CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Editora da Unesp: Estação Liberdade, 2006.
Introdução – Monumento e Monumento Histórico
* p.11: “Patrimônio. Esta bela e antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no tempo e no espaço. Requalificada por diversos adjetivos (genético, natural, histórico, etc.) que fizeram dela um conceito ‘nômade’, ela segue hoje uma trajetória diferente e retumbante. Patrimônio histórico. A expressão designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos”. * p.11: “A transferência semântica sofrida pela palavra revela a opacidade da coisa. O patrimônio histórico e as condutas a ele associadas encontram-se presos em estratos de significados cujas ambiguidades e contradições articulam e desarticulam dois mundos e duas visões de mundo”. Culto ao patrimônio merece questionamento, pois revela a condição da sociedade. A obra tratará do patrimônio histórico representado pelas edificações. * p.12: desde a década de 1960 não se confunde mais patrimônio histórico com monumento histórico, pois este representa senão parte de uma herança que não para de crescer com a inclusão de novos tipos de bens, o alargamento do quadro cronológico e das áreas geográficas no interior dos quais esses bens se inscrevem (saindo do limite do século XIX e do espaço geográfico europeu). * p.17-18: “Em primeiro lugar, o que se deve entender por monumento? O sentido original do termo é o do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere (‘advertir’, ‘lembrar’), aquilo que traz à lembrança alguma coisa. A natureza afetiva do seu propósito é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma memória viva. Nesse sentido primeiro, chamar-se-á monumento tudo o que for edificado por uma comunidade de indivíduos para rememorar ou fazer que outras gerações de pessoas rememorem acontecimentos, sacrifícios, ritos ou crenças. A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar. Para aqueles que edificam, assim como para os destinatários das lembranças que veiculam, o monumento é uma defesa contra o traumatismo da existência, um dispositivo de segurança. O monumento assegura, acalma, tranquiliza, conjurado o ser do tempo. Ele constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietação gerada pela incerteza dos começos. Desafio à entropia, à ação dissolvente que o tempo exerce sobre todas as coisas naturais e artificiais, ele tenta combater a angústia da morte e o aniquilamento”. Função antropológica é a essência do monumento, sua relação com o tempo vivido e com a memória. Ele parece presente em todos os continentes e em praticamente todas as sociedades, com ou sem escrita. Contudo, o papel do monumento em seu sentido original foi perdendo sua importância nas sociedades ocidentais, adquirindo outros significados, por duas causas: 1) importância crescente atribuída ao conceito de arte a partir do Renascimento, especialmente a ideia de beleza, desfazendo o avivamento da memória de Deus ou a condição humana de criaturas; 2) desenvolvimento, aperfeiçoamento e difusão das memórias artificiais (livros, fotografia). * p.23: os monumentos seguem, levados pelo hábito, uma carreira formal e insignificante. O monumento simbólico erigido para fins de rememoração está praticamente fora de uso em nossas sociedades desenvolvidas; o entusiasmo por este foi transferido para os monumentos históricos, à medida em que se desenvolviam técnicas mnemônicas mais eficientes. * p.25: é necessário dispor de um referencial histórico, atribuir um valor particular ao tempo e à duração, colocar a arte na história para que o sentido do monumento histórico se espalhe pelo mundo, ande mais depressa, não podendo ser dissociada de um contexto mental e de uma visão de mundo. O monumento histórico é constituído a posteriori, não sendo criado como tal, sendo selecionado dentre a massa de edifícios existentes, o que não ocorre com o monumento, construído a priori, com uma intenção. * p.26: “Todo objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico sem que para isso tenha tido, na origem, uma destinação memorial. De modo inverso, cumpre lembrar que todo artefato humano pode ser deliberadamente investido de uma função memorial”. * p.26: “O monumento tem por finalidade tem por finalidade fazer reviver um passado mergulhado no tempo. O monumento histórico relaciona-se de forma diferente com a memória viva e com a duração. Ou ele é simplesmente constituído em objeto do saber e integrado numa concepção linear de tempo – neste caso, seu valor cognitivo relega-o inexoravelmente ao passado, ou antes à história em geral, ou à história da arte em particular -; ou então ele pode, além disso, como obra de arte, dirigir-se à nossa sensibilidade artística, ao nosso ‘desejo de arte’: neste caso, ele se torna parte constitutiva do presente vivido, mas sem a mediação da memória ou da história”. Essa relação diferente com o tempo faz diferença no tocante à conservação: os monumentos são, de modo permanente, expostos às afrontas do tempo vivido, podendo ser esquecido e abandonado; já o monumento histórico, por estar inserido em um lugar imutável e definitivo num conjunto objetivado e fixado pelo saber, exige uma conservação incondicional. * p.28: proposta de fazer uma arqueologia da noção de monumento histórico, começando pelo Quattrocento e na revolução humanista dos saberes e mentalidades, no qual surge o projeto de estudar e conservar um edifício por ser um testemunho da história e uma obra de arte. Exemplos trazidos serão os da França, mas é um processo que ocorre em toda a Europa.
Capítulo 1 – Os humanistas e o monumento antigo
Pode-se situar o nascimento do monumento histórico em Roma, por volta de 1420, após o fim do Grande Cisma do Ocidente. * p.33-34: comparação com o que se passou na Antiguidade e a herança grega. Lá, nenhum princípio proibia a destruição dos edifícios ou objetos de arte antigos, e o que era preservado não era investido de valor histórico. Além disso, há os traços étnico e cronológico: o que era preservado era de um único povo e de épocas bem especificas. As preferências e escolhas não são orientadas por uma visão do passado. Conservação das edificações pagãs e da Antiguidade na Idade Média: economia de recursos, encanto intelectual, sensibilidade. Mas não são tratadas como monumentos históricos, pela falta de distancia histórica, a continuidade temporal com que são tratados os períodos. A preservação, na verdade, é uma reutilização. * p.44-52: por volta de 1430 aparece o despertar do olhar distanciado, despojado das paixões medievais, que, pousado sobre os edifícios da Antiguidade, metamorfoseia-os em objetos de reflexão e contemplação, culminando um processo que começara no século anterior, com o “Efeito Petrarca”, que instituiu a distância histórica através da tentativa de ler Virgílio como ele era na Roma Antiga (separação entre Antiguidade e Ocidente Cristão) e com a abordagem sensível (e não literária) dos edifícios antigos pelos “homens da arte”, a descoberta do universo formal da arte clássica (“Efeito Brunelleschi”), contemplação desinteressada, que também estabelece um distanciamento em relação aos vestígios da Antiguidade. * p.52-58: a partir da década de 1430 os humanistas, em especial os da Corte pontifical, preconizam a conservação e proteção vigilante dos monumentos romanos, mas não uma conservação apropriadora e mutilante, mas distanciada, objetiva, restauradora e protetora, para uma Roma que rapidamente destruía seu passado. Medidas de proteção ditadas pelos papas, embora eles danificassem monumentos para restaurar outros. Havia uma proteção ideal, cuja natureza, puramente discursiva, servia para mascarar e autorizar a destruição real, o que acontece até hoje. * p.59: os três discursos então, o da perspectiva histórica, o da perspectiva artística e o da conservação, contribuem para o surgimento do monumento histórico, reduzido apenas às antiguidades. Capítulo 2 – A época dos antiquários – monumentos reais e monumentos figurados * p.61: peregrinações a Roma e grande mobilidade que caracteriza a Europa erudita nos séculos XVII e XVIII faz com que o conteúdo da noção de antiguidades se enriqueça e se explorem lugares novos (Grécia, Egito, Ásia Menor) e se levantem as ruínas romanas ou gregas de cada país. O museu institucionaliza a conservação das antiguidades, que são objetos de um imenso esforço de conceituação e inventário. * p.63: os antiquários (pessoas) desconfiam dos livros, acreditando que o passado se revela de modo muito mais seguro pelos seus testemunhos involuntários, pela sua civilização material. * p.68: motivos para o avanço do estudo das antiguidades “nacionais”: 1) efeito das pesquisas feitas nos países em busca de remanescentes Greco-romanas; 2) o desejo de dotar a tradição cristã de um corpus de obras e edifícios históricos análogos àquele de que dispõe a tradição antiga; 3) o desejo de afirmar a originalidade e excelência da civilização ocidental, diferenciando-a de suas fontes Greco-romanas ou de afirmar particularidades. Destaque para as igrejas e catedrais góticas. * p.76: a importância atribuída pelos antiquários aos testemunhos da cultura material e das belas- artes não é senão um caso particular do triunfo geral da observação concreta sobre a tradição oral e escrita, do testemunho visual sobre a autoridade dos textos, na busca de uma descrição controlável e confiável dos objetos. A imagem se põe a serviço de um método comparativo que lhes permite estabelecer séries tipológicas, sequências cronológicas, como uma história natural das produções humanas. * p.79: três dificuldades do antiquário: 1) o peso da tradição, que ainda preserva em autores da Antiguidade e em crônicas medievais parte da autoridade; 2) despreparo para o método da observação cientifica, por conta das concepções medievais de representação e cópia, que privilegiavam alguns elementos em detrimento da forma original; 3) insuficiência do material arqueológico. * p.84: na época das Luzes, os antiquários estabelecem uma relação diferente com a duração, na qual aparece a ideia de progresso, com o avanço da geologia, paleontologia e o surgimento da historiografia moderna, a qual se caracteriza como a síntese do pensamento analítico dos antiquários e a abordagem interpretativa dos filósofos-historiadores do Iluminismo. * p.90: em três séculos a forma dominante de conservação das antiguidades foi o livro ilustrado com gravuras. Há poucos projetos de preservação, que só se efetuam por circunstancias excepcionais e pela ação de personalidades incomuns, com exceção da Inglaterra, por conta do vandalismo da Reforma contra as igrejas góticas, criando uma estrutura de proteção cívica e privada, debatendo se as restaurações deveriam ser conservadoras ou intervencionistas. * p.94: “a conservação e a restauração concretas, efetivas, exigem a conjunção de uma forte motivação de ordem afetiva e de um conhecimento que irá se refinando ao lado do progresso da história da arte”.
Capítulo 3 – A Revolução Francesa
Revolução Francesa, mesmo tendo destruído muito, lançou as bases da obra de proteção do patrimônio francês, uma conservação real, resultante da transferência dos bens do clero, da Coroa e dos emigrados à nação, e da destruição ideológica de parte desses bens a partir de 1792 (começo do Terror). O valor primário do tesouro devolvido a todo o povo é econômico. Os responsáveis adotam imediatamente, para designá-lo e gerenciá-lo, a metáfora do espólio. Foi criada uma Comissão “dos Monumentos”, que deveria tombar as diferentes categorias de bens recuperados pela nação, cada qual seria inventariada (13.10.1790). Palavras-chave: herança, sucessão, patrimônio e conservação. Os bens móveis seriam transferidos de depósitos para lugares abertos ao público, os museus, servindo à instrução da nação (civismo, história, artes, técnicas) e alcançando o máximo público possível. * p.106: primeiramente era uma conservação primária ou preventiva; após o vandalismo ideológico (que não tem a ver com fins econômicos decorrentes de necessidades do Estado revolucionário, mas que já ocorria no Antigo Regime) a partir de 1792, com a destruição de bens que simbolizavam a antiga ordem, foi implementada a conservação secundária ou reacional. * p.107: decreto de 3.3.1791 sobre a fundição de pratarias e relicários determina que fossem conservados os bens que tivessem interesse para a história, a beleza, o valor pedagógico para a arte e as técnicas, constituindo uma definição implícita dos monumentos e do patrimônio histórico. São os primórdios da conservação reacional. * p.116: o aparato desenvolvido pelos artesãos da conservação reacional para inventariar os bens imóveis liberta o conceito de monumento histórico de qualquer restrição ideológica, estilística ou temporal. * p.116-118: na França Revolucionária, o valor nacional legitimou todos os outros no que tange à conservação dos monumentos históricos: 1) valores cognitivos ou educativos (portadores de valores de conhecimento específico e gerais, testemunhas da história, introdução a uma pedagogia geral de civismo, dotando os cidadãos de uma memória histórica, mobilizando o sentimento de orgulho e superioridade nacionais); 2) valor econômico (fornecimento de modelos para as manufaturas, possibilidade de visitação); 3) valor artístico (arte como conceito indefinido e a noção de estética mal havia chegado, papel pedagógico para a formação dos artistas). * p.120: “Assim, na arrancada de 1789, todos os elementos necessários a uma autentica política de conservação do patrimônio monumental da França pareciam reunidos: criação do termo ‘monumento histórico’, cujo conceito é mais amplo, comparado ao de antiguidades; levantamento do corpus em andamento; administração encarregada da conservação, dispondo de instrumentos jurídicos (inclusive disposições penais) e de técnicas então exclusivas”. A grande novidade é que a conservação passou a ser assunto de Estado, pois era a conservação de um patrimônio que era de todos. O fim da Revolução encerrou o trabalho das comissões responsáveis: Napoleão se preocupou mais com os museus que com a sorte dos monumentos históricos nacionais. * p.122-123: o período compreendido entre 1796 e 1830 teve inovações, no âmbito do Conselho dos Edifícios Civis (1795), que promoveu os primeiros marcos de uma doutrina de restauração dos prédios antigos, e a primazia à qualidade estética dos edifícios medievais, contribuindo para o reconhecimento do valor artístico dos monumentos do passado.
Capítulo 4 – A consagração do monumento histórico (1820-1960)
* p.127: determinações novas e essenciais: privilegio dos valores da sensibilidade, principalmente estética; delimitações espaço-temporais, com a ruptura provocada pela Revolução Industrial; estatuto jurídico (leis visando a sua proteção); tratamento técnico (restauração como disciplina integral, que acompanha a historia da arte). * p.128: no século XIX a economia dos saberes centrou a função cognitiva do monumento histórico no domínio da história da arte, que estudaria a cronologia, técnicas, gênese, decoração, iconografia, entre outras. * p.135-139: a consciência do advento de uma era nova, com o choque criado pela Revolução Industrial, e de suas consequências criou, em relação ao movimento histórico, outra mediação e outra distância, ao mesmo tempo em que liberava energias adormecidas em favor da proteção dos monumentos. A partir de 1820 o monumento histórico inscreve-se sob o signo do insubstituível; os danos que ele sofre são irreparáveis; sua perda irremediável. O mundo acabado do passado perdeu a continuidade e a homogeneidade que lhe conferia a permanência do fazer manual dos homens. * p.141-143: tentativas já na metade do século XIX de espraiar as ideias de conservação por toda a Europa, e para outras civilizações ou grupos sociais. * p.144: a mutação nos modos de vida e na organização espacial das sociedades urbanas europeias torna obsoletos os aglomerados urbanos antigos, vistos como obstáculos e entraves a serem eliminados ou destruídos para um novo modelo de urbanização; negligencia na manutenção dos edifícios antigos. Isso leva à defesa e criação de legislações protetoras e de disciplinas de conservação. * p.145-149: exemplo da França. Inspetor dos Monumentos Históricos e Comitê de Trabalhos Históricos (1830); Comissão dos Monumentos Históricos (1837); Lei de Proteção (1887). * p.149-153: criação de práticas específicas e especialização de pessoas para conservar e restaurar os bens tombados, passando por uma série de dificuldades, como a falta de conhecimento dos arquitetos e a falta de prestígio do restaurador. * p.153-161: surgem duas doutrinas sobre a restauração: 1) a intervencionista, que predomina na Europa Continental e tem como representante máximo Viollet-la-Duc. Para este, o passado está morto; a nostalgia deve-se virar ao futuro, e não ao passado; os monumentos antigos devem simbolizar o espaço vazio, testemunhas dos sistemas históricos obsoletos. Defende a restauração dos prédios tal como eram originalmente, eliminando as intervenções posteriores. Contudo, parece que ele se esquece da distancia constitutiva do monumento histórico: “um edifício só se torna histórico quando se considera que ele pertence ao mesmo tempo a dois mundos: um mundo presente, e dado imediatamente, e outro passado e inapreensível”. 2) anti-intervencionista, própria da Inglaterra, com destaque para Ruskin. Para este, era proibido tocar nos monumentos do passado, pois o trabalho das gerações passadas confere aos edifícios um caráter sagrado; as marcas que o tempo imprimiu fazem parte de sua essência. A restauração significa um absurdo, uma completa destruição, é impossível. Já para Morris, existe o empecilho de ser impossível de se penetrar no espírito do tempo em que o edifício foi construído e identificar-se completamente com o artista, restaurar é atentar contra a autenticidade, que constitui sua própria essência. * p.167-171: quem estabeleceu os fundamentos críticos da restauração como disciplina foi Camilo Boito: autenticidade, hierarquia de intervenções, estilo de restauração. Já Alois Riegl traz à noção de monumento histórico um caráter social e filosófico: “só a investigação do sentido ou dos sentidos atribuídos pela sociedade ao monumento histórico permite fundar uma prática” (p.168), o que separa monumento do monumento histórico, fazendo deste último um problema da sociedade, ponto central sobre o questionamento sobre o devir das sociedades modernas (conceito de ancianidade). * p.171: o campo espaço-temporal dos monumentos históricos na década de 1860 apresentava quase os mesmos contornos que atualmente; o campo tipológico já incluía a arquitetura menor e a malha urbana; o campo cronológico continuava limitado pela fronteira da industrialização, mas se ampliava pelas descobertas arqueológicas e paleográficas; o campo de difusão, com o neocolonialismo, se tornou mundial. * p.172: até a década de 1960 o trabalho de conservação dos monumentos históricos visa essencialmente aos grandes edifícios religiosos e civis, seguindo as teses de Viollet-la-Duc. Contudo, o período de consagração do monumento histórico continha apenas em germe as orientações e os questionamentos que pautam o mundo atual.
Capítulo 5 – A invenção do patrimônio histórico
A noção de patrimônio histórico urbano constituiu-se na contramão do processo de urbanização dominante, sendo resultado de uma dialética da história e da historicidade que se processa entre três figuras (ou abordagens) sucessivas da cidade antiga: memorial, histórica e historial. * p.180-182: Figura memorial surge com Ruskin, que afirma que a estrutura das cidades antigas é a sua essência, fazendo dela um objeto patrimonial intangível, que deveria ser protegido incondicionalmente, valorizando sobremodo a arquitetura doméstica. São as garantias da nossa identidade. Porém, Ruskin encerra a cidade antiga no passado, perdendo de vista a cidade historial, a que está engajada no devir da historicidade. * p.182-194: figura histórica aparece na obra do austríaco Camilo Sitte, na qual a cidade pré- industrial aparece como objeto do passado e a historicidade do processo de urbanização transformadora é assumida com valor positivo. Análise das cidades antigas para buscar elementos que pudessem ser transpostos às necessidades daquele tempo. * p.191: a cidade antiga, como figura museal, ameaçada de desaparecimento, é concebida como um objeto frágil, precioso para a arte e para a história e que, como as obras dos museus, deve ser colocada fora do circuito da vida. Porém, tornando-se histórica ela perde sua historicidade. Contribuem para essa concepção viajantes, cientistas, estetas, arqueólogos, autores de guias, por várias gerações. A cidade como entidade assimilável a um objeto de arte e comparável a uma obra de museu não deve ser confundido com a cidade-museu, contendo obras de arte. A cidade, centro ou bairro museais, impõem-se como totalidades singulares. * p.194-203: figura historial aparece na obra de Giovannoni, é a síntese e a superação das duas anteriores. Atribui um valor de uso e um valor museal aos conjuntos urbanos antigos, integrando- os numa concepção geral de organização do território. Reconhece a necessidade de se articular o fragmento urbano nas redes de ordenação (especialmente transportes), mantendo o caráter social da população, e a necessidade da manutenção do entorno do monumento (isolá-lo seria o mesmo que mutilá-lo, pois faz parte de um contexto de construções). A partir daí é que se pode pensar as técnicas de preservação para os conjuntos antigos, respeitando sua escala e morfologia, preservando as relações originais que neles ligaram unidades parcelares e vias de trânsito mas com possibilidade de intervenção limitada pelo espírito do ambiente (consequências benéficas sobre a percepção da articulação dos elementos da malha urbana). * p.143: Gustavo Giovannoni cria, em 1913, o conceito de arquitetura menor. “Uma cidade histórica constitui em si um monumento, tanto por sua estrutura topográfica como por seu aspecto paisagístico, pelo caráter de suas vias, assim como pelo conjunto de seus edifícios maiores e menores; por isso, como no caso de um monumento particular, é preciso aplicar-lhe as mesmas leis de proteção e os mesmos critérios de restauração, desobstrução, recuperação e inovação”.
Capítulo 6 – O patrimônio histórico na era da indústria cultural
* p.207: o culto do monumento histórico se tornou religião ecumênica, por vários fatores: mundialização dos valores e referências ocidentais (como na Convenção de proteção do patrimônio mundial cultural e natural, de 1972), preparada pelo advento de uma administração assumida pelo Estado, especialmente com a adoção do modelo francês. * p.209: as descobertas da arqueologia e o refinamento do projeto memorial das ciências humanas determinaram a expansão do campo cronológico no qual se inscrevem os monumentos históricos, chegando cada vez mais próximos ao presente. Além disso, a expansão tipológica do patrimônio: edifícios modestos ou de arquitetura moderna. * p.210: expansão do público nos monumentos históricos – grande projeto de democratização do saber, herdado das Luzes; desenvolvimento da sociedade de lazer e do turismo cultural dito de massa. * p.211: difusão da “cultura” precipita uma mudança semântica: esta perde seu caráter de realização pessoal e torna-se indústria. Os monumentos e o patrimônio histórico adquirem dupla função: obras que propiciam saber e prazer, à disposição de todos, mas também produtos culturais, prontos para serem consumidos. Metamorfose do valor de uso em valor econômico. Valorização do patrimônio histórico: expressão-chave, no entanto, é ambígua, pois contém a noção de mais-valia, de interesse, de encanto, de beleza, de capacidade de atrair, tudo com conotações econômicas. Apresenta múltiplas formas: conservação e restauração; espetáculos de som e luz; animação cultural; modernização; conversão em dinheiro (lojinhas); acesso (estacionamento). Ao mesmo tempo em que o valorizam podem desfigurá-lo ou prejudicar sua apreensão pelo público. Integração: reutilização é a forma mais difícil da valorização do patrimônio: o monumento é poupado aos riscos do desuso para ser exposto ao desgaste e às usurpações do uso; deve-se levar em conta o estado material do edifício, o que requer uma avaliação do fluxo de potenciais usuários. Efeitos perversos: a “embalagem” que se dá ao patrimônio histórico urbano tendo em vista seu consumo cultural, assim como o fato de ser alvo de investimentos do mercado imobiliário, tende a excluir dele as populações locais ou não privilegiadas; a banalização, semelhança entre muitas cidades; efeitos da crescente visitação. Mas não se tem efeitos sobre a relação do grande público com a herança arquitetônica? “Essa indústria responde adequadamente à demanda de distração da sociedade de lazer e confere, além disso, o status social e a distinção associados ao consumo dos bens patrimoniais. Mas onde fica o acesso aos valores intelectuais e estéticos que há no patrimônio histórico?” (p.228) Frustração do grande público interessado nos valores da arte e da história dos monumentos e conjuntos históricos é um dos efeitos perversos da industrialização do patrimônio. A prevenção dos efeitos perversos deve ser entendida tanto do ponto de vista da proteção dos monumentos quanto da de seu público. Aí entra a conservação em segundo grau ou estratégica, que requer medidas de controle (fluxo de visitantes controlados), medidas pedagógicas (museu imaginário, com desenhos, reprodução dos edifícios em três dimensões e tamanho natural), políticas urbanas (adequação das áreas a suas dimensões e morfologia). * p.237: “Qual é o fundamento em que repousa a conservação do patrimônio histórico arquitetônico num mundo que se muniu de recursos científicos e técnicas para guardar na memória e interrogar seu passado sem a mediação de monumentos ou de monumentos históricos reais?”. Dispomos de algumas armas estratégicas contra os excessos de um consumo patrimonial que tendo a se converter em destruição. Contudo, nenhuma das motivações institucionalmente reconhecidas ou reivindicadas permite interpretar o culto ao patrimônio, cada vez mais crescente, mundo afora.
Capítulo 7 – A competência de edificar
Questionar o sentido da inflação do patrimônio histórico e colocá-lo numa perspectiva societal. * p.240: “o patrimônio histórico parece fazer hoje o papel de um vasto espelho no qual nós, membros das sociedades humanas do fim do século XX, contemplaríamos a nossa própria imagem”. O patrimônio teria assim perdido sua função construtiva, substituída por uma função defensiva, que garantiria a recuperação de uma identidade ameaçada. Traços narcisistas, meio de lidar, talvez, com transformações que não são dominadas em sua profundidade nem em seu ritmo, e que parecem questionar sua própria identidade, confortando a angústia e as incertezas do presente com a adição de novos elementos. * p.241: desenvolvimento da inflação patrimonial nos anos 50, época de perturbação cultural nas sociedades industriais, com o advento da era eletrônica e suas memórias artificiais e sistemas eficientes de comunicação, nos libertando das limitações do espaço (mobilidade) e tempo (instantaneidade). Vive-se uma revolução “protética” (inspiração em Freud), na qual se salienta a multiplicação das mediações e das telas entre os homens e o mundo, e os próprios homens. * p.247: não é só o patrimônio arquitetônico que compõe a imagem narcisista patrimonial. Há a museificação de todos os campos e tipos de atividade; o museu, que era uma instituição, tornou-se uma mentalidade, e não só coisas de um passado distinto. * p.248: “embora a figura que contemplamos no espelho do patrimônio seja o reflexo de objetos reais, nem por isso é menos ilusória. A forma indiscriminada com que foram reunidos eliminou todas as diferenças, heterogeneidades e fraturas. Ela nos tranquiliza e exerce sua função protetora graças, precisamente, à redução e à supressão fictícia dos conflitos e das questões que não ousamos enfrentar: instrumentos de defesa eficaz numa situação de crise e de angústia, mas instrumento transitório”. Seria um tempo para assumir um destino, uma reflexão, para depois continuar a construção da identidade. Passado esse prazo, o espelho do patrimônio estaria nos precipitando na falsa consciência, na recusa do real e na repetição. * p.251: o acontecimento traumático que a cultura do patrimônio nos ajuda a conjurar e a ocultar é a eliminação da competência de edificar (capacidade de articular entre si e seu contexto, com a mediação do corpo humano). Essa competência é a relação direta do construtor com o ambiente, sem intermediação, o que envolve também a memória ancestral. Isso traria a superação da crise da arquitetura e das cidades, reconduzido os objetivos de conservação do patrimônio à conservação da capacidade de lhe dar continuidade e substituí-lo. Uma nova abordagem do patrimônio deve levar em conta o reencontro com essa competência. * p.257: “Quando deixar de ser objeto de um culto irracional e de uma valorização incondicional, não sendo portanto nem relíquia nem gadget, o reduto patrimonial poderá se tornar o terreno inestimável de uma lembrança de nós mesmos no futuro”.