (composição)


en

Co

compreende os fatores que atuam no


to

nível do indivíduo/população.
Adaptado de Fonte: Adaptada de Atitudes
Fejerskov e Manji.3

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Cariologia: Conceitos Básicos, Diagnóstico e Tratamento Não Restaurador 13

Figura 1.3 –As lesões de cárie (B e D) ocorrem somente em áreas de estagnação de biofilme (A e C).

Perda

pH Tempo Tempo


Ganho

Perda Perda
Tempo

Tempo Ganho
Ganho

Figura 1.4 – Ilustração sistemática dos microeventos que ocorrem na superfície dentária ao longo do tempo. (A) Esta curva indica
flutuações do pH do biofilme em relação ao tempo e indica indivíduo que durante sua vida não apresenta lesões clinicamente
visíveis, não podendo, portanto, ser considerado doente. (B-D) Estas três curvas indicam diferentes exemplos de perda ou ganho
mineral do esmalte ao longo do tempo como resultado das inúmeras flutuações do pH. A linha horizontal pontilhada representa
onde a perda mineral pode ser observada clinicamente como uma lesão de mancha branca.
Fonte: Adaptada de Fejerskov e colaboradores.6

entretanto, que, embora a presença de biofilme dos processos de des-remineralização. Dessa


seja considerada um fator causal necessário para o forma, há o predomínio de eventos de desminerali-
desenvolvimento da lesão de cárie, ela não é um zação com resultante perda mineral do dente
fator causal suficiente para que esse tipo de lesão (estágio de desmineralização). Uma vez que o
ocorra.5 Como dito anteriormente, o tipo de nu- ambiente acidúrico fica estabelecido, o número de
trientes (determinado pela dieta do indivíduo) a microrganismos acidogênicos aumenta, promoven-
que as bactérias do biofilme estão expostas pode do o desenvolvimento da lesão (estágio acidúrico).7
resultar em flutuações de pH que irão determinar Inicialmente, a superfície do esmalte mostra-se
ou não a formação da lesão de cárie (FIG. 1.4). rugosa e opaca, e clinicamente é visível como uma
mancha branca (lesão de cárie não cavitada ativa)
O biofilme dental, um ecossistema microbiano (FIG. 1.5). Esta lesão tem sido denominada de
aderido às superfícies dentárias, é formado por mancha branca devido ao seu aspecto clínico.
bactérias que mantêm uma estabilidade dinâmica Entretanto, várias outras lesões não cariosas
com a superfície do dente (estágio de estabilidade podem também causar manchas brancas no
dinâmica). Na presença frequente de carboidratos esmalte, como a fluorose dentária (FIG. 1.6). Se o
fermentáveis e consequente produção de ácidos, processo de desmineralização persistir, a lesão de
observa-se uma adaptação microbiana que leva à cárie progride, ocasionando a quebra da camada
seleção de microrganismos acidogênicos. Ocorre, superficial da lesão com formação de uma cavida-
então, o rompimento da homeostase microbiana de (lesão de cárie com cavidade). A lesão com
do biofilme, e a proliferação de microrganismos cavidade que está sofrendo perda mineral, ou seja,
cariogênicos resulta no desequilíbrio do balanço em processo de progressão, é denominada lesão

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Figura 1.5 – Lesão de cárie não


cavitada ativa.

Figura 1.6 – (A) Lesão de cárie não cavitada e (B-D) aspecto clínico de fluorose. Enquan-
to a lesão de cárie ocorre em zonas de estagnação de biofilme (margem gengival, abaixo
do ponto de contato e superfícies oclusais), a fluorose dentária se estende em toda a
superfície dentária e, nos seus estágios iniciais, acompanha as periquemáceas.

cavitada ativa. Em um primeiro estágio, ela pode se limitar ao esmalte,


apresentando aspecto rugoso e opaco (cavidade em esmalte, FIG. 1.7)
ou pode progredir atingindo a dentina, que se mostra amolecida, com
aspecto úmido e geralmente de coloração amarelada (lesão cavitada
em dentina, FIG. 1.8).
O mesmo processo de desequilíbrio entre os eventos de des-remine-
ralização que ocorrem na interface entre o biofilme e o esmalte/
dentina coronária pode também ocorrer na raiz do dente, na interfa-
Figura 1.7 – Lesão de cárie cavitada
ce entre o biofilme e o cemento/dentina radicular, formando uma
ativa em esmalte. lesão de cárie radicular. Para que este tipo de lesão se desenvolva, é
necessário que a raiz dentária esteja exposta ao ambiente bucal
(recessão gengival) (FIG. 1.9).
As lesões que se estabelecem no esmalte/cemento/dentina hígidos
são denominadas lesões de cárie primárias e as lesões de cárie que se
desenvolvem adjacentes a restaurações são denominadas de cárie
secundária. As lesões de cárie secundárias são simplesmente lesões
que se desenvolvem adjacentes às margens de restaurações (FIG. 1.10).
É importante ressaltar que a etiologia da lesão de cárie secundária é a
mesma da lesão de cárie primária. Cárie residual é tecido desminerali-
zado deixado embaixo da restauração (FIG. 1.11) e seu efeito na longevi-
dade da restauração é discutido em Maltz e colaboradores.8
Uma vez que um adequado controle de biofilme seja estabelecido, ou
o indivíduo modifique seus hábitos alimentares com a adoção de uma
dieta com consumo moderado de carboidratos, o equilíbrio entre os
processos de des-remineralização se reestabelece, e a perda mineral
é controlada. A progressão das lesões de cárie é paralisada e suas
características clínicas são modificadas, assumindo características de
inatividade. As lesões localizadas no esmalte, quando paralisadas, se
LEMBRETE caracterizam por apresentar superfície lisa e brilhante, podendo ter
Cárie é uma doença totalmente coloração escura ou branca (lesões inativas em esmalte não cavitadas,
controlável se interferirmos com os FIG. 1.12 , ou cavitadas, FIG. 1.13). As lesões cavitadas inativas em dentina
fatores causais necessários e coronária têm aspecto endurecido e frequentemente escurecido
determinantes do seu (FIG. 1.14). As lesões radiculares paralisadas têm sua superfície mais
desenvolvimento. endurecida e, frequentemente, apresentam consistência escurecida

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Figura 1.8 – Lesão de cárie cavitada ativa em dentina (seta branca). No mesmo dente pode-se observar a presença de lesão
de cárie inativa (seta preta).

Figura 1.9 – Lesão


de cárie cavitada
ativa em superfície Figura 1.10 – Lesão
radicular. de cárie secundária.

Figura 1.11 – Radiografia periapical


indicando lesão de cárie residual.

Figura 1.12 – Lesão de cárie não


cavitada inativa em esmalte.

Figura 1.13 – Lesão de cárie cavitada Figura 1.14 – Lesão de cárie cavitada inativa em dentina.
inativa em esmalte.

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Figura 1.15 – Lesão de cárie cavitada inativa em superfície radicular. Figura 1.16 – Lesão de cárie radicular
com dentina coriácea.

(FIG. 1.15). As lesões que apresentam dentina coriácea são considera-


ATENÇÃO das lesões que estão em processo de paralisação (FIG. 1.16).
Toda lesão de cárie, O QUADRO 1.1 apresenta a classificação da lesão de cárie.
independentemente do seu
grau de progressão ou tecido Neste capítulo introdutório foram descritos, resumidamente, o proces-
dentário envolvido, é passível so da doença cárie e as consequências desta doença nos tecidos duros
de paralisação desde que se do dente. Descreveu-se os diferentes tipos de manifestações clínicas
restabeleça o reequilíbrio desta doença e as diferentes classificações das lesões. Nos próximos
entre os processos de capítulos serão discutidos o processo da doença cárie, as modificações
desremineralização. nos tecidos dentários decorrentes desta doença, a distribuição da cárie
na população, seu diagnóstico e tratamento não restaurador.

QUADRO 1.1 — Classificação da lesão de cárie


Quanto à localização Lesão de cárie coronária
Lesão de cárie radicular
Quanto ao sítio anatômico Lesão de superfície lisa
Lesão de fóssulas e fissuras
Quanto à presença de cavidade Lesão de cárie não cavitada
Lesão de cárie cavitada
Quanto ao tecido envolvido Lesão de cárie em esmalte
Lesão de cárie em dentina
Lesão de cárie em cemento
Quanto à atividade Lesão de cárie ativa
Lesão de cárie inativa
Quanto à presença ou não de restauração Lesão de cárie primária
prévia na superfície dentária Lesão de cárie secundária

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