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Ana Luiza Saramago Stern

A Imaginação no Poder - Obediência


política e servidão em Espinosa

Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor em Direito.

Orientador: Prof. Adriano Pilatti


Co-orientadora: Profª Marilena de Souza Chaui

Volume I

Rio de Janeiro
Janeiro de 2013
Ana Luiza Saramago Stern

A Imaginação no Poder - Obediência


política e servidão em Espinosa

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção de grau de doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em Direito da PUC-Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Adriano Pilatti


Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio

Profa. Marilena de Souza Chaui


Co-orientadora
USP

Prof. Francisco de Guimaraens


Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Mauricio de Albuquerque Rocha


Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Luís Antônio Cunha Ribeiro


UFF

Prof. Homero Silveira Santiago


USP

Profª. Mônica Herz


Vice-Decana de Pós-Graduação do
Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio

Rio de Janeiro, 09 de janeiro de 2013.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e
do orientador.

Ana Luiza Saramago Stern

Graduou-se em Direito na PUC-Rio (2004). Obteve o título de


Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-
Rio (2008). É professora universitária na PUC-Rio, onde
atualmente leciona Sociologia do Direito e Metodologia na
graduação, e na UNIFESO, onde atualmente leciona Teoria do
Estado. Recebeu bolsa CAPES ao longo do Doutorado.

Ficha Catalográfica
Stern, Ana Luiza Saramago

A Imaginação no poder – Obediência política e servidão em


Espinosa / Ana Luiza Saramago Stern; orientador: Adriano
Pilatti; co-orientadora: Marilena de Souza Chaui – 2013.

2v.; 311fls. ; 30 cm

Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio


de Janeiro, Departamento de Direito, 2013.
Inclui bibliografia

1. Direito – Teses. 2. Espinosa. 3. Política. 4. Direito. 5.


Obediência. 6. Poder. 7. Estado. I. Pilatti, Adriano. II.Chaui,
Marilena de Souza. III. Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. Departamento de Direito. IV. Título.

CDD: 340
Resumo

Stern, Ana Luiza Saramago; Pilatti, Adriano. A Imaginação no poder –


Obediência política e servidão em Espinosa. Rio de Janeiro, 2013, 311p.
Tese de Doutorado. Departamento de Direito, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.

Espinosa nos apresenta uma concepção intrinsecamente democrática do


poder político, onde a constituição do mais libertário dos regimes ou da mais
odiosa das tiranias encontra-se sempre nas mãos da multidão. Neste trabalho,
começamos analisando como o filósofo constrói, em sua Ética, uma concepção da
imanência absoluta, que o permite recusar qualquer arquétipo de poder
transcendente. Em Espinosa, o poder político não se distancia de sua causa
imanente, a potência da multidão. O sujeito político espinosano não se organiza
pelo cálculo racional de indivíduos contratantes, mas por uma mecânica afetiva
imanente que perpassa o campo social. Estudamos como, próximo da reflexão
maquiaveliana, o filósofo se dispõe a analisar a experiência política como campo
dos afetos e dos conflitos, e visitamos os principais conceitos e formulações
espinosanos acerca da política, enunciados em seu Tratado Teológico-político e
seu Tratado Político. Comentamos de que maneira o direito natural é analisado
por Espinosa como potência sempre atual e positiva, e o direito civil entendido
como expressão imanente das próprias relações constituintes da multidão. Por fim,
chegando a nosso tema central, analisamos a obediência política, entendida pelo
autor como causa imanente do poder político, e causa, portanto, de seu caráter
democrático ou tirânico. Passando pela distinção entre a obediência livre do
cidadão e a obediência servil do escravo, estudamos como a imaginação pode
engendrar a obediência como desejo de servir e quais afetos, além do medo,
podem acompanhar a servidão política.

Palavras chave
Espinosa; Política;Direito;Obediência;Poder; Estado.
Résumé

Stern, Ana Luiza Saramago; Pilatti, Adriano.(conseiller). L’imagination


au pouvoir – Obéissance politique et servitude chez Spinoza. Rio de
Janeiro, 2013, 311p. Thèse de Doctorat.. Departamento de Direito,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Spinoza nous présente une conception intrinsèquement démocratique du


pouvoir politique, où la constitutions de le plus libre régime ou la plus odieuses
tyrannie sont toujours entre les mains de la multitude. Nous commençons notre
travaile pour l’etude de l’Èthique, et de la une conception spinoziste de
l’immanence absolue, qui interdisent tout archétype d’une pouvoir transcendante.
Pour Spinoza la puissance de la multitude est la cause immanente de le pouvoir
politique. Le sujet poitique multitude n’est pas organisé par le calcul rationnel
d’un contract entre les individus, mais par une mécanique affective immanente qui
imprègne le domaine social. Nous étudions comment le philosophe afirme
l'expérience politique comme un champ d'affects et de conflits, et nous visitons les
principaux concepts et formules spinozistes sur la politique, énoncée dans son
Traité Théologique-Politique et son Traité Politique. Nous analysont de quelle
façon la loi naturelle est afirmée par Espinosa comme expression de la puissance
positive et actuelle de la multitude et la loi civile perçue comme une expression
immanente des propres relations constitutives de la multitude. Enfin, à notre
thème central, nous analysons l'obéissance politique comprise par l'auteur comme
cause immanent du pouvoir politique et par conséquent cause de son caractère
démocratique ou tyrannique. En passant par la distinction entre l'obéissance libre
des citoyens et l'obéissance servile de l'esclave, nous étudions comment
l'imagination peut engendrer l'obéissance comme désir de servir, et les affects que,
au-delà de la peur, peut accompagner la servitude politique.

Mot-Clefs

Spinoza ; Politique ; Droit ; Obéissance ; Pouvoir ;Etat.


“Para que não mais existam amores servis”
Maiakóvski
Agradecimentos

“O agradecimento ou a gratidão é o desejo ou o


empenho de amor pelo qual nos esforçamos por fazer
bem a quem, com igual afeto de amor, nos fez bem.”

Espinosa

Em quatro anos de doutorado não se escreve apenas uma tese, é a vida


que se desenrola, é o tempo que escreve em seu ritmo, ora mais lento ora mais
rápido, às vezes avassalador, eventos alegres e tristes, bons e maus encontros,
tropeços e sorrisos. Muito trabalho, muito crescimento e um caminho que eu
jamais poderia ter trilhado sozinha. Se aqui estamos, chegamos com a inestimável
ajuda de muitos. Ainda que impossível lista-los todos, segue os agradecimentos
àqueles que, mais próximos, contribuíram com orientação e incentivo, com
palavras de conforto ou mesmo merecidas palavras duras, com um abraço ou
apenas com um olhar doce entre a escuridão, com tudo que tece as vidas nos laços
da amizade.
Ao prof. Adriano Pilatti pela orientação que, muito além dessa
pesquisa, norteia, desde minha graduação, minha formação acadêmica e
profissional. Minha mais sincera gratidão pela sua generosidade e incentivo, pela
justa medida entre amizade e orientação, e pela ética e liberdade que só se
ensinam pelo exemplo.
Ao prof. Francisco de Guimaraens pela amizade no pensamento,
pelas obras que são fonte de e abriram o caminho para esta pesquisa, e pela
amizade, generosidade e incentivo sem os quais esta obra dificilmente teria se
realizado desta forma..
Ao prof. Maurício Rocha, por me apresentar adequadamente ao
pensamento de Espinosa e pelos anos de estudo no seu Círculo de leitura Spinoza
& a filosofia (e lá se vão já doze anos), cujos aprendizados são gênese constituinte
desta pesquisa. Pela amizade, generosidade e incentivo.
À profa. Marilena Chaui minha especial gratidão pela orientação deste
trabalho, a leitura atenciosa e as observações e sugestões sempre muito generosas.
Eu que já me sentia sua aluna antes de conhecê-la, pela leitura de suas obras, tive
a imensa alegria de, conhecendo-a pessoalmente, ver como a virtù pode ser
simples e ao mesmo tempo grandiosa.
Aos professores Homero Santiago e Luis Antonio Ribeiro pela
participação na banca de avaliação deste trabalho, pelo debate profícuo e
generosidade de ideias naquela ocasião.
Aos professores do Departamento de Direito da PUC-Rio, pelos
ensinamentos na Graduação e Pós-Graduação e pela generosa acolhida
profissional. Por todos, meus agradecimentos especiais à profa. Regina Coeli
Soares pelas conversas que me ensinam muito sobre esse ofício que é o nosso.
Aos funcionários do Departamento de Direito da PUC-Rio, pela
eficiência, presteza e bom humor com que sempre me atenderam, seja como aluna
seja como professora.
Aos colegas de doutorado João Carlos Castelar, José Guilherme
Bergman e Daniel de Oliveira pela divertida convivência e a Thula Rafaela Pires
pela amizade.
Ao Grupo de Estudos Espinosanos da USP pela generosa acolhida e
ricos e producentes debates, por todos, especialmente a Ericka Marie Itokazu pela
amizade que ignora distâncias geográficas.
À PUC-Rio pelo ambiente aberto ao debate e o clima de amizade, e
por acolher-me como aluna e professora em sua atmosfera de liberdade
imprescindível ao pensamento.
À CAPES pela colaboração nas condições materiais essenciais para o
desenvolvimento desta pesquisa.
Aos amigos que iluminam com alegria e esperança a escuridão,
compartilham com abraços as conquistas, nunca me deixam desistir e fazem da
jornada de cada dia, seja ela pesada ou leve, este maravilhoso caminho chamado
vida. Em nome de todos, os mais próximos: Renato, Anderson Brandão e Jorge
Eduardo Lucas Costa. E ainda: Bruna Soalheiros e Beatriz Lima pelos anos de
amizade.
Ao meu pai pelo amor e apoio material. Aos meus avós maternos
Maria Cecília e Eldyr Saramago, meu irmão Luis Felipe e minha mãe Carmen
pelo amor e imprescindível apoio no essencial, pelo suporte nas piores horas e por
acreditarem e me ensinarem que depois de uma queda é sempre tempo de levantar
e seguir em frente.
Sumário

Introdução 12

1. A imanência absoluta 22
1.1. O plano de imanência 22
1.2 Expressões singulares 33
1.3 Conatus 48

2 Soberania. 56
2.1 Superstição e servidão 56
2.2 O sistema do medo. 73
2.3 O medo e a alegria: Hobbes e Espinosa 89
2.3.1 A recusa do fundamento teológico do poder político 90
2.3.2 A causalidade eficiente transitiva x causalidade eficiente imanente
93
2.3.3 Conatus e concepção antropológica 94
2.3.4 Liberdade 103
2.3.5 A constituição do campo político 105
2.3.5.1 Estado de natureza 106
2.3.5.2 Pacto social e o Leviatã 110
2.3.5.3 Direito natural e direito civil 113

3 A constituição do campo político 117


3.1 A multidão como sujeito político 117
3.1.1Indivíduo e subjetividade 118
3.1.2 Variações e transformações 124
3.1.3 Imitação afetiva e a gênese constituinte da multidão 131
3.1.4 A multidão como multiplicidade de singularidades 145
3.2 Imperium: a potência da multidão 156
3.2.1 A democracia intrínseca ao campo político 156
3.2.2 Experiência política e o agudíssimo Maquiavel 168
3.2.3 Imperium e instituições 184
3.3.3.1 A monarquia espinosana 191
3.2.3.2 A aristocracia espinosana 197
3.3 O campo jurídico: direito natural e direito civil 202
3.3.1 Direito natural 203
3.3.2 Estado de natureza 211
3.3.3 Direito civil 217

4 A imaginação no poder – obediência política e servidão 225


4.1 O ingenium da multidão: o comum nas mentes e nos corpos 226
4.2 O cidadão e o escravo 236
4.3 Obediência e desejo de servir 245
4.4 Reinar sobre os ânimos 256
4.5 A multidão servil 264
4.5.1 O amor ao tirano 265
4.5.2 Do um ao outro, da semelhança ao ódio 270
4.5.3 Muitos meios de dominação 278
4.5.4 A servidão sem tirano 287

5 Conclusão 293

6 Bibliografia 304
Introdução

Na primeira metade do século XX, Wilhelm Reich sintetiza com


precisão a relevância do tema da obediência ao destacar que: “o que é
surpreendente não é que os povos se revoltem, mas sim que não se revoltem.”1 O
tema da obediência política é central ao pensamento político. Qualquer concepção
democrática do político não pode fugir à análise da obediência como causa do
poder político e determinante de sua organização mais democrática ou mais
tirânica.
Maquiavel já afirma em seus Discursos a dificuldade de um povo
acostumado à servidão em tornar-se livre. O autor florentino coloca na qualidade
da obediência servil as características que sustentam um governo tirânico. É na
obediência servil que está a causa da tirania, de modo que, afirma Maquiavel: “O
povo acostumado a viver sob a autoridade de um príncipe, se por algum
acontecimento se torna livre, dificilmente mantém a liberdade”2.
Com Étienne de La Boétie, e seu célebre Discurso da servidão
voluntária, a questão da obediência política ganha espaço de protagonista na
análise do campo político. O autor identifica nas mãos da multidão o destino de
todo tirano, e dedica-se a investigar como a obediência política pode se perpetuar
como desejo de servir. Visto que o comando de alguém para ter poder implica,
necessária e originalmente, a obediência de outros, encontramos na pergunta “por
que se obedece?” a questão central a qualquer análise democrática do poder
político.
Neste sentido, o pensamento de Espinosa nos oferece elementos para
uma investigação adequada da gênese da obediência política. Ao conceber o
imperium, o poder político, como indissociável e expressão imanente da potência
da multidão, Espinosa estabelece a democracia como gênese constituinte do
político e constrói o campo adequado para pensarmos a experiência da obediência.
Uma visão “de baixo para cima” do poder político entendido como expressão

1
apud CHÂTELET, François e DUHAMEL, Olivier e PISIER-KOUCHNER, Evelyne, História
das ideias políticas, Jorge Zahar editor, Rio de janeiro, 1985.
2
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, São Paulo: Martins
Fontes, 2007. Livro Primeiro, cap.16
13

imanente da potência da multidão, uma compreensão da natureza humana que não


despreza as paixões e a imaginação, e uma ontologia da imanência absoluta - eis
os principais elementos que fazem da obra de Espinosa um instrumental adequado
e indispensável para qualquer análise democrática da obediência política.
A concepção intrinsecamente democrática do poder político,
construída por Espinosa, coloca nas mãos da multidão tanto a potência de
constituição do mais libertário dos regimes, como o fundamento da mais cruel das
tiranias. Da relação de causalidade imanente entre potência da multidão e poder
político resulta que a organização do campo político e jurídico em Espinosa é
expressão imanente do conatus da multidão.
Nossa pesquisa busca evidenciar, no pensamento de Espinosa, as
causas da obediência política como experiência de servidão. Dado que o conatus
espinosano é sempre potência positiva e atual de esforço pela liberdade e pela
alegria, como pode a potência da multidão aquiescer em e sustentar uma tirania?
Se o poder político é imanente ao direito natural da multidão, como pode aquele
exercer-se contra os interesses deste, na opressão e no medo? Em que termos é
possível explicar a experiência da servidão? Qual a mecânica imaginativa e
passional capaz de levar os homens a “combaterem pela servidão como se fosse
pela salvação3”?
Para Espinosa, o homem não nasce racional, a racionalidade é um
esforço, nosso estado mais comum é a imaginação. Sendo assim, não é num
conjunto de sábios ou na elevação de toda a multidão ao conhecimento racional
que nosso filósofo encontra a gênese da liberdade ou da servidão políticas.
Imersos em ideias mutiladas e confusas, conclusões sem premissas, afetados por
paixões e mergulhados na passividade, é na imaginação que se constitui o campo
político. A política está inexoravelmente mergulhada na imaginação, e as paixões
são seu substrato necessário.
Superstições, medos, ódios, amores servis, tristezas, ideias
inadequadas, delírios coletivos, o que de pior nos torna humanos – nada disso
pode ser desprezado ao se pensar o político. Se o poder político, como expressão
do conatus coletivo da multidão, pode ser esforço de alegria e liberdade,
constituição do comum, democracia, por outro lado a servidão, o desvirtuamento

3
Tratado Teológico Político, prefácio.
14

do exercício do imperium para fins particulares, e a tirania são experiências que a


materialidade histórica não nos deixa ignorar. A política, nosso filósofo afirma,
não é o campo de teorias racionais ou de elucubrações filosóficas, mas da
experiência bruta dos conflitos, das paixões e da imaginação.
Afirmar o desejo pela alegria e pela liberdade inscrito na essência de
todas essas coisas semelhantes a nós, não significa negar a potência da
imaginação, a potência das paixões, os desejos passionais e tristes que advém do
medo e do ódio. Espinosa não nega a potência de uma ideia falsa, nem esconde o
fato de que imaginação gera realidade. Paixões alegres como a esperança e a
experiência do comum podem sedimentar o caminho da constituição do Estado
como expressão imanente da potência da multidão e exercício do poder em prol
do bem comum. No entanto, paixões tristes como o medo e discursos da
transcendência podem constituir a experiência política como experiência triste da
servidão, tirania.
Nesse terreno, numa multidão mergulhada no medo, com um
ingenium, um imaginário coletivo, povoado de ideias da transcendência, habituada
a práticas e ritos supersticiosos e autoritários, na imaginação triste o desejo pela
servidão encontra sua gênese. E se, pela constituição positiva e atual do conatus,
ninguém deseja a servidão pela servidão, imersos nas ideias inadequadas da
imaginação os homens, quando obedecem a um tirano, desejam algo de bom que
imaginam encontrar na servidão. O desejo é a expressão do conatus na
consciência. Uma consciência impregnada pela imaginação e por paixões tristes
pode obedecer de forma servil, desejando para si mesma um mal que considere
menor, se movida pelo medo de um mal maior futuro maior que imagine resultar
da desobediência.
È nesse sentido que a tirania em Espinosa não é entendida como uma
aberração, nem uma falha na compreensão do poder político como expressão
imanente do conatus da multidão. Dominada por paixões tristes, a multidão pode
desejar ser governada por um tirano se, dominada pelo medo, imaginar ver aí sua
salvação. Ainda como expressão do próprio conatus, a multidão imersa na
imaginação, movida pelo medo, pode desejar a servidão como se fosse seu bem,
imaginando-se frente à ameaça de um mal maior futuro e incerto.
É a obediência servil do escravo que faz o senhor, é o desejo
imaginativo e triste da multidão que sustenta o tirano. Numa perspectiva
15

intrinsecamente democrática, a teoria espinosana de compreensão do poder


político coloca nas mãos da multidão a potência de constituição de sua liberdade,
mas não a absolve da responsabilidade pela própria tristeza, miséria e opressão. E
somente porque está nas mãos da multidão o destino de todo tirano é que repousa
também em seus ombros a potência para restituir a própria liberdade.
Nosso estudo tem por objeto central a obediência política como
experiência de servidão. Cabe, no entanto, destacarmos que não escolhemos nosso
tema para exaltar ou defender qualquer utilidade da servidão política. Muito pelo
contrário, em nosso esforço por conhecer os caminhos da tristeza, do medo e da
passividade, nos inspira uma ambição de liberdade, calcada na certeza espinosana
de que “um afeto que é uma paixão, deixa de ser paixão no momento em que dele
formamos uma ideia clara e distinta”4.
Assim, cabe advertir que não apontaremos respostas certas ou
soluções para o problema da servidão. Se o conhecimento adequado acerca da
política, como enuncia nosso autor, está mais nas mãos daqueles que a conhecem
na prática do que em elucubrações teóricas, também o caminho da liberdade de
cada multidão deve se construir na praxis política e não em teses abstratas. Nosso
objetivo se limita à compreensão adequada da experiência da obediência política e
da servidão, inspirados pelas palavras de um outro filósofo, Henri Bergson,
quando este considera que:

A verdade é que, em filosofia e também alhures, trata-se bem mais de


encontrar o problema, e, por conseguinte, de formulá-lo, que de resolvê-lo.
Pois um problema especulativo está resolvido a partir do momento em que
está bem formulado.5

Nesse sentido, nossa pesquisa começa com a análise dos principais


conceitos da ontologia espinosana, de modo a estabelecermos o plano de
imanência absoluta em que trabalha nosso filósofo. Analisamos na Ética as
principais características do Deus espinosano, que é a Natureza infinitamente
infinita, de modo a compreendermos sua potência produtiva e suas expressões
finitas, dentre elas essas coisas semelhantes a nós. Estudamos como Espinosa
nega qualquer concepção antropomórfica de Deus afirmando a ordem de
causalidade necessária de tudo o que existe. Deus em Espinosa não é livre porque,

4
Ética V, proposição III
5
Bergson, Henri. Memória e vida – textos escolhidos, ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, p. 20.
16

dotado de um livre arbítrio tirânico, pode escolher entre possíveis, distribuindo


bens e males, mas sua liberdade advém de sua infinita produtividade sempre atual
e estritamente necessária de tudo o que existe.
Tudo o que existe, existe em Deus6, e nada poderia existir de forma
distinta ou em outra ordem do que de fato existe7. Além de estritamente
necessário, o regime de produção da Natureza é absolutamente imanente, de modo
que a potência divina se expressa em tudo o que existe. E como expressão desta
potência infinita de Deus, cada coisa singular traz em sua essência uma potência
positiva e atual de existir, um esforço por perseverar na existência, conatus8.
As coisas singulares estão inexoravelmente imersas num universo de
encontros com outras coisas singulares e suas potências de existir se expressam,
nesse horizonte, em potências de afetar e ser afetado por outras coisas singulares.
Dados os encontros experimentados por um indivíduo sua potência pode sofrer
variações positivas ou negativas, e estas variações são os afetos, de alegria quando
variações positivas, de tristeza quando variações negativas ou ainda de desejo
quando expressões do conatus na consciência.
Ainda no nosso primeiro capítulo, analisamos a constituição dessas
coisas semelhantes a nós como indivíduos compostos por mente e corpo. E os
gêneros de conhecimento que Espinosa identifica na mente: imaginação, razão e
intuição. Tecemos, neste sentido, um importante estudo sobre as características
principais da imaginação como terreno do conhecimento inadequado, sobre a
passagem para o campo racional e sobre a intuição. As características da
imaginação estudadas neste início de nossa pesquisa são de vital importância para
a análise da obediência como desejo de servir no nosso último capítulo.
No segundo capítulo visitamos a transcendência. Se, em nosso
primeiro capítulo, estudamos como Espinosa recusa o arquétipo do Deus
antropomórfico e transcendente para afirmar o campo da imanência absoluta, aqui
estudamos como o discurso da transcendência pode aprisionar os homens no
medo e na superstição e fundamentar, no campo da política, as ideias da soberania
e da servidão.

6
E I, prop. 15
7
E I, prop. 33
8
E III, prop. 6 e 7
17

Analisamos como o discurso da transcendência do poder político e da


soberania pode aprisionar soberano e plebe num sistema de medo recíproco. A
plebe temendo o soberano por acreditar em seu poder transcendente, envolto nos
mistérios do poder, nas razões de Estado, uma vontade livre cujas razões lhe são
inacessíveis. O soberano temendo a plebe pela consciência de que esta lhe supera
em potência e é a pior ameaça a seu poder. Neste cenário estudamos as relações
entre direito natural e direito civil, evidenciando como o primeiro se caracteriza
em medida, guardião e ameaça deste último.
Ao estudarmos o discurso da transcendência, o poder político
sustentado pelo medo e pela soberania, somos remetidos, obrigatoriamente, ao
pensamento de um dos contemporâneos de Espinosa cuja compreensão do campo
político mais claramente exemplifica o tema: Thomas Hobbes. Visitamos, então,
ainda que brevemente, as principais características do pensamento de Hobbes, sua
afirmação do pacto social contratado entre indivíduos medrosos e a constituição
do poder soberano que transcende o campo social.
Chegando ao nosso terceiro capítulo chegamos à análise do campo
político em Espinosa. Analisamos como nosso filósofo inscreve a política no
campo da imanência absoluta e numa concepção absolutamente democrática do
poder político, entendido como expressão da potência da multidão. Estudamos
nesse capítulo, em três itens, os três seguintes temas: a constituição e principais
características do sujeito político multidão, o poder político que se organiza em
imperium e suas instituições, e o campo jurídico.
Assim, abrimos este capítulo com o estudo da multidão que, em
Espinosa, não é a soma de indivíduos atomizados que pré-existem ao social, nem
o resultado de nenhuma ação transcendente que lhe garanta sua unidade. O
processo de subjetivação, para nosso filósofo, é também intersubjetivo e nenhum
indivíduo se constitui senão no encontro com outros indivíduos. Não é num
contrato social que a multidão se constitui, mas numa mecânica afetiva imanente e
necessária que une os indivíduos na busca por alegrias comuns. Por imitação
afetiva somos afetados de forma semelhante à ideia dos afetos das coisas
semelhantes a nós, um afeto experimentado coletivamente é sempre mais intenso
que qualquer afeto experimentado apenas individualmente. Daí, como expressão
do conatus individual, todo indivíduo busca experimentar coletivamente a alegria.
18

A gênese constituinte da multidão se inscreve na própria potência de


cada um de seus indivíduos constituintes e na mecânica afetiva da imitação que os
une na imaginação de laços de semelhança. A sociedade não se resume à figura
teórica do contrato social entre indivíduos que a precedam, mas também não pré-
existe aos indivíduos como um organismo ou uma ordem de valores
transcendentes. Os indivíduos constituem o sujeito político multidão por força de
seus próprios afetos, seu conatus, e somente nos encontros com outros indivíduos
é que se constituem suas individualidades singulares.
A constituição do sujeito político multidão é também a constituição de
uma potência coletiva que se expressa como poder político, imperium. Longe dos
discursos da transcendência e da soberania, em Espinosa, o poder político é
expressão absolutamente imanente e democrática da potência da multidão. Para
nosso filósofo, a democracia é intrínseca a todas as formas de exercício do poder
político, pois este não transcende a potência da multidão e está nas mãos da
multidão a constituição do mais democrático dos regimes ou da mais cruel tirania.
Um Estado livre é aquele em que o imperium é exercido em prol do
bem comum, em que estão nas mãos da multidão os instrumentos de resistência a
qualquer ambição tirânica dos governantes, onde a esperança é maior que o medo,
e está preservada a relação de imanência entre o exercício do poder político e a
potência da multidão. Já a servidão política se constitui nos discursos da
transcendência entre poder constituinte e poder constituído, na usurpação do
exercício do poder político para fins particulares, na multidão imersa no medo.
Para Espinosa, o conhecimento adequado acerca da política não se
constrói em elucubrações teóricas ou raciocínios abstratos. Seguindo Maquiavel,
nosso filósofo afirma que aqueles que melhor conhecem a política são aqueles que
a conhecem na prática, é a experiência da materialidade histórica a melhor mestra
acerca dos assuntos da política. Assim, Espinosa analisa a política considerando a
natureza humana como ela se apresenta na experiência, sem desprezar suas
paixões e conflitos, sem juízos morais ou recurso a valores transcendentes.
Neste cenário, ainda em nosso terceiro capítulo, visitamos as
principais características dos desenhos institucionais propostos por Espinosa para
Estados monárquicos e aristocráticos. Nosso filósofo se preocupa em organizar
instituições políticas capazes de preservar, mesmo frente à natureza humana
passional e conflituosa, o maior grau de democratização destes Estados. A morte
19

impediu nosso filósofo de terminar sua última obra política e, portanto, seu
desenho institucional para os Estados democráticos.
Encerrando nosso terceiro capítulo analisamos o campo jurídico em
Espinosa. A mesma potência da multidão que se expressa em imperium constitui
leis comuns que vão regular e dar previsibilidade aos comportamentos,
assegurando o cumprimento dos pactos e instaurando os juízos coletivos de justo e
injusto, certo e errado. Longe da transcendência afirmada pelo jusnaturalismo e da
ambição de autonomia do jurídico do positivismo, para nosso filósofo, o direito
civil é expressão imanente das relações constituintes da multidão.
Finalmente em nosso quarto e último capítulo chegamos ao tema da
obediência política em Espinosa. Se, por um lado, a potência da multidão se
expressa em poder político e direito civil, ela é também a constituição de um
imaginário coletivo, um conjunto de ideias, práticas e afetos comuns que
perpassam mentes e corpos de seus constituintes, se expressando num
temperamento comum, um ingenium da multidão que a constitui como mais apta à
liberdade ou mais próxima da servidão.
Espinosa distingue expressamente a obediência livre do cidadão
daquela servil do escravo e isso em função da qualidade das ordens que cumprem:
o cidadão cumpre ordens que expressam o interesse comum e assim, ao cumpri-
las obedece na verdade o próprio conatus, já o escravo cumpre ordens que
expressam apenas o interesse particular daquele que as ordena e, portanto, age em
vista da utilidade alheia e é “inútil a si mesmo”.Tal distinção se coaduna com o
que dissemos acerca da distinção entre o Estado livre e a servidão política, pois
somente num Estado em que o poder político é exercido em prol do bem comum é
que a obediência livre do cidadão pode ter lugar. Da mesma forma, o escravo
obedece necessariamente um Estado tirânico, imerso na servidão da obediência a
interesses alheios.
Neste sentido, nos dedicamos à análise da experiência da obediência
como desejo de servidão. Estudamos como a imaginação pode engendrar a
obediência como experiência de servidão, experiência de tomar como seus os
interesses alheios, a alienação da própria capacidade de julgar. A obediência pode
se fundamentar em alguns meios distintos: a violência ou força física, o medo e a
esperança, e, ainda, na própria alienação da capacidade de julgar. Frente a todas
20

estas formas de dominação nosso filósofo afirma ser a mais poderosa delas aquela
determinada pela dominação sobre os ânimos.
A forma mais poderosa de dominação é aquela que inscreve nas
próprias mentes e corpos dos súditos o desejo pela servidão. Fazer a utilidade
alheia parecer o próprio bem, inscrever no ingenium da multidão ideias e práticas
da obediência, levar os homens a “combaterem pela servidão como se fosse pela
salvação9”, é a dominação sobre os ânimos que suscita a forma mais servil de
obediência.
Tomamos, assim, a dominação dos ânimos como cenário e
investigamos que afetos, que ideias e que práticas são capazes de inscrever a
servidão no ingenium da multidão. Já tendo, no segundo e terceiro capítulos, nos
dedicado à análise dos discursos da transcendência e do medo, e feito o estudo da
obediência política nos primeiros itens do capítulo quatro, neste último item do
nosso quarto capítulo buscamos evidenciar alguns outros afetos, ideias e práticas
capazes de alimentar a obediência nas mentes e corpos da multidão como
paradoxal desejo de servidão.
Aquilo que “não encontra nome feio o bastante”, “monstro de vício
que ainda não merece o título de covardia”10, diz La Boétie, o desejo de servidão
pode acompanhar-se do amor mais servil, a adoração ao tirano, assim como
constituir na imaginação dos laços de semelhança critérios de discriminação e
ódio ao outro, até o extremo da alegria triste do extermínio de um inimigo
comum. O soberano tem nas mãos muitos meios de dominação dos ânimos, meios
que vão muito além das ordens diretas do Estado, mas a tirania se inscreve nas
próprias relações constitutivas da sociedade. É uma sociedade autoritária e
medrosa que sustenta a tirania, e é arraigada em seu próprio ingenium que mora a
servidão.
A imanência absoluta propugnada por Espinosa estabelece o terreno
para uma concepção intrinsecamente democrática do político. E, neste cenário, se
o imperium é expressão imanente da potência da multidão, quando o poder
político se constitui como tirânico é nas mãos da multidão que encontramos as
causas de sua própria servidão. Nosso filósofo não despreza as paixões ou a

9
Tratado Teológico Político, prefácio.
10
“Então, que monstro de vício é esse que ainda não merece o nome de covardia, que não encontra
um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e a língua se recusa nomear?” LA
BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.13
21

potência das ideias inadequadas em sua análise do político. Organizada em boas


instituições a política pode constituir-se como terreno da liberdade e do comum.
Mas, inexoravelmente constituída na natureza passional dos homens, a política é a
imaginação no poder.
_______________ ///_______________

No que concerne à metodologia do trabalho, buscamos manter nossa


interpretação fiel aos textos originais de Espinosa, utilizando em nosso auxílio as
obras de comentadores que, desde os anos sessenta do século XX, constroem
interpretações materialistas do pensamento de Espinosa. Nesse sentido, como
principais fontes de pesquisa acerca do pensamento de Espinosa e seus possíveis
desdobramentos utilizamos as obras de Alexandre Matheron, Antonio Negri,
Étienne Balibar, Francisco de Guimaraens, Gilles Deleuze, Laurent Bove,
Marilena Chaui, Maurício Rocha e Pierre Macherey. Ressaltamos que, embora
presente em certos momentos de nossa análise, não é objeto central de nossa
investigação as eventuais divergências e confrontos entre as interpretações dos
comentadores citados.
Em alguns aspectos de nossa pesquisa foi útil e elucidativo
estabelecermos relações entre o pensamento de Espinosa e aquele de outros
autores clássicos da filosofia e da teoria política, assim estão presentes em nosso
texto referências a Maquiavel, Étienne de La Boétie, Descartes, Thomas Hobbes,
John Locke e Carl Schmitt.
Por fim, trouxemos também para o debate alguns autores do século
XX e do XXI que enriquecem nossa análise com seus comentários, ou mesmo
atualizam, com suas obras, o estudo de questões já presentes no pensamento
espinosano, são eles, principalmente: Antonio Gramsci, Louis Althusser, Maurice
Merleau-Ponty, Claude Lefort, Wilhelm Reich e Eduardo Viveiros de Castro.
1

A imanência absoluta

1.1

O plano de imanência

Ao escrever a Ética “ordine geométrico demonstrada”, Espinosa


insere-se num debate, que perpassa todo o XVII, acerca da natureza do
conhecimento verdadeiro. Já no seu Tratado da correção do intelecto nosso
filósofo aponta como conhecimento verdadeiro aquele que conhece pela causa, o
conhecimento pela gênese. Influenciado por um debate que remonta ao XVI e que
ficou conhecido como “a questão da certeza das matemáticas”, nosso filósofo
encontra na geometria “uma nova norma de verdade”. Sobretudo depois das
contribuições de Galileu e Torricelli, é na geometria que Espinosa vai buscar o
conceito de causalidade interna e necessária que será o paradigma do
conhecimento verdadeiro e a diretriz da redação da Ética.
Assim, desde seu Tratado da correção do intelecto, para nosso filósofo
conhecer é conhecer pela causa, conhecer pelo movimento de gênese que
determina necessariamente a existência e propriedades de uma coisa
determinada11. Espinosa retira da geometria, portanto, uma nova regra de verdade:
a ideia verdadeira será aquela que apresenta a gênese necessária de seu objeto. Tal
método possibilitará a Espinosa romper com a tradição que estabelecia a
veracidade de uma ideia pela adequação com seu objeto e, invertendo os
elementos desta equação, afirmar que a ideia corresponde ao seu objeto por ser

11
Exemplo singelo do conhecimento geometricamente demonstrado podemos reter na diferença
entre duas ideias distintas do conceito de globo: conceituando um globo como uma superfície
sempre eqüidistante de um ponto fixo talvez conheçamos sua forma mas não sua gênese;
diferentemente se conceituarmos o mesmo globo pela figura resultante da rotação de um
semicírculo sobre um ponto fixo, teremos então a demonstração geométrica do globo, sua gênese
necessária e seu conhecimento verdadeiro. O exemplo é do próprio Spinoza no parágrafo 72 do
Tratado da correção do intelecto: “Por exemplo, para formar o conceito de globo, finjo
arbitrariamente uma causa, a saber, o semicírculo que gira ao redor do centro, e dessa rotação
como que nasce o globo. Realmente, essa ideia é verdadeira, e ainda que saibamos jamais ter
surgido um globo na Natureza, esta percepção é, contudo, verdadeira e o modo mais fácil de
formar o conceito de globo.” Os Pensadores-Espinosa, ed. Abril, 1983, p.67
23

verdadeira, tomando assim a verdade como índice de si mesma e do falso, verum


12
index sui.
Neste sentido escreve ainda Espinosa em sua Carta nº 76 :

Queres raciocinar e entretanto me perguntas como sei que a minha filosofia é


a melhor dentre todas que já foram, são e serão ensinadas no mundo. Caberia
antes a mim o direito de perguntar a ti. Eu não pretendo ter encontrado a
melhor filosofia, mas sei que conheço a verdadeira. Me perguntarás como sei
e eu responderei: da mesma maneira que sabes que os três ângulos de um
triângulo são iguais a dois retos, e ninguém dirá não ser isto suficiente, por
pouco que o seu cérebro seja são, e que não sonhe com espíritos impuros nos
inspirando ideias falsas, semelhantes às verdadeiras; pois o verdadeiro é
índice de si próprio e do falso.”13

A Ética tem sua própria estrutura discursiva inspirada no more


geometrico. Organizada em definições, axiomas, proposições, demonstrações,
corolários e, ainda, por vezes, escólios, prefácios e apêndices, a Ética espinosana é
um movimento de gênese. Um texto que não expõe o conhecimento verdadeiro,
mas o demonstra, como na causalidade interna e necessária própria da
geometria14. Adequada ao seu conteúdo a forma de redação da Ética é o próprio
movimento de constituição do conhecimento verdadeiro15.
Como não poderia deixar de ser, se conhecer é conhecer pela causa, a
Ética começa pela definição de uma causa: a causa sui ou causa de si. Nosso
filósofo abre sua Ética com a definição de causa sui como “aquilo cuja essência
envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão
como existente.” A causa de si é a própria existência em ato, é o existir necessário
e ininterrupto, aquilo que só pode ser e ser concebido como existente.
É na definição 3 da mesma Parte I da Ética que o conceito de causa sui
encontra o conceito de substância: “Por substância compreendo aquilo que existe
em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não
exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado.” Decorre desta

12
CHAUÍ, Marilena. Espinosa: uma filosofia da liberdade, São Paulo: Moderna, 1995. p. 43
13
Carta 76 apud ROCHA, Maurício de Albuquerque, Spinoza a razão e a filosofia, Tese de
doutorado, PUC-Rio, Departamento de Filosofia, Rio de Janeiro: 1992. p.33
14
“E, assim, demonstrada segundo a ordem geométrica significaria demonstrada segundo o
modelo da dedução necessária geométrica, isto é, segundo uma ordem que deduz o que decorre de
definições dadas que exprimem a natureza de uma figura.” SCALA, André. Espinosa, ed. Estação
Liberdade, São Paulo, 2003, p.97
15
“Ordine geométrico demonstrata é uma ordem discursiva adequada ao seu objeto e requerida
necessariamente por ele.” CHAUÍ, Marilena. A nervura do real, São Paulo: Schwarcz Ltda, 2000,
p. 733.
24

definição que a substância é causa de si e não pode ser concebida senão como
existente. Já na Definição 6 da Parte I o conceito de substância identifica-se à
Deus: “Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma
substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma
essência eterna e infinita.”
Na parte I da Ética Spinoza se dedica a desmontar o arquétipo
teológico de um Deus antropomórfico. O que faz da parte I da Ética um texto
também político é justamente seu combate à teologia e à superstição16. Para
Espinosa a teologia não é detentora do saber verdadeiro sobre Deus ou guardiã da
verdade sobre a existência. Assentada na transcendência de um Deus
antropomórfico a teologia para Espinosa tem como único objetivo assegurar a
obediência e sua função é política17. A teologia é um não-saber, um discurso
imaginativo de autoridade e obediência, para Spinoza toda teologia é política18.
Longe das superstições e do discurso teológico, Espinosa define Deus
como a substância, infinitamente infinita que é causa de si e de tudo que existe.
Deus é a Natureza19 infinita, eterna e produtiva, Deus é a existência em ato.
Contra a transcendência propugnada pela teologia nosso filósofo define um Deus
imanente que é a Natureza, que é em tudo que existe e “tudo o que existe, existe
em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido”20. O Deus espinosano
não se distancia de seus efeitos, nem transcende as coisas que existem, mas tudo o
que existe, existe Nele de forma imanente. A imanência encontra-se em cinco
momentos decisivos da Parte I da Ética: no primeiro axioma, que enuncia que
“tudo o que é, ou é em si e concebido por si, ou é em outro e concebido por meio
de outro”; na proposição 15, que enuncia que “tudo o que é, é em Deus e sem
Deus nada pode ser nem ser concebido”; na proposição 16, que enuncia que “da

16
“A crítica da teologia e a recusa em aceitá-la, quer como saber especulativo, quer como
fundamento da prática política, explica uma das mais espantosas inovações do discurso político
trazida pela filosofia espinosana, isto é, que o texto político mais importante de Espinosa seja
também seu texto ontológico mais importante, a Parte I da Ética, o De Deo.”CHAUÍ, Marilena.
Política em Espinosa, São Paulo: Companhia das letras, 2003, p. 86
17
“A teologia, não-saber, uma prática de origem religiosa destinada a criar e conservar autoridades
pelo incentivo ao desejo de obediência.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., p. 84
18
Voltaremos ao tema da teologia ao tratarmos da obediência política em nosso capítulo 3.
19
Usaremos indistintamente os termos Substância, Deus e Natureza por compreendermos que
Spinoza não faz distinção entre seus significados, conforme se conclui da Proposição XI da Parte I
da Ética: “Deus, ou, por outras palavras, a substância que consta de infinitos atributos, cada um
dois quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente”, e da seguinte passagem
do Prefácio da Parte IV da Ética: “É que, aquele Ente eterno e infinito a que chamamos Deus ou
Natureza age em virtude da mesma necessidade pela qual existe.”
20
Proposição 15 da Parte I da Ética
25

necessidade da natureza divina devem seguir infinitas coisas em infinitos modos”;


e na proposição 18, que enuncia que “Deus é causa imanente de todas coisas e não
transitiva”.
Nas oito primeiras definições da Parte I da Ética, estabelecem-se as
propriedades de Deus, a saber: causa de si, infinito, eterno e livre, bem como
critérios de distinção ontológica entre a substância, seus atributos e modos.21 Já
vimos o que significa ser causa de si, ser a existência em ato. Agora nos cabe
analisar a infinitude divina. Deus é infinito porque não se limita por nenhuma
outra substância, do que decorre que só pode existir uma única substância. A
substância é infinitamente infinita e, portanto, só pode haver uma substância ou
teríamos o infinitamente infinito limitado, o que seria absurdo.
Vale destacar que para Espinosa, o infinito não é a soma indefinida de
partes mas o contínuo infinito, indivisível, sem um ponto fixo ou centro. Sobre o
infinito, convém transcrever trecho da Carta 12 que Spinoza escreve a seu amigo
Meijer:

Eis o que se deve considerar acerca da substância: em primeiro lugar, que a


existência pertence à sua essência, isto é, que sua existência decorre de sua
essência apenas e de sua definição.(...)Em segundo lugar (e como
conseqüência do anterior), que não existem múltiplas substâncias de mesma
natureza, mas que a substância é única quanto à sua natureza. Enfim, em
terceiro lugar, que uma substância só pode ser entendida como infinita.(...);
mas a existência da substância só pode ser explicada pela eternidade, isto é
como fruição infinita do existir (existendi), ou, para usar um barbarismo,
como fruição infinita do ser...

O infinito é objeto de amplo debate no século XVII. Admitir o infinito


é excluir toda possibilidade de transcendência pois o infinito não admite o fora,
nem um ponto fixo que sirva de base à transcendência. As disputas sobre o
infinito envolvem, então, as disputas sobre duas concepções da realidade, duas
formas de entender a existência, duas modernidades: uma ligada a imanência e
outra afirmando os discursos da transcendência. Pensar o infinito é pensar
necessariamente a imanência, o contínuo sem um fora e sem um centro. Contra
essa concepção imanente se erguem os discursos da transcendência, a afirmação
da necessidade de um ponto fixo em que ancorar toda a existência.

21
“Das oito primeiras definições, sete não serão demonstradas no interior desta Parte : elas
determinam critérios de distinção ontológica (substância, atributo e modo) e caracterizam
propriedades do Ser (causa sui, finitude, eternidade e liberdade)” ROCHA, Maurício de
Albuquerque, Spinoza a razão e a filosofia... p. 70
26

Assim, a modernidade não é um projeto unitário, no século XVII, de


onde nos fala Espinosa, se degladiavam pelo menos duas concepções de
modernidade, duas perspectivas sobre a existência: a modernidade da imanência e
a modernidade da transcendência22. A primeira tem suas origens na renascença e
afirma a potência do humano, do desejo, e a imanência entre Deus e tudo que
existe. Já a segunda, a modernidade da transcendência é o signo da regulação, da
afirmação de um Deus antropomórfico, dos discursos da soberania e da
transcendência introjetada numa razão capaz de domar os afetos, e na crença no
livre-arbítrio.
A modernidade da imanência remonta à renascença e tem em
Maquiavel um de seus primeiro precursores no campo da política. Com
Maquiavel, o humanismo e o regime de produção imanente encontram o poder
político, a fundação da sociedade baseada no desejo, no conflito, o fundamento
humano da política. Na tradição da transcendência, a política tem como causa ou
a vontade de Deus, ou os decretos da Razão, ou as leis racionais da Natureza.
Maquiavel recusa que Deus, Razão e Natureza sejam a causa do político, posta
por ele como imanente, isto é, a divisão originária de toda Cidade entre o desejo
dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem
comandado. O autor florentino afirma a imanência ao afirmar a política como
campo do conflito humano. Maquiavel afirmou a imanência no campo da política
ao entendê-la como necessariamente movida pelos conflitos e desejos humanos.
Já no século XVII a imanência se afirma na secularização do
conhecimento, na possibilidade de inteligibilidade do real com as leis da
mecânica, desde os estudos sobre os astros até os avanços da medicina, é na
imanência que está calcada a ânsia por conhecer e desvendar a natureza. Neste
processo, os céus e os astros já não eram mais tão misteriosos depois das
contribuições de Copérnico, Kepler, Giordano Bruno23 e Galileu Galilei. Com a

22
“A modernidade pode ser caracterizada, de acordo com o que se afirmou, como momento
histórico no qual se procedeu um intenso embate entre, ao menos, duas alternativas absolutamente
conflitantes: a modernidade nascida da revolução humanista (imanente) e aquela originada da
reação a tal revolução (transcendente). Assim é mais acertado falar de modernidades, de duas
alternativas existentes no interior de tal período histórico (...).” GUIMARAENS, Francisco de. O
poder constituinte na perspectiva de Antonio NEGRI, PUC-Rio, Dissertação de Mestrado, Rio de
Janeiro, 2002, p.33
23
“As obras de Copérnico (1473-1543), de Kepler (1571–1630), e de Giordano Bruno (1548-
1600), exemplificam esta atitude e suas conseqüências, teóricas e práticas. O primeiro sustenta que
a Terra não é o centro do Universo, mas sim o Sol; o segundo, observando o movimento dos
astros, delineia um caminho que será trilhado por Newton, séculos depois; o último, afirmará a
27

fisiologia, o corpo humano já começava a ser entendido como obra das leis
matemáticas da mecânica pelos estudantes de Leiden24. A realidade já não era
fruto exclusivamente de uma vontade divina indecifrável; mostrava-se, pelo
contrário, passível de compreensão pelo homem.
Já a perspectiva da transcendência surge como tentativa de contenção e
regulação às afirmações imanentes da liberdade. Proclamação da repressão
religiosa, política e moral, da ideia de um mundo regido por entes externos, de um
Deus antropomórfico e de uma vontade livre tirânica, esta segunda alternativa
moderna se apresenta sempre como resposta, reflexo deturpado e limitador das
forças revolucionárias da imanência.
A “modernidade da transcendência” ergue então seus tribunais e
fogueiras da Inquisição, que ardiam por toda Europa atrás de hereges pensadores.
O constructor do poder teológico-político, baseado na superstição e no medo
como fundamentos do político é o discurso que sustenta práticas sanguinárias de
perseguição e o exercício tirânico do poder. E, mesmo quando abandona o recurso
a um Deus antropomórfico, a transcendência se afirma no interior do sujeito,
concepção da razão e do livre arbítrio como limites e agentes de regulação das
paixões humanas. Dentre os pensadores desta última concepção regulatória, cabe
citar Descartes e Hobbes, com os quais, aliás, Espinosa dialogará diretamente25.

infinitude do Universo, a pluralidade dos mundos e a infinitude do movimento.” ROCHA,


Mauricio. Modernos, medievais etc., mimeo.
24
“A Universidade de Leiden foi criada em 1575 com o objetivo de formar pastores da Igreja
reformada. Contemporânea dos começos da República das Províncias Unidas, Leiden se
transformaria, no século XVII num paradigma de instituição acadêmica e científica, congregando
sábios de várias especialidades e procedências. Lá foi construído um Anfiteatro de anatomia,
célebre em toda a Europa (...).Mesmo ainda unindo metafísica e medicina, moral e fisiologia, o
Anfiteatro pode ser visto como um limiar entre passado e futuro. Os cadáveres de Leiden eram
objetos de análise e classificação, estruturavam um discurso científico que se ordenava segundo o
modelo mecânico, marcando uma ruptura nos estudos sobre o corpo. Pois a revolução Moderna
não passa só pelo Infinito que abisma o pensamento. Passa também pelo teatro da morte em
Leiden.” ROCHA, Mauricio. O corpo entre o cadáver e a mecânica: a patética cartesiana.
Revista Conatus (UECE. Online), v. 4, p. 67-74, 2010
25
Espinosa dialogará com o cartesianismo diretamente desde seu único livro publicado em vida
com seu nome em 1663, Partes I e II dos Princípios de filosofia cartesiana e Pensamentos
Metafísicos, e ainda ao longo de todo o texto da Ética, permeado de alusões e refutações à
formulações cartesiana. Sobre a relação de Spinoza com o cartesianismo nos Princípios de
filosofia cartesiana e Pensamentos metafísicos, ver: SCALA, André. Espinosa, ed. Estação
Liberdade, São Paulo, 2003, pp. 43 a 69, e SANTIAGO, Homero. O uso e a regra. Ensaio sobre a
gramática espinosana, USP, Tese de doutorado, São Paulo, 2004.
Já o embate de Espinosa com HOBBES fica claro em sua carta 50 escrita ao amigo Jarig Jelles
onde esclarece: “No que respeita à política, perguntas qual a diferença entre mim e HOBBES.
Consiste nisso: conservo o direito natural sempre bem guardado e considero que em qualquer
Cidade o magistrado supremo só tem direito sobre os súditos na medida exata em que seu poder
sobre eles supere o deles, como sempre ocorre no estado natural.”. Sobre o tema, CHAUÍ,
28

Toda a obra de Espinosa pode ser entendida neste contexto como uma
afirmação da imanência absoluta. Neste sentido, podemos dizer que Espinosa foi
aquele que construiu o mais perfeito plano de imanência. Ao afirmar Deus como a
Substância infinitamente infinita que é causa de si e causa imanente de todas as
coisas nosso filósofo não deixa lugar à transcendência26. O infinito espinosano
não admite o fora nem comporta um ponto fixo ou um centro que pudessem
basear a transcendência. A afirmação do infinito em Espinosa é a afirmação da
imanência absoluta.
Da mesma forma que o infinito não é a soma interminável de partes, o
eterno em Espinosa não é a soma indefinida de períodos de tempo. O eterno é o
existir contínuo e ininterrupto que não se divide em partes, mas transcorre na
existência: “essa substância é eterna, não porque contenha o começo e o fim dos
tempos, mas porque é ausência de tempo, pois nela existir, ser e agir é um só e o
mesmo. Essa substância é Deus.”27
A eternidade em Espinosa é a existência mesma, ininterrupta e
presente. Como diz o próprio filósofo na Ética: ”Por eternidade compreendo a
própria existência, enquanto concebida como seguindo, necessariamente, apenas
da definição de uma coisa eterna.”28Assim, Deus é eterno porque Nele a essência
e a existência são idênticas, uma não podendo ser concebida sem a outra.
Além de causa de si, infinito e eterno, Deus é livre. Está no conceito de
liberdade de Espinosa uma das maiores rupturas do pensamento espinosano. Deus
é livre porque age somente segundo a ordem necessária de sua natureza. A
liberdade de Deus não está em escolher entre possíveis, ou determinar que
existam coisas que contrariam suas leis naturais. Uma vez que a própria essência
de Deus envolve a existência, extingue-se o virtual ou o possível que não se
realiza. Em Deus, tudo o que existe, existe necessariamente e não por acidente,
escolha ou vontade.
Deus é livre porque age apenas segundo a necessidade de sua própria
natureza. Define Espinosa na definição VII da Parte I da Ética: “Diz-se livre o que

Marilena. “Direito natural e direito civil em HOBBES e Espinosa” em Política em Espinosa, ed.
Companhia das letras, São Paulo, 2003, pp. 289 a 314.
26
“Assim, ele (Espinosa) é o príncipe dos filósofos. Talvez o único a não ter aceitado nenhum
compromisso com a transcendência, a tê-la expulsado de todos os lugares.” DELEUZE, Gilles;
GUATTARI, Felix. O que é a filosofia ?, ed. 34, Rio de Janeiro, 1997, p. 66
27
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... p. 96.
28
E I, definição 8
29

existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado


a agir; e dir-se-á necessário, ou, mais propriamente, coagido, o que é determinado
por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira (ratione).”
Nosso filósofo opera aqui uma importante ruptura no conceito de
liberdade. Enquanto a tradição aristotélica, e com ela a Escola, Descartes e os
demais filósofos modernos, afirmavam a liberdade como a possibilidade de
escolha entre possíveis, e enquanto Thomas Hobbes limita a liberdade à mera
ausência de coação, a liberdade de Deus em Espinosa identifica-se à sua própria
essência e tudo quanto dela segue necessariamente, de maneira que a potência ou
atividade de Deus exprime sua essência absolutamente necessária e sua ação como
causa imanente de todos os seus efeitos. Para Espinosa, é livre aquele que age
segundo as leis necessárias de sua natureza ou essência, definição da liberdade
que se aplica não só a Deus, mas também ao homem.
O conceito de liberdade espinosano não se opõe à necessidade, mas
pelo contrário identifica-se a ela. É livre o que age movido pela necessidade de
sua essência ou natureza. Em Espinosa, o contrário da liberdade é a passividade: é
livre aquilo que age e coagido aquilo que apenas padece efeitos externos. Neste
sentido Deus é livre porque age em conformidade com própria necessidade de sua
essência. A liberdade de Deus decorre de sua própria característica de ser causa de
si, de ser a existência em ato e produção ininterrupta e necessária do real. . Como
causa imanente livre e necessária de todas as coisas, Deus não cria o mundo
contingentemente por um ato de livre vontade, mas se exprime nos efeitos que
seguem de sua natureza. Por isso, diz o filósofo: “Nada existe na natureza das
coisas, que seja contingente; em vez disso, tudo é determinado, pela necessidade
da natureza divina, a existir e a operar de uma maneira definida.”29
A realidade é necessidade e não contingência ou caos. Tudo tem
causas necessárias e nada poderia ser diferente do que é. Vale destacar que, ao
afirmar a ordem necessária da natureza Espinosa não esposa nenhuma concepção
determinista do real, nem tão pouco qualquer compreensão finalista da natureza.
O determinismo trabalha com uma sucessão linear ou serial de causa e efeito, já
nosso filósofo, apesar de afirmar o caráter necessário de tudo o que existe,
compreende a natureza como uma rede complexa de causalidades simultâneas. É

29
EI, prop. 29
30

comum afirmar um determinismo em Espinosa, mas não é esse o caso, trata-se,


mais propriamente de um necessitarismo30, onde uma multiplicidade de relações
de causa e efeito interagem e coexistem fazendo com que tudo na natureza seja
necessário mas que tal necessidade não possa ser reduzida a apenas uma sucessão
linear de causa e efeito, um determinismo. A natureza em Espinosa é o universo
do múltiplo simultâneo, e embora os modos finitos sejam determinado s a existir
pela potência infinita de Deus e pela ordem necessária da natureza, está sempre
presente e atuante simultaneamente um rede complexa de causas e efeitos que
impede que a concepção espinosana da existência se reduza a um determinismo
estrito.
Da mesma forma, não cabe falarmos em finalismo ou uma concepção
teleológica do real em Espinosa. Na natureza espinosana não existe um objetivo
transcendente a ser alcançado ou uma finalidade prévia a ser atingida31. É a
causalidade eficiente imanente que rege a existência e não uma causalidade final.
Tudo que existe decorre de um encadeamento causal necessário. Sem um fim
último ou um caminho pré-determinado, a lei da causalidade necessária é tudo que
rege o real. Tudo tem uma causa e desta causa decorrem efeitos necessários, e
neste regime de produção está toda a liberdade divina.
Ao identificar liberdade e necessidade, ao identificar Deus à
causalidade necessária, Espinosa recusa definitivamente qualquer concepção
antropomórfica de Deus. Não há vontades ou finalidades no agir divino, nem as
coisas poderiam existir de forma diferente do que existem. A liberdade de Deus
não está em escolher entre possíveis ou em subverter a ordem causal em milagres.
Deus é livre porque age movido pela necessidade de sua própria natureza..
Esta concepção de liberdade desmonta toda e qualquer crença num
Deus antropomórfico e transcendente e afirma a imanência absoluta de um regime
causal necessário de produção do real. A liberdade de Deus não está no livre
arbítrio, nem poderia a Natureza existir de forma diferente do que existe. Espinosa
afirma seu plano de imanência na livre necessidade, onde liberdade é igual à ação
e a necessidade é a lei de causalidade que rege todo o infinito.

30
CHAUÍ, Marilena. A nervura do real...pg. 929
31
:“Em Spinoza, o ponto de vista ontológico de uma produção imediata se opõe a qualquer apelo a
um dever-ser, a uma mediação e a uma finalidade...” DELEUZE, Gilles. “Prefácio” em NEGRI,
Antonio. A Anomalia Selvagem, Ed. 34, Rio de Janeiro, 1993, p. 07
31

Neste sentido nosso filósofo pode explicitar no corolário1 da


proposição 32 da parte I da Ética que “Deus não opera pela liberdade da vontade”.
A vontade, diz Espinosa no corolário 2 da mesma proposição, não pertence à
natureza da Deus, mas é por ela determinada a existir e operar de uma forma
definida, assim como o movimento e o repouso e todas as coisas naturais.

Segue-se, em segundo lugar, que a vontade e o intelecto têm, com a natureza


de Deus, a mesma relação que o movimento e o repouso e, mais geralmente,
que todas as coisas naturais, as quais (pela prop.29) devem ser determinadas
por Deus a existir e a operar de uma maneira definida. Pois a vontade, como
tudo o mais, precisa de uma causa pela qual seja determinada a existir e a
operar de uma maneira definida. E embora de uma vontade dada ou de um
intelecto dado se sigam infinitas coisas, nem por isso se pode dizer que Deus
age por liberdade da vontade, da mesma maneira que não se pode dizer, em
virtude do que se segue do movimento e do repouso (com efeito, deles
também se seguem infinitas coisas), que Deus age pela liberdade do
movimento e do repouso. É por isso que a vontade, assim como as outras
coisas naturais, não pertence à natureza de Deus, mas tem, com esta natureza,
a mesma relação que o movimento e o repouso e todas as outras coisas que se
seguem, como mostramos, da necessidade da natureza divina, e que são por
ela determinadas a existir e a operar de uma maneira definida.32

Deus é causa necessária e não voluntária de tudo o que existe. A


vontade é expressão da potência divina, assim como o movimento e o repouso e
todas as coisas que existem. A recusa da concepção antropomórfica de Deus é
também a recusa a qualquer recurso a uma vontade divina, a liberdade de Deus
não é escolha entre possíveis mas agir necessário. Da livre necessidade que rege a
produtividade imanente da natureza decorre um importante efeito descrito por
Espinosa na proposição 32 da Ética I: “As coisas não poderiam ter sido
produzidas por Deus de nenhuma outra maneira nem em qualquer outra ordem
que não naquelas em que foram produzidas.”
A recusa à transcendência e à concepção de um Deus de vontades
soberanas é também a recusa a virtuais possíveis que não se materializam. Onde
tudo é necessário as coisas são, a todo o tempo, tudo o que elas podem ser, nem
mais nem menos, e nada poderia ser de forma diferente do que de fato é, dada a
sucessão simultânea de diversas séries causais necessárias.
Uma conseqüência fundamental da recusa do arquétipo teológico do
Deus antropomórfico é a recusa espinosana da imagem divina construída pela
superstição. Ainda não é aqui o momento de desenvolvermos em todos os seus

32
EI, prop. 32, corolário 2
32

termos o estudo da superstição, dedicaremos parte do nosso capítulo 2 ao tema,


basta aqui sinalizarmos que, baseada na concepção de um Deus de vontade livre, a
superstição é a crença na contingência do mundo, na fortuna caprichosa que dá
bens e males aos homens e na transcendência divina, banhada nos afetos de medo
e esperança que daí decorrem necessariamente. Da incerteza quanto aos eventos
futuros, imaginados como contingentes, posto que imaginados nas mãos de um
Deus rectore naturae, os homens são dominados pelo medo e pela esperança de
eventos futuros que parecem escapar ao poder humano.
A superstição surge neste cenário como “filha do medo”33, e engendra
a servidão ao aprisionar os homens no discurso teológico e na busca por formas,
ritos e práticas que imaginam poderem influenciar a vontade de Deus a seu favor.
A superstição busca com o discurso teológico uma unidade imaginária e delirante
num mundo que parece contingência e caos, a religião nasce com a ambição de
influenciar as supostas decisões de um Deus antropomórfico, buscando seus
favores ou, simplesmente, afastando seus males. É o arquétipo teológico do Deus
antropomórfico que está na base da crença na contingência do mundo, no medo
incessante de males e na esperança imoderada por bens, que engendra a
superstição como forma de servidão, que aprisiona os homens a práticas e ritos
religiosos e ao discurso do poder teológico34.
Nada disso está em Espinosa. Se Deus não age por livre arbítrio Ele
não pode ser influenciado por cultos, rezas ou promessas. Nenhum ritual poderia
levar a necessidade divina a agir de forma diferente ou subverter-se em milagres35.

33
CHAUÍ, Marilena. “Sobre o medo” in NOVAES, Adauto. Os sentidos da paixão, São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, pg.63
34
Voltaremos ao tema da superstição e sua ligação com o poder teológico-político no próximo
capítulo. Por ora basta acrescentarmos a seguinte observação: “(...) a superstição ancora-se na
crença em um poder para o qual não há, por definição, ancoradouro: a caprichosa fortuna. O desejo
imoderado de bens e o medo infindável de males exprimem uma experiência que se realiza sob o
signo da contingência, portanto, de tudo quanto se escapa ao poder dos homens. Na medida em
que bens e males parecem não depender dos humanos e estes desconhecem as causas necessárias
das coisas, dos acontecimentos e de seus próprios sentimentos e ações, não há como impedi-los de
acreditar no poderio da fortuna e de entregar-se a ele. A religião é a prática humana para suportar a
contingência; a teologia, a teoria imaginária da fortuna, ora chamada de vontade de Deus, ora de
providência divina.”CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em Política em
Espinosa, ed. Companhia das letras, São Paulo, 2003, p. 92
35
“Despersonalizando Deus, desfinalizando a atividade divina, recusando a transcendência divina,
demolindo a imagem da criação do mundo pela vontade divina, identificando liberdade e
necessidade da essência-potência de Deus, e demonstrando que nosso intelecto é capaz de
conhecimento adequado e verdadeiro da natureza divina, Espinosa faz desabar as construções
imaginárias, nascidas do medo, da ignorância e da superstição, e as tiranias que sobre elas
repousavam.” CHAUÍ, Marilena, Espinosa: uma filosofia da liberdade... pp. 52 e 53
33

Em Spinoza, Deus age por necessidade e não se presta a adulações de devotos ou


punições aos infiéis. O plano de imanência é a ordem necessária da Natureza que
não deixa espaço à superstição.
Assim, Deus é a substância absolutamente infinita, eterna e livre que é
causa de si e a existência em ato. Deus opera pela necessidade de sua própria
natureza, segundo uma lei causal inexorável, cuja liberdade é a própria
necessidade. Retirando o reduto último da transcendência Espinosa desmonta o
arquétipo de um Deus antropomórfico para afirmar seu plano de imanência
absoluta e produção necessária.

1.2

Expressões singulares

O regime de produção imanente se dá nos atributos e modos da


substância. Atributos são planos de realidade distintos e infinitos, essências
formais através das quais o Ser se expressa e produz, variações qualitativas da
substância36. Os modos são afecções, modificações finitas ou infinitas nos
atributos. Os atributos são os constituintes da própria essência de Deus e não
meros qualificadores, são ordens de realidade infinitas, distintas e simultâneas nas
quais se exprime a potência infinita de Deus37. Assim, por exemplo, o pensamento
e a extensão não são meras qualificações de Deus, mas constituem a própria
essência de Deus enquanto ser pensante e extenso. O conceito de atributo,
Espinosa o traz na definição 4 da Parte I da Ética: “Por atributo compreendo
aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua
essência.”38

36
GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte..., P. 47
37
“Os atributos, não sendo “representações” da substância, predicados, propriedades ou
designações extrínsecas; não sendo manifestações exteriores dependentes de uma vontade de
Deus, implicando qualidades morais; e por fim, não sendo separáveis do ser da substância, enfim,
os atributos exprimem qualidades da substância: sem a substância não poderiam ser, nem ser
concebidos, e esta também não poderia ser, nem ser concebida sem eles: os atributos são o ser em
“carne e osso” e por isso Spinoza diz que pertencem a ela, que estão compreendidos em seu ser.”
ROCHA, Mauricio. Spinoza, a razão e a filosofia... P. 72
38
Desta definição decorre uma divergência entre os comentadores acerca da natureza dos
atributos. No entanto, excede aos limites deste trabalho nos aprofundarmos no tema que é objeto
de diversas análises e rica bibliografia. Salientamos, apenas, que existem aqueles comentadores
que, como Hegel, seguido por Wolfson, acreditam que os atributos não tem existência própria mas
são apenas formas de apreensão intelectual da realidade. Tais comentadores formam o grupo dos
subjetivistas e baseiam sua posição no termo “intelecto” utilizado por Espinosa na definição de
34

Vale ainda destacar que os atributos constituem a essência mesma da


substância existindo nela e simultaneamente a ela. Entre substância e atributo não
há, portanto, distinção real, apenas distinção de razão, pois os atributos são a
própria essência da substância39. Não é por outra razão que Espinosa utiliza o
termo intelecto na definição de atributo. Com isso nosso filósofo visa marcar
justamente a distinção meramente de razão que existe entre atributos e a
substância.
Os atributos são ordens de realidade distintas umas das outras, porém
que expressam a mesma potência de Deus. Como ordens distintas do real os
atributos não interferem uns nos outros, os modos de um atributo não podem
causar qualquer efeito em modos de outro atributo mas, pelo contrário, os
encontros entre os modos finitos se dão sempre no universo de um mesmo
atributo. Assim, modos do atributo extensão, os corpos, só encontram e causam
efeitos em outros corpos, e as ideias, modos do atributo pensamento, só
encontram e causam efeitos em outras ideias, e assim por diante, em todos os
outros infinitos atributos. Um modo do atributo pensamento não pode causar
qualquer efeito num modo do atributo extensão ou qualquer outro que exista, pois
constituem expressões da potência divina em planos da realidade distintos. Não é
por outra razão que nosso filósofo é explícito ao enunciar que “Nem o corpo pode
determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao movimento ou
ao repouso ou a qualquer outra coisa (se acaso existe outra coisa)”40.
Apesar de constituírem ordens de realidade distintas, o que se expressa
simultaneamente nos modos de cada um dos atributos é a mesma potência infinita
de Deus, de modo que Espinosa pode afirmar que “a ordem e a conexão das ideias

atributo. Assim, para esses comentadores, os atributos não passam de formas de apreensão da
realidade sem existência objetiva por si.
Já os realistas como GUÉROULT, Rousset, CHAUÍ, ao contrário, advogam pela existência
objetiva dos atributos como constituindo a própria essência de Deus. Os atributos teriam, então,
existência própria independentemente se o intelecto os conhece ou não. Um argumento forte nesse
sentido é o fato de existirem infinitos atributos e nosso intelecto só perceber dois deles, o
pensamento e a extensão. Neste sentido, entendemos que é inegável a existência objetiva dos
atributos, sendo equivocada a posição subjetivista a esse respeito.
39
“Se o atributo exprime, de uma certa maneira, a essência da substância, entre atributo e
substância não pode existir uma distinção real. Os atributos são também em si e concebidos por si.
Para marcar a simples distinção de razão entre os atributos e a substância, Spinoza se vale do
termo ‘intelecto’ na definição do atributo.” GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da
imanência – Spinoza e as fundações ontológicas e éticas da política e do direito, Tese de
doutorado, PUC-Rio Departamento de Direito, 2006, p.31
40
Proposição II da Parte III da Ética
35

é a mesma que a ordem e a conexão das coisas”41. Os atributos são distintos,


porém coexistentes e simultâneos, nos quais a Natureza, que é uma e sempre a
mesma, se expressa segundo a mesma ordem necessária, num único e mesmo
regime causal.
Para ilustrar esta forma de expressão da potência de Deus, na mesma
ordem e conexão entre os modos dos diversos atributos Gilles Deleuze recorre à
noção de univocidade de Deus. Retomando os termos de uma discussão metafísica
que atravessou todo o período medieval até o século XVII, em contraposição aos
que entendiam o ser como equívoco, manifestando-se em diversos sentidos sem
qualquer ordem comum, e também contrário àqueles que o diziam análogo,
manifestando-se em diversos sentidos, regidos por uma relação comum de
analogia, Deleuze encontra em Espinosa a afirmação da univocidade de Deus,
Natureza que se expressa num só e mesmo sentido em tudo que há42. A
univocidade em Espinosa decorre do fato de que é a mesma potência infinita da
Natureza que se expressa simultaneamente e na mesma ordem e conexão nos
modos de todos os atributos.
É também Gilles Deleuze quem, não isento de críticas43, define este
regime de comunidade causal que determina a correspondência dos modos nos
diferentes atributos como um paralelismo ontológico.44 Segundo o comentador,
como expressões de uma mesma causa necessária, decorre que a um determinado

41
Proposição 7 da E II
42
“O pensamento mais difícil é o da univocidade, pois ele afirma: o ser se diz absolutamente em
um só e mesmo sentido de tudo isso de que ele se diz.(...) dizer que o ser é unívoco significa
afirmar que não há diferença categorial entre os sentidos supostos da palavra ser e o ser se diz em
um só e mesmo sentido de tudo o que é (...).” DELEUZE, Gilles. Cursos de Vincennes, 14 de
janeiro de 1974 – excerto sobre ‘Univocidade’, tradução Mauricio ROCHA, disponível em
<http://geocities.yahoo.com.br/guaikuru0003/univocidade.html>
43
“A expressão “paralelismo”, além de não ser de Spinoza, nem mesmo se encontra em qualquer
de suas obras, afirmaria a estrita correlação entre determinações do pensamento e da extensão,
como inscritas horizontalmente sobre duas linhas paralelas cujos pontos se correspondem (...). No
entanto, essa leitura é restritiva e insatisfatória (...)” MACHEREY, Pierre, Introduction à l’Éthique
de Spinoza - la realité mentale (Parte II), PUF, Paris, 1997 , Tradução: Mauricio ROCHA, mimeo.
44
“Contudo, esse paralelismo entre a ideia e seu objeto implica apenas a correspondência, a
equivalência e a identidade entre um modo do pensamento e outro modo tomado num único
atributo bem determinado (no nosso caso, a extensão como único outro atributo que conhecemos:
assim o espírito [mente] é a ideia do corpo e de nada mais). Ora, a seqüência da demonstração do
paralelismo (II,7, esc.) eleva-se ao contrário a um paralelismo ontológico: entre modos de todos os
atributos, modos que não diferem senão pelo atributo. Segundo o primeiro paralelismo, uma ideia
no pensamento e seu objeto em tal outro atributo formam um mesmo “individuo” (II, 21, esc.);
conforme o segundo, modos de todos os atributos formam uma mesma modificação.” DELEUZE,
Gilles. Espinosa, filosofia prática, ed. Escuta, São Paulo, 2002, p. 75
36

modo no atributo extensão corresponderá45 um modo no atributo pensamento e


modos nos demais infinitos atributos de Deus. A comunhão de ordem e conexão
dos modos nos diversos atributos é a comunhão de um mesmo regime causal
operando simultaneamente em todos os atributos, regime causal que é a própria
expressão da única e mesma potência infinita de Deus.
Cabe ressaltar que, apesar desta correspondência ontológica, as ordens
de conexão dos modos nos atributos permanecem distintas, as ideias têm sua
própria ordem de encadeamento e assim também os corpos, já que os atributos são
distintos. Todas, porém, obedecerão ao mesmo regime causal, à mesma ordem
necessária da Natureza46..
Como constituintes da essência de Deus, os atributos são também
infinitos e eternos. Assim, ocorrem nos atributos modificações, afecções que são
também infinitas: os modos infinitos. Os modos infinitos podem ser imediatos ou
mediatos. Os modos infinitos imediatos são as próprias leis que regem os infinitos
atributos, ou seja, são a própria natureza dos atributos47. Assim, temos como
modo infinito imediato do atributo extensão o movimento e o repouso, e como
modo infinito imediato do atributo pensamento o entendimento infinito. Além dos
modos infinitos imediatos existe ainda o modo infinito mediato. O modo infinito
mediato é apenas um pois é o todo, o conjunto infinito de modificações nos
infinitos atributos da substância, ele é a face toda do universo.
Além dos modos infinitos existem ainda os modos finitos, que são
ocorrências, modificações, afecções nos atributos da substância. Os modos finitos

45
Ressaltamos que o conceito de correspondência utilizado por DELEUZE para definir a relação
entre os modos dos diferentes atributos da Substância, assim como seu termo paralelismo, não são
pacíficos entre os comentadores de Espinosa. CHANTAL Jaquet, por exemplo, prefere trabalhar
com o conceito de igualdade dos atributos, já Marilena CHAUÍ trabalha com o conceito de
equiparação das potências dos atributos. No entanto, escapa aos limites deste trabalho abordarmos
esta discussão, analisando todos os pontos de vista defendidos sobre o tema. Limitamo-nos aqui a
ressaltar a polêmica sobre o tema, esposando a posição deleuziana sem, no entanto, deixar de citar
seu caráter controvertido. Sobre uma análise crítica do uso do termo paralelismo em referência ao
pensamento de Espinosa remetemos o leitor à: ITOKAZU, Ericka Marie. Tempo, duração e
eternidade na filosofia de Espinosa , Tese de doutorado, Departamento de Filosofia – USP, 2008,
pg.54 a71
46
“A ordem e a conexão das coisas nada mais é do que a ordem e conexão das causas, segundo
as quais a ação divina se efetua em todos os atributos com idêntica necessidade. É preciso entender
que há na natureza um só e único sistema de ordem e conexão dos elementos que a constituem,
que é ao mesmo tempo o das coisas e o das causas, entre os quais se encontram as ideias e os
corpos (...). Essa ordem é a “ordem da natureza”, como aparece na proposição 24, ou ainda a
“ordem da natureza inteira” (ordo totius naturae), como diz o escólio da proposição 7.”
MACHEREY, Pierre, Introduction à l’Éthique de Spinoza - la realité mentale (Parte II), PUF,
Paris, 1997 , Tradução: Mauricio ROCHA, mimeo.
47
EI, prop. 21.
37

não são causa de si, mas resultado de um duplo processo de causalidade. Ao


mesmo tempo em que os modos finitos são causados pela própria potência de
Deus eles dependem do encontro com outros modos finitos na existência. Além de
expressões da potência de Deus os modos finitos são o resultado de encontros
entre outros modos finitos na existência. Em outras palavras, os modos finitos são
efeitos de uma dupla causalidade: a causalidade eficiente imanente de seus
respectivos atributos e a causalidade eficiente transitiva de outros modos finitos
que os engendram na duração.
O que caracteriza os modos finitos é justamente o fato deles estarem
inexoravelmente limitado por outros modos finitos, ou seja, sujeitos a encontros e
relações de composição ou decomposição com outros modos finitos. Neste
sentido diz a definição 2 da Ética I: “Diz-se finita em seu gênero aquela coisa que
pode ser limitada por outra da mesma natureza.” E neste universo de encontros e
limitações, dentre os modos finitos, não existe na Natureza nenhuma coisa
singular em relação à qual não possa existir outra mais potente capaz de destruí-la.
Os modos finitos tem uma duração indeterminada e, sujeitos a bons e maus
encontros, podem estabelecer entre si relações de composição ou de
decomposição, podendo, inclusive, serem destruídos num mau encontro com outra
coisa singular que lhes supere em potência. É o que diz o axioma da Parte IV da
Ética: “Não existe, na natureza das coisas, nenhuma coisa singular relativamente à
qual não exista outra mais potente e mais forte. Dada uma coisa qualquer, existe
uma outra, mais potente, pela qual a primeira pode ser destruída.”48
Mas, se um mau encontro com outra coisa mais potente pode levar à
destruição uma coisa singular, nosso filósofo identifica também a possibilidade de
relações de composição associarem de tal maneira uma variedade de modos
finitos que estes se tornem causa comum de um mesmo efeito. É a possibilidade
de constituição de indivíduos compostos pela associação de diversas coisas
singulares como causas de um mesmo efeito:

Por coisa singular entendo as coisas que são finitas e que têm uma existência
determinada. Se acontece que vários indivíduos concorrem para uma mesma
ação, de tal modo que todos em conjunto sejam a causa de um mesmo efeito,

48
Deste axioma decorre o explicitado por Espinosa na Proposição 3 da mesma Parte IV da Ética:
“A força pela qual o homem persevera no existir é limitada e superada, infinitamente, pela
potência das causas exteriores”.
38

considero-os, então, todos juntos como constituindo uma mesma coisa


singular.49

Um indivíduo é uma realidade complexa, constituído pela relação de


composição entre diversas coisas singulares50. A realidade em Espinosa não é a
simplicidade mas a complexidade da constituição de indivíduos compostos pela
unidade causal. Um indivíduo é a complexidade da composição entre diversas
coisas singulares que são, em conjunto, causa de um mesmo efeito51. Neste
sentido, a mente humana é uma relação de composição entre ideias e o corpo
humano uma relação de composição de proporções de movimento que constituem
seus órgãos e membros. Tal conceito será também essencial para a compreensão
do campo político em Espinosa. O sujeito político multidão é uma relação de
composição entre indivíduos humanos52..
Nosso filósofo instaura uma ordem de compreensão do real como
realidade complexa constituída de relações de composição e decomposição entre
modos da Substância. Nesta realidade complexa os modos estão inseridos
necessariamente numa ordem de encontros e limitações própria do universo das
coisas finitas. É neste regime de complexidade que Espinosa vai entender o que é
o corpo humano.

49
Definição VI da Parte II da Ética
50
“... a realidade das coisas singulares é complexa, obedecendo a um princípio de composição que
faz dessas coisas singulares combinações ou associações, submissas a um princípio relacional. As
coisas singulares resultam do arranjo ou reunião de várias formas individuais, nas condições em
que a unidade é indissociável da pluralidade. Reunião que se efetua dinâmica e ativamente, quando
“vários indivíduos concorrem em uma mesma ação de tal modo que todos em conjunto sejam a
causa de um efeito.” ROCHA, Maurício, Spinoza, a Razão e a Filosofia... p.191
51
“Essa definição reveste-se ainda de outra importância porque nela a singularidade surge como
composição de indivíduos que concorrem para a mesma ação, (...). Em outras palavras, agir em
comum ou agir como causa única para a realização de uma mesma ação torna os componentes
partes constituintes do indivíduo, de maneira que individualidade significa unidade causal.”
CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em Política em Espinosa..., p. 132
52
A possibilidade de constituição de indivíduos compostos pela relação de composição entre
outras coisas singulares é o que possibilitará a Espinosa dispensar o recurso a pactos ou contratos
para a constituição do campo político. É a unidade causal que constitui imediatamente o sujeito
político multidão e não qualquer formalização jurídica. Espinosa identifica na relação de
composição entre indivíduos a constituição de um sujeito político complexo. É pela relação de
composição entre indivíduos que se constitui imediatamente o campo político. Neste sentido: “...
assim como o indivíduo é união de corpos (unio corporum) e conexão de ideias (conexio idearum)
e assim como a natureza é um indivíduo complexo constituído por corpos e ideias, as uniones
corporum e as conexiones idearum podem compor um indivíduo novo: a multitudo que, tanto no
Teológico-político como no Tratado político define o sujeito político. Desde já podemos perceber
por que Espinosa não precisará recorrer ao conceito de contrato para explicar a formação do
sujeito político.” CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em, Política em Espinosa,
p. 135
39

O corpo humano é uma proporção de movimento e repouso,


constituído pela composição de corpos simplíssimos ou quanta mínimos de
movimento e repouso, uma relação entre as partes assim constituídas (órgãos e
mebros) que comunicam entre si seus movimentos. Modo finito do atributo
extensão o corpo humano é uma realidade complexa composta de encontros e
relações de composição. Na proposição 13 da parte II da Ética, Spinoza tece
importantes considerações sobre a natureza dos corpos, suas principais
características e as leis de movimento e repouso, velocidade e lentidão que regem
suas relações53. Excede, no entanto, os limites deste trabalho um estudo
aprofundado sobre o tema.
Todos os corpos convém em certas coisas, pois são modos de um
mesmo atributo - a extensão - e tem as mesmas características de movimento e
repouso, rapidez e lentidão54. No entanto, os corpos não se movem por si só, é no
universo de encontros com outros corpos que um corpo passa do movimento ao
repouso ou do repouso ao movimento55.
Como efeito imanente do atributo extensão, o corpo exprime sua
causa sendo, exatamente como ela uma potência de existir e agir, ou seja, o corpo
tem uma potência própria, a potência de afetar e de ser afetado por outros corpos.
Em outras palavras, um corpo precisa de outros para sobreviver, conservar-se,
regenerar-se e transformar-se e é necessário a outros para que sobrevivam, se
conservem, se regenerem e se transformem. Ao afirmar que “ninguém, na
verdade, até ao presente, determinou o que pode o corpo...”56 nosso filósofo
rompe com a tradição que considerava o corpo o campo da passividade. Espinosa
atribui à extensão a mesma importância que ao pensamento.
Já a mente é um modo finito do atributo pensamento, portanto, uma
ideia. A mente é ideia de uma coisa singular existente em ato, a mente é ideia do
seu corpo. Dizer que a mente é ideia do corpo significa que a mente percebe tudo

53
“Todos os corpos estão em movimento ou em repouso.” Axioma I da Proposição XIII da Parte II
da Ética ; “Todo corpo se move, ora mais lentamente, ora mais rapidamente.” Axioma II da
Proposição XIII da Parte II da Ética; e “Os corpos distinguem-se uns dos outros em razão do
movimento e repouso, da rapidez e da lentidão, e não em razão da substância” Lema I da
Proposição XIII da Parte II da Ética.
54
“Todos os corpos convêm em certas coisas.” Lema II da Proposição XIII da Parte II da Ética.
55
“Um corpo, quer em movimento quer em repouso, deve ser determinado ou ao movimento ou ao
repouso por um outro corpo, o qual, por sua vez, foi também determinado ao movimento ou ao
repouso por um outro, e este, de novo, por m outro, e assim até o infinito.” Lema III da Proposição
XIII da Parte II da Ética.
56
Escólio da Proposição II da Parte III da Ética
40

o que se passa na vida de seu corpo, tem ideia de todas as afecções do seu corpo.
Mas, vale ressaltar, isso não significa que a mente tenha sempre um conhecimento
adequado do que se passa no seu corpo. Como veremos a seguir, ao tratar dos
gêneros de conhecimento, a mente pode vir a ter um conhecimento verdadeiro das
afecções do corpo, mas o primeiro e mais comum conhecimento que a mente tem
das afecções do corpo é confuso, mutilado, inadequado, imaginativo. Na maior
parte do tempo e de forma mais imediata a mente percebe de forma inadequada as
imagens das afecções do seu corpo, as imagens da forma como o seu corpo é
afetado por outras coisas singulares.
Como modo do atributo pensamento a mente, além de ideia do seu
corpo é, ainda, ideia da ideia do corpo , ou seja, ideia de si mesma. O que também
não significa que a mente tenha sempre um conhecimento verdadeiro de suas
ideias, grande parte do tempo a mente tem um conhecimento inadequado,
imaginativo de suas ideias. Alcançar a verdadeira ideia do seu corpo e da própria
mente é um processo desvendado e demonstrado pela Ética. Por fim, cabe
destacar que se a mente é ideia de seu corpo, isso significa que ela é tão complexa
quanto ele, pois ela é constituída por todas as ideias (ou percepções) de todas as
partes e afecções de seu corpo. O corpo é uma união de corpos e a mente, uma
conexão de ideias.57.58.
Espinosa identifica na Ética três gêneros de conhecimento, três tipos
de funcionamento da mente: a imaginação, a razão e a intuição. O primeiro gênero
de conhecimento - a imaginação - é a forma mais comum de funcionamento da
mente59. A mente enquanto ideia do corpo só conhece o próprio corpo pelo
conhecimento de suas afecções. O primeiro gênero de conhecimento é norteado
pelas ideias das afecções do corpo, as imagens do que acontece no corpo quando
este é afetado pelo encontro com outras coisas singulares. O que acontece na
imaginação é que as ideias não seguem a ordem de encadeamento própria do
pensamento e da mente, mas ocorrem encadeadas na lógica das afecções do corpo,
uma lógica, portanto, exterior a própria mente.
57
Proposição XI da Parte II da Ética
58
Proposição XII da Parte II da Ética
59
“A filosofia de Spinoza seria de início uma filosofia da imaginação, pois esta constitui a
atividade principal e dominante da mente humana, enquanto esta é a ideia de um corpo. Além
disso, é preciso dizer que não se trata de filosofar contra a imaginação, mas com ela, isto é,
levando em conta as características que definem sua natureza positivamente.” MACHEREY,
Pierre, Introduction à l’Éthique de Spinoza - la realité mentale (Parte II), PUF, Paris, 1997 ,
Tradução: Mauricio ROCHA, inédito
41

Ressalte-se que com isso não estamos afirmando que o corpo seja,
necessariamente, o campo da desordem e da inadequação e a mente a morada do
conhecimento verdadeiro. É possível um conhecimento adequado das afecções do
corpo, inclusive a Ética é escrita para demonstrar esse processo de como se passar
das ideias inadequadas às ideias adequadas acerca das afecções corporais.
Ademais, em Espinosa não existe hierarquia entre pensamento e extensão. Já
vimos que o filósofo sustenta a potência do corpo assim como a potência da
mente. O que faz da imaginação conhecimento inadequado não é sua ligação com
as afecções corporais, mas o caráter imediato desta ligação, a forma inadequada
como estas ideias se encadeiam na mente seguindo a ordem das percepções e
sensações do corpo.
Para entendermos o que caracteriza a imaginação, e depois a razão, é
preciso, antes, definirmos o que constitui uma ideia adequada e uma ideia
inadequada para Espinosa. Segundo o filósofo, uma ideia adequada não é
adequada por corresponder ao seu objeto, mas ela corresponde ao seu objeto por
ser adequada. A ideia adequada é aquela que traz em si todos os elementos da
ideia verdadeira60. Assim, a caracterização de uma ideia como adequada decorre
de determinações que lhe são intrínsecas, sendo a conveniência com o ideado uma
determinação interna de sua condição de ideia adequada. Neste sentido diz
Espinosa em sua Carta 60:

... o termo verdadeiro concerne unicamente à conformidade da ideia com seu


ideado, enquanto o termo adequado concerne à natureza da ideia considerada
nela mesma, de modo que não há distinção entre ideia verdadeira e adequada,
além dessa relação extrínseca.61

Ao passo que a ideia adequada será sempre, por suas próprias


características intrínsecas, verdadeira, a ideia inadequada será necessariamente
falsa. No entanto, para Espinosa, a falsidade nada traz de positivo que caracterize
o erro, mas consiste simplesmente num conhecimento mutilado, sem premissas,
inadequado, ou seja, na privação do verdadeiro62.

60
Definição IV da Parte II da Ética:
“Por ideia adequada entendo uma ideia que, quando considerada em si mesma, sem relação com o
objeto, tem todas as propriedades ou denominações intrínsecas de uma ideia verdadeira.”
61
Carta 60, apud ROCHA, Maurício. Spinoza, a razão e a filosofia....p. 214.
62
“Nada existe de positivo nas ideias que permita chamar-lhes falsas.” Proposição XXXIII da
Parte II da Ética
42

Assim, na imaginação temos ideias inadequadas porque a mente


encadeia ideias segundo uma ordem que não é racional, mas segue a
imediaticidade das afecções do corpo e de outras ideias inadequadas. As ideias na
imaginação seguem-se umas as outras sem uma gênese necessária, mas segundo a
ordem aleatória dos encontros do corpo, decorrendo daí conclusões sem
premissas, ideias mutiladas e confusas, conhecimento inadequado63.
Na imaginação a mente opera na passividade, é apenas causa parcial de
suas ideias, imersa nas ideias imediatas das afecções corporais. Conhecimento
imediato decorrente das afecções do corpo, a imaginação se afirma na mente
independentemente do que saibamos racionalmente, a imaginação é
64
incontornável . Como nossa mente é ideia de nosso corpo nela se expressam as
ideias dos encontros de nosso corpo. Mesmo o mais sábio dos homens – uma vez
que é um indivíduo constituído por um corpo e uma mente que é ideia desse corpo
- imagina necessariamente.
Mas não se trata aqui de desprezar a imaginação. Espinosa deixa ao
primeiro gênero de conhecimento a importância de ser a passagem necessária à
razão. É através da imaginação que podemos chegar a formar ideias adequadas. O
processo de passar das ideias inadequadas da imaginação ao campo do
conhecimento racional passa pelo reconhecimento do que há de comum entre
nosso corpo e outras coisas e o que há de comum entre duas ou mais coisas.
Segundo Espinosa, “Todos os corpos convêm em certas coisas.”65,
sejam por identificarem-se como expressão da potência divina num mesmo
atributo ou pela característica de poderem mover-se ou estar em repouso66. Assim,

“A falsidade consiste na privação de conhecimento que envolve as ideias inadequadas, isto é,


mutiladas e confusas.” Proposição XXXV da Parte II da Ética
63
Assim, estão no campo da imaginação os delírios antropocêntricos, as religiões e a superstição.
É também no campo da imaginação que vamos encontrar a mola mestra do desejo paradoxal de
servidão que será objeto de nossa futura discussão.
64
“...Do mesmo modo, quando olhamos o sol, imaginamos que ele se encontra a uma distância de
nós de cerca de duzentos pés, e, aqui, o erro não consiste apenas nessa imaginação, mas no fato de
que, enquanto assim imaginamos o sol, ignoramos a causa dessa imaginação bem como a
verdadeira distância a que está o sol. Com efeito, embora, mais tarde, venhamos a saber que o sol
se encontra afastado de nós mais de seiscentas vezes o diâmetro da Terra, não deixaremos, todavia,
de imaginar que está perto de nós. Efetivamente, não imaginamos o sol tão próximo porque
ignoramos a sua verdadeira distância, mas porque uma afecção do nosso corpo envolve a essência
do sol, enquanto o corpo é por ele afetado.” Escólio da Proposição XXXV da Parte II da Ética
65
Lema II da Proposição XIII da Parte II da Ética
66
“Com efeito, todos os corpos convêm, primeiro, no fato de envolverem todos o conceito de um
só e mesmo atributo (...); a seguir, no fato de poderem mover-se ora mais lentamente, ora mais
43

ainda na imaginação, nos encontros com outros corpos identificamos o que há de


comum entre estes e os nossos corpos, ou entre as coisas singulares entre si. Mas
o filósofo afirma categoricamente que “as coisas que são comuns a todas as
coisas e existem igualmente no todo e nas partes não podem ser concebidas senão
adequadamente.”67 O conhecimento adequado nasce da experiência do comum, é
o que há de comum entre duas ou mais coisas, que só pode ser concebido
adequadamente, que permite a passagem do campo inadequado da imaginação
para o conhecimento adequado e o segundo gênero de conhecimento, a razão.

Daí se segue que existem certas ideias ou noções comuns a todos os


homens. Com efeito (pelo lema II), todos os corpos convém em certas
coisas, as quais (pela proposição precedente) devem ser percebidas por
todos adequadamente, isto é, clara e distintamente.” Corolário da
Proposição 38 da Parte II da Ética
Aquilo que é comum e próprio ao corpo humano e a certos corpos
exteriores, pelos quais o corpo humano é habitualmente afetado, e é comum
e próprio a cada uma das suas partes assim como ao todo, a sua ideia
existirá adequada na mente.” Proposição 39 da Parte II da Ética

A ideia do que duas coisas tem em comum entre si é necessariamente


uma ideia adequada, são as chamadas noções comuns. É através das noções
comuns que passamos da imaginação à razão, das ideias inadequadas às ideias
adequadas. Ainda no campo da imaginação identificamos o que duas ou mais
coisas tem em comum e esta já é uma ideia adequada, a razão se constitui então
como ideia do comum, num registro de comunidade que não despreza a
imaginação mas parte dela para a constituição de noções comuns68.
O homem para Espinosa não nasce racional, mas imerso a todo tempo
na imaginação, nas inevitáveis ideias inadequadas das afecções do corpo, e por

rapidamente, e, absolutamente falando, no fato de poderem ora mover-se, ora estar em repouso.”
Demonstração do Lema II da Proposição XIII da Parte II da Ética
67
Proposição XXXVIII da Parte II da Ética
68
“Embora as noções comuns não sejam imagens ou imaginações, mas compreensão interna das
razões da conveniência entre as coisas, elas mantêm com a imaginação um vínculo externo: a
imaginação, ou a ideia da afecção do corpo, não é uma ideia adequada. Mas, quando exprime o
efeito de um corpo que convém com o nosso, torna possível a formação de uma noção comum, a
qual compreende intrínseca e adequadamente esta conveniência. Há também um vínculo interno:
se a imaginação capta efeitos exteriores dos corpos uns sobre os outros, uma noção comum explica
esses efeitos pelas relações internas que constituem tais corpos. Digamos que existe, para Spinoza,
uma espécie de convergência entre as características da imaginação e das noções comuns, pois
estas se apóiam sobre a imaginação. Aliás, como ele mesmo já dissera, esta última não é um vício,
mas uma potência.” ROCHA, Maurício. Spinoza, a razão e a filosofia... p. 219
44

isso conhecer conforme à razão é um esforço. Ser racional é um estado que pode
ou não ocorrer na experiência cotidiana e mesmo o mais racional dos homens não
tem qualquer garantia contra as ideias inadequadas da imaginação. Assim,
correntemente passamos da imaginação à razão e desta à imaginação novamente.
A razão percebe apenas o que há de comum entre as coisas, é o
encadeamento racional de ideias adequadas porém gerais, pois trata-se do
conhecimento das propriedades que são comuns a um conjunto de coisas enquanto
consideradas partes de um todo. Neste sentido, ainda que adequado, o
conhecimento do segundo gênero pode degenerar-se em abstração, caso tomado
por conhecimento de essências69. Confundir propriedades comuns a duas ou mais
coisas com a essência singular de cada uma delas é um desvio da compreensão
adequada das noções comuns, já que o segundo gênero do conhecimento nada
revela sobre as essências das coisas singulares. O que nos dá o conhecimento das
essências singulares é o terceiro gênero de conhecimento, a intuição70.
A passagem do segundo para o terceiro gênero de conhecimento se dá
pela ideia de Deus. A ideia de Deus não é uma noção comum, uma vez que
envolve a essência de Deus. No entanto, Deus, como apresentado na Parte I da
Ética é causa de si e de tudo que existe, em última instância, é o que há de comum
entre todas as coisas, e, portanto, a ideia de Deus pode ser considerada como a
mais geral das noções comuns71.
Já a ideia de Deus (Idea Dei), no sentido que Espinosa a trabalha nas
Partes II e V da Ética, como a ciência de Deus ou seja, o intelecto infinito

69
“Os princípios da razão são noções comuns que explicam o que é comum a todas as coisas e não
explicam a essência de nenhuma coisa singular. Daí decorre que ainda no nível das noções comuns
não é impossível cairmos em abstrações. Para isso basta que, esquecendo-nos do seu caráter não
essencial, ainda que adequado, atribuamos às “noções comuns” o caráter de essenciais. Ora, para
Espinosa só o conhecimento do terceiro gênero, a ciência intuitiva da Ética, tem esse caráter...”.
TEIXEIRA, Lívio, A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de
Espinosa, ed. Unesp, São Paulo, 2001. pp. 168 e 169
70
“Além desse dois gêneros de conhecimento, há ainda um terceiro, como mostrarei a seguir, a
que chamaremos ciência intuitiva. Este gênero de conhecimento procede da ideia adequada da
essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das
coisas.” Escólio II da Proposição XL da Parte II da Ética
“O esforço, ou seja, o desejo de conhecer as coisas por este terceiro gênero de conhecimento, não
pode nascer do primeiro, mas sim do segundo gênero de conhecimento.” Proposição XXVIII da
Parte V da Ética
71
“A relação do segundo com o terceiro gênero aparece sob a seguinte forma: sendo ideias
adequadas, quer dizer ideias que estão em nós como estão em Deus (II, 38 e 39), as noções comuns
nos dão necessariamente a ideia de Deus. A ideia de Deus vale inclusive para a mais geral das
noções comuns, visto que ela exprime o que há de mais comum entre todos os modos existentes, a
saber, que eles estão em Deus e são produzidos por Deus.” DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia
prática... p. 101
45

imediato e mediato, ou o modo infinito do pensamento, abarca o conhecimento


inadequado e adequado das coisas singulares. No conhecimento inadequado, o
intelecto infinito tem a ideia de uma coisa não em sua perfeita singularidade, mas
ao mesmo tempo em que tem ideias de outras coisas que a afetam; no
conhecimento adequado, o intelecto infinito tem a ideia de uma coisa em sua
perfeita singularidade, isto é, conhece a essência dela. É isso que permite dizer
que a ideia adequada de uma essência singular é a mesma na ideia de Deus (isto é,
no intelecto infinito) e em nossa mente (intelecto finito). A intuição é o
conhecimento dessa singularidade e na intuição nossa mente conhece exatamente
como o intelecto infinito conhece. Enquanto no primeiro gênero de conhecimento
temos uma ideia parcial, sem premissas, mutilada e confusa, no segundo gênero
de conhecimento experimentamos apenas ideias gerais do que as coisas tem de
comum entre si. Somente na intuição alcançamos o conhecimento singular da
essência das coisas, e nosso intelecto finito e o infinito pensam exatamente da
mesma maneira, compartilham a mesma ciência
As noções comuns, como ideias adequadas do que há de comum entre
coisas singulares, conduzem necessariamente à ideia de Deus, isto é, ao
encadeamento, conexão e comunicação entre as ideias no intelecto infinito, que
constitui a ciência de Deus. A partir daí, a intuição começa, no terceiro gênero de
conhecimento, a compreender as essências das coisas singulares sob o aspecto da
eternidade, ou seja, enquanto atuais e existentes, compreendidas como resultantes
da ordem necessária da natureza e, portanto, expressões da essência eterna e
infinita de Deus.72
Esta teoria dos gêneros de conhecimento terá grande relevância na
mecânica afetiva e no campo político. Especialmente a imaginação tem papel
fundamental na compreensão do político em Espinosa. É através da imaginação,
como veremos, que se pode explicar a experiência da perpetuação de regimes
tirânicos e do paradoxal desejo de servidão.
Cabe ainda uma observação sobre a relação entre mente e corpo em
Espinosa e sua concepção do homem como parte da natureza. Pelo exposto é fácil

72
“A passagem do segundo para o terceiro gênero depende dessa transição relativa aos aspectos da
ideia de Deus. A transição ocorre quando vamos além da razão como formadora de noções
comuns, isto é, dando conta de um sistema de “verdades eternas”, e entramos no intelecto
intuitivo, na ciência intuitiva que da conta das verdades de essência, quando as ideias se refletem
em nós como em Deus, fazendo com que experimentemos que somos eternos.” ROCHA,
Maurício, Spinoza, a Razão e a Filosofia... .p.219
46

perceber porque a relação entre mente e corpo, para nosso filósofo, não se resume
à subordinação ou hierarquia. Assim como todos os atributos são reais, eternos e
potências infinitas de agir, como Espinosa demonstra na proposição 11 da Parte I
da Ética73, posição reafirmada por ele nas proposições 6 e 7 da Parte II da Ética74
ao demonstrar que a potência de agir de Deus é idêntica à sua potência de agir e
que, portanto, há plena igualdade entre todos os atributos, sem hierarquia entre
eles e sem precedência de um deles sobre os demais – são todos ser no mesmo
sentido ou univocamente --, assim também, os modos dos atributos estão numa
relação de igualdade, não havendo entre eles hierarquia nem precedência – são
todos ser no mesmo sentido ou univocamente. Além disso, um modo exprime a
essência e a potência de seu respectivo atributo e, da mesma maneira que um
atributo não tem uma relação causal com outros, assim também os modos de um
atributo não tem uma relação causal com modos de outro atributo – a causalidade
é interna a cada atributo e seus modos. Consequentemente, nem a mente pode
ordenar o corpo a mover-se nem o corpo ordenar a mente a pensar75. O que há
entre mente e corpo é a correspondência de serem ambos expressões da mesma
potência infinita de Deus.
Assim, todas as afecções do corpo tem sua correspondência em ideias
na mente. A mesma ordem e conexão das ideias na mente é a ordem e conexão
das afecções no corpo porque a ordem e conexão das ideias e as das coisa é uma
só e a mesma76. Em Espinosa não há hierarquia entre mente e corpo, nem relação
de comando ou subordinação: mente e corpo são modos de atributos distintos e
tem sua correspondência na univocidade divina.
Ao conceituar corpo e mente como partes da natureza Espinosa opera
uma ruptura fundamental com qualquer concepção antropocêntrica da realidade.
Para nosso filósofo o homem é apenas mais uma coisa entre outras coisas que
existem, apenas mais uma parte da Natureza. Assim, o homem não é um império

73
“Deus, ou seja, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime
uma essência eterna e infinita, existe necessariamente.” EI, prop. 11
74
“Os modos de qualquer atributo tem Deus por causa, enquanto ele é considerado exclusivamente
sob o atributo do qual eles são modos e não enquanto é considerado sob qualquer outro atributo.”
EII, prop. 6.
“A ordem e a conexão das ideias é o mesma que a ordem e a conexão das coisas.” EII, prop. 7.
75
“Nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao
movimento ou ao repouso ou a qualquer outra coisa (se acaso existe outra coisa).” Proposição II da
Parte III da Ética
76
“A ordem e conexão das ideias é a mesma que a ordem e conexão das coisas.” E II, Prop. VII
47

num império, nem o centro da criação de um Deus antropomórfico. Nada ocorre


para ou em função do homem, mas o homem participa da realidade apenas como
mais uma parte da natureza, mais uma entre as infinitas expressões da potência de
Deus.
Neste sentido, não passa de ilusão ou delírio, nas palavras de
Espinosa, acreditar que Deus produza em busca de fins e sempre por alguma
preocupação, cuidado ou plano especial para os homens77. Os homens são apenas
coisas singulares entre tantas coisas singulares produzidas na natureza. Sem status
privilegiado, sem qualquer ascendência sobre as outras coisas singulares, nosso
filósofo devolve o humano a sua condição de parte da natureza. A temática é
recolocada na proposição X da Parte II da Ética ao tratar da essência do homem78:

À essência do homem não pertence o ser da Substância: por outras palavras,


a substância não constitui a forma do homem. Proposição X, E II
Daí resulta que a essência do homem é constituída por certos modos dos
atributos de Deus. Com efeito, o ser da Substância não pertence (...) à
essência do homem. Ela é, portanto (...), qualquer coisa que existe em Deus
e que sem Deus, não pode existir nem ser concebida, ou seja (...) uma
afecção ou um modo que exprime a natureza de Deus de uma maneira certa
e determinada. Proposição X, E II, Corolário

Ao conceituar o homem como qualquer coisa que existe em Deus


Espinosa nega qualquer hierarquia entre as coisas singulares. O homem é mais um
modo da Substância, mais uma expressão da potência infinita de Deus, mais uma
coisa entre outras coisas. Assim, nosso filósofo distancia-se de qualquer
concepção antropocêntrica, qualquer delírio sobre a superioridade humana. Num
registro de humildade Espinosa recoloca o humano em sua condição de parte de

77
“Assim, este prejuízo tornou-se em superstição e lançou profundas raízes nas mentes, dando
origem a que cada um aplicasse o máximo de esforço no sentido de compreender as causas finais
de todas as coisas e de as explicar: mas, conquanto se esforçassem por mostrar que na Natureza
nada se produz em vão (isto é, que não seja para proveito humano), parece que não deram a ver
mais do que isto: a Natureza e os deuses deliram tal qual os homens.” Apêndice da Parte I da Ética
78
“Enunciada na forma negativa, ela diz que o homem não é uma substância, mas sim um modo
ou afecção da substância, reafirmando assim uma tese que é fundamental na Ética: é preciso
restituir ao ser humano seu estatuto integralmente natural, ele não é um império num império (...).
Não há transcendência do mundo humano (...). Portanto, a pretensa autonomia do homem é uma
ficção (...). Mas, como Deus é causa imanente, que age e existe como se produz, produzindo todas
as coisas pela sua infinita potência, e não por vontade ou arbítrio, toda a antropologia cartesiana
desmorona nesta passagem. A passagem retoma o Apêndice da Parte I.” MACHEREY, Pierre,
Introduction à l’Éthique de Spinoza - la realité mentale (Parte II), PUF, Paris, 1997 , Tradução:
Mauricio ROCHA, disponível em
<http://geocities.yahoo.com.br/spin_filo/spin_MACHEREY_E2_110.html>
48

um todo maior, sem privilégios, o homem é simplesmente uma coisa singular


entre outras coisas singulares na Natureza.

1.3
Conatus

Na essência de todas as coisas que existem Espinosa encontra um


esforço, um esforço por perseverar na existência. Assim, tudo o que existe se
esforça o quanto pode por continuar existindo79. Em Espinosa a existência é pura
positividade, pura afirmação. Resistência à tristeza, resistência à destruição, o
conatus é esforço positivo de existir. Expressão da potência infinita de Deus o
conatus é a essência de cada coisa singular que se esforça por perseverar
existindo.

Para deixar mais clara a ruptura instaurada por Espinosa e sua


positividade absoluta vale a pena destacar a diferença entre a concepção de
conatus de nosso filósofo e aquela de Descartes, seu contemporâneo. Enquanto
Espinosa mantém-se fiel à imanência absoluta na sua afirmação da essência de
todas as coisas, o outro filósofo recorre à transcendência para encontrar na relação
entre Deus e as coisas singulares a relação de causalidade da existência e a
essência das coisas singulares.

Descartes, em que pese seu esforço racionalista, não consegue


desvencilhar-se do recurso a um Deus transcendente para ancorar a existência.
Para o filósofo a natureza em si é inerte e impotente, a extensão não é atributo de
Deus e tudo o que existe depende para continuar existindo e mover-se da ação de
80
um Deus transcendente criador . Descartes precisa recorrer a uma força

79
E III, proposição 7
80
“On le sait aussi, Descartes, dans sa physique géométrique des années 1630-1635, fait, ou tente
de faire, cette mise en équation et pose ce principe de conservation, qui est celle de la quantité de
mouvement, (...) s'il y a donc bien conservation, elle tient uniquement à une cause extrinsèque, qui
n'est même pas un premier moteur supra-lunaire, mais l'être créateur transcendant, et cela en raison
de la seule constance de sa volonté dans la continuité de sa décision créatrice et dans le choix des
lois qu'il s'est fixées pour as création ; le principe du mouvement se trouve dans une immutabilité,
qui est en dehors, au delà de lui.” ROUSSET, Bernard. Entre Galilée et Newton : les apports du
conatus hobbien et du conatus spinoziste...
49

transcendente para explicar a existência, seja ela um Deus antropomórfico ou um


sujeito que pensa, o cogito81.

Neste ponto podemos notar o quanto Espinosa se distancia de


Descartes. Para nosso filósofo não há recurso a qualquer força transcendente para
explicar a existência. Tudo o que existe, existe e persevera na existência por um
esforço que lhe é intrínseco, que é sua própria essência. Não há Deus
transcendente em Espinosa, não há força externa que vá determinar a existência
ou o movimento. Tudo é imanência absoluta, o conatus é um esforço intrínseco
por existir, essência mesma de todas as coisas singulares.

Em nosso próximo capítulo nos dedicaremos à análise da relação entre


Espinosa e outro contemporâneo seu, Thomas Hobbes, evidenciando ainda mais a
anomalia espinosana frente ao pensamento hegemônico do século XVII e a
afirmação espinosana da imanência absoluta. Por ora, vale salientar que, em
Espinosa, perseverar na existência é sempre perseverar na sua individualidade,
perseverar no todo que constitui um indivíduo, na sua forma e não apenas na sua
sobrevivência.

Conservar-se é conservar suas relações constitutivas, de fato, nosso


filósofo considera, inclusive, a possibilidade de um indivíduo desconstituir-se sem
necessariamente deixar de sobreviver: para Espinosa, morrer não é apenas virar
cadáver, é possível morrer em vida82. Podem ocorrer mudanças tão significativas
num indivíduo que ele deixe de existir mesmo sem perder a vida, mas transforme-
se em outra coisa. Neste sentido, pode ser exemplo de transformação a passagem
da infância a vida adulta, nesta passagem podem ocorrer tantas mudanças que
pode ser difícil reconhecer na criança e no adulto o mesmo indivíduo83. Portanto,

81
“... Descartes avait domine la première moitié du XVII siècle en poussant jusqu’au bout
l’enterprise d’une science mathémathique et mécanicienne; le premier effet de celle-ci était de
dévaloriser la Nature, en lui retirant toute virtualité ou potentialité, tou pouvoir immanent, tout être
inhérent. La metaphysique cartésienne compléte la même entreprise, parce qu’elle cherche l’être
hors de la nature, dans un sujet qui la pense et dans un Dieu qui la crée.” DELEUZE, Gilles.
Spinoza et le probléme de l’expression, . ed. Minuit, Paris, 1968, p. 207
82
“ Pois não ouso negar que o corpo humano, ainda que mantenha a circulação sanguínea e outras
coisas, em função das quais se julga que ele ainda vive, pode, não obstante, ter sua natureza
transformada em outra inteiramente diferente da sua. Com efeito, nenhuma razão me obriga a
afirmar que o corpo humano não morre a não ser quando se transforma em cadáver. Na verdade, a
própria existência parece sugerir o contrário.” E IV, p. 39, esc.
83
“En effet, Spinoza suggère que le rapport que caractérise un mode existant dans son ensemble
est doué d’une sorte d’élasticité. Bien plus, sa composition passe par tant de moments, et aussi sa
décomposition, qu’on peut presque dire qu’un mode change de corps ou de rapport em sortant de
50

perseverar na existência, para Espinosa, não é apenas sobreviver mas conservar


suas relações constitutivas, as relações que compõem a essência de uma
individualidade84. Exploraremos este tema mais detalhadamente no início de
nosso capítulo três.

O conatus espinosano não se resume a uma finalidade transcendente,


nem necessita de um Deus criador que lhe dê impulso. O conatus é esforço
intrínseco pela preservação da individualidade. Longe do recurso à transcendência
de seu contemporâneo, Espinosa concebe o conatus como inscrito na imanência
absoluta, sem o recurso a um Deus criador transcendente. Conatus é esforço
intrínseco e imanente de perseverar na existência.

O universo das coisas singulares é o universo dos encontros.


Inevitáveis e necessários, os encontros são a realidade dos modos finitos na
existência. O conatus, no encontro com outras coisas singulares, caracteriza-se por
uma potência de afetar e de ser afetado. A força da potência de existir de cada
coisa singular varia de acordo com a qualidade dos encontros com as demais
coisas singulares: força de agir que aumenta nos bons encontros, nas relações de
composição com outras coisas singulares, e mesma força de existir que diminui
nos maus encontros, nas relações de decomposição que estabelece com outras
coisas singulares. Quando somos causa total do que ocorre em nós ou seja,
quando nossa essência é a causa total e completa do que se passa em nós, dizemos
que agimos, quando somos causa parcial e o que se passa em nós depende da
operação de causas externas, dizemos que padecemos.

Vale ressaltar que o conatus é sempre potência positiva e atual.


Espinosa expulsa o negativo da essência de todas as coisas, o conatus é sempre
positividade pura e a destruição de uma singularidade sempre vem de uma ação
externa a ela e nunca de dentro dela85. É quando padecemos que podemos

l’enfance, ou en entrant dans la vieillesse. Croissance, vieillessement, maladie: nous avons peine à
reconnaître un même individu. Et encore, est-ce bien ce même individu?” DELEUZE, Gilles.
Spinoza et le probléme de l’expression..., p.202
84
“Ce qui est à conserver ,ici, n’est pás lê mouvement vital abstraitment séparé de l’ensemble ou il
s’intègre: c’est dans sa totalité, le système de mouvements et de repos dont la formule définit notre
individualité. Nou voulons vivre, certes, en un sens, seulement vivre; mais la vie ne se réduit pas à
la simples circulation du sang ni aux autres fonctions biologiques élementaires. Vivre c’est vivre
selon ma essence individuelle...” MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza,
Paris : Les Éditions Minuit, 1988, pp.88-89
85
“Sendo uma força interna para existir e conservar-se na existência, o conatus é uma força interna
positiva ou afirmativa, intrinsecamente indestrutível, pois nenhum ser busca a autodestruição.(...)
51

experimentar a tristeza, a diminuição da força de nossa potência de existir até o


limite da servidão, como impotência86 para moderar e refrear os afetos, negação
real da força do conatus, porque nela somos arrastados pelo que não somos, uma
vez que estamos habitados pelas forças externas.

Podemos agora entender porque a duração de uma coisa singular,


para Espinosa, será sempre uma continuação indefinida, uma existência aberta,
limitada apenas pelos encontros que vier a realizar com outras coisas87. Desde sua
essência, o indivíduo espinosano é esforço em perseverar na existência, duração
indefinida e aberta, potência interna de resistência em ato.

No entanto, tal grau de potência está sujeito a variações decorrentes


dos encontros com outras coisas singulares88. Tais variações na potência de agir e
existir das coisas singulares são o que Espinosa entende por afetos.

Por afeto entendo as afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse
corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as
ideias dessas afecções. (Definição III da Parte III da Ética)
O corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua
potência de agir é aumentada ou diminuída, e, ainda, por outras que não
aumentam nem diminuem a sua potência de agir. (Postulado I da Parte III da
Ética)

Definindo corpo e alma pelo conatus, Espinosa faz com que sejam essencialmente vida, de
maneira que, na definição da essência humana, não entra a morte. Esta é o que vem do exterior,
jamais do interior.” CHAUÍ, Marilena. Espinosa uma filosofia da liberdade...p.63
86
“Mais notre force de pâtir est seulement l’imperfection, la finitude ou la limitation de notre force
d’agir en elle-même. Notre force de pâtir n’affirme rien, parce qu’elle n’exprime rien du tout: elle
enveloppe seulement notre impuissance, c’est-à-dire la limitation de notre puissance d’agir. En
vérité, notre puissance de pâtir est notre impuissance, notre servitude, c’est-à-dire lê plus bas degré
de notre puissance d’agir.” DELEUZE, Gilles. Spinoza et le probléme de l’expression..., p. 204.
87
“Nenhuma coisa pode der destruída, a não ser por uma causa exterior.” Proposição IV da Parte
III da Ética
“A duração é uma continuação indefinida da existência.” Definição V da Parte II da Ética
“Digo indefinida porque ela jamais pode ser determinada pela própria natureza da coisa existente
nem também pela causa eficiente, a qual, com efeito, põe necessariamente a existência da coisa,
mas não a suprime.” Explicação da Definição V da Parte II da Ética
“O esforço pelo qual cada coisa tende a perseverar no seu ser não envolve tempo finito, mas um
tempo indefinido.” Proposição VIII da Parte III da Ética

88
“Um modo existente define-se por certo poder de ser afetado. Quando encontra outro modo,
pode ocorrer que este outro modo seja “bom” para ele, isto é, se componha com ele, ou, ao
inverso, seja “mau” para ele e o decomponha: no primeiro caso, o modo existente passa a uma
perfeição maior; no segundo caso, menor. Diz-se, conforme o caso, que a sua potência de agir ou
força de existir aumenta ou diminui, visto que a potência do outro modo se lhe junta, ou, ao
contrário, se lhe subtrai, imobilizando-a e fixando-a” DELEUZE, Gilles. Spinoza – filosofia
prática, ed. Escuta, São Paulo, 2002, p. 56 e 57
52

As variações afetivas na potência humana podem tanto aumentar como


diminuir sua potência, sua perfeição, sua realidade89. Espinosa estabelece então
três afetos originários, dos quais decorreram todos os outros: o desejo, a alegria e
a tristeza. O desejo, dirá Espinosa, é a própria essência do homem, a expressão do
conatus na consciência, sua potência enquanto este é determinado a fazer algo90; a
alegria é a variação positiva na potência, uma passagem de uma perfeição menor
para uma maior91; e a tristeza uma variação negativa no grau de potência do
indivíduo, a passagem de uma perfeição maior para uma perfeição menor92.

Todos os demais afetos serão derivações, maneiras pelas quais


podemos sentir desejo, alegria ou tristeza. Assim, por exemplo, o amor é um afeto
de alegria acompanhado da ideia de uma causa exterior, a coisa amada93; da
mesma forma, o ódio é a tristeza acompanhada da ideia de uma causa exterior94; e
a ambição, o desejo imoderado de glória95.

Um afeto é uma ideia que não representa um objeto, mas é a expressão


de uma transição. Uma ideia da variação de potência entre dois momentos
distintos na existência. Existe uma diferença de natureza entre as ideias
representativas de objetos ou afecções e as ideias sentimento, os afetos que não
representam nada, porém dão conta de uma variação da potência96. Embora
correspondam a encontros e afecções os afetos não se confundem com eles mas
são variações na potência do indivíduo entre dois momentos na duração.
89
“Por realidade e perfeição entendo a mesma coisa” Definição VI da Parte II da Ética
90
“O desejo (Cupiditas) é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como
determinada a fazer algo por uma afecção qualquer nela verificada.” Definições dos afetos, I, Parte
III da Ética
“Ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e viver bem que não deseje ao mesmo tempo ser, agir e
viver, isto é, existir em ato.” Proposição XXI da Parte IV da Ética
91
“A alegria (Laetitia) é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior.”
Definições dos afetos, II, Parte III da Ética
92
“A tristeza (Tristitia) é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma perfeição
menor.” Definições dos afetos, III, Parte III da Ética
93
“O amor (Amor) é a alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior.” Definições dos
afetos, VI, Parte III da Ética
94
“O ódio (Odium) é a tristeza acompanhada da ideia de uma causa exterior.” Definições dos
afetos, VII, Parte III da Ética
95
“A ambição (Ambitio) é o desejo imoderado de glória.” Definições dos afetos, XLIV, Parte III
da Ética
96
“Existe, pois, uma diferença de natureza entre as afecções-imagens ou ideias, e os afetos-
sentimentos, se bem que os afetos-sentimentos possam ser apresentados como um tipo particular
de ideia ou de afecções (...). É certo que o afeto supõe uma imagem ou ideia, e dela deriva como
da sua causa. Conduto, não se reduz a ela; possui outra natureza, sendo puramente transitivo, e não
indicativo ou representativo, sendo experimentado numa duração vivida que abarca a diferença
entre dois estados” DELEUZE, Gilles. Spinoza – filosofia prática, ed. Escuta, São Paulo, 2002, p.
56
53

Como variação na potência de agir e de existir, um afeto só pode ser


refreado por outro afeto que lhe seja mais forte e contrário97. A mecânica afetiva
montada por Espinosa não confere às afecções do corpo, à razão ou às ideias o
poder de, por si só, controlarem e refrearem os afetos. Mas, somente na medida
em que são também causas de afetos de alegria ou de tristeza é que as afecções
corporais, as ideias e o conhecimento adequado podem interferir nas variações da
potência e, portanto, na mecânica própria dos afetos.

Pode ainda ocorrer ao homem que de uma mesma causa advenham


simultaneamente afetos contrários, como o amor e o ódio, é o que Espinosa chama
de flutuações da alma. Por exemplo, o ciúme é uma flutuação da alma, nascida da
ocorrência simultânea do amor pela coisa amada e o ódio advindo da ideia de um
outro, a quem o homem inveja pela sua união à coisa amada98.

O afeto, como variação no grau de potência, pode decorrer igualmente


tanto do encontro com coisas presentes quanto da imagem de coisas futuras ou
passadas.

O homem experimenta pela imagem de uma coisa passada ou futura o mesmo


afeto de alegria ou de tristeza que pela imagem de uma coisa presente.”
Proposição XVIII da Parte III da Ética

Assim, por exemplo, o medo é uma tristeza instável nascida da ideia de


uma coisa futura ou passada, do resultado da qual duvidamos numa certa
medida99; da mesma forma que a esperança é uma alegria também nascida da
ideia de uma coisa futura ou passada incerta100.

97
“Uma afecção [afeto] não pode ser refreada nem suprimida, senão por uma afecção [afeto]
contrária e mais forte que a afecção [afeto] a refrear.” Proposição VII da Parte IV da Ética
98
“Esse ódio para com a coisa amada, junto à inveja, chama-se ciúme, o qual, por conseqüência,
não é senão uma flutuação da alma nascida do amor e do ódio simultâneos, acompanhados da ideia
de um outro a quem se tem inveja.” Escólio da Proposição XXXV da Parte III da Ética
99
“O medo (Metus) é uma tristeza instável nascida da ideia de uma coisa futura ou passada, do
resultado da qual duvidamos numa certa medida....” Definições dos afetos, XIII, Parte III da Ética
100
“A esperança (Spes) é uma alegria tristeza instável nascida da ideia de uma coisa futura ou
passada, do resultado da qual duvidamos numa certa medida...” Definições dos afetos, XII, Parte
III da Ética
“Segue-se dessas definições que não há esperança sem medo, nem medo sem esperança. Aquele,
com efeito, que está em suspenso pela esperança e duvida do resultado de uma coisa, supõe-se
imaginar qualquer coisa que exclua a existência da coisa futura, e, por conseguinte, nessa medida,
supõe-se que se entristece (...); e, conseqüentemente, enquanto está suspenso pela esperança tem
medo de que a coisa não aconteça ...” Explicação das definições XII e XIII dos afetos, Parte III da
Ética
54

Os afetos podem ainda ser ativos ou passivos, ações ou paixões, quer


seja o indivíduo sua causa adequada ou mera causa parcial. É o que explicita a
segunda parte da Definição III da Parte III da Ética: Quando, por conseguinte,
podemos ser causa adequada de uma dessas afecções, por afecção [afeto]
entendo uma ação; nos outros casos, uma paixão”

O homem pode ser causa adequada ou inadequada dos seus próprios


encontros e dos seus próprios afetos. No primeiro caso, configura-se a atividade,
as ações, os afetos ativos, que caracterizarão a autonomia e a liberdade; já no
segundo caso, nas paixões, o registro é o da passividade, sendo o homem mera
causa parcial de seus afetos.

Pelo que já se expôs sobre o conatus, o esforço de perseverar na


existência, decorre que todos os afetos de tristeza serão necessariamente paixões.
Como variações negativas na potência, quando afetado por afetos de tristeza o
homem é sempre passivo, causa somente parcial ou inadequada dos seus
encontros, ideias e afetos. Já no que concerne aos afetos de alegria, estes podem
ser tanto passivos, paixões, como ativos, ações. Assim, mesmo como causa
inadequada pode advir ao homem um bom encontro, uma afecção que lhe acarrete
um afeto de alegria, ainda que passional. Mas, quando ativo e causa adequada de
seus encontros e ideias, o indivíduo encontrará necessariamente sempre afetos de
alegria, já que da própria coisa nada pode advir que diminua sua potência ou
acarrete sua destruição.

É justamente nesta oposição entre atividade e passividade, entre ação e


paixão, entre ser causa adequada de seus próprios encontros e afetos ou mera
causa parcial que Espinosa estabelece sua compreensão do que sejam a liberdade
e a servidão humanas.

A liberdade, para Espinosa, consiste na atividade, em ser causa


adequada de seus encontros e afetos, ter um conhecimento adequado das essências
das coisas singulares e da essência de Deus. A servidão, por oposição, é o signo
da passividade, o inverso do conceito de livre, é ser determinado, coagido por
55

causas externas, regido por ideias inadequadas e tomado por paixões, paixões que
podem ser tristes ou alegres101.

Nosso filósofo concebe a liberdade como causalidade adequada do


existir. Quando o homem age, é a causa adequada de seus encontros e
experimenta afetos ativos de alegria dizemos que ele é livre. Quando, pelo
contrário, o homem deixa-se ficar a mercê de causas externas, na aleatoriedade
dos encontros e paixões dizemos que ele está imerso na servidão.

No campo da política liberdade e servidão ganham um sentido maior


posto que livre será o regime que dá as condições materiais necessárias à
liberdade de seus cidadãos. Já a servidão está na opressão, na alienação do poder,
na multidão separada daquilo que ela pode. Veremos mais adiante as implicações
destes conceitos de liberdade e servidão e como os homens podem desejar a
servidão pensando tratar-se da liberdade.

101
“Passividade significa ser determinado a existir, desejar, pensar a partir de imagens exteriores
que operam como causas de nossos apetites e desejos. A servidão é o momento em que a força
interna do conatus, tendo se tornado excessivamente enfraquecida sob a ação das forças externas,
submete-se a elas imaginando submetê-las.” CHAUÍ, Marilena. Espinosa, uma filosofia da
liberdade...p. 67
2

Soberania.

2.1

Superstição e servidão

“Não há nada mais eficaz do que a superstição para governar as multidões.”


TTP, Introdução

Tendo demonstrado, ao longo da Parte I da Ética, a natureza de Deus,


seus atributos e sua ordem de produção, regida pela livre necessidade, nosso
filósofo dedica o breve texto que serve de Apêndice à EI a “submeter ao
escrutínio da razão” os preconceitos que podem impedir a compreensão adequada
dos conceitos até então abordados. Certo de que todos esses preconceitos
decorrem de um só: o “preconceito” finalista, segundo o qual os homens creem
que tudo o que existe responde a uma finalidade, chegando a materializar-se na
crença de um Deus antropomórfico que tudo dirige em função de fins. Diz
Espinosa:

Ora, todos os preconceitos que aqui me proponho a expor dependem de um


único, a saber, que os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas
naturais agem, tal como eles próprios, em função de um fim, chegando até
mesmo a dar como assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas
tendo em vista algum fim preciso, pois dizem que Deus fez todas as coisas
em função do homem, e fez o homem, por sua vez, para que este lhe
prestasse culto.102

Frente aos preconceitos que impedem a compreensão de Deus e da


Natureza como substância absolutamente infinita, regida pela lei da causalidade
necessária, Espinosa começa por apontar na crença da causalidade finalista a
fundação de todas as outras distorções e ilusões capazes de sustentar a superstição
e juízos de valores universais como o bem e o mal, o mérito e o pecado, a beleza e
a feiúra.

102
Apêndice EI, pg. 65
57

Imersos na imaginação, entre ideias confusas, inadequadas e


mutiladas, os homens desejam - por essência desejamos103 - e conscientes de
nossos desejos não sabemos, no entanto, porque desejamos. Conscientes de nossas
vontades e apetites, desconhecemos as causas que nos levam a desejar, e julgamos
as coisas pelos fins e não pelas causas.
Ignorantes das causas de nossas vontades e de nossos afetos, julgamos
que tudo o que existe responde a uma finalidade, e que a própria Natureza existe
para nossa própria utilidade ou nosso martírio. Imbuídos de uma visão
antropocêntrica do mundo, os homens julgam tudo que existe segundo seu próprio
juízo, e assim compreendem tudo que existe segundo sua própria e limitada
experiência. Desconhecendo a ordem natural necessária de encadeamento das
causas, no conhecimento inadequado do múltiplo simultâneo que determina a
produção incessante da Natureza, os homens julgam conhecer as coisas pela sua
finalidade e segundo seu próprio proveito.
Espinosa adverte que, no texto do Apêndice da EI, ainda não é o
momento de fazer decorrer da própria mente humana tal preconceito, o que lhe
exigirá a análise da mecânica afetiva do desejo e do amor, desenvolvida só na
Parte III da Ética. No entanto, alicerça sua descrição da ilusão finalista em dois
princípios que serão retomados nas duas Partes seguintes da Ética, a saber: que
nascemos ignorantes das causas das coisas e de nossos próprios desejos, tese
retomada nas proposições 24 a 31 da Parte II da Ética; e que desejamos aquilo que
nos é útil, o que se demonstrará na segunda metade do escólio da proposição 13, e
na proposição 28, ambas da Parte III da Ética104.
Na incompreensão da causalidade necessária da Natureza, os homens
voltam-se para si mesmos em busca de uma explicação para a existência das
coisas e para a ocorrência dos eventos naturais. Pelas experiências de suas

103
Sobre a essência do homem e de tudo o que existe como esforço por perseverar na existência e
em nossa consciência de desejo pelo que nos parece útil, remetemos o leito à discussão acerca do
conatus que desenvolvemos no cap. 1
104
“En nous expliquant, dans l’Appendice du livre I, l’origine de notre croyance aux cause finales,
Spinoza ne fait, en somme, que développer ce qui est impliqué dans sa théorie de l’amour. Avant
d’entreprendre cette explication, il déclare que le moment n’est pas encore venu de la déduire de la
nature de l’esprit humain; mais il la fait découler de deux principes, qu’il admet provisoirement à
titre de postulat, et qui renvoient sans ambiguité aux deux livres suivants de l’Ethique : que nous
naissions ignorants des causes se déduit des propositions 24-31 du livre II ; que nous désirions ce
qui nous est utile se déduit de la seconde moitié du scolie de la propositions 13 du livre III (ou, ce
qui revient au même, de la propositions 28), qui trate du désir particulier, c’est-a-dire, précisément,
du desir modifié par l’amour ou par la haine. » MATHERON, Alexandre. Individu et communauté
chez Spinoza... pg. 102-103.
58

afecções corporais, nos encontros com outras coisas na Natureza, imaginam que,
como eles próprios, tudo o que existe responde a uma determinada finalidade, e
que esta se identifica à sua própria utilidade. Encontrando em cada coisa da
Natureza uma relação com seus próprios desejos e apetites, os homens julgam que
tudo o que existe, existe como meio, instrumento, para a sua própria utilidade105.

Se, entretanto, não puderem saber dessas causas por ouvirem de outrem, só
lhes resta o recurso de se voltarem para si mesmos e refletirem sobre os fins
que habitualmente os determinam a fazerem as coisas similares e, assim,
necessariamente, acabam por julgar a inclinação alheia pela sua própria.
Como, além disso, encontram, tanto em si mesmos, quanto fora de si, não
poucos meios que muito contribuem para a consecução do que lhes é útil,
como, por exemplo, os olhos para ver, os dentes para mastigar, os vegetais e
os animais para alimentar-se, o sol para iluminar, o mar para fornecer-lhes
peixes, etc., eles são, assim, levados a considerar todas as coisas naturais
como se fossem meios para a sua própria utilidade.106

Conscientes apenas dos próprios desejos, os homens julgam a


Natureza segundo seus próprios interesses. Tomando a si mesmos como
referência para a compreensão de tudo o que existe, acabam por acreditar que
todas as coisas existem para seu deleite ou seu castigo, para sua utilidade ou
sacrifício. Satisfeitos com sua pseudo-explicação finalista, para compreensão de
todos os acontecimentos, os homens trocam a questão “por que?” por “para que ?”
e contentam-se com a ideia de que as coisas explicam-se por um fim determinado
e não por causas necessárias107.
Ainda tomando a si mesmos como modelo de funcionamento do
mundo, ignorantes das causas das coisas, tendo já encontrado as coisas na
Natureza tal como existem, cientes de que não são a causa do nascimento do sol
ou da existência dos animais, dos vegetais ou do próprio corpo, e de tudo que
existe na Natureza, julgam existir alguém que tenha criado tais coisas. Espelhando
seus próprios desejos e afetos na imaginação de um Deus ou Deuses
antropomórficos, os homens imaginam, então, um Ser transcendente que cria tudo

105
« Et la Nature entière nous apparait alors comme un immense système de moyens mis au
service de nos propres fins » MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza...
pg. 106
106
Apêndice, EI, pg. 65
107
« Car c’est désormais à cette pseudo-explication finaliste, qui est la seule dont nous disposions,
et à l’aquelle presque rien dans notre esprit ne s’oppose, que nous allons désormais recourir, même
là oú il n’y a plus d’agent conscient. A propos de n’importe quel événement, la question « pour
quoi ? » se transformera insidieusement en la question « en vue de quoi » ? Et lorsque nous
croirons y avoir répondu, nous serons satisfaits, car rien ne nous incitera à cherche au-
delà. » MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza... pg. 105-106
59

o que existe para a utilidade humana, e os próprios homens para que lhe prestem
cultos e honras.
Do preconceito finalista, por julgarem que tudo na Natureza existe em
função de uma finalidade, os homens, na ignorância das causas das coisas, tomam
a finalidade de tudo o que existe como seus próprios interesses. Segundo seus
próprios juízos e afetos imaginam que um Deus ou Deuses antropomórficos
dispuseram tudo o que existe tendo em vista uma finalidade precípua, qual seja,
atender as necessidades humanas. Assim descreve Espinosa :

E por saberem que simplesmente encontraram esses meios e que não foram
eles que assim os dispuseram, encontraram razão para crer que deve existir
alguém que dispôs esses meios para que eles os utilizassem. Tendo, pois,
passado a considerar as coisas como meios, não podiam mais acreditar que
elas tivessem sido feitas pelo seu próprio valor. Em vez disso, com base nos
meios de que costumam dispor para seu próprio uso, foram levados a
concluir que havia um ou mais governantes da natureza, dotados de
liberdade humana, que tudo haviam providenciado para eles e para o seu
uso tinham feito todas as coisas.108

A crença em um ou vários rectores Naturae se constrói da imaginação


finalista do mundo. Tomando a produção infinita da Natureza pelos próprios
juízos, pelos próprios interesses, os homens imaginam o próprio Deus ou Deuses
como antropomórficos. Sem saber das leis necessárias da Natureza, a divindade
ou divindades são imaginadas como dotadas de afetos humanos, produzindo toda
a Natureza em função dos interesses humanos, das alegrias e provações dos
homens.
Decorrem ainda do preconceito finalista os juízos humanos
inadequados de perfeição e imperfeição, beleza e feiúra, bem e mal, etc.
Valorando as coisas não por si mesmas, mas pela utilidade aos seus próprios
interesses ou adequação a modelos universais, os homens dizem perfeitas ou belas
ou boas aquelas coisas que melhor respondem ao seu imaginado fim, e por outro
lado imperfeitas ou feias ou más aquelas que mais se afastam do imaginado fim
ou modelo a que deveriam adequar-se.
E o equívoco principal não está, absolutamente, em julgar boas ou
más as coisas segundo a sua utilidade ou a forma como afetam nosso corpo, mas
em julgar que perfeição e imperfeição, o bem ou o mal, relacionam-se a

108
Apêndice, EI, pg.65,67
60

características intrínsecas das coisas e a modelos universais, e não à sua relação


momentânea com nosso corpo109.
De fato, consideramos as coisas boas ou más de acordo com a relação
que estabelecem com nosso corpo e nosso desejo: quer nos afetem de alegria ou
tristeza, quer nos sejam úteis ou nos impeçam de desfrutar de algum bem110. Nos
entanto, tais relações são sempre singulares e os juízos de valor de bem e mal tem
como critério nosso próprio desejo111. A subversão imaginativa, fruto do
preconceito finalista, está em tomar o singular por universal e atribuir como
intrínsecas às coisas as características de bom ou mau, que são, na verdade,
determinadas pelo nosso desejo. Tomadas em si mesmas as coisas não são boas ou
más, tal juízo de valor será determinado pela relação singular que estabelecemos
com elas e pelo nosso próprio desejo. Neste sentido Espinosa é explícito ao
afirmar:

Torna-se, assim, evidente, por tudo isso, que não é por julgarmos uma coisa
boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a
desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la,
por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa. EIII, prop. 9, escólio.

No entanto, ainda não é aqui o momento de nos aprofundarmos nesta


discussão. Espinosa retoma o tema dos juízos de perfeição e imperfeição
formados pelos homens, na imaginação da causalidade finalista, no Prefácio da
Parte IV da Ética. Ao introduzir o tema da servidão, como impotência para
regular e refrear os afetos, nosso filósofo retoma a análise iniciada no Apêndice da
Parte I da Ética, e apresenta com mais profundidade a gênese dos juízos de valor
alicerçados na visão finalista das coisas. Deixaremos então o desenvolvimento

109
« Telles est l’origine des notions de Bien et de Mal. Nous appelons Bien, au départ, ce qui
contribue à la santé (...), c’est-à-dire, en un sens très général, tout ce que affecte notre corps d’une
variation favorable; et le contraire, nous l’appelons mal. L’auto-mystification, ici, ne consiste
évidemment pas dans le seul emploi d’un mot nouveau. Peu importe le vocable, que Spinoza lui-
même utilisera sans incovénient par la suite. L’erreur consiste à croire que, par ce terme, nous
désignons une qualité intrinsèque de la chose, qui lui appartiendrait essentiellement et devrait être
reconnue comme telle par tous les hommes, et non pas son rapport momentané à notre organisme
individuel. » MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza... p. 110
110
Espinosa define o bem e o mal nas duas primeiras definições da Parte IV da Ética:
“1. Por bem compreenderei aquilo que sabemos, com certeza, nos ser útil.
2. Por mal compreenderei, por sua vez, aquilo que sabemos, co certeza, nos impedir que
desfrutemos de algum bem.”
111
“ Não desejamos nem fazemos coisas porque as julgamos boas, belas, justas ou verdadeiras,
mas porque as desejamos e as fazemos assim as julgamos. O juízo não determina o desejo, é
determinado por ele.” CHAUÍ, Marilena. “Laços de desejo” in NOVAES, Adauto. O desejo,
Companhia das letras, São Paulo, 1990, p. 61
61

com maior propriedade de tal discussão para ocasião mais propícia, no nosso
último capítulo, quando analisaremos a servidão, não mais a um poder soberano,
mas aos próprios afetos.
Por ora, voltemos à construção do tema da superstição e da soberania.
Dizíamos que pela crença de que tudo na Natureza foi disposto em
vista de uma finalidade, ignorantes das causas das coisas, os homens são levados a
crer que alguém criou tudo o que existe, por nenhuma outra razão do que
buscando suprir as necessidades humanas ou infligir-lhes sofrimentos, para
usufruto ou sacrifício dos homens. E de tal ordem é esse delírio coletivo que, nem
mesmo quando defrontados com acontecimentos nocivos aos próprios interesses
ou catástrofes naturais, os homens desistem de sua ilusão antropocêntrica.
Mas ao lado do preconceito finalista e da crença num Deus ou Deuses
antropomórficos de vontades tirânicas funciona uma mecânica afetiva capaz de
sustentar a superstição e inscrever a servidão no próprio esforço humano em
perseverar na existência. São os afetos de medo e esperança que acompanham a
imaginação da contingência e sustentam a superstição como desejo de servidão a
um poder ou poderes soberanos transcendentes. Nas definições dos afetos, que
encerra a Parte III da Ética, Espinosa assim define o medo e a esperança:

A esperança é uma alegria instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou


passada, de cuja realização temos alguma dúvida.
O medo é uma tristeza instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou
passada, de cuja realização temos alguma dúvida.112

O medo e a esperança são paixões que acompanham a imaginação da


contingência. Tendo por causa a ideia de uma coisa futura ou passada de cuja
realização temos alguma dúvida, o medo e a esperança sempre caminham juntos,
onde há medo necessariamente há também esperança e vice e versa. Dado o
caráter necessariamente duvidoso do evento que nos inspira medo e esperança, se
tememos um mal futuro ao mesmo tempo esperamos que ele não ocorra, do
mesmo modo, se esperamos um bem futuro receamos, ao mesmo tempo, não
recebê-lo. Medo e esperança são paixões correlatas, que formam uma dupla
sempre dinâmica, uma flutuação de alma sempre em variação113.

112
E, III, definições do afetos, 12 e 13
113
“A experiência da contingência e da dúvida torna o medo e a esperança inconstantes e
intercambiáveis não apenas em momentos sucessivos, mas também na simultaneidade: numa
62

No entanto, isso não implica em que medo e esperança signifiquem a


mesma coisa ou tragam os mesmos efeitos. Ser movido pelo medo não é o mesmo
que ser movido pela esperança, e esses dois afetos costumam alternarem-se em
intensidade: embora sempre caminhem juntos, medo e esperança funcionam numa
mecânica de proporcionalidade inversa, ou seja, onde há mais medo há menos
esperança, e vice e versa, sendo o medo uma paixão triste e a esperança uma
paixão alegre. Enquanto tememos um mal futuro e esperamos que ele não ocorra,
nosso medo pode superar nossa esperança, e chegarmos ao limiar do desespero,
paixão que encarna a própria falta de esperança. No entanto se, ainda em vista do
mesmo mal futuro, imaginamos que ele pode não ocorrer, se nossa esperança
cresce ao ponto de afastar quase completamente o medo, chegamos perto da
segurança, afeto que é a concretização da esperança e a ausência de medo114.
Mas, no universo de variações possíveis da oscilação entre esperança
e medo, estar no extremo da esperança, próximo da segurança, ou na proximidade
do desespero pelo medo, não significam a mesma coisa115. Ser levado mais pela
esperança que pelo medo significa ser levado mais pela alegria que pela tristeza,
estar mais próximo da liberdade que da servidão. Já o medo, paixão triste, não
produz outra coisa senão escravos.

metamorfose interminável, cada uma dessas paixões habita e perpassa a outra. Ou, como escreve
Espinosa, quem está suspenso na esperança e duvida do desenlace, teme enquanto espera, e quem
está suspenso no medo e duvido do que possa acontecer, espera enquanto teme.” CHAUÍ,
Marilena. Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa, São Paulo: Companhia das Letras, 2011,
pg. 175
114
« Lorsque notre effort a entièrement réussi, l’espoir, débarrassé de la crainte, devient sécurité ;
lorsqu’il a complètement échoué, la crainte, privée d’espoir, devient désespoir. Il nous faut donc,
pour un même dosage d’espoir et de crainte, envisager la direction vers laquelle il tend à chaque
instant; et nous obterons alors deux cas possibles : ou bien la crainte est en train de décroîte au
profit de l’espoir, et celui-ci s’achemine vers la sécurité ; ou bien elle est en train de s’accroîte du
détriment de l’espoir et s’achemine vers le désespoir. » MATHERON, Alexandre. Individu et
communauté chez Spinoza... pg. 128
115
« Se soumettre par crainte n’est pas la même chose que se soumettre par espoir. Les plus
malheureux, les plus frustrés, les plus asservis d’entre les hommes sont évidemment ceux qui
n’obéissent que parce qu’ils redoutent la potence : sans rien attendre de la vie, ils ne cherchent
qu’à fuir la mort, leur seule espérance étant d’éviter les danger que l’Etat a lui-même
artificiellement créés pour les contenir ; à peine, d’ailleurs, peut-on parler ici d’obéissance, à long
terme tout au moins : une société qui recourrait exclusivement à ce genre de stimulants ne
présenterait aucune garantie de stabilité interne, car l’esclavage, poussé à ce point, entretient un
mécontentement qui n’attend que l’occasion de se déchaîner. (...) dans les ‘libres Républiques’
dont Spinoza décrit la structure, les motivations positives l’emporteraient nettement sur les
motivations négatives ; les sujets, au lieu de se sentir menés, s’imagineraient assez souvent vivre à
leur guise ; ce qui les maintiendrait dans le droit chemin, ce serait surtout l’amour de la liberté,
l’espoir de s’enrichir, l’espoir d’accéder aux honneurs ; les châtiments, réduits à leur vrai rôle de
garde-fou, demeureraient la plupart du temps à l’arrière-plan. ». MATHERON, Alexandre, Le
Christ et le salut des ignorants chez Spinoza, Paris : Editions Aubier Montaigne, 1971, pg.
179/180.
63

Neste sentido configura-se uma questão política fundamental: o


Estado no qual a obediência dos cidadãos está mais calcada na esperança do que
no medo está mais próximo de uma República livre, e seu governo mais próximo
da estabilidade. Já o medo fundamenta sempre uma obediência servil, inspira mais
escravos que cidadãos, e causa mais sedição e revoltas do que paz116.
Voltaremos a este tema ao tratarmos mais especificamente da
obediência política. Nosso objetivo no momento é encontrar a mais importante
filha do medo: a superstição117. É o medo que inspira as crenças supersticiosas. O
preconceito finalista e a crença num Deus ou Deuses antropomórficos, descritos
no apêndice da Parte I da Ética, não são o bastante para, por si só, explicar a
gênese da superstição. Acompanhando a experiência da contingência e a
imaginação de um poder transcendente rector naturae, é o medo que constitui o
terreno da superstição118. Da experiência de males inesperados, dos reversos da
fortuna, da possibilidade da dor cujas causas não temos qualquer controle ou
defesa, os homens temem o desconhecido, o incerto, o duvidoso e do seu medo
nasce a superstição. Neste sentido, Espinosa é claro ao declarar que “o medo é a
causa que origina, conserva e alimenta a superstição.”119 E ainda: “os homens só
se deixam dominar pela superstição enquanto tem medo”.120
O preconceito finalista e a crença num Deus ou Deuses transcendentes
constituem-se em superstição quando, levados pelo medo, os homens buscam uma

116
« Cette nouvelle alternative est importante, car sur elle repose un choix politique décisif : l’État
peut gouverner en utilisant comme principal stimulant (principal seulement, car aucune des deux
méthodes n’est jamais entièrement négligée), soit l’espoir de récompenses lié à la crainte de ne pas
en être reconnu digne, soit la crainte de châtiments liées à l’espoir de ne pas les mériter ; et le
premier système est bien préférable au second, car il suscite l’amour et non la haine ; celui-ci fait
un troupeau d’esclaves uniquement soucieux d’éviter la mort, celui-lá un peuple libre qui cherche
à profiter la vie. » MATHERON, Alexandre, Individu et communauté chez Spinoza... pg. 129/130
117
“Filha do medo, por ele e nele parida, a superstição é tentativa desesperada e delirante para
encontrar uma unidade imaginária, capaz de recobrir e reconciliar uma realidade apreendida como
imediatamente fragmentada no espaço e no tempo.” CHAUÍ, Marilena. “Sobre o medo” in
NOVAES, Adauto (org.) Os sentidos da paixão, 1ª Ed., São Paulo: Companhia das letras, 1990,
pg. 63.
118
« Cette croyance en une divinité anthropomorphe, prise en elle-même n’est pas encore
superstition. Pour qu’elle le devienne, une cause supplémentaire sera requise. Spinoza, il est vrai,
fait allusion ici à la superstition. Mais la façon même dont il parle montre bien qu’il ne la confond
pas avec le préjugé qu’il critique. Il déclare en effet, que ‘ce préjugé est devenu superstition’ ;
mais, s’il est devenu, c’est qu’il ne l’etait pas à l’origine. Quand cette transformation se
produit’elle ? (...) Mais, précisément, nous n’en somme pas encore lá : nous croyons encore, pour
l’instant, que la Nature est déjà à notre service. Pour nous apercevoir qu’elle ne l’est pas toujours,
il nous faudra, entre temps, passe par l’experience de l’échec : alors naîtra la crainte, et, de la
crainte, la superstitions » MATHERON, Alexandre. Individu et communauté...pg. 108/109
119
TTP, pg. 6
120
TTP, pg. 7
64

ordem imaginária capaz de estabilizar o medo, uma ordem qualquer, capaz de


atribuir um sentido aos aparentes caprichos da fortuna. Imaginando presságios e
sinais divinos, revelações e profecias acerca da vontade de Deus, os homens,
imersos na superstição, imaginam um poder transcendente que a tudo controle, e
formas e meios de ganhar seus favores, prestar-lhe cultos e manipular sua vontade
a seu favor121. A superstição, o medo da contingência, inspira a submissão a um
poder transcendente senhor de bens e males, capaz de agraciar os homens com
bênçãos ou impor-lhes sacrifícios segundo a sua vontade soberana122.
Neste cenário podemos afirmar que a superstição é mais filha do medo
que da esperança, expressão maior de tristeza que de alegria, é a senhora de uma
obediência regida pelo temor e pela servidão. Do vínculo entre medo e superstição
decorrem algumas conseqüências relevantes123:
1 – Todos os homens estão em maior ou menor grau sujeitos ao medo
e, da mesma forma, como é absolutamente inevitável nos ocorrerem ideias
inadequadas, confusas e mutiladas, próprias da imaginação, também estamos
todos, em maior ou menor grau, sujeitos à superstição.
2 – Sendo o medo uma paixão instável, também é instável a
superstição, variável e inconstante, assim como são variáveis e inconstantes as
circunstâncias e os conteúdos do que é temido.
3 - Se inconstantes são os eventos e coisas que nos inspiram medo, a
superstição “só pode ser mantida e permanecer mais longamente se uma paixão
mais forte a fizer subsistir, como o ódio, a cólera e a fraude”124.
Decorre, necessariamente, do funcionamento da mente humana como
ideia do corpo, que imaginamos: nos ocorrem a todo tempo ideias inadequadas,
121
« La superstition, c’est le préjugé plus la crainte qui se manifeste dès que nous faisons
l’expérience d’une nature chaotique, hostile et contraire à nos fins. Nous cherchons alors
désespérément un remède et nous portons un culte aux rectores naturae, afin de les convaincre de
changer leurs intentions à notre égard. » BOVE, Laurent. La stratégie du conatus – Affirmation et
résistance chez Spinoza, Paris: J.Vrin, 1996, pg. 179
122
“(...) a superstição ancora-se na crença em um poder para o qual não há, por definição,
ancoradouro: a caprichosa fortuna. O desejo imoderado de bens e o medo infindável de males
exprimem uma experiência que se realiza sob o signo da contingência, portanto, de tudo quanto se
escapa ao poder dos homens. Na medida em que bens e males parecem não depender dos humanos
e estes desconhecem as causas necessárias das coisas, dos acontecimentos e de seus próprios
sentimentos e ações, não há como impedi-los de acreditar no poderio da fortuna e de entregar-se a
ele. A religião é a prática humana para suportar a contingência; a teologia, a teoria imaginária da
fortuna, ora chamada de vontade de Deus, ora de providência divina.” CHAUÍ, Marilena. “A
instituição do campo político” em Política em Espinosa, ed. Companhia das letras, São Paulo,
2003, p. 92
123
Nossa análise aqui segue CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg.91
124
CHAUÍ, Marilena, Política em Espinosa... pg.91
65

decorrentes das afecções do corpo e o conhecimento inadequado da Natureza. Nas


ideias mutiladas e confusas da imaginação nos é dado conhecer apenas de forma
parcial o múltiplo encadeamento de causas que determina, de forma necessária,
tudo o que existe. Ignorantes das causas das coisas, ignoramos também o porvir e
oscilamos entre as paixões de medo e de esperança pelos eventos futuros de cuja
realização em alguma medida duvidamos.
O medo é paixão inevitável como a imaginação, e com ele é inevitável
também que estejamos sujeitos à superstição. As ideias supersticiosas de uma
ordem transcendente a tudo o que existe, a crença inadequada em alguma forma
de escapar à fortuna, nos é tão natural quanto nossa ignorância quanto ao porvir.
Frente à imaginação da contingência, a superstição é expressão delirante do nosso
desejo por alguma explicação para os eventos naturais, desejo por alguma
previsibilidade e controle do inesperado, expressão do nosso próprio desejo de
perseverar na existência. Na imaginação e no medo a superstição se funda no
próprio conatus125.
Acerca da superstição, que assola inexoravelmente os homens, diz
Espinosa, no prefácio do seu Tratado Teológico-político:

Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro ou


se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da
superstição. Mas, como se encontram frequentemente perante tais
dificuldades que não sabem que decisão hão de tomar, e como os incertos
benefícios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os fazem oscilar, a
maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão sempre a acreditar seja
no que for ...126

O medo que acompanha a experiência da contingência é o terreno da


superstição, da busca imaginativa por qualquer forma de estabilidade, de
previsibilidade dos eventos futuros. A crença em presságios, em desígnios
divinos, em um Deus ou Deuses antropomórficos transcendentes é assim fruto da
superstição127, superstição que sustenta um ciclo de medo e servidão, que mantém

125
“Si la superstition marche si bien, si elle a, comme le dit Spinoza, de profondes racines dans les
âmes, c’est justement parce que l’ordre représentatif qui la sous-tend me procède pas, ne
s’engendre pas de la représentation elle-même, mais du conatus, de sa vie même qui la nécessite et
la produit. Le secret le plus profonde de la force (et du pouvoir) de la superstition, c’est la force
même ou la puissance du conatus » BOVE, Laurent. La Stratégie du conatus...pg. 186
126
TTP, Prefácio, p. 5
127
“Portanto pertence à natureza do homem ser crédulo: é uma conseqüência direta de sua essência
desejante. E os homens não são supersticiosos porque possuem uma ideia confusa de Deus, eles
66

os homens presos a ideias inadequadas quanto a divindade, ignorantes das causas


necessárias de seus desejos e ações, escravos da crença em poderes soberanos, em
Deuses de vontades tirânicas e misteriosas.
Ocorre que as circunstâncias que nos causam medo e esperança são
instáveis e inconstantes. Espinosa, ainda no mesmo prefácio ao TTP, discorre
sobre como são inconstantes as paixões humanas. Se estão numa maré de
prosperidade os homens facilmente se tornam orgulhosos e presunçosos, no
entanto se alguma adversidade lhes ocorre rapidamente se põe a buscar e acreditar
nos mais absurdos, frívolos ou inúteis conselhos. Se algo lhes faz lembrar um bem
ou um mal, logo julgam tratar-se de um presságio e defronte de algo
incompreendido já põem-se a proclamar tratar-se de um prodígio dos deuses –
“inventam mil e uma coisas e interpretam a natureza da maneira mais
extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles.”128
Para estabilizar a instável superstição, para organizar os supostos
sinais de Deus, os imaginários presságios, para acalmar o medo instável de
qualquer mal futuro, o medo da cólera dos Deuses, ou para suportar a impotência
frente à imaginação da fortuna e da contingência, na busca por qualquer ordem
que explique a natureza, ainda que seja a dos desejos transcendentes dos Deuses,
os homens organizam-se em religiões. Sequência de ritos, cultos, símbolos, as

têm uma ideia confusa de Deus porque são supersticiosos. Assim, a religião não é a causa da
superstição, ela é o efeito.” SCALA, André. Espinosa, São Paulo: Estação liberdade, 2003, p.75
128
“Julgo que toda a gente sabe que é assim, não obstante eu estar convicto de que a maioria dos
homens se ignoram a si próprios. Não há, com efeito, ninguém que tenha vivido entre os homens
que não se tenha dado conta de que a maior parte deles, se estão em maré de prosperidade, por
mais ignorantes que sejam, ostentam uma tal sabedoria que até se sentem ofendidos se alguém lhes
quer dar um conselho. Todavia, se estão na adversidade, já não sabem para onde se virar, suplicam
o conselho de quem quer que seja e não há nada que se lhes diga, por mais frívolo, absurdo ou
inútil, que eles não sigam. Depois, sempre por motivos insignificantes, voltam de novo a esperar
melhores dias ou a temer desgraças ainda piores. Se acontece, quando estão com medo, qualquer
coisa que lhes faz lembrar um bem ou um mal por que já passaram, julgam que é o prenúncio da
felicidade ou da infelicidade e chamam-lhe, por isso, um presságio favorável ou funesto, apesar de
já se terem enganado centenas de vezes. Se vêem, pasmados, algo insólito, crêem que se trata de
um prodígio que lhes revela a cólera dos deuses ou do Númen sagrado, pelo que não aplacar com
sacrifícios e promessas tais prodígios constitui um crime aos olhos destes homens submergidos na
superstição e adversários da religião, que inventam mil e uma coisas e interpretam a natureza da
maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles. Tanto assim é,
que quem nós vemos ser escravo de toda espécie de superstições são sobretudo os que desejam
sem moderação os bens incertos. Todos eles, designadamente quando correm perigo e não
conseguem por si próprios salvar-se, imploram o auxílio divino com promessas e lágrimas de
mulher, dizem que a razão é cega porque não pode indicar-lhes um caminho seguro em direção às
coisas vãs que eles desejam, ou que é inútil a sabedoria humana; em contrapartida, os devaneios da
imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecem-lhes respostas divinas. Até julgam
que Deus sente aversão pelos sábios e que os seus decretos não estão inscritos na mente, mas sim
nas entranhas dos animais, ou que são os loucos, os insensatos, as aves, quem por instinto ou sopro
divino os revela.” TTP, Prefácio, p. 5 e 6.
67

religiões respondem ao anseio por um relacionamento com uma força superior,


capaz de estabilizar o medo da contingência. Com uma função instrumental e
também política, a religião estabiliza a superstição em crenças e práticas capazes
de alimentar a imaginação e estabelecer os termos práticos da obediência servil a
Deus ou aos Deuses129.
Mas a religião por si só, com suas práticas não é suficiente para
estabilizar as paixões próprias da superstição. É a teologia que dá à superstição e à
religião um arcabouço teórico, ainda que imaginativo, capaz de explicar, justificar
e assim perpetuar a obediência servil130. A teologia é o discurso imaginativo capaz
de inscrever no seio do campo político “razões” para a obediência, capaz de
dominar, não só os corpos, mas as mentes e os afetos, capaz de tecer os fios de
uma servidão consentida, espontânea131.
Vale salientar aqui que nosso filósofo nos escreve da Europa do
século XVII, tempo em que por toda parte as perseguições religiosas eram prática
corrente, fundamentalismos de toda ordem dominavam o cenário religioso e o
Tribunal do Santo Ofício queimava livros e hereges. O século XVII nasce sobre as
cinzas da fogueira no Campo de Fiori, em Roma, que, em 1600, queimara o
filósofo Giordano Bruno. Na própria Amsterdam, onde vivia nosso filósofo, anos
mais tarde, Uriel da Costa, por suas ideias e escritos é condenado à expulsão da
comunidade judaica e tem seus livros queimados. Tentando retratar-se é
condenado à flagelação e à humilhação pública. Desesperado Uriel se suicida em
seguida, em 1647. Espinosa tinha 15 anos quando Uriel se suicida e desde os 8

129
« D’où la fonction politique et, en ce premier sens, instrumentale, de la religion : stabiliser la
superstition et, pour cela, entourer une superstition particulière d’un appareil propre à donner à
celle-ci la plu grande puissance possible dans l’imagination du vulgaire. » BOVE, Laurent. La
stratégie du conatus... pg.189
130
“Oficiantes dos cultos, senhores da moralidade dos crentes e dos governantes, intérpretes
autorizados das revelações divinas, os sacerdotes buscam fixar as formas fugazes e os conteúdos
incertos das imagens e paixões. Oradores nos púlpitos, disputadores nas cátedras, teóricos nas
antecâmaras do poder, censores do pensamento e da palavra alheios, os teólogos realizam na teoria
o que os sacerdotes realiza2m na prática, reduzindo a fé a crendices e preconceitos.” CHAUÍ,
Marilena.A Nervura do real... pg.99
131
Vale transcrever os comentários de Marilena CHAUÍ: “Conseguir a obediência sem o
constrangimento da força bruta é obter a posse absoluta do outro. E a teologia sabe que a
verdadeira tirania não é aquela que se exibe pelo ferro e pelo fogo, mas aquela que consegue
alcançar a universalidade e a homogeneidade do espaço social e político, os corações e as mentes.
Essa autoridade não quer a obediência obrigada, pois esta não a legitima: aspira pela obediência
desejada e consentida; busca a submissão que se suprimiu como obediência porque já deixou de
ser sentida como obediência. Não é surpreendente que, no campo teológico-político e no campo
teológico-metafísico, a liberdade só possa manifestar-se como insubordinação e revolta, como
pecado e heresia.” CHAUÍ, Marilena. “Política e profecia”, in Política em Espinosa, São Paulo:
Companhia das letras, 2003, pg. 13/14.
68

anos, como toda a comunidade judaica de Amsterdam, acompanhava esta história


de perseguição, excomunhão, flagelos e humilhações, perpetrados sempre em
nome de Deus e da Lei divina132. Podemos, ainda, citar o caso de Adrian
Koerbagh, amigo de Espinosa, que teve os livros condenados, foi preso, torturado
e morto pelo Sínodo Calvinista gomarista de Amsterdã, nos lembrando da
contribuição da Reforma à intolerância católica e judaica.
No clima de medo e intransigência, censuras e dominação teológica
daqueles tempos na Europa, Giordano Bruno, Uriel da Costa e Adrian Koerbagh
não foram casos isolados, mas expoentes de um modus operandi das religiões que,
sobre a superstição de seus fiéis, impunham a obediência servil. O próprio
Espinosa não passará ileso pelo poder teológico: em 1656, por suas ideias e
escritos nosso filósofo é expulso da comunidade judaica de Amsterdam onde
nascera e vivera, por um herem cheio de maldições133. Ao tratar do poder
teológico nosso filósofo está a tratar de uma questão central em seu tempo, um
entrave à liberdade de pensar, e uma forma de servidão que, se naquele tempo era

132
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, uma filosofia da liberdade, 1ª Ed. São Paulo: Ed. Moderna, 1995,
pg. 19/20.
133
Texto do herem pronunciado contra Espinosa em 27 de julho de 1656: “Com a ajuda do
julgamento dos santos e dos anjos, excluímos, expulsamos, maldizemos e execramos Baruch de
Espinosa, com o consentimento de toda a santa comunidade, na presença dos Santos Livros e dos
613 mandamentos que eles encerram. Formulamos este herem assim como Josué excomungou
Jericó. Nós o maldizemos Elias maldisse seus filhos e com todas as execrações que se encontram
na Lei. Que seja maldito de dia, que seja maldito de noite; que seja maldito durante o sono e
durante a vigília. Que seja maldito ao entrar e ao sair. Queira o Eterno nunca mais perdoar-lhe.
Queira o Eterno acender contra este homem toda a Sua cólera e lançar sobre ele todos os males
mencionados no Livro da Lei; que seu nome seja apagado deste mundo e para sempre, e que se
compraza Deus em separá-lo de todas as tribos de Israel, infligindo-lhe todas as maldições
encerradas na Lei. E vós, que restais fiéis ao Eterno, vosso Deus, que Ele assim vos conserve em
vida. Sabeis que não deveis ter (com Espinosa) qualquer contato, escrito ou verbal. Que não lhe
seja prestado nenhum auxílio e que ninguém se aproxime dele mais do que quatro côvados. Que
ninguém more debaixo do mesmo teto que ele e que ninguém leia seus escritos.” LUCAS, Jean-
Maximilien. A vida e o espírito de Baruch de Espinosa. Tratado dos três impostores, São Paulo:
Martins Fontes, 2007, pg. 58.
Alguns biógrafos assinalam, no entanto, que nosso filósofo poderia ter escapado das maldições e
da expulsão da comunidade se assim o quisesse. Bastaria a Spinoza uma retratação pública, o
pagamento de suas dívidas com a comunidade, a mudança de alguns hábitos e a contenção nas
críticas a teologia judaica que poderia ter permanecido na comunidade em que crescera. No
entanto, supomos que o filósofo já não cabia em sua vida de mercador. Os negócios da família já
lhe eram enfadonhos, as pressões da comunidade já lhe tolhiam a liberdade de pensar e, como
narra o seu Tratado da emenda do intelecto, Spinoza, por certo, já percebera que o sumo bem não
estava em riquezas, prazeres e glórias. Neste sentido: LUCAS, Jean Maximilien. “A vida do
senhor Baruch Espinosa, por um de seus discípulos”, em A vida e o espírito de Baruch de
Espinosa – tratado dos três impostores, Martins Fontes, São Paulo, 2007, pp. 32-37, ISRAEL,
Jonathan. Les lumières radicales – La philosophie, Spinoza et la naissance de La modernité (1650
– 1750), Paris : Éditions Amsterdam, 2001, p. 210. E ainda, sobre o caráter auto-biográfico ou não
do Tratado da emenda do intelecto ver: SCALA, André. Espinosa, ed. Estação Liberdade, coleção
Figuras do saber, vol. 5, São Paulo, 2003, pp. 30-41
69

capaz de condenar ao isolamento e ao flagelo os próprios corpos dos supostos


hereges, ainda hoje pode aprisionar e limitar corpos e mentes134.
No entanto, se com a análise da teologia Espinosa encontra a
fundamentação das perseguições religiosas com que se deparava em seu tempo,
uma outra realidade da Europa do sec. XVII vai encontrar também sua estrutura
no discurso teológico da obediência servil: é o arquétipo do poder teológico que
fundamenta a experiência da soberania transcendente do poder político135.
Mais uma vez o contexto histórico nos é útil para a compreensão do
alcance e anomalia136 das teses de Espinosa. O pensamento político da Europa do
século XVII ainda encontra-se banhado de conceitos e influências acerca da
compreensão do poder e do Estado estabelecidos nos dois séculos anteriores. O
pensamento medieval com sua fundamentação teológica do poder e teorias sobre
o direito divino dos monarcas ainda ressoava na Europa do XVII137. A
aproximação entre o poder de Deus e dos governantes, a influência das Igrejas e a
secularização da política eram ainda temas recentes e em disputa.
Por um lado, pensadores como La Boétie e Maquiavel, no século XVI,
já defendiam a origem secular do poder político e seu exercício legitimado por
argumentos não teológicos. O Humanismo e os ideais e críticas da Reforma já

134
Voltaremos ao tema da intolerância no Cap. 4, tratando do tema sob a ótica da mecânica afetiva
descrita por Espinosa na E IV, a imitação dos afetos e o critério de semelhança das “coisas
semelhantes a nós”.
135
Trabalhamos aqui com o termo soberania para designar qualquer forma de instituição do poder
político fundada no discurso da transcendência entre governantes e governados, da apropriação da
potência da multidão por interesses particulares dos governantes, do enclausuramento do poder
constituinte em símbolos, práticas e discursos de obediência servil a um poder constituído.
Neste sentido: “Quando o poder constituinte desencadeia o processo constituinte, toda
determinação é liberada e permanece livre. A soberania, ao contrário, apresenta-se como fixação
do poder constituinte, como termo deste, como esgotamento da liberdade de que ele é portador...”
NEGRI, Antonio. O poder constituinte...p.37
E ainda: “Existe, portanto, no âmago do conceito de soberania uma tendência à superação da
dinâmica social fundada na experiência da multiplicidade, visando à construção de uma unidade
que supere os dissensos inerentes a qualquer espaço social plural. Portanto o conceito de soberania
se orienta para a construção da unidade...” GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da
imanência...p. 253
Sobre a construção do conceito de soberania em suas diversas vertentes, e seu papel no
pensamento jurídico-político moderno, ver ainda Heller, Herman. La soberaría – contribución a la
teoria del derecho estatal y del derecho internacional. Universidad Nacional Autónoma de
México e Fondo de cultura económica, Cidade do México, 1995.
136
O termo anomalia para adjetivar a obra de Espinosa é de Antonio Negri em: NEGRI, Antonio.
A anomalia selvagem – poder e potência em Spinoza, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
137
“Yet we must bear in mind that in political theory many of the medieval arguments and
methods subsisted until the eighteenth century. In some form or other the discussion of theories of
Divine Right lasted a thousand years; while, as we have seen, many of notions we regard as
modern can be traced back to the medieval world, or even earlier.” FIGGIS, John Neville. Political
Thought from Gerson to Grotius 1414-1625, New York: Harper & Brothers, 1960, p. 26/27.
70

ressoavam pela Europa, entre os séculos XVI e XVII, construindo uma concepção
do campo político como distinto dos argumentos transcendentes do sagrado e do
direito divino. Até mesmo o poder da própria Igreja católica, desde o movimento
conciliarista, é objeto de disputas acirradas sobre a origem e limitação ao poder do
Papa e o papel dos Concílios138.
No entanto, se o pensamento político europeu chega ao XVII já
questionando a relação entre teologia e política, a extensão do poder da Igreja e
buscando afirmar a fundamentação secular do poder; por outro lado a superstição
e o discurso teológico imaginativo acerca da soberania ainda estão vivos e
presentes na práxis da religiosidade e da obediência política, nos radicalismos e
perseguições religiosas e na legitimação do poder soberano139. Ainda que na
Holanda de Espinosa se experimente o ambiente de maior tolerância religiosa da
Europa na época, e uma anomalia republicana que será derrubada em 1672 com a
revolta que assassina os irmão de Witt e restitui a monarquia da casa de Orange, é
fundamental ter em mente que o século em que escreve nosso filósofo é o berço
dos estados absolutistas na Europa140. Como encarnações deste ideário absolutista
podemos citar os Tudor na Inglaterra do XVI e os reis de Castela e Aragão, na
Espanha do XVI. E, como seu exemplo mais inquestionável, podemos citar que é
em 1643 que sobe ao trono da França aquele que será tido pela história como o
maior exemplo do ideário absolutista: Luis XIV, o rei-sol.
Ao tratar do poder teológico-político Espinosa não se refere apenas a
uma experiência histórica, que estaria restrita ao Estado teocrático Hebraico, ou a
divergências acerca da interpretação das Escrituras, mas nosso filósofo está a

138
Escapa aos limites desse trabalho uma análise detalhada do pensamento político e teológico
deste período, sobre o tema remetemos o leitor às seguintes obras: Skinner, Quentin. As fundações
do pensamento político moderno, São Paulo: Companhia das letras, 1996. FIGGIS, John Neville.
Political Thought from Gerson to Grotius 1414-1625, New York: Harper & Brothers, 1960.
139
“É verdade que a revolução humanista já atacou fortemente essa legitimação medieval do
poder. Mas não a erradicou: de modo que ela se reproduz, não tanto como legitimação do poder
quanto como superstição e conservação, irracionalidade e bloqueio. Como obscurantismo”
NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem...pg. 135.
140
Sobre a Holanda do século XVII vale destacar que sua anomalia frente aos seus vizinhos
europeus se destaca não só pela maior tolerância religiosa e liberdade de filosofar, como pela
forma de organização política ( republicana até 1672 e posteriormente uma monarquia
constitucional com a ascensão da Casa de Orange), assim também pela economia que desenvolve
um capitalismo mercantil ainda incipiente no resto da Europa. É em Amsterdã que se instala,
neste período, a primeira bolsa de valores com pregão permanente, assim como é também nas Sete
Províncias que funcionam o maior banco europeu e o maior centro mundial de lapidação de
diamantes. Sobre o tema remetemos o leitor às seguintes obras: NEGRI, Antonio. Anomalia
Selvagem...,e CHAUÍ, Marilena. Espinosa: uma filosofia da liberdade...
71

tratar de uma realidade de seu tempo, de um debate que ainda está vivo no XVII, e
cuja vizinhança do absolutismo torna-o uma ameaça constante à liberdade141.
O discurso da teologia, que no campo religioso fundamenta a crença
num Deus antropomórfico e transcendente, na política sustenta os poderes
soberanos de um governante que é ele próprio representante de Deus, imago dei, e
senhor de vontades insondáveis. O inesperado da fortuna ganha na política os
contornos das motivações do poder, inalcançáveis aos olhos do vulgo, das “razões
de estado”, do juízo sempre acertado e inquestionável daquele que exerce o poder.
Do temor a Deus ao temor ao governante, o arquétipo do poder teológico-político
leva para a relação entre governante e governados a mesma obediência servil
instaurada entre a divindade e seus fiéis142.
Aqui é preciso uma ressalva: para Espinosa não é a política que é a
secularização da teologia, não há uma precedência do imaginário teológico sobre
a instituição do campo político. Pelo contrário, é a teologia e a religião que são a
sacralização da política, que atribuem à política a imagem da soberania
transcendente143.
Teologia e política tem um vínculo visceral e Espinosa identifica que
toda teologia é política144. No entanto, o inverso não é verdadeiro, a política em
Espinosa não se restringe a esta manifestação servil da teologia145. A política,

141
É pertinente destacar a reflexão sobre a atualidade do debate sobre a relação entre teologia e
política. Quando a ideia de terrorismo se legitima por diferenças religiosas e uma satanização
daqueles que são de outra religião, quando a explicação de atos de guerra se funda em diferenças
religiosas, ou ainda quando se organiza no nosso Congresso Nacional toda uma bancada de
políticos, unidos pelos ideais e interesses religiosos comuns, é fundamental termos em conta o
quanto teologia e política podem ainda estar imbricados, e o quanto ainda nos é útil, portanto,
voltarmos a reflexão espinosana acerca do poder da imaginação e da superstição religiosa no
campo político. Sobre a atualidade do tema do poder teológico-político remetemos o debate a
CHAUÍ, Marilena. “O retorno do Teológico-político” in Cardoso, Sergio (org.). O retorno ao
republicanismo, Belo Horizonte: UFMG, 2004.
142
“Essa representação parece baixar do céu à terra. O mesmo desejo de submissão a um poder
uno e soberano, porque transcendente à fragmentação dos conflitos que dilaceram a sociedade e a
política, produz entre os homens uma relação que os conduzirá, ao fim e ao cabo, a submeterem-se
ao poder misterioso dos governantes. Com o advento dos arcana imperii – segredos do poder ou
“razão de Estado” – os homens, afinal, “combatem para a servidão como se esta fora a salvação”.
Na realidade, porém, e Espinosa não se cansa de repeti-lo, essa representação subiu da terra ao
céu.” CHAUÍ, Marilena. “Sobre o medo” in Os sentidos da paixão... pg.64
143
“Na realidade, porém, e Espinosa não se cansa de repeti-lo, essa representação subiu da terra
ao céu – a política não é a religião ou teologia secularizada; ao contrário, a religião e a teologia
são a política sacralizada.” CHAUÍ, Marilena. O retorno do Teológico-político...,
144
“Teológico e político são termos intercambiávieis” NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem...
pg. 135.
145
É na relação entre teologia e política que é possível estabelecer um ponto de comparação, ou
melhor de confronto, entre o pensamento de Espinosa e o pensamento de Carl Schmitt. Retomado
por alguns pensadores contemporâneos, Carl Schmitt, teórico da política nazista, toma a teologia
72

imanente ao corpo político, pode assumir outras formas e outras instituições,


sendo, inclusive, a democracia sua forma mais natural, como veremos a
seguir146.O poder político para Espinosa não transcende a potência da multidão,
mas é sua expressão imanente. Permanece nas mãos da multidão a potência de
instituir a liberdade ou aprisionar-se sob o poder de um tirano.
Já a teologia é uma forma imaginativa de fundamentar a obediência
calcada na servidão e na soberania de um poder transcendente, seja um Deus ou
um monarca. E, neste sentido, o arquétipo teológico é a mais perniciosa das
formas de se pensar o político. Ao impossibilitar a expressão dos conflitos sociais
imanentes ao corpo político, ao estabelecer a intolerância e o medo como
principais ingredientes da obediência, o arquétipo teológico da soberania
transcendente é imaginação, discurso delirante calcado em paixões tristes, num
sistema de medo que, no entanto, produz realidade, produz servidão e tirania.
Assim, num “paradoxal desejo de servidão147”, os homens são levados
pelo discurso teológico a acreditarem que sua própria liberdade está em servir aos
interesses de um soberano transcendente. A obediência servil, nas palavras de
Espinosa, constitui-se no esforço dos homens por “combaterem pela servidão
como se fosse pela salvação148”. No entanto, no Tratado teológico-político
Espinosa se limita a demonstrar a construção imaginativa da servidão pelo
discurso transcendente da teologia, é na Ética que a mecânica afetiva do desejo
evidenciará a servidão como paradoxal esforço pela liberdade e pela alegria.
Chegaremos à análise mais pormenorizada do tema em nosso último capítulo, por

como modelo para pensar a política. No entanto, vale dizer que enquanto para Espinosa “toda
teologia é política, para Schmitt toda política é teológica”. Excede os limites deste trabalho uma
análise da obra de Carl Schmitt e mesmo de seu confronto com o pensamento de Espinosa, sobre o
tema remetemos o leitor a: CHAUÍ, Marilena. Retorno ao teológico-político... e ainda
GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência..., de onde citamos: “Sua proposta, sem
dúvida, envolve um certo retorno às origens teológicas do poder soberano, fundando-se no
conceito personalista de decisão excepcional. No entendimento de Schmitt, a política é teológica,
possuindo pleno sentido apenas se considerada de tal perspectiva.” Pg. 353.
146
No capítulo seguinte nos dedicaremos à análise da constituição do campo político em Espinosa
e estudaremos mais detidamente a organização do poder político como imanente à potência da
multidão, possíveis desenhos institucionais de regimes políticos propostos por nosso filósofo, a
democracia intrínseca à concepção espinosana de poder político, além de alguns outros temas
correlatos.
147
O termo é de BOVE, Laurent. Stratégie du conatus...
148
“Se, efetivamente, o grande segredo do regime monárquico e aquilo que acima de tudo lhe
interessa é manter os homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de religião, o medo em
que devem ser contidos para que combatam pela servidão como se fosse pela salvação e acreditem
que não é vergonhoso, mas sumamente honroso, derramar o sangue e a vida pela vaidade de um só
homem ...” TTP, prefácio, pg. 8
73

ora, no campo afetivo, ainda dentro do tema da soberania que se funda na


superstição e na imaginação, que segue o arquétipo teológico-político, vamos
analisar o sistema do medo que prende, na soberania, governantes e governados
na tristeza e na servidão.

2.2

O sistema do medo149.

“Além disso, no vulgo não há meio-termo, se não teme é terrível, pois a liberdade e
a servidão não se misturam com facilidade.”
TP, cap 7, parágrafo 27

Transposto para o campo político o discurso da soberania


transcendente funda um regime de medo recíproco entre governantes e
governados. A plebe teme seu governante cujas vontades insondáveis administram
bens e males, recompensas e castigos, segundo “razões de Estado” que lhes são
completamente desconhecidas. Já o governante teme seu povo. Atribuindo
somente a plebe vícios próprios a todos os homens, e ciente da potência da
multidão como causa e limite de todo o poder político, o soberano teme seus
súditos: urbe de vulgos instáveis e inconstantes.
Comecemos pelo medo que subordina os súditos aos decretos
transcendentes do poder soberano. O registro teológico de um Deus de vontades e
razões insondáveis, a superstição que cria e conserva os arcana - arcana Naturae
e arcana Dei, mistérios da Natureza e de Deus - no campo político envolve as
decisões do soberano nos arcana imperii, os segredos do poder150. Transcendente
ao campo social, o soberano governa segundo uma lógica própria, segundo
“razões de Estado” que não chegam ao conhecimento dos súditos. Ignorantes dos
assuntos do Estado os súditos temem o que não conhecem.
Sujeita aos efeitos de decisões políticas, fundamentadas num saber
exclusivo do governante, a plebe sente-se imersa na contingência. Uma vontade
que impõe a obediência pelo medo e não pelas razões da necessidade, configura-

149
O termo sistema do medo é de Marilena Chauí, Política em Espinosa... pg. 280.
150
“A superstição cria e conserva os arcana: arcana Naturae e arcana Dei, mistérios da Natureza
e de Deus, de onde nascem os arcana imperii, os segredos do poder. Agora, sim, a superstição
imagina-se um saber. Ignorância vestida de conhecimentos, a superstição julga-se saber secreto
reservado aos iniciados, espalhando medo e loucura.” CHAUÍ, Marilena. “Sobre o medo” ... p.62
74

se em servidão. A mesma mecânica afetiva da superstição, que envolve os homens


na submissão a um Deus antropomórfico, expressa-se no campo político na
obediência a um poder soberano de motivos insondáveis, que impõe castigos e
recompensas, leis e impostos, e ancora seu poder no medo de seus súditos,
reduzidos a escravos, numa relação de tirania e servidão.
Já vimos como o medo à fortuna, à contingência leva ao medo a um
Deus antropomórfico e deste ao medo supersticioso dos teólogos: do medo da
Natureza ao medo do humano. Os teólogos inspiram o medo ao herege, ao
pecador, à heterodoxia, o medo ao humano torna-se instrumento de divisão social
e fundamento da obediência. Enfim do medo ao teólogo ao medo ao governante,
os mistérios do poder e da lei mantém a plebe subordinada pelo medo do
desconhecido, medo da contingência, solidão151.
Espinosa diz que o medo não funda propriamente uma sociedade
política, mas na desconfiança recíproca entre os cidadãos e no temor entre
governantes e governados o medo instaura a solidão:

Da cidade cujos súditos, transidos de medo, não pegam em armas, deve


antes dizer-se que está sem guerra do que dizer-se que tem paz. Porque a
paz não é ausência de guerra, mas virtude que nasce da fortaleza de ânimo:
a obediência, com efeito, é a vontade constante de executar aquilo que, pelo
decreto comum da cidade, deve ser feito. Além disso, aquela cidade cuja
paz depende da inércia dos súditos, os quais são conduzidos como ovelhas,
para que aprendam só a servir, mais corretamente se pode dizer uma solidão
que uma cidade. TP, cap. 5, parágrafo 4.

E, assim como a superstição e a crença num Deus transcendente


materializa-se na obediência a ritos, cultos e práticas próprios da religião, a
soberania se envolve também de símbolos e práticas que afirmem na imaginação
delirante da plebe a sua transcendência. Fardas, medalhas, quadros e palavras de
ordem formam um espetáculo de afirmação do poder transcendente e uma

151
“Num jogo de espelhos infindável, o medo à Natureza se espelha no medo à Fortuna que se
reflete no medo à divindade, que repõe o medo à Natureza por meio do medo às autoridades
humanas. O medo ao divino, invisível ou visualizado pelos ritos, sob os efeitos da divisão social e
política, cria na imaginação religiosa dos crentes o medo ao teólogo e, neste, o medo da
heterodoxia e dos rivais. O medo ao humano, sob os efeitos da divisão social e política, cria na
imaginação política dos dominados o medo ao governante e, neste, o medo à plebe. Fundada no
medo recíproco nasce a Cidade como “rebanho tangido e feito para servir”. Solidão.” CHAUÍ,
Marilena. Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa...p. 161
75

simbologia da tirania. A arte e a historiografia a serviço do soberano erguem na


própria história e identidade da multidão o cenário e a justificativa da servidão152.
O temor da plebe ao seu governante segue o arquétipo teológico do
poder transcendente e da obediência servil. Já o temor do soberano ao seu próprio
povo tem uma mecânica mais complexa. Por um lado o soberano teme a plebe
pois a ela atribui paixões e vícios de insolência e inconstância que, nosso filósofo
o demonstrará, são, na verdade, próprios de qualquer homem vulgar. Por outro
lado, o soberano teme sua plebe por estar cônscio de que seu poder encontra
limites intransponíveis no direito natural da multidão. Analisaremos a seguir cada
um desses aspectos.
O movimento imaginativo que faz o soberano temer a plebe por
reconhecer nela, e atribuir-lhe, como exclusivos, afetos que são próprios de todos
os homens, Espinosa não o descreve detalhadamente no Tratado Teológico-
político. É no parágrafo 27 do capítulo 7 do Tratado Político que encontraremos a
argumentação onde nosso filósofo demonstra como são de qualquer homem
vulgar, e não só da plebe, os vícios temidos pelo soberano. Vale a pena aqui
transcrever o citado texto:

Talvez isso que escrevemos dê vontade de rir aos que restringem só à plebe
os vícios que são inerentes a todos os mortais, a saber, que no vulgo não há
meio-termo, que é terrível se não teme, e que a plebe ou serve
humildemente ou domina sobranceiramente, que é alheia à verdade e ao
juízo, etc.; a verdade é que a natureza é só uma e é comum a todos. Mas nós
somos enganados pela potência e pela cultura, e daí o dizermos muitas
vezes, quando dois indivíduos fazem a mesma coisa, que a um deles é lícito,
e ao outro não, faze-la impunemente, não por ser diferente a coisa, mas
quem a faz. A soberba é própria de quem domina. Se os homens se enchem
de soberba com uma designação por um ano, o que será com os nobres, que
ostentam honrarias perpétuas! A arrogância destes, porém, reveste-se de
fausto, de luxo, de prodigalidade, de uma certa conjugação de vícios, de
douta tolice e de elegância na depravação, de tal maneira que vícios
repugnantes e torpes, se olhados um por um, pois nessa altura sobressaem
maximamente, aparecem aos inexperientes e ignorantes como coisas
honestas e dignas. Além disso, no vulgo não há meio-termo, se não teme, é
terrível, pois a liberdade e a servidão não se misturam com facilidade.
Finalmente, não é para admirar que não exista na plebe nenhuma verdade
ou juízo, quando os principais assuntos de estado são tratados nas suas
costas e ela não faz conjecturas senão a partir das poucas coisas que não
podem ser escondidas. Suspender o juízo é, com efeito, uma virtude rara.
Querer, portanto, tratar de tudo nas costas dos cidadãos e que eles não
façam sobre isso juízos errados nem interpretem tudo mal é o cúmulo da

152
Retomaremos o tema da afirmação da obediência servil na imaginação da multidão no último
capítulo.
76

estupidez. Com efeito, se a plebe pudesse moderar-se e suspender o juízo


sobre coisas que conhece mal, ou julgar corretamente a partir do pouco que
conhece, seria sem dúvida mais digno ela governar em vez de ser
governada. Mas, como dissemos, a natureza é a mesma para todos. Todos se
enchem de soberba com a dominação, se não temem, são terríveis, e em
toda a parte a verdade é, maioria das vezes, deformada pelos que lhe são
hostis ou são culpados, principalmente onde domina um só, ou poucos, que
não olham nos processos judiciais ao direito e à verdade, mas à extensão das
153
riquezas.

Entre o Tratado Teológico-político e o Tratado Político Espinosa


termina de escrever sua maior obra, a Ética, e é de lá que tira o mote que norteia
sua análise dos afetos atribuídos à plebe: “a natureza é uma e a mesma em todos
os homens”. Nosso filósofo combate os preconceitos reservados à plebe
afirmando que o que governantes e teóricos da servidão enxergam como vícios
exclusivos da plebe, e que a fazem temida, são, na verdade, afetos de todo e
qualquer homem vulgo. A diferença entre os termos plebe e vulgo possibilita a
generalização daquilo que alguns atribuem só à plebe, e a afirmação de que
qualquer homem vulgar, nas condições de medo e servidão reservadas à plebe,
teria os mesmos afetos e comportamentos temíveis aos olhos do soberano.
A relação própria do sistema do medo, Espinosa a desloca da oposição
política entre soberano x plebe, para a oposição entre vulgo x douto154. Os vícios e
paixões capazes de tornar qualquer homem temível aos olhos dos demais não
decorrem da condição política de governantes ou governados, mas da
incapacidade do vulgo de refrear suas paixões. E, neste sentido, os dominadores
são tão, e até mais, temíveis que qualquer outro homem155. A dominação enche de
soberba aquele que a exerce e torna-o sujeito dos afetos e vícios mais nocivos ao
convívio com os outros homens, “pois os soberbos estão submetidos a todos os

153
TP, cap. 7, parágrafo 27, pg. 80/81.
154
“Para compreendermos o terceiro movimento do texto, precisamos relembrar que, como já
observamos, o uso espinosano dos termos plebs e vulgus aproxima e distancia Espinosa de seus
contemporâneos. Aproxima porque, como seus contemporâneos, Espinosa emprega plebs com
sentido eminentemente político – é aquela parte povo que, numa monarquia ou numa aristocracia,
não é detentora do imperium -, enquanto vulgus tende a opor-se a doctus na relação com a arte e o
saber – o vulgar é aquele que segue espontaneamente seu ingenium e seus impulsos naturais,
enquanto o douto guia-se pela razão e pelo studium, ou, se se quiser, a diferença se estabelece
entre o bruto e o cultivado.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg.280.
155
“Ora, a natureza é comum e a mesma em todos. Se as paixões são nossa ‘maneira humana de
viver’, não há como distinguir plebe e grandes. Nesse momento, porém, Espinosa introduz um
‘contudo’, iniciando a virada da análise ao passar à relação sócio-política fundada no logro: “nós
nos deixamos enganar”. Donde a conclusão: insolentes são os grandes. Se, ao iniciar o texto,
vemos a plebe com o olhar dos poderosos, agora nós os vemos com os olhos dela.” CHAUÍ,
Marilena. “Sobre o medo”...pg.67
77

afetos, embora não haja nenhum outro a que estejam menos submetidos do que
aos afetos do amor e da misericórdia.”156
Ainda seguindo o mote de que “a natureza é a mesma para todos”
Espinosa afirma serem os dominadores, e não os dominados, os mais sujeitos às
paixões e vícios vulgares, capazes de fazê-los temíveis aos olhos da plebe.
Invertendo o raciocínio dos moralistas e daqueles que “restringem só à plebe os
vícios que são inerentes a todos os mortais”157, nosso filósofo apresenta na figura
dos soberanos, aqueles que, com a dominação, se enchem de soberba: os que “se
não temem, são terríveis”158.
Num governo sustentado pela obediência servil e pela soberania
transcendente, a plebe resta alijada da participação nas decisões políticas, e
desconhecendo as “razões de estado” que determinam as ordens e regras a que
deve obediência, assim como qualquer homem vulgo, está mais sujeita à
inconstância e revolta. O que torna a plebe temível aos olhos do soberano é a
mesma mecânica que sustenta a própria soberania, ou seja, a transcendência entre
o exercício do poder político e seus súditos159. A plebe, movida pelo medo, oscila
entre paixões capazes de ameaçar a própria constituição do político porque é
mantida na ignorância das causas de sua instituição e de suas determinações. O
esquema imaginativo que envolve de mistério as decisões do poder soberano
mantém a plebe na condição de vulgo frente os arcana imperii, e seus
julgamentos longes da verdade e da razão.
Assim, sendo as mesmas as paixões inerentes a todos os homens,
Espinosa faz decorrer da própria organização do poder soberano as causas das
paixões e vícios atribuídos somente à plebe. São os segredos de estado, as
decisões imotivadas, fundadas nos mistérios e na suposta sabedoria transcendente
dos governantes, que condenam os súditos à ignorância e às paixões temíveis aos
olhos do soberano. Nosso filósofo já enunciara no capítulo 5, parágrafo 2 do
mesmo Tratado Político:

156
E IV, prop. 57, escólio. Espinosa discorre na Parte IV da Ética acerca da soberba. Voltaremos
ao tema quando analisarmos a servidão que não se restringe a forma do político mas que perpassa
o campo social no nosso capítulo 4.
157
TP, cap. 7, parágrafo 27.
158
TP, cap. 7, parágrafo 27.
159
“A primeira expressão indica que, se a plebe deforma e perverte o sentido das ações e decisões
governamentais, isso se deve a uma perversão do próprio regime que, deixando os cidadãos na
ignorância, ainda espera que saibam julgá-lo corretamente.” CHAUÍ, Marilena. Política em
Espinosa... pg.282.
78

É, com efeito, certo que as revoltas, as guerras e o desprezo ou violação das


leis não são de imputar tanto à malícia dos súditos quanto à má situação do
estado. Porque os homens não nascem civis, fazem-se. Além disso, os
afetos naturais humanos são em toda a parte os mesmos. Assim, se numa
cidade reina mais a malícia e se cometem mais pecados do que noutra, é
seguro que isso nasce de essa cidade não providenciar o bastante pela
concórdia nem instituir os direitos com suficiente prudência e,
consequentemente, não manter o direito de cidade absoluto.160

E, se decorrem da própria transcendência do exercício do poder


político os afetos sediciosos atribuídos à plebe, a contrario sensu encontramos aí
uma das razões da afirmação espinosana da superioridade da democracia frente a
todos os outros regimes políticos. Desenvolveremos mais a frente nesse trabalho,
com maiores detalhes e atenção, as ideias de nosso filósofo acerca da democracia
e sua concepção intrinsecamente democrática acerca do poder políticos. No
entanto, aqui já podemos ver porque a democracia é o regime capaz de constituir
um estado mais estável e seguro. Somente quando os cidadãos participam das
decisões políticas eles estão mais próximos do conhecimento racional e
obediência livre, e menos propensos às paixões insurrecionais, às sedições e à
revolta. Uma obediência menos fundada no medo e na superstição é propiciada
por instituições que assegurem a participação dos cidadãos nos assuntos públicos.
Neste sentido, diz Espinosa no cap. 9, parágrafo 14 do Tratado
Político:
Porque se é verdade que enquanto os romanos deliberam Sagunto perece,
também é por outro lado verdade que, se forem poucos a decidir tudo de
acordo apenas com o seu afeto, perece a liberdade e o bem comum. Os
engenhos humanos são, com efeito, demasiado obtusos para que possam
compreender tudo de imediato; mas consultando, ouvindo e discutindo, eles
aguçam-se e, desde que tentem todos os meios, acabam por encontrar o que
querem, que todos aprovam e em que ninguém mais havia pensado antes.161

Retomando uma visão democrática que já encontramos na ideia


maquiaveliana de que “La moltitudine è piu savia e piu constante che uno

160
TP, cap. 5, parágrafo 2.
161
TP, cap. 9, parágrafo 14. Vale aqui a ressalva que o trecho citado se encontra num capítulo
destinado por Espinosa ao estudo da melhor forma institucional de se organizar um regime
aristocrático e aquele de um estado composto de várias urbes. Não trataremos aqui ainda dos
desenhos institucionais propostos por Espinosa no TP, assunto de nosso capítulo seguinte, apenas
trouxemos o trecho acima para ilustrar a importância da participação dos cidadãos nas decisões
políticas para a própria liberdade e segurança do estado.
79

príncipe”162, Espinosa encerra sua argumentação acerca do medo do soberano à


plebe, no já citado parágrafo 27 do capítulo 7 do Tratado Político, com a
desafiadora ideia de que “se a plebe pudesse moderar-se e suspender o juízo sobre
coisas que conhece mal, ou julgar corretamente a partir do pouco que conhece,
seria sem dúvida mais digno ela governar em vez de ser governada.”163 É a
democracia o regime em que o medo menos transpassa o campo social, onde os
afetos de sedição e revolta estão menos presentes, e onde a paz e a segurança
estão melhor garantidas.
No entanto, não são apenas os afetos, próprios de todos os homens,
que determinam o medo do soberano a seu próprio povo. É na exposição, já no
Tratado Teológico-Político, e que se aperfeiçoa na Ética e no Tratado Político,
sobre a instituição do campo político e a relação entre direito natural e direito civil
que Espinosa identifica o fundamento do limite e do temor do poder do soberano.
A instituição da cidade não é o fim ou a abstração do direito de
natureza de cada cidadão, pelo contrário, o direito civil é expressão imanente do
direito natural da multidão. Espinosa nos apresenta uma concepção de direito
como potência, em que o direito existe sempre em exercício, não é uma
capacidade que pode ou não realizar-se, mas existe sempre em ato164. Tantum
juris quanto potentia é a frase de Espinosa que identifica o direito natural de cada
homem ao seu conatus, ao esforço de cada um por perseverar na existência, à
expressão singular da potência divina de existir165.

162
“A multidão é mais sábia e mais constante que um príncipe”, MAQUIAVEL, Nicolau.
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, São Paulo: Martins Fontes, 2007, Livro
Primeiro, 58
163
TP, cap. 7, parágrafo 27. “Sob esse aspecto, o elogio a MAQUIAVEL, que perpassa as páginas
do tratado, transparece com clareza porque Espinosa faz sua a afirmação do florentino nos
Discorsi: “La moltitudine è piu savia e piu constante che uno príncipe”, devendo, contra a opinião
de Tito Lívio, participar do governo.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg. 288.
164
“D’une façon générale, l’idée d’un droit “théorique”, conçu comme une capacite à agir,
susceptible d’être ou non reconnue et exercée, est une absurdité ou une mystification.” Bailibar,
Etienne. Spinoza et la politique, 2ªed., Paris: PUF, 1990, pp. 73/74
165
“O direito natural é portanto, neste caso, definido como expressão da potência e construção da
liberdade. Imediatamente. Se a potentia metafísica havia sido até aqui conatus físico e cupiditates
vitais, ela é agora reinterpretada e concebida como jus naturale. A imediaticidade e a totalidade
dessa função jurídica excluem toda mediação e só admitem deslocamentos procedentes da
dinâmica interna das cupiditates.” NEGRI, Antonio. Verbete “SPINOZA, Baruch – Tratado
Político” em CHÂTELET, François et alli (org.) Dicionário de obras políticas, Ed. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1993. Sobre o tema do conatus remetemos o leitor ao nosso capítulo 1
onde analisamos os principais conceitos da ontologia espinosana e o esforço singular de perseverar
na existência que constitui a essência de tudo o que existe.
80

É, com efeito, evidente que a Natureza, considerada em absoluto, tem


direito a tudo o que está em seu poder, isto é, o direito da Natureza estende-
se até onde se estende a sua potência, pois a potência da Natureza é a
própria potência de Deus, o qual tem pleno direito a tudo. Visto, porém, que
a potência universal de toda a Natureza não é mais do que a potência de
todos os indivíduos em conjunto, segue-se que cada indivíduo tem pleno
direito a tudo o que está em seu poder, ou seja, o direito de cada um
estende-se até onde vai a sua exata potência.166

Neste sentido, o direito natural da multidão, mesmo na instituição da


cidade, e regido por leis do direito civil, permanece como causa imanente de todo
poder político167. O poder do soberano, ainda que envolto em discursos
imaginativos de transcendência e medo, tem como causa imanente, sempre, a
potência da multidão. O direito natural, compreendido como potência de existir,
sempre exercido em ato, é inalienável na sua totalidade168. Mesmo que o direito
civil expresse de forma imanente o direito natural da multidão, cada cidadão
mantém, mesmo no estado civil, resguardado seu esforço singular de existir, seu
direito natural. Ainda que num regime tirânico, de exercício da soberania como
poder transcendente, voltado para interesses particulares, o direito natural da
multidão permanece como “medida, guardião e ameaça ao direito civil” 169.
O direito natural é a medida do direito civil, pois o poder político é
determinado pela proporção entre o direito natural de cada cidadão tomado
isoladamente e o direito civil de toda a cidade. Tanto mais forte será um regime
político quanto maior for a potência de todo o estado, em proporção aos cidadãos
tomados isoladamente. Assim, uma democracia, dirá Espinosa é o regime mais
estável, pois nela o poder político, o direito civil da cidade, é maior e mais forte
que o direito natural de seus cidadãos tomados isoladamente.

166
TTP, Cap. XVI, pg. 234
167
Analisaremos no próximo capítulo as conseqüências da concepção espinosista acerca do direito
de natureza e do direito civil para o pensamento jurídico, bem como, com mais detalhes, a relação
entre direito natural e direito civil e entre a potência da multidão e o poder político.
168
“Por isso é possível afirmar que a teoria política spinozista não é capaz de assimilar a
possibilidade de transferência plena de direitos, como ocorre em HOBBES. (...) Transferir o
conatus, o direito natural, é absolutamente impossível; ninguém pode deixar a cargo de outrem o
esforço de perseverar na existência. Alienar o conatus é, antes de mais nada, uma impossibilidade
lógica.” GUIMARAENS, Francisco, O poder constituinte...p. 138
169
Seguiremos aqui análise realizada em CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em
Política em Spinoza...p.172 : “O direito natural é medida, guardião e ameaça do direito civil.
Medida, porque determina a proporcionalidade nas relações entre os cidadãos e o poder,
(...)Guardião, porque impede o desejo dos governantes de se identificarem com o poder, (...)
Ameaça, porque ninguém se despoja do desejo de governar e de não ser governado...”
81

Se duas pessoas concordam entre si e unem as suas forças, terão mais poder
conjuntamente e, conseqüentemente, um direito superior sobre a Natureza
que cada uma delas não possui sozinha e, quando mais numerosos forem os
homens que tenham posto as suas forças em comum, mais direito terão eles
todos.170
Quando os homens têm direitos comuns e são todos conduzidos como por
um único pensamento, é certo (...) que cada um possui tanto menos direito
quanto mais todos os outros reunidos o sobrelevem em poder...171

O direito civil é expressão das relações de composição entre os


cidadãos que constituem o campo político. Quanto mais próximo estiver o direito
civil de ser a expressão da composição das potências de todos os cidadãos
reunidos, proporcionalmente mais forte ele será em relação ao direito natural de
cada cidadão considerado isoladamente. Seguindo o mesmo raciocínio, nosso
filósofo pode demonstrar porque a tirania e, como ela, a monarquia e a oligarquia,
são os regimes mais instáveis172. Se o direito civil é expressão apenas da potência
de um ou alguns, menor será seu poder frente ao direito natural dos demais
cidadãos tomados juntos.
O direito natural é medida do direito civil, pois é na relação de
proporcionalidade entre eles que se inscreve a instabilidade ou estabilidade do
poder político. O soberano teme a plebe por saber que, reunida, esta lhe supera em
potência, por saber que, apesar de qualquer discurso imaginativo de
transcendência, todo o poder político tem por causa imanente a potência da
multidão. Se está concentrado nas mãos de um ou de poucos, se está restrito à
expressão das relações de composição entre poucos e a interesses particulares, o
direito civil é mais fraco que o direito natural dos demais cidadãos reunidos, que
lhe são a medida proporcional e podem lhe derrubar.
O medo do soberano decorre de saber-se fraco frente ao direito natural
da multidão reunida. O direito natural da multidão é medida do direito civil, logo,

170
TP, cap. 2, parágrafo 13.
171
TP, cap. 2, parágrafo 16.
172
“Ora, o poder político tem a peculiaridade de distribuir-se de maneira geométrica ou
proporcional, isto é, um regime político será tanto mais poderoso quanto mais o poder soberano for
proporcionalmente maior ao de cada um dos cidadãos e à soma de seus poderes individuais. Ao
contrário, o regime será tanto mais fraco (terá menos poder e menos direito) quanto mais um ou
alguns de seus membros o igualarem em direito e poder, confundindo-se com a soberania e com a
lei. Se a democracia é o mais forte dos regimes políticos, a tirania é o mais fraco deles, pois nela é
nula a proporção entre o direito-poder do dirigente e o direito-poder dos governados. Eis por que,
se estes últimos não podem lamentar a existência do tirano, pois o deixaram adquirir o poder, o
tirano, por sua vez, não poderá lamentar se os tiranizados adquirirem poder para derrubá-lo. A
instabilidade da tirania, também encontrada na monarquia e nos regimes oligárquicos, é a origem
do medo à plebe.” CHAUÍ, Marilena. “Sobre o medo”... pg. 70
82

quanto mais se identificarem o direito civil e a potência da multidão mais estável


será o poder político. No poder tirânico, fundado no discurso transcendente, que
se exerce mais longe do direito natural da multidão, o direito civil exprime
interesses particulares, e está sempre vulnerável frente à potência da multidão
reunida.
Mas não é só por ser a medida do direito civil que o direito natural da
multidão causa temor a tiranos e oligarcas, o direito natural é ainda o guardião do
direito civil. O direito natural da multidão marca o limite do exercício do poder
político, e guarda o direito civil das ameaças do soberano de exercê-lo apenas em
vista de seus fins particulares.
Da própria concepção espinosana do direito natural como potência,
como o próprio esforço por perseverar na existência, decorre que, já o vimos
também, mesmo no estado civil, o direito natural não é alienado ou transferido
completamente. Ainda que sob as leis do direito civil, o direito natural de cada
cidadão permanece como limite ao exercício tirânico do poder político. Mesmo
todo o discurso do medo e da transcendência, mesmo toda a imaginação
supersticiosa dos arcana imperii e do soberano imago dei não se sustentam por
muito tempo se defrontados com certas liberdades inalienáveis de seus cidadãos,
como a liberdade de opinião, de julgamento, liberdade de amar aquilo que ama e
odiar o que odeia.
Neste sentido diz Espinosa:

Portanto, se ninguém pode renunciar à sua liberdade de julgar e pensar o


que quiser, e se cada um é senhor dos seus próprios pensamentos por
superior direito da natureza, jamais será possível, numa comunidade
política, tentar sem resultados funestos, que os homens, apesar de terem
opiniões diferentes e até opostas, não digam nada que não esteja de acordo
com aquilo que prescrevem a autoridade.173
Donde se segue que tudo aquilo que ninguém pode ser induzido, por
recompensas ou ameaças, a fazer não pertence aos direitos da cidade. Por
exemplo, ninguém pode ceder a faculdade de julgar: efetivamente, com que
recompensas ou ameaças pode o home ser induzido a crer que o todo não é
maior que uma sua parte, que Deus não existe, ou que o corpo, que ele vê
que é finito, é um ser infinito e, de uma maneira geral, a acreditar em
alguma coisa contrária àquilo que ele sente ou pensa? Da mesma forma,
com que recompensas ou ameaças pode o homem ser induzido a amar que
ele odeia, ou a odiar quem ele ama?174

173
TTP, cap. XX, pg. 301/302
174
TP, cap. 3, paragrafo 8.
83

Assim, o direito natural de cada cidadão é, ao mesmo tempo, a causa


imanente do direito civil e seu limite. Como guardião da liberdade mais
inalienável de cada cidadão, o direito natural é a potência que mantém o direito
civil resguardado das ambições de tirania de qualquer governante. Não se trata de
limites morais ou que respondam a quaisquer valores transcendentes, o poder
político não pode arvorar-se em legislar a liberdade de opinião por uma
impossibilidade ontológica. O direito natural é potência sempre atual, e esforço de
cada um em perseverar na existência, que determina certas liberdades como
intransferíveis.
Sendo o direito natural da multidão, ao mesmo tempo, causa imanente
e limite do poder político, nosso filósofo pode afirmar que a guarda da liberdade
de opinião dos cidadãos não se contrapõe ou ameaça a segurança do Estado, pelo
contrário a fortalece. O Estado que resguarda a liberdade de opinião de seus
cidadãos não é por isso mais fraco, mas torna-se mais estável e menos suscetível
aos riscos de sedição e revoltas.
É importante destacar que, ao estabelecer o direito natural de cada
cidadão como limite do exercício do poder público, Espinosa não afirma
propriamente uma oposição entre esfera pública e esfera privada. Não faremos
aqui uma interpretação liberal do pensamento de Espinosa175. Liberdade de
opinião e poder público não se separam totalmente, nem se contradizem
necessariamente, mas um não pode ser suprimido sem graves riscos para a
preservação do outro176.

Finalmente, a liberdade de opinião, não só pode ser concedida sem que a


paz do Estado, a piedade e o direito dos poderes soberanos fiquem
ameaçados, como inclusive o deve ser, se se quiser preservar tudo isso.177

Deriva da liberdade de opinião a liberdade de dizer e ensinar o que se


pensa, sem prejuízo à obediência efetiva às leis do Estado. A liberdade de

175
Apropriação de Espinosa pelo pensamento liberal ?
176
“Dans la tradition libérale, en effet, souverainété politique et leberté individuelle se déploient
dans ces deux sphères différentes, qui normalment n’interfèrent pas, mais se « garantissent »
réciproquement. (...) Or, cette conception (que Locke ne tardera pas à illustrer) ici ne convient pas.
(...) la règle énoncée par Spinoza ne peut avoir le sens d’une simple séparation. En fait, ce qu’il
entend démontrer, c’est une thèse beaucoup plus forte (sans doute assi beaucoup plus risquée) :
souveraineté de l’Etat et liberté individuelle n’ont pas à être séparées, ni à proprement parler
conciliées, parce qu’elles ne se contredisent pas. La contradiction serait de les opposer.”
BALIBAR, Etienne. Spinoza et la politique...p. 37/38
177
TTP, cap. XX, pg. 310.
84

expressão e de cátedra também traz mais segurança do que riscos ao Estado,


“desde que se limite só a dizer ou a ensinar e defenda o seu parecer unicamente
pela razão, sem fraudes, cólera, ódio ou intenção de introduzir por sua exclusiva
iniciativa qualquer alteração no Estado”178
Espinosa defende expressamente que, ao lado da liberdade de opinião,
direito natural inalienável, o Estado também se aproxima mais da segurança e seu
poder é tanto menos violento quanto mais garanta a seus cidadãos a liberdade de
expressão179. Inevitavelmente os homens terão as mais diversas opiniões e
julgamentos acerca das coisas e dos assuntos do Estado, proibir-lhes de
expressarem suas opiniões, diz nosso filósofo, apenas obrigaria os homens à
mentira, a pensarem uma coisa e dizerem outra, “fomentando-se a abominável
adulação, a perfídia e, daí, os ardis e a completa deterioração dos bons
costumes.”180 Neste sentido afirma o filósofo:

Quem tudo quer fixar na lei acaba por assanhar os vícios em vez de os
corrigir. Aquilo que não se pode proibir tem necessariamente que se
permitir, não obstante os danos que muitas vezes daí advêm181

Leis de censura à liberdade de expressão, ao contrário de assegurarem


obediência e espalharem a concórdia, incitam os homens à falsidade, às tramas
secretas da traição e sedição. Assim como a liberdade de opinião, a liberdade de
dizer e ensinar o que se pensa traz mais segurança e paz do que riscos ao Estado.
Cabe inclusive assinalar que tal é a importância do tema que Espinosa
expressamente dedica à defesa da liberdade de filosofar todo o seu Tratado
Teológico-Político ao atribuir-lhe o seguinte sub-título:

Tratado teológico-político. Contendo algumas dissertações em que se


demonstra que a liberdade de filosofar não só é compatível com a
preservação da piedade e da paz, como, inclusive, não pode ser abolida sem
se abolir ao mesmo tempo a paz do Estado e a própria piedade.

178
TTP, cap. XX, pag. 303.
179
“um poder que negue aos indivíduos a liberdade de dizer e de ensinar o que pensam será, por
conseguinte, um poder violento; pelo contrário, um poder que lhes conceda essa liberdade será um
poder moderado.” TTP, Cap. XX, pg. 302.
180
“Mas suponhamos que essa liberdade pode ser reprimida e os homens dominados a ponto de
não se atreverem a murmurar uma palavra que contrarie o prescrito pelos poderes soberanos;
mesmo assim, nunca estes hão de conseguir que não se pense senão o que eles querem: o que iria
necessariamente acontecer era os homens pensarem uma coisa e dizerem outra, corrompendo-se,
por conseguinte, a fidelidade imprescindível num Estado e fomentando-se a abominável adulação,
a perfídia, e daí, os ardis e a completa deterioração dos bons costumes.” TTP, cap. XX, pg.
305/306
181
TTP, cap. XX, pg. 305.
85

Ainda sobre o controle à liberdade de expressão, Espinosa é expresso


ao afirmar que leis de censura acabam por atingir e punir mais os homens bons e
livres, do que sacrificar ou deter aqueles de mau caráter, avaros, bajuladores e
verdadeiras ameaças ao Estado. São os homens livres que, com mais obstinação,
defenderão sua liberdade de expressão frente a leis que a censurem182. Os
covardes, amantes do poder, certamente com maior facilidade se dobram aos
discursos oficiais e limites dos censores, enquanto são os homens livres que
acabam empurrados à criminalidade e à resistência.

Sendo, portanto, evidente que a natureza humana é assim constituída,


segue-se que as leis em matéria de opinião contemplam, não os criminosos,
mas os homens livres, e são feitas, não tanto para reprimir os maus, como
para provocar as pessoas de bem, além de quê, não podem manter-se sem
grave risco para o Estado.183

Assim, a liberdade de expressão é tão útil à segurança do Estado


quanto é inalienável o direito natural de cada cidadão de pensar, julgar e desejar o
que quer que seja. No entanto, ao contrário das opiniões e pensamentos, a
liberdade de expressão não deve ser ilimitada. Espinosa sabe que, tanto como atos
de desobediência e lesa-majestade, as palavras podem também incitar revoltas e
ameaçar a paz do Estado184. A liberdade de expressão encontra seu limite na
obediência efetiva às leis, nos interesses da concórdia e da manutenção do
Estado185.

182
“Longe, porém, de uma coisa dessas poder acontecer, ou seja, de todos se limitarem a dizer o
que está prescrito, quanto mais se procura retirar aos homens a liberdade de expressão mais
obstinadamente eles resistem. Não, como é óbvio, os avaros, os bajuladores e outros de ânimo
impotente, para quem a suprema felicidade consiste em contemplar moedas no cofre e ter a barriga
cheia, mas aqueles a quem uma boa educação, a integridade de costumes e a virtude tornaram
ainda mais livres.” TTP, cap. XX, pg. 306.
183
TTP, cap. XX, pg. 306.
184
“E, todavia, é inegável que tanto se podem cometer crimes de lesa-majestade por atos como por
palavras, razão por que, se é de fato impossível retirar completamente essa liberdade aos súditos,
também será altamente pernicioso concedê-la sem nenhuma restrição.” TTP, cap. XX, pg. 302.
185
“Vimos, com base nos fundamentos do Estado, em que medida pode cada um gozar de
liberdade de opinião sem ferir o direito dos poderes soberanos. Mas podemos, com a mesma
facilidade, determinar a partir daqui quais as opiniões que num Estado são subversivas: são,
evidentemente, aquelas cuja aceitação implica a imediata cessação do pacto pelo qual cada um
renunciou ao direito de agir conforme entendesse. É, por exemplo, subversivo pensar que o poder
soberano não tem autonomia ou que ninguém está obrigado a manter os juramentos, ou que é
preciso que cada um viva como entender e outras opiniões do mesmo gênero que estão em
flagrante contradição com o referido pacto, não tanto pelo juízo e a opinião em si mesmos, mas por
aquilo que na prática implicam, ou seja, porque quem assim pensa está quebrando, tácita ou
explicitamente a fidelidade prometida ao poder soberano. Mas todas as outras opiniões que não
implicam uma ação, ou seja, que não envolvem a ruptura do pacto, a vingança, a cólera, etc., não
86

Assim, o direito natural de cada indivíduo de pensar, julgar, desejar


segundo seu próprio juízo e dizer o que pensa é o limite que guarda o direto civil
de ambições tirânicas daqueles que exercem o poder político. E eis aí outra causa
de temor para o soberano. Os discursos, símbolos e ritos que constroem a
imaginação da transcendência do poder político encontram limite intransponível
na liberdade de opinião de cada cidadão. A liberdade de cada um de dizer e
ensinar o que pensa não pode ser suprimida sem graves riscos de subversão186. O
soberano teme os gostos, juízos, ideias, escritos e até conversas que perpassam a
plebe. Incontroláveis, as opiniões, desejos e palavras da plebe são uma ameaça
constante a qualquer poder soberano que tente impor a obediência pelo medo e a
tirania.
E, no entanto, o direito natural impõe ainda mais um limite ao
exercício do poder político. Guardião do direito civil, para que este não se exerça
de forma tirânica e contra os interesses da potência da multidão, o direito natural
impõe ao exercício de qualquer poder político os limites da indignação e furor da
multidão. Ainda que temido por seus súditos, ainda que venerado como imago dei
pela imaginação delirante da multidão, medidas que causem indignação geral na
cidade podem deflagrar revoltas e voltar a plebe contra o soberano.
Nosso filósofo adverte no Tratado Político, cap. III, §9º :

... deve-se ter em conta que pertence menos ao direito da cidade aquilo que
provoca a indignação da maioria. É, com efeito, certo que os homens por
inclinação da natureza conspiram, seja por causa de um medo comum, seja
pelo desejo de vingar algum dano comumente sofrido. E uma vez que o
direito da cidade se define pela potência comum da multidão, é certo que a
potência e o direito da cidade diminuem na medida em que ela própria
ofereça motivos para que vários conspirem. Há certamente coisas de que a
cidade deve ter medo, e da mesma forma que cada cidadão ou cada homem
no estado natural, assim também a cidade está tanto menos sob jurisdição de
si própria quanto maior é o motivo que tem para temer.

são subversivas a não ser, talvez, num Estado de algum modo corrupto, onde os supersticiosos e
ambiciosos, que não podem suportar os homens livres, conquistaram tal prestígio que têm mais
autoridade sobre o povo do que o poderes constituídos.” TTP, cap. XX, pg. 304.
186
Sobre a atualidade do tema da liberdade de expressão e da censura remetemos o leitor a:
Mello, Rodrigo Gaspar de. A Censura Judicial como Meio de Restrição da Liberdade de
Expressão. Análise Comparativa da Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, da Corte Suprema de Justiça da Nação argentina e do Supremo Tribunal Federal,
Dissertação de mestrado, Rio de janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2012.
87

A indignação geral é a medida da adequação do exercício do poder


político à potência da multidão. É a indignação o termômetro capaz de sinalizar
quando o governante excede os interesses da comunidade e começa a exercer o
poder político para fins particulares187. Afeto próprio da resistência à opressão, a
indignação é expressão do direito natural da multidão no seu esforço por guardar
o campo político e o direito civil das ambições de tirania do soberano.
A relação de imanência entre potência da multidão e poder político, e
entre direito natural da multidão e direito civil é guardada, preservada, pela
mecânica afetiva da multidão. A obediência ao poder político é sempre expressão
do esforço da multidão por sua própria existência, liberdade e alegria. A partir do
momento em que o direito civil se exerce contra o que a multidão lhe julga ser
útil, por medidas que despertem a indignação geral, cessa o desejo de obediência,
e instaura-se a resistência, a revolta e a sedição.
Neste sentido, podemos dizer que o direito natural é guardião do
direito civil porque é aquele o termômetro, o limite, o parâmetro que resguarda a
relação de imanência entre este e a potência da multidão. É o direito natural da
multidão que impede, pelo risco de erupção de uma revolta, pela resistência
explícita e pela instabilidade, que o direito civil se exerça de forma transcendente
em relação aos desejos da própria multidão.
A liberdade de opinião e pensamento, a liberdade de expressão e
cátedra, exercidas dentro dos limites do interesse de conservação do Estado,
preservam o campo político aberto ao exercício livre e explícito do direito natural
inalienável dos cidadãos de pensarem, julgarem, dizerem e ensinarem, o que lhes
pareça melhor. Neste sentido, Espinosa demonstra que é mais útil à segurança e
estabilidade de um Estado resguardar tais liberdades do que tentar suprimi-las, o
direito natural de cada cidadão é, então, o limite do exercício do poder soberano.
A liberdade de opinião e expressão, assim como a indignação geral, são
expressões da potência da multidão, expressões do direito natural que, pela
resistência, resguardam o direito civil das ambições do poder de identifica-lo com
os desejos do governante e não com os da multidão.

187
Voltaremos ao tema da indignação no capítulo 4 ao tratarmos dos afetos que perpassam a
multidão no campo político. Nesta ocasião apontaremos o papel da indignação como afeto ligado à
resistência e à preservação da liberdade, sobre o tema destacamos a observação de BOVE,
Laurent. La stratégie du conatus... pg. 291: “ Sous l’effet de l’indignation générale, ce n’est pas à
la dissolution de ce corps que nous assistons, mais bien au contraire à sa réorganisation selon une
dynamique de stratégie de résistance-active du conatus du corps social. »
88

Por fim, dissemos que, além de medida e guardião, o direito natural é


ainda uma ameaça ao direito civil. Espinosa parte de uma máxima que remonta a
Maquiavel: é do “sapientíssimo florentino” que nosso filósofo traz a ideia de que
todo homem deseja governar e não ser governado. Nosso filósofo diz
expressamente: “Porque o que os homens menos suportam é estar submetidos aos
seus semelhantes e ser comandados por eles.”188. E é nesta linha que Espinosa
identifica no direito natural uma ameaça à instituição do direito civil.
Nosso filósofo aponta que os piores inimigos de um Estado não são os
outros Estados ou soberanos estrangeiros, que possam lhe declarar guerras,
invasões, concorrências comerciais; mas o pior inimigo de qualquer estado é
sempre o inimigo interno189. É entre os cidadãos de um Estado que se escondem
seus piores inimigos. As conspirações, revoltas e principais ameaças ao soberano,
provêm da plebe, daqueles que movidos pela ambição do poder buscam derrubá-
lo para tomar-lhe o lugar.

Julgo que a própria experiência ensina isso de forma bastante clara: jamais os
homens transferiram para outrem o seu poder em termos de tal maneira
definitivos que aqueles que receberam das suas mãos o direito e o poder
deixassem de temer e que o Estado não estivesse mais ameaçado pelos
cidadãos, ainda que privados de seu direito, do que pelos inimigos.190

O direito natural de cada cidadão é, assim, ameaça constante ao direito


civil, pois, no seu desejo de governar e não ser governado, cada cidadão pode
constituir-se em inimigo do estado, na sua ambição de poder. O soberano teme a
plebe identificando no seu seio o berço de seus mais perigosos inimigos, o terreno
das conspirações, das revoltas, a ameaça constante de insurreição.
Temos aí, portanto, as razões que levam o soberano a temer a plebe. É
na relação entre direito natural e direito civil, em Espinosa, que identificamos as
causas do medo do soberano. A potência da multidão é a causa imanente de todo
poder político e, como tal, pode assegurar seu exercício, ou ser a causa de
revoltas, de sedição e de sua derrubada. É no direito natural da multidão que estão
os limites ao direito civil. O soberano teme seus cidadãos pois sabe que está neles

188
TTP, cap. V, pg. 86
189
“Isso explica por que Espinosa demonstra que o inimigo político é sempre interno e só
efemeramente externo, pois o inimigo nada mais é do que o direito natural de um ou de alguns
particulares que operam para conseguir um poderio de tal envergadura que possam tomar o lugar
da soberania.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg. 252.
190
TTP, cap. XVII, pg. 251
89

a medida de seu poder, e que a potência da multidão reunida é sempre maior que
aquela do tirano que governa segundo os próprios interesses.
O soberano teme seus cidadãos pois reconhece no direito natural e
inalienável de cada um deles, direito de pensar e dizer o que quer que seja, um
limite ao exercício de seu poder. O soberano sabe ainda que, no exercício do
poder político, é preciso temer e evitar a indignação geral da multidão, pois esta é
capaz de inspirar a resistência e revoltas. Por fim, o soberano teme a plebe porque,
assim como ele próprio, todo homem prefere governar a ser governado, e no seio
da multidão estão cidadãos ansiosos por derrubá-lo, prontos a tramar conspirações
e incentivar a insatisfação de seus pares para tomarem, eles próprios, o poder.
A imaginação da relação de transcendência entre poder político e
potência da multidão, o discurso da soberania que sustenta a ideia de um
governante que não se identifica com a multidão, mas a governa segundo razões
misteriosas, sustenta-se num sistema de medo recíproco entre o soberano e a plebe
que acaba por condenar as duas partes à servidão. A plebe obedece servil ao
soberano, e o soberano é aprisionado pelo medo da plebe. O medo não constrói a
liberdade, nem da plebe nem do soberano.
O tirano é tão servo quanto seus súditos, o medo que perpassa a plebe
frente ao poder soberano, acaba por atormentar também o próprio soberano,
constantemente preocupado com traições, conspirações, revoltas. A tirania é o
mais instável dos regimes políticos e o tirano, sempre temeroso pelo seu futuro, é
tanto senhor de seus súditos quanto servo de suas próprias paixões. A tirania
enreda tirano e súditos na experiência do medo recíproco e na servidão191.

2.3

O medo e a alegria: Hobbes e Espinosa

“No que respeita à política, perguntas qual a diferença entre mim e Hobbes.
Consiste nisso: conservo o direito natural sempre bem resguardado...”
Carta 50 de Espinosa para Jarig Jelles

191
Voltaremos ao tema dos afetos que perpassam o campo social e constituem tanto o soberano
como a plebe na experiência da servidão no capítulo 4.
90

Os temas que abordamos neste capítulo aproximam a reflexão


espinosana do pensamento de Thomas Hobbes, seu contemporâneo. Escrevendo
também no século XVII Hobbes, assim como Espinosa, tece comentários sobre a
interpretação das Escrituras e o poder teológico, busca uma compreensão da
política a partir das paixões humanas, trabalha os conceitos de direito natural e
direito civil, e trata do medo como um dos principais afetos que constituem o
campo político. No entanto, se a proximidade na escolha das temáticas parece
sugerir uma convergência, os dois autores na verdade se contrapõe mais do que
concordam192.
Não temos aqui a pretensão de esgotar a análise das proximidades e
distâncias entre os pensamentos de Hobbes e Espinosa. Tal tema, por si só, valeria
uma tese inteira. Assumimos, desde já, os riscos da brevidade e da
superficialidade ao abordarmos, apenas de forma colateral, uma temática tão rica e
cheia de discussões, que mereceria maior cuidado, fosse este o objeto de nosso
trabalho. Apresentaremos, portanto, apenas alguns traços da relação entre esses
dois autores, destacando alguns assuntos que mais se aproximam de nosso tema
central, deixando já a ressalva de que tal discussão abarca diversos outros temas e
abordagens que escapam aos limites deste trabalho.

2.3.1

A recusa do fundamento teológico do poder político

O primeiro ponto onde que se encontram os pensamentos de Hobbes e


Espinosa é no tema do poder teológico e da interpretação das Escrituras. Vimos,
no início deste capítulo, como Espinosa tece suas críticas à superstição, à religião
e à teologia. Destacamos como estes assuntos são vivos e centrais na discussão
política do século XVII. Numa época em que o poder teológico tem nas suas mãos

192
Sobre a relação entre os dois autores vale transcrever a indagação de LAZZERI : “HOBBES a
été pour Spinoza un interlocuteur philosophique aussi important que Descartes, et la doctrine
politique spinoziste semble ne pas se démarque de celle de HOBBES tant elle présent, au premier
abord, bien des affinités et des ressemblances avec celle de l’auteur de Léviathan. Pour toute une
tradition, qui commence sans doute dès le XVII, leurs positions philosophique, religieuses et
politiques sont parfaitement assimilables : n’y a-t-il pas d’ailleurs de bonnes raison à faire valoir
pour justifier cette assimilation ? Leurs antropoloquies respectives ne se fondent-elle pas sur le
recours à un concept de conservation de soi que s’exprime dans l’effort constant de tout homme
por persévérer indefiniment dans son être ?” LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté –
Spinoza critique de HOBBES. PUF, Paris, 1998, pg. 1
91

e no seu discurso as armas da perseguição, tortura e assassinatos, quando a


obediência a ritos e crenças religiosas fundamenta a pertença a uma comunidade
ou o exílio, discutir acerca de Deus e das Escrituras é discutir o político. Hobbes,
assim como Espinosa, não fica alheio a esta temática.
A título meramente ilustrativo da relevância do tema, podemos
destacar que Thomas Hobbes escreve sua obra mais famosa Leviatã dividia em
quatro partes, das quais as duas últimas são expressamente voltadas para temáticas
afetas ao poder teológico. Assim como depois dele fará Espinosa, o filósofo inglês
dedica boa parte da sua reflexão a enfrentar o tema da superstição na política e a
denunciar a teologia como manipulação do medo da multidão para assegurar a
dominação193. Desmascarar o papel político de dominação que é exercido pelas
religiões reveladas em sua época é uma preocupação que une as reflexões de
nosso autor holandês ao pensamento de seu contemporâneo Hobbes.
Da mesma forma, no mesmo caminho, os dois autores se encontram ao
tentar distinguir as relações propriamente políticas das relações de graças e
favores pessoais próprias das religiões194. Buscando compreender a política como
campo das paixões humanas, tanto Hobbes quanto Espinosa constroem, cada qual
a seu modo, formas de pensar as relações políticas libertas das estruturas de
servidão e passividade que sustentam necessariamente o poder teológico. A
política entendida como campo do humano é a recusa a qualquer poder que se
afirme por uma origem, concessão ou predestinação divina.
Ainda com a finalidade de denunciar e recusar a fundamentação
teológica do poder político, tanto Hobbes quanto Espinosa tecem considerações
acerca da interpretação das Escrituras. Ambos os autores questionam a autoria
divina revelada dos Textos sagrados. Numa análise bastante pormenorizada, que
não nos cabe aqui destrinchar, ambos os autores debruçam-se sobre as Escrituras
para propor uma interpretação histórica e política dos Textos sagrados.

193
“Eis por que ambos [HOBBES e Espinosa] analisam as religiões reveladas como resultado do
medo e consideram a teologia manipulação fraudulenta do pavor da massa com a intenção de
dominá-la.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg 290
194
“Pelo mesmo motivo, há em ambos o cuidado para distinguir as relações de favor ou graça e as
relações propriamente políticas, visto que a ideia do favor sustenta a teoria política cristã (romana
e reformada) que concebe os regimes políticos (na verdade, a monarquia e a aristocracia) como
teocracias, pois tanto o poder dos reis como o dos magistrados cristãos é dito provir de Deus, que
por um favor misterioso (uma graça) concede a alguns o direito de governar e de representá-Lo.”
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg.290.
92

Neste sentido Hobbes, já antes de Espinosa, transforma a questão da


fundamentação da autoridade das Escrituras numa questão política195. A denúncia
do poder teológico é também a denúncia do discurso teológico inscrito na
interpretação das palavras divinas reveladas nos Textos Sagrados. Nosso autor
holandês, por sua vez, demonstra o caráter imaginativo da autoridade dos profetas
e propõe um método histórico de interpretação das Escrituras196. Em ambos a
crítica ao caráter revelados das Sagradas Escrituras se coaduna com a crítica ao
fundamento teológico do poder político197.
Vimos no início deste capítulo que a crítica espinosana à crença num
Deus transcendente antropomórfico começa, no apêndice da EI, com a crítica ao
preconceito finalista. Espinosa encontra na imaginação de uma causalidade
finalista a origem de toda a superstição. Ignorantes das causas dos acontecimentos
os homens imaginam um Deus rector naturae que comanda todas as coisas em
vista de fins previamente estabelecidos. O finalismo é visto por nosso filósofo
holandês como o terreno das delirantes ideias que sustentam a obediência ao
poder teológico.
Em Hobbes encontramos a mesma crítica ao finalismo. O autor inglês,
assim como Espinosa, rejeita a causalidade finalista reconhecendo na busca por
causas finais uma projeção antropomórfica das ideias humanas para o

195
“Aquilo que foi considerado como a primeira afirmação intelectual do questionamento da
autoria de Moisés na Escritura está no Leviatã de HOBBES, livro III, capítulo XXXIII. HOBBES
indicava que não há testemunho suficiente na Sagrada Escritura ou em outro lugar para nos
assegurar quem foram os escritores dos vários livros. (...)
O que deu ao texto completo sua garantia e autoridade? Se não foi revelado que o texto é a
palavra de Deus, então a aceitação do texto e o assentimento a ele vêm da autoridade do estado
[commonwealth]. HOBBES transformou a questão numa questão política para aqueles que não
tiveram uma revelação sobrenatural pessoal.” POPKIN, Richard H. “Spinoza e os estudos
bíblicos” in GARRET, Don (org.). Spinoza, 1ª Ed., Aparecida-SP: Editora Ideias & Letras, 2011,
pg. 477.
196
“Spinoza começou a mostrar originalidade quando em seguida afirmou que compreender a
Escritura e a mente dos profetas não é de modo algum a mesma coisa que ‘compreender a mente
de Deus, isto é, a verdade’. TTP cap. XII. Entender a Escritura se tornou, então, um
empreendimento estritamente histórico. (...)
Visto de outro ângulo, Spinoza secularizou completamente a Bíblia como um documento
histórico.” POPKIN, Richard H. “Spinoza e os estudos bíblicos” in Garret, Don (org.). Spinoza, 1ª
Ed., Aparecida-SP: Editora Ideias & Letras, 2011, pg. 495
197
“A leitura crítica da Bíblia, em ambos [HOBBES e Espinosa], tem a finalidade de impedir a
legitimação teológica do poder político, culminando na exigência de que o poder soberano também
detenha o poder religioso: só há soberania quando o poder não se divide e por isso mesmo as
igrejas devem ser instituições particulares, ao lado de outras, sem aspirar à universalidade que lhes
permitiria reter o poder espiritual, declarando-o superior e maior do que o poder temporal.”
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...p.290.
93

funcionamento da natureza198. Ambos identificam na ilusão quanto à causalidade


a semente da crença num Deus antropomórfico e da religião199. Neste sentido, diz
Hobbes expressamente: “A ignorância das causas naturais predispõe os homens
para a credulidade, chegando muitas vezes a acreditar em coisas impossíveis”200
O preconceito finalista, como o chama Espinosa, não é, para os dois
autores, apenas uma compreensão equivocada acerca de Deus ou da ordem da
natureza. O finalismo desempenha um papel político de instrumento de
dominação, afirmação da superstição e alicerce da autoridade teológica201. Negar
a causalidade finalista não é só propor uma nova física, uma nova visão da
sequência de eventos na Natureza, mas é também, tanto para Hobbes quanto para
Espinosa, negar o fundamento teológico transcendente do poder.

2.3.2

A causalidade eficiente transitiva x causalidade eficiente imanente

No entanto, se o diagnóstico da origem da superstição na crença no


finalismo é comum em ambos os autores, a compreensão adequada da causalidade
pelos dois autores encontra uma divergência fundamental. Tanto Hobbes quanto
Espinosa afirmam a causalidade eficiente e no homem a encontram no apetite ou
desejo. A causa de todas as ações e ideias humanas está, nos dois autores, no
desejo que move a cada um e todos os homens. Porém a relação entre o desejo
como causa e as ações e ideias humanas como efeitos difere em cada um dos
autores202.

198
“HOBBES e Espinosa rejeitam as explicações baseadas em causas finais e criticam o finalismo
aristotélico e sua versão medieval não apenas porque consideram as causas finais uma ficção e
uma projeção antropomórfica sobre a Natureza, mas, sobretudo, porque para ambos nem mesmo as
ações humanas se explicam por causas finais.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg.301.
199
“E tendo esta semente da religião sido observada por muitos, alguns dos que a observaram
tenderam a alimentá-la, revesti-la e conformá-la às leis, e a acrescentar-lhe, de sua própria
invenção, qualquer opinião sobre as causas dos eventos futuros que melhor parecesse capaz de lhes
permitir governar os outros, fazendo o máximo uso possível de seus poderes.” HOBBES, Thomas.
Leviatã, in Os pensadores – HOBBES, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 2000, cap. XI, pg. 96.
200
HOBBES, Thomas. Leviatã, cap. XI, pg.95
201
“As causas finais não são apenas um engano teórico que uma nova física viria corrigir, mas são
um instrumento de dominação mascarado, visto que convertem a necessidade natural em
autoridade.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... p.301
202
“A crítica Hobbesiana e espinosana vem acompanhada da ênfase na causalidade eficiente que,
no homem, é designada pelos dois filósofos como apetite e desejo. No entanto não se trata da
mesma causalidade eficiente.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg. 302.
94

Hobbes afirma o desejo como causa eficiente transitiva das ações


humanas. Para o autor inglês, apesar da afirmação da causalidade eficiente, a
causa se separa de seu efeito uma vez que este é produzido. Assim, para o autor
inglês, o desejo é causa eficiente das ações humanas mas, uma vez produzidas,
estas não se confundem com aquele. É neste sentido que, como veremos mais
adiante, Hobbes pode compreender o direito natural como quase ausente no estado
civil203. Como causa eficiente transitiva, o direito natural hobbesiano não se
confunde com, nem está presente no direito civil, a não ser no silêncio deste
último ou como virtualidade latente, como veremos a seguir.
Já Espinosa, afirmando também a causalidade eficiente, a entende
como causalidade eficiente imanente, ou seja, entende a relação entre causa e
efeito na Natureza como uma relação de imanência e não transcendência ou
distanciamento. Como vimos em nosso primeiro capítulo, para Espinosa, a causa
imanente não se separa de seu efeito, mas exprime-se nele, a causa se mantém em
seu efeito204.
Assim, para nosso autor holandês, desejo e ação não se separam, da
mesma forma que, como veremos mais detalhadamente a seguir, o direito natural,
nas palavras do autor, permanece “bem resguardado” no direito civil. A
divergência entre os dois autores sobre a causalidade eficiente - transitiva para
Hobbes e a causalidade eficiente imanente em Espinosa - terá consequências
importantes na concepção de cada um a respeito do homem, desde o
funcionamento do corpo humano até o conatus, a razão e a liberdade.

2.3.3

Conatus e concepção antropológica

Ambos os autores encontram na essência do homem um esforço pela


sobrevivência ou pela existência, porém, para Hobbes e Espinosa esta concepção
antropológica tem contornos, limites e funcionamentos distintos. Tanto no que

203
“A causa eficiente Hobbesiana é transitiva, isto é, uma vez produzido o efeito, a causa se afasta
e se mantém separada do resultado. Eis porque o direito natural pode ser causa eficiente da vida
civil e depois quase desaparecer, uma vez o direito civil estabelecido.” CHAUÍ, Marilena. Política
em Espinosa...p. 302.
204
“Em contrapartida, a causa eficiente espinosana é imanente, isto é, o efeito é sua expressão ou
sua realização particular, de sorte que a causa é mantida naquilo que produz.” CHAUÍ, Marilena.
Política em Espinosa...p. 302.
95

concerne ao corpo quanto à mente, o autor inglês e seu contemporâneo holandês


divergem na compreensão acerca do homem, seus afetos e racionalidade.
Hobbes, ao analisar o funcionamento do corpo humano no Leviatã,
identifica o esforço de conservação de si ao esforço pela perpetuação do
movimento vital de cada indivíduo. Um movimento que é puramente fisiológico,
caracterizado pelas funções essenciais à perpetuação da vida: respiração, nutrição,
e sobretudo a circulação sanguínea205.
No entanto, como forças externas podem tentar entravar esse
funcionamento vital, Hobbes identifica como meio de proteção do movimento
vital, o movimento animal ou voluntário206. Caracterizado por todas as demais
atividades do corpo, como andar, falar, e a própria imaginação, o movimento
voluntário é sempre entendido por Hobbes como um meio sempre subordinado e
voltado para a preservação do movimento vital. Sendo o movimento voluntário
responsável pela identificação das sensações, de dor ou prazer, é ele o responsável
pelo desejo ou pela aversão pelas coisas externas, sempre buscando o a
conservação do movimento vital207.
Neste sentido, podemos dizer que a compreensão hobbesiana do
funcionamento do corpo humano é pautada pelo signo da hierarquia e da
finalidade, elementos sempre afetos à transitividade. O movimento vital é
entendido como o princípio da vida, involuntário e superior, devendo todo
movimento voluntário, numa relação de subordinação, servir-lhe como meio de
preservação208. Desde a análise do funcionamento do corpo humano Hobbes já
elucida seu posicionamento em defesa da transcendência como consequência do
caráter transitivo da causa eficiente.

205
“Há nos animais dois tipos de movimento que lhe são peculiares. Um deles chama-se vital;
começa com a geração, e continua sem interrupção durante toda a vida. Deste tipo são a circulação
do sangue, o pulso, a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção, etc. Para esses movimentos
não é necessária a ajuda da imaginação.” HOBBES, Thomas. Leviatã in Os pensadores –
HOBBES, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 2000, p. 57.
206
“ O outro tipo é o dos movimentos animais, também chamados movimentos voluntários, como
andar, falar, mover qualquer dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginada pela
mente. (...) E dado que andar, falar e outros movimentos voluntários dependem sempre de um
pensamento anterior de como, onde e o que, é evidente que a imaginação é a primeira origem
interna de todos os movimentos voluntários.” HOBBES, Thomas. ob.cit.p.57.
207
“ Le mouvement animal est donc l’ensemble des mouvements internes et externes au corps qui
constituent le moyen par lequel le mouvement vital se conserve, puisqu’il dispose ainsi de ce qui
convient avec lui et peut se soustraire à ce qui l’entrave.” LAZZERI, Christian. Ob.cit. p. 17.
208
“ En distinguant ainsi mouvement animal et mouvement vital sur le mode du moyen et de la fin,
HOBBES affirme dès le fondement de son antropologie le principe qui en règle la construction : le
principe de distinction et de subordination.” Idem, p. 18.
96

Já em Espinosa é a imanência que se apresenta como princípio


explicativo da relação entre os corpos e da própria constituição do corpo humano.
O filósofo compreende o corpo humano como corpo composto, caracterizado pela
relação de composição entre diversos outros corpos209. Nesse registro não há lugar
para hierarquia ou subordinação, a relação que caracteriza o funcionamento do
corpo humano é uma relação de composição, e não de comando ou de mediação e
finalidade.
É esclarecedor sobre este ponto uma breve incursão nas disposições da
Ética em que Espinosa trata dos corpos, na proposição 13 da Parte II da Ética.
Nosso filósofo não chega a fazer um tratado de física, mas apresenta um conjunto
de propriedades comuns a todos os corpos e a forma como estes se relacionam
entre si. Partindo dos corpos simplicíssimos até as relações de composição que
constituem os corpos compostos, o intuito de Espinosa não é esgotar
minuciosamente o exame da natureza dos corpos, mas evidenciar aquilo que é
necessário para deduzir as propriedades do corpo humano210.
Afastando-se da física cartesiana, na qual Deus, enquanto causa
eficiente transitiva e eminente, introduz o movimento na extensão, concebida
como “matéria inerte”, Espinosa concebe o movimento e o repouso como estados
de um corpo, porém, no caso de Espinosa, esses estados seguem da natureza do
modo infinito imediato da extensão, isto é, o movimento e o repouso dos corpos
são ontologicamente constitutivos de suas naturezas211.
Pela definição 1 da Parte II da Ética, os corpos são modos finitos do
atributo extensão e diferenciam-se, entre si, pelo movimento ou repouso. Como
modos do mesmo atributo, os corpos não podem distinguir-se “em razão da
substância”, é o movimento ou repouso, e a possibilidade de moverem-se mais

209
“Quando um certo número de corpos da mesma ou de diversas grandezas são constrangidos
pela ação dos outros corpos a aplicar-se uns sobre os outros; ou se eles se movem com o mesmo
grau ou com graus diferentes de rapidez, de tal maneira que comunicam os seus movimentos entre
si segundo uma relação constante, diremos que esses corpos estão unidos entre si e que, em
conjunto, formam todos um corpo, isto é, um indivíduo que se distingue dos outros por essa união
de corpos.” Spinoza, Definição da Proposição XIII da Parte II da Ética. E ainda; “O corpo humano
é composto de um grande número de indivíduos (de natureza diversa), cada um dos quais é
também muito composto.” Spinoza, Postulado I da Proposição XIII da Parte II da Ética.
210
Neste sentido, é o próprio Espinosa quem faz a seguinte ressalva: “Se minha intenção fosse a de
tratar expressamente do corpo, eu deveria ter explicado e demonstrado isso mais longamente. Mas
já disse que é outra a minha intenção, e só me detive nessas questões porque delas posso deduzir
facilmente o que decidi demonstrar.” EII, prop. 13, Lema 7, escólio.
211
CHAUÍ, Marilena. A Nervura do real..., vol II, mimeo
97

rapidamente ou mais lentamente, que distingue os corpos entre si212. Decorre,


ainda, do fato de serem todos modos do mesmo atributo extensão, que todos os
corpos convêm em certas coisas213.
Como modos finitos os corpos estão necessariamente sujeitos ao
universo de encontros com outros corpos, e são estes encontros que tem a
capacidade de alterar-lhes o estado. Reconhecendo o princípio físico da inércia,
Espinosa enuncia que um corpo em movimento só passa ao repouso pelo encontro
com outro corpo, do mesmo modo que, em repouso, um corpo só passa ao
movimento pela ação de uma causa externa214.
Os corpos mais simples, simplicíssimos, são um quantum mínimo de
movimento e repouso, rapidez e lentidão pelo qual se distinguem uns dos outros.
Espinosa não designa os corpos simplicíssimos como indivíduos, termo que
reseva aos corpos compostos, como o corpo humano. O corpo humano é
composto de muitíssimos indivíduos de natureza diversa – duros, moles e fluídos -
-, cada um deles também composto de vários outros. Os componentes do corpo
humano são afetados de múltiplas maneiras pelos corpos exteriores e o mesmo,
portanto, deve ser dito do corpo humano como um todo. Essas afecções decorrem
do fato de que o corpo humano, para se conservar, precisa de muitíssimos outros
corpos, pelos quais é continuamente regenerado – o corpo humano é um
organismo vivo ou um indivíduo dinâmico. Além de ser afetado pelos corpos
exteriores, o corpo humano também os afeta de múltiplas maneiras, isto é, os
move e os dispõe de diferentes maneiras. Esse sistema de afecções, em que o
corpo humano é afetado por outros e os afeta é, como Espinosa demonstrará mais
adiante, a causa da imaginação e dos afetos corporais e psíquicos215.
Pela definição 8 da Parte II, sabemos que “se vários indivíduos
concorrem para uma única ação de maneira que todos sejam simultaneamente
causa de um único efeito” devem ser considerados “todos como uma única coisa
singular”. Assim, o que caracteriza o corpo humano é uma relação de composição
entre partes extensas que não tem, entre si, qualquer relação de hierarquia,
212
“Os corpos se distinguem entre si pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela
lentidão, e não pela substância” EII, prop. 13, Lema 1
213
“Todos os corpos estão em concordância quanto a certos elementos.” EII, prop. 13, Lema 2
214
“Um corpo, em movimento ou em repouso, deve ter sido determinado ao movimento ou ao
repouso por um outro, o qual, por sua vez, foi também determinado ao movimento ou ao repouso
por um outro, e este último, novamente por um outro e, assim, sucessivamente, até o infinito.” EII,
prop. 13, Lema 3
215
CHAUÍ, Marilena. A nervura do real..., vol. II, mimeo
98

comando ou finalidade, mas distinguem-se apenas pela relação de movimento e


repouso, rapidez e lentidão.
Assim, ao contrário de Hobbes, é impensável em Espinosa qualquer
hierarquia entre os movimentos dos corpos que compõem o corpo humano. O
corpo humano espinosano é uma relação entre partes extensas, partes que não tem,
entre si, nenhuma distinção em razão da substância e, portanto, não podem
distinguir-se entre movimento vital e movimento voluntário, muito menos
estabelecer-se qualquer relação de hierarquia entre eles.
Da mesma forma, Espinosa não enuncia qualquer hierarquia entre
mente e corpo, ou entre o voluntário e o fisiológico. Não há transcendência entre a
mente e o corpo. Numa revalorização do corpo Espinosa enuncia que ninguém
sabe o que um corpo pode, e que nem o corpo pode obrigar a mente a pensar nem
a mente comandar o corpo a agir216.
Isto posto, podemos destacar que estas diferenças entre Hobbes e
Espinosa, no que tange ao conhecimento do corpo humano, trazem importantes
divergências no que concerne a compreensão da morte pelos dois filósofos.
Enquanto para Hobbes a morte é entendida só e simplesmente pela extinção do
movimento vital, para Espinosa o evento morte não depende somente do corpo,
nem é somente uma relação de decomposição negativa, mas ao mesmo tempo a
formação de uma nova relação de composição. Para Espinosa, a morte de um
indivíduo pode ocorrer ainda que seu corpo não se transforme em cadáver217, isto
é, apenas pela decomposição das relações que antes caracterizavam sua
singularidade, sua identidade218. E ainda assim, a morte para Espinosa,
diferentemente de Hobbes, seja do corpo propriamente, ou de determinada
singularidade, nada mais é que a formação de novas relações de composição.

216
“Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode um corpo.” Spinoza, Escólio da
Proposição II, da Parte III da Ética. E ainda: “Nem o corpo pode determinar a alma [mente] a
pensar, nem a alma [mente] determinar o corpo ao movimento ou ao repouso ou a qualquer outra
coisa (se acaso existe outra coisa)”. Spinoza, Proposição II, da Parte III da Ética.
217
“ Com efeito, não ouso negar que o corpo humano, conservando a circulação do sangue e as
outras coisas, por causa das quais se julga que o corpo vive, possa, não obstante, mudar-se em
outra natureza inteiramente diferente da sua. É que nenhuma razão me obriga a admitir que o
corpo não morre, a não ser quando de muda em cadáver (...). Sucede, de fato, às vezes, que o
homem sofre tais mudanças que eu não diria facilmente que ele é o mesmo...” Spinoza, Escólio da
Proposição XXXIX da Parte IV da Ética.
218
“Un seul et même individu peut donc « mourir » en changeant d’identité de multiples manières
(croissances, transformation, pathologies, etc.) bien que son corps et son esprit continuent de
vivre.” LAZZERI, Christian. Ob.cit.p.23
99

Mas não é só sobre o corpo humano e a morte que divergem os dois


autores, também sobre o esforço de conservação de si ou de perseverar na
existência, o conatus, Hobbes e Espinosa tem uma controvérsia fundamental.
Apesar de, como já dissemos, ambos identificarem no homem um esforço de
conservação de si, suas formulações sobre a natureza e extensão deste esforço são
totalmente distintas.

Hobbes identifica este esforço de conservação com o esforço de


preservação do movimento vital de cada indivíduo, e assim, a esta finalidade
subordina todos os poderes do indivíduo. Assim, todos os movimentos
voluntários, assim como todos os poderes naturais ou instrumentais do homem são
entendidos como meios para alcançar a finalidade de preservação do movimento
vital219. Aqui podemos destacar duas característica importantes da concepção
antropológica de Hobbes que, ao mesmo tempo em que serão decisivas para sua
construção social e política, são totalmente negadas por Espinosa. São elas: a
compreensão meramente instrumental dos poderes do indivíduo, como meios
subordinados à finalidade da conservação; e a compreensão de tais poderes como
propriedades do homem, e, portanto, alienáveis.
A relação de mediação e finalidade que Hobbes estabelece entre os
poderes do homem e seu esforço de conservação é mais um elemento que
evidencia seu compromisso com a perspectiva da transcendência. No centro de
sua concepção antropológica, o filósofo inglês toma como elemento fundamental
da própria existência do indivíduo uma relação entre movimento vital e
movimentos voluntários calcada na hierarquia e no comando.
Essa relação hierárquica é então reforçada pela compreensão
hobbesiana dos poderes naturais e instrumentais do homem como propriedades
suas, e, portanto, passíveis de transferência e alienação. Neste sentido, desde a
análise da constituição do homem e de seu esforço de conservação de si, Hobbes
já enuncia as premissas daquilo que o teórico C.B. Macpherson bem denominou
como o individualismo possessivo220. A concepção hobbesiana acerca das

219
“O poder de um homem (universalmente considerado) consiste nos meios de que
presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro. Pode ser original ou instrumental.”
(grifo nosso). HOBBES,Thomas. Ob.cit.p.83
220
“Sua qualidade possessiva [do individualismo oriundo do século XVII] se encontra na sua
concepção do individuo como sendo essencialmente o proprietário de sua própria pessoa e de suas
próprias capacidades, nada devendo à sociedade por elas. (...) A relação de propriedade, havendo-
100

relações sociais entre indivíduos que operam pelo cálculo racional e a lógica de
mercado terá importantes consequência no campo político. Voltaremos a esta
temática a seguir quando da análise do estado de natureza e da constituição do
campo político em Thomas Hobbes.
Já Espinosa propõe uma compreensão totalmente diferente do esforço
em perseverar no ser, o conatus, que é a própria essência do homem. O conatus
espinosano não se resume à conservação, frente a perigos externos, das funções
fisiológicas essenciais ao funcionamento do corpo. Em Espinosa, o esforço em
perseverar na existência é também potência produtiva, que se expande sempre e a
todo instante até os limites de tudo o que pode221. Assim, diferentemente do
caráter negativo e conservador do esforço hobbesiano, a compreensão de Espinosa
da essência do homem é positiva e produtiva.
Neste contexto, para Espinosa as características do homem não são
meros instrumentos para o esforço em perseverar no ser, mas são dimensões deste
próprio esforço, expressões de sua potência. Mais uma vez Espinosa nega
qualquer relação hierárquica na construção de sua concepção antropológica e
institui que qualquer ação do ser humano, seja andar, falar, comer, etc., não é um
meio ou instrumento, orientado para a finalidade da preservação, mas expressão
imanente de sua própria potência produtiva. Numa relação absolutamente
imanente, qualquer ação do indivíduo é expressão de sua potência, expressão da
própria existência em si.
Ainda sobre a concepção antropológica de cada um, suas
proximidades e divergências, cabe nos debruçarmos sobre os temas dos afetos e
da razão humana. Hobbes e Espinosa parecem concordar ao negar qualquer
critério universal de bem e mal, e a identificar o bom e mau segundo um critério
subjetivo de utilidade no esforço de perseverar na existência222. Assim, os afetos,
para ambos os autores, não se relacionam a nenhum valor transcendente mas

se tornado para um número cada vez maior de pessoas a relação fundamentalmente importante,
que lhes determinava a liberdade real e a perspectiva de realizarem suas plenas potencialidades,
era vista na natureza do indivíduo.” MACPHERSON, C.B. A teoria política do individualismo
possessivo – de HOBBES a Locke, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979, p. 15.
221
“On peut donc reprendre l’excellente formule d’A MATHERON : « tendre à persévérer dans
mon être c’est donc tendre à produire ce qui se déduit de ce que je suis, et de tout ce que je suis. »”
LAZZERI,Christian. Ob.cit.p.32.
222
“Pois as palavras bom, mau e desprezível são sempre usadas em relação a pessoa que as usa.
Não há nada que o seja simples e absolutamente, nem há qualquer regra comum do bem e do mal,
que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos.” HOBBES, Thomas. Ob.cit.p.58
101

derivam das experiências e encontros individuais na existência. Alegria ou tristeza


e seus derivados são determinados por critérios individuais e singulares de bom e
mau.

Porém, enquanto para Hobbes o bom e mau se distinguem pelas


sensações de prazer ou dor e pela experiência de favorecer ou entravar o
movimento vital, para Espinosa o bom e o mau se distinguem por causarem no
indivíduo uma variação de potência positiva ou negativa223. Assim, os dois
filósofos formularão análises dos afetos humanos baseados nas possíveis relações
entre as coisas externas e as variações no movimento vital ou na potência do
indivíduo224.

Cabe destacar, no entanto, que, embora ambos concordem ao afirmar


o caráter subjetivo do bom e do mau, e se aproximem bastante em suas definições
dos afetos humanos, duas compreensões do funcionamento e do papel da razão
totalmente distintas decorrem da importante diferença entre eles quanto à
compreensão do conatus.

Para Hobbes, a razão, assim com os demais poderes do homem, é um


instrumento para a conservação do movimento vital225. Mais uma vez a relação
transcendente de mediação e finalidade se estabelece na enunciação da razão
como um cálculo instrumental subordinado ao esforço de preservação do ser.
Além disso, o funcionamento da razão é, para Hobbes, um cálculo
sempre voltado para o futuro. Sempre tendo em vista a futura preservação do
movimento vital, a razão hobbesiana opera com o cálculo dos poderes que
encontra disponível e com a previsão de possíveis riscos e ganhos numa lógica
mercadológica. O cálculo racional hobbesiano opera por meio da comparação de
seus meios de preservação da vida e dos perigos que outros indivíduos e eventos
futuros poderão ocasionar. Neste contexto, a razão é sempre fundada no medo,

223
“I – Por bem entenderei aquilo que sabemos com certeza ser-nos útil. II – Por mal, ao contrário,
aquilo que sabemos com certeza que nos impede de nos tornarmos senhores de um bem qualquer.”
Spinoza, Definições da Parte IV da Ética.
224
Neste sentido é curioso destacar que tanto HOBBES no capítulo VI do Leviatã, como Espinosa
na parte III da Ética enumeram definições dos afetos do homem, como antes deles já fizera
Descartes.
225
“Que le principe de conservation commande en nous toutes nos fonctions et tout la vie de
relation cela signifie qu’il commande la vie affective mais cela signifie aussi qu’il commande
l’usage de la raison elle-même : (...) HOBBES fait de la raison un instrument au service des désirs
et donc, pour lui, du movement animal : elle est destinée à la recherche des moyens adéquats à la
fin que remplit ce dernier.” LAZZERI, Christian. Ob.cit.p.36.
102

numa tentativa de previsão de riscos futuros, numa lógica competitiva e


controladora226.
Já Espinosa enuncia uma compreensão diferente da natureza e do
funcionamento da razão. Sempre no registro da imanência, para o filósofo
holandês a razão não é compreendida meramente como um instrumento na busca
do útil, mas ela, em si, já é expressão do conatus e utilidade em si mesma. O uso
da razão em Espinosa não é simplesmente um meio para a conservação de si, mas
expressão da potência produtiva, uma finalidade em si mesma, uma virtude227.
Também em oposição a Hobbes, a razão espinosana não opera sempre
e todo o tempo voltada para a previsão e controle de eventos futuros. Por certo, o
cálculo entre bens e males futuros é uma característica da razão, mas os eventos
presentes, ou mais próximos no tempo, tem sempre maior influência no cálculo
racional espinosano228. Neste sentido, a razão espinosana, menos controladora,
não se perde em previsões, mas busca sempre operar com maior intensidade com
relação a eventos presentes e necessários.
E, por fim, sempre em oposição à concepção hobbesiana, podemos
destacar que a razão em Espinosa não se funda no medo, e nem opera pela lógica
competitiva do cálculo e da comparação. O exercício da razão para Espinosa,
como virtude que leva sempre, e por si só, a um aumento da potência de existir, é
necessariamente acompanhado por afetos alegres. A alegria acompanha sempre a
razão já que esta é expressão do conatus, determinada pela atividade da mente e
elemento essencial à liberdade. Neste sentido, a razão espinosana, nasce da
experiência do comum, é através da formação de noções comuns que a mente
alcança a formulação de ideias adequadas. Enquanto em Hobbes o medo e a
competitividade guiam a razão, em Espinosa a razão é sempre acompanhada da

226
“Os atos de cada indivíduo são determinados por seus apetites e aversões, ou melhor, pelos seus
cálculos quanto aos prováveis efeitos sobre a satisfação de seus apetites, causados por qualquer
ação que ele possa empreender”. Macpherso, C.B. Ob. Cit. Pg. 43
227
“Depois, visto que este esforço da alma [mente], pelo qual a alma [mente], enquanto raciocina,
se esforça por conservar o seu ser, não é outra coisa que compreender; este esforço por
compreender é, portanto, o primeiro e único fundamento da virtude; e não é em vista de um fim
qualquer que nós nos esforçaremos por conhecer as coisas; mas pelo contrário, a alma [mente],
enquanto raciocina, não poderá conceber nada como bom para si, senão o que conduz ao
conhecimento.” Spinoza, Demonstração da Proposição XXVI da Parte IV da Ética.
228
“Uma afecção, cuja causa nós imaginamos que está presente no momento atual, é mais forte
que se imaginássemos que ela não está presente.” Spinoza, Proposição IX da Parte IV da Ética. E
ainda: “Somos afetados mais intensamente relativamente a uma coisa futura que nós imaginamos
que sucederá em breve do que se imaginássemos que o tempo da sua existência está ainda muito
longe do presente.” Spinoza, Proposição X da Parte IV da Ética
103

alegria e deriva necessariamente de uma experiência de comunidade, da


identificação de uma relação de composição. Vale a pena lembrar que, como já
vimos no capítulo 1, ao tratarmos dos gêneros de conhecimento, a razão, em
Espinosa, opera com noções comuns, portanto, com o que existe em cada parte de
um todo, o que existe no todo e nas partes, de maneira que a própria natureza da
razão leva ao comum e não ao competitivo, próprio da imaginação.

2.3.4

Liberdade

Destas divergências entre as concepções antropológicas dos dois


autores decorre uma inconciliável diferença entre o que Hobbes e Espinosa
entendem por liberdade. O autor inglês tem uma concepção estritamente
mecanicista da liberdade e, inspirado pelas leis da física, identifica a liberdade à
ausência de coação ou impedimentos externos. Neste sentido define o autor no
Leviatã:

Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a


ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram
parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a
que use o poder que lhe resta, conforme o seu julgamento e razão lhe
ditarem.229

Assim, Hobbes defende que a liberdade é uma condição física que


depende do meio, de forças de coação externas. Se o indivíduo não encontra
qualquer óbice à sua ação, na ausência de impedimentos ao exercício de seu poder
e de seu direito, este indivíduo é dito livre. A contrario sensu, se qualquer
condição externa impede um indivíduo de realizar seu desejo, este não é livre230.
Algumas conseqüências desta noção de liberdade evidenciam sua
distância do mesmo conceito espinosano. Já vimos que, para Espinosa a liberdade
não é mensurada pela presença ou ausência de impedimentos externos. Pelo
contrário, em Espinosa a liberdade toma como critério a causa dos encontros e dos

229
HOBBES, Thomas. Leviatã, cap. XIV, pg.113.
230
“La liberté, on le voit, est donc tout autre chose que le pouvoir : elle est l’absence de tout
obstacle extérieur susceptible de nous empêcher de faire ce que nous voulons faire pour le cas où
nous arions le pouvoir de le faire. » MATHERON, Alexandre. « Le droit du plus fort » in Revue
Philosophique de la France et de l’ètranger – HOBBES et Spinoza, nº 2/1985, p. 153
104

afetos de um indivíduo. Para nosso filósofo, se um indivíduo é levado à ação e aos


afetos somente por uma causa adequada, tendo somente seu próprio conatus como
causa, diz-se que este é livre. Pelo contrário, quanto mais determinado for um
indivíduo por causas externas, quanto mais padecer de afetos cujas causas lhe
sejam externas, quanto mais movido por ideias inadequadas, parciais e mutiladas,
menos livre ele será231.
Daí podemos concluir que, enquanto em Hobbes a liberdade tem por
parâmetro a presença ou não de impedimentos externos, tomando, portanto, o
meio como critério, em Espinosa não são os obstáculos externos que servirão de
medida para a liberdade ou a servidão, mas a causa que leva os indivíduos a agir
ou padecer. Enquanto o autor inglês parte de uma definição negativa do meio,
como ausência de coação ou obstáculo232, para construir sua concepção de
liberdade, Espinosa identifica a liberdade com a causalidade adequada, com a
expressão do conatus.
Outra conseqüência da noção hobbesiana de liberdade que a distancia
da de seu contemporâneo holandês é que para Hobbes a liberdade é uma
característica meramente física capaz de ser alcançada individualmente. Alcançar
e manter a liberdade, para o filósofo inglês, é uma tarefa unicamente individual,
que depende apenas da relação entre o indivíduo e seu meio, a liberdade não
depende e dispensa qualquer encontro com outros indivíduos. Nesta perspectiva
se evidencia novamente o individualismo de Hobbes233.
Já para Espinosa a liberdade não é um exercício meramente individual,
mas pelo contrário, é mais útil ao homem que se conduz pela razão viver na
sociedade civil do que na solidão.234 Para alcançar a liberdade e ser causa
adequada de si e de seus encontros e afetos Espinosa vai destacar que bons

231
Sobre a discussão acerca do conceito de liberdade em Espinosa remetemos o leitor ao nosso
Capítulo 1. “Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que
por si só é determinada a agir. E diz-se necessária, ou melhor, coagida, aquela coisa que é
determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada.” EI, definição 7.
232
“La libertad postula una definición negativa del medio como ausencia de obstáculo, como
medio vacío que permite el movimiento. Uno de los objetivos de HOBBES: la vacuidad del medio
frente a la potencia y al desarrollo del individuo que busca su utilidad.” ALTHUSSER, Louis.
Política e historia: de Maquiavelo a Marx. Cours à l’École normale supérieure 1955-1972,
Madrid: Katz, 2007, pg. 258
233
“A concepção política de Th. HOBBES é muito mais sutil do que pode parecer à enunciação de
seus princípios iniciais. Tomando como ponto de partida uma concepção individualista e realista
do homem, recusando previamente qualquer pressuposto moral...” CHÂTELET, François, et alli,
História das ideias políticas, Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2000, pg. 53.
234
“O home que se conduz pela razão é mais livre na sociedade civil, onde vive de acordo com leis
comuns, do que na solidão, onde obedece apenas a si mesmo” EIV, prop. 73
105

encontros com outros homens são fundamentais. Da mesma forma, a concepção


espinosana de liberdade faz a liberdade não depender apenas de um esforço
individual, mas vai ressaltar que ninguém é livre numa sociedade de escravos.
Veremos a seguir, nos dois próximos capítulos, como se desenvolve esta ideia no
pensamento político de Espinosa, e, em que termos, a liberdade individual é
também liberdade política. A liberdade Ética é alcançada pelo exercício da razão e
esta é, como já mencionamos, sempre a experiência do comum, constitui-se a
partir da experiência das noções comuns. A liberdade, em Espinosa, tem como
terreno a experiência do comum e não o individualismo solitário ou competitivo.

2.3.5

A constituição do campo político

As divergências entre os dois autores, no que concerne a concepção


antropológica, se exprimem também no que tange ao pensamento político, às
posições de ambos acerca da gênese do campo político, dos afetos que perpassam
a sociedade civil, ao conceito de soberania e à relação entre direito natural e
direito civil. Desde a afirmação do medo ou da alegria como afetos constituintes
do político até os limites do exercício do poder político, passando pelas diferentes
noções de direito natural e resistência, Hobbes e Espinosa discordam tanto no
pensamento político como nas considerações acerca da própria essência e
liberdade humanas.
Entre as considerações a respeito do homem e as ideias a respeito do
político, Hobbes e Espinosa concordam ao encontrarem nas paixões humanas o
móbil essencial da constituição do político. Negando qualquer determinação
transcendente, ambos os autores buscam na gênese do político afetos humanos.
No entanto, não são os mesmos afetos que constituem o campo político para
Hobbes e Espinosa. Veremos que, enquanto Hobbes faz a sociedade civil nascer
do medo, medo da morte violenta, Espinosa identifica no Estado um esforço de
alegria, um esforço pela liberdade.
Na ambição, tão característica de seu tempo, de enunciar a política
como campo distinto das crenças teológicas e do Poder transcendente de Deus,
106

Hobbes e Espinosa afirmam nas paixões humanas a gênese do político235. Ambos


elaboram uma teoria das paixões humanas, evidenciando nos conflitos decorrentes
da própria natureza humana a mola mestra que determina o político236. Tanto em
Hobbes quanto em Espinosa, a política é o campo do jogo das paixões, tendo
como norte sempre o esforço de todos os homens pela conservação de si.
Porém, se nossos autores concordam ao afirmar a natureza passional
do jogo político, e ao identificar no conatus o esforço não só de conservação de si
mas, para isto, de constituição da sociedade civil, as semelhanças entre eles,
também neste tema, nos parecem menores que as diferenças.
Hobbes é o autor do medo. Desde sua biografia até todas as letras de
seu pensamento político, o autor inglês reiteradamente afirma o medo como a
principal paixão a motivar-lhe ações e palavras237. Em sua autobiografia Hobbes é
explícito ao dizer: “minha mãe pariu dois gêmeos, eu e o medo”238 Na sua
descrição da gênese do político, Hobbes parte de um estado de natureza de guerra,
para encontrar no medo o motor da constituição do político e da obediência ao
soberano.

2.3.5.1

Estado de natureza

O direito natural em Hobbes é a expressão pura do conatus, e o esforço


individual pela sobrevivência. As qualidades humanas são distribuídas de forma

235
“HOBBES foi o primeiro pensador político a ver a possibilidade de deduzir os deveres
diretamente dos fatos mundanos das relações reais dos indivíduos entre si, inclusive a igualdade
inerente a essas relações; tendo visto essa possibilidade, foi o primeiro a dispensar suposições de
desígnios ou vontade externa” MACPHERSON, C.B. A teoria política do individualismo
possessivo...pg. 97.
236
“De fato, os dois filósofos elaboram uma teoria das paixões como manifestação originária da
natureza humana e de cujo jogo nascem o medo recíproco e o desejo de dominação,
desencadeando conflitos que exigem o advento da vida política, se os homens desejarem-se
conservar-se em vida. Para ambos, a política é o campo privilegiado para conter a violência
natural, diminuir o medo, e sobretudo, para evitar a funesta conseqüência do terror do
desconhecido, isto é, a superstição.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...p. 290.
237
“O medo, gêmeo de um pensador, marcando-o desde o nascimento, enlaçado com ele feito
herança ou gene, como seu direito ou natureza; a vida e obra de HOBBES são pontuadas por esta
paixão.” RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo – HOBBES escrevendo contra o seu tempo.
2ªed., Belo Horizonte: UFMG, 1999. p.17
238
“...metum tantum concepti tunc mea mater, Ut paretet geminos, méque metúmque simul”
Thomae HOBBESii Malmesburiensis Vita authore seipso, 1679, p.2 apud RIBEIRO, Renato
Janine. Ao leitor sem medo – HOBBES escrevendo contra o seu tempo. 2ªed., Belo Horizonte:
UFMG, 1999. p.17
107

diferente na natureza de maneira que, o filósofo inglês o reconhece, diferentes


homens têm diferentes faculdades: uns são mais fortes, outros mais espertos,
outros mais rápidos. No entanto, na natureza nenhuma dessas habilidades de um
indivíduo, considerado isoladamente, é suficiente para garantir sua superioridade
e segurança perante os demais. Na natureza as diferenças entre os homens se
compensam umas às outras, de forma que os homens encontram-se numa situação
de igualdade natural entre si, onde nenhum pode assegurar domínio sobre os
demais. Todos estão, o tempo todo, expostos a ataques de outros, e cada um pode
ser superado por outros em determinado aspecto e vencê-lo. A morte é o critério
de igualdade239. A igualdade natural dos indivíduos leva todos a temerem-se entre
si todo o tempo.

A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do


espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais
forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando
se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem
não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com
base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também
aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força
suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer
aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.240
(grifo nosso)

Hobbes identifica na natureza duas espécies de igualdade entre os


homens que serão determinantes para a compreensão de sua concepção acerca do
estado de natureza e da instituição do político. A primeira delas é a igualdade
natural que está presente inexoravelmente na equivalência entre as diferentes
capacidades dos homens, sejam considerados individualmente ou em conjunto.
Como já exposto, nenhum homem pode considerar-se tão mais poderoso que os
outros a ponto de não poder ser vencido pelos outros atuando individualmente ou
em conjunto, e tal realidade determina a insegurança e a ameaça constante entre
os homens241. Uma vez que nenhum homem, embora com características distintas,

239
“Asimismo, los hombres son iguales en su desigualdad física misma, puesto que cualquier
hombre puede matar a cualquier hombre: la muerte es el criterio de la igualdad” ALTHUSSER,
Louis. Ob cit. Pg. 259.
240
HOBBES, Thomas. Leviatã, Primeira Parte, Capítulo XIII, pg. 107.
241
“HOBBES postula duas espécies de igualdade entre os indivíduos: igualdade de capacidades e
igualdades de expectativas de satisfazer suas necessidades. Cada uma delas acarreta, na opinião de
HOBBES, uma igualdade de direitos. A igualdade de capacidades é afirmada como evidente a
partir da experiência e da observação. Os indivíduos não são absolutamente iguais em capacidades,
108

pode considerar-se absolutamente mais poderoso que o outro, ou que os outros


agindo em conjunto - na ausência de um poder soberano que garanta a paz - reina
a todo tempo o medo.
A segunda espécie de igualdade é determinada pelo próprio conatus e
consubstancia-se no fato de que todos os homens, por natureza, seguem seus
apetites, buscam satisfazer seus desejos e se esforçam pela própria sobrevivência.
Assim, todos os homens igualam-se na mesma ambição pelas melhores condições
de sobrevivência. Este norte individual comum a todos determina a competição e
a lógica mercadológica no cálculo racional das ações e da satisfação dos desejos.
Neste cenário, sempre ameaçados pelos outros, e buscando sempre a
mesma finalidade da sobrevivência individual, na ausência de um poder soberano
que regule as relações sociais, a atitude que parece, pelo cálculo racional, a mais
útil e prudente a todos os homens é o ataque aos demais, seja para vencê-los ou
simplesmente para prevenir a possibilidade de um ataque242. É impossível aos
homens terem certezas das intenções de seus semelhantes, e ao mesmo tempo,
sabem por experiência própria que todos buscam a sua própria utilidade e
sobrevivência, assim, a todo instante temendo seus pares, os homens
racionalmente preferem atacar a serem atacados, preferem a guerra à ameaça da
morte. A guerra de todos contra todos instaura-se então como marca distintiva do
estado de natureza hobbesiano.
Neste momento Hobbes critica abertamente a noção aristotélica do
homem como um animal político. A concepção antropológica hobbesiana que
sustenta sua mais célebre frase de que “o homem é o lobo do homem” é o oposto

mas são tão iguais que o mais fraco pode facilmente matar o mais forte...” MACPHERSON, C.B.
Ob. Cit. Pg. 84
242
“Neste texto célebre – e o que causou maior irritação contra HOBBES – ele não afirma que os
homens são absolutamente iguais, mas que são “tão iguais que...”: iguais o bastante para que
nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro. Todo homem é opaco aos olhos de seu
semelhante – eu não sei o que o outro deseja, e por isso tenho que fazer uma suposição de qual
será a sua atitute mais prudente, mais razoável. Como ele também é forçado a supor o que eu farei.
Dessas suposições recíprocas, decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o
outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um ataque possível: assim a guerra se
generaliza entre os homens. Por isso, se não há um Estado controlando ou reprimindo, fazer a
guerra contra os outros é a atitude mais racional que eu posso adotar (é preciso enfatizar esse
ponto, para ninguém pensar que o “homem lobo do homem”, em guerra contra todos, é um
anormal; suas ações e cálculos são os únicos racionais, no estado de natureza).” RIBEIRO, Renato
Janine. “HOBBES: medo e esperança” in WEFFORT, Francisco C. (org). Clássicos da política,
vol. 1. 10ª ed., São Paulo : Ática, 1998, pg. 55.
109

da proposta de zôon politikon que afirmaria a naturalidade da sociabilidade243.


Deixados na liberdade da busca por seus interesses pessoais, são a concorrência e
o temor recíprocos as principais características do homem em estado de natureza.
Os estado de natureza é, portanto, um paradoxo: por um lado a
liberdade pela ausência de regras ou leis que venham a coagir e restringir as ações
dos homens, mas por outro lado um estado de medo e guerra que acaba por
inviabilizar a própria vida244. Antes da instauração da sociedade civil, no
hipotético estado de natureza hobbesiano, que precederia a instituição do campo
político, o medo, e no caso, o medo da morte violenta, é o afeto constante que
determinará que os homens pactuem entre si um poder soberano comum.
Paralelamente, em Espinosa podemos também identificar uma
referência à noção de estado de natureza como um cenário de vida na ausência de
qualquer organização política. No entanto, não é ainda o momento de nos
dedicarmos a análise do estado de natureza em Espinosa e a sua concepção a
respeito da constituição do campo político. Por ser tema de central importância de
nossa pesquisa dedicaremos um tópico próprio no próximo capítulo a esta análise.
Cabe apenas ressaltar que a concepção espinosana a respeito do estado de
natureza e da instituição do campo político difere muito da tese hobbesiana.
Dentre todas as muitas diferenças que separam os dois autores, além
daquelas já pontuadas, assinalamos que em Espinosa não é o medo o móbil da
constituição do comum. Não é pelo medo - paixão triste - que os homens são
levados a constituírem leis e direitos comuns. Em Espinosa é a alegria o motor da
constituição do político, é o esforço pela liberdade, pela alegria, pelo aumento da
potência, o que leva os homens a constituírem o Estado.
Em Espinosa o Estado não é um poder soberano transcendente ao
campo social, sustentado pela tristeza do medo da morte violenta. Nosso filósofo

243
“Esta teoría se destaca en contraste sobre el fondo de la sociabilidad natural a la que rechaza.
HOBBES critica abiertamente la teoría del zôon politikon, fundada en una mala observación de la
naturaleza humana.” ALTHUSSER, Louis. Ob.Cit. pg. 262
244
“Assim, no estado de natureza – quando abstraímos, como mais tarde o explicará J. J.
Rousseau, o que a sociedade lhes trouxe – os homens, dispersos, são potências movidas pelo
desejo, não limitados por nada (são integralmente livres), a não ser pela incapacidade material, na
qual pode se encontrar, de satisfazer esse desejo. Nesse mesmo estatuto – que exclui toda ideia de
sociabilidade (benevolente) e de harmonia com o meio – ele experimenta, enquanto máquina
sensível, sentimentos entre os quais predominam a inveja e o medo, em particular o medo de sofrer
e de morrer. Desse modo, se a ordem natural – ordem mecânica – é a ‘lei dos lobos’, disso resulta
que o estado de natureza é, ao mesmo tempo e contraditoriamente, plena liberdade – aquém de
todo direito – e terror constante: ele é inviável.” CHÂTELET, François et alli. História das ideias
políticas. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2000, pg. 51
110

afirma o político sempre como esforço pela alegria, esforço pela liberdade e poder
imanente às relações de composição que constituem o campo político. Ainda que
se organizem em uma tirania, ainda que resulte das relações de composição do
campo social, um poder que se exerça de forma violenta, ou mesmo usurpando
para interesses privados a potência da multidão, em sua gênese, todo campo
político em Espinosa se constitui por relações de composição, pela semelhança,
pelo esforço por afetos comuns, pelo esforço pela liberdade e pela alegria. O que
pode desvirtuar este esforço em servidão é a questão central desta pesquisa que
analisaremos mais detalhadamente a seguir.

2.3.5.2

Pacto social e o Leviatã

Mas voltemos a Thomas Hobbes. O medo ganha, pelas mãos do autor


inglês, a centralidade do campo político. A liberdade da falta de um poder
soberano no estado de natureza, aquela liberdade entendida estritamente como
ausência de coação externa é, ao mesmo tempo, o campo da guerra permanente e
do medo recíproco. São homens medrosos e potenciais inimigos entre si que são
impelidos a acordarem um poder soberano comum e transcendente. O pacto social
em Hobbes não é tanto um acordo de vontades que buscam a convivência ou a
experiência de alegrias comuns, mas um pacto de não agressão entre inimigos que
buscam a sobrevivência individual. Mais uma vez se evidencia, na concepção
hobbesiana do pacto social, o individualismo do autor.
Mesmo na instituição da sociedade civil os homens não agem em
conjunto com objetivos ou interesses coletivos, a multidão em Hobbes não é,
como veremos em Espinosa, um indivíduo coletivo conduzido como que por uma
mesma mente. A multidão que firma o contrato social hobbesiano é um agregado
de indivíduos atomizados, cada um visando acima de tudo seus interesses e sua
sobrevivência individual245.

245
“...la multitude qui fonde le contrat n’est pas chez lui ( HOBBES ) le concept de la masse, c’est
le concept d’un peuple toujours déjà décomposé, reduit par avance ( préventivement ) à la somme
de ses atomes constituants ( les hommes de l’État de Nature ), et susceptibles d’entrer un par un,
par le contrat, dans le nouveau rapport institutionnel de la société civile. » BALIBAR, Étienne. La
crainte des masses, Paris: Galilée, 1997, p. 74
111

O pacto social de Hobbes institui um poder soberano que transcende a


soma dos indivíduos que compactuam. O Leviatã, que nasce do acordo entre os
homens conduzidos pelo medo, não é uma parte no contrato. O soberano não
compactua com os cidadãos, mas transcende o acordo de vontades e passa a
governar a sociedade civil como um “Deus mortal”, ditando leis e ordens que
devem aplacar o medo da morte violenta de seus súditos em troca da obediência.
Em Thomas Hobbes a relação entre cidadãos e o soberano é assimétrica, é uma
relação de sujeição246.
Neste cenário, é fácil compreender porque, em Hobbes, o direito
natural desaparece na sociedade civil, sendo substituído pelo direito civil, tendo
uma existência meramente residual de um limite ao poder da lei quando se trata da
vida e da morte. Vale lembrar que é neste ponto que encontramos a diferença que
o próprio Espinosa estabelece entre seu pensamento político e aquele de seu
contemporâneo Hobbes. Espinosa escreve a seu amigo Jelles ressaltando que, ao
contrário de Hobbes, guarda o direito natural mesmo no estado civil pois, como
vimos, para nosso filósofo, direito é potência e ninguém pode transferir
integralmente sua potência a outrem247.
O Leviatã hobbesiano concentra em suas mãos todo o Poder do Estado.
Não existe no poder absoluto de Hobbes qualquer possibilidade de divisão dos
poderes. O soberano concentra em suas mãos as funções legislativa, executiva e
judiciária. O soberano não pactua limites no exercício de seu poder sobre os
súditos, é livre como um indivíduo no estado de natureza. Comentando este
aspecto, Louis Althusser chega a dizer que o Leviatã hobbesiano é a restauração
do estado natureza entre um só e todos248.

246
“Este contrato político de sumisión no es un simples contrato entre el príncipe y el pueblo
(contrato feudal); un contrato de tipo príncipe/pueblo conduce a la anarquía, pues no hay tercero,
no hay juez exterior que haga respectar el contrato.
Este contrato es asimétrico, estructurado en dos niveles: entre todos los individuos de la sociedad
en primer lugar, que aceptan no oponerse, y que luego se ponen de acuerdo para alienar una parte
de sus derechos en el príncipe.
Asimetría del contrato en tanto le reciprocidad (de todos los individuos) tiene por contenido a un
tercero que está fuera del contrato; este tercero, por su parte, recibe una donación de derecho.
Entre el príncipe y el pueblo (después de su contrato) no hay reversibilidad: el soberano no se
compromete a nada: recibe.” ALTHUSSER, Louis. Ob. Cit. Pg. 270
247
Carta 50 de Espinosa para Jarig Jelles
248
“La teoría del poder absoluto es la de un individuo absoluto que está en el estado de naturaleza
con respecto a sus súbditos, y una restauración del estado de naturaleza entre un solo y todos. El
poder absoluto es guerra de uno solo contra todos. Pero la guerra no puede tener lugar, pues sólo el
112

Nesse sentido, na relação política que nasce com o contrato social o


soberano tem apenas um dever que advém de sua própria gênese: o dever de livrar
seus cidadãos da ameaça constante da morte violenta. Já os cidadãos transferem
ao soberano seu direito natural de livremente escolherem os melhores meios de
buscarem sua sobrevivência individual, seu direito natural de atacarem seus pares
no esforço pelas melhores condições de manutenção do seu movimento vital. Em
troca da segurança contra a ameaça constante de morte violenta, os cidadãos
aceitam submeterem-se às leis civis e ordens ditadas pelo soberano.
Neste cenário, Thomas Hobbes trabalha com o conceito de
transferência de direito. Para Hobbes, a transferência de direito é um evento que
segue as leis da física, como a transferência da força de movimento entre dois
objetos que se chocam, um em movimento e outro que antes parado ganha
impulso pelo contato com o movimento do primeiro.
Os cidadãos, ao pactuarem a existência de um poder transcendente,
transferem a este novo soberano seu esforço pela sobrevivência. Da soma dos
direitos naturais individuais nasce um poder que, fora do pacto social, regula as
relações inerentes à sociedade civil e passa a ser responsável pela segurança de
cada cidadão. O poder do Leviatã transcende a soma dos direitos naturais
individuais. Apesar de negar, na gênese do poder político, qualquer poder
transcendente divino, que venha instituir a soberania - apesar de reconhecer no
próprio jogo das paixões humanas o campo do político - ao afirmar sua concepção
do pacto social, Thomas Hobbes reinventa a soberania transcendente pela figura
do soberano, que nasce ou resulta da transferência de direitos dos cidadãos para
um “Deus mortal” que não participa dos, nem se limita pelos termos do contrato
social249.

soberano cuenta con todos los poderes. El soberano tiene sobre la ciudad los mismos poderes que
un hombre sobre sus facultades.
Resutado: HOBBES rechaza toda división de poderes (ejecutivo, legislativo, judicial), que se
confunden en el mismo hombre. La confusión del legislativo y del ejecutivo es específica aquí: el
príncipe dicta las leyes, hace el derecho. El rey es todos los poderes.” ALTHUSSER, Louis. Ob.
Cit. Pg.271,272.
249
“A soberania uns e indivisível do Estado é ilimitada: o contrato que a estabelece não a sujeita a
nenhuma obrigação, salvo a de assegurar a tranquilidade e o bem-estar dos contratantes. Temos
aqui o deus mortal, o Leviatã, esse monstro da lenda fenícia que é evocado pela Bíblia para dar a
imagem de uma força corporal à qual nada resiste. Dessa feita, a laicização completa da plenitudo
potestas dos teólogos realiza-se na própria noção do Estado.” CHÂTELET, François et alli,
História das ideias políticas... Pg. 51 e 52
113

Neste sentido, Hobbes elabora os fundamentos capazes de sustentar, na


temporalidade das relações humanas, sem qualquer recurso à teologia ou ao
direito divino, o nascente absolutismo que já se espraiava pela Europa. Não é por
outra razão que, com medo da ameaça de guerra civil, que já era clara na
Inglaterra em 1640, o autor inglês se refugia na França. Suas posições
monarquistas já eram conhecidas no círculo intelectual inglês e, medroso como
ele mesmo admite, Hobbes receava represálias por suas ideias acerca da
soberania250.
Cabe aqui a ressalva de que, como veremos mais detalhadamente a
seguir, tanto o conceito de pacto social como o de transferência de direito também
aparecem em Espinosa, no Tratado Teológico Político, no entanto os significados
destes termos no autor holandês recebem outra significação quando interpretados
no conjunto de sua obra251. O pacto espinosano não é um contrato entre indivíduos
medrosos nem resulta na instituição de um poder soberano transcendente.

2.3.5.3

Direito natural e direito civil

Sobre a relação entre direito natural e direito civil em Hobbes podemos


destacar que são duas as formas que o autor inglês admite para a expressão do
direito natural dos súditos na sociedade civil. Primeiro, o direito natural aparece
como instância subsidiária do direito civil e individual, como resíduo não
pactuado252. Ou seja, o direito natural dos súditos pode ter voz no que silencia o
direito civil. Em segundo lugar, o direito natural subsiste na sociedade civil como
expressão limite do conatus, nos casos em que o súdito, por natureza, seja
obrigado a defender sua sobrevivência, neste caso o direito natural é uma

250
“Com orgulho, na defesa de sua reputação contra o dr. Wallis, o filósofo [HOBBES] revela que
em 1640, ao ser instalado um Parlamento hostil ao governo autoritário do rei, foi ele ‘o primeiro de
todos os que fugiram’...” RIBEIRO, Renato Janine. Ob. Cit. Pg.17
251
“[Em Espinosa] não há pacto porque os homens constituem um indivíduo coletivo ou um corpo
complexo e uma mente complexa dotados de todo poder que seus constituintes lhe conferem: o
corpo político. O poder político (imperium) é, portanto, o direito natural comum ou coletivo.”
CHAUÍ, Marilena. Política e, Espinosa... pg. 299
252
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...pg. 296
114

virtualidade, uma inclinação latente que pode atualizar-se em algumas


circunstâncias excepcionais253.
Sobre o direito natural que persiste no silêncio do direto civil, este
refere-se às instâncias decisórias individuais onde o direito civil nada determina.
O poder do soberano hobbesiano é ilimitado, no entanto, quando este se abstém de
regular determinada situação o direito natural dos súditos pode então fazer-se
valer mesmo na sociedade civil.
Já a compreensão hobbesiana do direito natural como virtualidade
latente de resistência - o tema dos limites ao poder soberano - tem
desdobramentos mais ricos. Até onde pode o soberano dispor da vontade e da vida
de seus súditos é uma questão das mais interessantes no estudo da soberania em
Hobbes.
Vimos que o soberano hobbesiano não participa dos termos do
contrato social: transcendente às relações que constituem a sociedade civil, o
Leviatã governa os homens como poder soberano que não deve obediência a nada
ou ninguém. No entanto, a instituição do campo político responde a um afeto e
uma finalidade: o medo e a consequente busca por segurança contra a ameaça de
morte violenta. Ainda que transfira seu direito natural ao soberano, nenhum
homem pode voluntariamente agir em contrariedade ao seu essencial esforço pela
sobrevivência, o conatus hobbesiano é a essência, em última instância, inegável de
todos os homens.
Assim, Hobbes afirma que o soberano pode dispor da vida de seus
cidadãos, mas é uma impossibilidade física obrigar os homens a negarem
espontaneamente o esforço pela própria sobrevivência individual. O limite ao
Leviatã configura-se então como limite físico natural decorrente da afirmação do
conatus.
Valores ou princípios de justiça, liberdade, dignidade ou quaisquer
outros supostos direitos naturais inatos decorrentes de um ideal de condição
humana não são oponíveis ao exercício do poder soberano. São as leis do Estado
civil que estabelecem o que é justo ou injusto, certo ou errado, os limites da
liberdade e o que é a dignidade humanas, e não o contrário. No entanto, é
impossível até mesmo ao soberano contrariar a natureza dos homens que, em

253
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg. 296
115

essência, se esforçam pela sobrevivência. Encontramos aí o limite do exercício do


poder político soberano em Thomas Hobbes. O autor inglês diz expressamente:

Porque ao permitir-lhe que me mate não fico obrigado a matar-me, quando


ele mo ordena. Uma coisa é dizer mata-se ou a meu companheiro, se te
aprouver; e outra coisa é dizer matar-me-ei, ou a meu companheiro. Segue-se
portanto que: Ninguém está obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si
mesmo ou a outrem. Por conseqüência, que a obrigação que às vezes se pode
ter, por ordem do soberano, de executar qualquer missão perigosa ou
desonrosa, não depende das palavras da nossa submissão, mas da intenção, a
qual deve ser entendida como seu fim. Portanto, quando nossa recusa de
obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania, não há
liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade.254

Que os homens pactuem a renúncia à sua liberdade natural, aos seus


juízos de valor individuais, pela constituição de um poder soberano que lhes
assegure a segurança contra a morte violenta e o fim da guerra de todos contra
todos é resultado de um cálculo racional pela sobrevivência, e é a gênese da
sociedade política em Hobbes. Mas a partir do momento em que tal renúncia se
impõe como renúncia ao próprio esforço pela sobrevivência cessa o dever de
obediência do cidadão e é legítima a resistência, mesmo que esta se afirme contra
um poder soberano e transcendente que não está sujeito aos termos do contrato
social inicial255.
Neste sentido, podemos afirmar que mesmo a soberania absoluta
hobbesiana encontra um limite natural. O conatus, ainda que restrito ao esforço
pela sobrevivência e pelo cálculo racional para a manutenção do movimento vital,
ainda numa concepção individualista de homem e transcendente do poder político,
impõe um limite ao poder soberano. Mesmo em Thomas Hobbes, autor famoso
por suas posições monarquistas e proximidade com o absolutismo, a resistência,
ainda que como mera reação negativa, se afirma contra a tirania.
Em contraposição, veremos a seguir que, em Espinosa, a resistência
ganha um papel muito mais significativo no campo político, afirmando-se também
como potência ativa de constituição do político. Na concepção espinosana acerca

254
HOBBES, Thomas. Leviatã, cap. XXI, pg. 176.
255
“Mas, dando poderes ao soberano, a fim de instaurar a paz, o homem só abriu mão de seu
direito para proteger sua vida. Se esse fim não for atendido pelo soberano, o súdito não lhe deve
mais obediência – não porque o soberano violou algum compromisso (isso é impossível, pois o
soberano não prometeu nada), mas simplesmente porque desapareceu a razão que levava o súdito
a obedecer. Essa é a ‘verdadeira liberdade do súdito.” RIBEIRO, Renato Janine. “HOBBES: medo
e esperança”...pg.68.
116

do político, ao contrário de Hobbes, o poder não transcende o campo social e


encontra os termos e limites de seu exercício na própria potência da multidão.
Expusemos aqui, brevemente, algumas características do pensamento
político de Thomas Hobbes. Não sendo o objeto central buscamos evidenciar
alguns aspectos centrais para a compreensão, não só do pensamento do autor
inglês, mas sobretudo para evidenciar o alcance e a anomalia das ideias
espinosanas que abordaremos a seguir, frente a um de seus principais
contemporâneos. No capítulo seguinte apresentamos a concepção espinosana do
campo político, como terreno do esforço pela alegria e pela liberdade, a
constituição do poder político como expressão imanente da potência da multidão e
o pensamento político de Espinosa como afirmação da resistência ativa e da
democracia.
3

A constituição do campo político

Espinosa não é Hobbes. Como vimos no item anterior muitas


semelhanças aproximam o pensamento de Hobbes e Espinosa, no entanto, as
diferenças entre eles nos permitem dizer categoricamente que não se deve
confundir qualquer colocação a respeito de Espinosa com termos Hobbesianos.
Antonio Negri chega a chamar Espinosa de o anti-Hobbes256. Ainda que, por
muitas vezes, utilizem os mesmos termos – como conatus, por exemplo –
Espinosa e Hobbes se distanciam em níveis tão fundamentais que é preciso
separá-los expressamente, como o fizemos no início deste parágrafo.
A constituição do campo político é um dos assuntos onde Espinosa e
Hobbes não se encontram. Já fizemos algumas observações essenciais sobre o
medo e o político em Hobbes. Analisaremos agora, mais detidamente, o
pensamento de Espinosa acerca do político: a constituição da multidão como
sujeito político, a democracia intrínseca ao imperium, a instituição das leis
comuns, a alegria e o desejo como afetos constitutivos da gênese do político.

3.1

A multidão como sujeito político

Ao contrário de Hobbes, em Espinosa o conatus não é apenas esforço


pela sobrevivência física, não se trata de um esforço pela preservação de um
movimento vital. Da mesma forma, ao buscar o convívio com outros homens não
é apenas o medo da morte violenta que determina a constituição do político. Em
Espinosa, o conatus é esforço pela preservação das relações de composição que
constituem um indivíduo, relações que podem ser físicas, mas também relativas à
mente, às ideias e aos afetos que constituem a individualidade ou subjetividade257.

256
NEGRI, Antonio. Anomalia selvagem...pg.157
257
Utilizaremos aqui indistintamente os termo individualidade e subjetividade, sendo certo que
desenvolveremos nossa análise sobre a constituição de ambas também como sinônimos.
118

A subjetividade, em Espinosa, se constitui na experiência dos


encontros e dos afetos que os acompanham, não há sujeito prévio à experiência.
Assim, tornar-se humano é um devir de encontros com outros semelhantes a nós,
o subjetivo, em Espinosa, é necessariamente, também, intersubjetivo. Daí porque,
para nosso filósofo, não há transcendência entre indivíduo e sociedade. Indivíduos
atomizados não pactuam a instituição da sociedade, nem a sociedade determina
valores transcendentes aos indivíduos.
Para Espinosa, a constituição do sujeito político se dá numa mecânica
afetiva absolutamente imanente, na busca pela experiência de afetos comuns. A
multidão é multiplicidade de singularidades, que não se aprisiona na
transcendência de qualquer discurso da soberania, nem nos limites dos termos
povo, nação ou massa, tão caros ao pensamento político hegemônico. O sujeito
político espinosano constitui-se ininterruptamente, de forma imanente, na
mecânica da imitação afetiva e é ao mesmo tempo expressão das singularidades
de seus constituintes e o múltiplo da democracia.

3.1.1

Indivíduo e subjetividade

Nosso filósofo não toma o sujeito como uma estrutura prévia à


experiência. É nos encontros com outras coisas singulares que se constitui o que
Espinosa entende por subjetividade. Como vimos em nosso capítulo 1, um
indivíduo pode ser composto por várias partes mais simples, que se associam e
constituem a causa comum de um mesmo efeito. A definição 7 da Ética II traz a
previsão da constituição de uma coisa singular composta por diversas partes:

Por coisas singulares compreendo aquelas coisas que são finitas e que têm
uma existência determinada. E se vários indivíduos contribuem para uma
única ação, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa de um
único efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma única coisa
singular.

Neste sentido, o homem, para Espinosa, corpo e mente, é um


indivíduo composto. O corpo humano é uma relação entre partes extensas258 e a

258
E II, postulado 1: “O corpo humano compõe-se de muitos indivíduos (de natureza diferente),
cada um dos quais é também altamente composto.”
119

mente, ideia desse corpo, é também uma relação entre ideias259. A subjetividade
ou individualidade, aquilo que diferencia um homem de outro, seu semelhante,
não é outra coisa que as relações que lhe são constitutivas, relações entre partes
extensas, no corpo, e relações entre ideias, na mente.
No entanto, nenhum homem existe só ou isolado do encontro com
outras coisas singulares, e cada indivíduo composto traz em si um poder de afetar
e ser afetado por outras coisas singulares. Como cada coisa singular traz em si
uma potência, traz em sua essência um esforço de perseverar na existência, cada
indivíduo traz em sua essência uma potência de afetar e ser afetada por outras
coisas singulares.
O conatus, que determina a potência de existir de cada indivíduo, no
universo dos encontros necessários entre as coisas singulares, determina que,
necessariamente, as coisas se afetam mutuamente, causando-lhes variações de
potência que podem ser positivas, negativas ou neutras. Todo indivíduo está
inexoravelmente imerso em ordens necessárias de encontros e variações de
potência, que podem determinar-lhe um aumento ou uma diminuição de potência,
ou mesmo uma transformação de sua individualidade em outra coisa: sua morte.
Ao tratarmos do tema da individualidade ou subjetividade em
Espinosa, sobre as variações ou transformações às quais está sujeito um indivíduo,
no universo dos encontros, chegamos necessariamente ao tema da relação entre
essência e forma. Dissemos que, para nosso filósofo, o sujeito ou a subjetividade
não precede a experiência e, assim, também a essência não precede a forma, nem
existe sem ela.
Espinosa recusa a concepção de uma essência transcendente que possa
se materializar, ou não, na forma efetivamente existente. Nosso filósofo estabelece
a reversibilidade absoluta entre essência e forma: a essência só existe enquanto
forma efetivamente existente, e vice e versa. Neste sentido, é clara a definição 2
da E II:

Digo pertencer à essência de uma certa coisa aquilo que, se dado, a coisa é
necessariamente posta e que se retirado, a coisa é necessariamente retirada;
e, em outras palavras, aquilo sem o qual a coisa não pode existir nem ser

259
E II, proposição 13: “O objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um
modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa.”
120

concebida e vice-versa, isto é, aquilo que sem a coisa não pode existir nem
ser concebido.

Numa relação de absoluta imanência, essência e forma são


indissociáveis. Se a essência determina a forma, a forma também constitui a
essência. Sem potencial a ser materializado, sem a referência a características
abstratas ou ideais, cada coisa é, todo o tempo, a plenitude de sua essência, e sua
essência é sempre atual. Na concepção espinosana da subjetividade, não há espaço
para oposições ou distanciamentos entre essência ideal e materialidade concreta:
todas as coisas são, todo o tempo, tudo que elas podem ser, nem mais, nem
menos.
Em Espinosa, não há potencial que não se efetive no real, nem
realidade que não corresponda à essência de todas as coisas. Na essência de cada
indivíduo está um esforço por perseverar na existência, e esse conatus se expressa
sempre em sua plenitude na concretude das formas. A recusa absoluta à
transcendência é a recusa à dualidade entre essência e forma, o sujeito não
precede a experiência e a individualidade, a subjetividade, a forma não se
distanciam da essência.
Numa concepção materialista, Espinosa liberta a forma do
aprisionamento da correspondência ou não a uma essência transcendente. As
variações ou transformações da forma efetiva e real de todas as coisas não se
presta a juízos de proximidade ou distanciamento de um ideal de essência. Forma
e essência se correspondem necessariamente260. Às variações ou transformações
da forma, - variações das relações constitutivas dos indivíduos compostos -
correspondem variações ou transformações na essência de todas as coisas
singulares, variações de potência.
E, neste sentido, perseverar na existência é também conservar a
própria forma singular. Na essência de todas as coisas se inscreve um esforço pela
existência, um esforço por preservar as relações constitutivas da sua forma

260
« (...) a definição da ‘essência da coisa’ exclui a suposição de que a essência seja um universal
que pertence à natureza da coisa e que esta seja a existência particular daquela. A regra da
definição da essência da coisa é, portanto, clara: a essência da coisa é singular como a própria
coisa de que é essência e justamente por isso a ideia de Pedro deve convir com a essência de Pedro
e não com a de Homem. A conseqüência também é clara: porque a essência da coisa é inseparável
da coisa a cuja natureza pertence, a definição da essência da coisa não pode ser feita por gênero e
diferença, isto é, por predicação.” CHAUÍ, Marilena. A nervura do real... p. 925
121

singular de existência261. Espinosa inscreve no cerne da concepção de essência


singular o esforço por conservação da forma singular262. O conatus é inseparável
do esforço pela existência material de uma forma singular.
Assim, esforçar-se por perseverar na existência, em Espinosa, não é o
esforço por materializar uma essência ideal, mas o esforço por fazer perseverarem
relações constitutivas que, simultaneamente, efetivamente são a individualidade e
expressam uma essência sempre existente em ato. O conatus, em Espinosa, é
sempre a essência atual de todas as coisas, nunca um ideal, uma potencialidade. A
Proposição 7 da Ética III é clara nesse sentido:

O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada
mais é do que a sua essência atual.
Demonstração. Da essência dada de uma coisa qualquer seguem-se
necessariamente certas consequências (pela prop. 36 da P.1). Além disso, as
coisas não podem fazer senão aquilo que necessariamente se segue de sua
natureza determinada (pela prop. 29 da P.1). Por isso, a potência de uma
coisa qualquer, ou seja, o esforço pelo qual, quer sozinha, quer em conjunto
com outras, ela age ou se esforça por agir, isto é (pela prop. 6), a potência
ou o esforço pelo qual ela se esforça por perseverar em seu ser, nada mais é
que sua essência dada ou atual.

Como essência e forma são indissociáveis, se a forma sempre expressa


a essência, e a essência sempre acompanha a forma, fica evidente agora o que
dissemos antes a respeito de todo indivíduo ser, além de uma forma, um poder de
afetar e ser afetado. Cada encontro é acompanhado de uma variação de potência, e
o que distingue um indivíduo de outro, seu semelhante, não é uma essência
constituída de predicados ideais, mas uma forma singular e uma potência de afetar
e ser afetado.
A singularidade se constitui na materialidade dos encontros. Sem
ideais de qualidades essenciais, sem a transcendência de uma essência distante da
existência, todas as coisas singulares constituem, a todo tempo, sua
individualidade, pela potência sempre atual de afetarem e serem afetadas por
outras coisas singulares. É nesse sentido que Gilles Deleuze pode identificar uma

261
“ Chez Spinoza, c’est à la fois que les choses n’existent que formées, et que tout problème est
un problème de forme. » ZOURABICHVILI, François. Le conservatisme paradoxal de Spinoza –
Enfance et royauté, Paris: PUF, 2002, p. 25
262
“La philosophie de Spinoza place au centre de ses prèocupations pratiques le thème de la
conservation de la forme. » ZOURABICHVILI, François. Le conservatisme paradoxal... p. 31
122

proximidade entre a concepção espinosana acerca da individualidade e os estudos


da chamada etologia263.
Uma compreensão das coisas singulares pelas suas relações com
outras coisas singulares. A negação de qualquer recurso a um ideal de essência
transcendente, e a análise da individualidade pela sua existência atual nos
encontros com outras coisas singulares. A etologia se aproxima da compreensão
espinosana da singularidade, ao buscar conhecer os corpos, os animais, os homens
pela sua interação entre si, pela materialidade dos encontros e as variações de
potência daí decorrentes.
Neste sentido, cabe destacar que nosso filósofo descreve mais uma
antropologia da individualidade que propriamente do indivíduo264. Ao tratar das
coisas singulares entendidas, não como somatórios de características e
propriedades, mas como potências de afetar e ser afetadas pelos encontros com
outras coisas singulares, Espinosa abandona qualquer recurso a um ideal de
indivíduo, para afirmar o processo de constituição incessante da individualidade
como o objeto da sua análise antropológica.
O humano é despido de qualquer pretensão de superioridade frente às
demais formas de existência, o homem não é o senhor de uma natureza ordenada
para seus caprichos. A antropologia espinosana, construída na análise dos
encontros, antes de qualquer outra coisa, é também a negação do
antropocentrismo. Ao movimento, já afirmado na sua ontologia, de negação de
qualquer privilégio à forma humana, corresponde, na análise da subjetividade,
uma negação de qualquer precedência de um ideal abstrato de indivíduo que
preceda a ordem inevitável e incessante dos encontros265.

263
“Tais estudos, que definem os corpos, os animais ou os homens, pelos afetos de que são
capazes, fundaram o que chamamos hoje de etologia. (...) A Ética de Espinosa não tem nada a ver
com uma moral, ele a concebe como uma etologia, isto é, como uma composição das velocidades e
das lentidões, dos poderes de afetar e de ser afetado nesse plano de imanência.” DELEUZE, Gilles.
Espinosa : filosofia prática. Ed. Escuta, São Paulo, 2002, p. 130.
264
« Cet objet n’est pas l’individu, mais l’individualité, mieux, la forme de l’individualité :
comment elle se constitue, comment elle tend à se conserver, comment elle se compose avec
d’autres selon des rapports de convenance et de disconvenance, ou d’activité et de passivité. S’il
est bien connu que l’individualité spinoziste n’esi à aucun degré substance, il faut rappeler qu’elle
n’est pas davantage conscience ni personne au sens juridique ou théologique. » BALIBAR,
Étienne. La crainte des masses, Galilée, Paris, 1997, p. 87
265
“Il s’agit d’une antropologie établie sur um ‘deplacement’, sur um détournement. Spinoza nous
dit que la conviction, nourrie depuis longtemps, de profiter d’une place privilégiée dans le dessein
divin, n’est rien d’autre qu’une ilusion. Arrêtons de nous penser comme un empire dans un empire.
Ni bête, ni ange, l’individu humaine ent une partie de la nature, res entre les autres res. »
123

Compreender a individualidade como potência, forjada nos e pelos


encontros com outras coisas singulares, é, necessariamente, igualar em termos
ontológicos o humano às demais coisas singulares na natureza. Espinosa nos
propõe uma antropologia livre de preconceitos antropocêntricos, e livre de
qualquer pré-determinação por ideais abstratos e universais de natureza humana,
ou essências a serem materializadas. Somente a realidade sempre atual do
universo múltiplo e simultâneo dos encontros constitui incessantemente a
individualidade266.
Outra consequência importante da concepção espinosana da
individualidade é a total negação de qualquer juízo moral acerca das experiências
e encontros atuais dos homens. Como não há um ideal de essência transcendente,
também não existem valores morais de comportamento a serem atingidos ou
negados pelos homens, em seus encontros com outros homens.
A essência de todas as coisas é um esforço por perseverar na
existência que é sempre atual. Não cabem, assim, ideais de bondade, amor,
fraternidade ou qualquer valor transcendente que sirva de parâmetro ou norte das
ações humanas. Em essência, nenhum homem é bom ou mau, mas apenas um
indivíduo esforçando-se por perseverar na existência. O conatus não se presta a
juízos de valores morais.
No campo jurídico, veremos a seguir, esta impossibilidade lógica de
qualquer juízo de valor baseado em valores transcendentes corresponde à negação
de qualquer ideal próximo da noção de direitos naturais conforme afirmados pelo
jusnaturalismo. O ideário jusnaturalista de direitos abstratos, inatos e universais
passíveis de efetivação ou não no plano do real é negado por Espinosa, já na sua
concepção da individualidade267.

CUZZANI, Paola de. « Une antropologie de l’homme décentré » in Philosophiques nº 29, 2002, p.
10
266
« Mas se, diferentemente, abraçarmos o pensamento de Spinoza, diremos tão somente que se
trata de uma singularidade anônima, vale dizer, não há algo de próprio no homem a distingui-lo do
restante da natureza. Mais do que isso, diremos que o homem é uma coisa como outra qualquer, na
natureza; é expressão substancial singular que não se repete. Nada há para além da experiência ou
que a preceda, só restando-nos a dimensão dos encontros como via de subjetivação.” Belluz,
Mariana Monteiro. A singularidade anônima do humano, dissertação de mestrado, PUC-Rio,
Departamento de direito, 2006, p. 84
267
Desenvolveremos melhor este tema da recusa espinosana ao jusnaturalismo a seguir, quando
tratarmos da identidade estabelecida por nosso filósofo entre potência e direito na sua célebre
colocação “tanto direito quanto potência”, afirmação presente já no TTP: “Para demonstrar esse
124

Sobre a individualidade em Espinosa cabem, ainda, algumas


observações sobre o que vem a ser perseverar na existência. Já dissemos, ao tratar
do conatus em Hobbes, que, para nosso filósofo, os homens não se esforçam
apenas pela sobrevivência física. Em Espinosa, ao contrário de em Hobbes, não
faz sentido a distinção entre movimento vital e movimento animal, e perseverar na
existência não é apenas evitar a morte física. Para nosso filósofo, os homens estão
a todo tempo imersos na pluralidade de encontros, de variações de potência e,
assim, conservar-se não é buscar manter-se estático ou sem a experiência de
qualquer variação, o que seria impossível.

3.1.2

Variações e transformações

Os homens estão a todo tempo sujeitos a variações de potência, e


conatus é a busca por variações positivas, que lhes aumentem a potência, e o
esforço por conservar sua forma singular, mesmo na experiência de variações
negativas. Sobre os limites da individualidade de cada homem se faz necessária
aqui a distinção fundamental entre variações e transformações.
A individualidade se constitui no poder de afetar e ser afetado por
outras coisas singulares, outros corpos, outras ideias. Assim, faz parte da própria
singularidade sofrer variações de potência que podem ser positivas, alegrias, ou
negativas, tristezas. Os homens suportam, sem perderem sua forma própria,
diversas variações de potência268. A vida, conservar-se na existência, não é a
busca por um movimento retilíneo uniforme da potência de existir, mas a
incessante variação entre alegrias e tristezas, a experiência de bons e maus
encontros, dentro dos limites da própria individualidade.
As variações constituem a individualidade, e são inevitáveis. Uma
variação de potência não significa necessariamente que um indivíduo deixe de
constituir-se na sua individualidade e transforme-se em outra coisa. Neste sentido,
Espinosa diz, no prefácio da E IV:

ponto, começo, porém, pelo direito natural do indivíduo, que vai até onde for o seu desejo e o seu
poder...” TTP, pg. 13
268
“L’individu, sans cesser d’être lui même, peut donc passer par plusieurs états, c’est-à-dire être
affecté de plusieurs façons. Appelons donc affections ces multiples ètats d’une même essence. »
MATHERON, Alexandre. Individu et communauté..., p. 44
125

Com efeito, deve-se, sobretudo, observar que, quando digo que alguém
passa de uma perfeição menor para uma maior, ou faz a passagem contrária,
não quero dizer que de uma essência ou forma se transforme em outra (com
efeito, um cavalo, por exemplo, aniquila-se, quer se transforme em homem,
quer em inseto). Quero dizer, em vez disso, que é a sua potência de agir,
enquanto compreendida como sua própria natureza, que nós concebemos
como tendo aumentado ou diminuído.269

Assim, perseverar na existência é suportar as variações de potência


decorrentes dos mais diversos encontros, preservando a sua forma, a sua
individualidade. Não é por outra razão que a própria definição de conatus, na
proposição 6 da E III, traz a ressalva de que “Cada coisa esforça-se, tanto quanto
está em si, por perseverar em seu ser”. O conatus é o esforço por suportar
variações dentro dos limites de sua individualidade, ou seja, tanto quanto está em
si.
No entanto, se acontece de um encontro trazer modificações tão
violentas a um indivíduo, que ultrapassem os limites de sua própria
individualidade, estamos diante, não mais de uma variação de potência, mas, mais
propriamente, de uma transformação. Em decorrência dos encontros com outros
modos finitos na existência, um indivíduo pode ser afetado de forma tão
dramática que tal encontro determine sua transformação. Num encontro com outra
coisa singular, que lhe supere em muito a potência, na experiência de afecções que
excedam seu próprio poder de ser afetado, um indivíduo pode ter sua
singularidade transformada de tal modo que seja, inclusive, impossível identificá-
lo com seu estado anterior imediato270.
Assim, no caso da morte, a relação de composição entre as partes
constituintes de um indivíduo sofre tamanha alteração que determina sua
transformação em outra, ou outras, coisas singulares, distintas de sua precedente.
Como exemplos de transformações, podemos citar um cadáver em decomposição,
ou mesmo o crescimento de um ser humano: na primeira infância e na vida adulta
um mesmo indivíduo pode diferenciar-se tanto que, dificilmente, identificaríamos

269
E IV, prefácio.
270
“ La transformation, entendue au sens fort ou strict comme um changement affectant lê sujet, et
non seulement lês prédicats du sujet – la transformation ainsi comprise comme changement
d’identité (...) » ZOURABICHVILI, François. Ob.cit., pp. 04
126

tratar-se da mesma pessoa271. Sobre o tema, é interessante lembrarmos, também, o


exemplo de Espinosa ao descrever a transformação de um poeta espanhol que,
acometido de uma doença grave, esquece-se de tal forma de sua vida pregressa,
que não reconhece como suas as próprias obras, e esquece-se, inclusive, da língua
materna272.
A individualidade se constitui na multiplicidade dos encontros e nas
variações de potência daí decorrentes. No entanto, um encontro com outra coisa
singular, que lhe supere em muito sua potência, pode acarretar a transformação de
um indivíduo em outra coisa ou coisas singulares, determinando o fim, a morte
daquela forma singular prévia ao fatídico encontro.
E na natureza infinita, Espinosa o reconhece expressamente, sempre
haverá uma coisa singular mais forte que a outra. A todo momento, todos os
indivíduos estão sujeitos a sofrer uma transformação que ponha fim a sua própria
individualidade, e os transforme em outra coisa:

Não existe, na natureza das coisas, nenhuma coisa singular relativamente à


qual não exista outra mais potente e mais forte. Dada uma coisa qualquer,
existe uma outra, mais potente, pela qual a primeira poder ser destruída.273

Não existe nada na natureza, exceto Deus, que não possa ser destruído
por outra coisa mais potente. Se as variações de potência acompanham
inevitavelmente os encontros e constituem a própria singularidade, a
transformação é também inevitável, dependendo apenas do triste encontro com
outra coisa mais potente. Se a essência de tudo o que existe é o esforço por
perseverar na sua individualidade, o universo múltiplo dos encontros necessários
pode, a qualquer tempo, determinar sua destruição, sua transformação em outra
coisa irreconhecível.
Assim, a duração de qualquer coisa singular é sempre uma duração
indefinida. A temporalidade aberta da existência em Espinosa é compreendida
nesta incessante incerteza entre a afirmação do conatus, ou a submissão a uma
transformação ocasionada pelo encontro com outra coisa mais potente. Nenhuma
coisa singular tem um limite pré-estabelecido para sua existência, nem a garantia

271
Encontramos esse exemplo na Ética, IV, prop. 39, escólio: “Um homem de idade avançada
acredita que a natureza das crianças é tão diferente da sua que não poderia ser convencido de que
foi uma vez criança, se não chegasse a essa conclusão pelos outros.”
272
Exemplo também da Ética IV, prop. 39, escólio
273
Axioma da E IV
127

de permanecer existindo: tudo são encontros, variações de potência e a


possibilidade, a cada encontro, de uma alegria, uma tristeza ou mesmo a morte.
Neste sentido vale transcrever a proposição 8 da E III:

O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser não
envolve nenhum tempo finito, mas um tempo indefinido.
Demonstração. Com efeito, se envolvesse um tempo limitado, que
determinasse a duração da coisa, seguir-se-ia, então, exclusivamente da
própria potência pela qual a coisa existe, que, após esse tempo limitado, ela
não poderia mais existir, devendo se destruir. Mas isso (pela prop. 4) é
absurdo. Portanto, o esforço pelo qual uma coisa existe não envolve, de
maneira alguma, um tempo definido, mas, pelo contrário, ela continuará, em
virtude da mesma potência pela qual ela existe agora, a existir
indefinidamente, desde que (pela mesma prop. 4) não seja destruída por
nenhuma causa exterior. Logo esse esforço envolve um tempo indefinido.

E se a duração é sempre indefinida é porque o conatus é sempre


esforço positivo e atual de perseverar na existência. Nada na própria coisa pode
determinar a sua destruição, a transformação, em Espinosa, sempre vem de fora, e
nunca decorre da própria essência da coisa singular transformada. A morte, a
destruição, assim como a tristeza e qualquer variação negativa da potência são
sempre efeitos do encontro com outras coisas singulares, jamais decorrem do
próprio conatus.
Nosso filósofo é expresso ao afirmá-lo na proposição 4 da mesma E
III:

Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior.
Demonstração: Esta proposição é evidente por si mesma. Pois a definição de
uma coisa qualquer afirma a sua essência; ela não a nega. Ou seja, ela põe a
sua essência; ela não a retira. Assim, à medida que consideramos apenas a
própria coisa e não as causas exteriores, não poderemos encontrar nela nada
que possa destruí-la.

Da concepção espinosana da individualidade, da compreensão atual e


positiva da essência de todas as coisas singulares, decorre que nada pode se
autodestruir. Nada no indivíduo, enquanto considerado apenas em si mesmo, pode
clamar pela morte ou pela destruição. O conatus é a afirmação atual, insistente e
positiva da existência, da vida, da busca pela alegria.
Retomaremos este tema em nosso último capítulo ao analisarmos o
caráter paradoxal do desejo de servidão. A crítica espinosana às transformações
ressoa também no campo político, na crítica de nosso autor às revoluções, tema
128

que analisaremos também em nosso último capítulo. Por ora, restringimos aqui
nossa análise à afirmação da exterioridade das transformações.
Como a individualidade se define pelo poder de afetar e ser afetado,
nos encontros com outras coisas singulares, a noção de subjetividade em Espinosa
também só se constrói nas relações com os outros. Falar de sujeito, em Espinosa,
não é falar de uma interioridade que se distancie das ou preceda as experiências
dos encontros. A subjetividade espinozana, a todo instante, se constitui na
experiência da intersubjetividade, interior e exterior, em Espinosa, não se opõe,
mas se determinam mutuamente274.
Neste sentido, a subjetividade espinosana não é a materialização de
características abstratas e inatas, nem a conservação de uma natureza humana que
já esteja determinada desde o nascimento de um indivíduo. A subjetividade, ou
melhor dizendo, o processo de subjetivação, em Espinosa, é um incessante
movimento, determinado por encontros e variações de potência que constituem a
interioridade, ao mesmo tempo em que são determinados pela experiência
inevitável da exterioridade.
Vale ressaltar, no entanto, que nesse processo de subjetivação,
nenhuma coisa singular está à deriva, sem rumo, no mar dos encontros. Já vimos
que a essência de tudo o que existe é o conatus, esforço por perseverar na
existência, e este está presente no curso dos vários encontros que constituem a
experiência da individualidade. Inexoravelmente influenciado pelos encontros e
afetos, o processo de subjetivação é, todavia, norteado pelo conatus, pelo desejo,
pela busca por alegrias e pelo esforço por evitar tristezas.
A consciência de si é, necessariamente, a consciência de suas relações
com outros indivíduos, e das variações afetivas que as acompanham, consciência
daquilo que nos alegra ou entristece, dos bons ou maus encontros. Indissociável

274
“A exterioridade não é portanto sinônimo de alienação e inadequação. A exterioridade com a
qual compomos é interioridade.
Desse ponto de vista, a exterioridade deve ser distinguida da alteridade. Os outros não são
exteriores se há conveniência com eles. Nesse caso, aliás, Spinoza não fala de corpos exteriores,
mas de outros corpos, vários corpos. Não há de fato exterioridade, mas concurso e união a ponto
de poder formar um só e mesmo corpo. Na ação, estes corpos unidos podem assim constituir uma
só e mesma coisa singular com o si. A interioridade é inclusiva e não exclusiva. O si não existe
como entidade separada. Com efeito, ser é partilhar propriedades com os outros corpos humanos e
noções comuns com suas mentes. A comunidade quando exprime a conveniência de natureza, é
percebida pela razão, é a expressão do si. Neste sentido, ser consciente de si é ser consciente que o
si é também um outro que o si com o qual ele convém.”, CHANTAL, Jaquet. “Do eu ao si:
refundação da interioridade em Spinoza”, in MARTINS, André et alli (org.) As ilusões do eu:
Spinoza e Nietzsche , Rio de janeiro: José Olympio, 2011, pg.363
129

do conatus, a subjetividade se constitui no esforço pelos bons encontros, pelas


alegrias e, nesse sentido, o reconhecimento daquilo que desejamos, das coisas que
amamos ou odiamos, é também a constituição de nossa própria singularidade275.
Um bom conceito para ilustrar o processo de subjetivação em
Espinosa é o conceito de “devir”, proposto por Gilles Deleuze e Feliz Gattari276. A
individualidade espinosana pode ser entendida como um movimento incessante de
“devires”, como o resultado sempre mutante da confluência simultânea e
incessante de séries causais exteriores e interiores, determinadas pelo universo
inexorável dos encontros e afetos.
A mente humana só tem consciência de seu corpo, e de si mesma,
pelas ideias das afecções do corpo277. É pelos encontros com outros corpos, outras
coisas, outros homens, e pelas relações e afetos que os acompanham, que a mente
constitui a consciência de sua individualidade. A subjetividade é forjada

275
“Pourtant, la connaissance (même imaginative) que nous prenons de nous-même est
immédiatement aussi, de manière experimentale, celle d’un sujet capable de connaître et de se
connaître, ainsi que de juger de son utile propre. Ette reconnaissance de soi par soi ne serait certes
que pure abstraction, si nous ne nous reconaissions pas, avant tout, en tant qu’être singulier, c’est-
à-dire en tant que nous désirons quelque chose. » BOVE, Laurent. Ob.cit., p. 66
276
O conceito de devir, que nos é aqui fundamental para pensar a subjetividade, remete-se à obra
de DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs...,vol 4, pp.14-15: “Um devir não é uma
correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última
instância, uma identificação. Toda a crítica estruturalista da série parece inevitável. Devir não é
progredir nem regredir segundo uma série. (...) O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É
uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio devir, o
bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. (...)
Enfim, devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir
nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que
a da filiação. Ele é da ordem da aliança.” Sobre o tema destacamos ainda os seguintes
comentários:
“Os autores (DELEUZE e GUATTARI) respondem que os entes são diferenças e suas relações
devires, afetos ou modificações, que devem ser pensados independentemente das ideias de forma,
função, espécie e gênero. O conceito de devir acompanha o abandono das concepções
substancialistas e da perspectiva “hilemorfista” da individuação (simples encontro de forma e
matéria), para pensar os corpos como singularidades e seus devires como processos irredutíveis às
sobrecodificações do organismo, do significante e do sujeito.” Abreu Filho, Ovídio. “Resenha de
Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia” em Revista Mana, nº 4, 1998, p. 145. Também disponível
em : http://www.freewebtown.com/spinoza/milplatos_resenha_Ovidio.pdf, acessado em março de
2008.
E ainda: “Entrar no campo do devir é estar sempre compondo em nossos corpos algo de inusitado
a partir do encontro com o outro, embarcando constantemente em possíveis linhas de fuga
desterritorializantes. (...) Partindo dessa ideia, é afirmar que cada sujeito pode ser definido por uma
lista de afetos e devires, quer dizer, ele é, por si só, uma multiplicidade de acontecimentos que
nunca cessam de assediá-lo e de gerar efeitos diferenciados em sua vida.” DOREA, Guga. “Gilles
DELEUZE e Felix GUATTARI: heterogênese e devir” em Margem, nº 16, dezembro de 2002, p.
104. também disponível em http://www.pucsp.br/margem/pdf/m16gd.pdf, acessado em março de
2008.
277
E II, prop. 23
130

incessantemente a cada experiência com a exterioridade. Se é possível falarmos


em sujeito em Espinosa - e acreditamos que sim278 - este sujeito não existe
separado das circunstâncias externas que o determinam.
Bons encontros, maus encontros, variações de potência, alegrias,
tristezas, tudo que acompanha a experiência de um homem, nos encontros com
outras coisas singulares na natureza, constitui sua subjetividade. Mesmo o que nos
pareça mais íntimo, afetos e ideias que possam parecer nos remeter unicamente à
nossa singularidade são, na verdade, influenciados, também, por causas externas,
encontros, variações da potência279. Em Espinosa, é impossível pensar no
indivíduo como separado do universo de encontros em que ele está
inevitavelmente imerso. A experiência da individualidade, em Espinosa, é
também experiência de comunidade280.
Neste sentido, podemos concluir que não existe, em Espinosa, a
possibilidade de pensar o indivíduo como separado ou antecedente à sociedade. A
oposição entre indivíduo e sociedade, tão cara a toda uma tradição hegemônica da
antropologia, não encontra fundamento na proposta espinosana de compreensão
da própria constituição do sujeito. Mais uma vez, encontramos uma intransponível
distância entre o pensamento de nosso filósofo e qualquer proposta de
transcendência.
O discurso da transcendência, sobre este tema, é o discurso da
separação entre indivíduo e sociedade: uma concepção de homem que pré-existe
ao social. A noção de indivíduo, cuja natureza, constituição e direitos, mais do
que pré-existem, condicionam sua inserção numa coletividade. A sociedade vista
apenas como a soma de indivíduos atomizados, e subordinada, em sua
278
Excede os limites deste trabalho desenvolvermos todo o debate acerca da possibilidade de se
falar em sujeito em Espinosa, sobre o tema remetemos o leitor a Jaquet, CHANTAL. “Do eu ao si:
refundação da interioridade em Spinoza”, in MARTINS, André et alli (org.) As ilusões do eu:
Spinoza e Nietzsche , Rio de janeiro: José Olympio, 2011, de onde destacamos na pg. 351: “A
coisa é bem conhecida, mas daí a concluir que não há sujeito em Spinoza é um passo que não
daremos. Lia Levy, no seu livro O autômato espiritual, mostrou a existência de uma subjetividade
em Spinoza. Se o termo, literalmente, não aparece, ou quase, a presença de um sujeito, entendido
como capacidade a referir-se a si mesmo e de relacionar suas ideias e suas afecções a um si, existe
claramente em Spinoza.”
279
“Com efeito, o que pensamos ser nosso e nos pertencer de maneira íntima e singular, a saber,
nossas disposições, nossa constituição, nossos hábitos, nossas lembranças e nossas paixões, é em
parte o fruto da intervenção de causas externas, da maneira como somos afetados por elas e as
imaginamos, como afirma o Apêndice da Parte I da Ética.” CHANTAL, Jaquet. “Do eu ao si:
refundação da interioridade em Spinoza”, in MARTINS, André et alli (org.) As ilusões do eu:
Spinoza e Nietzsche , Rio de janeiro: José Olympio, 2011, pg. 360
280
“La réalité humaine est immédiatement réalité collective et c’est sur cette base que doit être
posée la question de la stratégie éthique. » BOVE, Laurent. Ob.cit. p. 75
131

organização, à observância dos interesses individuais281. A dualidade


indivíduo/sociedade instaura a transcendência, na concepção hegemônica da
antropologia, ao afirmar um sujeito que precede a coletividade e determina as
condições de sua existência282.
A anomalia espinosana transparece novamente quando defrontamos a
concepção espinosana de subjetivação com o discurso do individualismo
moderno. Em Espinosa, a subjetividade é necessariamente intersubjetividade, e é
no próprio conatus individual que nosso filósofo vai identificar a gênese do sujeito
coletivo multidão. Sem o recurso a artifícios como o do contrato social, veremos a
seguir que Espinosa explica a constituição da multidão por uma mecânica afetiva
inspirada pelo desejo e pela busca de alegrias comuns: é a imitação afetiva que
tece as relações sociais da multidão espinosana.

3.1.3

Imitação afetiva e a gênese constituinte da multidão

No Tratado Teológico-político, Espinosa já tece algumas observações


essenciais à sua análise do campo político. No entanto, é com a redação da Ética
que nosso filósofo encontra o arsenal ontológico e antropológico que lhe permite a
formulação, ainda nesta mesma obra, de sua concepção absolutamente imanente e
intrinsecamente democrática da constituição do sujeito político multidão. É na
Ética que encontramos desenvolvida a mecânica afetiva que sustenta, em
Espinosa, a compreensão da gênese do campo político.
Já vimos que, para nosso filósofo, o processo de subjetivação é
necessariamente intersubjetivo e os encontros dos homens com outras coisas
singulares, e com seus semelhantes, são inevitáveis. São tais encontros, e os afetos
que os acompanham, que vão determinar a constituição de um sujeito coletivo e
seu ingenium coletivo. Começamos nossa análise pela constatação mais óbvia, em

281
Sobre o tema: Dumont, Louis. O individualismo – uma perspectiva antropológica da ideologia
moderna, ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1985, de onde destacamos: “Quando nada mais existe de
ontologicamente real além do ser particular, quando a noção de ‘direito’ se prende, não a uma
ordem natural e social mas ao ser humano particular, esse ser humano particular torna-se um
indivíduo no sentido moderno do termo.” P. 79
282
Voltaremos ao tema da relação entre indivíduo e sociedade no pensamento antropológico
hegemônico da modernidade e sua oposição à concepção espinosana de multidão a seguir, quando
tratarmos da multidão como multiplicidade de singularidades.
132

Espinosa, de que, se guiados apenas pela razão, os homens concordariam acerca


do bom e do mau, e nada haveria de mais proveitoso ao homem que o convívio
com outros homens, orientados pela razão. Nesse sentido, nosso filósofo é
explícito na proposição 35 da E IV:

Apenas à medida que vivem sob a condução da razão, os homens


concordam, sempre e necessariamente, em natureza. (...)
Corolário 1. Não há, na natureza das coisas, nenhuma coisa singular que
seja mais útil ao homem do que um homem que vive sob a condução da
razão. (...)
Corolário 2. É quando cada homem busca o que é de máxima utilidade para
si, que são, todos, então, de máxima utilidade uns para com os outros.

Quando guiados pela razão, os homens tem o conhecimento adequado


do que lhes é mais útil e buscam, necessariamente, o que existe de mais comum
com a sua própria natureza. Nesse sentido, outro homem guiado pela razão é o
que há de mais útil ao sábio, pois constitui um bom encontro com o que há de
mais comum consigo mesmo.
Ressalte-se que, com esta afirmativa, Espinosa não está a estabelecer
nenhum paradigma de sociabilidade, ou a afirmar, com a tradição aristotélica, que
o homem seja um animal político por natureza. Já vimos que nosso filósofo rejeita
qualquer ideal de uma natureza humana prévia e superior à experiência e,
portanto, também a sociabilidade humana, para Espinosa, não é um dado essencial
de qualquer homem. Não é como fruto de uma essência humana abstrata e
universal que Espinosa afirma a busca do homem sábio pelo convívio com outros
homens sábios.
A sociedade que se instaura entre os homens guiados pela razão é
expressão necessária do próprio conatus de cada um deles, e não a materialização
de uma suposta natureza humana essencial. Não é um critério transcendente que
determina a sociabilidade, mas o próprio esforço individual de perseverar na
existência. O conatus determina o esforço pelo útil individual a perseverar na
existência e, no domínio da razão, nada há de mais útil a um homem que outro
homem também guiado pela razão283.

283
“La raison que détermine entre les hommes un accord nécessaire n’a donc rien de
transcendant : elle n’exprime rien d’autre que la puissance de la nature humaine, qui se manifeste
et se développe dans la recherche de l’ « útile prope ».” BALIBAR, Etienne, Spinoza et la
politique...p.99
133

Compartilhar alegrias e bens comuns, fortalecer-se na experiência do


coletivo contra agruras comuns, libertar-se do medo de tristezas futuras pela
segurança do convívio pacífico: a razão, ao estabelecer entre os homens noções
comuns do que lhes é útil e bom, faz da sociabilidade uma expressão do próprio
conatus. Para os sábios, o que é útil ao indivíduo é também útil ao sujeito coletivo,
e a gênese constituinte da multidão é uma expressão necessária do próprio esforço
individual por alegrias e por perseverar na existência284.
No entanto, não é apenas de homens racionais que se constituem as
sociedades. Espinosa não é um racionalista que pregue a necessária elevação de
todos os homens ao conhecimento racional para a constituição adequada do
campo político. Nosso filósofo, já o vimos, sabe que os homens não nascem
racionais e, pior, não operam apenas com a razão. A imaginação é o estado mais
comum dos homens que estão, a todo tempo, imersos em paixões e ideias
inadequadas. A evidência da sociabilidade no domínio da razão é pouco útil frente
à experiência humana do campo imaginativo da política.
Neste sentido, diz explicitamente Espinosa, no parágrafo 5 do
Capítulo I do Tratado Político:

É, pois, certo – e na nossa Ética demonstramos se verdadeiro – que os


homens estão necessariamente sujeitos aos afetos e são constituídos de tal
maneira que se compadecem de quem está mal e invejam quem está bem;
são mais propensos à vingança que ao perdão; e, além disso, cada um deseja
que os outros vivam segundo o engenho dele, aprovem o que ele aprova e
repudiem o que ele próprio repudia. Donde resulta que, como todos desejam
igualmente ser os primeiros acabem em contenda, se esforcem quanto
podem por oprimir-se uns aos outros e o que sai vencedor se vanglorie mais
daquilo em que prejudicou o outro do que daquilo que ele próprio
beneficiou. E, embora estejam todos persuadidos de que a religião ensina,
pelo contrário, que cada um ame o próximo como a si mesmo, isto é, que
defenda o direito do outro tanto como o seu, mostramos contudo que esta
persuasão pouco pode perante os afetos. Prevalece, é verdade, na hora da
morte, quando a doença já venceu os próprios afetos e o homem jaz
exangue, ou nos templos, onde os homens não têm nenhuma relação, mas
não na praça pública, ou na corte, onde seria extremamente necessária.
Mostramos, além disso, que a razão pode certamente muito a reprimir e
moderar os afetos; mas vimos também que o caminho que a mesma razão

284
“... Espinosa demonstra que, sob a direção da razão ou na ação, os homens não se combatem
uns aos outros, pois, conhecendo as noções comuns (ou as propriedades comuns às partes de um
mesmo todo que as fazem convenientes entre si), sabem que é pela concordância que cada um e
todos aumentarão a força de seus conatus e sua própria liberdade. Em outras palavras, a razão
ensina que é preciso fortalecer o que os homens possuem em comum ou o que compartilham
naturalmente sem disputa, pois nisso reside o aumento da vida e da liberdade de cada um.”
CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em Política em Espinosa...p. 160
134

ensina é extremamente árduo; de tal modo que aqueles que se persuadem de


poder induzir, quer a multidão, quer os que se confrontam com assuntos
públicos, a viver unicamente segundo o que a razão prescreve, sonham com
o século dourado dos poetas, ou seja, com uma fábula.

Se na razão a sociabilidade é evidente, tal evidência é de pouca


utilidade frente à realidade inafastável das paixões e da imaginação, como
elementos mais corriqueiros das relações sociais. Não pode ser restrita à
explicação racional a gênese do campo político. Na mesma proposição 35 da parte
IV da Ética, em que nosso filósofo afirmou a utilidade do convívio entre homens
racionais, em seu escólio, Espinosa ressalva que, mesmo no campo passional, é
inegável a utilidade da sociedade entre os homens:

Entretanto, é raro que os homens vivam sob a condução da razão. Em vez


disso, o que ocorre é que eles são, em sua maioria, invejosos e mutuamente
nocivos. Mas, apesar disso, dificilmente podem levar uma vida solitária, de
maneira que, em sua maior parte, apreciam muito a definição segundo a
qual o homem é um animal social. E, de fato, a verdade é que, da sociedade
comum dos homens advêm muito mais vantagens que desvantagens. Riam-
se os satíricos, pois, das coisas humanas, o quanto queiram; execrem-nas os
teólogos; enalteçam os melancólicos, o quanto possam, a vida inculta e
agreste, condenando os homens e maravilhando-se com os animais. Nem
por isso deixarão de experimentar que, por meio da ajuda mútua, os homens
conseguem muito mais facilmente aquilo de que precisam, e que apenas
pela união de suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam por toda
parte.

Neste sentido, se faz necessária uma análise do campo político que


prescinda do domínio da razão entre os homens. Espinosa reconhece claramente
que deve ser no universo inadequado do conhecimento imaginativo e na
turbulência das paixões que se inscreva a gênese constituinte da multidão. A
maior parte dos homens, a maior parte do tempo, opera na imaginação e é
dominada por afetos passionais. Longe do conhecimento adequado do bom e do
útil, longe da convergência que une os sábios, a multidão é sujeito político que se
constitui nos conflitos das paixões e na aleatoriedade dos encontros.
Se, quando guiados pela razão, os homens concordam
necessariamente sobre o que é bom e útil, a realidade do campo imaginativo e
passional é aberta à possibilidade de conflitos inconciliáveis285. Movidos por
ideias inadequadas, os homens podem discordar acerca do que lhes pareça melhor

285
“À medida que os homens são afligidos por afetos que são paixões podem ser reciprocamente
contrários” EIV, prop.34
135

para si e para a coletividade, e o vínculo que tece o social pode esgarçar-se até os
limites do ódio recíproco286. Na realidade passional e imaginativa da política, não
é num acordo negociado entre os homens, acerca do bom e do útil, que Espinosa
encontra a gênese constituinte da multidão.
E é na mesma Ética que nosso filósofo desenvolve a mecânica afetiva
capaz de explicar a gênese do campo político como expressão do conatus, mesmo
no universo da imaginação e das paixões. É a imitação afetiva que evidencia
como, ainda que regidos por ideias inadequadas sobre o bom e o útil, os homens
podem buscar o convívio com outros homens. A realidade da experiência de
comunidade se explica no esforço pela alegria e pela liberdade, determinados pelo
próprio conatus de cada indivíduo, por mais vulgo ou dominado por paixões
tristes que este seja287.
A imitação afetiva, que costura os laços de sociabilidade constitutivos
da multidão, no universo passional dos vulgos, é construída por Espinosa na Parte
III da Ética. Neste intuito, nosso filósofo começa evidenciando a associação
afetiva que liga um indivíduo e a coisa que lhe é objeto de amor ou ódio. A
mecânica afetiva da imitação começa a ser desenvolvida por Espinosa pela
existência de um afeto primário de amor ou ódio entre um indivíduo e outra coisa
singular. Assim, Espinosa afirma que, se imaginamos que algo afeta de alegria
algo que amamos, seremos igualmente afetados de alegria pela mesma causa.
Contrariamente, se imaginamos que algo afeta de tristeza a coisa amada, aquele
que a ama será igualmente afetado de tristeza pela mesma causa.

Quem imagina que aquilo que ama é afetado de alegria ou de tristeza será
igualmente afetado de alegria ou de tristeza; e um ou outro desses afetos
será maior ou menor no amante à medida que, respectivamente, for maior
ou menor na coisa amada.”E III, proposição 21

286
Cabe a ressalva de que Espinosa não afirma que os homens, movidos pelas paixões, vão
discordar necessariamente acerca do bom e do útil, mas apenas que podem ser reciprocamente
contrários. Existe a possibilidade de um acordo entre os homens, mesmo no campo passional,
quando estes compartilham paixões alegres, no entanto, a aleatoriedade dessas ocorrências não é
suficiente para identificar nesta possibilidade a gênese do campo político. Neste sentido:
“Observemos que Espinosa não diz que sob as paixões os homens são sempre e necessariamente
contrários uns aos outros e sim que, na paixão, podem ser contrários uns aos outros, tanto quanto
podem concordar uns com os outros.” CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em
Política em Espinosa...p.147
287
“Ce que nous montre Spinoza, c’est qu’il y a un autre genèse (ou « production ») de la société à
partir des passions elles-mêmes, dans leur élément, bien que cette fois elle ne conduise à aucun
accord nécessaire.” BALIBAR, Etienne. Spinoza et la politique, 2ª edição, PUF, Paris, 1990,p.101
136

Seguindo a mesma lógica de imitação afetiva, porém inversamente, o


mesmo ocorre quando o afeto primário entre o indivíduo e a outra coisa singular é
um afeto de ódio:

Quem imagina que aquilo que odeia é afetado de tristeza se alegrará; se,
contrariamente, imagina que é afetado de alegria, se entristecerá; e um ou
outro desses afetos será maior ou menor à medida que o seu contrário for,
respectivamente, maior ou menor na coisa odiada. E III, proposição 23

A primeira experiência de imitação afetiva, evidenciada por Espinosa,


é aquela que decorre da identificação entre um indivíduo e a coisa amada ou
odiada por ele. Neste estágio inicial de mimetismo, a mecânica imitativa segue a
ordem de identificação direta ou inversa segundo a determinação de um afeto
primário de amor ou ódio. Onde pré-existe uma relação de amor ou ódio é quase
evidente a associação entre a imaginação dos afetos experimentados pela coisa
amada ou odiada e os afetos semelhantes ou inversos daquele que a ama ou odeia.
Vale destacar que, neste domínio, a imitação afetiva opera sempre no
campo da imaginação. É a imaginação da coisa amada ou odiada afetada de
alegria ou tristeza que determina afetos iguais ou inversos no indivíduo que a ama
ou a odeia. A mecânica imitativa se instaura, já de início, no universo da
imaginação: apenas pelas imagens do que supomos afetar nossa coisa amada ou
odiada seremos também afetados. Longe da idealização de sábios que concordam
sobre o bom e o útil, nosso filósofo, ao tratar da imitação afetiva, situa-se no
universo das paixões e das ideias inadequadas da imaginação288.
No entanto, a imitação afetiva que depende de um afeto primário para
verificar-se não é suficiente para explicar a gênese constituinte da multidão. Não é
apenas entre indivíduos que se amam ou se odeiam que se estabelecem as relações
sociais. É necessária uma forma de identificação mais básica, que independa de
afetos prévios, que possa sedimentar a imitação afetiva capaz de explicar a

288
“Je vois (ou crois voir) de la joie (en ce que j’aime), donc je sens de la joie : mon esprit se
comporte comme un miroir de ce qu’il imagine voir en l’objet aimé. Il va de soi que ce qui
compte, dans ce domaine de l’économie des affects, ce ne sont que les images (ou les
imaginations) que j’ai des choses, et non la réalité effective desdites choses : que l’objet que j’aime
soit réellement affecté de joie ou que je l’imagine seulement dans cet état, alors qu’il éprouve en
réalité de la tristesse, ne fait aucune différence pour ce dont il est question ici. Nous sommes à un
niveau de mimétisme faisant que le caméléon devient rouge dès lors qu’il voit rouge (et cela même
si ce qu’il regarde paraît vert à tout autre que lui).” CITTON, Yves. « Les lois de l’imitation des
affects », in CITTON, Yves e LORDON, Frédéric (org.), Spinoza et les sciences sociales – de la
puissance de la multitude à l’économie des affects, Paris: Éditions Amsterdam, 2008, pg. 77
137

sociabilidade como decorrente do conatus de todo e qualquer homem. É na


proposição 27 da mesma Parte III da Ética que nosso filósofo introduz a noção de
“coisa semelhante a nós”:

Por imaginarmos que uma coisa semelhante a nós e que não nos provocou
nenhum afeto é afetada de algum afeto, seremos, em razão dessa
imaginação, afetados de um afeto semelhante E III, proposição 27

Aqui, enfim, a imitação afetiva prescinde de qualquer afeto prévio e,


unindo apenas pela imaginação da semelhança, associa afetos de um homem e
qualquer outra coisa singular que lhe pareça sua semelhante. A mecânica imitativa
ganha o alcance do previamente indiferente: ainda que não conheçamos
previamente o outro, no desconhecido da ausência de qualquer afeto anterior, na
total ignorância de quaisquer outras características, ideias ou afetos comuns, um
homem, qualquer homem, identifica-se com os afetos daquele que lhe pareça seu
semelhante.
A imaginação da semelhança constitui um vínculo afetivo que
inscreve em cada homem um liame com qualquer coisa singular que lhe pareça
semelhante a si próprio. Esta imitação afetiva permite a Espinosa identificar um
novo tipo de sociabilidade, uma forma de vínculo social que não precisa e não
passa pelo conhecimento racional do útil ou do bom289. Ainda que imersos na
imaginação, movidos unicamente por paixões, os homens são capazes de
experimentar afetos comuns, de relacionar-se com seus semelhantes,
experimentando a comunidade mesmo que na passividade.
O que afeta uma coisa semelhante a nós, nos afetará também de forma
semelhante. A imitação afetiva parte de uma identificação de semelhança com o
outro. Um outro que antes nos era estranho, com o qual não compartilhamos
nenhum afeto ou ideia comum, nos parece, no entanto, semelhante a nós e
compartilhamos, a partir desta identificação, afetos semelhantes. É neste vínculo
de identificação pela semelhança, e na necessária imitação de afetos que daí

289
“Cette analyse est d’une extrême importance: en fait elle déplace toute la problématique de la
sociabilité. Le « semblable » (...) n’existe pas comme tel naturellement, au sens cette fois d’un être
là donné. Mais il est constitué par un processus d’identification imaginaire, que Spinoza appelle
« imitation affective » (affectuum imitatio) (...), et qui agit dans la reconnaissance mutuelle des
individus aussi bien que dans la formation de la « multitude » comme agrégat instable de passions
individuelles.” BALIBAR, Etienne. Spinoza et la politique...pp. 103/104
138

decorre, que nosso filósofo encontra o fundamento imanente e passional da gênese


constituinte da multidão290.
Vale destacar que é ao tratar desta imaginação de semelhança entre os
homens que Espinosa vai utilizar, pela primeira vez, na Ética, o termo
“humanidade”, no escólio da proposição 29 da Parte III291, e depois o termo
“inumano”, no escólio da proposição 50, da Parte IV292. Já vimos que nosso
filósofo recusa qualquer recurso a uma ideia abstrata ou universal de natureza
humana. O que caracteriza um homem não é uma coleção de características
previamente determinada por um conceito transcendente do humano. É justamente
no que nos identifica como semelhantes entre nós que Espinosa afirma o que há
de humano em nós293.
Assim, é na imaginação da identificação de semelhanças, e nos afetos
que daí derivam por imitação, que é possível falarmos em Espinosa de uma
“humanidade”. A natureza humana não é um critério abstrato e universal
transcendente, mas constrói-se na materialidade dos encontros com outros
homens, na identificação de semelhança e nos afetos que daí decorrem. A
contrario sensu, pode ser chamado “inumano”, aquele que é incapaz de
identificar-se e compartilhar afetos semelhantes com outros homens.
Deixaremos para nosso último capítulo a análise da complexidade da
afirmação espinosana deste critério de semelhança. O que são “coisas semelhantes
a nós” é uma construção que nosso filósofo deixa a cargo da imaginação e que,
assim, pode servir de fundamento para a mais bela das formas de solidariedade,
mas também para as mais odiosas formas de discriminação. Ao analisarmos a
servidão que pode se constituir no seio da multidão voltaremos a este tema, por

290
“De même que nous tendons à persévérer dans notre être, c’est-à-dire à nous accorder à nous-
mêmes, de même nous tendons à nous accorder à nos semblables ; et ceci découle de cela : c’est
parce que les essences singulières des autres hommes ressemblent à la notre que l’affirmation de
nous mêmes passe par l’affirmation d’autrui.” MATHERON, Alexandre. Ob. cit. pp. 155-156
291
“Esse esforço por fazer algo ou deixar de fazê-lo, com o único propósito de agradar aos
homens, chama-se ambição, sobretudo quando nos esforçamos por agradar ao vulgo com tal zelo
que fazemos ou deixamos de fazer certas coisas que resultem em detrimento nosso ou alheio. Se
esse não for o caso, costuma-se chamá-lo de humanidade” EIII, prop. 29, escólio
292
“Com efeito, quem não é levado nem pela razão, nem pela comiseração, a ajudar os outros, é,
apropriadamente, chamado de inumano, pois (pela prop. 27 da P.3) parece não ter semelhança com
o homem.” EIV, prop. 50, escólio.
293
“Assinalemos primeiro que Espinosa põe explicitamente, com efeito, um critério de
reconhecimento da humanidade dos corpos, a saber, a imaginação do semelhante e a imitação de
seus afetos.” BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e
antropogênese, São Paulo: Autêntica, 2010, pg. 109
139

ora basta-nos identificar na imitação afetiva a gênese constituinte de toda


multidão, seja ela mais ou menos afetada pelo amor ou pelo ódio.
Toda uma série de afetos decorre da imitação afetiva como a
comiseração e a benevolência, o reconhecimento e a indignação e, ainda, a
emulação e a ambição294. A comiseração é a “tristeza originada da desgraça
alheia”295. Pela mecânica da imitação afetiva, se imaginamos algo semelhante a
nós afetado de tristeza experimentaremos também um afeto de tristeza que, nesse
caso, chama-se comiseração, é a experiência triste da imitação afetiva da dor
alheia296.
Como consequência ou afeto correlato à comiseração nasce no homem
a vontade ou apetite de fazer o bem àquele por quem somos afetados de
comiseração. Buscando sempre a alegria, o homem é levado pelo próprio conatus
a buscar extinguir a tristeza daquele por quem sente comiseração, e assim, por
imitação, extinguir a própria comiseração. Tal vontade ou apetite de “fazer o bem
que provém de nossa comiseração para com a coisa à qual queremos fazer o bem,
chama-se benevolência, a qual, por isso, nada mais é que um desejo surgido da
comiseração.”297
Aqui é interessante ressaltar que, pela comiseração e benevolência,
Espinosa afirma uma concepção de solidariedade e caridade entre os homens que
dispensa o recurso a valores transcendentes de bem e de fraternidade. Os homens,
por imitação afetiva, são afetados de tristeza pela imaginação da tristeza de seus
semelhantes, e desta comiseração, pelo próprio esforço individual em busca da
alegria, desejam fazer o bem àquele por quem sentem comiseração. Assim, o
desejo de fazer bem àquele nosso semelhante que imaginamos estar sofrendo
nasce como expressão imanente do nosso próprio conatus, sem a necessidade do
recurso a nenhum valor moral ou ideal transcendente. A solidariedade e caridade

294
Limitaremos nossa análise a estes seis afetos porém ressaltamos que existem ainda outros que
igualmente decorrem da imitação afetiva, sobre o tema remetemos o leitor à EIII.
295
“A prop. 21 nos explica o que é a comiseração, que podemos definir como a tristeza originada
da desgraça alheia.” EIII, prop. 22, escólio.
296
“Essa imitação dos afetos, quando está referida à tristeza, chama-se comiseração.” EIII,
prop.27, escólio
“A comiseração é uma tristeza acompanhada da ideia de um mal que atingiu um outro que
imaginamos ser nosso semelhante” EIII, definição dos afetos 18.
297
EIII, prop. 27, escólio 2.
“A benevolência é o desejo de fazer bem àquele por quem temos comiseração” EIII, definição dos
afetos 35,
140

são, em Espinosa, expressão imanente do nosso próprio conatus e da busca pela


própria alegria individual.
Em sociedades politicamente mal organizadas, como as que de fato
existem, ou em situações extremas, como no estado de natureza, em que falta
qualquer regulação política, a comiseração e a benevolência têm uma importância
que não pode ser negligenciada. Inversamente proporcionais ao bom
funcionamento das instituições políticas, a comiseração e a benevolência podem
atenuar desigualdades e conflitos, podem garantir algum grau de comunidade,
mesmo que na falência da organização política298.
Neste sentido, a comiseração e a benevolência têm, para o conatus
coletivo da multidão, uma função próxima àquela da tristeza indiretamente boa
para o conatus individual, ou seja, são afetos que evitam outro mal maior299. A
comiseração e a benevolência, apesar de paixões tristes, podem evitar a
instauração e manutenção de desigualdades excessivas entre os indivíduos
constituintes da multidão, desigualdades que poderiam levar a graves conflitos e à
própria dissolução da sociedade.
No entanto, a comiseração é uma paixão triste e, ainda que possa
levar os homens a desejarem o bem, nosso filósofo é explícito ao dizer, na
proposição 50 da EIV, tratar-se de afeto mau e inútil ao homem que vive sob a
condução da razão300. A comiseração é má simplesmente por tratar-se de uma
paixão triste e, assim, tratar-se de afeto que comporta uma variação negativa de
nossa potência. O mesmo afeto é, ainda, inútil, diz Espinosa, pois o desejo de
fazer o bem que dele decorre poderia, muito mais adequadamente, ser decorrente
pura e simplesmente da própria razão, e da compreensão adequada acerca do bom
e do útil para o indivíduo e para a comunidade301.

298
“La pitié joue donc, dans la communauté humaine, un rôle régulateur que varie en raison
inverse de la stabilité de cette communauté elle-même. Inexistante chez les sages, inutile dans les
sociétés idéales que décrit le Traite politique, accessoirement utile dans les sociétés de fait que
spinoza a sous les yeux, elle devient indispensable dans l’état de nature. » MATHERON,
Alexandre. Ob. Cit. p. 158
299
“Disons, pour comparer systématiquement le conatus inter-humaine au conatus individual, que
la pitié est à la communauté humaine ce qu’est à l’individu la tristesse indirectement bonne:
déformation de structure, mais qui compense cette autre déformation, plus grave encore, qu’est
l’inégalité excessive” MATHERON, Alexandre. Ob.Cit. 158
300
“A comiseração, no homem que vive sob a condução da razão é, em si, má e inútil” EIV, prop.
50
301
“Dans une société politique bien organisée, la pitié serait tout aussi inutile que dans une
communauté de sages...” MATHERON, Alexandre. Ob. cit. p. 157
141

Outros dois afetos que decorrem da imitação afetiva são o


reconhecimento e a indignação. O reconhecimento é “o amor a quem fez bem a
um outro”302, já a indignação, contrariamente, é “o ódio a quem fez o mal a um
outro”303. Ao imaginarmos a alegria de um outro pelo bem recebido de terceiro,
por imitação afetiva, também seremos afetados de alegria de modo semelhante e,
portanto, de amor pelo terceiro autor do referido bem. Inversamente, o mesmo se
aplica no caso da tristeza: ao imaginarmos a tristeza de uma coisa semelhante a
nós afetada pelo mal perpetrado por terceiro, seremos, por imitação, afetados de
tristeza semelhante e de ódio pelo autor do mal.
O reconhecimento, Espinosa afirma ser um afeto que “não se opõe à
razão; em vez disso pode dela surgir”304. Como uma forma de amor, o
reconhecimento é um afeto de alegria e, como tem por objeto a realização do bem
entre os homens, pode muito bem coadunar-se com a compreensão adequada do
bom e do útil que provem da razão. Já a indignação, segundo nosso autor, “é
necessariamente má”305. Pela afirmação categórica da proposição 45 da E IV, de
que “o ódio nunca pode ser bom”, sendo a indignação uma forma de ódio por
aquele que fez mal a outrem, este afeto necessariamente será sempre uma paixão
triste, uma variação negativa de potência e jamais pode ser bom.
No entanto, é preciso uma ressalva quanto à função política da
indignação, quando esta é compartilhada pela multidão, frente a atos ou leis
proferidas pelos governantes. No Tratado Político, Espinosa identifica que
medidas do imperium que causem a indignação geral podem trazer riscos à
segurança interna da cidade, levando inclusive a uma revolução306. Ao tratarmos
da relação entre direito natural e direito civil, em nosso capítulo precedente, já
analisamos como a indignação geral pode servir de limite a ambições tirânicas de
302
E III, prop. 22, escólio.
EIII, definição dos afetos, 19
303
E III, prop. 22, escólio
EIII, definição dos afetos, 20.
304
EIV, prop. 51
305
EIV, prop.51, escólio.
306
Tratado Político, cap. III, §9º : “...uma medida que provoque a indignação geral tem pouca
relação com o direito da cidade, pois que, obedecendo à Natureza os homens ligar-se-ão contra ela,
seja para se defender de uma ameaça comum, seja para se vingar de qualquer mal e, visto que o
direito da cidade se define pelo poder da comunidade [potência comum da multidão], é certo que o
poder e o direito da cidade ficarão diminuídos, pois que dá razões à formação de uma frente
comum. A cidade tem, certamente, perigos a temer: da mesma maneira que, no estado de natureza,
um homem depende tanto menos de si próprio quanto mais razões tem para temer, também a
cidade se pertence tanto menos quanto mais tem a recear.”
142

exercício do poder político. Apesar de ser uma forma de ódio, na relação entre
multidão e poder constituído, a indignação pode ser afeto útil para resguardar o
imperium de ambições usurpadoras por parte daqueles que exercem o poder
político307.
Por fim, a terceira dupla de afetos que destacamos como decorrentes
da imitação afetiva são a emulação e a ambição. A emulação é o “desejo de
alguma coisa, o qual se produz em nós por imaginarmos que outros, semelhantes a
nós, têm esse mesmo desejo”308 Imaginamos que outro, semelhante a nós, deseja
algo e, por imitação afetiva, somos levados a desejar a mesma coisa que nosso
semelhante. Como num jogo de espelhos, na mecânica afetiva passional da
imaginação, os homens imitam o desejo de seus semelhantes e, por vezes, a mera
imaginação do objeto de desejo alheio já provoca nos homens o desejo pela
mesma coisa desejada por seu semelhante309.
A emulação, tal como conceituada por Espinosa, explica facilmente
fenômenos que são de nosso convívio mais corriqueiro como o marketing, que se
fortalece ao generalizar o desejo por determinado produto, ou mesmo a cultura da
moda que se afirma ao instituir no imaginário de vários os desejos pelos mesmos
objetos. Voltaremos a este tema que terá papel central na nossa análise dos afetos
que perpassam a multidão em nosso último capítulo.
Da imitação afetiva decorre que afetos experimentados em comum
com outros semelhantes a nós são sempre mais intensos que afetos
experimentados individualmente. Se uma alegria que nos afeta vem acompanhada
do afeto semelhante de imaginarmos outros compartilhando esta mesma alegria,

307
Laurent BOVE é explícito ao afirmar a indignação como um afeto correlato da resistência, e
sua positividade no campo político: « L’indignation est alors le signe de cette raison ou cette vertu
en reconstruction. Elle montre, comme la douleur, ‘que la partie blessée n’est pas encore pourrie’,
qu’une volonté de guérie est actuellement présente, que la vertu combat. L’indignation générale,
au sein d’un corps politique malade, est donc le signe d’une santé collective recouvrée. » BOVE,
Laurent. La stratégie du conatus... pg. 293
308
EIII, prop. 27, escólio 1.
309
« À la lumière d’une structure mimétique du désir, dont l’Émulation spinozienne donne très
précisément la formule de base, la socialité humaine apparaît comme un effrayant jeu de mirois
entre caméléons déboussolés, dont les comportements se balancent périodiquement entre
convergence et rivalité, voués à flotter au grés des aléas de configurations purement relationnelles,
sans guère d’ancrage possibles dans la ‘réalité’ rassurante qu’offriraient des besoins objectifs, non
aléatoires et non chaotiques. » CITTON, Yves. « Les lois de l’imitation des affects », in CITTON,
Yves e Lordon, Frédéric (org.), Spinoza et les sciences sociales – de la puissance de la multitude à
l’économie des affects, Paris: Éditions Amsterdam, 2008, pg. 79
143

nosso afeto será mais intenso que apenas a nossa alegria singular. Neste sentido, é
clara a proposição 31 da EIII:

Se imaginamos que alguém ama, ou deseja, ou odeia uma coisa que nós
mesmos amamos, ou desejamos, ou odiamos, amaremos, por esse motivo,
essa coisa com mais firmeza, etc. Se, por outro lado, imaginamos que
alguém abomina aquilo que amamos ou, inversamente, que ama o que
abominamos, então padeceremos de uma flutuação de ânimo.

Da busca por afetos comuns, que daí resulta, podemos identificar dois
tipos de ambição citados por Espinosa: primeiro a ambição por fazer o que
julgamos que agradará nossos semelhantes310, e segundo a ambição por fazer com
que nossos semelhantes amem as mesmas coisas que nós próprios amamos, ou
odeiem as mesmas coisas que nós próprios odiamos311.
A alegria de meu semelhante é também minha alegria, e minha
própria alegria é reforçada quando compartilhada com outros: a conclusão mais
evidente deste mimetismo é que os homens buscam, em regra, realizar o que
imaginam alegrar seus semelhantes e, por outro lado, evitam fazer o que
imaginam que os desagrade.

Esforçamo-nos por fazer com que se realize tudo que imaginamos levar à
alegria; esforçamo-nos, por outro lado, por afastar ou destruir tudo aquilo
que a isso se opõe, ou seja, tudo aquilo que imaginamos levar à tristeza EIII,
prop. 28
Nós nos esforçaremos, igualmente, por fazer tudo aquilo que imaginamos
que os homens veem com alegria, e contrariamente, abominaremos fazer
aquilo que imaginamos que os homens abominam. EIII, prop. 29

Espinosa chama de ambição este esforço por fazer aquilo que


imaginamos que agrade nossos semelhantes, e o correlato esforço por evitar o que
imaginamos desagradar aos homens. Nosso filósofo ressalta, ainda, que, imersos
na imaginação, tal ambição pode dominar a tal ponto os homens que estes sejam
levados a fazer coisas em detrimento do próprio interesse ou de outros, apenas
para agradar ao vulgo312.

310
EIII, prop. 29
311
EIII, prop. 31, corolário e escólio.
312
“Esse esforço por fazer algo ou deixar de fazê-lo com o único propósito de agradar aos homens,
chama-se ambição, sobretudo quando nos esforçamos por agradar ao vulgo com tal zelo que
fazemos ou deixamos de fazer certas coisas que resultem em detrimento nosso ou alheio.” EIII,
prop. 29, escólio
144

No entanto, se este primeiro tipo de ambição busca, muitas vezes a


qualquer custo, realizar o que imaginamos agradar nossos semelhantes, o segundo
tipo de ambição, destacado por nosso autor, visa, ao contrário, impor aos outros,
nossos semelhantes, o que nós, individualmente, julgamos bom ou mau, amamos
ou odiamos.

Disso e da prop. 28, segue-se que cada um se esforça, tanto quanto pode,
para que todos amem o que ele próprio ama e odeiem também o que ele
próprio odeia. EIII, prop. 31, corolário.
Esse esforço por fazer com que todos aprovem o que se ama ou se odeia é,
na verdade, a ambição (...). Vemos, assim, que, cada um, por natureza,
deseja que os outros vivam de acordo com a inclinação que lhe é própria.
Como é isso que todos desejam, constituindo-se, assim, em obstáculos
recíprocos, e como todos querem ser louvados ou amados por todos,
acabam todos por se odiar mutuamente. EIII, prop. 31, escólio.

Já vimos que na ontologia espinosana não existem valores abstratos e


universais de bom ou mau, belo ou feio, ou quaisquer outros juízos de valor
absolutos. É a experiência individual de encontros e afetos de cada homem que
leva-o a desejar ou execrar uma mesma coisa, amar ou odiar outra coisa ou
mesmo, de um momento para o outro, passar a amar o que antes odiava e vice
versa. Neste cenário, uma mesma coisa pode ser, ao mesmo tempo, objeto de
amor para um homem e objeto do mais violento ódio por outro homem, seu
semelhante. Um mesmo encontro pode provocar alegria em um indivíduo e a mais
profunda tristeza em outro. Neste sentido:

Homens diferentes podem ser afetados diferentemente por um só e mesmo


objeto, e um só e mesmo homem pode, em momentos diferentes, ser afetado
diferentemente por um só e mesmo objeto. EIII, prop. 51

Isto posto, na realidade múltipla dos encontros e dos afetos, nada mais
impossível que esperar que, imersos na imaginação, os homens concordem, a todo
momento, sobre tudo o que é objeto de amor ou ódio, o que é causa de alegria ou
tristeza. Portanto, a ambição de fazer com que seus semelhantes se coadunem com
o juízo individual de cada homem é uma ambição necessariamente conflitiva, e o
tema da maior parte das disputas entre os homens.
Qualquer homem prefere seu próprio sistema de valores, decorrente de
suas próprias experiências individuais, ao sistema de valores de seu semelhante.
Sendo assim, a princípio, todo homem deseja impor a seus semelhantes suas
145

313
próprias concepções de bom e mau, belo e feio, objeto de amor e de ódio, etc .
Alexandre Matheron chama esta ambição de ambição de dominação. Neste
cenário, enquanto a imitação afetiva e seus afetos costura a sociabilidade, no caso
da ambição de dominação ela torna-se afeto de sedição e pode materializar-se em
ambição pelo exercício do poder político para fins particulares.
A ambição é mais um tema ao qual retornaremos com mais atenção no
nosso último capítulo. Por ora, basta-nos destacar sua gênese na imitação afetiva e
seu caráter conflitivo, frente à multiplicidade dos encontros e dos afetos nos quais
estão, inevitavelmente, imersos todos os homens. A imitação afetiva é o liame
imanente que constitui as relações entre os homens e seus semelhantes. A
multidão, em Espinosa, não é o resultado de um cálculo racional dos homens ou
um esforço adequado pelo bom e pelo útil, mas se tece nas linhas das paixões e na
semelhança imaginária.

3.1.4

A multidão como multiplicidade de singularidades

Com a imitação afetiva o sujeito político, em Espinosa, ganha sua


fundamentação intrínseca e imanente na mecânica passional de seus constituintes.
Nem intervenção divina, nem contrato social, a multidão espinosana se constitui
no liame da similitude e no campo da imaginação e das paixões, sem a
necessidade de qualquer elemento externo que venha lhe garantir unidade ou
ordenar seus encontros. A imanência absoluta se afirma, na análise espinosana,
desde a gênese do campo político.
No entanto, qualquer análise do sujeito político espinosano não pode
deixar de defrontar-se com um aparente problema ao confrontar o texto do
Tratado teológico-político com a Ética e o Tratado Político. Nosso autor, que na
Ética formula tão coerentemente uma fundamentação imanente para a gênese
constituinte da multidão, no Tratado Teológico-político, escrito previamente,
ainda se utiliza do recurso à noção de pacto para explicar a constituição do campo
político.
313
“Toutes choses égales d’ailleurs, nous préférons nos vue personelles. Nous nous efforçons
donc, afin de rétablir en nous l’équilibre, de faire adopter par autrui notre propre système de
valeurs. » MATHERON, Alexandre. Ob. cit. p. 167.
146

No Tratado Teológico-Político, publicado em 1670, e, portanto,


anterior à Ética, cuja redação final ocorreu certamente entre 1670 e 1675, e ao
Tratado Político, redigido entre 1675 e 1677314, Espinosa explicitamente situa a
instituição do campo do político num pacto entre os indivíduos e na transferência,
ainda que limitada, do direito natural de cada um para a coletividade315.

A condição para que a sociedade possa ser constituída sem nenhuma


contradição com o direito natural e para que um pacto possa ser fielmente
observado é, pois, a seguinte: cada indivíduo deve transferir para a
sociedade toda a sua própria potência, de forma que só aquela detenha,
sobre tudo e todos, o supremo direito de natureza, isto é, a soberania
suprema... Tratado Teológico-político, Cap. XVI.

Porém, apesar do uso dos termos “pacto” e “transferência de direito”


levarem a crer numa descontinuidade ou ruptura entre esta primeira obra e as
posteriores, é possível identificarmos elementos presentes já no Tratado
Teológico-político que nos levam a identificar mais uma diferença de forma que
propriamente de conteúdo nas análises espinosanas do político antes e depois da
Ética.
Primeiro, cabe destacar que o “pacto” fundante do político no Tratado
Teológico-político não implica na instituição de nenhum poder transcendente à
coletividade de seus constituintes. Espinosa, desde sua primeira obra política,
rechaça qualquer transcendência do poder em relação à multidão. Os contratantes
espinosanos não transferem seu direito a um ente exterior ao contrato, ou pactuam
para instituírem um poder transcendente ao social. Pelo contrário, no Tratado
Teológico-político os homens pactuam a transferência de parte de seu direito para
toda a coletividade.
Ao contrário do que ocorre, por exemplo, em Hobbes, o pacto social
presente do Teológico-político não institui nenhuma autoridade transcendente ao
social. Em Espinosa, ainda que presente a noção de pacto, não há transcendência
do poder político. Ao constituir-se o sujeito político multidão, no TTP, o que se

314
NEGRI, Antonio. Verbete “SPINOZA, Baruch – Tratado Político” em Dicionário de obras
políticas... p.1131/1132
315
“Os comentadores da obra política espinosana não podem deixar de enfrentar o fato de que a
instituição do campo político não parece receber a mesma explicação no Teológico-político e no
Político, pois o primeiro invoca a idéia de pacto como instância instituinte enquanto o segundo
invoca o direito da multitudo como causa eficiente do corpo político.” CHAUÍ, Marilena. “A
instituição do campo político” em Política em Spinoza...p.164
147

constitui é uma potência coletiva que permanece, em sua gênese, e em seu


exercício, imanente à própria coletividade.
Ademais, apesar do uso do termo “pacto” no TTP, nosso filósofo não
pode ser considerado um contratualista, pois toda sua concepção acerca do
humano nega os pressupostos fundamentais da ideia de um contrato social
316
fundante do campo político . Ao afirmar a mecânica afetiva da subjetivação,
Espinosa nega qualquer proeminência do cálculo racional na constituição do
sujeito político. É no campo das paixões humanas e da imaginação que nosso
filósofo situa a constituição da multidão, e não em qualquer noção de livre arbítrio
ou interesses negociados entre contratantes.
Indivíduos atomizados não precedem o social, o “pacto” espinosano
no TTP é mais figurativo que uma afirmação da forma de constituição do político.
O individual se constitui necessariamente no intersubjetivo, direitos naturais
subsistem no direito civil, a menção a um “pacto” no TTP, se analisada no
conjunto da obra de nosso filósofo, perde sua importância como ruptura com o
que lhe é posterior, na análise do político pelo autor, e pode ser considerada
menos um problema que uma posterior convergência com o que se segue nas
outras obras, que permitem a Espinosa dispensá-la.
Em segundo lugar, vale a ressalva de que, ao tratar de “transferência
de direito” no TTP, nosso filósofo não admite a hipótese desta transferência ser
absoluta. Direito natural é potência, é expressão do próprio conatus e ceder a
integralidade do próprio esforço em perseverar na existência constitui, na filosofia
de Espinosa, uma impossibilidade lógica317. A transferência de direitos entre cada
homem e a coletividade inteira encontra limites naturais que podem ameaçar,
inclusive, a própria segurança do Estado:

Todavia, como ninguém pode privar-se a um ponto tal do seu poder de se


defender que deixasse de ser um homem, resulta daí que ninguém pode ser

316
“Em suma, o contrato no Tratado Teológico-Político possui caráter nominal, inexistindo, na
concepção spinozana acerca do contrato, qualquer das características que o qualificam nas
doutrinas contratualistas, Se Spinoza já poderia ser considerado um autor que se valia do termo
‘direito natural’ sem ser jusnaturalista, agora é possível estabelecer que ele usa o termo ‘contrato’
não chegando a se configurar um pensador contratualista.” GUIMARAENS, Francisco de.
Cartografia da imanência...p. 269
317
“Por isso é possível afirmar que a teoria política spinozista não é capaz de assimilar a
possibilidade de transferência plena de direitos, como ocorre em HOBBES. (...) Transferir o
conatus, o direito natural, é absolutamente impossível; ninguém pode deixar a cargo de outrem o
esforço de perseverar na existência. Alienar o conatus é, antes de mais nada, uma impossibilidade
lógica.” GUIMARAENS, Francisco, O poder constituinte...p. 138
148

absolutamente privado do seu direito natural e que os súditos mantém, quase


como direito de natureza, alguns privilégios que não lhes podem ser recusado
sem grave perigo para o Estado... Prefácio do Tratado Teológico-político

Ainda que, no TTP, nosso filósofo utilize a terminologia em voga na


sua época da “transferência de direito”, a constituição do direito civil não implica
a renúncia da potência individual de seus constituintes. A questão fundamental da
relação entre direito natural e a constituição do estado civil em Espinosa é que
ceder não é renunciar318.
A transferência de direito, em Espinosa, não significa a plena alienação
ou a renúncia, mas sim uma variação na potência de agir, variação que acompanha
qualquer encontro e relação com outras coisas singulares na existência319. A
constituição do direito civil não é a alienação dos direitos naturais individuais,
pelo contrário, os direitos naturais individuais, numa relação de causalidade
imanente, se exprimem, encontram condições materiais de exercício, na
constituição das leis comuns da multidão320. Podemos assinalar, assim, que ao
negar a constituição de qualquer poder transcendente ao social, e ao impor limites
à transferência de direitos, Espinosa não se distancia tanto no TTP do que serão
suas teses políticas posteriores, enunciadas na Ética e no TP.
Mas, como vimos, é a redação da Ética que possibilita que nosso
filósofo se desligue do imaginário de um pacto social e da transferência de
direitos, para encontrar uma gênese passional constituinte do sujeito político321.
No Tratado Político os termos “pacto” e “transferência de direitos” já estão
abolidos da análise espinosana do campo político e, mais do que isso, como
veremos, são uma impossibilidade lógica frente ao arcabouço ontológico
enunciado na Ética.
318
ROCHA, Maurício. Verbete Spinoza. em: Vicente Paulo Barreto. (Org.). Dicionário de
Filosofia do Direito. São Leopoldo/Rio de Janeiro: Unisinos/Renovar, 2006, v. , p. 778-784.
319
“Lê ‘transfert’, si transfert il y a, devient alors quelque chose de fort simple et de fort banal:
nous l’effectuons quotidiennement. Ce qui demeure immuable, c’est le Droit de la Nature intière :
le conatus global de la Facies Totius Universi. Mais, à l’intérieur du Tout, le jeu des lois naturelles
modifie constamment les rapports de force entre individus singuliers. Chacun de ceux-ci,
considéré isolément, voit donc la sphère de son Droit Naturels s’élargir et se rétrécir selon le
hasard des recontres : ce qu’il perd, d’autres le gagnent ; et l’on peut dire, en un sens tout réaliste,
qu’il le leur a ‘abandonné’ » MATHERON, Alexandre. Ob. Cit. pp. 295-296
320
Voltaremos a este tema no nosso item 3.3 dedicado à análise do campo jurídico em Espinosa.
321
“Intrinsecamente, a diferença entre os dois tratados decorre da elaboração, no intervalo entre
ambos, da ontologia, da física e da psicologia da Ética, graças às quais a noção de pacto perde o
aspecto fundante, embora a operação de pactuar não seja afastada por Espinosa. De fato, com a
Ética, o filósofo dispõe dos elementos para formular a idéia do sujeito político como união de
corpos e mentes que constituem um indivíduo coletivo, a multitudo, cujo direito natural é o direito
civil.” CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em Política em Spinoza...p.164
149

Com a imitação afetiva a sociabilidade não é resultado de um cálculo


racional e nem uma escolha deliberada por um acordo com outros homens. A
sociabilidade espinosana se inscreve de forma absolutamente imanente no esforço
individual pela alegria e pela experiência de afetos comuns. Não se trata de medo
da morte violenta, como em Hobbes, mas sim de afirmação do conatus e desejo de
comunidade, que determinam necessariamente a gênese constituinte da
multidão322.
Se defrontarmos esta concepção espinosana acerca da gênese da
sociedade com as duas principais tradições antropológicas a respeito do tema, fica
evidente, mais uma vez, a anomalia do pensamento de Espinosa. O antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro, em seu artigo “O conceito de sociedade em
antropologia” destaca que o pensamento ocidental oscila entre duas concepções
acerca da sociedade: a primeira que se pode chamar “individualista” e a outra que
se pode chamar “holista”323.
A primeira, “individualista”, é aquela que entende a sociedade como
um somatório de indivíduos atomizados que, por um contrato social, pactuam a
instituição de um conjunto de normas convencionais. É por um ato de adesão
consensual que os indivíduos associam-se em sociedade, e esta é um artifício
criado para responder ao cálculo racional de interesses de seus constituintes. Nesta
concepção antropológica acerca da sociedade, há uma descontinuidade e
transcendência entre estado de natureza e estado civil, e seu modelo metafórico
mais claro é o Estado constitucional e territorial324.

322
“Em Spinoza não é o medo da morte que impulsiona a constituição da sociedade, mas sim o
desejo de viver bem, que somente se faz possível em comunidade. (...) Não é o cálculo racional
Hobbesiano, fundado no medo da morte, mas sim o desejo positivo de expansão da potência,
através da formação de uma comunidade...” GUIMARAENS, Francisco de. O poder
constituinte...p. 140
323
“O pensamento ocidental oscila entre duas imagens de sociedade, opostas e combinadas de
modo historicamente variável, onde se fundem os sentidos particular e geral da noção. Podemos
chamá-las, com Dumont (1965), de societas e universitas, ou, usando a distinção popularizada por
esse mesmo autor, de concepções ‘individualista’ e ‘holista’ do social”. VIVEIROS DE CASTRO,
Eduardo. “O conceito de sociedade em antropologia” in A insconstância da alma selvagem e
outros ensaios de antropologia, 2ªed., São Paulo: Cosac Naify, 2011, pg.300
324
“A primeira se funda na ideia de contrato entre átomos individuais ontologicamente
independentes: a sociedade é um artifício resultante da adesão consensual dos indivíduos, guiados
racionalmente pelo interesse, a um conjunto de normas consensuais; a vida social está em
descontinuidade radical com um estado de natureza, que ela nega e transcende. De inspiração
universalista e formalista, esta concepção tem como modelo metafórico (e geralmente causa final)
o Estado constitucional territorial, e, como problema típico, os fundamentos da ordem política.”
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Ob.cit. pg.300
150

A segunda das duas principais formulações teóricas acerca da gênese


da sociedade no pensamento antropológico ocidental é aquela denominada
“holista”, e compreende a sociedade como um todo orgânico que precede e
transcende os indivíduos, seus constituintes. Nesta concepção acerca da vida
social é afirmada a existência de uma unidade corporada, inspirada em uma ordem
de valores transcendente que, empírica e moralmente, preexiste a seus membros, e
da qual estes emanam e retiram sua substância325.
Se, na concepção “individualista”, indivíduos atomizados acordam a
existência e a ordem da vida social, nesta segunda visão acerca do conceito de
sociedade o individual emana do social que lhe precede, como uma ordem de
valores transcendente. Enquanto na concepção “individualista” é a ideia de
contrato social que explica a sociabilidade, na concepção “holista” seu modelo
metafórico (e, às vezes causa eficiente) é o parentesco326 e seu problema típico se
desloca da ordem política para a integração cultural de seus membros no ideal de
Nação327.
Assim, Eduardo Viveiros de Castro pode identificar em duas imagens
essas duas concepções dominantes na antropologia ocidental para explicar a
gênese do social: a primeira a imagem do “contrato” (ou seu negativo, o conflito),
e a segunda a imagem de “organismo”328. O pensamento ocidental da antropologia
hegemônica oscila entre estas duas concepções do social onde, ou o indivíduo
precede o social e o constitui como escolha racional, ou o social precede o
indivíduo e este emana de uma ordem de valores que lhe precede e transcende.

325
“A segunda se funda na ideia de um todo orgânico preexistente empírica ou moralmente a seus
membros, que dele emanam e retiram sua substância: a sociedade é uma unidade corporada
orientada por um valor transcendente; ela é um universal concreto onde a natureza humana se
realiza.” VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Ob.cit. Pg. 300
326
O conceito de “parentesco” em antropologia remete a uma rica discussão a respeito da
multiplicidade de critérios e sistemas de parentes que, no entanto, escapa aos limites de nosso
trabalho. Trata-se de tema que, não obstante sua grande relevância, desperta uma série de
formulações e problemas que ultrapassariam em muito o objetivo do presente trabalho. Isto posto,
sobre o tema, remetemos o leitor, entre diversas outras bibliografias possíveis, a: VIVEIROS DE
CASTRO, Eduardo. “O problema da afinidade na Amazônia” in, A insconstância da alma
selvagem e outros ensaios de antropologia, 2ªed., São Paulo: Cosac Naify, 2011
327
“De inspiração particularista e substantivista, seu modelo metafórico (e às vezes causa
eficiente) é o parentesco como princípio natural de constituição de pessoas morais coletivas, e seu
problema típico é o da integração cultural de um povo enquanto Nação.” VIVEIROS DE
CASTRO, Eduardo. Ob. Cit. Pg.300
328
“As grandes imagens modernas para essas concepções são respectivamente o contrato (ou seu
negativo, o conflito) e o organismo, que atravessaram a antropologia do século XX sob avatares
múltiplos...” VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Ob.Cit. pg. 300/301
151

Somente a título de exemplo, sem nenhuma pretensão de esgotarmos o


tema, autores da concepção “individualista” nos aparecem com muita facilidade
no pensamento moderno, bastando-nos citar o trio de contratualistas mais
famosos, constituído por Thomas Hobbes, John Locke e J.J. Rousseau. Já a
concepção “holista” tem suas origens teóricas no pensamento pré-moderno, com
seu principal expoente em Aristóteles e sua concepção do homem como zoon
politikon. No entanto, sobre a concepção da sociedade como organismo
poderíamos citar o famoso discurso de Menenio Agrippa na Roma de 494 ac329 e,
já na modernidade, os esforços da reação romântica ao Iluminismo330.
Posteriormente, no nascimento da sociologia, com Émile Durkheim, já no século
XIX, podemos igualmente identificar desenvolvimentos desta concepção do social
como um todo orgânico331.
Mas nada disso está em Espinosa. Frente às duas concepções
hegemônicas do pensamento antropológico ocidental acerca do conceito de
sociedade, o pensamento espinosano é uma anomalia. Já vimos que a mecânica da
imitação afetiva permite a nosso filósofo dispensar a ideia de um pacto entre
indivíduos que calculam racionalmente seus interesses. Da mesma forma, em
Espinosa, a sociedade não precede o indivíduo, nem é a materialização de uma
ordem de valores transcendente.

329
“Cônsul romano que, em 494 a.c., perante a plebe reunida no Monte Palatino, teria apresentado
o apólogo sobre os membros que se rebelam contra o estômago, prejudicando todo o corpo. Os
membros simbolizariam os plebeus e o estômago, os patrícios. Com sua revolta, aqueles causariam
a ruína destes, mas não seriam poupados da própria.” Pilatti, Adriano. “Nota do Tradutor 41” in
NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, Rio de
Janeiro: DP&A, 2002, pg.20
330
“A universitas está associada a um horizonte pré-moderno dominado pelo pensamento de
Aristóteles; a societas, aos teóricos do jusnaturalismo, de HOBBES a Hegel. Mas deve-se recordar
que a Antiguidade conheceu sociologias artificialistas com os sofistas e Antístenes, e que o
nominalismo medieval preparou o terreno para as teorias modernas do contrato. Por sua vez, o
modelo holista e organicista da universitas ressurgiu na reação romântica ao Iluminismo,
desempenhando um papel fundamental no desenvolvimento da imagem antropológica de (uma)
sociedade como uma comunidade étnica de origem que partilha um mundo de significados
tradicionais legitimados pela religião. De outro lado, boa parte da antropologia vitoriana e sua
descendência pode ser vista como herdeira tardia do Iluminismo.” VIVEIROS DE CASTRO,
Eduardo. Ob.Cit. pg.301
331
“Na solidariedade característica de uma sociedade industrial, os indivíduos desenvolvem
funções especializadas, diferentes entre si, mas, ao mesmo tempo, interdependentes. Durkeim, para
esclarecer esta solidariedade, usa a metáfora do corpo, segundo a qual cada membro e cada órgão,
embora desempenhem funções diferentes, estão mutuamente relacionados de forma que a soma
das partes compõem um todo integrado e homogêneo. Exatamente por isso, Durkeim chamou essa
solidariedade de orgânica,” Loche, Adriana A. et alli. Sociologia jurídica: estudos de sociologia,
direito e sociedade , São Paulo: Ed. Síntese, pg. 52.
152

A multidão espinosana não se presta às metáforas do contrato ou do


organismo, mas é, ao mesmo tempo, e de forma imanente, o múltiplo e o
individual. O processo de subjetivação é também intersubjetivo, de modo que os
indivíduos se constituem no social, ao mesmo tempo que constituem o social. Sem
precedência ou transcendência entre indivíduo e sociedade, em Espinosa a
multidão é multiplicidade de singularidades.
A construção do humano efetuada na Ética possibilita a Espinosa, no
Tratado Político, dispensar a lógica do pacto para fundamentar a constituição da
multidão332. Uma vez demonstrada a utilidade do comum, seja num registro
racional ou passional, com a Ética, Espinosa fundamenta a gênese constituinte da
multidão no próprio esforço natural do homem em perseverar na existência.
Nenhuma necessidade de transferência de direito para explicar o coletivo,
nenhuma formalização contratual vai estabelecer o sujeito político, a gênese
constitutiva da multidão se inscreve no próprio conatus, no próprio movimento
produtivo das potências singulares, seja pela concordância racional sobre o útil ou
pela experiência de afetos comuns333.
É neste registro, também, que podemos verificar como a constituição
da multidão não vai suplantar os afetos individuais, nem tão pouco eliminar as
diferenças ou os conflitos entre seus constituintes334. Como multiplicidade de
singularidades, a multidão não suprime as identidades individuais de seus
constituintes, mas, constituída num desejo do comum e do semelhante, inscreve-
se no próprio movimento produtivo de suas potências, em suas próprias relações
de composição e antagonismos335.

332
“Espinosa não só pode manter a idéia, desenvolvida no Teológico-Político, da utilidade da
cooperação e da união de forças, mas sem precisar recorrer à idéia de pacto, como ainda pode
oferecer os fundamentos dessa cooperação, graças à teoria das paixões e dos desejos alegres, isto
é, dos afetos que fortalecem o conatus, de tal maneira que a percepção dos demais homens como
semelhantes e da utilidade de cada um deles e de todos para o fortalecimento do conatus individual
explica que constituam a multitudo e instituam o corpo político.” CHAUÍ, Marilena. “A instituição
do campo político” em Política em Spinoza...p.165
333
“A verdadeira atitude metafísica não consiste em fundar a política no dever-ser da comunidade,
mas em reconhecer que toda formação e permanência de comunidade são o produto contínuo da
potência produtiva das singularidade.” NEGRI, Antoni, O Poder Constituinte: ensaio sobre as
alternativas da modernidade, p. 458. Ed. DP&A, Rio de janeiro, 2002
334
“Tal concórdia deriva da constituição do comum, não significando ausência de conflitos.
Concordar, convir, é participar de um regime comum de produção, ressaltando-se que,
necessariamente, tal produção implica em conflitos internos ao movimento constitutivo.”
GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte... p.147
335
“Comecemos dizendo que a multidão não é nem encontro da identidade, nem pura exaltação
das diferenças, mas é o reconhecimento de que, por trás de identidades e diferenças, pode existir
“algo comum”, isto é, “um comum”, sempre que ele seja entendido como proliferação de
153

Outra consequência relevante deste conceito de multidão espinosano é


sua distância dos conceitos mais utilizados pelo pensamento político ocidental
hegemônico para pensar, ou conter, o sujeito político como: povo, nação e massa.
Se o pensamento espinosano é uma ruptura com a dicotomia afirmada pelo
pensamento antropológico ocidental acerca do conceito de sociedade, sua
anomalia também fica clara quando defrontamos a sua concepção acerca da
multidão com o pensamento político moderno acerca do sujeito político.
Primeiro, cabe ressaltar que o conceito espinosano de multidão não se
confunde, nem cabe nos limites do conceito de povo, tal como compreendido pelo
pensamento político moderno. O conceito de povo pressupõe uma ordem jurídica
que lhe assegure a unidade e seus critérios de identificação e limites. A concepção
moderna de povo está intrinsecamente ligada a (pré-)existência de um Estado que
lhe assegure a identidade. O conceito de povo não existe por si só, mas depende
de um poder transcendente que lhe institua336.
A multidão espinosana, já o vimos, não depende de qualquer poder
transcendente para constituir-se. Longe da transcendência de um Estado que
institui unidade e identidade a um coletivo de indivíduos submetidos a uma
mesma ordem jurídica, a multidão não se confunde com a noção de povo tal como
formulada pelo pensamento político moderno hegemônico. O sujeito político
espinosano é a causa imanente do imperium do Estado, e não um efeito de seu
poder transcendente. A ordem jurídica não é causa transcendente da unidade e
identidade da multidão, mas expressão imanente de suas relações constituintes.
Multidão e povo são conceitos distintos.
A distância que separa os conceitos de multidão e de povo também
separa, por razões distintas, os conceitos de multidão e de nação. O conceito de
nação é historicamente datado e define-se como sujeito político baseado em
elementos agregadores meramente passionais e imaginativos. A nação funda uma
abstrata união entre os indivíduos, sempre norteada por alguma finalidade,

atividades criativas, relações ou formas associativas diferentes. (...) A multidão é um conjunto de


singularidades, de fato, lá onde por “conjunto” se considera ema comunidade de diferenças e lá
onde as singularidades são concebidas como produção da diferença. O comum (na multidão)
nunca é o idêntico...” NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império, Rio de Janeiro: DP&A, 2003,
p.148
336
“Os indivíduos, no momento em que alienaram poder, tornam-se um povo, isto é, tornam-se o
conjunto de portadores de direitos reconhecidos pelo soberano. Eis então que o conceito de povo
aparece na modernidade como uma produção do Estado.” NEGRI, Antonio, Cinco lições sobre
Império...p. 143
154

historicamente determinada, seja ela a resistência a um poder tirânico ou a


expansão de determinado Estado337.
Ora, a multidão espinosana, constituída na mecânica afetiva,
determinada pelo conatus de seus constituintes, não está necessariamente ligada a
nenhum ideal abstrato de finalidade. Embora a imaginação possa impregnar o
ingenium coletivo de ideias inadequadas acerca de fins ou valores, a multidão
espinosana não tem por causa transcendente a busca por tais ideais abstratos,
muito embora estes possam surgir como expressão imanente (e imaginativa) de
sua potência coletiva. Ademais, o conceito de nação é historicamente determinado
no pensamento político moderno, limitação que não se aplica ao conceito
338
espinosano de multidão . A multidão espinosana pode encontrar-se, e
frequentemente se encontra, imersa em ideias imaginárias de valores e finalidades
coletivas, mas, ao contrário do conceito de nação, tais ideias são expressões
imaginativas de sua potência coletiva, mas nunca sua causa eficiente.
Por fim, cabe ressaltar que o conceito espinosano de multidão também
não se identifica com o conceito de massa, tal como este é enunciado pelo
pensamento político moderno. Apesar de prescindir de um poder transcendente
que lhe assegure a unidade e a identidade, o conceito de massa traz em seu bojo a
noção de dissolução das singularidades de seus constituintes, que não cabe na
noção espinosana de multidão. Na massa, seus indivíduos constituintes tem suas
identidades singulares absorvidas ou dissolvidas num coletivo uniforme339. A
massa é o campo do indistinto, nenhuma desigualdade subsite entre seus

337
“Entretanto, era indispensável o aparecimento de um símbolo da unidade popular, tanto para
obter do povo, por via emocional, sua adesão à luta contra o absolutismo, quanto para a
institucionalização de lideranças.
Surge, então, como pura criação artificial, o conceito de Nação, que seria largamente explorado no
século XVIII para levar a burguesia, economicamente poderosa, à conquista do poder político. Era
em nome da Nação que se lutava contra a monarquia absoluta...” Dallari, Dalmo de Abreu.
Elementos de teoria geral do estado, p. 132, 20ª edição, Ed. Saraiva, São Paulo, 1998
338
“ À primeira vista, este conceito [nação] pareceria singularmente adequado àquele de
procedimento absoluto, não fosse o fato de que ele é um conceito genérico, real só na imaginação
(e, portanto, indefinidamente manipulável). Por outro lado, porém, é um conceito historicamente
determinado, freqüentemente em função da ruptura do processo constituinte, de sua hipóstase ou
limitação.” NEGRI, Antonio, O poder constituinte... pp. 42/43
339
Foge aos limites deste trabalho um estudo mais detalhado e atencioso sobre a questão da massa
como sujeito político. No entanto, apenas no intuito de diferenciar sua constituição daquela da
multidão spinozana, nos remetemos a descrição de Elias Canetti: “Tão logo nos entregamos à
massa não tememos o seu contato. Na massa ideal, todos são iguais. Nenhuma diversidade conta,
nem mesmo a dos sexos. Quem quer que nos comprima é igual a nós. Sentimo-lo como sentimos a
nós mesmos. Subitamente, tudo se passa então como que no interior de um único corpo.” Canetti,
Elias. Massa e poder, São Paulo: Companhia das letras, 2005, p. 14
155

constituintes, é a constituição de um todo homogêneo e ao mesmo tempo


340
desordenado e facilmente manipulável . A massa não comporta conflitos
internos, nem aceita a subsistência das singularidades de seus constituintes.
A multidão espinosana é o oposto da uniformidade da massa. A
multidão é o campo do múltiplo, da expressão e constituição das singularidades,
dos inevitáveis e ricos conflitos internos. Podemos salientar que, desde sua
concepção da gênese do sujeito político, Espinosa é um pensador intrinsecamente
democrático. O múltiplo em Espinosa não é o campo da desordem ou do
ingovernável, mas é na multiplicidade dos afetos e ideias singulares que se
constitui a multidão como sujeito político. Neste sentido, a multidão não é a
dissolução das singularidades, mas a constituição de um sujeito político pelas
relações de composição e antagonismos da multiplicidade341.
A subjetivação do singular se constitui nas relações com outros
indivíduos, e o indivíduo coletivo se constitui na multiplicidade das relações entre
as singularidades. Não há transcendência entre indivíduo e multidão, não há
oposição entre o múltiplo e o singular. A ordem de constituição das coisas
singulares, em Espinosa, é a ordem das relações entre indivíduos singulares. Da
mesma forma que o corpo humano, já o vimos, é uma relação entre partes
extensas, e a mente humana é a multiplicidade das ideias deste corpo e ideias
dessas ideias, o sujeito político, em Espinosa, também é conjunto de relações e
multiplicidades: relações de composições e antagonismos entre indivíduos;
diversidade de encontros, ideias e afetos; o múltiplo característico da democracia.

340
“Com o desenvolvimento do capitalismo e com a afirmação de uma sociedade complexa,
fortemente articulada em classes, vem impondo-se a idéia de multidão como massa. Nesse caso, a
multidão é descrita como um conjunto massificado, confuso e indistinto, todavia capaz de força de
choque e/ou resistência.” NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre o Império...p. 144
341
“A afirmação da multiplicidade como dispositivo de compreensão do modo de composição dos
corpos e das mentes permite refundar o pensamento político, estabelecendo-se um novo sujeito
político. As multiplicidades são aptas a formar corpos e mentes, do mesmo modo que podem
constituir sujeitos políticos, multidões. A filosofia spinozana não faz coro com as inúmeras
vertentes do pensamento político que entendem que só a unidade é governável. O múltiplo não se
considera algo que carrega em si uma certa negatividade, um sinal de desordem ou desarmonia.
Trata-se, na verdade, daquilo que se encontra na origem da composição de todas as coisas.”
GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência...pp. 248-249.
156

3.2
Imperium: a potência da multidão

À constituição do sujeito coletivo multidão corresponde a constituição


de uma potência coletiva. Como indivíduo composto a multidão se esforça por
perseverar na existência, e seu conatus coletivo organiza-se em poder político:
imperium. Espinosa afirma uma concepção intrinsecamente democrática do
campo político ao conservar a potência da multidão como causa imanente do
poder político. É a potência da multidão que determina a forma e o exercício do
poder político. Nosso filósofo coloca nas mãos da multidão a potência capaz de
organizar-se como democracia absoluta ou como a mais arbitrária das tiranias.

3.2.1

A democracia intrínseca ao campo político

Espinosa é o pensador da imanência absoluta, toda sua obra é marcada


pela recusa da transcendência, seja na relação ontológica entre a Natureza e suas
expressões singulares, seja na própria gênese do campo social, como vimos. Na
constituição do político não é diferente. A concepção espinosana acerca do poder
político mantém-se fiel à afirmação da imanência absoluta, rechaçando qualquer
recurso de distanciamento entre o sujeito político multidão e o imperium.
Neste sentido, é a potência da multidão a causa imanente do poder
político. Sejam quais forem as circunstâncias, seja qual for a forma de seu
exercício, o poder político é expressão da potência da multidão e dela não se
dissocia342. A democracia, em Espinosa, afirma-se na própria concepção acerca da
gênese do poder político. Se os indivíduos constituintes da multidão não se ligam
entre si por nenhum laço contratual ou recurso a valores transcendentes, também a
relação entre estes e o poder político, entre governantes e governados, é uma
relação de total imanência.

342
“Soberania e poder são chapados sobre a multidão e sobre os processos de constituição do
Estado a partir dos indivíduos: soberania e poder vão até onde vai a potência da multitudo
organizada. Este limite é orgânico, participa da natureza ontológica da dinâmica constitutiva.”
NEGRI, Antonio, verbete “SPINOZA, Baruch –Tratado Político” em Dicionário de obras
políticas...pp.1136/1137.
157

Antes da caracterização do exercício do poder político como tirânico


ou democrático, anterior a qualquer análise das formas de organização do poder
em monárquico, aristocrático ou democrático, em Espinosa, a democracia é
intrínseca à própria constituição do imperium, como expressão imanente da
potência da multidão. E, assim, resta sempre nas mãos da multidão a capacidade
de organizar-se na liberdade de um regime democrático, ou aprisionar-se na
servidão de qualquer tirania.
Espinosa afirma, na organização do campo político uma “democracia
originária”343. Todos os regimes políticos já experimentados, segundo nosso
filósofo, são modificações da mais natural das formas de governo que é a
democracia344. Na origem de todas as formas de organização política está a
democracia345. Assim como inscrita na causa imanente do imperium está a
potência da multidão, na constituição de qualquer organização política está o
conatus coletivo, está o desejo pela constituição do comum, está, portanto, uma
democracia originária.
O poder político em Espinosa não organiza-se como materialização do
medo recíproco entre indivíduos que aceitam qualquer forma de servidão num
cálculo racional pela sobrevivência. O imperium para nosso filósofo tem as cores
da alegria, da busca pela experiência de afetos comuns, da tentativa de
constituição da liberdade. Neste sentido, a afirmação espinosana da relação de
imanência entre potência da multidão e poder político permite a compreensão
mais positiva, liberatória e produtiva do conceito de poder constituinte.
Tomando a multidão como multiplicidade de singularidades, no
universo rico dos encontros, a potência coletiva é esforço pelo comum, potência
sempre positiva de produtividade democrática. Instaurar o político na imanência é,

343
O termo “democracia originária” é citado por LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté –
Spinoza critique de HOBBES. PUF, Paris, 1998, p. 283 : « Dans la démocratie originaire
faiblement institutionalisée...”. E ainda, em RIBEIRO, Luis Antônio Cunha. A idéia de
democracia em Spinoza. Tese de Doutorado, IFCS-UFRJ, Rio de janeiro, 2005, p. 141: “ Esse
primeiro Estado, que nasce como uma multitudo organizada a partir de um consenso em torno da
instituição de regras de comportamento, pode ser chamado de ‘democracia originária’. O Estado
nasceria democrático e qualquer outro regime de governo se originaria da democracia.”
344
Neste sentido, diz Spinoza: “É por esta razão, creio, que os Estados democráticos se
transformam em aristocracias, e estas últimas em monarquias. Estou persuadido, com efeito, de
que a maioria dos Estados aristocráticos começou por ser democracia...” Tratado Político, cap.
VIII, § 12.
345
“A democracia, portanto, se encontra na origem da fundação do estado civil. Tanto a
aristocracia quanto a monarquia surgem a partir de eventos que conduzem os cidadãos de uma
democracia a transferir seus direitos.” GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência...
p. 278
158

necessariamente, afirmar o poder constituinte do político como expressão do


esforço pela experiência da alegria e liberdade comuns, esforço que é a própria
essência do conatus da multidão. Em Espinosa é possível identificar potência da
multidão e poder constituinte e, ao mesmo tempo, remeter ambos os termos à
multiplicidade da democracia e à positividade da busca pela experiência do
comum.
A contrario sensu, se a democracia é a afirmação da imanência entre
potência da multidão e poder político, todas as formas de exercício tirânico do
imperium fundamentam-se na construção imaginária de discursos da
transcendência entre poder constituinte e poder constituído, e na usurpação do
exercício deste último, voltada para interesses particulares, e não para os
interesses comuns da multidão. Neste cenário, faz sentido a afirmação espinosana,
que já citamos no capítulo precedente, de que o pior inimigo de todo Estado é o
inimigo interno.
O maior perigo para qualquer Estado não são as guerras ou invasões
externas, mas as ambições tirânicas daqueles que podem, eventualmente, usurpar
o exercício do poder político para fins particulares. Sendo a democracia em
Espinosa originária, é na sua deturpação pelos discursos de transcendência entre o
poder político e a multidão que reside o perigo de tirania.
Guiados pelo desejo de governar, os homens se armam em intrigas,
tramam traições e golpes, sustentam discursos supersticiosos para arrebanharem
seguidores, e visam, a todo tempo, alcançar o exercício do poder político, para
desvirtuá-lo em interesses particulares. O mesmo conatus individual que
determina a constituição do campo político pode engendrar sua degradação em
tirania, se ilimitada a ambição de seus constituintes. Espinosa afirma
expressamente no TP, cap.VI: “É certo, (...), que os perigos que ameaçam a cidade
têm por causa cidadãos mais que os inimigos do exterior, pois bons cidadãos são
raros.”
Assim, a afirmação da democracia intrínseca ao político é, igualmente,
a afirmação de que é nas mãos da própria multidão que reside também sua
principal ameaça. Em nosso último capítulo analisaremos em mais detalhes esta
paradoxal afirmação da tirania, cuja gênese está no próprio conatus da mesma
multidão que ela aprisiona na servidão.
159

Já analisamos em nosso capítulo 2 o discurso da transcendência


fundado na ideia de soberania. O sistema de medo instaurado pela imaginação da
soberania é capaz de sustentar uma forma tirânica de exercício do poder político, e
a deturpação em servidão da democracia intrínseca ao político. A distância e
oposição imaginárias entre governantes e governados, a afirmação dos arcana
imperii, mistérios de conhecimento exclusivo do ou dos soberanos, a transposição
para o campo político da transcendência teológica, são ferramentas da servidão
que já enunciamos antes.
Vale aqui destacar que o pensamento político do século XVII, de onde
nos escreve Espinosa, é o cenário da emergência da figura da multidão e dos
movimentos de massa como problemas a serem prevenidos, contidos e regulados
pela organização do poder político346. O campo da emergência do Estado
moderno traz consigo a ameaça de violentas revoluções e a insurgência deste
personagem, deste sujeito coletivo que terrere, nisi paveant – aterroriza quando
não teme.347 Diferente da anomalia democrática espinosana, o pensamento
político moderno hegemônico, movido pelo medo da multidão e pelo desejo de
regulação, afirma a transcendência do poder político para limitar e circunscrever o
348
poder constituinte nas mais variadas formas de amarras do poder constituído .
Reduzir a riqueza da multiplicidade à imaginação da uniformidade,
conduzir os conflitos internos ao silêncio da unidade, fazer do desejo de liberdade
desejo de regulação, reduzir a democracia à qualquer concepção do político capaz
de ordenar, limitar e aprisionar a potência da multidão nas rédeas do poder
constituído, eis as ambições dos principais autores do pensamento político
moderno. A partir do século XVII, o pensamento político hegemônico, nos seus

346
“Spinoza s’inscrit pleinement dans le contexte d’une période où les transformations politiques,
la formation de l’État moderne absolutiste, au milieu des troubles et des violences
révolutionnaires, ont fait émerger comme tel le problème des mouvements de masses, donc de leur
contrôle, de leur utilisation ou de leur répression préventive. » BALIBAR, Étienne. La crainte des
masses, ed. Galilée, Paris, 1997, p. 59.
347
A expressão terrere, nisi paveant remonta ao jurista e historiador romano do início do século II,
Tacito, em seu Anais I, 29. Tal expressão é retomada por Spinoza, com alguma variação, em E IV,
54 : “O vulgo, se não tem medo, é algo a ser temido.” E ainda no Tratado Político cap. 7, § 27:
“...que (a plebe) é temível se não teme...”. Sobre o tema remetemos o leitor às análises de
BALIBAR, Étienne. La crainte des masses, ed. Galilée, Paris, 1997, pp. 84-85.
348
“A filosofia política moderna não nasce da administração, mas do medo. Sua racionalidade só é
instrumento de ordenação se também for instrumento de repressão. A angústia é a causa e a
repressão, o efeito da racionalidade instrumental. O moderno é, assim, a negação de toda
possibilidade de que a multidão possa se exprimir como subjetividade.” NEGRI, Antonio. O poder
constituinte... p.448
160

discursos da transcendência, nos seus discursos ex parte principis349, vai


engendrar outras formas de limitação do poder constituinte, ainda mais
sofisticadas que o já analisado discurso do medo da soberania350.
Ainda sobre o cenário do século XVII, vale aqui um breve retorno ao
já analisado pensamento hobbesiano, apenas para ilustrar algumas características
deste esforço do discurso da transcendência pela contenção da potência da
multidão. A multidão está presente no Leviatã nas referências ao estado de
natureza351. Para Hobbes, a multidão é a personagem da desordem, da guerra civil,
do ingovernável352. O filósofo inglês abomina a multidão e, mesmo na gênese do
político, nega sua potência constituinte. Em Hobbes não é a multidão como sujeito
coletivo que institui o campo político, a sociedade hobbesiana é pactuada pelo
somatório de indivíduos atomizados353. São indivíduos solitários e movidos pelo
medo que acordam a transferência de seus direitos naturais a um soberano
comum. A multidão em Hobbes é impotente, incapaz até mesmo de organizar-se
como sujeito político. O individualismo hobbesiano é a negação do poder
constituinte da multidão.
Mas, não é só na gênese do político que Hobbes destitui a multidão de
sua potência constituinte. Uma vez instituído o Leviatã, este é um poder
transcendente que não participa dos, nem se limita pelos, termos do contrato
social. Aqui se afirma o discurso da soberania, cuja origem no arquétipo teológico
e no medo, como já analisamos, ganha os argumentos do contratualismo. A
soberania afirma-se, então, como signo da unidade e da uniformidade de uma

349
“Considerada a relação política como uma relação específica entre dois sujeitos, dos quais um
tem o direito de comandar e o outro o dever de obedecer, o problema do Estado pode ser tratado
prevalentemente do ponto de vista do governante ou do ponto de vista do governado: ex parte
principis ou ex parte populi.” BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade – para uma teoria
geral da política, ed. Paz e terra. P. 63.
350
Nossa análise, a seguir, acerca do conceito de soberania e dos discursos constitucionalistas
como instrumentos de contenção do poder constituinte da multidão segue principalmente as
formulações de Antonio NEGRI, em sua obra O poder constituinte – ensaio sobre as alternativas
da modernidade, DP&A, Rio de janeiro, 2002
351
HOBBES, Thomas. “Leviatã” em Os pensadores, ed. Nova cultural, São Paulo, 2000, cap.
XVII e XVIII.
352
“HOBBES é apenas um dos mais conhecidos representantes de uma extensa gama de autores
que enxergam na multidão o signo da desordem e do caos.” GUIMARAENS, Francisco de.
Cartografia da imanência... p. 245.
353
“...la multitude qui fonde le contrat n’est pas chez lui ( HOBBES ) le concept de la masse, c’est
le concept d’un peuple toujours déjà décomposé, reduit par avance ( préventivement ) à la somme
de ses atomes constituants ( les hommes de l’État de Nature ), et susceptibles d’entrer un par un,
par le contrat, dans le nouveau rapport institutionnel de la société civile. » BALIBAR, Étienne. La
crainte des masses ... p. 74
161

multiplicidade de indivíduos que passam a igualar-se como súditos de um poder


354
político transcendente . A soberania, além de terreno do medo e da
transcendência, é também a redução e regulação da multidão aos limites de uma
ordem que a aprisiona nas amarras da unidade, como nos conceitos de povo e
nação já analisados355.
Assim, a soberania é a negação da potência constituinte da multidão
pela construção imaginativa da transcendência do poder político em relação ao
campo social. A multidão é alijada do exercício do imperium pela negação das
condições materiais de seu exercício. Como afirma Espinosa, o poder político é
sempre expressão da potência da multidão, porém, a transcendência instaurada
pelo discurso da soberania, e pelo sistema de medo que lhe acompanha, separa a
multidão do que ela pode, é a contenção e regulação da liberdade, sempre positiva
e criativa da multidão, nas amarras do poder constituído356.
Não obstante a eficiência do discurso da soberania em conter e ordenar
a potência constituinte da multidão, no século XVIII começam as elaborações
teóricas e aplicações práticas de uma nova forma de discurso da transcendência,
uma nova forma de construção de limites ao poder constituinte: o
constitucionalismo surge como teoria e prática normativa de contenção da
democracia. O medo e o esforço por regulação da potência democrática da
multidão ganha seus contornos mais sofisticados na ideia de restrição subjetiva,
temporal, espacial e teleológica do poder constituinte nos institutos jurídicos e nas
práticas políticas, previamente delimitados, do constitucionalismo357.
Assim, a ideia de revolução é abominada em prol de ideais de
representação política e jogos parlamentares, a continuidade do movimento

354
“Existe, portanto, no âmago do conceito de soberania uma tendência à superação da dinâmica
social fundada na experiência da multiplicidade, visando à construção de uma unidade que supere
os dissensos inerentes a qualquer espaço social plural. Portanto o conceito de soberania se orienta
para a construção da unidade...” GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência...p. 253
355
Sobre as diferenças entre o conceito de multidão espinosano e os conceitos de nação e povo tal
como enunciados pelo pensamento político hegemônico remetemos o leitor ao nosso item anterior.
356
“Quando o poder constituinte desencadeia o processo constituinte, toda determinação é liberada
e permanece livre. A soberania, ao contrário, apresenta-se como fixação do poder constituinte,
como termo deste, como esgotamento da liberdade de que ele é portador...” NEGRI, Antonio. O
poder constituinte...p.37
357
“E, no entanto, a ciência jurídica nunca se exercitou tanto naquele jogo de afirmar e negar, de
tomar algo como absoluto e depois estabelecer-lhe limites – que é tão próprio do seu trabalho
lógico – como o fez a propósito do poder constituinte.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte...
pg.9
162

constituinte é interrompida e restrita a momentos de excepcionalidade, a


produtividade aberta da democracia é contida, e sua finalidade circunscrita à
elaboração de normas jurídicas358. O constitucionalismo é o movimento de
limitação, contenção e regulação da potência constituinte da democracia da
359
multidão nas rédeas políticas e jurídicas da instituição de um poder constituído .
A ideia de um documento político-jurídico, a Constituição, surge, então como
termidor da revolução360.
O constitucionalismo, em qualquer de suas vertentes, reduz o poder
constituinte a uma potência excepcional que, surgindo ex nihilo, tem como únicas
funções a elaboração de uma ordem jurídica, e a organização de um poder
político, que lhe aprisionam nos termos de um poder constituído361. Uma vez
estabelecido o poder constituído, a potência constituinte da multidão adormece em
suas amarras, dissolve-se nos limites da participação política estabelecida por suas
normas e desaparece, condenada ao exílio até outro eventual e indesejado período
de excepcionalidade.
Estabelecer os termos (e limites) da participação política, organizar (e
conter) a multiplicidade de relações constituintes da multidão, instituir um poder
ou poderes constituídos (e transcendentes), capazes de governar a produtividade
aberta da democracia: o constitucionalismo é a teoria do poder limitado e da
limitação da potência constituinte. Enquanto a democracia é a radicalidade da

358
“Deste modo, o poder constituinte é absorvido pela máquina da representação. O caráter
ilimitado da expressão constituinte é limitado na sua gênese, porquanto submetido às regras e à
extensão relativa do sufrágio; no seu funcionamento, porquanto submetido as regras parlamentares
(...) em suma, a idéia de poder constituinte é juridicamente pré-formada quando de pretendia que
ela formasse o direito, é absorvida pela ideia de representação política quando se almejava que ela
legitimasse tal conceito” NEGRI, Antonio. O poder constituinte... pg.11
359
“O constitucionalismo é transcendência, mas é sobretudo o policiamento que a transcendência
exercita sobre a totalidade dos corpos para impor-lhes a ordem e a hierarquia. O
constitucionalismo é o aparato que nega o poder constituinte e a democracia.” NEGRI, Antonio. O
poder constituinte... p. 444
360
A identificação entre poder constituinte e revolução, assim como o termo “termidor” para a sua
limitação são de Antonio NEGRI, neste sentido: ““O que significa então poder constituinte, se a
sua essência não pode ser reduzida ao poder constituído, mas deve ser compreendida em sua
produtividade originária? Antes de mais nada, significa estabelecer uma relação contínua entre
poder constituinte e revolução, uma relação íntima e circular, de modo que, onde o poder
constituinte estiver esteja também a revolução.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte...pg.39

361
“O poder constituinte se apresenta, portanto, como poder de criar uma nova ordem jurídica,
segundo a concepção constitucionalista. Trata-se de poder cujo telos é ordenar, regular, constituir
ordem normativa de cunho jurídico. Com esta consideração se encontra abortada e abandonada
toda a radicalidade do princípio constituinte.” GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte
na perspectiva de Antonio NEGRI... p. 91
163

imanência absoluta entre potência da multidão e poder político, a Constituição é a


ordem normativa de regulação e contenção do poder constituinte da multidão
pelos limites do poder constituído.
Antonio Negri é o autor que melhor desenvolve esta análise do poder
constituinte como potência que pode se identificar ao conceito de democracia, e
de potência da multidão em Espinosa. Nossa análise crítica do constitucionalismo
como teoria e prática de contenção da democracia tem seus fundamentos na obra
do autor italiano. Com explícita inspiração espinosana, são de Antonio Negri os
principais argumentos que desenvolvemos até aqui no que concerne a
identificação da potência da multidão como poder constituinte e sua limitação
pelo discurso constitucionalista.
A título exemplificativo da relação entre constitucionalismo e
limitação da democracia, sem nenhuma pretensão de esgotarmos o assunto,
analisaremos brevemente o caso norte-americano no século XVIII. Antonio Negri
identifica na Constituição americana de 1787 o encerramento da democracia
revolucionária, e o primeiro exemplo da materialização do pensamento
constitucionalista de contenção do poder constituinte.
Apesar da atividade produtiva constituinte da democracia permear a
história das ideias políticas, pelo menos, desde a Renascença, Negri identifica na
Revolução Americana o próprio nascimento do termo poder constituinte362. O
autor italiano descreve os anos revolucionários que culminaram com a
independência americana como o momento de maior expressividade do poder
constituinte na história americana.
Na resistência à opressão inglesa, na disseminação dos ideais
democráticos, no apreço pelos valores da liberdade republicana, na participação
popular, na organização das milícias, enfim, na luta pela independência
americana, o poder constituinte democrático, expansivo e ilimitado, encarnou-se

362
“É possível que o termo “poder constituinte” tenha sido inventado pelos revolucionários
americanos, como já observamos. O certo é que, pela primeira vez na história moderna, estamos
diante de um processo tão complexo e massificado quanto concentrado em tempo breve; tão
potente, rápido e eficaz quanto inconcluso” e ainda: “Com isto, remontamos às origens históricas
do conceito de poder constituinte. O termo foi provavelmente introduzido pela primeira vez no
curso da Revolução Americana, mas está presente no desenvolvimento do pensamento político
desde os tempos da Renascença, estendendo-se até o século XVIII, como noção ontológica da
capacidade formadora do desenvolvimento histórico.” NEGRI, Antonio. Ob.cit.pgs. 219 e 39
164

na revolução363. A Revolução Americana não foi apenas um processo de


liberação do julgo colonial inglês, mas também a ambição de criação de um novo
Estado e uma nova forma de fazer política364.
Neste sentido, Antonio Negri destaca que não é a Constituição
Americana de 1787 que será o documento escrito a encarnar esse espírito
democrático e constituinte da Revolução Americana, e sim a Declaração de
Independência redigida por Thomas Jefferson anos antes. É a Declaração de
Independência que, num exercício histórico de enunciação de direitos, de
proclamação da origem democrática do poder político, e de defesa do direito de
resistência, vai descrever em texto a extensão ilimitada e produtiva do poder
constituinte365.
A Declaração de Independência teve o importante papel de descrever
e enunciar o caráter democrático da Revolução e de seus objetivos. A
Constituição Americana, como Negri demonstra, terá outro destino. Neste
cenário, Negri afirma que a Constituição Americana significou o aprisionamento
do poder constituinte. Ao contrário da forte tendência democrática das afirmações

363
“Estamos instalados bem no centro do processo constituinte, do processo revolucionário
democrático através do qual a liberdade se configura como fronteira. ‘A revolução democrática
teve dois anos de vida.... não após a Declaração de Independência, mas antes...”, e ainda : “ A
passagem da resistência à revolução, do associativismo à constituição dos corpos políticos, dos
comitia à representação continental, das militia ao exército, tudo isso se entrecruza num clima
político em que as prescrições ideológicas e as pulsões materiais produzem rapidamente resultados
irreversíveis e conduzem irresistivelmente a determinações radicalmente inovadoras. O espírito
constituinte é acima de tudo radical. Tenham sido religiosas ou sociais as suas origens, a revolução
é o motor do poder constituinte.” NEGRI, Antonio. Ob.cit.p. 218/219.
364
O caráter constituinte da Revolução Americana, e sua extensão historicamente inovadora
foram também reconhecidos pelas análises históricas de Gordon Wood. O autor americano
descreve as especificidades do processo revolucionário americano destacando seu objetivo, não
apenas como reação à opressão inglesa, mas, sobretudo, como esforço produtivo, constituinte.
Assim, diz Wood:
“By 1776 there could be no longer any doubt in the Americans’ minds that they were in the very
midst of a revolution, the most complete, unexpected, and remarkable, of any in the history of
nations. That it was truly a revolution was attested by the very language they used to express their
estrangement from the old order and their hope for the new. For their Revolution had become
something more than simply liberation from British rule. (…) What had begun in the 1760’s as
outbursts of hostility against specific actions of Parliament and particular Crown officials had
within a decade eSCALAted into a genuine revolutionary movement, sustained by a powerful,
even millennial, creed by which Americans saw themselves no longer merely contending for the
protection of particular liberties but on the verge of ushering in a new era of freedom and bliss.”
Wood, Gordon. The creation of the American republic 1776-1787, Ed. W.W.Norton &Company
Inc., New York, 1972, p. 43/44
365
“Quando a redação da Declaração de Independência for confiada a Jefferson, sabemos o que
ele fará: a vigorosa e maciça recondução de toda legitimidade governamental à soberania popular,
ao consentimento democrático direto, entendido como expressão de direitos anteriores a qualquer
constituição. Como expressão permanente de poder constituinte.” NEGRI, Antonio. O poder
constituinte... pg.221/222.
165

da Declaração de Independência, a Carta Constitucional de 1787 caracteriza-se


pela tentativa de controle e limitação da expressão constituinte, o confinamento da
democracia, o aprisionamento do poder constituinte nas amarras da representação
e da organização institucional366. A experiência revolucionária norte-americana,
marcada pela expressão democrática absoluta do poder constituinte, encontrava
seu fim na Constituição, em 1787 a potência constituinte norte-americana
encontrou os grilhões do poder constituído367.
Num sentido próximo à analise negriana acerca da Constituição norte-
americana de 1787 podemos citar Stephen Griffin, estudioso do
constitucionalismo, como autor contemporâneo que também reconhece que, nos
debates que antecederam a elaboração da Constituição norte-americana de 1787,
já se apresentavam como necessidades a contenção e o controle das tendências
democráticas nascentes na América. Apesar de reconhecer o avanço democrático
irreversível nos debates políticos norte-americanos pós-independência, Griffin
também reconhece que, neste cenário, a Carta Constitucional de 1787 assume o
papel de controle e contenção deste processo de democratização368. Diz o autor:

366
“É claro que, se o pessimismo diz respeito à democracia, o otimismo refere-se à Constituição da
República, ou seja, ao encerramento do espírito democrático e à domesticação do poder
cosntituinte. (...)
Aqui os paradigmas da ciência política sofrem uma transformação completa. Estamos diante de
uma espetacular reforma do conceito de poder constituinte: ele é absorvido e assimilado pela
constituição, é transformado num elemento da maquina constitucional. Ele se torna máquina
constitucional.” E ainda: “ Por conseguinte, o poder constituinte não só é definido pela
Constituição, mas é reduzido a um elemento formal do governo.” NEGRI, Antonio. Ob.cit.pgs.
233/234 e 238
367
Neste sentido, cumpre ressaltar que o aprisionamento do poder constituinte nas amarras
jurídicas constitucionais é movimento deliberado e consciente dos “pais fundadores” da América.
A preocupação de conter a revolução e a democracia é nítida nos escritos federalistas da época.
Sob o argumento de conter os riscos das facções que poderiam ameaçar a paz, Madison, no artigo
nº 10 de O federalista, enuncia da seguinte forma sua opção deliberada pelo abandono da
democracia pura, em prol de um sistema republicano representativo de governo: “Encarada a
questão sob este aspecto, pode-se concluir que uma democracia pura – que defino como uma
sociedade congregando um pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo
pessoalmente – tem de admitir que não há cura para os males da facção. Uma paixão ou interesse
comum dominará, em quase todos os casos, a maioria do conjunto; da própria forma de governo
resultarão entendimentos e acordos; e nada haverá para controlar a propensão para sacrificar o
partido mais fraco ou um indivíduo servil. A consequência é que tais democracias tem sido sempre
palco de distúrbios e discussões, revelaram-se incapazes de garantir a segurança pessoal ou os
direitos de propriedade, e em geral suas vidas tem sido tão curtas quanto violentas suas mortes. (...)
Uma república – que defino como um governo no qual o esquema de representação tem lugar –
abre uma perspectiva diferente e promete a cura que estamos buscando. Examinaremos os pontos
em que ela difere da democracia pura e compreenderemos tanto a natureza da cura como as
vantagens que devem resultar da União.” Hamilton, Alexander. Jay, John e Madison, James. O
federalista, Ed. Universidade de Brasília, Brasília 1984, p. 151
368
Sobre as possíveis aproximações e antagonismos da obra de Espinosa com Os federalistas,
Madison, Hamilton e Jay, e a proposta de repúblcia democrática de nosso filósofo em seu TP
166

It is important, therefore, to consider the state of politics when the


Constitution was adopted. At the time, Americans politics was in transition
from as older hierarquical model of politics to a more democratic model.
The Framers of the Constitution aspired to the older model while
recognizing the new democratic tendencies accelerated by the American
Revolution. The Constitution was not designed to halt this process but to
control it.369 (grifo nosso)

Assim, a primeira Constituição escrita de um estado moderno surge


com a função de limitar e controlar o processo democrático, fundando um novo
ordenamento jurídico. O poder constituinte, que antes se expressara como
revolução, agora serviria para legitimar a organização do poder constituído, e
justificar a supremacia da Constituição face às demais leis. Neste ponto, Griffin
encontra a grande inovação do constitucionalismo americano. Pela primeira vez
na história a organização do poder político é descrita num documento escrito, uma
lei, que, ao mesmo tempo, é lei fundamental, superior a todas as demais leis370. E
a teoria que vai justificar a supremacia da constituição é a teoria do poder
constituinte

A inovação norte-americana nesse ponto não é apenas na elaboração


da primeira constituição escrita da história, mas também na criação de um
“procedimento”, um “método” constituinte que iria justificar a própria supremacia
da Constituição. Sobre o assunto, cabe voltarmos às observações do autor
americano:

The adoption of the 1787 Constitution by the Federal Convention and its
subsequent ratification by conventions in the thirteen original states
exemplified this new method of constitution making. It is important to
emphasize that the 1787 Constitution had no modern precedent. No country
had ever adopted a single-document constitution that had the status of
supreme law.371 (grifo nosso)

como antangônica a construção de uma república oligárquiaca nos EUA remetemos o leitor a:
GUIMARAENS, Francisco de Dois modelos de república: Spinoza contra os federalistas, mimeo.
369
GRIFFIN, Stephen M. American constitucionalism – from theory to politics, Ed. Princeton
University Press, Princeton, 1996, p. 15.
370
A teoria do poder constituinte é elaborada para justificar este status especial da
Constituição no ápice do ordenamento jurídico. Assim diz o autor americano: “By contrast, the
American Idea of a constitution, developed during the revolutionary period, was that a single
law that had a special status as a paramount or fundamental law. (...) The crucial move was the
development of a theory that would justify the supreme status of a constitution over other
laws.” GRIFFIN, Stephen M. Ob.cit.p.12
371
GRIFFIN, Stephen M. Ob.cit.p. 12
167

O poder constituinte, limitado e organizado nas rédeas da


representação, assume no constitucionalismo americano o papel de legitimador do
sistema. É esta origem na soberania popular, encarnada no “procedimento”
constituinte, que justifica a supremacia da Constituição frente às demais leis. Ao
mesmo tempo em que legitima a supremacia da Constituição, o poder constituinte
tem sua expressão resumida e isolada ao “procedimento” de elaboração e
ratificação da Lei Fundamental.

Assim, esvaziado de seu caráter de produtividade democrática,


limitado e aprisionado pelas estruturas institucionais, o poder constituinte perde
suas características revolucionárias. Nas entrelinhas das normas jurídicas, na
organização do poder constituído, o conceito de poder constituinte é usado para a
legitimação de sua própria prisão. Griffin, assim como Negri, enxerga o
desvirtuamento do conceito de poder constituinte de sua origem democrática, e
seu uso pelos founding fathers para a justificativa da supremacia da Constituição
no ordenamento jurídico.

O constitucionalismo, desde sua primeira experiência na Constituição


norte-americana de 1787, exprime-se como aprisionamento da potência da
multidão, cerceamento da expressão democrática a uma “forma” de manifestação,
a um “método”, a um “procedimento” inspirado na representação, temporal e
espacialmente limitado, restrito à excepcionalidade e à função de produção
normativa. De potência produtiva democrática e radical o poder constituinte é
reduzido a elemento legitimador das mesmas normas jurídicas que o limitam,
ordenam e regulam.

Espinosa afirma a concepção mais democrática do imperium, ao


afirmar a imanência absoluta entre potência da multidão e poder político. Se é no
século XVII que a multidão ganha espaço de protagonista nas preocupações do
pensamento político, é certamente com Espinosa que ela encontra sua concepção
mais radical, positiva e produtiva. Aterrorizados, num esforço de contenção e
regulação deste poder constituinte, intrinsecamente democrático, os discursos da
transcendência afirmam-se em construções teóricas e práticas de soberania e
constitucionalização. Ávidas por limitar sua multiplicidade, uniformizar suas
singularidades, aprisionar sua produtividade, as formas encerradas e previsíveis
168

do poder constituído laçam suas amarras imaginativas, passionais e jurídicas sobre


a radicalidade aberta do poder constituinte.

3.2.2

Experiência política e o agudíssimo Maquiavel

Chegando à discussão da potência da multidão como poder


constituinte, e sua expressão como imperium, chegamos ao cerne do político e,
para Espinosa, o campo político não é campo para divagações teóricas ou análises
filosóficas abstratas. Para nosso filósofo, a política é assunto próprio daqueles que
a conhecem na prática. É na experiência concreta de seus conflitos e desafios que
se constrói o conhecimento adequado acerca da política. Já no Capítulo 1,
parágrafo 2 do seu Tratado Político Espinosa destaca o papel central da
experiência como “mestra” acerca dos assuntos próprios da política:

É, no entanto, inquestionável que os políticos escreveram sobre as coisas


políticas de maneira muito mais feliz que os filósofos. Dado, com efeito,
que tiveram a experiência por mestra, não ensinaram nada que se afaste da
prática

O conhecimento acerca da política se constitui muito mais na


vivência prática de seus assuntos que nas elucubrações teóricas dos filósofos. O
elogio de Espinosa aos políticos é a afirmação da experiência como caminho
adequado para o saber político, e a prática como melhor critério de sua utilidade.
O saber adequado e útil à política é aquele construído mais pela experiência
própria dos políticos do que o resultante das abstrações teóricas dos filósofos.

No entanto, um problema que nos assalta frente a esta afirmativa


acerca do conhecimento experimental do político é que Espinosa não chega a
desenvolver uma noção clara do que constituiria a experiência na sua teoria do
conhecimento. Alguns comentadores destacam como uma lacuna no pensamento
espinosano o desenvolvimento da noção de experiência, seja porque o Tratado da
emenda do intelecto tem sua redação interrompida justamente sem a ideia clara
acerca desta questão, seja porque nosso filósofo não desenvolve uma elaboração
científica capaz de lhe dar suporte, ou, ainda, porque a escolha do filósofo pelo
169

more geométrico torna sua teoria do conhecimento avessa às vicissitudes da


experiência372.

Independente das diversas interpretações acerca do motivo desta


ausência, é inquestionável que Espinosa não chega a desenvolver com clareza o
que constitui a experiência e como, em que aspectos, esta pode ser forma de
conhecimento imaginativo ou adequado. Mas, ao mesmo tempo, nosso filósofo
lhe faz referências importantes e explícitas. No Tratado da emenda do intelecto a
experiência vaga é modus operandi do primeiro gênero de conhecimento, na
Ética, por diversas vezes, a experiência ensina, mostra, comprova, confirma373, e
tanto do TTP como no TP a experiência traz a análise política para o campo das
experiências históricas e singulares.

Um olhar sobre toda a obra do filósofo nos deixa claro que, se a noção
de experiência não encontra um desenvolvimento profundo e preciso, ela está
presente em momentos cruciais de sua teoria do conhecimento e de sua teoria
política. Porém, pior que a ausência de seu aprofundamento teórico, é que a noção
de experiência parece receber papeis contraditórios em diferentes momentos do
pensamento do autor. Por exemplo, se no Tratado da emenda do intelecto a
experiência vaga é o campo do conhecimento inadequado, das ilusões e da
imaginação; quando da análise espinosana do político a experiência ganha ares de
“mestra”, de conhecimento útil e adequado.

Na análise destas dificuldades acerca do papel da experiência no


pensamento de Espinosa - sem a pretensão de esgotarmos o tema, buscando
apenas esclarecer o que nos é essencial para a análise do pensamento político do
autor - nos filiamos aqui à interpretação de Marilena Chauí, que afirma a

372
“Os comentadores costumam apontar como uma das lacunas do pensamento espinosano a falta
de um pleno desenvolvimento da noção de experiência e afirmam que o Tratado da emenda do
intelecto se interrompe justamente ao chegar a esse tema, o filósofo tendo sido obrigado a sustar o
discurso por não ter ainda uma clara idéia dessa questão. Outros chegam a dizer que a lacuna
decorre da ausência de uma elaboração científica espinosana (uma física) capaz de esclarecer o
sentido da experiência. Outros, enfim, declaram que a escolha da geometria torna impossível ao
filósofo alcançar a dimensão da experiência real, poia a necessidade absoluta que caracteriza as
operações geométricas é avessa às peripécias da experiência, sempre lacunar, contingente, opaca.”
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pgs. 218/219
373
“Que a experiência é mais ampla que a experiência errante, basta, para confirmá-lo,
observarmos os verbos empregados por Espinosa para referir-se a ela: ensina (docet), mostra
(mostrat, ostendet), comprova (comprovat), confirma (testat), estabelece (constat).” CHAUÍ,
Marilena. Política em Espinosa, pg. 220
170

existência de duas formas da experiência em Espinosa: a experiência errante ou


vaga, e a experiência docente ou ensinante.

A primeira forma da experiência é aquela afirmada pelo autor no


Tratado da emenda do intelecto: o conhecimento vago, por ouvir dizer. Neste
primeiro registro estamos diante de uma experiência que é conhecimento
mutilado, conclusões sem premissas, ideias inadequadas. Aqui a experiência tem
um papel negativo e restritivo, não alcança o conhecimento pela gênese, é inútil
ao conhecimento do que decorre da dedução geométrica das próprias definições e
nada ensina sobre as essências das coisas374. O movimento imaginativo da
experiência errante é partir de coisas singulares e ideias mutiladas para a
imaginação de universais abstratos375.

Certamente não é nesse registro que Espinosa está operando quando


eleva a experiência à posição de “mestra” do conhecimento acerca do político.
Quando da elaboração de seus dois Tratados acerca da política a experiência
ganha outro papel, e outra produtividade do saber, diferente do caráter ilusório da
experiência vaga. A experiência docente não parte mais de singulares mutilados
para universais abstratos inadequados. No sentido inverso, no campo do saber
acerca do político é justamente em situar o objeto da reflexão nas experiências
singulares, ao ancorar o objeto do saber na singularidade de cada materialidade
histórica, é que a experiência política é ensinante ou docente.

Assim, Espinosa afirma uma outra forma de experiência, uma


dimensão positiva do saber das singularidades: uma experiência ensinante ou
docente. No campo do saber sobre a política, a experiência não contrasta com o
conhecimento adequado afirmado pela geometria mas, pelo contrário, delimita seu
objeto e confirma suas conclusões. É no parágrafo 4 do capítulo 1 de seu Tratado
Político que Espinosa elucida a relação entre experiência e geometria na análise
do político:

374
“Há, assim, uma primeira localização negativa e restritiva: não precisamos da experiência para
o conhecimento de coisas que podem ser deduzidas de suas próprias definições e a experiência
nada ensina sobre as essências dessas coisas.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg.
220/221
375
“a experiência errante busca livrar-se da singularidade das existências construindo universais
abstratos que a decepcionarão...” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...pg.221
171

Quando, por conseguinte, apliquei o ânimo à política, não pretendi


demonstrar com razões certas e indubitáveis, ou deduzir da própria
condição da natureza humana, algo que seja novo ou jamais ouvido, mas só
aquilo que mais de acordo está com a prática. E, para investigar aquilo que
respeita a esta ciência com a mesma liberdade de ânimo que é de costume
nas coisas matemáticas, procurei escrupulosamente não rir, não chorar, nem
detestar as ações humanas, mas entendê-las. Assim, não encarei os afetos
humanos, como são o amor, o ódio, a ira, a inveja, como vícios da natureza
humana, mas como propriedades que lhe pertencem, tanto como o calor, o
frio, a tempestade, o trovão e outros fenômenos do mesmo gênero
pertencem à natureza do ar, os quais, embora incômodos, são contudo
necessários e tem causas certas, mediante as quais tentamos entender a sua
natureza. E a mente regozija-se tanto com a verdadeira contemplação destes
fenômenos como com o conhecimento das coisas que são agradáveis aos
sentidos.

Ao afirmar que só pretende demonstrar “aquilo que mais esteja de


acordo com a prática” Espinosa esclarece o primeiro papel da experiência
docente: a experiência delimita o objeto da análise do filósofo, e este objeto é a
experiência política. Sem desprezar o conhecimento adequado pela geometria, a
experiência vem explicitar seu objeto. A análise do campo político não é o estudo
dos grandes clássicos, ou do que já foi escrito e construído pelos grandes filósofos
sobre o tema, é a materialidade histórica da experiência, mais especificamente da
experiência política, que circunscreve o que será objeto da análise geométrica376.

Mas um segundo papel reserva à experiência seu caráter ensinante: é a


experiência da natureza humana, sem o recurso à valores transcendente ou
princípios morais, que assegura a utilidade da geometria como método de análise
adequada do político. Ainda no capítulo 1 parágrafo 4 do TP, citado acima,
Espinosa afirma ser indispensável para a liberdade de análise própria das “coisas
matemáticas” “não rir, não chorar, não detestar as ações humanas”. É, pois,
porque está ancorada na natureza humana, nos homens tal como eles são, e não
em qualquer divagação sobre como eles deveriam ser, que a experiência garante o

376
“No §4 do capítulo 1, o filósofo delimita o espaço de sua investigação: não procura as
experiências políticas dadas ou possíveis, mas “demonstrar com razões certas e indubitáveis o que
melhor concorda com a prática” e deduzir essa conveniência “da condição da natureza humana”.
Em outras palavras, sua investigação busca aquilo que faz de uma experiência humana uma
experiência política. Dessa maneira, o primeiro sentido do termo experiência configura-se de
modo determinado: a obra irá ocupar-se com a experiência enquanto experiência política.”
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg.223
172

campo de incidência e a adequação do conhecimento geométrico para a análise do


campo político377.

Espinosa descarta qualquer pretensão de análise do político que


preceitue o recurso a ensinamentos da razão ou a uma sabedoria exclusiva
daqueles que a exerçam, para demonstrar que a natureza humana, com suas
paixões e imaginação é a mesma em todos os lugares e, inclusive, no campo
conflitivo da experiência política. Neste sentido:

Finalmente, uma vez que todos os homens, sejam bárbaros ou cultos, onde
quer que se juntem formam costumes e um estado civil, as causas e
fundamentos naturais do estado não devem pedir-se aos ensinamentos da
razão mas deduzir-se da natureza ou condição comum dos homens, coisa que
me proponho fazer no capítulo seguinte TP, Cap. 1, parágrafo 7

Assim, a experiência política é experiência docente pois delimita o


campo de conhecimento do político, ao mesmo tempo que universaliza as
condições de seu saber na natureza humana. Para nosso filósofo a experiência
política é objeto do conhecimento adequado pela geometria, ao mesmo tempo em
que testemunha que este só pode decorrer do conhecimento da “natureza comum
dos homens”, e nunca da pretensão teórica dos ensinamentos da razão. Se
Espinosa afirma não pretender demonstrar nada que seja inédito à experiência é
porque a novidade de seu discurso não está em formulações teóricas acerca do que
a política deve ser, mas sim na análise pelo método geométrico da política tal
como ela é, considerando a experiência como “mestra”, e a natureza humana
como universal e necessária378.

377
“Porém, o texto prossegue com uma nova delimitação do campo a ser investigado, pois
Espinosa, ao procurar aquilo que faz da experiência política uma experiência humana, encontrará
seu necessário fundamento na natureza humana: é na condição da natureza humana, escreve ele no
parágrafo 7 dessa primeiro capítulo, que devem ser encontrados as causas e os fundamentos
naturais do poder (imperii)” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg.224
378
“A primeira novidade trazida pelo objeto experiência política é a de que sua universalidade –
“em toda parte todos os homens” – invalida repartições e classificações usadas pelas tradição
clássica e cristã que distingue os homens em bárbaros e cultos, idólatras e fiéis, gentios e cristãos.
Em segundo lugar, também é excluída a suposição tradicional (greco-romana e escolástica) de que
a política tem como causa e fundamento a presença de uma alma racional no homem e,
consequentemente, fica invalidada a tentativa para compreender a experiência e as formas políticas
em sua constituição, conservação e destruição como obra da razão ou seus desatinos – “não é dos
ensinamentos da razão” que a experiência política deve ser deduzida.” CHAUÍ, Marilena. Política
em Espinosa..., pg.224
173

Nesta empreitada espinosana, de tomar a experiência política e os


conflitos e afetos humanos, que lhe são inerentes, como objeto de análise,
podemos identificar, no pensamento de nosso filósofo, uma forte influência do
pensamento de Maquiavel. De início, podemos destacar que Espinosa, no
parágrafo 3 do mesmo capítulo 1 do seu Tratado político379, utiliza, para
denominar aqueles que, de forma mais astuta ou habilidosa, já trataram dos
assuntos públicos, o mesmo adjetivo agudíssimo que reservará, no capítulo 5,
parágrafo 7 da mesma obra380, para denominar o autor florentino381. Nosso
filósofo indubitavelmente identifica na obra de Maquiavel aquele saber prático e
útil acerca do campo político, alicerçado na experiência, e não as sátiras ou
quimeras que atribui aos filósofos.

Antes de Espinosa, o pensamento maquiaveliano, acerca do campo


político, já estabelece a experiência como “mestra”. É na análise da materialidade
histórica dos eventos políticos, e na atenção aos afetos e conflitos humanos que
lhe são inerentes, que Maquiavel fundamenta suas contribuições acerca da
política382. Sem referências a grandes teóricos como Platão ou Aristóteles, como
Cícero ou os estoicos, o autor florentino evoca constantemente a antiguidade

379
“Com efeito os homens são constituídos de tal maneira que não podem viver sem algum direito
comum; porém os direitos comuns e os assuntos públicos foram instituídos e tratados por homens
agudíssimos, quer astutos, quer hábeis, e por isso é difícil acreditar que possamos conceber alguma
coisa aplicável a uma sociedade comum que a ocasião ou o acaso não tivessem já mostrado e que
homens atentos aos assuntos comuns e ciosos da sua própria segurança não tivessem visto.” TP,
cap.1, parágrafo 3.
380
“Os meios, porém, de que deve usar um príncipe que se move unicamente pelo desejo de
dominar para poder fundar e manter um estado, mostrou-os o agudíssimo MAQUIAVEL
desenvolvidamente, embora não pareça bastante claro com que fim.” TP, capítulo 5, parágrafo 7
381
“Miren a Spinoza. En el capítulo I del Tratado político, que está profundamente nutrido de
Maquiavelo, asistimos a la oposición entre los filósofos que trataron la política en el modo de la
utopía moral o de la crítica moral (la utopía es una forma velada de la ilusión moral en política), y
los políticos, instruidos por la experiencia indefinidamente repetida de la historia humana de las
ciudades. Junto a los políticos se encuentran hombres que han reflexionado sobre esta experiencia
concreta de los políticos, y trataron sobre el tema. (…) A pesar de que no se lo nombra es este
párrafo, en los que se habla de estos homine acutissimus, es fácil reconocer a Maquiavelo entre
ellos, pues cuando Spinoza lo nombra más adelante, le da el mismo adjetivo: acutíssimus”
ALTHUSSER, Louis. Política e história…, pg. 191
382
“MAQUIAVEL rejeita a tradição idealista de Platão, Aristóteles, e Santo Tomás de Aquino e
segue a trilha inaugurada pelos historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Livio.
Seu ponto de partida e de chegada é a realidade concreta. Daí a ênfase na verità effectuale – a
verdade efetiva das coisas. Esta é sua regra metodológica: ver e examinar a realidade tal como ela
é e não como se gostaria que ela fosse.” Sadek, Maria Tereza. “Nicolau MAQUIAVEL: o cidadão
sem fortuna, o intelectual de virtù” in WEFFORT, Francisco de.(org.) Os clássicos da política, 10
ed., São Paulo : Ática, 1998, pg.17
174

como fundamento de sua análise, mas não as letras, a filosofia, as artes ou o


direito da antiguidade, mas sim a prática política da antiguidade 383.

Maquiavel é o predecessor de Espinosa nesta concepção da análise do


político como análise da experiência política, na empreitada de conhecer a política
pela materialidade dos eventos históricos, e pela sabedoria que advém da prática e
dos conflitos que a constituem. Ambos os autores, Maquiavel silenciosamente e
Espinosa explicitamente, deixam de lado os debates teóricos, e as divagações
filosóficas, para assentarem o conhecimento acerca do campo político nos
conflitos e afetos humanos que lhe perpassam, na singularidade dos eventos
históricos e no saber construído pela experiência.

Aqui é interessante notar que, se a experiência política é objeto da


análise dos dois autores, ela é também determinante da construção das próprias
obras, tanto maquiaveliana quanto espinosana. Ao mesmo tempo em que analisam
a política, em sua materialidade histórica, ambos os autores, com suas obras,
intervém e manifestam-se em eventos históricos concretos de suas próprias
épocas. Tanto Maquiavel como Espinosa, ao analisarem a prática política do
passado estão a buscar intervir na experiência política de seus tempos.

Antonio Gramsci destaca que O Príncipe de Maquiavel é um manifesto


político: mais que um discurso teórico ou um tratado positivo, O Príncipe teria a
ambição de intervir na prática política, tomar a experiência não apenas como
objeto de análise teórica, mas como objeto de uma intervenção384. Um manifesto

383
“En un temps où dominaient les grandes thèmes de l’idéologie politique aristotélicienne, revue
par la tradition chrétienne et l’idéalisme des équivoques de l’humanisme, MAQUIAVEL rompt
avec toutes ces idées dominantes. Cette rupture n’est pas déclarée, mais elle est d’autant plus
profonde ; A-t-on réfléchi que dans son ouvre, où il évoque constamment l’Antiquité, ce n’est pas
l’Antiquité des lettres, de la philosophie et des arts, de la medecine et du droit, qui est en cours
chez touts les intellectuels que MAQUIAVEL invoque, mais une tout autre antiquité, dont
personne ne parle, l’antiquité de la pratique politique ? A-t-on assez réfléchi que dans cette ouvre
qui parle constamment de la politique des anciens, il n’est pratiquemente jamis question des grands
théoriciens politiques de l ‘Antiquité, jamais question de Platon et d’Aristote, jamais question de
Cicéron et des stoiciens ? » ALTHUSSER, Louis. La solitude de MAQUIAVEL, disponível em
http://multitudes.samizdat.net/La-solitude-de-Machiavel, acessado em 05/09/12
384
« Je crois qu’il faut aborder MAQUIAVEL d’un autre point de vue, et suivre en cela l’intuition
de Gramsci. Gramsci a écrit que Le Prince était un Manifeste politique. Or le propre d’un
Manifeste politique si on peut le considérer dans son modele idéal est de ne pas être un pur
discours théorique, un pur traité positif. Ce n’est pas que la théorie soit absente d’un Manifeste :
s’il ne contenait des éléments positifs de savoir, il ne serait qu’une proclamation dans le vide. Mais
Manifeste politique, qui donc veut produire des effets historiques, doit s’inscrire dans un tout autre
champ que celui de la connaissance pure : il doit s’inscrire dans la conjoncture politique où il veut
agir, et s’ordonner tout entier à la pratique politique provoquée par cette conjoncture, et par le
rapport des forces qui la détermine. On dira que c’est là une recommandation tout à fait banale,
175

não traz apenas o conhecimento da experiência mas encontra-se imerso na


historicidade de seu tempo. Um manifesto, ao mesmo tempo em que analisa a
experiência política, convida o leitor a pensá-la na sua atualidade, instiga a busca
por concretizar o que a teoria apenas enuncia como saber, é a prática política que
de objeto se faz objetivo, de ponto de partida se faz rumo de chegada.

Se analisarmos toda a biografia de Maquiavel, e as circunstâncias que


o levaram a escrever suas obras, acreditamos poder estender esta natureza de
manifesto também às suas demais obras385. O autor florentino não era apenas um
estudioso, mas teve suas passagens pela própria prática política, e suas obras não
se limitam à analisar a materialidade histórica, mas buscam influenciá-la, intervir
nela: constituir um saber que não seja apenas sobre a experiência política do
passado, mas que seja também útil à experiência política do seu presente e do
futuro. Neste sentido diz o próprio Maquiavel:

Quem considere as coisas presentes e as antigas verá facilmente que são


sempre os mesmos os desejos e os humores em todas as cidades e em todos
os povos, e que eles sempre existiram. De tal modo que quem examinar
com diligência as coisas passadas facilmente preverá as futuras, em
qualquer república, prescrevendo os remédios que foram usados pelos
antigos; ou, se não encontrar remédios já usados, pensará em novos, devido
à semelhança dos acontecimentos. Mas, como essas considerações são
negligenciadas ou não entendidas por quem lê, ou, se são entendidas, não
são conhecidas por quem governa, segue-se que sempre se veem os mesmos
tumultos em todos os tempos.”386

Seguindo o caminho do sapientíssimo florentino, acreditamos


podermos identificar nos dois Tratados políticos de Espinosa a mesma natureza

mais la question se complique sérieusement quand on observe que cette inscription dans la
conjoncture politique objective, extérieure, doit aussi être représentée de l’intérieur du texte même
qui la pratique, si l’on veut inviter celui qui lit le texte du Manifeste, à se reporter lui-même à cette
conjoncture en connaissance de cause, et à mesurer exactement la place qu’occupe ce Manifeste
dans cette conjoncture. Autrement dit, pour que le Manifeste soit vraiment politique, et réaliste-
matérialiste, il faut que la théorie qu’il énonce soit non seulement énoncée par le Manifeste, mais
située par lui dans l’espace social où il intervient et où il pense. » ALTHUSSER, Louis. La
solitude de MAQUIAVEL, disponível em http://multitudes.samizdat.net/La-solitude-de-Machiavel,
acessado em 05/09/12 .
385
Excede os limites deste trabalho uma análise pormenorizada da biografia de MAQUIAVEL e
das circunstâncias e intenções da redação de cada uma de suas obras. Sobre o tema há farta
literatura dentre a qual remetemos o leitor a: Leffort, Claude. Le Travail de l’Oeuvre Machiavel,
Ed. Gallimard, 1972; Skinner, Quentin. MAQUIAVEL, Porto Alegre : L&PM, 2010 ; Sadek, Maria
Tereza. “Nicolau MAQUIAVEL: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù” in WEFFORT,
Francisco de.(org.) Os clássicos da política, 10 ed., São Paulo : Ática, 1998; NEGRI, Antonio. O
poder constituinte...
386
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, cap. 39, São Paulo:
Martins Fontes, 2007, pg.121
176

de manifesto destacada por Gramsci ao tratar de O Príncipe. As obras políticas de


nosso filósofo holandês tem a marca de seu tempo e a pretensão de intervenção
direta nas circunstâncias históricas que as circundam. A análise da experiência
política, em Espinosa, traz influências inelutáveis dos acontecimentos de sua
época, e o saber imerso na prática que elas enunciam trazem as mesmas intenções
de elucidação e intervenção em seu cenário histórico singular que as análises
maquiavelianas.

Neste sentido, o Tratado Teológico-político é escrito por nosso


filósofo em meio à urgência de afirmar a liberdade de filosofar contra as
acusações de ateísmo e heresia que ameaçavam concretamente, não só a sua vida
e reputação, mas as daqueles que com ele tivessem qualquer laço de amizade387. O
TTP, mais que uma obra teórica sobre a interpretação das escrituras, ou sobre a
relação entre a liberdade de expressão e a segurança do Estado, é um instrumento
de luta pela afirmação da liberdade. Ao redigir o TTP Espinosa não apenas toma
como objeto a liberdade de filosofar, mas redige um manifesto, afirmando a sua
necessária guarda por qualquer Estado que vise a preservação da paz e da piedade.
Basta, sobre o tema, destacarmos o subtítulo desta primeira obra política de
Espinosa:

Tratado Teológico-político - contendo algumas dissertações em que se


demonstra que a liberdade de filosofar não só é compatível com a
preservação da piedade e da paz, como, inclusive, não pode ser abolida sem
se abolir ao mesmo tempo a paz do Estado e a própria piedade

Assim, o TTP é publicado em 1670, em meio a uma Europa


conflagrada pela perseguição religiosa, num tempo em que homens eram
torturados e assassinados apenas por expressarem suas ideias. Num cenário de
censuras e radicalismos, o TTP, como uma afirmação da relação entre política e
liberdade de filosofar, é um livro que, mais que um tratado teórico, é uma arma
nos debates da época. É sintomático que em 1674 o livro venha a ser proibido

387
“Mas é preciso dizer também que Espinosa compõe o Tratado teológico-político na urgência de
circunstâncias terríveis. Se a acusação de ateísmo, particularmente, só se dirigisse a sua pessoa, ele
poderia não ter respondido, mas ela se dirigia também a seus amigos, em particular aos
republicanos, dos quais era próximo e que poderia ser enlameados e comprometidos com a
acusação. A liberdade de filosofar estava comprometida, era necessário inventar condições
políticas que a garantissem. (...) O risco da filosofia implica o da luta permanente, é seu caráter
automaticamente político e é uma lição do Tratado teológico-político.” SCALA, André.
Espinosa...pg.73/74
177

pelos Estados da Holanda, e que Espinosa seja o único autor não católico a ter o
nome colocado no Índex da inquisição, já depois de sua morte em 1690388.

O Tratado Político de Espinosa segue a mesma linha e também pode


ser considerado mais que um simples tratado teórico, um manifesto, uma obra que
além de ter a experiência política como objeto de análise, se insere na própria
materialidade histórica do cenário de sua redação, como proposta de reflexão e
intervenção nos próprios elementos históricos que determinam sua redação. Além
do que já comentamos acerca do método de análise da experiência política como
objeto, recusando as divagações meramente teóricas, o Tratado Político
espinosano traz as marcas de um evento político drástico na história holandesa
que foi a revolução orangista, que depôs e assassinou os republicanos irmãos De
Witt.

Em 1672 Espinosa assiste o povo holandês, levado pelos discursos dos


pregadores calvinistas, massacrar publicamente os irmãos De Witt, e o partido
orangista dar um golpe de estado que termina a república holandesa e instaura a
monarquia constitucional389. O Tratado Político, cujo início da redação se atribui
a 1776, traz as marcas deste revés político encarnadas na descrença de nosso autor
nas revoluções, por exemplo.

Ao mesmo tempo que o TP, como vimos, afirma a sabedoria prática


da política como objeto do conhecimento adequado sobre a política, nosso
filósofo, nos últimos capítulos de seu Tratado, se propõe a elaborar desenhos
institucionais para a monarquia e a aristocracia, claramente na pretensão de
intervir diretamente no campo político. O Tratado político que, de início, já
designa a experiência política como “mestra”, faz desta experiência docente
objeto também da ambição de intervenções positivas na materialidade histórica,

388
“Entre 1670, data da publicação do Teológico-político, e novembro de 1677, ano da publicação
dos Opera posthuma, contam-se 48 resoluções das autoridades holandesas civis e eclesiásticas
contra as obras de Espinosa, único autor não católico a ter o nome colocado no Índex, a partir de
1690.” CHAUÍ, Marilena. A Nervura do real... pg.23
389
“Aproveitando-se das derrotas holandesas na guerra contra a Inglaterra, da aliança da Holanda
com a França católica (ou papista) e da recusa da Jan de Witt em atender a inúmeros pedidos de
excomunhão e de censura, assim como a inúmeras exigências econômicas e políticas dos
gomaristas, os pregadores calvinistas açulam o povo contra os De Witt, enquanto o Partido
Orangista dá um golpe de Estado contra o Partido dos Regentes.
No dia 20 de agosto de 1672, os irmãos De Witt são massacrados pelo povo nas ruas de Amsterdã.
Espinosa escreve um cartaz: Ultimi barbarorum (“último dos bárbaros”), mas é impedido por um
amigo de colá-lo nos muros da cidade. Termina a república e tem início a monarquia
constitucional holandesa.” CHAUÍ, Marilena. Espinosa uma filosofia da liberdade... pg. 29.
178

ao propor, para o mesmo cenário em que se insere, uma nova forma de


organização.

Assim, Maquiavel e Espinosa tem em comum a escolha da


experiência política como objeto de suas análises, e, ao mesmo tempo, a pretensão
de fazerem de suas obras instrumentos de intervenção na mesma materialidade
histórica que lhes serve de cenário. Para ambos os autores é a prática política o
ponto de partida e de chegada de suas análises. Obras que se debruçam sobre a
singularidade dos eventos para a construção da análise do político, e análises que
se constituem como armas de intervenção na materialidade histórica. Maquiavel e
Espinosa escrevem manifestos imersos, desde seus objetos até as suas pretensões,
na experiência da prática política.

Mas ainda um outro aspecto aproxima os dois autores: ao esposarem


como objeto a experiência política, ambos se encontram, também, ao adotarem
uma concepção muito próxima a respeito do humano. Tanto Maquiavel como
Espinosa recusam qualquer julgamento moral ou idealização acerca dos afetos dos
homens, e elaboram uma análise do político livre de preconceitos, juízos de valor
ou afirmação de princípios transcendentes.

Maquiavel é famoso pela distinção entre uma moral que seria própria
da vida privada e os afetos e ações que são úteis à prática política. A virtú do
príncipe maquiaveliano nada tem em comum com a virtude cristã de valores
transcendentes390. A política é o campo dos conflitos humanos, dos afetos
próprios da natureza humana, tanto os nobres quanto os mais vis, pois, como diz o
próprio autor: os homens “são ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante os
perigos, ávidos de lucro.”391 O autor florentino considera os homens tal como são

390
Excede os objetivos deste trabalho tecermos análise sobre a virtú MAQUIAVELiana, assim
como sobre a fortuna, nossos objetivos se limitam a destacar algumas interseções entre o
pensamento Maquiaveliano e a obra de Espinosa. Sobre MAQUIAVEL remetemos o leitor
novamente a: Leffort, Claude. Le Travail de l’Oeuvre Machiavel, Ed. Gallimard, 1972; Skinner,
Quentin. MAQUIAVEL, Porto Alegre : L&PM, 2010 ; Sadek, Maria Tereza. “Nicolau
MAQUIAVEL: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù” in WEFFORT, Francisco de.(org.)
Os clássicos da política, 10 ed., São Paulo : Ática, 1998; NEGRI, Antonio. O poder constituinte...
391
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, cap.XVII
179

e não com qualquer juízo de valor sobre como deveriam ser. A política em
Maquiavel é o campo dos conflitos entre homens, e não entre princípios392.

Em Espinosa, já o vimos, encontramos a mesma concepção a respeito


dos afetos humanos, na análise do político. Nosso filósofo diz explicitamente
seguir a experiência dos políticos que ensina que “enquanto houver homens,
haverá vícios”393. Já destacamos que Espinosa considera os afetos humanos com a
liberdade de ânimo própria das ciências matemáticas, sem exercer sobre eles
qualquer juízo de valor transcendente.

É a compreensão de uma “natureza humana”, de características


afetivas presentes em todos os homens, que permite aos dois autores retirarem da
experiência política do passado um saber, oriundo da prática, que pode ser
aplicado no presente de seu tempo ou mesmo no futuro. No entanto, neste ponto
da análise existe uma diferença importante entre Maquiavel e Espinosa: enquanto,
já o vimos, em Espinosa podemos falar de uma “antropologia” espinosana, o
mesmo não ocorre com Maquiavel.

Maquiavel não escreve nenhuma obra parecida com a Ética


espinosana, sua análise dos afetos dos homens se dá sempre calcada em eventos
históricos concretos, singulares. O autor florentino não fala tanto em “natureza
humana” ou em “o homem”, mas muito mais utiliza o termo no plural “os
homens”, referindo-se sempre a uma coletividade, os homens considerados em
grupo, imersos em relações sociais e políticas394. Apesar de, aparentemente,
Maquiavel encontrar uma “natureza humana” baseada no homem como ser

392
« Ce qu’on réprouve chez lui ; c’est l’idée que l’histoire est une lutte et la politique rapport avec
des hommes plutôt qu’avec des principes. » Merleau-Ponty, Maurice. Note sur Machiavel,
disponível em http://www.caute.lautre.net/spip.php?article1002, acessado em 06/09/12
393
TP, Cap. 1, parágrafo 2
394
“Partiré de esta simples observación: Maquiavelo habla muy de vez en cuando del “hombre”, o
de la “naturaleza humana”: habla con mayor frecuencia, cuando habla de su deseo, de su maldad,
etc. De su gusto por la apariencia…, habla de los hombres en plural. Y este plural no es tanto la
marca de una generalización como la marca de una colectividad, con esto quiero decir, la
designación de hombres considerados en grupo dentro de sus relaciones sociales y políticas. Por
ejemplo, el sentido de esta infinidad del deseo humano. Parecería que Maquiavelo hablara de esto
como si se tratase de un atributo originario de la naturaleza humana. Pero en realidad, los ejemplos
que da son siempre ejemplos políticos sacados de situaciones políticas concretas.” ALTHUSSER,
Louis. Política e Historia...pg.230
180

desejante e nos afetos concretos da experiência humana, se existe uma


antropologia maquiaveliana ela é apenas aparente395.

Seguimos aqui a análise de Louis Althusser para afirmar que não


podemos atribuir a Maquiavel uma concepção antropológica própria, como o
fizemos para Espinosa396. Em Maquiavel a análise do humano é a análise de
comportamentos sociais e políticos, não se desprende dos exemplos retirados de
situações concretas para elaborar uma antropologia, e não tem a pretensão de fazê-
lo397.

As proximidades e distâncias entre os pensamentos de Maquiavel e de


Espinosa é tema que, por si só, renderia toda uma pesquisa de doutorado, ocuparia
toda uma tese, e, talvez, mesmo assim, não se esgotasse. Ricas são as
interpretações possíveis para as relações entre estes dois autores, e excede em
muito os limites de nosso trabalho nos aprofundarmos em tema tão generoso.
Ainda no decorrer de nossa pesquisa, citaremos uma ou outra influência
maquiaveliana no pensamento de Espinosa, assumindo, desde já, os riscos da
superficialidade que a abordagem colateral do tema nos traz. Por ora, analisadas,
ainda que brevemente, as relações entre os dois autores acerca da análise da
experiência política, nos cumpre abandonarmos o tema das relações entre
Maquiavel e Espinosa com uma observação sobre um traço em comum, que dois
comentadores atribuem aos dois autores: a solidão.

Repousa na solidão aquele cuja originalidade não encontra


interlocutores: a ausência de semelhanças fundamentais com seus predecessores, e
o anúncio de um pensamento tão entranhado nas verdades primitivas, quanto
marcado pelo ineditismo, distingue as obras tanto de Maquiavel quanto de

395
“A decir verdad, creo que podría sostenerse que la antropología maquiavélica no sirve de
fundamento a su teoría política, porque no es una verdadera antropología. Sólo tiene la apariencia
de serlo, no tiene ni su realidad ni su estatuto. Es otra cosa.” ALTHUSSER, Louis. Política e
Historia...pg.230
396
“De ningún modo tenemos en Maquiavelo el equivalente de una teoría antropológica genética
como encontramos en HOBBES o en Spinoza.” ALTHUSSER, Louis. Política e Historia...pg.229
397
“De buen grado concluiría, pues, que la ausencia de deducción genética de las formas sociales y
políticas a partir de una teoría de la naturaleza humana denuncia el carácter artificial de la
antropología maquiavélica. Digamos: de hecho, construyó como antropología justo lo que
necesitaba como contenido y como concepto (el deseo infinito) para rechazar toda antropología
ética o religiosa; no dio demasiados conceptos ni si tomó el trabajo de fundar sobre ellos su teoría
política, por la razón fundamental de que, bajo la apariencia superficial de una antropología (o de
una teoría de la naturaleza humana), describe, de hecho, comportamientos políticos y sociales.”
ALTHUSSER, Louis. Política e Historia...pg.232
181

Espinosa. Sozinho caminha aquele que afirma o que os outros reprimem e, ao


mesmo tempo, denuncia a superficialidade daquilo que os debates de seu tempo
escolhem como controvérsias. Podemos estender a Espinosa o que Louis
Althusser afirma acerca do pensamento de Maquiavel: “somos prisioneiros de
Maquiavel como de nosso esquecimento: por conta dessa estranha familiaridade,
como disse Freud, que é a familiaridade do reprimido”398

É famoso o artigo de Althusser acerca da solidão de Maquiavel399.


Um pensamento inclassificável dentro das tradições do pensamento político, diz o
comentador francês acerca do autor florentino, encerra um enigma, algo de
insólito, um pensamento que escrito há cinco séculos nos interpela como se
tratasse do hoje, e produz, na sua leitura, a familiaridade daquilo que nos toca
diretamente. Maquiavel resta sozinho, numa posição singular dentro da história do
pensamento político, pois recusa a tradição moralista cristã e o idealismo
humanista que lhe precedem, ao mesmo tempo em que não se filia aos conceitos
da filosofia política jusnaturalista que lhe sucederá400.

No entanto, a solidão dentre os demais pensadores da política, e a


paradoxal familiaridade que Maquiavel provoca em seus leitores tem um
componente importante: o objeto central do pensamento maquiaveliano não é a
análise das formas de governo, os debates acerca da monarquia absoluta ou da
forma republicana, nem teorias acerca do direito natural, das leis ou da moral.
Maquiavel, do cerne de sua solidão, nos propõe uma discussão mais visceral sobre
a própria constituição dos estados, tomando como seu elemento constituinte o
conflito, a violência, a luta de classes401. Eis a questão que, posta nesses termos,

398
NEGRI, Antonio. O poder constituinte...pg. 148
« Quand nous le lisons, nous somme saisis par lui comme par notre oubli. Par cette étrange
familiarité comme dit Freud, celle d’un refoulé” ALTHUSSER, Lous. La solitude de
MAQUIAVEL...
399
ALTHUSSER, Louis. La solitude de MAQUIAVEL, disponível em
http://multitudes.samizdat.net/La-solitude-de-Machiavel, acessado em 05/09/12 .
400
« C’est peut-être là le point extrême de la solitude de Machiavel d’avoir occupé cette place
unique et précaire dans l’histoire de la pensée politique entre une longue tradition moralisante
religieuse et idéaliste de la pensée politique, qu’il a refusée radicalement, et la nouvelle tradition
de la philosophie politique du droit naturel qui allait tout submerger et dans laquelle la bourgeoisie
montante s’est reconnue. La solitude de Machiavel c’est de s’être libéré de la première tradition
avant que la seconde ne submerge tout. » ALTHUSSER, Louis. La solitude de MAQUIAVEL...
401
« J’irais jusqu’à suggérer que Machiavel est peut être un des rares témoins de ce que
j’appellerai l’accumulation primitive politique, un des rares théoriciens des commencements de
l’État national. Au lieu de dire que l’État est né du droit et de la nature, il nous dit comment doit
naître un Etat s’il veut durer, et être assez fort pour devenir l’État d’une nation. Il ne parle pas le
182

faz de Maquiavel um solitário na história do pensamento político, ao mesmo


tempo em que provoca em seus leitores aquela freudiana familiaridade do
reprimido. O autor florentino ousou dedicar-se à questão que seus predecessores,
contemporâneos, e mesmo os que vieram depois deles na tradição do pensamento
político não ousaram explicitar com tanta clareza: a violência intrínseca e
recalcada que é inerente à realidade da constituição de todo estado.

Sobre Espinosa, Yovel disse “raramente, se alguma vez, houve


filósofo tão solitário quanto Baruch Espinosa.”402 A biografia e correspondência
de Espinosa atestam que, se é possível falarmos da solidão de Espinosa, não se
trata exatamente de solidão social, nosso filósofo não era um eremita. Mas a
singularidade e radicalidade de sua obra nos permitem falar de uma solidão
existencial. Se Espinosa tinha amigos, e suas cartas indicam sua inserção nos
debates de seu tempo, sua doutrina não foi compreendida nem mesmo pelos
amigos mais íntimos, e sua Ética, singular e difícil, não tem nem mesmo a
pretensão de ser acessível a todos403.

A radicalidade da afirmação da imanência absoluta, em Espinosa, lhe


designa um lugar tão solitário na história da filosofia quanto aquele ocupado por
Maquiavel no pensamento político. A singularidade do pensamento espinosano
permite a Gilles Deleuze e Félix Guattari designa-lo como o “Cristo dos
filósofos”, considerando que “os maiores filósofos não mais são do que apóstolos,

langage du droit, il parle le langage de la force armée indispensable à constituer tout Etat, il parle
le langage de la cruauté nécessaire aux débuts de l’État, il parle le langage d’une politique sans
religion qui doit à tout prix utiliser la religion, d’une politique qui doit être morale mais pouvoir ne
pas l’être, d’une politique qui doit refuser la haine mais inspirer la crainte, il parle le langage de la
lutte entre les classes, et quant au droit, aux lois et à la morale, il les met à leur place,
subordonnée. » ALTHUSSER, Louis. La solitude de MAQUIAVEL...
402
Apud CHAUÍ, Marilena. A nervura do real...pg.35
403
“Não seria preciso dizer com Yovel que “raramente, se alguma vez, houve filósofo tão solitário
quanto Baruch Espinosa”? Não se trata, evidentemente, da solidão social do eremita, pois sua
biografia, suas cartas e sua adesão ao Partido Republicano estão longe dessa imagem, porém da
solidão existencial como judeu, uma vez que, mesmo depois de abandonar a congregação judaica e
adentrar na comunidade internacional dos sábios, nunca deixou de ser visto como “o nosso judeu
de Voorburg”, nas palavras de uma carta de Huygens. Banido da congregação judaica, também
permaneceu desprovido de estatuto civil na república holandesa; filho de imigrantes que falava
português e espanhol, aprendendo o hebraico na Yeshiva e, tardiamente, o latim, não tinha afinal
língua alguma; num mundo em que a identidade pessoal era conferida pela religião, não possuía
nenhuma. A doutrina que ensinou não foi compreendida nem pelos amigos mais íntimos, e os
filósofos racionalistas não lhe puderam dar guarida, porque ultrapassou em radicalidade Descartes,
mas sem aceitar o ceticismo deísta. Sua ética do amor intelectual de Deus, singular e difícil, não
foi escrita para todos e muito menos para a massa, e sim para uns poucos que pudessem partilhar
seu “ensinamento altamente exotérico”” CHAUÍ, Marilena. A nervura do real...pg.35
183

que se afastam ou se aproximam deste mistério”404. A solidão de Espinosa não é


exatamente isolamento social, determinado pelas condições de sua vida, mas é
aquela solidão do pensamento sobre o inédito, sobre o singular, a “anomalia
selvagem”405.

E se a solidão maquiaveliana, paradoxalmente, está acompanhada de


uma familiaridade provocada em seus leitores, a solidão espinosana também é,
paradoxalmente, muitas vezes, acompanhada pela experiência de um encontro
imediato e sem preparação com seus leitores406. Dotado de um sofisticado
aparelho conceitual, o pensamento espinosano, por vezes, pega de assalto seus
leitores numa identificação, uma “súbita iluminação”, um “sopro” diz Gilles
Deleuze407. Assim como Maquiavel, Espinosa nos fala, de sua solidão no século
XVII, verdades tão atuais como familiares. Em ambos os autores a solidão é,
muitas vezes, ao mesmo tempo, a experiência do encontro imediato com seus
leitores.

Por fim, no campo da política também podemos encontrar um paralelo


entre a solidão da questão maquiaveliana e o pensamento de Espinosa. Se
Maquiavel está sozinho no pensamento político por pensar a constituição do
Estado a partir do conflito e da violência que lhe são inerentes, Espinosa também
experimenta a solidão de pensar uma questão mais fundamental acerca da política,
do que aquelas propostas por seus predecessores, contemporâneos e os que vieram
depois dele. Antes de divagações teóricas acerca da melhor forma de governo ou
das melhores leis, sem qualquer recurso a princípios transcendentes, sejam
teológicos ou jusnaturalistas, nosso filósofo propõe a discussão acerca da
constituição do poder político e sua relação com a potência da multidão. Antes
dos debates sobre a organização do imperium, Espinosa afirma, como questão
404
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?, São Paulo: Editora 34, 2005,
pg.79
405
O termo é título da obra de Antonio NEGRI sobre Espinosa: NEGRI, Antonio. A anomalia
selvagem – poder e potência em spinoza, Rio de janeiro: Editora 34, 1993.
406
“É um filósofo [Espinosa] que dispõe de um extraordinário aparelho conceitual, extremamente
avançado, sistemático e sábio; e contudo ele é, no nível mais alto, o objeto de um encontro
imediato e sem preparação, tal que um não-filósofo, ou ainda alguém despojado de qualquer
cultura, pode receber dele uma súbita iluminação, um “raio”. É como se a gente se descobrisse
espinosista, a gente chega no meio de Espinosa, é arrastado, levado ao sistema ou à composição.”
DELEUZE, Gilles. Espinosa – filosofia prática...pg.134
407
“Muitos dos comentadores amavam suficientemente Espinosa para invocar um Vento quando
falavam a seu respeito. E, efetivamente, não existe outra comparação senão a do sopro.”
DELEUZE, Gilles. Espinosa – filosofia prática...pg.135
184

central do seu pensamento político: sua constituição intrinsecamente democrática.


É nas mãos da multidão que Espinosa coloca a causa imanente de todo e qualquer
poder político. Nosso filósofo está só ao pensar a potência da multidão como
causa radicalmente imanente do poder político.

Maquiavel e Espinosa encontram-se como dois solitários que


caminham por trilhas similares. Ambos afirmam a experiência como terreno do
conhecimento adequado acerca da política, e ambos aceitam os homens como são,
com seus afetos, paixões, delírios e conflitos. Maquiavel e Espinosa nos parecem
solitários em suas questões e análises tão fundamentais quanto inéditas, seja
acerca da constituição do estado e sua violência inerente, ou sobre o caráter
intrinsecamente democrático de seu imperium. E, no entanto, a leitura de suas
obras é capaz de nos assaltar em familiariedade. Séculos de distância não nos
separam, leitores contemporâneos, da identificação, muitas vezes imediata e
involuntária, com a crueza e clareza de suas afirmações do que há de mais
humano. Parece-nos que Althusser está certo ao aludir à freudiana familiariedade
do reprimido em Maquiavel, e, se assim for, certamente dá-se o mesmo na leitura
do nosso maldito filósofo holandês.

3.2.3

Imperium e instituições

“Finalmente, uma vez que todos os homens, sejam bárbaros ou cultos, onde
quer que se juntem formam costumes e um estado civil...”

A constituição do sujeito coletivo multidão é a constituição de uma


potência comum, um poder constituinte que se expressa de forma imanente em
poder político, imperium408. Espinosa afirma expressamente que, onde quer que
seja, sejam os homens “bárbaros ou cultos”, eles se organizam na forma de um
estado civil. Estabelecida a relação de imanência entre potência da multidão e
poder político, quais as formas desta organização em estado civil, e quais os
instrumentos capazes de garantir a democracia ou desvirtuá-la em tirania, é que
passam a ser as questões fundamentais.
408
“O imperium, “direito definido pela potência da massa”, é a ação coletiva ou a potência coletiva
que se organiza em civitas ou res publica.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...pg.164
185

Tomando a experiência política como “mestra”, e os homens como


são, considerando seus afetos e conflitos, considerando que os homens são mais
levados pelo desejo cego e pela imaginação que pela razão, já vimos que nosso
filósofo afirma ser o inimigo interno, ou seja, os próprios cidadãos, os inimigos
mais perigosos de qualquer estado409. Espinosa identifica que o maior risco para a
democracia, em qualquer estado, não são as invasões externas ou o risco de
conquista por outro estado, mas sim a ambição de dominação de seus próprios
cidadãos.

Conforme já destacamos, neste tema nosso filósofo segue uma


premissa já esposada por Maquiavel, que afirma que os homens, os plebeus, não
desejam ser governados. Mas, se o autor florentino desenvolve daí uma resistência
do povo a ser oprimido e um desejo de dominação restrito aos Grandes410,
Espinosa parte desta afirmação maquiaveliana para levá-la um passo a frente.
Nosso filósofo afirma que qualquer homem preferirá sempre governar a ser
governado411. Espinosa parte da afirmação da resistência à opressão de Maquiavel
para dela extrair toda a sua positividade, e faz do desejo negativo de não ser
governado a positividade do desejo de governar. A multidão, como potência
constituinte, não é apenas resistência negativa ao arbítrio, mas é também desejo de
auto-governo, desejo de democracia. É esta operação, de levar às últimas
consequências a afirmação maquiaveliana, que permitirá ao nosso filósofo afirmar
o desejo da multidão de ser sujeito da ação política e tomar a democracia como o
mais natural dos regimes políticos412.

409
Sobre o tema remetemos o leitor ao nosso capítulo 2, quando da discussão acerca da relação
entre direito civil e direito natural.
410
“E, indo às razões, direi, vendo primeiro o lado dos romanos, que se deve dar a guarda de uma
coisa àqueles que tem menos desejo de usurpá-la. E, sem dúvida, se considerarmos o objetivo dos
nobres e o dos plebeus, veremos naqueles grandes desejo de dominar e nestes somente o desejo de
não ser dominados, e por conseguinte, maior vontade de viver livres, visto que podem ter menos
esperança de usurpar a liberdade do que os grandes; de tal modo que, sendo os populares
encarregados da guarda de uma liberdade, é razoável que tenham mais zelo e que, não podendo
eles menos apoderar-se dela, não permitirão que outros se apoderem.” MAQUIAVEL, Nicolau.
Discursos sobre a primeira década de Tito Livio... pg.24
411
“Além disso, é certo que não há ninguém que não goste mais de governar do que ser
governado: ninguém cede voluntariamente o comando a outrem...” Tratado Político, Cap. VII, § 5º
412
“Divergindo de seus contemporâneos, que não duvidam da abominável imagem “maquiavélica”
de MAQUIAVEL, Espinosa elogia o “penetrante florentino” como defensor da liberdade política,
e como o autor de O Príncipe, também o do Tratado político afirma que os homens não desejam
ser governados. Entretanto, dessa constatação, MAQUIAVEL obtivera uma consequência precisa:
o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado é pura negatividade que só encontra
positividade na figura do Príncipe. Espinosa, porém, depois de constatar que, por natureza, os
186

A questão democrática em Espinosa não se aprisiona no simples


debate sobre os regimes políticos, nem se resume nas questões acerca do número
de ou da forma de escolha dos governantes413. Quando nosso filósofo fala em
democracia está a afirmar aquela democracia que é intrínseca à relação entre
potência da multidão e poder político, e sua afirmação está na relação de
proporcionalidade entre a potência da multidão e a potência de seus indivíduos
constituintes considerados individualmente.

O pior risco para a democracia de qualquer estado é a usurpação do


imperium por um ou poucos cidadãos, que o exerçam para fins particulares,
alijando a multidão das condições de exercício do seu próprio direito natural.
Resguardar a democracia é assegurar que a potência da multidão, considerada
como um todo, seja sempre maior que a potência de qualquer cidadão considerado
isoladamente414. E, se os homens, em regra, desejam mais governar que ser
governados, e são mais guiados pelo desejo cego e pela imaginação que pela
razão, não é nas mãos de um ou alguns cidadãos que Espinosa recomenda que seja
deixada a guarda da democracia.

Nosso filósofo não espera dos homens nada além do que a natureza
humana, passional e conflitiva, já não tenha demonstrado pela experiência.
Espinosa não propõe nenhum projeto pedagógico que se arvore na ambição de que
os governantes ou a multidão guiem-se pela razão ou segundo princípios morais

homens não desejam ser governados, disso obtém uma outra consequência, positiva: por isso
mesmo todos desejam governar e não ser governados. Pode, então, concluir que o desejo do povo é
ser o sujeito da ação política e por isso a democracia é o mais natural dos regimes políticos”
CHAUÍ, Marilena. A nervura do real... pg.38
413
“Percebe-se, então, que nem o número de governantes, nem o caráter eletivo ou representativo
dos governos determinam a forma do corpo político. Esta é determinada exclusivamente pela
proporção de poder que se estabelece entre a massa [multidão] e a soberania.” CHAUÍ, Marilena.
“Direito é potência – experiência e geometria no Tratado Político” em Política em Spinoza... p.253
414
“Os homens operam constituindo um indivíduo coletivo ou complexo, a multitudo, e instituem
o imperium, como lemos no parágrafo 2 do capítilo III do Tratado político, ‘o corpo e a mente do
poder’ (...) dotado de toda potência que seus agentes lhe derem: o imperium é o direito natural
comum ou coletivo cuja ação é o ânimo e a mente da massa. Ao ser instituído como poder
soberano, esse direito coletivo implica simultaneamente um processo de distribuição de poderes,
determinando as duas normas universais do campo político e as formas particulares dos regimes
políticos. São normas universais: 1) é necessário que a potência soberana seja inversamente
proporcional à potência dos indivíduos tomados um a um ou somados, isto é, a potência soberana
– o imperium como direito civil – deve ser incomensurável ao poder dos cidadãos – o direito
natural individual – tomados um a um ou somados, pois o imperium é a potência da multitudo
expressa no direito civil; 2) é necessário que a potência dos governantes seja inversamente
proporcional à dos cidadãos, mas agora em sentido inverso ao anterior, isto é, tomados
coletivamente, os indivíduos ou s multitudo devem ter mais potência do que o gevernante, pois o
poder coletivo ou potência e direito da multitudo não se identificam com ninguém.” CHAUÍ,
Marilena. Política em Espinosa...pg. 170
187

transcendentes415. É no jogo mesmo das paixões, das ambições, dos conflitos que
a política espinosana se constitui. É preciso pensar uma democracia que se
constitua e se preserve no seio da imaginação, em meio às ambições e desejos dos
homens, no universo passional dos mais “bárbaros ou cultos”.

Se nosso filósofo escolhe a experiência política como objeto de sua


análise, e constrói sua “antropologia” buscando entender os afetos sem julgá-los,
sua afirmação da democracia deve poder construir-se e preservar-se neste terreno
imaginativo, passional e conflitivo416. Assim, não é na expectativa por decisões
racionais dos cidadãos ou dos governantes que nosso filósofo recomenda que seja
entregue a guarda da democracia. O estado civil deve organizar-se de tal forma,
com instituições tais que, seja qual for o ânimo de seus governantes ou
governados, estejam eles imbuídos dos mais elevados valores ou das mais vis
intenções, pela própria estrutura de funcionamento do estado, a democracia e a
liberdade restem preservadas. Assim, diz o filósofo:

Um estado cuja salvação depende da lealdade de algumas pessoas e cujos


negócios, para serem bem dirigidos, exigem que aqueles que os conduzem
queiram agir lealmente, não terá qualquer estabilidade. Para poder subsistir
será necessário ordenar as coisas de tal modo que os que administram o
Estado, quer sejam guiados pela Razão ou movidos por uma paixão, não
possam ser levados a agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral. E
pouco importa à segurança do Estado que motivo interior têm os homens
para bem administrar os negócios, se de fato os administrarem bem. Com
efeito, a liberdade da alma, quer dizer, a coragem, é virtude privada; a
virtude necessária ao Estado é a segurança. Tratado Político, cap. I,
parágrafo 6.

A estrutura organizacional do estado é o que pode preservar a


liberdade e garantir a segurança, mesmo frente às paixões e ambições humanas. A
virtude necessária ao estado não está nos seus governantes ou nos seus cidadãos,

415
“Espinosa é o primeiro antropólogo da democracia moderna visto que originalmente propôs a
questão de como o auto-governo da multidão seria possível diante do fato de que esta – seguindo a
tradição, ele a chama de vulgus – se orienta constantemente por noções morais, imagens e
sensações, em imaginationes, assim como por manifestações de avidez, ira, inveja e anseio por
honra e não por ideias racionais. Espinosa não perde tempo com a teoria da adulação, que mais
tarde alcançou tanto sucesso, a de querer alçar a multidão sob o ponto de vista da razão ou da
maioridade lógica.” Sloterdijk, Peter. O desprezo das massas – ensaio sobre lutas culturais na
sociedade moderna. Estação liberdade, São Paulo, 2002, pp. 52-53
416
“Mostramos, por outro lado, que a Razão pode bem conter e governar as emoções, mas vimos
que o caminho ensinado pela razão é muito difícil; aqueles que, por isso, se persuadem ser possível
levar a multidão, ou os homens ocupados com os negócios públicos, a viver segundo os preceitos
da Razão, sonham com a idade de ou dos petas, isto é, comprazem-se na ficção.” Tratado Político,
Cap. I, § 5º.
188

mas na racionalidade de suas instituições417. São as formas de distribuição ou


contenção do poder, determinadas pelas instituições, que garantem a preservação
do caráter democrático do exercício do poder político, quer seus agentes sejam
leais ou ambiciosos, prezem a democracia ou tenham intenções tirânicas. A
racionalidade, que é virtude rara nos homens, deve ser assegurada no exercício do
imperium por boas instituições. São as instituições que preservam o exercício do
poder político norteado pelo interesse geral, e impedem a usurpação de sua
utilização para fins particulares.

Neste ponto, mais uma vez, encontramos a influência do agudíssimo


Maquiavel. De fato, o sapientíssimo florentino já afirmara, séculos antes de
Espinosa, a imprudência de depositar nas mãos dos governantes a segurança do
estado. O Maquiavel dos Discursos, na análise do decenvirato em Roma, já
denunciava a “facilidade de se corromperem os homens”418, e a necessidade de
constituição de uma república bem ordenada por leis e instituições. Espinosa ao
afirmar estar nas instituições, e não nas virtudes dos governantes, o melhor
instrumento para resguardar a liberdade de um estado, claramente esposa a mesma
concepção republicana do fenômeno institucional enunciada por Maquiavel419.

E se está nas instituições, e não nos homens, a estrutura que deve


guardar a democracia e a liberdade, Espinosa encontra também na organização do
estado a causa determinante para a observância ou não das leis pelos cidadãos, e
para o reino da concórdia ou a solidão das disputas constantes entre seus cidadãos.
Veremos a seguir, na análise do campo jurídico, o modus operandi das leis que
operam necessariamente no campo afetivo do medo e da esperança, medo de
punições e esperança de recompensas, para impor sua observância. No entanto, já
podemos destacar que, também no que tange aos vícios ou virtudes de seus

417
“É no fundamento racional, portanto, das instituições e não no poder dos governantes que
Spinoza deposita a ênfase de sua análise política.” RIBEIRO, Luis Antônio. A idéia de democracia
em Spinoza. Tese de doutorado. IFCS-UFRJ, Rio de janeiro, 2005, p. 157.
418
“Da facilidade de se corromperem os homens” é o título do capítulo 42 do Livro primeiro dos
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, ed. Martins Fontes, São Paulo, 2007, p. 131.
419
“O papel das instituições traçado por Spinoza, o conduz para uma tendência já expressa no
século XVI por MAQUIAVEL. Trata-se, portanto, de uma concepção republicana e materialista
do fenômeno institucional, de maneira a determinar que as instituições, na política, ocupam o
centro dos processos desta natureza, em lugar das virtudes individuais dos governantes.”
GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza: uma cartografia da
imanência, Rio de janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 188.
189

cidadãos, Espinosa se remete às instituições do estado como instrumentos


determinantes da conduta generalizada de seus cidadãos.

É, com efeito, certo que as revoltas, as guerras e o desprezo ou violação das


leis não são de imputar tanto à malícias dos súditos quanto a má situação do
estado. Porque os homens não nascem civis, fazem-se. Além disso, os
afetos naturais dos humanos são em toda parte os mesmos. Assim, se numa
cidade reina mais a malícia e se cometem mais pecados do que noutra, é
seguro que isso nasce de essa cidade não providenciar o bastante pela
concórdia nem instituir os direitos com suficiente prudência e,
consequentemente, não manter o direito da cidade absoluto. TP, cap. 5,
parágrafo 2

Boas instituições fazem boa ordem, para Espinosa a racionalidade


funcional da estrutura do estado deve garantir não só a democracia, pela
confluência do exercício do imperium e o interesse geral, mas também garantir o
cumprimento das leis e a manutenção da paz social. Se a natureza humana é a
mesma em todo canto, o que difere um estado bem ordenado e a vida em
concórdia entre os cidadãos, de um estado conflagrado por constantes revoltas,
pelo crime e pelo medo são as instituições que organizam o próprio estado.

Os homens são, a maior parte do tempo, conduzidos por suas paixões


e não pela razão. As instituições operam no campo das paixões, por um sistema de
ameaça de punições e promessas de recompensas, organizando a vida social de tal
forma que se mostre mais útil a cada cidadão cumprir as leis e viver na concórdia
do que seguir unicamente seus desejos individuais. Levados pela imaginação, e
pelas paixões, os homens podem ser movidos pela ambição de dominação,
tornarem-se inimigos uns dos outros e colocarem seus interesses pessoais acima
do interesse geral do Estado. Cabe às instituições promover uma mecânica afetiva
tal que, ainda que imersos na imaginação e na passividade, pareça mais vantajoso
aos homens obedecer às leis, viver na concórdia e na paz420.

420
“Apesar de a sociedade comum se encontrar conforma à razão, isso não impede que os seres
humanos se oponham a ela, afinal nem todos os seres humanos são racionais. Aliás, Spinoza deixa
muito claro que não necessariamente os seres humanos se tornam racionais. Disso se deduz a
necessidade de existência das instituições que, mediante um regime de promessas de recompensas
e de ameaças de punição, sejam capazes de articular medo e esperança naqueles que não vivem
sob a conduta da razão e os levar, ao produzir tais afetos, a se conformar ao ingenium
coletivamente constituído.” GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza:
uma cartografia da imanência, Rio de janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 188.
190

Neste tema, cumpre destacar que Espinosa continua a ter forte


influência de Maquiavel, que também afirma o poder das leis e das instituições
sobre o comportamento dos cidadãos, e sobre a paz ou discórdia imperante em um
Estado. Podemos citar como exemplo, neste sentido, o título do cap. 29, do Livro
Três dos Discusos sobre a primeira década de Tito Lívio, do autor florentino:
“Onde se diz que os pecados dos povos nascem dos príncipes”. Voltaremos a este
assunto ao tratarmos da servidão no nosso último capítulo, ao tratarmos dos
muitos meios pelos quais um soberano pode governar sobre os ânimos de seus
súditos, por ora nos concentraremos nas instituições que garantem a democracia e
a organização do poder político.

Nosso autor dedica os últimos cinco capítulos de sua última obra, o


Tratado Político, a enunciar os desenhos institucionais capazes de melhor
organizar o poder público em regimes monárquicos, aristocráticos e democráticos,
de forma a limitar os interesses individuais, e preservar a relação de imanência
entre imperium e potência da multidão421. A morte do filósofo, em 1677,
interrompe a redação do capítulo XI do TP, aquele que seria dedicado a
organização dos Estados democráticos. No entanto, nas estruturas institucionais
de organização do poder monárquico e aristocrático de Espinosa, já podemos
destacar importantes exemplos de instituições, previstas pelo autor, com a função
de refrear desejos tirânicos de dominação e preservar o exercício do poder político
norteado pelo interesse geral422.
Sobre as diferentes formas de governo, nosso filósofo começa, já no
capítulo 2, parágrafo 17 do TP, por enunciar a distinção entre democracia,
aristocracia e monarquia pelo critério clássico do número de governantes:

421
Cabe aqui a ressalva de que, pelos limites deste trabalho, nosso intuito ao tratar dos desenhos
institucionais dos regimes políticos em Espinosa restringe-se a exemplificar as instituições que na
monarquia e aristocracia constituem instrumentos de contenção do poder e expressão da potência
da multidão. Excede os limites de nosso trabalho descrevermos todas as características, diferenças
e eventuais processos de transição entre democracia, aristocracia e monarquia. Sobre o tema
remetemos o leitor a GUIMARAENS, Francisco de. Ob. cit. pp. 271-284
422
“Na verdade, porém, Espinosa propõe um remédio contra a causa da tirania; o Tratado Político.
De fato, logo na abertura do tratado, como vimos, Espinosa afirma que a estabilidade, a segurança
e a paz de uma república não podem se fundar nas virtudes privadas dos governantes, mas devem
apoiar-se no ordenamento institucional ( nas res ordinandae), de maneira que, quer sejam
passionais ou racionais, virtuosos ou viciosos, os governantes só possam se guiar pelo que as
instituições obrigam. Por esse motivo, cada um dos capítulos dedicados às diferentes formas
políticas apresenta para cada uma delas um conjunto de instituições públicas capazes de garantir
que costumes, leis e práticas sociopolíticas fundem e conservem uma forma política segundo as
exigências do direito natural...” CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em Política
em Espinosa... p. 192.
191

Este direito que se define pela potência da multidão costuma chamar-se


estado. E detém-no absolutamente quem, por consenso comum, tem a
incumbência da república, ou seja, de estatuir, interpretar e abolir direitos,
fortificar as urbes, decidir sobre a guerra e a paz, etc. E se esta incumbência
pertencer a um conselho que é composto pela multidão comum, então o
estado chama-se democracia; mas, se for composto só por alguns eleitos
chama-se aristocracia; e se, finalmente, a incumbência da república e, por
conseguinte, o estado estiver nas mãos de um só, então chama-se monarquia.

No entanto, já vimos que, para Espinosa, a mais importante questão


política não está no número de governantes, ou na forma de sua escolha, mas na
identificação do exercício do poder público com o interesse geral da multidão.
Seja numa monarquia, numa aristocracia ou na democracia, para nosso filósofo, o
que distingue a democracia, intrínseca ao imperium, da tirania é a manutenção,
através de instituições, da relação de imanência entre poder político e direito
natural da multidão, ou a usurpação daquele poder para fins particulares.
Assim, Espinosa é capaz de, nos últimos capítulos do TP, enunciar
desenhos institucionais para regimes monárquicos ou aristocráticos que sejam
capazes de preservar os estados contra os riscos da tirania, preservando a
liberdade e a segurança. Como veremos a seguir, a monarquia e a aristocracia
espinosanas, independente do número limitado de governantes, e da forma de sua
escolha, acabam por preservar um forte caráter democrático, e preservar a relação
de causalidade imanente entre potência da multidão e exercício do poder
político423.

3.3.3.1

A monarquia espinosana

De início cabe destacar que Espinosa escreve sobre a monarquia numa


Europa onde o absolutismo dos reis já começa a se estabelecer como uma
realidade em vários países. Já fizemos algumas observações a respeito deste

423
“Spinoza, por sua vez, leva às últimas consequências sua concepção acerca das paixões. Se
todos – governantes e governados – são submetidos às paixões, nada justifica a crença de que
alguns são mais aptos a governar do que outros. Deste modo, qualquer modelo de organização do
Estado deve apontar para a democratização das instituições, pois a racionalidade política é sempre
limitada individualmente e virtuosa coletivamente. Só há racionalidade política adequada quando
constituída por muitos participantes.” GUIMARAENS, Francisco de. Dois modelos de república:
Spinoza contra os federalistas, mimeo.
192

cenário, nos cumprindo agora observar, apenas, que nosso filósofo escreve
sabendo da concepção absoluta a respeito da monarquia que inspira a maioria dos
debates de sua época. Por isso, não é estranho que Espinosa faça algumas
colocações explicitamente críticas a respeito da concentração do poder político
absolutamente nas mãos de um só.

Neste cenário, a primeira crítica espinosana explícita ao absolutismo é


a afirmação da total impossibilidade lógica de um só homem concentrar em suas
mãos toda a potência do estado. Nosso filósofo afirma que, dada a limitação de
todo ser humano, um só homem, mesmo sendo rei, é incapaz de suportar sozinho
o peso de toda a potência da multidão, ou seja, do exercício do poder político
sozinho. Daí acontecer, de fato, que os reis, que são chamados a governar
sozinhos seus estados, acabam por cercar-se de comandantes, conselheiros,
amigos, ou ainda, concubinas e favoritos para auxiliarem-no no governo da coisa
pública, e, assim, o estado, que se considera uma monarquia, na verdade se
desvirtua em uma aristocracia velada424.

Numa monarquia, a multidão confia ao rei a gestão da coisa pública,


no entanto, nosso filósofo afirma a impossibilidade de uma só pessoa carregar
sozinha tamanha responsabilidade. A pretensão do poder absoluto do rei esconde,
na verdade, a escolha discricionária pelo monarca daqueles que dividirão com ele
o peso do exercício do poder político, trazendo para o estado a péssima condição
de ser governado, não apenas pelo monarca, escolhido com a aquiescência da
multidão, mas, veladamente, por outros que somente o rei escolhe e conhece.

Outra crítica que Espinosa realiza explicitamente contra a monarquia


absolutista é a afirmação da possibilidade de limitação dos poderes do rei por
disposições de direito impostas pela potência multidão. Nosso filósofo afirma a
existência de fundamentos do estado, que precedem o poder do rei, e que devem

424
“Estão, sem dúvida, muito enganados os que creem que pode acontecer um sozinho obter o
direito soberano da cidade. O direito, efetivamente, determina-se só pela potência, como
mostramos no capítulo II, e a potência de um só homem é, de longe, incapaz de sustentar tão
grande peso. Daí acontecer que aquele a quem a multidão elege rei chama para junto de si
comandantes, conselheiros ou amigos, aos quais confia a sua salvação e a de todos, de tal modo
que o estado, que se crê ser absolutamente monárquico, na prática, é realmente aristocrático, não
de modo manifesto, mas tácito, e por isso mesmo péssimo. A isto acresce que o rei, se é criança,
doente ou sobrecarregado pela velhice, é rei precariamente, e quem na realidade tem o poder
soberano são os que administram os superiores assuntos de estado ou que estão próximos do rei.
Isto, para já não falar do rei que, submetido à libidinagem, gere muitas vezes tudo consoante o
capricho desta ou daquela concubina ou favorito.” TP, cap VI, parágrafo 5
193

ser observados por este, assim como pelos seus cidadãos. Diz Espinosa no
parágrafo 1 do capítulo VII do TP: “não repugna de modo algum à prática que se
constituam direitos tão firmes que nem o próprio rei os possa abolir”.

Mesmo num regime monárquico, o poder daquele que exerce o


imperium é limitado por certos “fundamentos do estado”, cuja obediência é devida
por governantes e governados. Neste sentido, Espinosa prevê, inclusive, a
possibilidade de resistência dos cidadãos a qualquer ordem do rei que contrarie
tais princípios425. O poder do rei não é absoluto, mas limitado por fundamentos de
direito, de observância obrigatória, e capazes de legitimar até mesmo o direito de
resistência dos cidadãos, quando qualquer ordem do monarca tenha a pretensão de
aboli-los ou ultrapassá-los426.

Podemos afirmar que, todas as características da monarquia


espinosana, como veremos a seguir, são opostas a qualquer concepção absolutista
da monarquia. Espinosa esforça-se por montar uma estrutura institucional para os
estados monárquicos que é avessa a qualquer possibilidade de concentração
absoluta do poder nas mãos do monarca ou de seu entourage pessoal. A
monarquia espinosana, por sua organização institucional, expulsa qualquer risco
de afirmação do discurso imaginativo e transcendente do rei absoluto, para
preservar o princípio democrático da imanência do poder político à potência da
multidão.

Qualquer tentativa de identificação do poder político com a pessoa do


governante é tentativa de construção de um poder tirânico. A usurpação do
exercício do imperium para fins pessoais, distanciando o poder político dos
interesses coletivos do direito natural da multidão, é o caminho da tirania. Para a
própria preservação do corpo político, a potência da multidão deve manter-se
sempre maior e inversamente proporcional àquela dos particulares. Nenhuma
organização política pode atribuir a um só governante, ou a alguns governantes,
maior potência que a da própria multidão, sob pena de verificar-se aí, não mais o

425
Voltaremos ao tema do direito de resistência no nosso último capítulo
426
“E em parte nenhuma, que eu saiba, se escolhe um monarca sem absolutamente nenhumas
condições expressas. E isto não repugna à razão nem à obediência absoluta que é devida ao rei;
com efeito, os fundamentos do estado devem ser tidos como decretos eternos do rei, de tal maneira
que os seus funcionários lhe obedecerão completamente se, quando ele der alguma ordem que
repugne aos fundamentos do estado, se negarem a executar o que ele mandou.” TP, cap. VII,
parágrafo 1
194

estado civil, mas o estado de guerra e a tirania. Assim, na monarquia espinosana,


poder político e monarca não se confundem, o rei tem seu poder limitado e o
exercício do imperium norteado pelo interesse comum do estado.

Os reis, com efeito, não são deuses, mas homens que se deixam muitas
vezes apanhar pelo canto da sereia. Se, por conseguinte, dependesse tudo da
vontade inconstante de um só, nada estaria fixo. Assim, o estado
monárquico, para ser estável, deve estar instituído de modo que tudo se faça
de acordo somente com o decreto régio, isto é, que todo o direito seja
vontade do rei explicitada, mas não de modo que toda a vontade do rei seja
direito TP, cap.VII, parágrafo 1.

Neste sentido, para que o rei tenha sempre ouvidos para o que é de
interesse do bem comum, Espinosa prevê, para seu estado monárquico, a
instituição de um conselho, formado por numerosos cidadãos, escolhidos para
exercerem mandato temporário, o qual o rei é obrigado a consultar antes de
qualquer decisão427. O papel deste conselho é defender os direitos fundamentais
do estado, aqueles que podem, inclusive, limitar a atuação do rei, além de
promulgar as instituições e decretos do rei, cuidar de sua execução, bem como de
toda a administração do estado e da educação dos filhos do rei428.

Nosso filósofo tem o cuidado de prescrever detalhadamente a


organização deste conselho de cidadãos, de modo a encontrar a forma menos
propensa à corrupção, mais próxima da representação dos interesses de todos e da
manutenção da paz. Portanto, para citar somente algumas de suas características,
os conselheiros devem ser numerosos e provenientes de todas as famílias
constituintes da multidão. Seus mandatos não devem ser vitalícios, mas deve
haver rotatividade nos cargos, para que todos os cidadãos sintam-se motivados a
defender a liberdade dos conselheiros, na esperança de, um dia, tornarem-se um
deles429.

A proposta espinosana de um conselho de cidadãos numeroso a


aconselhar o rei é uma das instituições que mais claramente mantém a monarquia
espinosana próxima da democracia intrínseca, afirmada por Espinosa em qualquer

427
“A primeira tarefa deste conselho será defender os direitos fundamentais do estado, dar
conselhos sobre o que deve fazer-se, para que o rei saiba o que decidir sobre o bem público e, além
disso, para que nada lhe seja lícito decidir sobre alguma coisa antes de conhecido o parecer deste
conselho.” TP, cap. VI, parágrafo 17.
428
Sobre o tema: TP, capítulo VI, parágrafos 15 a 20 e capítulo VII, parágrafos 3 a 5.
429
Sobre estas características do conselho e outras: TP, capítulo VI, parágrafos 15 a 26, e capítulo
VII, parágrafos 4 a 7.
195

que seja o regime de governo430. A participação obrigatória dos cidadãos


conselheiros em todas as decisões do rei mantém a relação de imanência entre o
exercício do imperium e o direito natural da multidão, impedindo que o poder
político caia nas malhas dos discursos da soberania, e que o rei tente afirmar sua
transcendência e seus interesses particulares contra os fundamentos do estado e os
interesses do bem comum.

Também a administração da justiça, a solução das controvérsias entre


os cidadãos, e a aplicação das leis não repousam nas mãos do rei, mas nas de um
outro conselho escolhido para este fim. Espinosa prevê a existência de um
conselho composto de cidadãos juristas, com características similares àquelas dos
conselheiros do rei: cargos rotativos, e escolha de um juiz por família com
funções judiciárias431. Além destes, cada urbe deve organizar, ainda, conselhos
locais com as mesmas características do conselho do rei 432.

O poder atribuído aos cidadãos, organizados em conselhos, e os


limites impostos ao poder do rei resguardam o imperium, pela sua própria
estrutura institucional, de qualquer ambição tirânica, seja do rei ou de alguns
cidadãos considerados individualmente. No entanto, duas características do estado
monárquico em Espinosa vão afirmar, ainda mais, seu caráter democrático e
assegurar mais duas armas contra a tirania, a saber: a propriedade comum dos
bens imóveis e o povo em armas.

Nosso filósofo prevê que, em sua monarquia, “nenhum cidadão


possua bens imóveis”, as terras devem ser de domínio público e alugadas aos
cidadãos que nelas habitem ou as explorem433. Segundo o autor, esta propriedade
comum do solo faz com que todos prezem igualmente pela paz, por temerem
perderem na guerra todos os seus bens e, favorecendo a igualdade, determina que

430
Podemos ressaltar, ainda, que tal desenho institucional monárquico, em que o poder do rei é
limitado pela participação dos conselhos de cidadãos, permite à alguns comentadores de Espinosa
aproximarem suas idéias à organização institucional das monarquias constitucionais. Neste
sentido: “...l’égalisme de la monarchie spinoziste correspond à l’hypothèse d’une « monarchie
burgeoise », et paraît anticiper sur des régimes « présidentiels » ou « impérialiste » à venir...”
BALIBAR, Etienne. Spinoza et la politique...p.90
431
TP, capítulo VI, parágrafo 26 a 28
432
TP, capítulo VI, parágrafo 30
433
TP, capítulo VI, parágrafo 12 e capítulo VII, parágrafo 8.
196

“sobre os assuntos comuns e sobre as artes da paz, a mente da maioria deste


conselho será uma só e quase sempre a mesma”434.

Já as forças armadas, na monarquia espinosana, não estão


concentradas nas mãos do monarca, mas, pelo contrário, o exército deve ser
formado só pelos cidadãos, e todo cidadão deve fazer parte do exército435.
Espinosa coloca nas mãos da multidão as armas que garantem a sua própria
liberdade. Quaisquer que sejam as intenções democráticas ou tirânicas do rei ou
dos conselheiros, em última instância, o recurso à violência está nas mãos da
multidão. Até mesmo os guardas pessoais do rei não devem ser funcionários reais,
mas cidadãos imbuídos desta função436.

Se, como vimos, o discurso da soberania e da transcendência do poder


político se baseia num sistema de medo recíproco entre governante e governados,
as armas nas mãos da multidão obrigam o rei a manter-se mais fiel aos interesses
de seus súditos437. Um povo em armas é um povo que tem menos a temer de seus
governantes e, portanto, menos propenso a deixar-se levar pelo discurso tirânico
da transcendência438.

A monarquia espinosana retoma, ainda, temática explorada no seu


Tratado teológico político ao tratar da separação necessária entre estado e
religião. Nosso filósofo estabelece expressamente que, na monarquia, nenhum
templo deve ser construído às custas do estado. Ainda que o rei tenha o direito de
prestar culto à religião de sua preferência, não “devem ser estatuídos direitos em
matéria de opiniões”, exceto para proteção do estado contra discursos sediciosos
ou que subvertam os fundamentos da cidade. Espinosa preserva, na sua
monarquia, a proteção à liberdade de culto e de opinião que já defendera como
necessária à segurança do próprio estado na sua obra política anterior, o TTP439.

434
TP, capítulo VII, parágrafo 8
435
TP, capítulo VI, parágrafo 10
436
TP, capítulo VI, parágrafo 34
437
« C’est le peupleen armes qui exige (et assure), tout d’abord de fait (de par la présence continue
de sa force), la loyauté du roi et le bon exercice du pouvoir pour lequel il a été par le peuple,
choisi. » BOVE, Laurent. La strátegie du conatus...Pg. 283
438
“Os cidadãos armados são, politicamente, senhores de si, na medida em que o poder do rei
somente se afirma mediante a busca do consenso da multidão. Conserva-se, portanto, a liberdade
ao se inscrever na expressão da potência da multidão a medida do poder do rei” GUIMARAENS,
Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza...pg.247
439
“No que respeita à religião, absolutamente nenhum templo deve ser edificado à custa das urbes,
nem devem ser estatuídos direitos em matéria de opiniões, a menos que sejam sediciosas e
197

Por fim, vale destacar que a monarquia espinosana tem ainda como
importante instituição uma delimitação muito restrita daqueles que podem ser
considerados nobres. Espinosa identifica a nobreza como uma classe perigosa à
estabilidade do estado. Próximos demais do poder e dedicados ao ócio, os nobres
são indivíduos propensos a conspirações, traições, crimes e golpes de todo gênero.
Se o pior inimigo do estado é o inimigo interno, dentre os cidadãos de uma
monarquia os mais perigosos são os nobres. Assim, no seu desenho institucional
do estado monárquico, Espinosa limita a condição de nobreza somente àqueles
descendentes diretos do rei440. Mais uma vez nosso filósofo tenta afastar, pela
própria estrutura institucional do estado, o risco de tirania.

A monarquia espinosana é um regime de poder limitado, estruturado


em instituições de caráter democrático, como a representação dos cidadãos nos
conselhos. O rei é obrigado a ouvir os pareceres dos conselheiros, escolhidos
dentre os cidadãos. A administração da justiça está nas mãos dos cidadãos.
Ninguém é tão mais rico que seus iguais ao ponto de possuir as terras, estas são de
domínio público. As armas nas mãos dos cidadãos garantem, em última instância,
a relação de imanência entre imperium e potência da multidão. Na monarquia
espinosana encontramos a monarquia mais próxima da democracia.

3.2.3.2

A aristocracia espinosana

Já mencionamos que, para Espinosa, a democracia é originária, os


demais regimes de governo são formas mais ou menos degradadas, desvirtuadas,
da democracia, que é o estado totalmente absoluto441. Neste sentido, não espanta
que Espinosa comece seu estudo acerca do estado aristocrático afirmando ser esta

subvertam os fundamentos da cidade. Por conseguinte, aqueles a quem é permitido praticar


publicamente uma religião,, se quiserem um templo, que o edifiquem à sua custa. Quanto ao rei,
terá no seu palácio um templo próprio para si, para praticar a religião a que está ligado.” TP,
capítulo VI, parágrafo 40.
440
TP, capítulo VI, parágrafo 13 e 14.
441
“Com efeito, estou plenamente persuadido de que a maior parte dos estados aristocráticos,
antes, foram democráticos...” TP, cap. VIII, parágrafo 12.
198

forma de governo mais próxima da democracia que a monarquia. A aristocracia é


superior e mais apta a preservar a liberdade do que a monarquia442.

No entanto, se pela distinção clássica entre os regimes de governo a


aristocracia se diferencia da democracia por ser aquela o governo de alguns e esta
o governo de todos, Espinosa destaca um outro critério de diferenciação entre
estes dois regimes na forma de escolha dos governantes. O que caracteriza a
aristocracia não é tanto o número limitado daqueles que exercem o poder político,
mas o fato de que estes tem o direito ao governo por um critério de escolha dentre
os cidadãos. Já a democracia é o governo de todos pois são todos governantes por
“um certo direito inato ou adquirido por fortuna”443.

Neste sentido, nosso filósofo diz explicitamente:

Assim, mesmo que a multidão de um estado esteja toda incluída no número


dos patrícios, desde que esse direito não seja hereditário nem transmissível a
outro por uma lei comum, o estado será totalmente aristocrático, na medida
em que ninguém, a não ser os expressamente escolhidos, está incluído no
número dos patrícios. TP, capítulo VIII, parágrafo 1.

Aristocracia e democracia não se confundem, ainda que numa


aristocracia se atinja a igualdade entre o número de patrícios e a multidão inteira.
Na aristocracia uma série de instituições e direitos fundamentais constitui um
estado baseado na desigualdade e na escolha de alguns para exercerem o governo,
enquanto na democracia o direito de governar é inato ou decorre da lei comum.
Ainda que Espinosa tenha falecido antes de desenvolver sua concepção das
instituições constituintes da democracia, no seu capítulo XI, parágrafos 1 e 2 do
TP nosso filósofo começa seu estudo a respeito da democracia justamente por esta
distinção.

E se a aristocracia está mais apta, que a monarquia, a conservar a


liberdade e a segurança, por estar mais próxima do estado absoluto da democracia,
o pior risco para uma aristocracia é degradar-se em monarquia, seja explicita ou
tacitamente. Espinosa diz ser um perigo inerente à aristocracia os conselhos de
governo pouco numerosos, onde alguns poucos dentre os patrícios, mais
habilidosos para a política, passem a concentrar em suas mãos o exercício efetivo
442
O título do cap. VIII do TP diz: “De como o estado aristocrático deve ser constituído por um
número grande de patrícios. Da sua superioridade e de como ele se aproxima mais do estado
absoluto que o monárquico e, por esse motivo, é mais apto para conservar a liberdade”.
443
TP, capítulo VIII, parágrafo 1
199

do governo, o que, depois, pode facilmente concentrar-se nas mãos de um só, e a


aristocracia tornar-se, na prática, uma monarquia velada ou até mesmo
explícita444.

Deste risco Espinosa conclui a principal característica do desenho


institucional traçado para seu estado aristocrático: que o conselho de patrícios seja
muito numeroso e conserve sua proporcionalidade para com a totalidade da
multidão. Para nosso filósofo, o número de patrícios, em qualquer aristocracia que
vise preservar a liberdade, deve ser muito elevado, de modo que se dissolva no
número destes os riscos de concentração do poder e os vícios da cobiça, da inveja
e da corrupção. Num conselho mais numeroso torna-se mais difícil que se
sobressaia, com a conivência de todos ou da maioria, ambições contrárias ao bem
comum445.

Nosso filósofo ressalta, ainda, que o quantitativo do conselho dos


patrícios deve ser mantido sempre proporcional ao número dos plebeus, ou seja,
conforme cresça a população do estado, deve crescer proporcionalmente o número
dos patrícios446. Espinosa confia no número elevado de patrícios como instituição
capaz de garantir a maior proximidade das decisões dos governantes ao interesse
geral. Trata-se de um princípio democrático que o filósofo já construíra na sua
Ética: a afirmação que a razão se constrói no comum, nas noções comuns. A
racionalidade das decisões políticas se garante pelo número elevado dos
patrícios447.

A aristocracia é regime de governo assente na desigualdade entre


patrícios e plebeus, onde o exercício do imperium está concentrado nas mãos dos
primeiros. Nesse sentido, Espinosa confia tanto na racionalidade e na guarda da
liberdade pelo numeroso conselho de patrícios que dispõe expressamente que

444
TP, capítulo VIII, parágrafo 2
445
TP, capítulo VIII, parágrafo 6
446
TP, capítulo VIII, parágrafo 11 e 13
447
“Deste modo, qualquer modelo de organização do Estado deve apontar para a democratização
das instituições, pois a racionalidade política é sempre limitada individualmente e virtuosa
coletivamente. Só há racionalidade política adequada quando constituída por muitos
participantes.” GUIMARAENS, Francisco de. Dois modelos de república: Spinoza contra os
federaliatas, mimeo.
200

“não há aqui que temer, pelo fato de o estado ser absolutamente delegado no
conselho, algum perigo de servidão humilhante para a plebe.”448

Nosso filósofo destaca que pelos próprios fundamentos do Estado


aristocrático o conselho de patrícios deve ser, tanto quanto possível, senhor de si,
de modo que “não corra nenhum perigo da parte da multidão”449. Ao contrário do
que ocorre na monarquia, na aristocracia o povo não é armado, as forças armadas
estão nas mãos dos patrícios, a quem cabe comandá-las podendo, até mesmo, se
necessário, contratar estrangeiros para lutarem em seu nome450.

No entanto, se a plebe não tem armas para defender-se da


possibilidade de tirania por parte dos patrícios, os patrícios não podem esconder-
se de sua responsabilidade no exercício do poder político, os patrícios não podem
passar despercebidos por entre a multidão. Espinosa prevê que os patrícios devam
ser obrigados a usarem trajes singulares e cumprimentados por título singular que
os distingam da plebe. Da mesma forma, sua conduta nos negócios e na vida
privada pode interferir em sua pertença ao patriciado. Se qualquer patrício
conduzir sua vida na prodigalidade, na luxúria, perder-se em dívidas ou, de
qualquer modo, mostrar-se incapaz de governar a própria vida este deverá
renunciar ao título. “Quem, com efeito, não é capaz de se governar a si mesmo e
às suas coisas privadas muito menos será capaz de olhar pelas públicas ”451

Também diferente do que ocorre na monarquia, no estado aristocrático


espinosano, as terras devem ser vendidas aos súditos e não apenas alugadas.
Alijados do poder político os plebeus poderiam muito facilmente abandonar o
estado em tempos de dificuldades, se todos os seus bens pudessem ser levados
consigo. Assim a propriedade privada do solo é uma forma de fixar os plebeus à
terra de modo que continuem trabalhando pelo bem do estado, ainda que em
tempos de crise452.

A relação entre religião e estado também é diferente na monarquia e


na aristocracia. Na monarquia, a religião é deixada unicamente para a esfera
pessoal, sendo os templos construídos pelos particulares e a religião do rei uma

448
TP, capítulo VIII, parágrafo 6
449
TP, capítulo VIII, parágrafo 7
450
TP, capítulo VIII, parágrafo 9
451
TP, capítulo VIII, parágrafo 47
452
TP, capítulo VIII, parágrafo 10
201

questão de sua escolha e prática individual. Já na aristocracia, Espinosa retoma


um tema já abordado no TTP que é a existência de um credo mínimo, uma religião
civil que, esposada pelos patrícios, constitui um meio apto a favorecer a união e a
paz da pátria453. É prevista a liberdade dos plebeus de dizer o que pensam e até,
discretamente, praticarem outras religiões, mas a “religião da pátria” deve ser
praticada e oficiada por todos os patrícios em templos suntuosos454.

Já o saber deve estar livre do controle estatal, sendo concedida, a


quem quer que queira, autorização para ensinar publicamente, “à sua custa e com
risco da sua fama”455. Sobre este tema, nosso filósofo retoma, mais uma vez, o
tema da liberdade de opinião e de cátedra, já afirmada no TTP, como instituições
que não ameaçam a paz e a segurança do estado, mas pelo contrário as garantem.

Nosso filósofo faz uma longa digressão a respeito do funcionamento


dos conselhos de patrícios no governo da coisa pública. Porém, foge ao objetivo
deste trabalho adentrarmos detalhadamente nesta análise. Nos limitamos a
destacar que, dentre os patrícios, Espinosa destaca a instituição de um conselho de
síndicos, que funcionaria como guardião dos fundamentos do estado e fiscal da
atuação dos próprios patrícios no conselho supremo456. Além disso, na aristocracia
espinosana, também está nas mãos dos patrícios a atividade judiciária, realizada
por um conselho de juízes457. E, por fim, nosso filósofo prevê ainda a organização
de um terceiro conselho, subordinado ao conselho supremo, denominado senado,
encarregado de tratar dos assuntos públicos cotidianos do estado458.

Encerrando nossa breve análise de como, segundo Espinosa, deve se


organizar o Estado aristocrático mais apto à preservação da liberdade, destacamos
a defesa do autor da forma federativa de organização do estado. No capítulo IX de
seu Tratado Político, nosso filósofo afirma ser preferível o estado constituído por
várias urbes do que aquele em que o poder está concentrado em apenas uma
capital459. Espinosa vê na federação a maior guarda da liberdade visto que, no
caso de qualquer ambição tirânica, não bastaria um golpe concentrado apenas

453
Sobre o credo mínimo proposto por Espinosa no seu TTP remetemos o leitor a nossa análise do
tema no capítulo 2.
454
TP, capítulo VI, parágrafo 46
455
TP, capítulo VI, parágrafo 49
456
TP, capítulo VIII, parágrafo 20 a 26
457
TP, capítulo VIII, parágrafo 37 a 41
458
TP, capítulo VIII, parágrafo 29 a 35
459
TP, capítulo IX, parágrafo 1
202

numa urbe, mas em várias. Ademais a liberdade no Estado federal é comum a


várias urbes, enquanto no estado unitário “onde reina só uma urbe, só se atende ao
bem das restantes na medida em que for do interesse daquela que reina.”460

Nosso filósofo prevê em seu estado constituído por várias urbes


instituições que até hoje são conservadas pelos estados federais contemporâneos,
como a indissolubilidade da união entre os entes federados461 e a existência de
uma casa de representação federativa que reúna senadores de todas as urbes
federadas462. A superioridade dos estados que tem o nome de várias urbes é
também uma forma de expressão da superioridade, sempre afirmada por Espinosa,
da multiplicidade sobre a individualidade e a uniformidade. A federação é forma
superior de organização do estado pois na distribuição territorial do poder é
melhor assegurada a paz do estado e a liberdade463.

3.3

O campo jurídico: direito natural e direito civil

“Na verdade, se há estado que pode ser eterno, é necessariamente aquele cujos direitos,
uma vez instituídos, permanecem inviolados. Porque a alma do estado são os direitos.
Mantidos estes, mantém-se necessariamente o estado”
Espinosa. TP, capítulo X, parágrafo 9.

A constituição de um sujeito político é também a constituição de uma


potência coletiva que se organiza em leis comuns e um direito civil. Em Espinosa
não há transcendência entre o campo jurídico e o social ou político, sem o recurso
jusnaturalista a qualquer ordem transcendente de direitos naturais, sem a
afirmação positivista de qualquer ordem jurídica separada das relações sociais, em
Espinosa, o direito civil é expressão imanente das relações de composição que
constituem a multidão.

460
TP, capítulo IX, parágrafo 15
461
TP, capítulo IX, parágrafo 2. A indissolubilidade da federação está prevista em nossa CF/88, art
1º.
462
TP, capítulo IX, parágrafo 5. A existência de uma casa de representação federativa, senado
federal, está prevista em nossa CF/88 no art. 46.
463
A defesa da forma federativa de distribuição do poder é um aspecto que aproxima o
pensamento de Espinosa às reflexões dos Artigos federalistas norte-americanos do século XVIII.
Sobre as proximidades e antagonismos entre o pensamento de Espinosa e aquele dos federalistas
Madison, Hamilton e Jay remetemos o leitor a: GUIMARAENS, Francisco de. Dois modelos de
república: Spinoza contra os federaliatas, mimeo.
203

Tanto direito quanto potência, as leis comuns em Espinosa afirmam-se


e alicerçam sua obediência na própria mecânica afetiva do conatus individual e
coletivo. Sem o recurso a autoridades divinas, valores morais ou racionalidade
adequada, os homens obedecem às leis comuns, a maior parte do tempo, por uma
mecânica afetiva de medo e esperança. O campo jurídico, assim como a
constituição do sujeito político, organiza-se na própria mecânica passional e nas
ideias inadequadas da imaginação.
Nosso filósofo nos apresenta um pensamento acerca do jurídico
calcado na imanência e na experiência dos afetos e da imaginação. Direito natural
é potência individual que não se dissolve completamente no campo social. Direito
civil é potência coletiva que exprime suas relações de composição e não
transcende a potência da multidão. Estado de natureza é abstração dos direitos,
direito natural e direito civil. Se a subjetivação só se realiza no encontro com
outras coisas singulares semelhantes a nós, também os direitos individuais só se
afirmam sob leis comuns, no exercício do direito civil.

3.3.1

Direito natural

Tratar do direito natural em Espinosa é defrontarmo-nos novamente


com uma anomalia. Mais uma vez nosso filósofo se apropria de um termo
corrente nos debates de seu tempo, para atribuir-lhe sentido totalmente diverso
daquele afirmado por seus predecessores, seus contemporâneos ou mesmo por
aqueles que viriam depois dele464. Nada na tradição do pensamento jurídico é
capaz de aproximar o que Espinosa chama de direito de natureza e o que,
tradicionalmente, em qualquer corrente teórica, se convencionou chamar por este
nome.

464
“O pensamento político spinozano, de acordo com a tendência existente no século XVII, não
deixa de investigar a questão do direito natural. São inúmeras as vezes em que Spinoza usa o
termo em questão, o que, à primeira vista, levaria a crer que ele se filia à corrente jusnaturalista.
Tal asserção, todavia, não se comprova mediante uma análise mais cuidadosa da política
spinozana. É fundamental compreender, portanto, que o termo ‘direito natural’ assume outro
sentido. Spinoza constrói um conceito que recusa qualquer dos fundamentos da doutrina do direito
natural.” GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e pollítica em Spinoza..., pg.116
204

A imanência absoluta espinosana subverte o sentido do termo direito


natural, ancorando-o necessariamente no real, indissociável de sua atualização. E
dizemos tratar-se de uma subversão porque o pensamento jurídico construiu, para
este conceito, uma outra história, uma história de transcendência. Nas diferentes
escolas do jusnaturalismo, o direito natural é aquele que se diferencia e transcende
o direito efetivamente posto, o direito positivo, tendo com este uma relação de
superioridade465.

É, pois, uma ordem de valores ou princípios que existiriam


independente de sua efetividade no real, que fundamenta a ideia de direito natural,
tal como entendido pelo pensamento jurídico hegemônico. Seja sustentada por
uma ordem cosmológica, pelas leis de Deus, por fundamentos morais, ou por um
ideal de humanidade, a existência de direitos transcendentes à ordem dos direitos
estabelecidos pelo estado, e de noções de justiça anteriores e superiores às leis
comuns, são a base do conceito de direito natural, tal como entendido pela
tradicional doutrina jurídica, aquela da transcendência466.

Ultrapassa em muito os objetivos deste trabalho uma análise


pormenorizada do conceito de direito natural, construído desde a Grécia antiga,
pelo pensamento jurídico hegemônico467. O tema é objeto das mais variadas
construções teóricas há séculos, com autores clássicos lhe dispensando as mais
diversas fundamentações e desenvolvimentos. Fazendo a ressalva da brevidade e
necessária incompletude de nossa exposição, se, no entanto, fizermos uma

465
« La concepcion la plus générale du droit naturel est celle d’une justice idéale, d’une loi
absolue, supérieure aux lois émanant du législateur ou ayant une origine coutumière. Celles-ci,
qualifiées de droit positif ou arbitraire, ne doivent jamais contredire les préceptes du droit naturel,
ni dans les obligations ni dans les prohibitions qu’elles établissent. La croyance au droit naturel est
donc l’expression d’un idéalisme qui, refusant de considérer la justice comme une simple
convention, s’oppose ainsa à toutes les formes de positivisme juridique » LAINGUI, André.
« Grotius et le droit pénal » in XVII siècle, nº 126, 32ª année, 1980, pg. 37/38
466
“O pressuposto do direito natural é outro, pois parte da existência do conceito de justo
independentemente de qualquer lei ou imposição. O jusnaturalismo se superpõe à norma e a
antecede. (,,,) Para o jusnaturalismo, o direito natural prevalece sobre o direito positivo sempre que
ocorrer um conflito entre ambos” VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito:
primeiras linhas, São Paulo: Atlas, 2010, pg. 40
467
“A ideia de um Direito Natural, distinto do Direito Positivo, é muito antiga. Nós a encontramos
nas manifestações mais remotas da civilização ocidental a respeito do problema da lei e da justiça,
o mesmo ocorrendo na cultura do Oriente. Todavia, é entre os pensadores gregos que a aceitação
de um Direito Natural, como expressão de exigências éticas e racionais, superiores às do Direito
positivo ou histórico, passa a ser objeto de estudos especiais, até se converter em verdadeira
“teoria”. Pode-se dizer que as linhas fundamentais dessa compreensão do Direito Natural ainda
perduram em nossa época, assistindo razão a Husserl quando nos lembra que, no tocante às ideias
universais, somos todos “funcionários” da cultura grega.” Reale, Miguel; Lições preliminares de
direito, 24 ed., São Paulo: Saraiva, 1999, pg.312
205

pequena digressão sobre a história do direito natural e suas fundamentações pelo


pensamento jurídico hegemônico, podemos citar que alguns autores remetem à
obra Antígona de Sófocles a primeira narrativa que lhe faz menção.

Nesta tragédia grega a protagonista se opõe às ordens de seu tio


Creonte, tentando enterrar o irmão morto, alegando fundamentar sua
desobediência num direito que estaria acima das determinações do poder político.
Antígona é tida como a primeira narrativa a afirmar a existência de direitos
superiores à ordem estabelecida, direitos que seriam fundamentados em “leis não
escritas, inabaláveis, de Deus”, que deveriam ser observados ainda que contrários
às leis postas, ao direito positivo468.

A ideia de um direito que precede e é superior ao direito positivo está


presente na Grécia antiga desde os sofistas, tendo se desenvolvido em Platão469 e
Aristóteles470, muitas vezes com fundamento cosmológico, baseado numa ordem
que organiza o real e lhe determina leis independentes de sua positivação. Depois,

468
« On s’accorde pour lire dans l’Antigone de Soplocle la première affirmation de cette justice
supérieure no écrit. A son oncle Créon dont elle a enfreint l’interdiction de donner une sépulture à
Polynice, Antigone réponde : « Je ne pensais pas que tes défenses à toi fussent assez puissantes
pour permettre à un mortel de passer outre à d’autres lois, aux lois non écrites, inèbranlables, des
Dieux ! Elles ne datent celles-là ni d’aujourd’hui ni d’hier, et nul ne sait le jour où elles ont paru »
Même si Antigone invoque l’origine divine de ces lois, ses paroles expriment bien la révolte de la
droit naturel contre le droit positif. » » LAINGUI, André. « Grotius et le droit pénal » in XVII
siècle, nº 126, 32ª année, 1980, pg. 37/38
469
Sobre as consequências políticas da afirmação platônica do direito natural fundamentado em
uma ordem cosmológica a organizar a vida política consultar: GUIMARAENS, Francisco de.
Direito, ética e política em Spinoza...pg.115 a 121.
470
“O problema que se põe pela linguagem, isto é, se algo é ‘natural’ ou ‘convencional’, põe-se
analogamente também para o direito. A primeira vez que se encontra no latim pós-clássico a
expressão positivus referida ao direito é uma passagem do Commento de Calcidio ao Timeu de
Platão (esta obra de Calcidio, um neoplatônico ou comentador de Platão, foi durante um longo
tempo – até o século XII – a única fonte do conhecimento medieval de Platão). (...) Como
dissemos, a distinção conceitual entre direito natural e direito positivo já se encontra em Platão e
em Aristóteles.” BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito, São
Paulo: Ícone, 1995, pg.16
“A ideia de Direito Natural brilha de maneira extraordinária no pensamento de Sócrates para
passar pelo cadinho do pensamento platônico e adquirir plenitude sistemática no pensamento de
Aristóteles, ordenando-se segundo estruturas lógicas ajustadas ao real. Seu conceito de lei natural,
como expressão da natureza das coisas, não se esfuma em fórmulas vazias, mas tem a força de
uma forma lógica adequada às constantes da vida prática. Sendo expressão da natureza humana, o
Direito Natural é igual para todos os homens, não sendo um para os civilizados atenienses e outro
para os bárbaros.” Reale, Miguel. Ob.cit. pg.312/313
E ainda: “A filosofia grega também relativizava as leis humanas. Para os sofistas, o direito natural
tinha como base a natureza humana, em que deveriam se enfatizar a liberdade e a igualdade dos
homens. Os sofistas invocam o direito natural para destacar o caráter arbitrário e artificial do
Estado. Posteriormente, Sócrates, Platão e Aristóteles distinguiram o justo segundo a natureza e
segundo a lei. O justo por natureza está no pensamento de cada um dos homens. O direito natural
orienta o sentido do direito positivo.” VENOSA, Sílvio de Salvo. Ob. Cit. Pg.41
206

o direito natural chega à Roma antiga principalmente pela influência dos


estoicos,471 e no direito romano se encarna no debate sobre a lei natural,
principalmente nas letras de Cícero e no debate entre o jus gentium e o jus
civile472

No medievo, a fundamentação teológica do poder atinge também os


debates jurídicos, e a ideia de direito natural ganha novos alicerces na ideia de
uma lei natural, eterna e imutável, posta por Deus. O mesmo princípio de
transcendência que sustenta a soberania do poder político fundamenta a existência
de direitos naturais que decorrem da manifestação de um Deus antropomórfico, de
vontade livre, e que tem supremacia sobre o direito positivo. O principal expoente
do debate jurídico acerca do direito natural na idade média e sua fundamentação
teológica é São Tomás de Aquino, com sua Summa theologica473.

Já no século XVII, o esforço racionalista pela laicização do poder


político é também o esforço pela construção de outro fundamento dos direitos
naturais, que não passasse pela vontade de Deus474. Enquanto os estudos da física
mecânica destronam Deus de sua imagem de mistério na regência da natureza, os
conhecimentos dos astros e da medicina chancelam a razão como instrumento

471
“A doutrina estoica tem, para nós juristas, uma significação especial, por ter exercido imensa
influência sobre os juristas romanos, por intermédio especialmente de Panêcio e Posidônio, que
propagaram o estoicismo no mundo romano, no século I a.c. Os princípios de Zenão e Crisipo,
sobre o dever que tem todo ser humano de viver de conformidade à índole e às tendências do povo
romano, passaram a informar a Jurisprudência. Panteístas que eram, os estoicos não faziam
diferença entre as leis naturais e as que regem a conduta humana, compreende-se que o
jurisconsulto Ulíano tenha concebido o jus naturale como sendo aquele que a natureza ensinou a
todos os animais (quod natura omnia animália docuit).” Reale, Miguel. Ob.cit. pg.313
472
“O Jus gentium e o jus civile correspondem à nossa distinção entre direito natural e direito
positivo, visto que o primeiro se à natureza (naturalis ratio) e o segundo às estatuições do populus.
Das distinções ora apresentadas temos que são dois os critérios para distinguir o direito positivo
(jus civile) do direito natural (jus gentium): a) o primeiro limita-se a um determinado povo, ao
passo que o segundo não tem limites; b) o primeiro é posto pelo povo (isto é, por uma entidade
social criada pelos homens), enquanto o segundo é posto pela naturalis ratio.” BOBBIO,
Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito, São Paulo: Ícone, 1995, pg.18
473
“Entre os teólogos medievais, encontra-se outra explicação do direito natural. Santo Tomás de
Aquino, que assumiu oficialmente a posição de prócer da Igreja, existe uma perfeita gradação
entre três tipos fundamentais de leis: a lei eterna, razão divina que rege o universo e o
comportamento humano; a lei natural, que é reflexo da lei eternaque o homem conhece por meio
da razão; e a lei humana, criação do homem, legislação que é o instrumento para ordenar a
convivência. Para essa corrente, a fonte do direito natural é a vontade de Deus. Assim, o direito
natural é conhecido de todos, em qualquer local, em qualquer época. O direito natural busca
assegurar o bem comum com a aplicação da justiça. Essa posição admite a supremacia do direito
natural sobre as leis humanas.” VENOSA, Sílvio Salvo. Ob. Cit. Pg.42
474
« C’est pourquoi, jusqu’au XVII siècle, jusqu’à l’apparition de l’Ecole du droit naturel, le droit
naturel demeurera comme l’accessoire de la théologie ou du droit canonique. » LAINGUI, André.
« Grotius et le droit pénal » in XVII siècle, nº 126, 32ª année, 1980, pg. 38
207

capaz de conhecer o funcionamento do mundo e dos corpos. Na política, o poder


teológico é posto em questão e o humanismo exalta a ideia de uma natureza
humana constante em todos os homens. A modernidade nasce na Europa, e com
ela a concepção de direitos naturais, que não são mais a manifestação de uma
vontade divina, mas a resultante de princípios morais, do uso da razão e
decorrentes da própria natureza humana475. A transcendência, que antes era
atribuída a um Deus antropomórfico, é agora a transcendência de valores inerentes
ao ser humano476.

Ao longo dos séculos que nos separam das origens do jusnaturalismo


moderno, o debate no campo do pensamento jurídico acerca do direito natural e
do direito positivo manteve-se intenso, tendo períodos de ascensão do
jusnaturalismo, e outros de maior crédito e desenvolvimento do positivismo.
Excede em muito os limites deste trabalho o estudo acerca do desenvolvimento e
diversas faces do jusnaturalismo moderno até os debates contemporâneos no meio
jurídico. Nos contentamos, pois, com esta breve exposição, que já é suficiente
para demonstrar o quanto é diametralmente oposto o que Espinosa entende por
direito natural e os desenvolvimentos deste conceito no pensamento jurídico
hegemônico.

475
Nos cumpre aqui ressaltar o importantíssimo papel do jurista holandês Hugo Grocio,
considerado por muitos o pai do jusnaturalismo moderno. Foi Grocio, em sua obra Direito da
guerra e da paz, o primeiro a defender sobre bases laicas o direito de natureza. Sobre seu legado
destacamos: « Quoi qu’il en soit, l’effort des continuateurs de Grotius consistera à établir le droit
naturel sur des bases laiques, nécessaires pour le rendre obligatoires pour tous les hommes,
quelquer religion ou croyances qu’ils professent... » LAINGUI, André. « Grotius et le droit pénal »
in XVII siècle, nº 126, 32ª année, 1980, pg. 39
476
Francisco de Guimaraens ao analisar a relação entre o direito natural em Espinosa e o
pensamento jurídico acerca do jusnaturalismo separa em duas vertentes o pensamento jurídico
acerca dos direitos naturais: o jusnaturalismo clássico e o jusnaturalismo moderno. A primeira
seria aquela desenvolvida até o medievo, sendo possível distinguir nela duas tendências, a saber, o
jusnaturalismo clássico da Antiguidade, fundado do pensamento cosmológico, e o jusnaturalismo
clássico influenciado pela doutrina cristã, já no medievo. A segunda vertente do jusnaturalismo,
aquela do jusnaturalismo moderno, tem como fundamentos o humanismo, o individualismo e o
racionalismo. Sobre o tema: GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política..., pgs. 115 a
148
Sobre o jusnaturalismo moderno destacamos: “Para a modernidade hegemônica, a razão é índice
de expressão daquilo que o ser humano é em essência, na medida em que tal faculdade seria o
diferencial entre os homens e os animais. Com o auxílio da razão, a doutrina moderna do direito
natural busca fundamentos para a obediência civil, construindo um arcabouço teórico que faz uso
da moral para pensar a legitimidade do direito. Portanto, pode-se entender que o direito natural
moderno é, na verdade, impulsionado pela busca de uma teoria da moral racionalmente válida que
sustente a ordem político-jurídica instituída.”GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e
política em Spinoza...pg.142
208

Nosso filósofo é o filósofo da imanência absoluta, também no campo


jurídico Espinosa nega qualquer recurso a um fundamento transcendente dos
direitos, seja em nome de Deus, do cosmos, da moral, da razão ou de uma
natureza humana ideal. A ideia de direitos que podem ou não efetivar-se, a
afirmação de qualquer ordem de direitos separada do real, imutável e eterna,
superior às leis efetivamente postas não faz qualquer sentido na concepção
espinosana acerca do direito natural.

Para Espinosa direito é potência, tantum juris quantum potentia é a


afirmativa mais célebre do filósofo sobre o tema, em seu TP. Já vimos que a
potência espinosana nada tem de potencial ou de essência ideal que pode ou não
materializar-se. Potência em Espinosa só existe em ato, é sempre atual e efetiva, a
potência de qualquer indivíduo expressa-se no real em sua totalidade: as coisas
são, a todo tempo, tudo que elas podem ser, nem mais nem menos. O mesmo
acontece com o direito natural na concepção espinosana.

O direito natural em Espinosa nada mais é que a própria potência de


cada indivíduo em seu esforço por perseverar na existência. Constitui direito
natural de um homem fazer tudo aquilo que lhe pareça útil a seu esforço por
perseverar na existência, perseguir tudo que seu conatus constituir como objeto de
desejo. Sem ditames transcendente de bem ou mal, justo ou injusto, virtude ou
pecado, moral ou imoral, o direito natural espinosano se determina, única e
exclusivamente, pelo conatus de cada indivíduo477.

A recusa espinosana a quaisquer interpretações axiológicas do direito


natural, e sua identidade ao que dita o conatus individual fica clara na seguinte
passagem:

Vê-se claramente, (...), que no estado natural não há a noção de pecado (...):
ninguém, com efeito, é obrigado a agradar a outrem por direito natural, a
menos que o queira, e nenhuma coisa é boa ou má para a pessoa, senão
aquilo que em virtude da sua compleição ela decida ser um bem ou um mal.
Porque o direito natural não interdita senão o que não está no poder de
ninguém... Tratado Político, Cap. II, § 18)

477
“O direito natural é portanto, neste caso, definido como expressão da potência e construção da
liberdade. Imediatamente. Se a potentia metafísica havia sido até aqui conatus físico e cupiditates
vitais, ela é agora reinterpretada e concebida como jus naturale. A imediaticidade e a totalidade
dessa função jurídica excluem toda mediação e só admitem deslocamentos procedentes da
dinâmica interna das cupiditates.” NEGRI, Antonio. Verbete “SPINOZA, Baruch – Tratado
Político” em Dicionário de obras políticas...
209

Muito longe das concepções transcendentes do direito natural,


construídas pelo pensamento jurídico hegemônico, seja na antiguidade, no
medievo ou mesmo na modernidade, não faz nenhum sentido no campo jurídico
espinosano a afirmação de direitos que existam independentemente de sua
efetivação. O direito natural, em Espinosa, só existe indissociável de suas
condições de exercício. Em termos espinozanos, é impossível entender o direito
em sentido teórico, como uma aptidão ou uma prerrogativa que pode ou não
exercer-se segundo o livre arbítrio de seu titular478

Em contrapartida, o direito natural espinosano também não se


relaciona com nenhuma ideia de dever de conduta479. O direito natural é potência
sempre positiva e em ato, nada obriga o indivíduo por direito natural, a não ser o
seu próprio conatus. Todo limite ao direito natural é exterior ao indivíduo,
nenhuma ordem transcendente impõe deveres ou obrigações quer fundadas na
vontade de Deus ou em valores morais.

Neste sentido, podemos destacar, ainda, que também não faz qualquer
sentido na filosofia espinosana a prática das declarações de direitos480. Muito
querida pelo jusnaturalismo moderno, a prática das declarações de direitos esteve
presente em diversas ocasiões históricas de transformação social, ou risco dela, na
modernidade481, e traz em seu bojo a afirmação da existência de direitos naturais,
inatos aos homens, a serem declarados ou enunciados. Note-se que, nestes
478 478
“D’une façon générale, l’idée d’un droit “théorique”, conçu comme une capacite à agir,
susceptible d’être ou non reconnue et exercée, est une absurdité ou une mystification.” BALIBAR,
Etienne. Spinoza et la politique...pp. 73/74
479
“... la notion de droit ne se définit pas, au départ, en rapport avec celle de devoirs. Pas plus que
la puissance qu’elle exprime, elle n’a originairement de “contraire” ou de “contrepartie”. Mais elle
a nécessairement des limites de fait...” BALIBAR, Etienne. Spinoza et la politique...p.74
480
“Spinoza nega qualquer registro da tradição transcendente do jusnaturalismo e do
contratualismo pois, ao associar o direito à potência, indica que não existe direito que não se
exerça, pois toda potência é, necessariamente, plena e atual. (...) Da mesma maneira, não há um
conjunto abstrato de direitos a ser declarado ou enunciado, como faz acreditar o jusnaturalismo.
Qualquer direito somente existe em concreto, materialmente atrelado a seu exercício e à sua
efetivação.” GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte...p. 139
481
Dissemos que a prática política da declaração de direitos ocorre em ocasiões muito precisas. De
fato, na modernidade, encontramos declarações de direitos em situações revolucionárias: as
revoluções inglesas de 1640 e 1688; a independência norte-americana; a Revolução Francesa de
1789; a Revolução Russa de 1917. Também encontramos a declaração de direitos no período
posterior da Segunda Guerra Mundial, isto é, ao fenômeno do totalitarismo nazista e fascista, que
conduzem à Declaração dos Direitos Humanos de 1948. (...) tais declarações ocorrem nos
momentos de profunda transformação social, quando os sujeitos sociais tem consciência de que
estão criando uma sociedade nova ou defendendo a sociedade existente contra a ameaça de sua
extinção.” CHAUÍ, Marilena. “Direitos humanos e medo” in Fester, Antonio Carlos Ribeiro.
Direitos humanos e..., São Paulo: brasiliense, 1989, pg. 16
210

documentos históricos, o que está em jogo sempre é a declaração de direitos que


já existiriam por si, tais documentos tem por função declarar e não constituir tais
direitos considerados naturais dos homens.

Pois bem, não se coaduna com a concepção espinosana acerca do


direito natural a ideia de um conjunto abstrato de direitos, inerentes a todos os
homens de forma igualitária, que podem, ou não, ser objeto de uma declaração e
efetivação. Além do que já destacamos acerca do caráter sempre atual dos direitos
em Espinosa, a afirmação, por exemplo, de que “todos os homens nascem livres e
iguais em direitos” não encontra qualquer consonância com a concepção
espinosana de direito natural. A medida do direito natural de um indivíduo é sua
potência de agir, e essa é necessariamente singular. As potências individuais são
necessariamente desiguais e também o serão os direitos, a não ser que se
estabeleça, entre os indivíduos, relação tal que os torne, em alguma medida,
iguais482.

Por fim, dissemos que Espinosa recusa todos os fundamentos


transcendentes do direito natural, o fundamento ontológico do direito natural
espinosano é a própria ordem de produção imanente da natureza. É a mesma
imanência absoluta que determina que o conatus individual é expressão da
potência da natureza toda que determina, em Espinosa, que o direito natural de
cada indivíduo nada mais é que uma parte, uma expressão, do direito, ou potência,
da natureza inteira, ou seja de Deus.

Neste sentido, diz nosso filósofo:

Sabendo, portanto, que o poder pelo qual existem e agem os seres da


Natureza é o próprio poder de Deus, conhecemos facilmente o que é o
direito natural.
Pois que, com efeito, Deus tem direito sobre todas as coisas, e que o direito
de Deus não é senão o próprio poder de Deus considerado na sua liberdade
absoluta, todo ser na Natureza tem da Natureza tanto direito quanta
capacidade tem para existir e agir: a capacidade pela qual existe e age

482
“Comprenons donc que le droit de chacun est toujours une partie de la puissance de toute la
nature: celle qui lui permet d’agir sur toutes les autres parties. En conséquence la mesure du droit
est aussi celle de l’individualité; (...) Comprenons également que la notion de droit correspond
uniquement à une actualité, et par conséquent à une activité. Ainsi une formule comme “les
hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits” n’aurait-elle ici aucun sens. Le fait est
que, dans la pratique, les homes ont de puissances inégales, sauf si quelque rapport de puissances
intervient pour les égaliser (un certain type d’Etat)”. BALIBAR, Etienne. Spinoza et la
politique…p.73
211

qualquer ser da Natureza não é outra senão o próprio poder de Deus, cuja
liberdade é absoluta. Tratado Político, Cap. II, § 3º

Espinosa desenvolve assim uma concepção absolutamente singular do


direito natural, equiparando-o à potência de cada indivíduo de buscar o que lhe
pareça útil ao ser esforço por perseverar na existência. Uma concepção
materialista do direito onde só existe direito se este se exerce, só existe direito se
este encontra suas condições de atualização. Inúteis são as declarações bem
intencionadas, falácia é o recurso a valores abstratos, em Espinosa só existe
direito se existe potência atual para exercê-lo.

3.3.2
Estado de natureza

Já vimos que nosso filósofo fala, em seu TTP, em um pacto social


fundante do político, apenas para esvaziá-lo de seu sentido, encontrando, já com a
Ética, a mecânica afetiva que lhe permite dispensar esta figura no seu TP. Já
vimos, também, que nosso filósofo subverte a noção de direito natural para
conservá-la como potência atual, que expressa a essência de todos os indivíduos.
Da mesma maneira, o uso do termo estado de natureza em Espinosa não nos
permite aproximar, de imediato, o filósofo holandês da tradição contratualista,
pois, mais uma vez, estamos diante de um conceito diverso daquele afirmado pela
tradição jurídica hegemônica acerca do termo e do seu uso pelos contratualistas
clássicos.

No pensamento jurídico hegemônico, o termo estado de natureza se


refere a um estado prévio à constituição do campo político, um estado hipotético
onde não existiria o pacto social fundante do campo político, e os indivíduos
viveriam as consequências da plenitude do exercício de seus direitos naturais. Já
em Espinosa, o estado de natureza não é necessariamente prévio à constituição do
campo político, não é o campo do exercício pleno dos direitos naturais, nem tão
pouco tem nada de hipotético, podendo verificar-se em qualquer momento em que
o medo, a discórdia ou a guerra esgarce as relações sociais, ao ponto de uma
sociedade caracterizar-se mais pela solidão que pela experiência do comum.

Analisamos, em nosso capítulo 2, item 2.3, as características do estado


natural hobbesiano e como este se diferencia do que Espinosa entende pelo
212

mesmo termo. Visitaremos agora o pensamento de outro contratualista clássico,


John Locke, na busca por outras características do conceito de estado de natureza
no contratualismo moderno, capazes de assinalar a anomalia espinosana, visando
demonstrar a distância que separa nosso autor do pensamento jurídico
hegemônico acerca da noção de estado de natureza.

Cabe aqui destacarmos a ressalva acerca dos limites de nossa análise


colateral do pensamento deste autor clássico do contratualismo. Não é objeto
central de nosso trabalho discorrer longamente acerca do conceito de estado de
natureza em Locke, nosso objetivo ao visitar tal autor restringe-se a demonstrar as
principais características do seu estado de natureza, de forma a marcar a distância
que se estabelece entre este conceito lockeano e o mesmo termo quando utilizado
pelo pensamento de Espinosa. Deste modo, assumimos os riscos da brevidade de
nossa análise, já prevenindo o leitor da necessária incompletude de nosso estudo.

John Locke parte do mesmo pressuposto hobbesiano da precedência


do indivíduo à sociedade: os homens se constituem e são dotados de direitos,
mesmo na ausência da sua organização em sociedade483. No entanto, o estado de
natureza lockeano nada tem em comum com a guerra de todos contra todos,
afirmada por Hobbes. Para Locke os homens, em estado de natureza, são livres e
iguais uns aos outros, vivendo em relativa concórdia, guiados pela razão. Neste
sentido o autor diferencia expressamente estado de natureza e estado de guerra,
em seu Segundo tratado sobre o governo civil:

E nisto temos a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de


guerra que, muito embora alguns tenham confundido, estão tão distantes um
do outro quanto um estado de paz, boa vontade, assistência mútua e
preservação está de um estado de inimizade, malícia, violência e destruição
mútua. Quando os homens vivem juntos conforme a razão, sem um superior
comum na Terra que possua autoridade para julgar entre eles, verifica-se
propriamente o estado de natureza. Todavia, a força, ou o desígnio
declarado de força contra a pessoa de outrem, quando não existe qualquer
superior comum sobre a terra a quem apelar, constitui o estado de guerra484

483
“Em oposição à tradicional doutrina aristotélica, segundo a qual a sociedade precede ao
indivíduo, Locke afirma ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade e do
Estado. Na sua concepção individualista, os homens viviam originalmente num estágio pré-
político, caracterizado pela mais perfeita liberdade e igualdade, denominado estado de natureza.”
Almeida Mello, Leonel Itaussu. “John Locke e o individualismo liberal” in WEFFORT, Francisco
de (org.), Os Clássicos da política, São Paulo: Ática, 1998, pg.84
484
Locke, John. Two treatsises of civil government, London: Everyman’s library, 1966, aput
WEFFORT, Francisco de (org.), Os Clássicos da política, São Paulo: Ática, 1998, pg.91
213

A descrição Lockeana do estado de natureza afirma a existência de


direitos naturais, como a liberdade e a igualdade, que já estariam presentes no
estado de natureza, bem como a razão como critério de existência e manutenção
destes direitos, mesmo na ausência da sociedade civil. Uma característica
marcante do autor é a previsão, como direito natural já presente no estado de
natureza, do direito de propriedade, tido como decorrência necessária do trabalho
de cada indivíduo. A propriedade móvel e imóvel seria, assim, um direito que
precede e é superior à constituição do Estado, que é fundado pelo pacto social,
principalmente para garanti-lo dos eventuais conflitos e inseguranças do estado de
natureza485.

Tido como o pai do liberalismo486, Locke afirma que o estado de


natureza já é constituído por indivíduos livres, iguais e proprietários. Assim, o
pacto social fundante do político não seria, portanto, um pacto de sujeição, em
que homens aterrorizados aceitam um poder absoluto, mas um pacto de
consentimento487 visando a segurança mútua488. O estado de natureza de Locke é a

485
A concepção jusnaturalista de Locke, sua consagração do direito de propriedade como direito
natural e sua concepção do estado civil como resultado do consentimento dos cidadãos, fizeram do
autor uma forte influência nas declarações de direitos das duas revoluções burguesas que se
seguiram no século XVIII, a saber: a norte-americana de 1787 e a francesa de 1789. “A obra
política de John Locke teve uma influência considerável na intelectualidade europeia. Voltaire será
um seu ardente propagandista. Sua clareza, sua concisão, mas também sua moderação e sua
preocupação com a experiência comum fizeram dela o instrumento por excelência da luta contra a
tirania religiosa e política. As duas declarações dos direitos do homem – a norte-americana, de
1787, e a francesa de 1789 – inspiram-se diretamente nessa obra.” CHÂTELET, François et alli,
História das ideias políticas, Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2000, pg.60
486
“Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à propriedade constituem
para Locke o cerne do estado civil e ele é considerado por isso o pai do individualismo liberal”
Almeida Mello, Leonel Itaussu. “John Locke e o individualismo liberal” in WEFFORT, Francisco
de (org.), Os Clássicos da política, São Paulo: Ática, 1998, pg.88
“Com o Segundo tratado do governo civil (1690), John Locke apresentou a fórmula liberal do
Estado moderno, potência soberana e legisladora e unidade de uma multiplicidade de ‘súditos
francos’, assim como HOBBES – quarenta anos antes – apresentara sua fórmula autoritária.”
CHÂTELET, François et alli, História das ideias políticas, Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2000,
pg.60
487
Escapa aos nossos objetivos o estudo dos termos do contrato social proposto por John Locke,
nos limitamos a indicar a importância deste autor no que concerne ao tema dos limites ao poder e o
direito de resistência, bem como da tolerância religiosa, remetendo o leitor, sobre o tema, a leitura
da obra do próprio autor em Segundo tratado sobre o governo civil .
488
“O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato Hobbesiano. Em HOBBES, os
homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual, visando a preservação de suas vidas,
transferem a um terceiro (homem ou assembleia) a força coercitiva da comunidade, trocando
voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã.
Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam
livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que
possuíam originariamente no estado de natureza.” Almeida Mello, Leonel Itaussu. “John Locke e
214

convivência pacífica, temperada pelas leis da razão, que somente leva à


constituição do estado civil pela necessidade de garantir o cumprimento das
promessas, a resolução dos conflitos, a segurança contra invasões externas e a
punição dos crimes. Para o autor inglês, os direitos naturais já existem e exercem-
se no estado de natureza onde, mesmo na ausência de uma autoridade comum,
guiados pela razão, os homens são livres, iguais e proprietários.

O estado de natureza, em Espinosa, não encontra nenhuma relação


com o otimismo de Locke. Nosso filósofo não enuncia a concórdia entre os
homens levados pela razão, ainda que ausente um poder político, nem acredita que
os homens possam ser livres e iguais na ausência de um Estado que venha instituir
leis comuns. Mais que isso, Espinosa afirma que os homens, a maior parte do
tempo, não são guiados pela razão, e que, deixados apenas ao sabor do direito
natural, desconhecem as noções de justo e injusto, virtude e pecado, moral ou
imoral.

Guiados pela imaginação e pela força das paixões os homens podem


ser contrários uns aos outros. É nesta hipótese levada ao seu extremo que nosso
filósofo encontra a noção de estado de natureza. O estado de natureza espinosano
não é o universo da efetivação racional de direitos naturais inerentes ao ser
humano. Pelo contrário, o estado de natureza espinosano é o universo das ideias
imaginativas, da discórdia das paixões tristes, do medo e da própria inviabilidade
da expressão do direito natural489.

Longe da concepção lockeana de direitos naturais inatos à vida, à


liberdade e à propriedade, que já estariam presentes mesmo na inexistência da
sociedade civil, já vimos que o direito natural em Espinosa é a própria potência de
cada indivíduo, no seu esforço por perseverar na existência. Assim, na ausência
do direito civil, imerso na imaginação, o estado de natureza se caracteriza pelas
relações mais precárias entre os homens, pela constante desconfiança, medo e

o individualismo liberal” in WEFFORT, Francisco de (org.), Os Clássicos da política, São Paulo:


Ática, 1998, pg.84
489
“Astúcia, medo, ódio, vingança, inveja habitam o estado de natureza, fazendo de todos inimigos
de todos, todos temendo a todos segundo o arbítrio e a potência de cada um. Não havendo justiça
nem lei, não há a cláusula jurídica pacta sunt servanda (“os pactos devem ser observados”) e todo
compromisso pode ser rompido a qualquer momento, se percebe que há mais vantagem em
quebrá-lo do que mantê-lo e se tiver força para rompê-lo sem dano maior do que o de mantê-lo.
(...) A marca do estado de natureza é a impossibilidade de efetuar o esforço de conservação no ser
e, portanto, tal estado não é a realização do direito natural e sim obstáculo a esse direito.” CHAUÍ,
Marilena. “A instituição do campo político” em Política em Spinoza...p.162
215

discórdia, pois, cada um buscando apenas o que lhe pareça útil individualmente,
todos acabam por temer-se mutuamente, desfazem-se os laços do comum, e o
direito natural individual é reduzido à mera abstração, separado das condições
materiais de sua atualização.

De início, cabe destacar que, como já vimos, Espinosa não comunga


do individualismo lockeano, para nosso filósofo o homem só constitui a sua
individualidade em sociedade, para Espinosa a subjetividade é necessariamente
intersubjetividade. Assim, o estado de natureza espinosano não pressupõe
indivíduos atomizados, isolados, que precedem o social. O estado de natureza em
Espinosa se caracteriza por uma forma específica e triste de constituição de
relações sociais, a sociedade constituída no medo, na desconfiança e na
discórdia490.

Ausente a constituição do comum, uma sociedade em estado de


natureza é aquela em que, mergulhados nas paixões e na imaginação, os homens
não constituem laços de amizade ou respeito mútuo, em que a busca pelo útil
individual entrava a própria expressão do direito natural de cada um, uma
sociedade em que, como nos diz Marilena Chaui: “todos podendo tudo (visto não
haver leis determinando o permitido e o proibido), na realidade ninguém pode
coisa alguma.”491

Espinosa, também ao contrário de Locke, não entende o estado de


natureza como uma realidade histórica que tenha se efetivado num momento pré-
político, ou que seja a origem de um processo evolutivo rumo ao estado moderno.
Qualquer ocasião histórica de mudança violenta nas instituições de um Estado,

490
“Na verdade não se trata de pensar que um dia o ser humano chegou a se encontrar em um
estado de total solidão, o estado de natureza, em que não havia qualquer regra de convivência ou
qualquer poder instituído. Spinoza não concebe o ser humano senão entre os demais seres
humanos. A experiência comprova que sempre houve sociedades, onde quer que existissem seres
humanos, de modo que o estado de natureza e o estado civil se diferem em razão da intensidade de
determinados afetos que se experimentam em cada uma dessas formas de expressão da potência
humana coletiva. Essa é a chave para a devida intelecção do estado de natureza e do estado civil:
os afetos.” GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência... p. 146
491
“Em estado de natureza, diz Espinosa, o direito natural é uma abstração. Em sentido
espinosano, abstração não significa hipótese lógica ou idealidade sem correspondente factual, mas
tudo quanto se encontre separado das condições que permitem sua realização, ou seja, abstrato
possui sentido ontológico. Em estado de natureza, o direito natural é abstrato porque se encontra
separado das condições de sua efetivação concreta, pois todos podendo tudo (visto não haver leis
determinando o permitido e o proibido), na realidade ninguém pode coisa alguma.” CHAUÍ,
Marilena. “Direito natural e direito civil em HOBBES e Espinosa” em Política em Espinosa...p.
297
216

uma revolução ou uma guerra externa, podem levar uma sociedade, que antes
estava organizada em estado civil, a encontrar-se em estado de natureza. O estado
de natureza, caracterizado pela falência dos laços sociais de constituição do
comum, pode constituir-se a qualquer tempo, em qualquer sociedade que se veja
conflagrada, em circunstâncias tais que somente paixões tristes acompanhem as
relações sociais492.

Nosso filósofo vai ainda mais longe e afirma que determinadas formas
de organização do político podem constituir-se em estado de natureza, ainda que
regidas por um direito civil e na vigência de um Estado. É o que Espinosa aponta
acontecer nos regimes tirânicos, onde somente o medo garante a obediência dos
cidadãos, reduzidos à condição de servos de um poder soberano. Voltaremos a
este tema no último item de nosso último capítulo, por ora destacamos, neste
sentido:

Se numa cidade os súditos não tomam as armas porque estão dominados


pelo terror, deve-se dizer, não que aí reina a paz, mas, antes, que a guerra aí
não reina. A paz, com efeito, não é a simples ausência de guerra, é uma
virtude que tem sua origem na força da alma, pois que a obediência (...) é
uma vontade constante de fazer o que, segundo o direito comum da cidade,
deve ser feito. Uma cidade, é preciso dizê-lo ainda, em que a paz é efeito da
inércia dos súditos conduzidos como um rebanho e formados unicamente na
servidão, merece mais o nome de solidão que o de cidade. Tratado Político,
cap. V, § 4º

O estado de natureza espinosano se caracteriza, pois, por


características afetivas, mais do que pela ausência de um direito civil. A “paz dos
cemitérios”, um regime de governo sustentado no medo, na tirania e na opressão,
não caracteriza tanto um estado civil, mas sim o estado de natureza. Seja pela
violência explícita de uma revolução ou uma guerra, seja pela silenciosa opressão
dos tiranos, onde quer que as relações constituintes da multidão abandonem o
universo do comum para emergirem no medo recíproco estaremos diante, não
mais de uma cidade, mas do estado de natureza, ou como diz nosso filósofo, da
experiência da solidão.

492
“ Proposons donc la réponse suivante: nul ne sait si l’humanité, à l’origine, a vécu à l’état de
nature ; mais bien des peuples doivent s’y trouver pendant le bref intervalle de temps qui sépare la
dissolution d’une société politique particulière et l’instauration, pas toujours immédiate, d’un
régime de remplacement ; état de transition, par conséquent, qui ne se réalise pas dans tous le cas,
mais lorsqu’il se réalise, est originel par rapport à la structure institucionelle qui lui succéde. »
MATHERON, Alexandre. Individu et communauté... p. 307
217

3.3.3

Direito civil

A saída do estado de natureza se dá pela constituição do comum. Se o


estado de natureza é o cenário do medo recíproco, da discórdia, da falência dos
laços sociais, o estado civil se constitui pela constituição de valores comuns como
o justo e o injusto, o certo e o errado: a constituição de leis comuns. Só com o
Estado, com a constituição do direito civil, é que se afirmam, no seio da multidão,
os valores que norteiam as relações sociais e asseguram o cumprimento dos
pactos, a estabilização das relações entre os indivíduos.

Sendo o direito natural a potência individual de perseverar na


existência, considerado per si, o direito natural não tem limites nem valores outros
além da utilidade para seu titular, no seu esforço em perseverar na existência.
Antes da instituição do estado não fazem sentido os critérios axiológicos de bom
ou mau, virtude ou pecado, justo ou injusto. Diz Espinosa: “Tal como o pecado e
a obediência estritamente tomada, assim também a justiça e a injustiça não podem
conceber-se senão no estado.”493

É com a constituição do campo político que faz sentido a constituição


de valores comuns a ordenar intrinsecamente as relações sociais. Já vimos que a
multidão não se constitui pela ação de nenhuma força transcendente, mas pelas
relações afetivas que acompanham necessariamente as relações de composição
entre os indivíduos. Da mesma forma, os valores comuns e as leis comuns não são
o resultado de nenhuma instituição transcendente: o direito civil é o direito natural
da multidão494.

O direito civil é a expressão imanente das relações de composição


constituintes da multidão. As leis comuns são expressões imanentes da própria

493
TP, capítulo II, parágrafo 23
494
“Se a multidão é de fato um conceito da maior importância na sua [de Espinosa] filosofia, é
porque ela permite pensar o direito como expressão e ordenação da coexistência de uma
multiplicidade de indivíduos, cada um deles com seu direito natural. Na medida em que é
expressão, ou mais espinosanamente, modificação, o direito conserva consigo a sua causa
imanente que é a multidão. E da mesma forma que a substância é causa imanente dos modos, a
potência da multidão é causa imanente do direito comum.” Aurélio, Diogo Pires, “Introdução” in
Espinosa, Baruch. Tratado Político, São Paulo: Martins Fontes, 2009, pg. LXIII
218

potência da multidão, no seu esforço por conservar suas relações constituintes.


Deixados apenas ao sabor de suas inconstantes paixões, os homens dificilmente
estabeleceriam relações duradouras e previsíveis, os pactos seriam instáveis, se
deixados ao vento das palavras, a constituição do comum seria precária e instável.
Para garantir alguma estabilidade às relações sociais, e um grau de previsibilidade
e segurança das condutas, o direito civil estabiliza os valores de justo e injusto, e
norteia as condutas com promessas de recompensas e ameaças de punição.

Espinosa ressalta que, na ausência de qualquer coerção externa, os


homens obedecem apenas ao seu desejo pelo que lhes pareça útil ao seu esforço
por perseverar na existência. Guiados apenas pelo seu direito natural individual,
imersos nas paixões e na imaginação, não regulados por leis comuns, nada poderia
coagir um indivíduo a cumprir uma promessa ou comportar-se conforme afirmado
em suas palavras, se tal conduta tivesse se tornado para ele mais prejudicial do
que útil. A todo instante os homens são movidos pelo desejo e uma palavra
empenhada pode, por direito natural, ser quebrada facilmente, caso seu
cumprimento não pareça mais útil àquele que a empenhou495.

Neste cenário, uma das importantes funções do direito civil é


justamente garantir a previsibilidade de determinadas relações. As leis comuns,
como expressões imanentes das relações constituintes da multidão, vem assegurar
que os pactos passem a ser cumpridos, e não deixados a mera aleatoriedade das
palavras. É o princípio jurídico fundamental do pacta sunt servanda que o direito
civil vem garantir. O direito natural da multidão é esforço por fazer perseverarem
as relações sociais, e as leis comuns expressam este esforço assegurando o
cumprimento dos contratos e a previsibilidade das condutas.

No entanto, não é pela razão que o direito civil vai regrar os


comportamentos. Já vimos que, frente aos afetos, a razão não tem qualquer poder.
Na Ética, Espinosa afirma que somente outro afeto mais forte e contrário pode

495
“O compromisso tomado verbalmente em relação a alguém de fazer ou, pelo contrário, de não
fazer tal ou tal coisa, quando se tem o poder de agir contrariamente à palavra dada, permanece em
vigor enquanto a vontade daquele que prometeu não se altera. (...) Portanto, se aquele que é por
direito de natureza deu próprio juiz julgou reta ou erroneamente (errar é próprio do homem) que o
compromisso tomado terá para si conseqüências mais nocivas que úteis e se considera em sua alma
que tem interesse em quebrar o compromisso, quebrá-lo-á por direito natural.” Tratado Político,
cap. II, parágrafo 12.
219

refrear uma paixão496. Assim, também o campo jurídico vai se inserir numa
mecânica afetiva própria, as regras de direito incidem sobre os afetos, e não no
campo racional. É através da mecânica afetiva das promessas de recompensas e
das ameaças de punição, da esperança e do medo, que o direito civil vai regular as
relações constituintes da multidão.

São princípios que exprimem o conatus e norteiam todos os homens: a


escolha de um bem no lugar de um mal, a escolha, entre dois bens, do maior; e
entre dois males a escolha do menor497. Mesmo o menor grau de racionalidade já
determina que os homens, na busca pelo útil individual, norteiem suas ações por
tais princípios. E, como somente um afeto contrário e maior pode refrear outro
afeto, cabe às leis comuns a constituição de uma dinâmica afetiva que torne, aos
cidadãos, mais vantajoso seguir seus preceitos e perseverar nas relações de
composição que constituem a sociedade, ao invés de responderem às suas paixões
individuais. Na dinâmica das promessas de recompensa e das ameaças de punição,
o direito civil trabalha com a mesma lógica afetiva do conatus individual de cada
um de seus constituintes. Sobre o tema Espinosa é explícito no TP:

Os direitos, contudo, não podem ser invencíveis a não ser que sejam
defendidos não só pela razão, mas também pelo afeto comum dos homens;
de outra forma, se estão apoiados só no auxílio da razão, sem dúvida são
fracos e vencem-se facilmente TP, capítulo X, parágrafo 9

Cabe ressaltar que Espinosa conserva, na sua concepção acerca do


direito civil, a afirmação da imanência absoluta que caracteriza sua ontologia e
seu pensamento político. As leis comuns não transcendem a potência da multidão,
mas são sua expressão imanente. O conatus da multidão é o esforço coletivo pela
conservação das relações de composição entre seus indivíduos constituintes, e
pela constituição do comum. O direito civil é expressão imanente deste esforço de
preservação do comum, do desejo de comunidade.

496
“ Mais especificamente, é porque nenhum afeto pode ser refreado a não ser por um afeto mais
forte e contrário ao afeto a ser refreado, e porque cada um se abstém de causar prejuízo a outro por
medo de um prejuízo maior. É pois, com base nessa lei que se poderá estabelecer uma sociedade,
sob a condição de que esta avoque para si própria o direito que cada um tem de se vingar e de
julgar o bem e o mal. E que ela tenha, portanto, o poder de prescrever uma norma de vida comum
e de elaborar leis, fazendo-as cumprir não pela razão, que não pode refrear os afetos, mas por
ameaças.” E IV, prop. 37, escólio 2.
497
E IV, prop. 65
220

É a afirmação da relação de imanência entre potência da multidão e


direito civil que nos permite afastar completamente a concepção espinosana
acerca do campo jurídico de qualquer pretensão positivista de compreensão do
direito. A afirmação de que é a partir da constituição do direito civil que se
instituem as noções de justo ou injusto, e a negação do jusnaturalismo poderiam,
numa análise precipitada, aproximar o pensamento espinosano do positivismo. No
entanto, um estudo mais atento deixa clara a distância intransponível que se
estabelece entre a concepção jurídica de nosso filósofo e qualquer corrente do
positivismo.

O positivismo, com sua pretensão cientificista, traz no seu âmago uma


concepção transcendente da ordem jurídica que é totalmente inconciliável com o
conceito espinosano de direito civil como expressão imanente da potência da
multidão. Para ilustrar as divergências fundamentais entre o cerne do pensamento
positivista e o pensamento jurídico de Espinosa visitaremos alguns traços mais
significativos da teoria daquele que pode ser considerado o mais importante autor
do positivismo moderno: Hans Kelsen.

Cientes dos riscos da necessária brevidade de nossa análise colateral


do pensamento de Kelsen, nos cabe a ressalva de que, dentro dos limites do nosso
trabalho, abordaremos apenas alguns aspectos do positivismo jurídico, que já são
suficientes para ilustrar a distância entre esta escola do pensamento jurídico
moderno e a concepção espinosana do direito. Destacamos, ainda, que a opção
pela análise do pensamento de Kelsen deixa de lado, obrigatoriamente, a análise
de diversos outros autores filiados a esta concepção do jurídico, sendo certo que
aqui destacamos sua existência e importância, porém, limitamos nosso estudo ao
pensamento do autor austríaco, dados os limites deste trabalho, e a centralidade do
pensamento Kelseniano na construção do positivismo jurídico498.

Não é à toa que a principal obra de Hans Kelsen é intitulada Teoria


pura do direito. A ambição positivista é conceber o direito como ciência
autônoma, existente per si, independente de qualquer outra ordem de valores,
qualquer outra disciplina do conhecimento, ou qualquer outra lei de

498
Sobre o tema do positivismo jurídico, seus pressupostos históricos, principais características e
teorias remetemos o leitor a: BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do
direito, São Paulo: Ícone, 1995
221

funcionamento que não lhe seja absolutamente intrínseca. A ciência do Direito


seria, então, o conhecimento de uma ordem independente da moral, da religião, da
sociologia e da política: a ordem normativa499. A transcendência do jurídico se
afirma logo na pretensão positivista de compreensão do direito como ciência
alheia a interferências do campo social e político

Neste sentido, Kelsen destaca que o Direito não estaria sujeito à


mesma ordem de causalidade dos fenômenos naturais, mas teria sua própria e
exclusiva ordem de funcionamento: a ordem de imputação. Enquanto a natureza
funciona pela ordem de causalidade necessária, onde de uma causa segue
necessariamente seu efeito, a ciência do Direito teria seu funcionamento ordenado
pelo princípio da imputação, onde de uma causa deve seguir determinado
efeito500. Ou seja, de um ato ilícito qualquer devem seguir as consequências
imputadas pelas normas, a penalidade prevista pelo ordenamento jurídico501.
Enquanto a natureza seria o universo do ser, ao direito é reservado o campo do
deontológico, do dever ser.

Essas duas características da concepção positivista do direito já seriam


o bastante para evidenciar o caráter transcendente da compreensão Kelseniana de
uma teoria pura do direito. A ideia de uma ciência que visa compreender o direito
como absolutamente separado de qualquer análise do social e do político é
sintomática da pretensão de compreender o direito como ordem transcendente ao
499
“KELSEN distingue o campo da política, cuja tarefa é valorar e produzir normas, do campo da
ciência do Direito, cujo propósito é o de elaborar um conhecimento que explique o fenômeno
normativo...” SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. Lúmen Júris, Rio de janeiro, 2006,
p. 61.
500
“Na descrição de uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é aplicado aquele outro
princípio ordenador, diferente da causalidade, que podemos designar como imputação.” E ainda:
“A imputação que se exprime no conceito de imputabilidade é a ligação de uma determinada
conduta, a saber, de um ilícito, com uma conseqüência do ilícito. (...) É evidente que a ciência
jurídica não visa uma explicação causal dos fenômenos jurídicos: ilícito e conseqüências do ilícito.
Nas proposições jurídicas pelas quais ela descreve estes fenômenos ela não aplica o princípio da
causalidade mas um princípio que – como mostra esta análise – se pode designar por imputação.”
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, Martins Fontes, São Paulo, 2000, pp. 87 e 91
501
“Imputação e causalidade exercem uma semelhante função na produção do conhecimento.
Consideram-se princípios análogos de intelecção do real, mediante os quais a construção de
proposições jurídicas ou de enunciados fáticos se estabelece. O princípio da causalidade permite
associar uma certa causa a seu efeito, instituindo-se um enunciado circunscrito ao mundo dos
fatos. Por sua vez, o princípio da imputação também exerce a função de conectivo intelectual entre
uma conduta e sua possível consequência prevista pela ordem jurídica. Um enunciado fático se
descreve da seguinte maneira: se A ocorre, B necessariamente decorre de A. (...) Já uma
proposição jurídica se apresenta nos seguintes termos: se A ocorrer, B deve seguir de A. por
exemplo: cometido um homicídio simples, ao autor deve ser imputada uma pena, de acordo com o
Código Penal, de 6 a 20 anos de reclusão.” GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política
em Spinoza... pg.300/301
222

campo político. Ademais, a compreensão do funcionamento do ordenamento


jurídico segundo uma ordem particular de imputação coloca o direito num
universo do dever ser, distinto da ordem causal da natureza.

Mas é, ainda, uma terceira característica do pensamento kelseniano


acerca do direito que vai evidenciar mais claramente seu caráter transcendente e
sua distância da concepção espinosana a respeito do direito civil. Para Kelsen, o
ordenamento jurídico tem sua própria ordem de elaboração das normas e critério
de validade das mesmas. Para o positivista austríaco uma norma jurídica não tira
sua validade de nenhuma correspondência com anseios populares ou de qualquer
ligação com a realidade sócio-política onde será aplicada. Kelsen estabelece a
distinção entre validade e eficácia502 para afirmar que cada norma jurídica tira seu
fundamento de validade de outra norma jurídica que lhe seja superior, num
escalonamento piramidal do ordenamento jurídico, que encontra em seu cume
uma transcendental norma fundamental503.

O direito se inscreve totalmente na transcendência quando o


pensamento positivista distancia as normas jurídicas de sua gênese e efetividade
sócio-políticas, para encastelá-las em um critério de validade restrito ao campo
normativo.504 Na transcendência positivista, uma norma pode ter validade no
ordenamento jurídico, ainda que seu conteúdo não tenha qualquer
correspondência com os desejos e valores da maior parte da sociedade e sua
observância seja pequena.

A construção kelseniana de uma ciência do direito positivista não faz


qualquer sentido quando defrontada com a imanência absoluta afirmada por

502
“Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente de que se diz quando se afirma que
ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que entre vigência e eficácia possa existir uma
certa conexão.” KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.São Paulo: Martins Fontes, 2000,
pg.11/12
503
“O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma.
Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente
designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma
inferior.” KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.São Paulo: Martins Fontes, 2000, pg.215
Escapa aos limites deste trabalho o debate acerca da norma fundamental em KELSEN. Sobre o
tema: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.São Paulo: Martins Fontes, 2000, cap.V. E ainda:
GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza...pg.304/305
504
“Para ele (Hans KELSEN), a transcendência é máxima, absoluta. A especificidade do direito
consiste em regular sua própria produção.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte... p.13.
223

Espinosa505. Direito, para nosso filósofo, é potência e o direito civil é o direito


natural da multidão. Indissociável do esforço pela preservação das relações de
composição entre os indivíduos que constituem a multidão, o direito civil em
Espinosa está, necessariamente, ancorado no que há de comum entre os homens,
comum que se constitui nas relações sociais e políticas, expressão imanente do
desejo de comunidade.

Se Espinosa afirma que somente o Estado determina as noções de


justo e injusto, certo e errado, isto não quer dizer uma imposição transcendente de
normas sobre uma multidão desordenada. Ao contrário da pretensão positivista,
em Espinosa, o direito comum é expressão das relações que constituem o campo
social e político. Os valores afirmados pelo direito civil tem sua gênese na
potência da multidão, as leis comuns apenas afirmam o que é expressão imanente
do direito natural da multidão. O comum é causa imanente do direito civil e não o
contrário.

Por fim, ainda sobre o pensamento jurídico de Espinosa, nos cabe


apenas uma observação sobre a relação entre o direito civil da multidão e o direito
natural individual de seus constituintes. Já abordamos este tema em nosso capítulo
dois quando, ao tratarmos da relação de medo que se estabelece entre soberano e
seu povo, vimos como o direito natural é, ao mesmo tempo, medida, guardião e
ameaça do direito civil. Cumpre-nos agora destacar que, frente à realidade
aterradora do estado de natureza, o direito civil vem ao mesmo tempo assegurar as
relações constituintes da multidão e dar condições materiais de atualização aos
direitos naturais individuais de seus constituintes.
No estado de natureza, paixões tristes são os únicos afetos comuns
entre os homens, e o direito natural de cada um é mera abstração frente a realidade
de medo, insegurança e desconfiança recíprocos. É o direito civil que vai
assegurar condições materiais para o exercício dos direitos naturais individuais.
Em sua já mencionada Carta 50, endereçada ao seu amigo Jelles, Espinosa afirma:

505
“O positivismo spinozista é puramente aparente, (...) a relação multitudo-direito civil nega a
separabilidade dos dois termos e reporta o dualismo à identidade. (...) Ou seja, nega as próprias
condições nas quais é possível falar de positivismo jurídico: condições que prevêem a
transcendência do valor da lei dentro do processo de produção jurídica, que supõem uma orgânica
potência da normatividade enquanto tal – separada, portanto, eminente. O positivismo legalista não
ocorre em Spinoza porque não pode ocorrer, porque é contraditório e aberrante em relação a todas
as condições do sistema e à sua forma metafísica. O justo é um processo constituído pela
potência.” NEGRI, Antonio. Anomalia Selvagem... p. 253
224

“No que respeita à política, perguntas qual a diferença entre mim e Hobbes.
Consiste nisso: conservo o direito natural sempre bem resguardado.”
Ao contrário de Hobbes506, não é apenas como resíduo não pactuado,
passível de exercício no silêncio da lei, ou como virtualidade extrema de
resistência que nosso filósofo identifica o exercício do direito natural na sociedade
civil. Direito natural é conatus, esforço em perseverar na existência, e este se
expressa mais e melhor sob as leis comuns que na solidão do estado de natureza.
O direito civil não substitui o direito natural, mas, pelo contrário, garante as
condições materiais de seu exercício.
É impossível tornar-se livre com medo, a razão é o exercício do
comum, não da solidão, o conatus individual depende, para expressar-se, de
relações de composição com outros semelhantes a nós. Assim, o direito civil ao
garantir as relações de composição constituintes da multidão não é a alienação do
direito natural de cada um de seus constituintes, mas sim sua própria condição de
exercício. Direito civil e direito natural individual são interdependentes507. O
desejo de alegria, o desejo de liberdade são, necessariamente, desejo de
comunidade.

506
Sobre a relação entre direito natural e direito civil em HOBBES remetemos o leitor a nosso
capítulo 2, item 2.3
507
“O direito civil e o direito natural, portanto, são interdependentes, na medida em que as
potências singulares, que são a base constitutiva do estado civil, em razão de seu agenciamento
formam a potência da multidão, só se efetuam concretamente no interior do estado civil.”
GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência...p. 158
4

A imaginação no poder – obediência política e servidão

Vimos que a constituição do sujeito político multidão é também a


constituição de uma potência coletiva que se organiza em poder político,
imperium, e cujo direito natural se organiza em leis comuns, um direito civil que é
expressão imanente de suas relações constitutivas. No entanto, ao mesmo tempo
em que a potência coletiva da multidão se expressa de forma imanente como
poder político e leis comuns ela é, também, um coletivo de ideias, hábitos, afetos,
a multidão, diz Espinosa, é conduzida “como que por uma só mente”508.
Esse imaginário coletivo, que une a multidão em ideias comuns, uma
língua comum, hábitos comuns, uma história comum, constitui também um
temperamento da multidão, o ingenium da multidão mais apta à liberdade ou à
servidão, mais livre ou mais obediente. Já vimos que o poder político é expressão
imanente da potência da multidão, o imperium tem sua causa imanente na
obediência da multidão, obediência entranhada na imaginação coletiva, inscrita no
ingenium da multidão.
O poder tem algo de tácito, de consentimento, e, assim, a construção
da liberdade política ou da servidão está nas mãos da multidão: é o temperamento
de um povo livre que sustenta um Estado livre e seguro, e, da mesma forma, o
destino de todo tirano está na obediência servil de seus súditos. Para Espinosa, a
servidão política não é imposta por um poder político que se afirme transcendente,
mas se inscreve nos hábitos, símbolos, crenças e histórias comuns de uma
multidão acostumada a servir. Antes de ser a usurpação do imperium para fins
particulares, a tirania se sustenta no imaginário coletivo da multidão, quando seu
ingenium é dominado pelo medo que a inclina à obediência cega.

508
TP, capítulo II, parágrafo 16
226

4.1

O ingenium da multidão: o comum nas mentes e nos corpos

A multidão é um indivíduo constituído pelas relações de composição


entre os homens que se associam, não em função de um poder transcendente ou da
ilusão de uma vontade livre contratante, de um pacto social, mas pela mecânica
afetiva da imitação afetiva. Já vimos em nosso terceiro capítulo que não é uma
decisão exclusivamente racional (como nas teorias contratualistas), mas a mescla
de elementos racionais e um movimento passional e imaginativo que constitui os
laços de sociabilidade que unem e mantém unida a multidão. E com a constituição
deste sujeito político se constitui também uma potência coletiva, um direito
natural da multidão inteira, que nada mais é do que o esforço em fazer
perseverarem na existência as relações de composição que constituem este
indivíduo composto.
Além de poder político, a potência da multidão se expressa também
como um direito civil, a instituição de leis comuns, que são a expressão imanente
das próprias relações de composição entre os indivíduos constituintes da multidão.
Conforme analisamos no nosso item 3.3, c) precedente, trabalhando numa
mecânica afetiva de ameaças de punições e promessas de recompensas, o direito
civil se inscreve no cerne da realidade passional da multidão para assegurar a
sociabilidade, assegurar o cumprimento dos pactos e estabelecer os critérios de
certo e errado, justo e injusto, que organizam a sociedade política, dando
estabilidade e previsibilidade às relações sociais constituintes da multidão.
Porém, se a potência da multidão é poder político e direito civil ela se
expressa, ainda, em um conjunto de práticas, ideias e afetos que são comuns a
todos os seus indivíduos constituintes, e costuram, no campo da imaginação e das
paixões, as relações de composição constituintes do sujeito político. Acompanha a
constituição do indivíduo composto multidão a constituição de um imaginário
coletivo, uma ordem de símbolos, ideias, hábitos, práticas, uma língua, uma
história, paixões e um temperamento próprios da multidão.
Se os indivíduos constituintes da multidão compartilham a obediência
a um mesmo imperium e a um mesmo direito civil, esses homens compartilham,
ainda, um ideário comum e afetos comuns que fazem da multidão um coletivo de
227

indivíduos conduzidos “como que por uma só mente” 509, um ingenium coletivo.
Se a multidão é sujeito político, ela tem uma subjetividade própria, um conjunto
de práticas, ideias e afetos comuns que determinam sua individualidade coletiva e
inscrevem, na imaginação de cada um de seus constituintes, traços do imaginário
coletivo510.
Sobre este tema cabe, logo de início, a ressalva da recusa espinosana
da transcendência. A imaginação que perpassa a multidão não é instituída por
qualquer poder transcendente, mas expressão das suas próprias relações
constituintes, de seu conatus511. Apesar dos mais diversos discursos da
transcendência se sustentarem na imaginação coletiva das multidões servis, é a
própria potência da multidão a causa imanente das ideias e afetos que constituem
seu imaginário coletivo, seja ele mais próximo da razão e, portanto, da liberdade,
ou mais povoado por ideias inadequadas e, portanto, mais servil, seja a multidão
mais unida e movida pela esperança ou pelo medo, pelo amor ou pelo ódio.
No campo afetivo já destacamos, no nosso item 3.1, c), a mecânica da
imitação afetiva que permite a Espinosa compreender a sociabilidade como
realidade imanente. Longe da ideia de um soberano que institua o campo social
através de um poder transcendente, e recusando a figura do cidadão contratante
que num cálculo racional de medo pactua a constituição da cidade por uma
transferência de direitos, o campo político em Espinosa é o terreno da experiência
do comum, a constituição de afetos comuns. Neste mesmo sentido, no campo
social espinosano os indivíduos constituintes da multidão compartilham práticas,
ideias e afetos comuns que são expressões imanentes dos laços que os unem.

509
TP, capítulo II, parágrafo 16
510
« C’est ainsi qu’à travers l’etude de l’Etat hèbreu peut se lire, dans la totalité de son sens, la
thèse spinoziste de la constitution du corps politique en fonction d’un système de significations
imaginaires. Car comme les hommes en général, abstraction faite de la société (...), chaque société
doit aussi, dans la représentation, définir son identité (c’est-à-dire son image propre) dans sa
différence avec autres société ; définir également (mais c’est la même chose) le sens de son
existence, son rapport au monde, aux autres (qu’il faut aussi signifier), et aussi son rapport à soi, à
ses besoins et ses désirs (rapport des hommes au sein de cette société et de tous à un ordre
symbolique commun qui unit chaque citoyen à une entité qui le dépasse et en laquelle se nouent
tous les fils de la logique des significations imaginaires et de l’identification...) » BOVE, Laurent.
Ob.cit. pg.201/202
511
« Le conatus de l’Etat, par lequel ce corps particulier commence d’exister, enveloppe doc un
imaginaire essentiel qui n’est (comme le Désir lui-même) manque de rien, imagination de rien,
mais puissance absolument positive de l’imaginaire, Nature naturante en quelque sorte, par
laquelle se constitue et s’institue un imaginaire naturé caractéristique d’une société particulière,
avec ses préjugés propes, sa langue, ses croyances, ses mouers, ses lois par lesquels se définit son
identité, son individualité singulière, son ingenium » BOVE, Laurent. Ob. Cit. Pg.252
228

A constituição histórica e política de uma multidão é, ao mesmo


tempo, causa e efeito deste ingenium coletivo, gênese e expressão imanentes das
suas relações sociais constituintes512. O imaginário coletivo acompanha a gênese
do social, que se constitui ininterruptamente na experiência afetiva que constitui a
própria multidão, conjunto de práticas, ideias e afetos que determina, e é também
determinado, pelo próprio imperium e pelas leis comuns da sociedade. Poder
político e direito civil exercem-se no e banhados pelo ingenium da multidão, todos
expressões imanentes da mesma potência coletiva.
Cumpre ressaltar, acerca da constituição do ingenium da multidão,
que, já o vimos, para Espinosa, a ordem e conexão das ideias na mente é a mesma
que a ordem e conexão das afecções no corpo513 e, portanto, à constituição de um
imaginário coletivo corresponde, também, a constituição de hábitos, práticas, ritos
comuns à multidão. Vale citar aqui a primeira proposição da Parte V da Ética:

É exatamente da mesma maneira que se ordenam e se concatenam os


pensamentos e as ideias das coisas na mente que também se ordenam e se
concatenam as afecções do corpo, ou seja, as imagens das coisas no corpo.514

A multidão, indivíduo composto pela relação de composição entre


indivíduos humanos, é uma multiplicidade de mentes e corpos. A potência
coletiva da multidão se expressa, portanto, tanto como ideias comuns que
perpassam as mentes de seus constituintes, quanto como práticas, gestos, hábitos
comuns, inscritos nos corpos daqueles que a constituem.
Assim, se a multidão constitui um imaginário coletivo de ideias,
histórias, afetos comuns, ela é também constituída por práticas, hábitos, ritos
comuns que são da ordem da extensão e não apenas do pensamento. Perpassam as
relações sociais formas de organização dos corpos, comportamentos, atos que
acompanham e exprimem uma ordem simbólica coletiva, constituintes do
ingenium da multidão, condutas que expressam, ao mesmo tempo em que
constituem, as relações sociais constituintes da multidão. O ingenium é

512
« si les peuples se distinguent les une des autres par leur plus ou moins grande aptitude à la vie
sociale, la responsabilité en incombe à leurs lois et à leurs moeurs – c’est-à-dire, d’une façon ou
d’une autre, au conditionnement historico-politique auquel ils ont été soumis au cours des âges. »
MATHERON, Alexandre. Le Christ et le salut des ignorant chez Spinoza, Paris : Aubier
Montaigne, 1971, pg.158
513
EII, proposição 7
514
EV, prop. 1
229

imaginação coletiva encarnada nas mentes e corpos dos indivíduos constituintes


da multidão.
Desde banais gestos de cumprimentos até formas de vestir e ritos
religiosos, o corpo é também locus de expressão do ingenium. Quando tratamos
do imaginário coletivo, daquilo de comum que acompanha a constituição da
multidão este é, necessariamente, também acompanhado por uma ordem de
hábitos e práticas que externalizam na extensão o comum que se constitui no
ideário.
Podemos citar como exemplo deste ingenium que se expressa nos
corpos dos indivíduos constituintes da multidão, o que já destacamos, em nosso
item 3.2, c.2), a respeito da distinção entre patrícios e plebeus no regime
aristocrático espinosano. No Tratado Político, o filósofo afirma que, numa
aristocracia, os patrícios devem usar um “determinado traje ou hábito singular,
pelo qual sejam reconhecidos”, devem ser cumprimentados por um “título
igualmente singular”, e os plebeus devem ceder-lhes o lugar515. Espinosa prevê
assim, no desenho institucional da aristocracia, uma explicitação corporal da
distinção política inerente ao sistema. O ingenium da desigualdade, próprio da
aristocracia, deve encarnar-se nos trajes singulares, formas de cumprimentos e
comportamentos também desiguais entre patrícios e plebe. A forma de
organização do imperium, e das leis civis, que asseguram o funcionamento do
regime aristocrático, são acompanhadas da constituição de um ideário e de
práticas comuns que expressam nas mentes e nos corpos da multidão a forma de
organização de sua potência coletiva.
Esta materialidade de um ingenium coletivo, afirmada por Espinosa,
como uma potência comum encarnada nos próprios corpos constituintes da
multidão, encontra ressonância no século XX na análise acerca do poder realizada
por Michel Foucault. Podemos fazer um paralelo entre a concepção espinosana do
ingenium como expressão corporal da potência da multidão e a concepção
foucaultiana acerca do poder disciplinar e do biopoder que se organizam a partir
do fim do século XVIII.
Se em Espinosa podemos destacar que o ingenium coletivo é também
conjunto de práticas, hábitos, ritos, é o comum encarnado nos corpos, ninguém

515
TP, cap. VIII, parágrafo 47
230

pensou o poder como inscrito na materialidade dos corpos tanto quanto


Foucault516. Não nos concerne aqui uma análise detalhada do pensamento
foucaultiano, o que certamente nos exigiria bem mais profundidade e atenção do
que os limites deste trabalho nos permitem. No entanto, nos interessa aproximar a
concepção espinosana do ingenium como constituição coletiva de práticas e
hábitos corporais, e o papel dos corpos nas relações de poder como entendidas
pelo autor francês. Algumas breves observações a respeito de parte do
pensamento foucaultiano podem nos ajudar a ilustrar até que consequências pode
conduzir-nos o entendimento do ingenium como prática corporal, e o exercício do
poder que não se limita à ordem das ideias, mas que se inscreve na própria
organização dos corpos constituintes da multidão no tempo e no espaço.
De início, cabe-nos defender a pertinência da aproximação entre os
dois autores, destacando que Foucault, assim como Espinosa, recusa qualquer
apelo à transcendência na sua compreensão das relações de poder. Embora não
seja tão corrente a busca por pontos de intercessão entre o pensamento espinosano
e aquele do autor francês, é Gilles Deleuze, em sua obra sobre Foucault, quem
destaca o caráter imanente da compreensão foucaultiana acerca do poder517. Se já
destacamos desde nosso primeiro capítulo, em diversas oportunidades neste
trabalho a compreensão da imanência absoluta defendida por Espinosa, vale
ressaltar aqui que também para Foucault o poder não é uma relação que organiza
“de cima pra baixo” a sociedade, mas constitui-se em relações de força que
permeiam o próprio tecido social em que se produzem de forma imanente.

516
Warren Montag atribui a ALTHUSSER um aproximação entre a imaginação em Espinosa e o
conceito de disciplina no sentido foucaultiano: “ Mais la double illusion d’un individu-sujet,
maître de lui-même et auteur de ses actions, n’est pas simplement un effet de l’imagination (le
premier des trois genres de connaissance d’après Spinoza), c’est également le centre d’un système
de superstition (avec ses appareils et ses pratiques - ALTHUSSER reconnaît en Spinoza le
premier à former le concept de discipline au sens de Foucault) qui détermine le peuple non
seulement à obéir aux prêtres et aux despotes, mais à vivre leur obéissance comme une forme de
liberté et à ne désirer rien d’autre que ce qui leur est commandé » MONTAG, Warren. Modernité
de Spinoza, extraits de la Préface de The new Spinoza, University of Minnesota Press, cool
« Theory out of bound » nº11, 1998, disponível em
http://hyperspinoza.caute.lautre.net/article.php3?id_article=968, acessado em 20/10/12 (grifo
nosso)
517
“Certamente, nada a ver com uma ideia transcendente, nem com uma superestrutura ideológica:
nada a ver tampouco com uma infra-estrutura econômica, já qualificada em sua substância e
definida em sua forma e utilização. Mas não deixa de ser verdade que o diagrama age como uma
causa imanente não-unificadora, estendendo-se por todo o campo social: a máquina abstrata é
como a causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relações; e essas relações de força
passa, “não por cima”, mas pelo próprio tecido dos agenciamentos que produzem” DELEUZE,
Gilles. Foucault, São Paulo: Brasiliense, 2005, pg.46 (Grifo nosso)
231

Assim, Foucault localiza no fim do século XVIII e início do século


XIX o nascimento de uma nova forma de poder, acompanhando as mudanças na
própria forma de organização social, da materialidade da riqueza e da forma de
produção518. Trata-se do que o autor francês chama de poder disciplinar519, um
poder que se materializa fundamentalmente na vigilância, controle e correção dos
comportamentos dos indivíduos, poder que se exerce substancialmente sobre os
corpos520.
Na sociedade disciplinar foucaultiana já não se trata mais de
compreender o corpo apenas como suporte para penas corporais ou suplícios, tão
comuns no regime feudal521, mas o corpo agora é matéria a ser moldada,
adestrada, controlada, distribuída em uma forma específica no espaço, utilizada
dentro de regimes próprios de distribuição do tempo522. A sociedade industrial
nascente, e a instalação e aceleração do capitalismo vem acompanhados de uma
nova disposição corporal dos indivíduos, educados desde a tenra idade nas escolas
518
“No século XVIII aparece uma forma de riqueza que é agora investida no interior de um novo
tipo de materialidade não mais monetária: que é investida em mercadorias, estoques, máquina,
oficinas, matérias-primas, mercadorias que estão para ser expedidas, etc. E o nascimento do
capitalismo ou a transformação e aceleração da instalação do capitalismo vai se traduzir neste
novo modo da fortuna se investir materialmente. Ora, essa fortuna constituída de estoques,
matérias-primas, objetos importados, máquinas, oficinas, etc., está diretamente exposta à
depredação. Toda essa população de gente pobre, de desempregados, de pessoas que procuram
trabalho tem agora uma espécie de contato direto, físico com a fortuna, com a riqueza. (...)Foi,
portanto, essa nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola que tornou
necessários novos controles sociais no fim do século XVIII.” FOUCAULT, Michel, A verdade e
as formas jurídicas, 3ª Ed. Rio de Janeiro: Nau, PUC-Rio, 2011, pg. 100/102
519
Limitamos nossa análise às práticas do poder nas sociedades disciplinares, porém, destacamos
que Gilles DELEUZE, dando continuidade à visão foucaultiana, propõe uma mudança nestas
sociedades a partir de meados do século XX e o surgimento de uma nova forma de organização do
poder, que daria origem a uma nova forma de organização social, chamada pelo autor de
sociedades de controle. Dados os limites e objetivos deste trabalho não abordaremos o tema
indicando apenas como bibliografia sobre o assunto: DELEUZE, Gilles. “post-scriptum sobre as
sociedades de controle” in Conversações, Rio de janeiro: Ed. 34, 2004, pg.219/226. Hardt,
Michael. “A sociedade mundial de controle” in Alliez, Eric (org) Gilles DELEUZE- uma vida
filosófica, Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000, pg. 357/372
520
“É uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e
contínua, em forma de controle de punição e recompensa e em forma de correção, isto é , de
formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas.” FOUCAULT, Michel, A
verdade e as formas jurídicas, 3ª Ed. Rio de Janeiro: Nau, PUC-Rio, 2011, pg. 103
521
Sobre os suplícios e penas corporais característicos do direito penal feudal europeu até o século
XVIII, remetemos o leitor à primeira parte de FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, 16ªed. Rio de
Janeiro: Vozes, 1997, pgs.09 a 57
522
“Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica: de uma massa
informe, de um corpo inapto, fez-se máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as
posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele,
dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo
de gestos (...) Encontraríamos facilmente sinais dessa atenção dedicada então ao corpo – ao corpo
que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças
se multiplicam.” FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir, 16ªed. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, pg.
117 (grifo nosso)
232

aos horários e distribuição espacial que se repetirão nas linhas de produção,


controlados pela vigilância e pelas punições que impõe a correção dos
comportamentos, imersos na disciplina capaz de adestrar seus corpos para
constituí-los em força de trabalho523.
E, nesse sentido, é útil ao poder disciplinar o que é útil ao bom
adestramento, estas relações de poder são instituídas basicamente sob três
recursos fundamentais: a vigilância, a normalização e o exame. A vigilância,
instrumento de controle dos comportamentos, posturas, hábitos, se interioriza
dentro das chamadas instituições de sequestro: fábricas, escolas, hospitais, etc. e
ganha uma nova dimensão individualizada. Um controle intenso e contínuo que
não se satisfaz na observação da produção, mas “leva em conta a atividade dos
homens, seu conhecimento técnico, a maneira de fazê-lo, sua rapidez, seu zelo,
seu comportamento”524. A vigilância, veremos a seguir, alcança sua materialidade
mais perfeita, porque ininterrupta, nas estruturas arquitetônicas do panóptico.
“Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno
mecanismo penal.”525 Está ínsita na ideia de disciplina a ambição de impor
comportamentos, distribuindo os homens no tempo e no espaço segundo critérios
definidos, segundo um regulamento, segundo normas internas de funcionamento
dos sistemas disciplinares. Assim, todas as chamadas instituições de sequestro
(fábricas, escola, hospitais, prisões, etc.) são reguladas por normas internas que
vem regrar os comportamentos, assim como por instâncias de julgamento próprias
e sanções passíveis de aplicação. Faz parte do poder disciplinar a presença destes
sistemas normativos internos que tem por objetivo assegurar a normalização das
condutas, funcionando através da imposição de normas que distinguem o que é o

523
“Que o tempo da vida se torne tempo de trabalho, que o tempo de trabalho se torne força de
trabalho, que a força de trabalho se torne força produtiva: tudo isto é possível pelo jogo de uma
série de instituições que esquematicamente, globalmente, as define como instituições de sequestro.
(...) um grande mecanismo de transformação: como fazer do tempo e do corpo dos homens, da
vida dos homens, algo que seja força produtiva. É este conjunto de mecanismo que é assegurado
pelo sequestro.” FOUCAULT, Michel, A verdade e as formas jurídicas, 3ª Ed. Rio de Janeiro:
Nau, PUC-Rio, 2011, pg. 122
524
“É o problema das grandes oficinas e das fábricas, onde se organiza um novo tipo de vigilância.
É diferente do que se realizava nos regimes das manufaturas do exterior pelos inspetores,
encarregados de fazer aplicar os regulamentos; trata-se agora de um controle intenso, contínuo;
corre ao longo de todo o processo de trabalho; não se efetua – ou não só – sobre a produção
(natureza, quantidade de matérias-primas, tipo de instrumentos utilizados, dimensões e qualidades
dos produtos), mas leva em conta a atividade dos homens, seu conhecimento técnico, a maneira de
fazê-lo, sua rapidez, seu zelo, seu comportamento.” FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir, 16ªed.
Rio de Janeiro: Vozes, 1997, pg. 146
525
FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir, 16ªed. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, pg. 149
233

comportamento “normal” e punem, visando a correção, qualquer comportamento


desviante.
O exame é uma forma de saber-poder que nasce com a sociedade
disciplinar e decorre de suas condições de vigilância e controle. Dentro da lógica
disciplinar o exame é um saber que se constitui da observação de comportamentos
humanos, e da verificação da distância ou proximidade entre estes e o estabelecido
pelas normas, o normal. Através de técnicas documentais o exame é um saber
construído pela observação dos corpos e o estabelecimento de critérios de
normalidade dos comportamentos526.
Foucault destaca como modelo institucional, capaz de encarnar as
ambições disciplinares da sociedade industrial nascente, a forma arquitetônica do
panóptico que, pensado por Bentham para as prisões, se dissemina pelas escolas,
hospitais e fábricas527. Trata-se de expressão, nas próprias estruturas
arquitetônicas das instituições de sequestro (fábricas, escolas, prisões e hospitais),
da forma mais apta à vigilância contínua e ininterrupta dos comportamentos dos
indivíduos. Uma disposição espacial do poder, presentificado numa torre central
de vigilância que tudo vê do comportamento dos indivíduos distribuídos em celas,
num reticulado de um anel que a envolve. Poder que se arvora em vigilância,
controle e correção contínuos, que impõe aos indivíduos uma determinada
distribuição espacial associada a uma sensação de observação ininterrupta de seus
comportamentos no tempo e no espaço528.

526
“Um saber que tem agora por característica não mais determinar se alguma coisa se passou ou
não, mas determinar se um indivíduo se conduz ou não como deve, conforme ou não à regra, se
progride ou não, etc. (...) Ele se ordena em torno da norma, em termos do que é normal ou não,
correto ou não, do que deve ou não fazer.” FOUCAULT, Michel, A verdade e as formas jurídicas,
3ª Ed. Rio de Janeiro: Nau, PUC-Rio, 2011, pg. 88
527
“O panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na
periferia uma construção em anel; no centro uma torre, esta é vazada de largas janelas que se
abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma
atravessando toda a espessura da construção; elas tem duas janelas, uma para o interior,
correspondendo às janelas da torre; outra para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado
a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente,
um condenado, um operário ou um escolar.” FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, 16ªed. Rio de
Janeiro: Vozes, 1997, pg. 165/166
528
“Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e
permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a
vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição
do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma
máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que
os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são portadores.”
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, 16ªed. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, pg. 166
234

Assim, Foucault nos apresenta uma análise do poder disciplinar como


relação que perpassa os corpos, que institui e corrige comportamentos, que se
materializa em formas de disposição dos corpos no espaço e dos comportamentos
no tempo. Vigiar os corpos, distribuídos num reticulado do espaço, adestrar
comportamentos, dividir e controlar o tempo: a disciplina é o poder encarnado,
inscrito na carne em práticas, hábitos, ritos.
E, se o panoptismo, desenvolvido por Foucault em suas obras Vigiar e
punir e A verdade e as formas jurídicas, é a imposição de comportamentos a uma
multidão determinada, e pouco numerosa, num espaço limitado pelos muros das
instituições, em História da sexualidade I: A vontade de saber529 o autor
desenvolve o conceito de biopoder como aquele que vai gerir e controlar a vida de
uma multiplicidade numerosa (população), num espaço extenso e aberto530. O
corpo antes individual, que devia ser disciplinado, é agora corpo coletivo apto à
intervenção e regulamentação531. São práticas da biopolítica os controles
reguladores de população como o controle de taxas de natalidade, mortalidade, o
controle de epidemias, as práticas de vacinação da população e vigilância
sanitária532.
Com Foucault, a partir de sua análise da sociedade disciplinar, a vida
torna-se objeto das relações de poder e das lutas de resistência. É nos próprios
corpos que se inscrevem as relações de força que perpassam o campo social. A

529
Os mesmos conceitos de biopoder e biopolítica são também desenvolvidos pelo autor em seu
curso no Collège de France, principalmente em sua aula de 17 de março de 1976, publicada em:
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 2002 pgs. 285/315
530
“Assim, Vigiar e punir define o Panóptico pela pura função de impor uma tarefa ou um
comportamento quaisquer a uma multiplicidade qualquer de indivíduos, sob a única condição de
que a multiplicidade seja pouco numerosa e o espaço limitado, pouco extenso. (...) E A vontade de
saber tratará de outra função que emerge ao mesmo tempo: gerir e controlar a vida numa
multiplicidade qualquer, desde que a multiplicidade seja numerosa (população) e o espaço extenso
ou aberto” DELEUZE, Gilles. Foucault... pg.80
531
“Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na
medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser
vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala
se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na
medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que
são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.”
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 2002, pg.289.
532
“O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII,
centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte para
processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração
da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são
assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da
população.” FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber, Rio de Janeiro:
Graal, 1979, pg.131.
235

multidão não é só comunhão de ideias, mas adestrada e disciplinada em


comportamentos e condutas comuns, controlada e vigiada em uma distribuição
comum de seus corpos no tempo e no espaço, e sua coletividade é objeto de
estudos e controles populacionais. O poder foucaultiano é poder sobre os corpos,
sobre os comportamentos, poder sobre a vida.
Poder que se faz corporal, resistência que também deve expressar-se
em lutas pela vida. Assim como a sociedade disciplinar vigia, controla e corrige
comportamentos, assim como o biopoder incide sobre a vida de uma população,
Foucault destaca que a resistência, a partir do início do século XIX, também toma
como tema central as condições de vida533. Mais que a participação política são o
direito a condições de trabalho dignas, direito à saúde, direito ao corpo, direito à
satisfação das necessidades, e outros relacionados a vida em si que formam a
agenda das lutas políticas. O corpo que se torna, com a disciplina, objeto das
relações de poder, se torna objeto também das lutas de resistência, e neste tema, é
Gilles Deleuze quem expressamente aproxima Foucault de Espinosa e diz:

Espinosa dizia: não se sabe do que um corpo humano é capaz, quando se


liberta das disciplinas do homem. E Foucault: não se sabe do que o homem
é capaz “enquanto ser vivo”, como conjunto de “forças que resistem”.534

Em Espinosa o ingenium da multidão é o comum nas mentes, mas


também o comum nos corpos. A potência da multidão se expressa em ideias,
histórias, afetos comuns a todos os seus constituintes, mas também em práticas,
hábitos, ritos, formas de composição dos corpos. Foucault nos apresenta um
pensamento acerca do poder que incide nesta materialidade corporal, corpos que
são moldados, vigiados, disciplinados, regulamentados individual e
coletivamente. O que em Espinosa chamamos de ingenium coletivo da multidão
que se expressa nos corpos de seus constituintes, Foucault analisa como o terreno

533
“E contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que resistem se apoiaram exatamente
naquilo sobre que ele investe – isto é, na vida e no homem enquanto ser vivo. (...) Foi a vida,
muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que estas últimas se
formulem através de afirmações de direito. O “direito” à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à
satisfação das necessidades, o “direito”, acima de todas as opressões ou “alienações”, de encontrar
o que se é e tudo o que se pode ser, esse “direito” tão incompreensível para o sistema jurídico
clássico, foi a réplica política a todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez,
também não fazem parte do direito tradicional da soberania.” FOUCAULT, Michel. A história da
sexualidade I: a vontade de saber... pg. 158/159
534
DELEUZE, Gilles. Foucault... pg.100
236

da experiência do poder disciplinar, instaurado nas nascentes sociedades


industriais do fim do século XVIII.

4.2
O cidadão e o escravo

Hábitos comuns, uma língua comum, uma história comum, uma


ordem simbólica coletiva: o imaginário, práticas e afetos que perpassam a
multidão determinam que esta tenha um temperamento singular, um ingenium,
uma constituição mais própria para a liberdade ou para a servidão. Como
expressões da mesma potência constituinte da multidão, o ingenium coletivo, e a
forma da relação entre governados e governantes guardam uma correspondência.
A forma das relações internas constituintes da multidão e a forma da relação entre
poder constituinte e poder constituído, entre a multidão e aqueles que exercem seu
imperium não são absolutamente independentes, mas determinam-se mutuamente.
O ingenium singular de uma multidão, seus hábitos, ideias e afetos
comuns, se expressam também na forma da relação política. O imaginário e as
práticas comuns de uma multidão, como ordem simbólica coletiva, constituem a
própria concepção do poder político que perpassa aquela sociedade, concepção,
no imaginário coletivo, da própria organização e manutenção do imperium. Se o
soberano não é um poder transcendente ao campo social, como o recusa
expressamente Espinosa, é no ingenium da multidão, como expressão de seu
conatus, que se desenha a forma de constituição do imperium. Entendido o poder
político como imanente à potência da multidão, são os hábitos, ideias e afetos
inerentes às relações de constituição do sujeito político que determinam a forma
do exercício de seu poder político, ao mesmo tempo em que o exercício do
imperium influencia também na constituição imaginária do ingenium.
Veremos a seguir que, neste sentido, uma vez instituído o imperium, e
organizadas as instituições do Estado, o que se estabelece é um ciclo vicioso que
se retroalimenta, pois o ingenium da multidão sustenta a forma do político ao
mesmo tempo em que o poder político exerce influência no imaginário coletivo
para perpetuar sua forma de organização e exercício. Chegaremos em breve a este
tema, por ora nos cabe analisar, apenas, o primeiro movimento deste ciclo vicioso
237

de imaginação que é a obediência política. O movimento no qual o ingenium da


multidão sustenta a forma do exercício do poder político.
Já destacamos que Espinosa afirma uma concepção intrinsecamente
democrática do poder político. Ao afirmar a relação de causalidade imanente entre
potência da multidão e imperium, nosso filósofo afirma, com isso, estar nas mãos
dos governados o destino dos governantes, na obediência a causa imanente do
poder. Assim, um governo democrático se sustenta na liberdade de seus cidadãos,
da mesma maneira que um governo tirânico se constitui pela obediência servil da
multidão.
No Tratado Teológico-político Espinosa diferencia expressamente a
obediência do escravo e a obediência do súdito:

O agir de acordo com uma ordem, quer dizer, a obediência, retira, é um


fato, até certo ponto a liberdade; não torna, porém, automaticamente um
homem escravo, já que só o móbil da ação pode levar a tanto. Se o fim da
ação não é a utilidade de quem a pratica, mas daquele que a ordena, então o
que a pratica é escravo e inútil a si próprio; porém, num regime político e
num Estado em que a lei suprema é o bem-estar de todo o povo e não
daquele que manda, quem obedece em tudo à autoridade não deve
considerar-se escravo e inútil a si mesmo, mas apenas súdito.535

Nosso filósofo diferencia entre a obediência a ordens alheias e a ação


tendo em vista o próprio bem, que se coaduna com o bem comum. A obediência
servil do escravo é aquela que subordina o agir do escravo à utilidade alheia, o
agir em virtude do que é considerado bom pelo outro e não por e para si próprio.
Já o súdito, segundo Espinosa, obedecendo ordens que visam o bem comum, ao
mesmo tempo em que as obedece, obedece, na verdade, aos seus próprios
interesses pois estes se coadunam com aquele.
O escravo encontra-se na servidão, “inútil a si próprio”, age em
benefício alheio, abriu mão do próprio critério de bom e mau para seguir as
ordens de seu senhor, esforçando-se pela utilidade de outrem. Já o súdito conserva
seu julgamento de bem e mal, ao agir em benefício do bem comum age, ao
mesmo tempo, em benefício próprio e isso porque, necessariamente, participa das
decisões do Estado. A figura do súdito enunciada neste trecho do Tratado
teológico-político só é possível em uma democracia.

535
TTP, pg.241
238

Já vimos que a tirania, em Espinosa é exatamente o exercício do poder


político para fins particulares, a construção imaginativa da transcendência do
imperium, e a alienação da potência da multidão das condições de participação no
poder político e na elaboração das leis comuns. Assim, podemos identificar o que
Espinosa chama de obediência servil do escravo com o que já afirmamos sobre a
tirania. Em contrapartida, sobre a figura do súdito podemos identificar seu agir,
que comunga seu conatus individual com o bem-estar comum, como aquele
próprio dos cidadãos em uma democracia.
Somente num Estado democrático as leis comuns, as ordens, visam ao
bem comum identificando-se, ao mesmo tempo, com o bem singular de cada um
de seus cidadãos. E o inverso também é verdadeiro, ou seja, somente um Estado
em que as leis comuns se coadunam com o bem comum, e, simultaneamente, com
o útil a cada um de seus cidadãos, pode ser chamado um Estado democrático. O
súdito, citado por Espinosa neste trecho do Tratado teológico-político, é o cidadão
livre de uma democracia.
Mas nosso filósofo vai ainda mais longe e afirma que este cidadão, ao
agir movido pelos próprios interesses, ao obedecer às ordens do Estado, não age
levado pela autoridade a elas conferida, mas sim visando obedecer ao próprio
conatus individual, e, assim, enquanto sujeito ético, não pode ter a sua ação
considerada propriamente como obediência, mas sim como uma ação livre, pois
tem no próprio agente sua causa adequada536.
É também no Tratado teológico-político que Espinosa faz esta
ressalva, no que tange à aplicação, no campo ético, do termo obediência ao agir
livre do cidadão numa democracia:

Por último, e visto que a obediência consiste em executar ordens


exclusivamente emanadas da autoridade de quem manda, segue-se que ela
não tem nenhum lugar numa sociedade em que o poder está nas mãos de
todos e onde as leis são sancionadas por consentimento comum...537

É característica fundamental da obediência servil a heteronomia, a


obediência que reduz o indivíduo à servidão é, necessariamente, obediência a leis

536
« Dans la tension de l’opposition du régime le plus mystificateur au régime le plus naturel,
Spinoza, dans TTP, V, est conduit à refuser la notion même d’obéissance pour caractériser la
position du citoyen au sein du régime démocratique... » BOVE, Laurent. La stratégie du
conatus...pg.195
537
TTP, pg.86
239

ou ordens externas. Obedecer de forma servil é realizar o bom que nos é imposto
por outrem, seguir uma ordem de valores exterior ao próprio conatus individual.
Neste sentido, o que caracteriza a obediência servil é tomar como primeira e
superior uma ordem estatal ou do soberano, em detrimento do próprio juízo de
utilidade e valor individual. Lembremos aqui da distinção ética entre liberdade e
passividade em Espinosa: é livre aquele que age tendo como causa adequada de
suas ideias e encontros apenas o próprio conatus, e, ao contrário, padece aquele
que é somente causa parcial dessas ideias e desses encontros. A obediência servil
reduz o indivíduo à passividade pois inscreve suas ações na servidão de ser
movido por ordens heterônomas538.
Ou seja, se a causa de uma ação é o próprio conatus de um indivíduo
diz-se que este age livremente, ainda que sua ação esteja em consonância com a
lei. Por outro lado, se a causa de uma ação é uma ordem alheia ou a lei de um
Estado, diz-se que o indivíduo obedece de forma servil. A obediência servil está
sempre relacionada à observância a um mandamento heterônomo, uma noção de
bom imposta por uma ordem externa539.
Não é por outra razão que nosso filósofo recusa a utilização do termo
obediência para qualificar qualquer ação do homem movido pela razão. Diz o
parágrafo 20 do capítulo II do Tratado político: “não podemos, sem grande
impropriedade, chamar obediência a uma vida controlada pela Razão”. A
diferença entre aquele que age livremente e aquele que obedece de forma servil
está na diferença entre a ação daquele que, criticamente, é causa adequada de seus
atos, e aquele que, submetendo-se a uma autoridade externa, apenas cumpre o que
lhe é ordenado.
Cabe aqui uma ressalva, para Espinosa existe uma diferença entre a
oposição liberdade/servidão éticas e liberdade/servidão políticas. A primeira dupla

538
« Hétéronomie, tout abord. Obéir, c’est exécuter un ordre pour la seule raison que nous
reconnaissons l’autorité de celui qui nous le donne : non parce que nous en compreenons nous-
même le bien-fondé, mais parce que telle est la volonté d’autrui. Cela ne signifie pas
obligatoirement que cet ordre soit contraire à notre intérêt véritable, ni même aux fins que nous
poursuivons consciemment ; mais cela signifie au moins, dans le meilleur des cas, que nous
n’apercenons pas la nécessité du lien causal qui unit son exécutions à la satisfation de nos désirs. »
MATHERON, Alexandre. Le Christ et le salut des ignorants chez Spinoza... pg.153/154
539
« Il est significatif que le TP, précisément, récuse d’emblée toute utopie, en soulignant
l’antithèse irréductible des notions d’obéissance et de liberté (TP, IV,5). Faire passer l’obéissance
en tant que telle pour la liberté est une mystification. La liberté réelle est synonyme de puissance et
d’indépendance, tandis que l’obéissance traduit toujours une dépendance. » BALIBAR, Etienne.
Spinoza et la politique...pg.112
240

se distingue pelo que acabamos de analisar, pela distinção entre agir e padecer, e
pelo conhecimento pela razão ou pelas ideias confusas da imaginação. É nesta
análise da liberdade ou servidão do sujeito ético que o termo obediência perde
sentido quando referido ao agir do homem livre. Já no campo da política, a
distinção entre liberdade e servidão ganha outro sentido, relacionado às formas de
exercício do poder político e os afetos, ideias e práticas que perpassam o ingenium
da multidão. A imaginação e a obediência são constitutivas do campo da política e
a distinção entre liberdade e servidão políticas se estabelece pela distinção quanto
ao exercício do poder político em prol do bem comum, numa sociedade livre, ou
desviado pela tirania para a realização de interesses particulares na servidão, a
oposição entre instituições que garantam à multidão instrumentos de resistência
contra qualquer tentativa de tirania, ou desenhos institucionais que distanciem a
multidão das condições de exercício de sua potência constituinte, liberdade e
servidão política se distanciam por um ingenium coletivo perpassado por afetos
fortes, que aumentam sua potência e mantém a multidão mais próxima da
esperança, ou uma multidão de temperamento servil dominada pelo medo.
Esta distinção entre o campo de análise ética e o campo de análise
política é fundamental para a compreensão do uso que Espinosa faz do termo
obediência em relação ao cidadão livre. Considerado como sujeito ético o cidadão
que age segundo os interesses do próprio conatus, que se coadunam com o bem
comum, age livremente, é causa adequada de seu agir e, portanto, não se pode
dizer “sem grande impropriedade” que obedece. No entanto, se considerada a
relação política entre cidadão e imperium, considerado o cidadão como sujeito
social confrontado com as leis comuns de uma sociedade, é possível ainda
utilizarmos o termo obediência540, mas uma obediência livre que é vontade
constante de cumprir o que “segundo o decreto comum, deve fazer-se”541
Duas figuras conceituais ajudam a ilustrar estas oposições entre
liberdade e servidão no campo ético e no campo político: o cidadão e o escravo.
Tomados do ponto de vista ético o cidadão é aquele que, ao cumprir as leis de um
540
Utilizaremos o termo obediência ao referirmo-nos ao cidadão livre, compreendendo sua relação
com as leis do Estado, seguindo Laurent BOVE que entende que este conceito só não se aplica ao
tratamento do sujeito ético individual, sendo ainda pertinente na análise da relação política. Neste
sentido: “... en tant que tel le sujet éthique n’est pas un sujet de l’obéissance, il ne l’est qu’en tant
que sujet social confronté aux lois particulières d’une société donée.” BOVE, Laurent. Ob. cit. p.
267.
541
“a obediência, porém, é a vontade constante de cumprir aquilo que é bom segundo o direito e
que, segundo o decreto comum, deve fazer-se.” TP, II, parágrafo 19
241

Estado, está, na verdade, agindo movido pelo próprio conatus, pois seus interesses
se coadunam com o bem comum inscrito no direito civil. Já o escravo obedece a
uma autoridade externa, sendo apenas causa parcial de suas ideias e encontros, e
tomando a utilidade de outrem – estado ou soberano – inscrita na ordem ou no
direito civil, como causa de sua própria ação.
E, no entanto, para passarmos à análise da oposição liberdade /
servidão no campo político cabe aqui uma inversão interessante. Esta liberdade do
cidadão e esta servidão do escravo, na relação política, não são consequências
tanto da utilização da razão pelo primeiro, e da imaginação pelo segundo, quanto
da própria constituição do imperium, das leis comuns e das instituições do próprio
estado. No campo individual, do sujeito ético, podemos tomar liberdade e
passividade como o agir ou padecer frente às ideias inadequadas e paixões, no
entanto, no campo político, liberdade e servidão se inscrevem na própria relação
entre potência da multidão e poder político, na organização das instituições do
Estado e no ingenium coletivo. Ninguém é livre numa sociedade de escravos e a
obediência livre do cidadão, quando este cumpre uma lei levado pelo próprio
conatus individual, só é possível numa democracia.
Vimos que um cidadão é livre porque, ao cumprir a lei, age segundo o
próprio conatus, porém, na relação política, isto não se dá necessariamente por
uma característica pessoal do cidadão, enquanto sujeito ético, mas por
características da própria lei e das instituições do estado. A liberdade assegurada
na democracia se constitui pela participação dos cidadãos na elaboração das leis,
sua liberdade de discussão e resistência, pela correspondência imanente entre
direito civil e direito natural da multidão, pela causalidade imanente entre
potência constituinte da multidão e exercício do imperium.
Faz sentido aqui a colocação de Laurent Bove quando este afirma que
“é a resistência que faz o cidadão”542. O que caracteriza o agir do cidadão livre no
campo político é sua participação no poder que este obedece, são as instituições
do Estado que garantem a resistência da multidão contra qualquer tentativa de
tirania, que garantem a liberdade na relação política e previnem contra sua
degradação em opressão, organização do imperium que mantém o exercício do
poder político atrelado aos interesses do bem comum: democracia. O cidadão é

542
« C’est la résistance qui fait le citoyen » BOVE, Laurent. La stratégie du conatus... pg.264
242

livre ao agir conforme as leis porque tem a liberdade de discuti-las, questiona-las,


e participa do processo de sua elaboração. Porque presentes as instituições
democráticas, ao obedecer aos ditames da lei o cidadão não obedece nada
diferente do que ao seu próprio esforço pela liberdade, ao próprio conatus543. A
obediência não é opressão mas liberdade, nas palavras de Espinosa, “numa
sociedade em que o poder está nas mãos de todos e onde as leis são sancionadas
por consentimento comum...”544
Voltemos aqui à afirmação de que Espinosa não espera que a
democracia se constitua como uma comunidade de sábios. Não é na elevação de
todos os cidadãos ao exercício ininterrupto da razão que nosso filósofo entende a
constituição do poder político democrático e a obediência livre. São as instituições
do Estado que garantem sua segurança e a liberdade de seus cidadãos. É na forma
do exercício do imperium, em vista do bem comum, no conteúdo do seu direito
civil como expressão imanente do direito natural da multidão e no ingenium desta,
mais apto à liberdade que à servidão, mais próximo da esperança que do medo,
que se desenha a democracia.
Já o escravo é necessariamente sujeito da tirania545. A obediência cega
está atrelada a uma compreensão inadequada do poder político como
transcendente à potência da multidão, ao discurso imaginativo da soberania e ao
medo. Aqui também não estamos diante apenas de características individuais, mas
uma servidão que se constrói e sustenta-se coletivamente. Instituições fechadas à
participação social, imperium que se exerce segundo os interesses pessoais dos
governantes, alienação da potência da multidão dos meios de exercício da
resistência, ingenium coletivo imerso no medo, permeado de práticas, ideias e
afetos da servidão.

543
“Il faut distinguer, de l’obéissance superstitieuse au contenu de la loi (ou à la personne
incarnant cette loi), une obéissance vitale à la représentation commune de la loi en tant que telle,
comme lien vital entre les hommes, qui donne à leurs action unité, ordre et signification. Si le
contenu de la loi est l’expression d’un rapport d’intérêts et des forces au sein d’une société
particulière, l’existence d’une loi commune dans ses contradictions mêmes, l’unité et l’identité de
cette société . c’est cette distinction de la fonction et du contenu de la loi qui permettra de penser le
status du citoyen d’une libre République, à la fois obéissant librement à la lois mais aussi libre
d’examiner le contennu de cette loi, de le discuter et par là même de proposer à la souberaine
puissance sa modification, voire son abrogation, au profit de lois plus ajustées aux conditions
réelles de la société et de la Raison » BOVE, Laurent. La stratégie du conatus...pg.187
544
TTP, cap. V, pg.86
545
Dizemos aqui sujeito da tirania pois entendemos que, conforme demonstrado no item anterior
deste mesmo capítulo, são os servos que sustentam o senhor. Embora não sejam os escravos que
exercem o poder tirânico, é o desejo de servidão daqueles que sustentam o poder deste. É a
obediência que faz o tirano.
243

Assim, liberdade e servidão políticas se constroem nas instituições do


Estado e se diferenciam pela forma de exercício do imperium, sendo a liberdade o
exercício do poder político em prol do bem comum e a tirania sua alienação para
fins particulares. Neste sentido, vale destacar que liberdade e tirania políticas se
distinguem também no campo afetivo, os afetos que perpassam a multidão de
cidadãos não são os mesmos que dominam um multidão de escravos.
Uma multidão livre é mais levada pela esperança que pelo medo, tem
sua potência aumentada por paixões alegres que perpassam o campo social. Já os
escravos são dominados pelo medo, a servidão política é caracterizada pelo
império das paixões que propiciam a passividade, uma multidão alienada de seus
instrumentos de resistência, mais próxima da impotência.
Podemos tomar como exemplo mais ilustrativo do escravo a figura do
cidadão hobbesiano. Voltando aqui ao contemporâneo inglês de Espinosa,
encontramos em Hobbes o elogio ao escravo como súdito mais perfeito do
Leviatã, encarnação da obediência mais servil. Para Hobbes, no plano político, a
liberdade da vontade se exerce na decisão de fazer o pacto social, e na decisão de
transferir todo direito e todo poder ao soberano, uma vez instituída a soberania, a
liberdade cede lugar à completa obediência
Personagem da servidão absoluta, da obediência cega e sem
questionamentos, o escravo é aquele que incondicionalmente aquiesce às ordens
do soberano e segue o determinado pelas leis, ainda que contrariando sua própria
utilidade, em prol de finalidades alheias. Na concepção transcendente do poder
político, enunciada por Hobbes, a transferência de direitos que funda a sociedade
é também a renúncia de cada indivíduo à resistência. A obediência, neste cenário,
é necessariamente submissão aos interesses do soberano, subserviência absoluta
às ordens do poder, alienação.
Sendo, no campo político, as obediências livre do cidadão ou servil do
escravo construções coletivas, e não características individuais, ao lado das
diferentes formas de organização do campo político que constituem uma ou outra,
tanto Espinosa quanto Hobbes fazem acompanhar suas concepções sobre os
cidadãos ou os escravos de observações sobre a educação dos indivíduos para a
liberdade ou para a servidão. Já tratamos do ingenium coletivo como práticas,
ideias, afetos comuns da multidão que constituem esta como mais apta à liberdade
ou à servidão. A educação, ao mesmo tempo em que é, necessariamente, instrução
244

individual é também instrumento de constituição do saber comum, constituição do


ingenium coletivo e pode, assim, ser instrumentos de constituição de uma
multidão livre ou meio de construção de discursos imaginativos de servidão,
impregnação de ideias inadequadas, propagadora de paixões tristes e do medo.
Neste sentido, da mesma forma que se contrapõem a figura do cidadão
livre espinosano e a servidão do escravo hobbesiano, as concepções a respeito da
educação nos dois autores são absolutamente distintas. O cidadão apto à
democracia, em termos espinosanos, é educado para a liberdade, para a construção
critica do saber. Longe da imposição da uniformidade, a educação democrática
deve preservar as singularidades que constituem a multiplicidade da multidão. A
educação dos cidadãos aptos a zelar pela democracia é marcada pelo debate e livre
expressão do pensamento, pelo incentivo à liberdade de opinião e cultivo do
hábito de avaliação crítica da adequação das finalidades de cada ordem do Estado
ao interesse público e ao interesse do conatus individual de cada cidadão546.
Neste sentido nosso filósofo afirma no Tratado Político, os riscos das
universidades de sua época que, mantidas às custas do Estado ou da Igreja, muitas
vezes voltavam-se mais para o convencimento e subserviência do que para o
debate e a reflexão de diferentes opiniões547. Diz Espinosa: “Numa República
livre, pelo contrário, a melhor maneira de desenvolver as ciências e as artes é dar a
cada um licença para ensinar à sua custa e com o perigo da sua reputação.”548
Numa época em que as Universidades estavam ainda nas mãos das Igrejas
(Católica ou Reformada), ou nas mãos dos monarcas absolutos, Espinosa afirma a
impossibilidade de pensamento dentro destas instituições dada a ausência de
liberdade e de crítica frente a seus mantenedores549. A educação para Espinosa
não é a sabatina nas “verdades do Estado”, mas o debate livre de ideias, a reflexão

546
“Cependant, le sujet d’une libre république, comme le sujet éthique, se définit par sa puissance
de raisonner et de juger. Et chez le citoyen par excellence, cette puissance est celle de sa réflexivité
critique.” BOVE, Laurent. Ob.cit. p. 267
547
“As universidades fundadas à custa do Estado, são instituídas, menos para cultivar o espírito,
do que o constranger.” Tratado político, cap. VIII, § 49
548
Tratado político, cap. VIII, § 49
549
Vale destacar que é essa universidade que a Revolução Francesa, ao por fim ao Antigo Regime,
pretende derrubar, instituindo a educação pública leiga e a universidade pública leiga. No entanto,
ao longo da história, o liame entre educação e dominação política sempre se fez evidente, todos os
regimes autoritários buscam a dominação também do saber e a ingerência nas universidades como
forma de propagação e afirmação de seus ideais e fortalecimento, nas mentes e no ingenium da
multidão, de seu poder. No Brasil, durante a ditadura militar, não foi diferente existindo forte
censura e perseguição no âmbito universitário.
245

crítica e a pluralidade de opiniões550. A constituição da liberdade política passa


pela educação de cidadãos livres, cidadãos aptos à resistência.
Já para Hobbes a educação é adestramento para a obediência. No ideal
de servidão hobbesiano, a educação, que deve ser deixada exclusivamente a cargo
de academias do Estado, não é o campo da reflexão ou dos debates de opiniões,
mas a atividade do convencimento551. Pela educação política, os cidadãos
hobbesianos devem ser instruídos nos “elementos verdadeiros da doutrina civil”,
convencidos nas doutrinas da submissão552. A educação política em Hobbes não
visa à expressão das singularidades individuais dos cidadãos, nem o debate plural
de opiniões, mas é a instituição necessária à construção da unanimidade553. Como
imposição de uma verdade estatal e transcendente, a educação hobbesiana é o
signo da própria redução dos sujeitos da obediência servil ao estado de
escravos554.

4.3

Obediência e desejo de servir

É a obediência servil que sustenta o tirano. É no ingenium da


multidão, dominado pelo medo, paixões tristes, hábitos e ideias servis que se
encontram as causas da servidão. Uma vez que o poder político é expressão
imanente da potência da multidão é quando esta se faz servil, que o imperium se
faz tirânico. À usurpação do exercício do poder político para fins particulares
corresponde um movimento da multidão de obediência servil, a sua constituição

550
“Nous retrouvons alors, dans le TP comme dans le TTP, l’élogue de la diversité des opinions et
des enseignements, comme espace public de la liberte d’expression dans lequel peut s’exerce un
enseignement du point de vue de la raison.” BOVE, Laurent. Ob. cit. p. 274
551
“D’où, dans la société hobbienne, l’importance d’une éducation politique qui doit convaincre
les sujets de la vérité de la science politique de HOBBES, réduisant ainsi l’espace public de
l’expression plurielle des opinions en un champ de propagande...” BOVE, Laurent. Ob. cit. pp.
265-266
552
Neste sentido, o item 9 do cap. XIII de sua obra Do cidadão leva o título: “Uma correta
instrução dos súditos quanto às doutrinas políticas é mais um requisito para a conservação da paz”.
Da mesma obra destacamos: “Concebo, portanto, que é dever dos magistrados supremos fazer que
os elementos verdadeiros da doutrina civil sejam postos por escrito, e ordenar que sejam ensinados
em todos os colégios de seus vários domínios.” HOBBES, Thomas. Do cidadão, Martins Fontes,
São Paulo, 1992, p. 227.
553
“Chez HOBBES l’unanimité est l’essence de la machine politique, impliquée logiquement dans
son dispositif même.” BALIBAR, Étienne. La crainte des masses... p. 75
554
“Lorsque la vérité s’impose aux sujets de manière institutionelle, étatique et transcendante (...)
le sujet politique de l’obéissance est réduit à l’état d’automate.” BOVE, Laurent. Ob.cit. p. 266
246

como escravos, que buscam a salvação na servidão, que, dominados pelo medo e
impregnados de discursos da transcendência, identificam obediência e desejo de
servir.
A política, Espinosa o reconhece555, está sempre imersa no campo da
imaginação, mas existem ideias imaginativas e paixões fortes capazes de aumentar
a potência da multidão e engendrar a liberdade política, mantendo a multidão mais
próxima da esperança que do medo, e existem ideias imaginativas e paixões tristes
capazes de engendrar a tirania, dominar a multidão pelo medo e alimentar a
servidão.
No item anterior já distinguimos a análise da liberdade/servidão éticas
da análise da liberdade/servidão políticas. Neste sentido, desenvolvemos nossa
análise das figuras do cidadão e do escravo no campo da política, ao salientar que
tanto a condição de cidadão quanto a de escravo não dependem tanto de
características pessoais, mas da organização do poder político numa determinada
sociedade. A liberdade política do cidadão se constitui no exercício do poder
político em consonância com o bem comum, instituições que assegurem o direito
de resistência da multidão e a imanência entre potência constituinte e poder
constituído. Já o escravo é sujeito da servidão, obediente a um poder político que
se exerce para fins particulares, imerso em discursos da transcendência e no medo.
Agora nos dedicaremos à análise da servidão no campo ético,
investigaremos como a imaginação pode engendrar o paradoxo do desejo de
servidão. Se o conatus é sempre esforço positivo por perseverar na existência,
esforço, portanto, pela liberdade e pela alegria, como pode a obediência
desvirtuar-se em desejo de servidão, e uma multidão ser conduzida pela
imaginação a sustentar um tirano?
O tema da liberdade ou servidão como expressões imanentes do
ingenium da multidão remonta a Maquiavel. A concepção democrática do poder
que identifica nas características da multidão e na qualidade de sua obediência as
causas de sua própria liberdade ou servidão já está nos Discursos maquiavelianos,
quando o autor florentino afirma que “O povo acostumado a viver sob a

555
“aqueles que se persuadem de poder induzir, quer a multidão, quer os que se confrontam nos
assuntos públicos a viver unicamente segundo o que a razão prescreve, sonham com o século
dourado dos poetas, ou seja, uma fábula” TP, cap. I, parágrafo 5
247

autoridade de um príncipe, se por algum acontecimento se torna livre, dificilmente


mantém a liberdade”556.
Maquiavel já identifica no seio da multidão, em sua forma de
organização, hábitos, ideias e afetos, as causas dos regimes políticos livres ou
tirânicos ao enunciar a inabilidade de um povo, acostumado a viver na servidão,
em experimentar a liberdade. Servidão e liberdade políticas não são instaladas de
cima pra baixo sobre uma multidão disforme, mas dependem mais dos hábitos e
organização do povo do que das qualidades de seus governantes. Daí Maquiavel
afirmar também que “Um povo corrompido que se torne livre com enorme
dificuldade se mantém livre”557.
Antes de Espinosa, Maquiavel já identificava no ingenium da multidão
causas da liberdade ou servidão políticas. Da mesma forma está também na obra
do autor florentino uma reflexão sobre o que analisaremos em termos espinosanos
como o paradoxo do desejo de servidão e o papel da imaginação em sua
constituição. Diz Maquiavel, ainda nos Discursos, que “o povo muitas vezes
deseja a sua própria ruína, enganado por alguma falsa aparência de bem; e como
as grandes esperanças e as audazes promessas o comovem facilmente.”558
O sapientíssimo florentino, nos seus Discursos sobre a primeira
década de Tito Lívio já recusa a transcendência do poder político em relação à
multidão, e já identifica na própria multidão causas da sua própria liberdade ou
servidão. Ainda que atento à virtude ou fraqueza dos governantes e ao modo como
estes devem conduzir a coisa pública, Maquiavel já assinala o papel da multidão,
seu temperamento livre ou servil, na constituição da sua própria liberdade ou
servidão.
Depois de Maquiavel, mas ainda antes de Espinosa outro autor destaca
o papel da obediência na constituição do caráter livre ou servil do poder político.
Etienne de La Boétie em seu célebre Discurso sobre a servidão voluntária afirma
estar nas mãos do povo o poder de sustentar ou derrubar um tirano. Vale citar aqui
a passagem em que o autor atribui ao povo as forças que este teme no tirano:

Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem
um corpo, e não tem outra coisa que o que tem o menor homem do grande e
infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que lhe dais para
556
MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro primeiro, capítulo 16
557
MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro primeiro, capítulo 17
558
MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro primeiro, capítulo 53
248

destruir-vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os
colocais a serviço dele? Como tem tantas mãos para golpear-vos, se não as
toma de vós? Os pés com que espezinha vossas cidades, de onde lhe vem
senão dos vossos? Como ousaria atacar-vos se não estivesse conivente
convosco? Que poderia fazer-vos se não fosseis receptadores do ladrão que
vos pilha, cúmplices do assassino que vos mata, e traidores de vós
mesmos?559

Em La Boétie, assim como afirma Espinosa anos depois, é a


obediência servil que faz o tirano. São do povo as mãos do tirano que o oprime,
são do povo os olhos do tirano que o vigiam, La Boétie denuncia claramente que é
o desejo de servir que constitui a servidão, é do povo o poder atribuído ao tirano.
No mesmo caminho afirma Espinosa ao enunciar ser a potência da multidão a
causa imanente do poder político. O imperium espinosano é expressão imanente
do conatus da multidão, assim, seja o mais libertário dos regimes políticos ou a
mais opressora das tiranias, é sempre a obediência que constitui o poder e não o
contrário.
E, no entanto, não é só isso. A força do Discurso de La Boétie não
está, apenas, no diagnóstico da divisão social entre dominados e dominadores, ou
na origem do poder desses últimos na obediência dos primeiros. A questão central
que mobiliza o pensador francês (e nós, seus leitores) não é a existência da
servidão, mas como esta se perpetua como desejo de servir. Os homens servem
miseravelmente ao tirano, dirá La Boétie:

com o pescoço sob o julgo, não obrigados por uma força maior, mas de
algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome
de um, de quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar as
qualidades pois é desumano e feroz para com eles.560

Os homens servem pois desejam servir, consentem com a própria


opressão, o Discurso de La Boétie não é apenas acerca da servidão, mas da
servidão voluntária. A obediência servil não se impõe pelo recurso à violência - o
povo unido superaria em forças o tirano, diz La Boétie - nem tão-pouco pelo
medo ou seu reflexo, a covardia - pois o povo aceita ir à guerra, arriscando a
própria vida, para defender o tirano. A servidão é desejada pelos súditos, e o

559
La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999,
pg.16
560
La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999,
pg.12
249

tirano não se torna tirano tanto por qualidades suas, mas por ocupar um lugar já
preparado pela própria sujeição daqueles que domina561.
Sobre a instituição da desigualdade entre governantes e governados,
sobre sua origem, o autor francês não se aventura em hipóteses históricas: a
desigualdade é resultado de um mau encontro, mas certamente acidental e não
necessária562, ou seja, La Boétie aceita a ideia de sociedades sem desigualdade
política, sociedades sem a instituição do Estado563. Porém, sobre a perpetuação da
desigualdade nas sociedades políticas La Boétie identifica sua fundação num
desvirtuamento da natureza humana que, de propensa à liberdade, desvirtua-se em
desejo de servidão564.
O tom de perplexidade da abertura do texto de La Boétie coloca-nos,
seus leitores, de frente com a paradoxal ideia de que são os povos que
voluntariamente sustentam seus tiranos. A obediência servil não se impõe numa
força vertical de cima pra baixo, do governante aos governados, mas, numa
inversão do desejo natural pela liberdade em desejo de servidão, e se mantém pelo
desejo de servir daqueles mesmos a quem oprime565. A violência não é causa da

561
“Mas não se torna senhor por querer, e sim por ter ocupado um lugar já preparado, por ter
respondido a uma demanda já formulada por aqueles, naqueles que domina: o povo. (...) é melhor
admitir que a cada momento de seu império a tirania se engendra a partir da vontade de servir.”
LEFORT, Claude. “O nome de Um” in La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª
ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.125/126
562
“Aliás o Discours de la servitude volontaire formula explicitamente duas perguntas : primeiro,
por que a desnaturação do homem ocorreu, por que a divisão instalou-se na sociedade, por que o
mau encontro sobreveio? Em seguida, como é que os homens perseveram em seu ser desnaturado,
como a desigualdade de reproduz constantemente, como o mau encontro se perpetua a ponto de
parecer eterno? La BOÉTIE não responde à primeira pergunta. Enunciada em termos modernos,
ela diz respeito à origem do Estado. De onde sai o Estado? É perguntar a razão do irracional, tentar
reduzir o acaso à necessidade, querer em uma palavra abolir o mau encontro.” CLASTRES, Pierre.
“Liberdade, mau encontro, inominável” in La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária,
4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.114.
563
Neste tema Pierra CLASTRES comentando a obra de La BOÉTIE traz para a reflexão as
pesquisas da etnologia a respeito das sociedades sem estado, ou mais propriamente sociedades
contra o estado. Sobre o tema: CLASTRES, Pierre. “Liberdade, mau encontro, inominável” in La
BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999 e
CLASTRES, Pierre. Sociedades contra o estado, São Paulo: Cosac Naify,
564
Sobre esse movimento Pierre CLASTRES entende que o autor trata de uma desnaturação do
homem: “se ele, por natureza é um ser-para-a-liberdade, a perda da liberdade deve exercer seus
efeitos no próprio plano da natureza humana: o homem é desnaturado, muda de natureza.”
CLASTRES, Pierre. “Liberdade, mau encontro, inominável” in La BOÉTIE, Etienne. Discurso da
servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.114.
565
“Mau-encontro, a política descrita por La BOÉTIE não se explica pelo exercício da força nem
pela presença da covardia; seu mistério reside nessa ausência de constrangimento, no fato de que a
violência não é causa da servidão voluntária mas seu efeito. A tirania não é perversão de um
regime político legítimo, não só porque o regime de que seria cópia ou simulacro, a monarquia,
não se distingue dela, mas também e sobretudo porque a mola propulsora de sua instauração é o
250

obediência, não é por covardia que a servidão se instala e se reproduz no seio do


político, La Boétie identifica no desejo de servir a causa do poder político
tirânico.
É a conclusão aterrorizante, porém necessária, que se impõe do
pensamento absolutamente democrático acerca do político, a saber: se,
democraticamente, o poder tem sua gênese no desejo do povo ou, em termos
espinosanos, se o poder político é expressão imanente do conatus da multidão,
caso este poder organize-se em tirania, também sua origem só pode estar no
desejo servil da multidão.
La Boétie considera o desejo de servidão como contrário à própria
natureza humana566, como aquilo que “não encontra nome feio o bastante”,
“monstro de vício que ainda não merece o título de covardia”567. E, no entanto,
este desejo se encontra em tal medida enraizado nas sociedades que cumpre
investigar as formas como perpetua-se e se reproduz, quase ao ponto de
naturalizar-se nos corações dos servos, em amor à servidão568. É esta a
provocação do Discurso de La Boétie, e é esta a questão que apresentaremos
agora ao pensamento de Espinosa.
Se La Boétie e Espinosa compartilham da concepção radicalmente
democrática do poder político como expressão imanente do conatus da multidão,
da obediência como causa e fundamento do poder, é preciso atribuir a Espinosa a
mesma conclusão aterrorizante a que chega o autor francês e compreender, em
termos espinosanos, a tirania como desejo de servidão. É preciso investigar como
podemos entender, em termos espinosanos, o paradoxo do desejo de servidão,

desejo de servir.” CHAUÍ, Marilena. “Amizade, recusa do servir” in La BOÉTIE, Etienne.


Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.18
566
“Mas em verdade de nada serve debater se a liberdade é natural, pois não se pode manter
alguém em servidão sem mal-fazer e nada há mais contrário ao mundo que a injúria, posto que a
natreza é completamente razoável. Portanto, resta à liberdade ser natural do mesmo modo que, no
meu entender, nascemos não somente de posse de nossa franquia mas também com afeição para
defendê-la.” La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1999, pg.18
567
“Então, que monstro de vício é esse que ainda não merece o nome de covardia, que não
encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e a língua se recusa nomear?”
La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.13
568
“Mas os médicos certamente aconselham que não se ponha a mão nas feridas incuráveis; e não
sou sensato ao querer pregar isso ao povo que há muito perdeu todo conhecimento e que, por não
sentir mais o seu mal, bem mostra que sua doença é mortal. Por conjectura procuremos então, se
pudermos achar, como enraizou-se tão antes essa obstinada vontade de servir que agora parece que
o próprio amor da liberdade não é tão natural.” La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão
voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.16
251

assim, analisaremos no horizonte da liberdade ou servidão éticas, quais as suas


causas e seus efeitos, sua gênese e suas consequências necessárias.
Neste sentido, nosso filósofo define a obediência no capítulo II,
parágrafo 19 do Tratado Político, nos seguintes termos: “a obediência, porém, é a
vontade constante de cumprir aquilo que é bom segundo o direito e que, segundo
o decreto comum, deve fazer-se”.
Tal definição atrela a noção de obediência a dois conceitos principais:
primeiro, a obediência é uma vontade constante, algo, portanto, da ordem do
desejo. Segundo, a obediência se coaduna com o que é considerado bom segundo
o direito ou segundo o decreto comum. Analisaremos esses dois aspectos da
obediência: a vontade, e o que é considerado bom pelo direito ou decreto comum.
A noção de vontade nos remete ao escólio da proposição 9 da Parte III
da Ética, onde encontramos a definição de vontade como o esforço da mente por
perseverar em seu ser569. Definição que é seguida da definição de apetite como
este mesmo esforço quando referido simultaneamente ao corpo e à mente, e que se
iguala ao desejo quando se tem consciência dele. Vontade é, portanto, expressão
do conatus, próxima da noção de desejo apenas diferindo-se deste por estar
referida somente à mente.
Já poderíamos, apenas com a definição da obediência como uma
vontade constante, levantar aqui o primeiro e principal elemento que faz da
obediência servil um paradoxo, faz do desejo de servidão algo, a primeira vista,
inconcebível na filosofia espinosana. Ora, se a obediência é expressão do conatus,
esforço da multidão em perseverar no seu ser, ela deveria ser esforço por bons
encontros, por paixões alegres e por alegrias ativas. Já vimos que o conatus é
sempre esforço positivo e atual de afirmação na existência, esforço pelo útil e por
bons encontros que aumentem a potência do indivíduo. Neste cenário, como
conceber um desejo de servidão?

569
“EIII, proposição 9 : A mente, quer enquanto tem ideias claras e distintas, quer enquanto tem
ideias confusas, esforça-se por perseverar em seu ser por uma duração indefinida, e está consciente
desse seu esforço. (...)
Escólio.Esse esforço , à medida que está referido apenas à mente, chama-se vontade; mas à medida
que está referido simultaneamente à mente e ao corpo chama-se apetite, o qual, portanto, nada
mais é do que a própria essência do homem, de cuja natureza necessariamente se seguem aquelas
coisas que servem para a sua conservação, e as quais o homem está, assim, determinado a realizar.
Além disso, entre apetite e desejo não há nenhuma diferença, excetuando-se que, comumente,
refere-se o desejo aos homens à medida que estão conscientes de seu apetite. Pode-se fornecer,
assim, a seguinte definição: o desejo é o apetite juntamente com a consciência que dele se tem.”
252

A resposta é simples e nos leva ao segundo conceito que destacamos


como constituinte da definição de obediência, o conceito daquilo que é bom
segundo o direito ou segundo decreto comum. Os homens não desejam a servidão
pela servidão, mas desejam algo de bom e de útil que imaginam estar no decreto
comum que por isso mesmo exige obediência570. A obediência exprime-se como
experiência de servidão quando aquilo considerado bom pelo direito ou decreto
comum, é, na verdade, usurpado por aquele ou aqueles que exercem o poder e
resumido ao interesse particular dos governantes. Quando o direito não exprime o
bem comum mas é privatizado em interesses particulares, quando o medo
encastela o poder em discursos da transcendência a obediência é experiência de
servidão.
Vejamos com calma como a obediência servil se constitui no campo
do sujeito ético, pela potência da imaginação. Nosso filósofo afirma, na mesma
proposição 9 da E III, que a mente se esforça em perseverar na existência quer
quando tem ideias claras e distintas, operando na razão, quer quando tem ideias
confusas e inadequadas, na imaginação: “A mente, quer enquanto tem ideias
claras e distintas, quer enquanto tem ideias confusas, esforça-se por perseverar em
seu ser por uma duração indefinida, e está consciente desse seu esforço.” Assim
como afirmamos que a imaginação é o status de pensamento mais corriqueiro e
corrente dos homens, Espinosa destaca que imaginar, encadear de forma confusa
ideias inadequadas, também é uma expressão do conatus na mente. Mesmo que
afirmando o falso, ainda que operando com conclusões sem premissas, imersa na
aleatoriedade das afecções do corpo, na imaginação a mente está se esforçando
por perseverar na existência, ainda que deste esforço advenham apenas ideias
inadequadas.
Neste sentido, do que vimos a respeito da definição de vontade e
desejo, cumpre-nos concluir que teremos vontades e desejos acompanhados de
ideias adequadas, da razão, e teremos também vontades e desejos acompanhados
de ideias inadequadas, imersos na imaginação. Vontades e desejos são expressões
do conatus da mente, quer quando esta opera na razão, quer quando imagina.

570
« La formulation même de Spinoza est éclairante et doit nous guider : les hommes ne
recherchent pas la servitude pour la servitude, la négation de leur désir pour la négation de leur
désir mais pour quelque chose dans la servitude, dans cette négation, qui est de l’order même du
salut, c’est-à-dire de l’affirmation de la vie. Les hommes combattaient pour la servitude avec la
même ardeur que s’ils combattaient pour leur salut parce qu’ils recherchent le salut dans la
servitude » BOVE, Laurent. La stratégie du conatus... pg.180
253

Desta forma fica claro porque é possível desejar como bom algo que, na verdade,
traz tristeza, desejar a servidão como se se tratasse da salvação: no campo da
imaginação o desejo pode afirmar a própria negação se imerso em paixões e ideias
inadequadas.
O escólio da mesma proposição 9 da E III, termina com a
importantíssima colocação:

Torna-se, assim, evidente, por tudo isso, que não é por julgarmos uma coisa
boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a
desejamos, mas ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la,
por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa.571

Já vimos que, em Espinosa, não existem critérios universais de bem e


mal, as coisas, consideradas em si mesmas, não são boas ou más, é o desejo que
constitui seu objeto e não o contrário. É o desejo que qualifica o que nos parece
bom e útil e, ao contrário, o que concebemos como mau. Neste sentido, se existem
desejos acompanhados de ideias adequadas e desejos imersos na imaginação, no
campo destes últimos é possível desejar uma coisa, julgá-la útil levado por ideias
inadequadas e, na verdade, estar desejando um mau encontro ou a própria
servidão. A imaginação pode banhar o desejo de ideias inadequadas de tal maneira
que, como diz Espinosa na introdução do TTP, “os homens combatam pela
servidão como se fosse pela salvação.572”
O paradoxo do desejo de servidão se explica na imaginação. É em
meio a ideias inadequadas, na confusão do campo imaginativo, que o desejo,
imerso em outras paixões, constitui seu objeto, julgando equivocadamente como
bom aquilo que constitui sua própria servidão. Não é a toa que Espinosa começa a
parte IV da Ética, dedicada ao tema de servidão, com a primeira proposição
dedicada à potência da ideia falsa:

Nada do que uma ideia falsa tem de positivo é suprimido pela presença do
verdadeiro enquanto verdadeiro. (...)
Escólio. (...) Portanto as imaginações não se desvanecem pela presença do
verdadeiro, enquanto verdadeiro, mas porque se apresentam outras
imaginações mais fortes que excluem a existência presente das coisas que
imaginamos...573

571
E III, prop. 9, escólio
572
TTP, pg.8
573
E IV, prop. 1
254

A ideia falsa se afirma na mente com uma potência própria que não é
destituída apenas pela presença do verdadeiro enquanto tal. Ideias imaginativas
que acompanham afecções do corpo, por exemplo, não deixam de nos assaltar
apenas porque saibamos intelectualmente de sua falsidade. Cabe aqui o exemplo
espinosano acerca da distância que nos separa do sol:

Por exemplo, quando contemplamos o sol, imaginamos que está a uma


distância aproximada de duzentos pés, no que nos enganamos, enquanto não
soubermos qual é a distância verdadeira. Conhecida a distância, suprime-se,
é verdade, o erro, mas não a imaginação, isto é, a ideia do sol, a qual explica
sua natureza apenas à medida que o corpo é por ele afetado. E, assim,
embora saibamos a verdadeira distância, continuaremos, entretanto a
imaginar que ele está perto de nós. Pois, (...) imaginamos que o sol está tão
próximo não por ignorarmos a distância verdadeira, mas porque a mente
concebe o tamanho do sol apenas à medida que o corpo é por ele afetado.
EIV, prop.1, escólio

A imaginação é gênero de conhecimento inevitável da mente, e se


afirma ainda que na presença de ideias verdadeiras. Espinosa começa a tratar da
servidão humana enunciando a potência da imaginação: ideias confusas e
mutiladas que acompanham necessariamente as afecções do corpo e conhecimento
inadequado que insiste em afirmar-se como estado mais imediato da concatenação
das ideias na mente. A ideia falsa tem uma potência própria de afirmar-se na
mente, a imaginação, gênero de conhecimento mais corrente a guiar os homens,
produz realidade.
Chegamos do tema da potência da imaginação ao tema da obediência
como desejo de servidão quando as ideias inadequadas da primeira,
acompanhadas de afetos tristes, constituem no imaginário coletivo da multidão o
conceito de “bom segundo o direito ou decreto comum” como expressão de
interesses particulares, transvestidos por uma ideia falsa do que seria o bem
comum. Já vimos que, para Espinosa, a política está inexoravelmente imersa na
imaginação, no entanto, existem na imaginação ideias e afetos que aumentam a
potência da multidão e propiciam o campo da liberdade política, e outras ideias e
afetos mais próximos da servidão, ideias falsas e afetos tristes que aprisionam a
multidão na impotência. O paradoxo do desejo de servir se constitui imerso neste
campo servil da imaginação, envolta em ideias falsas sobre o bom e o útil,
acompanhada de afetos que lhe enfraquecem a potência, a multidão servil
aquiesce à própria servidão como se se tratasse de sua salvação.
255

Se para tratar da servidão humana, nosso filósofo começa as


proposições da Ética IV pela ideia do falso, anteriormente, nas definições desta
mesma parte IV da Ética, Espinosa começa tratando das noções de bem e mal:

1. “Por bem compreenderei aquilo que sabemos, com certeza, nos ser útil.

2. Por mal compreenderei, por sua vez, aquilo que sabemos, com certeza,
nos impedir que desfrutemos de algum bem.”574

E ainda: “O conhecimento do bem e do mal nada mais é do que o


afeto de alegria ou de tristeza, à medida que dele estamos conscientes.” EIV,
prop. 8
Bem e mal não são categorias que digam respeito às coisas enquanto
tais, mas apenas características relacionais que se constituem na relação entre
estas e os homens, em seus esforços por perseverarem na existência. É a utilidade
individual o critério que distingue as coisas entre boas e más, e tal utilidade é
reconhecida pelos homens na mecânica afetiva dos encontros. A variação de
potência, alegria quando positiva e tristeza quando negativa, que acompanha o
encontro com cada coisa singular, é o que determina a consciência do que é um
bom ou um mau encontro, o que é um bem ou um mal individualmente.
E aqui atenção merece o final da proposição espinosana em análise: “à
medida que dele estamos conscientes”. Se, já o vimos, a imaginação tem uma
potência própria de afirmar-se na mente e constituir conhecimento inadequado,
que nos ocorre ainda que na presença do verdadeiro, também a identificação do
bem e do mal, do que nos causa alegria ou tristeza, pode ser objeto de ideias
falsas, quando imersa em outras ideias inadequadas e outras paixões como o medo
ou a esperança, o amor ou o ódio.
Espinosa não diz que os afetos de alegria e tristeza constituem o
conhecimento do bem e do mal e sim que o conhecimento do bem é um afeto
alegre e o conhecimento do mal, um afeto triste. Ou seja, na medida em que bem e
mal foram definidos como um saber certo sobre o útil (bom) e sobre o que nos
impede de ter um bem (mau), a certeza sobre o útil é uma forma de alegria e a
certeza sobre o obstáculo ao útil é uma forma de tristeza, pois, como é
demonstrado na Parte III da Ética, um afeto se refere à experiência corporal e
574
EIV, definições 1 e 2
256

psíquica do aumento ou da diminuição da potência de existir e de agir do corpo e


da mente. O aumento é a alegria (e seus derivados) e a diminuição, a tristeza (e
seus derivados) e, por conseguinte, como demonstrado na proposição 8 da Ética
IV, o conhecimento do bem e do mal é necessariamente um afeto. Nosso filósofo
ressalta expressamente que alegria e tristeza só conduzem ao conhecimento do
bem e do mal na medida em que estamos conscientes de tais afetos, e a
consciência de tais afetos pode estar banhada na imaginação575. As ideias falsas
tem sua própria potência e podem até distorcer a consciência da alegria e da
tristeza, levando a ideias inadequadas acerca do bom e do mau. Basta lembrarmos
que, para Espinosa, ter na mente a ideia de uma afecção do corpo ou um afeto não
significa, necessariamente, ter o conhecimento verdadeiro desta afecção ou afeto,
pelo contrário, a imaginação é o gênero de conhecimento mais frequente da
mente.
Assim, um discurso nacionalista inflamado, por exemplo, pode
convencer multidões de que é uma alegria deixar a vida num campo de batalha em
nome de um soberano ou um Estado. Ou, a história tristemente o confirma, ideias
sectárias podem conduzir toda uma sociedade à tristeza do ódio ao outro, ódio ao
diferente e desejo de extermínio, imaginando tratar-se de uma alegria a
“higienização” e pureza de uma raça. A imaginação acompanha a consciência da
alegria e da tristeza, o conhecimento do que é bom ou mau, e pode distorcê-los em
meio a outras paixões, até o paradoxo do desejo de servidão.

4.4

Reinar sobre os ânimos

“o maior poder é o daquele que reina sobre os ânimos dos súditos”


TTP, cap. XVII

Quando o decreto comum ou o direito não expressam o bem comum


mas sim interesses particulares, revestidos de ideias falsas do bom e do útil,

575
Na E IV Espinosa discorre a diferença de intensidade entre os afetos referentes a coisas
passadas, presentes e futuras, e os afetos referentes a coisas necessárias, possíveis e contingentes,
assim como o conhecimento verdadeiro do bem e do mal relativo a essas variações. Dados os
limites deste trabalho não abordaremos o tema detalhadamente remetendo o leitor às proposições 9
a 17 da EIV.
257

quando o poder político se sustenta em discursos do medo e da transcendência a


obediência é desejo de servir. No entanto, como sabemos, o desejo é expressão do
conatus e este é sempre esforço positivo e atual pela alegria, pela liberdade. A
Ética é clara em sua parte IV, proposição 25, ao afirmar que “ninguém se esforça
por perseverar no seu ser por causa de uma outra coisa”. Assim, convém repetir,
ninguém deseja a servidão pela servidão, mas sim por algum bem que julga
encontrar ao servir.
O cidadão de uma democracia obedece as leis comuns pois estas
exprimem o bem comum, o direito natural da multidão e, neste, também o próprio
conatus daquele que obedece. Na democracia a utilidade comum se coaduna à
utilidade individual de seus cidadãos que participam do processo político. Já o
escravo também se esforça em perseverar no seu ser, e obedece levado por um
paradoxal desejo de servidão, paradoxo que, como vimos, se explica na
inadequação das ideias imaginativas e das paixões. O escravo imagina algo de
positivo na servidão, decorre para ele da obediência à utilidade alheia algum grau
de alegria passiva, seja pelo medo (obedece para evitar um mal maior), seja pela
esperança de um bem futuro, ou ainda pela alegria imitativa de alegrar-se com o
bem daquele que ama (o bem da nação ou o bem do soberano), ou a alegria triste
da destruição de uma coisa odiada (um inimigo comum, por exemplo).
Nosso filósofo reconhece que há várias formas de se incutir e
fomentar a obediência, no entanto, umas são mais fortes do que outras. Diz o
Tratado Político, capítulo II:

10. Tem o outro sob seu poder quem o detém amarrado, ou quem lhe tirou
as armas e os meios de se defender ou de se evadir, quem lhe incutiu medo
ou quem, mediante um benefício, o vinculou de tal maneira a si que ele
prefere fazer-lhe a vontade a fazer a sua, e viver segundo o parecer dele a
viver segundo o seu. Quem tem o outro em seu poder sob a primeira ou a
segunda destas formas, detém só o corpo dele, não a mente; mas quem o
tem sob a terceira ou a quarta forma fez juridicamente seus, tanto a mente
como o corpo dele, embora só enquanto dura o medo ou a esperança; na
verdade, desaparecida esta ou aquele, o outro fica sob jurisdição de si
próprio.
11. Também a faculdade de julgar pode estar sob jurisdição de outrem, na
medida em que a mente pode ser enganada por outrem.576

Existe, portanto, a obediência imposta pela violência, pelas armas, a


submissão do corpo pela prevalência da força. Podemos lembrar aqui o que

576
TP, capítulo 2, parágrafos 10 e 11
258

discutimos acerca do ingenium da multidão como conjunto de práticas e hábitos


inscritos nos corpos dos seus indivíduos constituintes, a obediência que se faz
carne, impressa nos corpos desarmados, disciplinados, adestrados. Aqueles de
quem se tiraram as armas e os meios de se defender ou evadir-se, submetidos a
um Estado que, Estado moderno, detém, como diz Weber, o monopólio do uso
legítimo da violência, inseridos desde a infância em instituições disciplinares, a
obediência moldada nos corpos da multidão.
Mas Espinosa ressalta, ainda, uma outra face da obediência, o poder
que se inscreve nas mentes e nos corpos dos indivíduos, aquele poder que se
exerce pela dupla de afetos medo e esperança. Pela ameaça de punições e a
promessa de recompensas, a obediência pode inscrever-se nas mentes, assim
como nos corpos, dos indivíduos. Como expressão do próprio conatus os homens
entre dois males escolherão sempre o menor577, assim, se levados a temer um mal
maior, estes aceitarão de bom grado o mal que consideram menor. Se a obediência
lhes parece um mal menor frente à ameaça de uma punição maior pela
desobediência, os homens obedecerão, levados pelo medo do mal que creem
acompanhar a desobediência.
O mesmo raciocínio se aplica para a esperança. Entre dois bens os
homens escolherão sempre o que lhes parecer maior578. Se, atrelada à obediência
está a promessa de um bem futuro que pareça maior que o bem que acompanha a
desobediência, os homens decidirão pela obediência, na esperança da recompensa
imaginada. Ainda que mais forte que a obediência imposta pela força, visto que
esta se limita aos corpos, a obediência fundada no medo e na esperança tem uma
limitação intrínseca pois só pode durar enquanto durarem os afetos que a
sustentam. Ou seja, se abolidos o medo e a esperança, cai por terra também a
obediência.
No entanto, Espinosa afirma que a própria “faculdade de julgar pode
estar sob jurisdição de outrem”, e aqui chegamos, mais uma vez, ao tema da
imaginação, conforme o debatemos no item acima, ao tratar do paradoxo do
desejo de servidão. Todo desejo é expressão do conatus, esforço por existir, pela
alegria, por bons encontros, pela liberdade. No entanto, o obediente servil tem sua

577
E IV, prop. 65: “Conduzidos pela razão, buscaremos, entre dois bens, o maior e, entre dois
males, o menor”
578
E IV, prop. 65
259

faculdade de julgar mergulhada na imaginação, e dirigida por critérios de bom e


de útil que lhe são impostos pela ordem ou lei heterônoma a ser obedecida. Nosso
filósofo expressamente afirma a possibilidade de um indivíduo ter “a mente
enganada por outrem”, ter sua capacidade de julgar o bom e o útil sob jurisdição
alheia. A submissão tem a natureza desta alienação do desejo, deste mergulho da
própria mente na imaginação dos critérios heterônomos de bem e mal, virtude e
vício. A ordem ou o direito civil promulgados pelo poder entendido como
transcendente são tomados como interesses próprios, inscritos na imaginação os
valores alheios como bens próprios, a obediência servil reveste-se de alegria
passiva.
Nosso filósofo afirma que um Estado pode exercer seu poder por
qualquer uma das formas descritas acima, conforme a organização do seu próprio
imperium, seu direito civil e o ingenium da multidão. No capítulo XVII do
Teológico-Político, Espinosa reafirma o que dissera no capítulo XVI, isto é, que
ninguém transfere a outro o direito natural de agir e de julgar; porém, se assim é
(ou seja, Hobbes está equivocado), não é preciso determinar porque os cidadãos
obedecem ao direito civil ou ao poder soberano, uma vez que é necessária à
segurança e estabilidade do Estado a obediência, independentemente do motivo
que leva a obedecer. Em outras palavras, não interessa ao Estado os motivos
individuais (ou de foro íntimo) para a obediência e sim que esta aconteça.
Distanciando-se claramente de Hobbes, Espinosa escreve:

Porém, para se compreender até onde se estende exatamente o direito e o


poder do Estado, deve-se notar que, em rigor, esta não consiste em submeter
os homens pelo medo, mas absolutamente em tudo o que possa fazer com
que eles obedeçam às suas ordens: não é, efetivamente, a razão da
obediência, mas sim a obediência, que faz o súdito.579

Espinosa ressalta que, seja qual for a razão da obediência, não importa
se movidos pelo amor ou coagidos pelo medo, ainda que arrastados pelas paixões
e pelas ideias inadequadas, os súditos que agem conforme as ordens do Estado
agem por direito do Estado e não por direito próprio, ou seja, obedecem. Importa
à manutenção de um Estado a fidelidade dos súditos às suas ordens, e não os
motivos individuais que levam cada um deles a obedecê-las, pois sejam quais

579
TTP, cap. XVII, pg.251
260

forem as razões da obediência, o importante é que todos ajam segundo o direito


do Estado580.
Mas isto não quer dizer que sejam iguais os efeitos de cada uma das
formas da obediência. No mesmo capítulo XVII do TTP, em que nosso filósofo
afirma a importância da obediência dos súditos ao Estado, independente de suas
razões, ele destaca uma das formas do exercício do poder como a mais forte de
todas, dizendo: “o maior poder é o daquele que reina sobre os ânimos dos
súditos.”581 O poder que se exerce sobre a imaginação dos súditos, a obediência
fundada na alienação obtida por uma operação da soberania sobre a própria
capacidade de julgamento dos indivíduos, é a forma mais poderosa de obediência,
a submissão.
Isto porque, diz ainda Espinosa, no mesmo capítulo do TTP: “A
mesma conclusão decorre, com toda clareza, do fato de a obediência não ser tanto
uma ação exterior como uma ação interior da vontade.”582 Reinar sobre os ânimos
dos súditos é reinar sobre sua capacidade de julgamento, exercer o poder sobre a
imaginação do que é bom e útil à multidão. A obediência, explica Espinosa, não é
uma operação externa visível e sim uma operação interna, visto ser a vontade
constante de respeitar o direito civil ou as leis. Justamente por isso, a obediência
será tanto mais forte quanto mais interiorizada, isto é, quanto mais o poder
soberano agir sobre o ânimo dos cidadãos.
E neste sentido, o poder sobre os ânimos, sobre o próprio julgamento
do bom e do útil nas mentes dos súditos, é mais poderoso do que o poder fundado
apenas no medo e na esperança, pois estas duas paixões, como sempre enfatiza
Espinosa, são voláteis, mutáveis e inconstantes, um solo frágil para o poder
político, enquanto que a obediência é uma vontade constante, duradoura,
determinada pelo útil e pelo bom. A obediência inscrita nos ânimos dos súditos,
seja ela realizada por compreensão da bondade e utilidade das leis, seja ela
fundada na submissão da própria capacidade de julgamento aos decretos sobre o
útil e o bom decretados pelo detentor da soberania, é mais poderosa do que a

580
“Sendo assim, desde que esteja conforme às ordens do soberano, faça um súdito aquilo que
fizer, seja movido por amor ou coagido pelo medo, seja (o que é mais frequente) levado pela
esperança e pelo medo ao mesmo tempo, seja por reverência, que é uma paixão composta de medo
e admiração, seja, enfim, por qualquer outro motivo, é sempre por direito do Estado e não por
direito próprio que ele age.” TTP, cap. XVII, pg. 252
581
TTP, cap. XVII, pg. 252
582
TTP, cap. XVII, pg.252
261

obediência que tem como único fundamento o medo: “Se fossem os mais temidos
os que tinham maior poder, então o maior poder seria o que têm os súditos dos
tiranos, a quem estes temem mais que a qualquer coisa”583

E ainda:

A natureza humana, porém, não tolera ser totalmente coagida e, como diz
Sêneca, o Trágico, nunca um poder violento aguentou por muito tempo; um
poder moderado, pelo contrário, é duradouro. Na verdade, quando os
homens agem apenas por medo, fazem o que menos gostariam de fazer e
não se importam com a utilidade nem a necessidade do que fazem,
procurando unicamente não pôr a cabeça em risco, isto é, não se expor aos
castigos.584

Por que maior do que o poder do medo, o poder que se inscreve na


mente da multidão é um poder que se exerce sobre a própria imaginação dos
cidadãos. Quando estes vivem numa democracia, a mente da multidão soberana
obedece guiada por sua própria imaginação; porém, quando os homens vivem sob
regimes tirânicos o poder exercido sobre seus ânimos tem a força para produzir a
obediência como desejo de servidão. É ao governar os ânimos, de modo que os
súditos convençam-se da utilidade da obediência, que o poder se exerce da forma
mais poderosa. Poder que opera a inversão paradoxal do útil individual e coletivo
em utilidade alheia, que leva os indivíduos e a multidão a buscarem o bem do
Estado ou do soberano mesmo quando este tende a aniquilar o conatus individual
e/ou coletivo.
Capaz de arrastar uma multidão à servidão, convencendo-a tratar-se
de alegria o próprio aprisionamento, mais poderoso que o poder imposto pelo
medo é o poder consentido pelo ânimo enganado, poder tácito que perpassa o
ingenium da multidão cuja própria constituição é servil, e cujas próprias relações
constitutivas reproduzem a servidão. Multidão que ama a servidão como se se
tratasse da própria salvação.
Sobre a obediência fundada no medo em oposição à obediência
fundada na alienação da capacidade de julgar poderíamos contrapor à posição
espinosana a célebre questão maquiaveliana presente no Príncipe, onde o

583
TTP, cap. XVII, pg. 252
584
TTP, cap. V, pg. 86
262

sapientíssimo florentino indaga “Da crueldade e da piedade: se é melhor ser


amado do que temido ou o contrário”585
Em princípio Espinosa e Maquiavel parecem se distanciar na análise
desta questão já que, como vimos, nosso filósofo afirma ser a obediência fundada
no governo dos ânimos mais forte que aquela fundada unicamente no medo. Já
Maquiavel afirma categoricamente:

se é melhor ser amado que temido, ou o contrário. Responde-se que se


gostaria de ser um e outro; mas porque é difícil conciliá-los, é muito mais
seguro ser temido que amado, quando se deve ser desprovido de um dos
dois.586

Porém, uma análise mais detalhada das posições dos dois autores nos
leva a concluir que a oposição entre ambos é apenas aparente e num juízo mais
profundo ambos se encontram ao falar da utilidade do medo para assegurar a
segurança do Estado e o poder dos afetos para governar os ânimos e garantir a
obediência. Maquiavel fundamenta sua opção pelo medo, como afeto mais seguro
para governar a multidão, em detrimento do amor ao príncipe, na inconstância dos
homens e no fato de que o medo depende apenas das ações do próprio príncipe
enquanto que o amor dependeria da opinião volúvel dos homens:

Concluo, portanto, voltando a ser temido e amado, que os homens amam


quando lhes convém, e temem o príncipe pelas escolhas deste, deve um
príncipe sábio fundar-se sobre o que é seu e não sobre o que é dos outros587

Ora, quanto a isso concordam Maquiavel e Espinosa. O fato de nosso


filósofo afirmar que o maior poder é o daquele que reina sobre os ânimos não o
leva a excluir o medo como afeto importante para garantir a obediência. Pelo
contrário, nosso filósofo também afirma a necessidade de que o Estado mantenha
instituições capazes de assegurar a obediência pela mecânica das ameaças, ou seja
pelo medo, independente do móbil individual de cada cidadão:

É, pois, com base nessa lei que se poderá estabelecer uma sociedade, sob a
condição de que esta avoque para si própria o direito que cada um tem de se
vingar e de julgar sobre o bem e o mal. E que ela tenha, portanto, o poder de

585
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, São Paulo: Hedra, 2007, cap. XVII, pg.163
586
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, São Paulo: Hedra, 2007, cap. XVII, pg.165
587
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, São Paulo: Hedra, 2007, cap. XVII, pg.169
263

prescrever uma norma de vida comum e elaborar leis, fazendo-as cumprir não
pela razão, que não pode refrear os afetos, mas por ameaças.588

Por outro lado, Maquiavel reconhece as limitações do poder que se


exerce apenas pelo medo ao recomendar expressamente que o príncipe que não
puder ser amado deve evitar ser odiado:

Contudo, deve o príncipe fazer-se temer de tal modo, que, se não conquiste
o amor, evite o ódio, porque pode muito bem estar junto o ser temido e o
não ser odiado589.

Dada a instabilidade do julgamento dos homens, Maquiavel afirma ser


perigoso ao príncipe esforçar-se por ser amado, mas que, no entanto, este deve
evitar ser odiado. Claude Lefort, em seus comentários acerca da obra de
Maquiavel é quem ressalta que em Maquiavel não há uma relação simétrica entre
a boa e a má imagem do príncipe. Afirma o comentador que a imagem não-boa do
príncipe não significa, necessariamente, uma má imagem590. Assim, é possível ao
príncipe maquiaveliano não ser amado, porém isso não significa que ele será
odiado.
Tendo em vista que a boa ou má imagem do príncipe depende da
inconstância dos homens, Maquiavel abre ao príncipe o campo do não-amado
porém também não-odiado. Assim, negativamente o príncipe que não puder ser
amado deve evitar ser odiado e, ao mesmo tempo, positivamente deve ser temido,
o que depende apenas de suas ações.
Assim, Espinosa e Maquiavel encontram-se ao afirmarem a
importância do medo na manutenção da obediência ao Estado e, ao mesmo tempo,
o poderoso papel da imagem do soberano nas mentes da multidão, afirmando
Espinosa o poder deste em reinar sobre os ânimos dos súditos, e Maquiavel ao
salientar o quanto é importante ao príncipe, se este não puder ser amado, evitar ser
odiado.

588
EIV, prop. 37
589
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, cap. XVII.
590
« Mais la bonne et la mauvaise ne sont pas symétriques, puisque la non mauvaise se situe du
moins dans les parages de la bonne, tandis que la non bonne demeure en tout cas à distance de la
mauvaise. » LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre MAQUIAVEL, Paris : Gallimard, 1972,
pg.409
264

4.5
A multidão servil

Dissemos que a obediência servil é um ciclo vicioso onde, ao mesmo


tempo em que a multidão ao obedecer sustenta o soberano, este tem os meios de
alimentar na multidão este desejo de servir, manipular a imaginação para que a
obediência se retroalimente no próprio ingenium da multidão. Falamos das figuras
emblemáticas do cidadão e do escravo para depois afirmarmos, com Espinosa, a
superioridade daquela obediência que consegue se inscrever no próprio ânimo
daqueles que servem. O maior poder, neste sentido, é aquele sustentado pela
imaginação de algo de bom na servidão. Ao Estado pouco importam as razões da
obediência, no entanto, nosso filósofo o reconhece expressamente, mais que na
força ou no medo, é naquilo que o poder tem de sedutor, de convincente, de
servidão voluntária, que mora a forma mais poderosa de obediência.
Se falamos, até aqui, da obediência que sustenta o poder, veremos
agora alguns instrumentos do poder que alimentam a obediência. Se até aqui
tratamos do desejo de servidão que sustenta o tirano, percorreremos agora o
sentido inverso visitando, ainda que brevemente, algumas ideias e afetos que
sustentam a obediência no imaginário da multidão. Vimos que é a obediência
servil que faz o tirano, mas algumas ideias e afetos impregnados no ingenium da
multidão são capazes de manter a servidão de tal forma arraigada que, nosso
filósofo o reconhece, ainda que derrubado o tirano, a servidão não se extingue,
pelo contrário, se reproduz no novo governo tão servil quanto no anterior.
O discurso da soberania, já o vimos no capítulo 2, é um desses
instrumentos de constituição da obediência servil no imaginário da multidão. A
transposição para o campo político do discurso transcendente da teologia, a ideia
de um soberano que governa segundo segredos do poder, os arcana imperii, um
poder que se exerce em prol de interesses particulares. Neste cenário, a
superstição é uma poderosa arma da servidão, o poder que se mantém pelo jogo
de medo e esperança, fundado na crença em um poder transcendente, na
contingência e num conjunto de ideias e práticas que impõe a obediência.
No entanto, não voltaremos a este tema nesta análise da servidão da
multidão, já lhe dedicamos todo o nosso capítulo 2, ao qual, sobre o assunto,
remetemos o leitor. Tão pouco voltaremos especificamente aos temas do medo e
265

da esperança. Já assinalamos o importantíssimo papel do medo e da esperança na


constituição da obediência servil fundada no discurso da transcendência do
soberano, lhe dedicando todo um item do mesmo capítulo 2. E sobre o medo e a
esperança ligados às ameaças de punições e promessas de recompensa na
mecânica afetiva que sustenta o próprio direito civil do Estado, também já lhe
dedicamos análise suficiente ao tratarmos do direito civil em nosso item 3.3.
Deixando de lado agora o já analisado discurso da transcendência e da
superstição, bem como os igualmente já estudados afetos de medo e esperança,
procuramos outras ideias e afetos capazes de constituir a servidão. Buscamos o
que pode configurar o “reinar sobre os ânimos”, apontado por Espinosa. Que
ideias e afetos podem constituir a obediência como paradoxal experiência de
alegria servil? Como se constitui no ingenium da multidão o desejo pela utilidade
de outrem, a inversão da capacidade de julgamento do bom e do útil? O que não é
medo, não é esperança e, ainda assim, é mecânica afetiva capaz de alimentar o
paradoxal desejo de servidão?
Ressaltamos, antes de prosseguir, que as ideias e paixões que
apresentamos a seguir podem povoar a imaginação das multidões mais servis, mas
isso não significa que o façam necessariamente. Apresentaremos algumas faces e
traços da servidão que, conjuntamente com o medo e a esperança, podem
sustentar o desejo de servir, o que não significa que estejam presentes em todas as
manifestações do poder tirânico ou que sejam essenciais para sua manutenção.

4.5.1

O amor ao tirano

A imitação afetiva explica a alegria que acompanha a ideia de alguém


que amamos afetado de alegria591. O amor explica de forma simples o desejo pelo
bem de outrem592. Se, ainda que na ausência de nenhum afeto primário, por outros
por quem não experimentamos nenhum afeto prévio, Espinosa admite a
possibilidade de um homem ser capaz de colocar a alegria alheia acima da própria
591
“Quem imagina que aquilo que ama é afetado de alegria ou de tristeza será igualmente afetado
de alegria ou de tristeza...” EIII, prop.21
592
“Esforçamo-nos por afirmar, quanto a nós e à coisa amada, tudo aquilo que imaginamos afetar,
a nós ou a ela, de alegria; e contrariamente, por negar tudo aquilo que imaginamos afetar, a nós ou
a ela, de tristeza.” EIII, prop. 25
266

busca pelo que lhe é útil593, maior será este desejo de agradar o outro quanto mais
tivermos amor por este outro.
Nosso filósofo, em consequência da mecânica da imitação afetiva, não
prevê somente a ambição de agradar o outro594, mas admite expressamente que é
possível fazê-lo com tal zelo “que fazemos ou deixamos de fazer certas coisas que
resultem em detrimento nosso ou alheio.”595 A ambição de fazer o que
imaginamos que os outros veem com alegria pode suplantar a própria busca pela
alegria individual, e, podemos concluir que, tanto maior será esta ambição quanto
mais nos alegremos por imitação com a alegria do outro, ou seja, quanto mais
tivermos amor pelo outro.
Espinosa nos fala da ambição de fazer o que imaginamos alegrar ao
vulgo, ainda que por este não tenhamos nenhum outro afeto prévio, pelo simples
fato de que nos alegramos também ao imaginar outras coisas semelhantes a nós
afetadas de alegria. Ora, por força da imitação afetiva, tanto maior será nossa
alegria com a imagem da alegria alheia tanto mais tenhamos por esta um afeto
prévio de amor. Donde podemos concluir que nos esforçaremos com maior afinco
por alegrar alguém que amamos, do que por alegrar alguém para com quem não
nutrimos nenhum outro afeto.
Neste sentido, não é difícil identificar o quanto pode ser útil ao
soberano ser amado pelos seus súditos. O que distingue o desejo de servir é
justamente a alegria passiva que acompanha a servidão, a imaginação de alguma
alegria em realizar o que é considerado bom e útil pelo outro, o soberano ou o
direito civil. Espinosa trata claramente no Tratado Teológico-político da imagem
que deve manter o soberano perante seus súditos de modo que seja por estes
admirado:

Daqui se conclui o seguinte: em primeiro lugar, que o poder, ou está


colegialmente nas mãos de toda a sociedade, se isso for possível, de modo
que cada um obedeça a si mesmo e não aos seus semelhantes, ou então, se
estiver nas mãos de uns tantos ou até de um só, este terá de possuir algo de

593
“Esse esforço por fazer algo ou por deixar de fazê-lo, com o único propósito de agradar aos
homens, chama-se ambição, sobretudo quando nos esforçamos por agradar ao vulgo com tal
zelo que fazemos ou deixamos de fazer certas coisas que resultem em detrimento nosso ou
alheio.” EIII, prop. 29, escólio (grifo nosso)
594
“Nós nos esforçaremos, igualmente, por fazer tudo aquilo que imaginamos que os homens
veem com alegria e, contrariamente, abominaremos fazer aquilo que imaginamos que os homens
abominam.” EIII, prop. 29
595
EIII, prop. 29, escólio
267

superior ao que é comum na natureza humana ou ao menos esforçar-se


o possível para que o vulgo se convença de que é assim.596 (grifo nosso)

O soberano deve ser visto por seus súditos com qualidades especiais,
uma pessoa digna de admiração. Estamos aqui diante, portanto, de uma forma
específica de amor que pode estreitar os laços de obediência e alimentar a
servidão nas mentes da multidão: a adoração, o amor por aquele a quem se tem
admiração597. O soberano adorado encontra mais facilmente o consentimento da
multidão que lhe venera, e a obediência mais poderosa pois permeada por alegrias
passivas598.
Podemos citar aqui, como exemplo, a figura de Moisés na fundação
do Estado Hebraico. Num primeiro momento, depois de fugido do Egito, todo o
povo hebraico se submete imediatamente à vontade de Deus, numa teocracia. No
entanto, diz Espinosa, o povo se apavora ao ouvir o estrondo da voz de Jeová,
“ouviram de tal maneira atônitos a palavra de Deus que julgaram ter chegado o
fim de seus dias”599, então os hebreus aboliram o primeiro pacto, firmado
diretamente com Deus, e “transferiram por completo para Moisés o seu direito de
interpelar Deus e interpretar seus éditos”600. O povo hebraico deixa nas mãos de
Moisés a tarefa de comunicar-se diretamente com Deus e governar segundo a Sua
vontade. Assim, Moisés passa a diferenciar-se dos demais cidadãos, é tido como
governante que tem a característica especial de comunicar-se diretamente com
Deus. O consentimento lhe vem, então, permeado pela crença religiosa e pela
adoração.
É mais fácil “reinar sobre os ânimos” quando se constrói na
imaginação da multidão a admiração pela figura do soberano dotado de virtudes
extraordinárias. A adoração leva a multidão a alegrar-se com a obediência ao
ponto de coloca-la acima de seus interesses individuais. E tal admiração pode ser
construída no imaginário coletivo da multidão fazendo-se acompanhar a pessoa do
soberano por uma série de crenças e um cerimonial próprio que lhe distingam dos

596
TTP, cap. V, pg. 86
597
E III, definição dos afetos, 10
598
“aquele ou aqueles que tiverem o poder soberano devem fazer com que os demais (ou todos)
acreditem na superioridade desse poder. Não basta a lei, é preciso a crença. Sem a fé na
superioridade do detentor do poder (rei, patrícios, povo), a multitudo jamais se submeterá e jamais
obedecerá.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg.195
599
TTP, cap. XVII, pg.257
600
TTP, cap. XVII, pg. 257
268

outros homens. Vestimentas próprias, gestos e palavras de reverência, tudo que


possa diferenciar o soberano de qualquer cidadão comum601.
Mais uma vez, aqui encontramos no pensamento espinosano uma
ressonância das análises de Maquiavel. O autor florentino, como o vimos,
admitindo a hipótese do príncipe não ser amado pelos súditos ressalta, no entanto,
que este deve evitar ser odiado e desprezado602. Numa construção muito próxima
da que destacamos acima nas palavras de Espinosa, Maquiavel ressalta que o
príncipe deve sustentar para si próprio uma figura de virtudes aos olhos de seus
súditos:

A um príncipe, portanto, não é necessário ter de fato todas as sobreditas


qualidades, mas é muito necessário parecer tê-las; assim, ousarei dizer isto:
que, tendo-as e observando-as sempre são danosas, e parecendo tê-las são
úteis; como parecer piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e sê-lo: mas
estar com o ânimo predisposto, para que necessitando não sê-lo, tu possas e
saibas ser o contrário.603

Assim como Espinosa, Maquiavel antes dele afirma a importância da


imagem virtuosa do soberano aos olhos dos súditos. Aquele que é admirado é,
aos olhos dos súditos, mais digno de obediência e mais propenso a ser adorado.
Maquiavel reconhece que, na política, nem sempre o príncipe deve guardar
consonância com as qualidades morais que esposa, mas frente aos súditos deve,
tanto quanto possível, sempre tentar parecer tê-las.
Assim como Espinosa fala do soberano que deve esforçar-se para que
o vulgo o julgue superior aos demais homens, Maquiavel enuncia a importância
do príncipe parecer virtuoso, ainda que seja igualmente necessário a este saber
despojar-se destas virtudes quando necessário604.
A imagem virtuosa do tirano construída na imaginação da multidão e
a adoração deste como afeto capaz de incitar a obediência servil é tema que

601
“Tiranos, reis e oligarcas sabem que a plebe pode adquirir força para derrubá-los. Esse saber
engendra efeitos necessários: o esforço para manter a plebe dispersa e desorganizada (...) emprego
de cerimônias e ritos que teatralizam a política e reiteram a distância entre a plebe e os
governantes.” CHAUÍ, Marilena. Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, pg.169/170.
602
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe... cap. XVII e XIX
603
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe... cap. XVIII, pg.173
604
Merleau-ponty em sua Note sur MAQUIAVEL aprofunda a análise desta aparência virtuosa do
príncipe em MAQUIAVEL analisando a repercussão própria das ações históricas e o julgamento
da maioria dos homens pelas aparências. Sobre o tema: Merleau-Ponty, Maurice. « Note sur
MAQUIAVEL”, in Signes, Gallimard, 1985, também disponível em
http://www.caute.lautre.net/spip.php?article1002, acessado em 23/09/12
269

retorna no século XX na análise de Wilhelm Reich, ao tratar especificamente do


papel da figura do füher no estado nazista alemão, em sua obra Psicologia de
massa do fascismo. Embora não seja o argumento central da reflexão do autor,
Reich reconhece na figura de Hitler no imaginário coletivo um fator de
identificação da massa com o ideário nazista e, portanto, de sua obediência
voluntária. É a identificação com a pessoa do füher, associada à construção de sua
figura como encarnação dos ideais da nação e figura paterna, ao mesmo tempo
protetor e dono de maior sabedoria, que incute na multidão o desejo de servir-lhe.
A observação histórica do comportamento das massas em qualquer manifestação
nazista deixa clara a adoração pelo füher que subjaz à toda a ideologia nacional-
socialista da época. Neste sentido diz Wilhelm Reich:

Para a psicologia de massa, o chefe (füher) nacionalista representa a


encarnação da nação. É apenas na medida em que esse chefe encarna a
nação, em conformidade com os sentimentos da massa, pode instaurar-se
em relação a ele um laço pessoal. Na medida em que ele consegue despertar
nas massas laços afetivos familiares historicamente preponderantes, fica a
ser do mesmo lance uma figura paterna, ou seja que concentra em si todas
as posições afetivas primitivamente adotas em relação ao pai, severo, mas
também protetor e representativo (pelo menos representativo na imaginação
da criança). Frequentemente ouviam-se partidários do nacional-socialismo,
com os quais se falava do caráter insustentável, devido às suas contradições,
do programa do NSDAP, dizer que Hitler entendia muito melhor do
assunto, que ele encontraria todas as soluções. Vemos assim exprimir-se
claramente a posição infantil da busca de uma proteção junto ao pai605

A identificação com o tirano, o amor pelo fürer, que, segundo Reich,


reproduz os laços afetivos familiares, a inscrição no imaginário coletivo da figura
de um governante que tem todas as respostas e encarna em si mesmo os anseios e
valores de toda a nação são ideias e afetos da servidão voluntária. E no século
XX, com o nazismo, assim como afirmara Espinosa no século XVII, e Maquiavel
antes dele, não se trata da realidade de um homem que encarna todas essas
qualidades, mas da ideia deste homem na imaginação da multidão. Reich destaca
que “a importância sociológica de Hitler provém, não da sua personalidade, mas
da significação que lhe dão as massas.”606
Já vimos que é a imaginação que explica o paradoxo do desejo de
servir e um dos traços desta imaginação passa pela imagem adorada do tirano. A

605
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo, Porto: publicações escorpião, 1974, pg 61
606
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo, Porto: publicações escorpião, 1974, pg 40
270

servidão voluntária se justifica na imaginação do soberano como sujeito de


qualidades especiais, sujeito de virtudes e conhecimento superior, objeto de
admiração, de adoração, de amor servil.

4.5.2

Do um ao outro, da semelhança ao ódio

Vimos que a imitação afetiva é a mecânica que tece a sociabilidade


pela identificação de afetos entre coisas semelhantes. Diz Espinosa:

Por imaginarmos que uma coisa semelhante a nós e que não nos provocou
nenhum afeto é afetada de algum afeto, seremos, em razão dessa
imaginação, afetados de um afeto semelhante.” EIII, prop. 27

No entanto, se é a imaginação do afeto alheio que produz em nós, por


imitação, um afeto semelhante, é preciso destacar que, a maioria das vezes, a
distinção do que são “coisas semelhantes a nós” também se dá no campo
imaginativo. O critério de semelhança, fundamental à gênese da imitação afetiva,
é, na maioria das vezes, um critério forjado na imaginação.
Já vimos que a maioria dos homens, na maior parte do tempo está
imersa na imaginação, e, embora homens guiados pela razão possam reconhecer
seus semelhantes pelas ideias adequadas da conveniência ou não de seus
encontros, em geral é no campo das ideias inadequadas da imaginação que os
homens distinguem o que é, ou não, semelhança capaz de ensejar a imitação
afetiva. Se a política se instaura no campo da imaginação, podemos assinalar que
a própria sociabilidade e a constituição da multidão também está inexoravelmente
mergulhada nas ideias inadequadas, e nas paixões próprias da imaginação.
Na ausência de qualquer afeto prévio - diz Espinosa tratar-se do
encontro com coisa “que não nos provocou nenhum afeto” - somente o
reconhecimento da semelhança é o liame capaz de ensejar a imitação afetiva.
Deixado a cargo da imaginação, e tendo a imitação afetiva função de vínculo de
sociabilidade constituinte da multidão, o critério de semelhança pode ser erigido à
função de distinção da pertença ou não a uma determinada sociedade. A
construção imaginária da identidade de uma determinada nação, ou povo, ou raça
pode imbricar-se de tal modo com a construção imaginária da noção de “coisas
271

semelhantes a nós”, que seus indivíduos constituintes tornem-se incapazes até de


experimentarem qualquer imitação afetiva com indivíduos de outra nação, ou
povo, ou raça. Lembremos aqui, por exemplo, que o argumento da distinção
biológica das raças sempre funcionou a favor do racismo.
Se a noção de semelhança é constituída na imaginação, esta vem
necessariamente também acompanhada da identificação do “não-semelhante”. A
imitação afetiva, ao contrário de ser entendida como uma mecânica da
sociabilidade entre todos os homens, pode restringir-se por critérios imaginativos
restritivos da própria noção de “coisas semelhantes à nós”. A imaginação coletiva
do que constituiria o critério de semelhança capaz de ensejar a imitação afetiva,
pode conduzir uma sociedade a constituir-se segundo o mais amplo espectro de
integração e não discriminação, ou embasar as mais cruéis formas de segregação.
Ressalte-se que, ao abordarmos o tema do “não-semelhante” não
estamos, ainda, tratando do ódio. Imaginar outro homem como “não-semelhante”
não é, necessariamente, odiá-lo, mas, o que é mais cruel, ser-lhe totalmente
indiferente, é a incapacidade de experimentar afetos comuns. A cisão constituída
pela restrição do que imaginamos por “coisas semelhantes a nós” instaura o mais
alto grau da alteridade, o outro, ao qual é negada qualquer semelhança, é negada
qualquer relação de imitação afetiva, tornam-se indiferentes a sua alegria ou a sua
tristeza, seus desejos e seu sofrimento. Uma sociedade racista, pior que odiar a
outra raça, nega-lhe a própria humanidade ou considera-a diferente e inferior por
natureza.
Espinosa se aproxima explicitamente desta nossa análise sobre a
construção imaginativa dos critérios de semelhança capazes de ensejar a
sociabilidade ao tratar do tema da identidade nacional. Diz o filósofo:

Mas a natureza não cria nações, cria indivíduos, e estes são de


nacionalidades distintas em virtude apenas da diversidade da língua, das leis
e dos costumes herdados. Só estes dois últimos aspectos, as leis e os
costumes, podem fazer com que cada nação tenha uma índole particular,
condições específicas e, enfim, preconceitos próprios.607

Já dissemos que a constituição da potência coletiva da multidão é


também a constituição de um imaginário coletivo, uma série de ideias, práticas e

607
TTP, cap.XVII, pg.273
272

afetos comuns que formam o ingenium coletivo de um determinado grupo social.


A pertença a uma nação ou grupo social, como afirma nosso filósofo, passa,
então, pela comunhão com estas “leis e costumes”, esta “índole particular” de uma
multidão específica. E da mesma forma, pelas mesmas razões, a distinção
daqueles que não lhe fazem parte está justamente na não identificação com essas
suas “condições específicas” ou “preconceitos próprios”.
Tudo que foi dito no início deste capítulo sobre a ordem simbólica
coletiva que constitui a imaginação da multidão, e o ingenium coletivo composto
de ideias, paixões e práticas comuns, ganha agora sentido na construção
imaginária da semelhança e da unidade de uma determinada sociedade. Nosso
filósofo reconhece um exemplo histórico desta mecânica de construção de uma
identidade coletiva, através de hábitos e um imaginário comum, na constituição
do povo hebreu e sua auto-denominação como povo eleito por Deus608. Mais uma
vez, o exemplo do povo hebraico, analisado por Espinosa, pode ser ilustrativo. No
capítulo 3 do Tratado Teológico Político o filósofo estuda como a crença de ser
um povo eleito por Deus, assim como ritos e práticas comuns, como a circuncisão,
serviram para manter coeso o povo hebraico.
Ideia que acompanha, muitas vezes, a constituição da semelhança e da
identidade de uma nação ou grupo social é a de sua superioridade frente aos
demais grupos sociais. A construção imaginária do ingenium coletivo, das ideias e
práticas comuns, pode ser acompanhada da ideia de qualquer traço que distinga
esta sociedade como melhor que os “não-semelhantes”, ou, como no caso do povo
Hebraico, predileta de Deus.
Antes de prosseguirmos, cabe aqui uma ressalva. A constituição de
um ingenium coletivo é inerente a qualquer organização social, mesmo a mais
livre e democrática multidão compartilha de uma história comum, uma língua
comum, hábitos comuns, enfim, ideias, paixões e práticas que constituem a
própria identificação e semelhança entre seus indivíduos constituintes. O
ingenium coletivo não é, por si só, expressão de segregação e servidão, pelo
608
« Les Hébreux définissent ainsi leur identité dans l’imaginaire, en s’attribuant en exclusivité le
nom de filios Dei. Cette identité est celle d’un peuple, de l’histoire mythique d’une nation qui, au-
delà des individus mortels qui la composent, s’affirme dans sa substance imaginaire comme
indestructible, éternelle. » BOVE, Laurent. Stratégie du conatus... pg.200
Dados os limites e o recorte temático deste trabalho optamos por não aprofundarmo-nos no tema
do Estado Hebreu. Sobre o assunto, remetemos o leitor, além da leitura do próprio TTP, a:
BALIBAR, Etienne. Spinoza et La politique...pgs.55 a 63, BOVE, Laurent. Stratégie du conatus...
cap. VIII.
273

contrário é inerente à toda multidão, como expressão de seus laços sociais


constituintes.
No entanto, se as ideias e os hábitos comuns servem como
instrumentos para impor a uniformidade ao invés de expressarem a multiplicidade
de uma multidão, se os critérios de identificação e semelhança ao invés de
constituírem laços de solidariedade semeiam a discriminação e o ódio ao
diferente, se o ingenium coletivo afirma-se não como imaginário da união, do
respeito, da amizade, mas como discurso da segregação e da superioridade sobre o
outro, estamos diante de uma multidão servil.
Assim, é própria da servidão a ideia de fazer da unidade uniformidade.
Discurso da inversão da relação imanente de causa e efeito do ingenium coletivo
fazendo deste, não a expressão da constituição da multidão, mas conjunto de
ideias e práticas que devem lhe dar causa e determinar sua forma. A identificação
da semelhança passa a ser imposição de um mesmo conjunto de hábitos e crenças
que devem ser observados pelos cidadãos para que estes sejam identificados como
semelhantes, como membros de uma mesma nação ou um mesmo povo, e não o
contrário, a expressão imanente desta constituição coletiva. A multiplicidade de
singularidades da multidão é reduzida pela imaginação servil à busca pela
semelhança na uniformidade.
Mas, já o afirmamos, a constituição da identidade é também a
constituição da alteridade. Fixados no discurso tirânico da uniformidade, os
critérios da semelhança identificam aqueles que são parte da nação, ou do povo ou
da raça, ao mesmo tempo em que determinam quem são os “não-semelhantes”, os
membros de outras nações, outros povos, outra raça: os outros. E se os critério de
semelhança constituem relações de composição entre os indivíduos constituintes
da multidão, eles também servem para identificar os outros segundo sua própria
pertença à outras nações, outros povos ou outras raças.
Vale ressaltar, a título exemplificativo, que Espinosa atribui a coesão
do povo hebraico não só ao seu ingenium comum, mas ao fato de manter-se
distinto, por tais práticas, de todas as outras nações. A alteridade em relação a
todas as demais nações manteve o povo hebraico unido, tanto quanto a sua
comunhão interna de ideias e ritos609.

609
“O próprio fato de terem subsistido, apesar de andarem há tantos anos dispersos e sem um
Estado, não é para admirar, visto que se apartaram de qualquer nação e atraíram sobre si o ódio de
274

Nosso filósofo nos apresenta uma forma de associação afetiva que


segue esta imaginação da semelhança entre os indivíduos que comungam de um
ingenium comum, distintivo de uma determinada nação ou grupo social. Não só os
semelhantes se reconhecem partes de um mesmo grupo social ou nação, mas
identificam também os outros como partes de outros grupos ou nações. Como já o
dissemos, a imaginação da semelhança é também identificação do “não-
semelhante”, e estes critérios imaginativos guiam uma associação afetiva capaz de
tornar coletivo um afeto individual, capaz de disseminar a todo um grupo social
ou uma nação um afeto experimentado individualmente por um só membro deste.
Diz Espinosa:

Se alguém foi afetado, de alegria ou de tristeza, por um outro, cujo grupo


social ou nacional é diferente do seu, alegria ou tristeza que vem
acompanhada, como causa, da ideia desse outro, associada à designação
genérica desse grupo, ele não apenas amará ou odiará esse outro, mas
também todos os que pertencem ao mesmo grupo. EIII, prop. 46

A imitação afetiva, como mecânica da sociabilidade, depende do


reconhecimento das “coisas semelhantes a nós”. O critério de semelhança capaz
de ensejar a imitação afetiva é, na maioria das vezes, uma construção imaginária.
A constituição de uma identidade nacional ou distinção de um grupo social passa
pela comunhão de ideias, afetos e práticas inscritos na imaginação coletiva, no
ingenium coletivo, e esta pertença a nações ou grupos sociais distintos é capaz de
coletivizar afetos individuais. Está traçado o caminho para a constituição de uma
multidão servil unida pelo ódio ao diferente.
Se, até aqui, tratamos de reconhecimento da semelhança e
discriminação do “não-semelhante”, com esta última noção espinosana de
coletivização dos afetos individuais, chegamos à possibilidade do ódio ao
diferente, o ódio aos membros de outra nação ou grupo social, que independe de
qualquer encontro com o outro, mas está embasado apenas na pertença deste ao
grupo social diferente.
A ideia de semelhança, as ideias, afetos e práticas comuns podem ser
reforçados por um ódio comum. A construção do discurso da identidade de um
grupo social pode ser reforçada pelo discurso de construção da alteridade, da

todas elas, não apenas pelos ritos exteriores, que são contrários aos das outras gentes, mas também
pelo sinal da circuncisão, que conservam religiosamente. A experiência, de resto, ensina que o
ódio das nações contribui imenso para a coesão dos judeus” TTP, cap. III, pg.64
275

identificação de quem são os outros e pelo ódio ao diferente. É ideia útil à


constituição de uma multidão servil, posto que imersa na tristeza do ódio, a noção
de um inimigo comum.
A ideia de um inimigo comum, a distinção de membros de outras
nações, outras raças ou outros grupos sociais, é capaz de unir uma multidão em
uma série de afetos e desejos comuns, derivados do ódio. Desde o esforço por
fazer mal aquele que se odeia610, até a alegria triste de vê-lo destruído.611 Uma
multidão pode ser reunida e instigada a afirmar a sua própria servidão, seu próprio
aprisionamento na tristeza, imaginando tratar-se da afirmação da sua identidade e
da sua libertação de um inimigo comum612.
Estamos diante, portanto, de dois movimentos que se complementam
na servidão: primeiro o discurso de constituição da semelhança no ingenium
coletivo, visando não a afirmação da multiplicidade da multidão mas a
constituição da uniformidade, é a imposição rígida de práticas e ideias que devem
ser compartilhadas pelos indivíduos constituintes daquele grupo social, seguida da
afirmação de superioridade destes sobre os outros grupos sociais. A partir daí tem-
se, concomitantemente, a construção da alteridade, da figura do outro que, como
“não-semelhante”, pode ser discriminado, odiado e até destruído sem qualquer
traço de comiseração.
O tema do semelhante e da alteridade na política nos remete ao
pensamento de Carl Schmitt, para quem a dicotomia amigo-inimigo é constitutiva
da política613. O inimigo que constitui a política, em Schmitt, é o inimigo público,
posto que designado pelo soberano ou pelo Estado como tal. É o inimigo político,

610
“Aquele que odeia alguém se esforçará por fazer-lhe mal, a menos que tema que disso advenha,
para si próprio, um mal maior...” EIII, prop.39
“Quem imagina que aquilo que odeia é afetado de tristeza se alegrará; se contrariamente, imagina
que é afetado de alegria, se entristecerá; e um ou outro desses afetos será maior ou menor à medida
que o seu contrário for, respectivamente, maior ou menor na coisa odiada.” EIII, prop. 23
611
“Quem imagina que aquilo que odeia é destruído se alegrará.” EIII, prop.20
“A alegria que surge por imaginarmos que uma coisa que odiamos é destruída ou afetada de algum
outro mal não surge sem alguma tristeza de ânimo” EIII, prop. 47
612
Da mesma forma serve de traço de unidade de uma multidão qualquer atrair para si o ódio de
outros. Neste sentido, vale citar novamente o que diz Espinosa sobre o povo judeu: “A
experiência, de resto, ensina que o ódio das nações contribui imenso para a coesão dos judeus.”
TTP, cap.III, pg.64
613
“A dicotomia constitutiva da política é a oposição amigo-inimigo” CHAUÍ, Marilena. O
retorno do teológico-político...
276

aquele com quem o conflito não encontra nenhuma mediação e impõe a guerra até
a sua neutralização, submissão ou extermínio614.
O estrangeiro, a alteridade daquele que nega um determinado modo de
vida, eis o inimigo schmittiano615. E a autonomia da distinção entre amigo e
inimigo, frente a outras distinções, como a de cunho moral (bom e mau), ou a de
cunho estético (belo e feio), é, para o autor, a afirmação da própria autonomia do
político. Diz Schmitt:
A natureza objetiva e a autonomia intrínseca do político já se mostram nesta
possibilidade de separar uma tal contraposição específica como a de amigo-
inimigo de outras diferenciações e de compreendê-la como algo
independente.616

A noção de alteridade, o que dissemos acerca do “não-semelhante” em


Espinosa, em Schmitt assume o papel de inimigo que deve ser repelido,
combatido, e cuja caracterização é intrínseca ao próprio conceito de política. A
reflexão sobre o ódio ao outro, que em Espinosa caracteriza afeto próprio da
servidão, em Schmitt é constitutiva da política. Neste universo, em que a oposição
amigo-inimigo é distintiva da política, a guerra é um pressuposto sempre presente
na política schmittiana, tida sempre como uma possibilidade real a determinar o
comportamento político617.E frente a possibilidade sempre real da guerra
encontramos a possibilidade sempre real do estado de exceção, e chegamos ao
conceito de soberano em Schmitt como aquele que decide sobre a exceção618.
Ao contrário de Espinosa para quem, como vimos em nosso item 2.1,
toda teologia é política mas nem toda política é teológica, Schmitt propõe uma
compreensão teológica da política, fundada na ideia do soberano como aquele que
decide sobre a exceção, da mesma maneira que Deus, para a teologia, decide

614
CHAUÍ, Marilena. O retorno do teológico-político...
615
“O caso extremo do conflito só pode ser decidido pelos próprios interessados; a saber, cada um
deles tem de decidir por si mesmo, se a alteridade do estrangeiro, no caso concreto do conflito
presente, representa a negação da sua própria forma de existência, devendo, portanto, ser repelido
e combatido, para a preservação da própria forma de vida, segundo sua modalidade de ser.”
SCHMITT, Carl. O conceito do político, Petrópolis: Vozes, 1992, pg.52
616
SCHMITT, Carl. O conceito do político, Petrópolis: Vozes, 1992, pg.53
617
“A guerra não é, absolutamente, fim e objetivo, sequer conteúdo da política, porém é o
pressuposto sempre presente como possibilidade real, a determinar o agir e o pensar humanos de
modo peculiar, efetuando assim um comportamento especificamente político.” SCHMITT, Carl. O
conceito do político, Petrópolis: Vozes, 1992, pg.60
618
“ a idéia de que a guerra é o locus por excelência de manifestação do político, não só porque é
pura ação como também porque nela se explicitam, de um lado, a essência do político como
oposição entre amigo e inimigo e, de outro, a essência da soberania como poder de decisão nas
situações de exceção.” CHAUÍ, Marilena. O retorno do teológico-político...
277

sobre o milagre619. Numa concepção transcendente do poder político, o soberano


schmittiano decide sobre os limites de aplicação da ordem jurídica vigente e as
situações em que esta deve ser suspensa620. Schmitt apoia toda a ordem jurídica
numa decisão do soberano que pode, a qualquer tempo, e por isso mesmo,
suspendê-la e instaurar a exceção621. Neste sentido, o ódio e o discurso da
transcendência de um soberano que, para Espinosa, constituem o campo da
servidão, para Schmitt são constitutivos da própria política.
Infelizmente, o século XX nos fornece um exemplo da lógica de
guerra e ódio impregnada na oposição política amigo-inimigo pregada por
Schmitt. Wilhelm Reich, ao analisar o estado nazista alemão, destaca o papel
central da teoria racial do nacional-socialismo, teoria de afirmação de um inimigo
comum na alteridade, teoria de guerra:

A charneira em volta da qual se articula a teoria fascista alemã é a sua teoria


racial. O programa econômico daquilo a que se chamou os 25 pontos não
aparece na ideologia fascista senão como um meio de selecionar a raça
germânica e de a proteger de eventuais cruzamentos, que segundo a opinião
dos nacional-socialistas significam sempre o declínio da “raça superior”.
Mais ainda, a decadência de uma civilização proviria igualmente do
cruzamento de raças. O mais nobre dever de uma nação, por consequência,
é “conservar a pureza da raça e do sangue”, para cumpri-lo, é necessário
estar pronto a todos os sacrifícios.(...) essa teoria é transposta por todos os
meios para a prática sob a forma de perseguição aos judeus e repercute-se
desse modo na história.622

Com o nazismo a humanidade viu, na experiência histórica, a


materialização mais radical e cruel desta lógica da servidão ancorada num ódio
comum, que analisamos acima em termos espinosanos. A potência da imaginação,
ao engendrar o desejo de servir no próprio ingenium da multidão, sustentou no
regime nazista, tirania e ódio abraçados pelo povo alemão, e a servidão reforçada
pela crença numa superioridade racial e pelo ódio ao diferente, ódio levado ao
extremo do extermínio.

619
“O estado de exceção tem um significado análogo para a jurisprudência, como o milagre para a
teologia.” SCHMITT, Carl. Teologia política, Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pg. 35
620
“Ele [o soberano] decide tanto sobre a ocorrência do estado de necessidade extremo, bem como
o que se deve fazer para saná-lo. O soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente
vigente, porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a Constituição pode
ser suspensa in Toto.” SCHMITT, Carl. Teologia política...pg. 8
621
“A ordem jurídica, como toda ordem, repousa em uma decisão e não em uma norma.”
SCHMITT, Carl. Teologia política...pg.11
622
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo, Porto: publicações escorpião, 1974, pg 73
278

4.5.3

Muitos meios de dominação

Já vimos que a ambição de dominação acompanha inevitavelmente a


mecânica da imitação afetiva. Sendo mais intensos os afetos experimentados
coletivamente do que aqueles individuais, os homens são levados a esforçarem-se
para que os outros amem o que eles próprios amam e odeiem o que eles próprios
odeiam. Decorre da própria imitação afetiva a ambição de impor aos outros seu
próprio sistema de valores, seu próprio critério de bem e mal.

Se imaginamos que alguém ama, ou deseja, ou odeia uma coisa que nós
mesmos amamos, ou desejamos, ou odiamos, amaremos, por esse motivo,
essa coisa com mais firmeza, etc. Se, por outro lado, imaginamos que
alguém abomina aquilo que amamos, ou, inversamente, que ama o que
abominamos, então padeceremos de uma flutuação de ânimo.(...)
Corolário. Disso, e da prop. 28, segue-se que cada um se esforça, tanto
quanto pode, para que todos amem o que ele próprio ama e odeiem também
o que ele próprio odeia. (...)
Escólio. Esse esforço por fazer com que todos aprovem o que se ama ou se
odeia é, na verdade, a ambição (...). Vemos, assim, que cada um, por
natureza, deseja que os outros vivam de acordo com a inclinação que lhe é
própria... EIII, prop. 31

A obediência consiste justamente em aquiescer ao critério de bem e


mal alheio, “a vontade constante de cumprir aquilo que é bom”623 segundo as
ordens emanadas por outrem. Neste sentido, é o soberano aquele que tem a mais
forte ambição de dominação. Sendo o maior poder aquele de reinar sobre os
ânimos624, o soberano deseja a todo tempo que todos vivam segundo o que ele
próprio ama ou odeia, segundo a sua própria inclinação.
E, nesse sentido, Espinosa diz que é também nas mãos do soberano
que estão os mais poderosos meios de implementação da ambição de dominação.
É o soberano aquele que detém o maior poder de governar os ânimos de seus
súditos, de acordo com seus próprios critérios de bem e mal, e o maior poder de
fazer com que a multidão ame ou odeie o que ele assim desejar.

623
TP, cap. II, parágrafo 19
624
TTP, cap. XVII, pg. 252
279

os ânimos estão de certo modo sob o poder do soberano, o qual dispõe de


muitos meios para fazer com que a grande maioria dos homens acredite,
ame ou odeie o que ele quiser.625 (grifo nosso)

Tendo já destacado que o maior poder consiste, não na coação pela


violência ou na submissão pelo medo, mas no consentimento que advém do
governo dos ânimos, nosso filósofo destaca que estão nas mãos do soberano
“muitos meios” para dominar os ânimos da maioria dos homens. Espinosa faz
aqui uma associação importante entre poder político e poder ideológico, o
soberano é aquele que detém o exercício do imperium e este vem acompanhado de
“muitos meios” de influenciar os ânimos.
Já ressaltamos o ciclo vicioso que se estabelece entre ingenium da
multidão e exercício do poder político ao introduzirmos, no nosso item 4.2, a
temática da obediência política. Vimos então que é a obediência que sustenta o
governante e que esta tem seu caráter democrático ou servil determinado pelo
próprio ingenium da multidão. Naquele ponto destacamos que nossa análise se
focaria no primeiro movimento deste ciclo vicioso que se estabelece entre
ingenium da multidão e exercício do poder político: a obediência política,
movimento pelo qual o ingenium da multidão determina a forma mais
democrática ou mais tirânica de exercício do poder político.
Chegamos agora ao segundo movimento deste mesmo ciclo onde, no
sentido inverso, o soberano exerce influência sobre o ingenium da multidão.
Espinosa coloca nas mãos do soberano não apenas o exercício do poder político,
mas “muitos meios” de exercer poder sobre os ânimos, poder sobre o ingenium da
multidão. O reverso da relação pela qual a obediência sustenta o soberano é o
poder do soberano de, através de muitos meios, incutir e alimentar a obediência
nas mentes e corpos da multidão.
Se, por um lado, como já vimos ao tratar da obediência política, o
destino do soberano está nas mãos da multidão, por outro lado, estão nas mãos do
soberano muitos meios de levar a multidão a amar ou odiar que ele mesmo ama
ou odeia, e de incutir nos ânimos de seus súditos a vontade constante de cumprir
suas ordens.
Nosso filósofo destaca ainda que, este poder do soberano sobre os
ânimos de seus súditos nem sempre é explícito, mas podem existir meios de

625
TTP, cap. XVII, pag. 252
280

governar os ânimos que não passem por ordens diretas, exerçam-se


implicitamente, porém sempre sob sua autoridade. Espinosa chega a aceitar a total
submissão dos súditos ao direito do Estado, alienados de sua capacidade de
julgamento individual, homens que não tem outras ideias ou afetos que aqueles
que estão de acordo com o direito do Estado.

E, se bem que esses sentimentos não surjam diretamente por ordem do


soberano, muitas vezes, como a experiência abundantemente confirma, eles
surgem, no entanto, por força de sua autoridade e sob a sua orientação,
isto é, em virtude do seu direito. Daí que possamos conceber, sem violentar
minimamente a inteligência, homens que não acreditem, odeiem, desprezem
ou sejam arrebatados por qualquer outro sentimento a não ser em virtude do
direito do Estado.626 (grifo nosso)

Não é necessário repetirmos aqui as ressalvas que já fizemos acerca


dos limites do poder do Estado, face ao próprio direito natural de seus cidadãos,
sobre o tema remetemos o leitor a nosso capítulo 2, item 2.2. Nos interessa
destacar aqui o poder do soberano em governar os ânimos de seus súditos, e a
afirmação espinosana de que está nas mãos daquele muitos meios de dominação
dos ânimos, inclusive meios que não necessitam de ordens expressas mas podem
submeter a totalidade das ideias e afetos dos súditos.
O poder de reinar sobre os ânimos é o poder de incutir ideias e afetos
no ingenium da multidão, capazes de legitimar a obediência sem a necessidade do
recurso à coerção. Já vimos que o desejo de servir mantém-se pela imaginação de
algo de bom na obediência servil, ou seja, no mascaramento da própria servidão
por um conjunto de ideias e afetos imaginativos que afirmam alguma alegria
passiva na obediência, nem que seja a barganha de abraçar um mal menor para
evitar um outro maior imaginado na desobediência. Este tema da reflexão
espinosana pode aproximar o pensamento de nosso filósofo dos debates acerca da
ideologia na teoria marxista séculos depois.
A ideologia, na teoria marxista, tem a função de escamotear, esconder
a luta de classes, fantasiar a dominação sob as vestes da legitimidade do e da
participação no poder, ocultar e dissimular a divisão de classes sob a afirmação da
igualdade formal627. Se aproximarmos a noção de soberano em Espinosa à de

626
TTP, cap. XVII, pag. 252
627
“Por esse motivo, o papel específico da ideologia como instrumento da luta de classe é impedir
que a dominação e a exploração sejam percebidas em sua realidade concreta. Para tanto, é função
da ideologia dissimular e ocultar a existência das divisões sociais como divisões de classe,
281

classe dominante em Marx, tendo em vista que ambos os conceitos designam


aquele(s) que exerce(m) o poder político e exerce(m) o poder sobre os ânimos da
multidão, podemos aproximar o debate espinosano acerca do paradoxal desejo de
servir do debate marxista acerca da ideologia.
Reconhecemos as limitações da aproximação entre Espinosa e Marx,
sobretudo porque no primeiro não encontramos nada próximo das análises
marxistas acerca das relações de produção capitalistas, da organização social em
infraestrutura e superestrutura, e o longo debate acerca da relação entre elas, e
outros conceitos marxistas fundamentais. No entanto, no que concerne ao debate
marxista acerca da ideologia, julgamos poder encontrar em Espinosa algumas
ideias que já antecipavam a problemática que, séculos depois, será desenvolvida
pelos marxistas628.
Uma temática que, no século XX, dois autores marxistas
desenvolvem, muito próximos do que Espinosa já apontara acerca do poder do
soberano sobre os ânimos, é justamente a afirmação espinosana dos “muitos
meios” pelos quais o soberano pode exercer seu poder sobre o ingenium da
multidão. Nosso filósofo afirma a possibilidade do soberano exercer seu governo
sobre os ânimos de seus súditos por outros meios que não as ordens diretas, ou
seja, não é apenas através do direito que o soberano pode exercer a sua autoridade
ou orientação. Esta reflexão espinosana, no século XVII, já abre espaço para o
que, no século XX, Antonio Gramsci pensa como “sociedade civil” e Louis
Althusser desenvolve como “Aparelhos ideológicos de Estado”. Tomando como
ponto de partida nossa aproximação entre o papel da imaginação no paradoxal
desejo de servidão em Espinosa, e o papel da ideologia na teoria marxista,
podemos ver, já em Espinosa, com sua afirmação sobre os “muitos meios” pelos
quais o soberano pode exercer seu poder sobre os ânimos da multidão, uma
antecipação do que Gramsci e Althusser desenvolvem acerca do tema.

escondendo, assim, sua própria origem. Ou seja, a ideologia esconde que nasceu da luta de classe
para servir a uma classe na dominação.” CHAUÍ, Marilena.O que é Ideologia, 2ª Ed. São Paulo:
Brasiliense, 2008, pg.96
628
Sobre a possibilidade de aproximação entre os pensamentos espinosano e marxiano, vale
destacar que Marx sabidamente foi leitor e admirador de Espinosa. Destacamos ainda que a
aproximação entre os dois autores é feita, em outros termos, por Antonio NEGRI em seu O Poder
constituinte.”Ao contrário, em outra tradição da metafísica moderna, de MAQUIAVEL a Espinosa
e Marx, é certamente absoluto o processo que se desenvolve na dinâmica do poder constituinte,
sem que este caráter absoluto jamais se faça totalitário.” NEGRI, Antonio. O poder
constituinte...pg.48
282

O autor marxista italiano desenvolve sua análise da chamada


superestrutura definindo-a como dividida em sociedade civil e sociedade política.
A primeira seria composta por diversas instituições e meios de exercer a direção
ideológica da sociedade, espraiando no seio da multidão os ideais mais caros à
classe dominante, sua visão de mundo629. A segunda seria o aparato político-
coercitivo do Estado, a estrutura jurídica, política e policial do Estado, com o
papel de manter a dominação pela coerção direta630.
Neste sentido, além do aparato estatal, para Gramsci, a classe
dominante mantém em suas mãos um aparelho privado de hegemonia que, através
de diversas instituições e difusão de saberes, afirma sua ideologia, incutindo seus
valores e seus ideais nas mentes de seus dominados. Desde o sistema educacional
até os meios de comunicação, passando pela religião, as manifestações artísticas e
as diversas formas de constituição do saber, a sociedade civil é um conjunto de
instrumentos de poder ideológico a serviço das classes dominantes, com o intuito
de fazer acompanhar a dominação político-coercitiva do consentimento daqueles
que domina.
Conceito chave no pensamento de Gramsci é o conceito de
hegemonia, que é alcançada não apenas pelo poder político, normativo e policial
de uma classe sobre a outra – dominação - mas quando este é combinado à direção
ideológica da sociedade. Quando os dominados aceitam e continuam a abraçar a
ideologia da classe dominante, ainda que intentem lutar contra a dominação,
temos a hegemonia. A hegemonia, para alem do controle do Estado e sua estrutura

629
“Para o pensador marxista [Gramsci], as superestruturas apresentam dois momentos que se
complementam: a sociedade civil e a sociedade política.
A sociedade civil, ou aparelho privado de hegemonia, abarcaria uma complexidade enorme de
elementos ideológicos, tais como a ideologia da classe dirigente (...): a concepção do mundo,
divulgada em toda a sociedade visando vincular as camadas sociais à classe dirigente (filosofia,
religião, senso comum, folclore); direção ideológica as sociedade (meios de produção, reprodução
e divulgação da ideologia da classe dirigente, tais como sistema escolar, as bibliotecas, os meios
de comunicação social, etc.” DORNELLES, João Ricardo W. “O direito e o modo de produção
capitalista: reflexões sobre a instância jurídica a partir de uma análise marxista” in Amius Curie-
Revista do curso de direito da UNESC, nº 2, Criciúma, SC: Unesc, 2004 pg. 88.
630
“A sociedade política, por seu lado, corresponde ao Estado, ao aparelho jurídico-político
destinado a manter a dominação pela coerção direta sobre o conjunto da sociedade. E aqui a
instância jurídica aparece com o seu papel normativo coercitivo.” DORNELLES, João Ricardo
W. “O direito e o modo de produção capitalista: reflexões sobre a instância jurídica a partir de uma
análise marxista” in Amius Curie- Revista do curso de direito da UNESC, nº 2, Criciúma, SC:
Unesc, 2004 pg. 89.
283

normativo-coercitiva, é a afirmação dos ideais da classe dominante pelos próprios


dominados, como se se tratasse de seus próprios ideais631.
Nada mais próximo deste poder ideológico que Gramsci afirma
exercer-se silenciosamente sobre os dominados - levando-os a abraçar, como se
fossem seus, os ideais da classe dominante - do que a, já citada, afirmação
espinosana, acerca dos homens que combatem pela servidão como se fosse pela
salvação632. Podemos identificar no desenvolvimento gramsciano do conceito de
sociedade civil, uma proximidade com a ideia espinosana do poder do soberano
sobre os ânimos de seus súditos, poder que se exerce por “muitos meios” que não
apenas as ordens diretas, ou seja, não apenas pela estrutura normativo-policial do
Estado.
Da mesma forma, no conceito de hegemonia, desenvolvido pelo autor
italiano, encontramos muito de nossa análise acerca do papel da imaginação em
Espinosa, na constituição do paradoxal desejo de servir no seio da multidão. Tanto
em Espinosa quanto em Gramsci está presente uma dominação que se exerce
sobre os ânimos, sobre as ideias, uma interiorização da servidão pelos dominados,
que a mascara de liberdade, uma inversão ideológica dos desejos de luta pela
liberdade em luta pela própria dominação. O soberano ou a classe dominante, ao
lado do poder normativo-coercitivo do Estado, detém diversos meios de afirmação
ideológica de seu poder que, além de poder político, se afirma como poder
legítimo e, assim, se faz poder consentido, poder obedecido voluntariamente,
poder desejado pelos mesmos que são por ele oprimidos.
No pensamento de Louis Althusser encontramos uma aproximação
parecida com as ideias de Espinosa633. Althusser, assim como Gramsci, também

631
“Esse fenômeno da conservação da validade das ideias e valores dominantes, mesmo quando se
percebe a dominação e mesmo quando se luta contra a classe dominante, mantendo sua ideologia,
é que Gramsci denomina hegemonia. Uma classe é hegemônica não só porque detém a
propriedade dos meios de produção e o poder do Estado (isto é, o controle jurídico, político e
policial da sociedade), mas ela é hegemônica sobretudo porque suas ideias e valores são
dominantes, e mantidos pelos dominados até mesmo quando lutam contra essa dominação”
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia...pg.102
632
TTP, prefácio, pg. 8
633
Warren Montag reconhece expressamente, no tratamento espinosano da questão da obediência,
alguns dos principais temas depois elaborados por ALTHUSSER em sua obra Aparelhos
ideológicos de Estado: “Comment pourrait-on expliquer autrement le fait que les hommes si
souvent « voient le meilleur et font le pire », qu’ils combattent et meurent pour le tyran qui les
opprime avec la même ferveur que s’ils étaient en train de combattre pour leur propre bien-être,
qu’ils sacrifient enfin leur puissance et leurs plaisirs au Sujet suprême et originel, Dieu, dont
l’amour pour eux, à ce qu’ils imaginent, s’accroît à la mesure de leur souffrance ? (on reconnaîtra
ici quelques-uns des thèmes majeurs de l’essai d’ALTHUSSER Idéologie et appareils
284

se debruça sobre o tema do poder ideológico da classe dominante na sociedade


capitalista, no entanto, identifica como meios de exercício deste poder uma série
de instituições por ele denominadas de aparelhos ideológicos de Estado634.
Segundo o marxista francês, ao lado do aparelho repressivo do Estado, aquele que
funciona predominantemente pela coerção, pela violência, existe uma pluralidade
de aparelhos ideológicos do Estado que funcionam principalmente através da
ideologia635.
A teoria marxista denomina aparelho de Estado todos os órgãos e
instituições estatais que exercem a administração e o poder normativo-coercitivo
do Estado, tais como: o governo, a administração, o exército, a polícia, os
tribunais, as prisões, etc. A este aparelho Althusser acrescenta o adjetivo
repressivo, denominando-o aparelho repressivo do estado636. Então, ao lado deste,
o autor marxista francês identifica uma pluralidade de aparelhos do Estado que
operam na seara da ideologia, um conjunto de instituições, distintas e
especializadas, que constituem o que ele chama de aparelhos ideológicos do
Estado, instituições como as religiões, as escolas, as famílias, o sistema jurídico, o

idéologiques d’État). » Montag, Warren. Modernité de Spinoza, extraits de la Préface de The new
Spinoza, University of Minnesota Press, cool « Theory out of bound » nº11, 1998, disponível em
http://hyperspinoza.caute.lautre.net/article.php3?id_article=968, acessado em 20/10/12
634
Sobre a influência de Gramsci na análise de ALTHUSSER acerca dos aparelhos ideológicos de
Estado destacamos:”a herança gramsciana na concepção de ALTHUSSER amplia a noção de
Estado e, portanto, de luta de classes, para o conjunto do que Antonio Gramsci chama de
Sociedade Civil.” E: “Nestes dois tópicos concentra-se a contribuição de ALTHUSSER à teoria
marxista do Estado, que consiste basicamente em compatibilizar as concepções de Engels sobre as
instâncias da estrutura e da superestrutura e a teoria do Estado de Gramsci. É aí que encontramos
os pressupostos básicos da teoria dos Aparelhos Ideológicos do Estado, que se origina no conceito
de Sociedade Civil de Gramsci.” Albuquerque, J.A.Guilhon. “ALTHUSSER, a ideologia e as
instituições” in ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro:
Graal, 2003, pg.17 e 14
635
“O que distingue ao AIE [aparelhos ideológicos do estado] do Aparelho (repressivo) do Estado
é a seguinte diferença fundamental: o Aparelho repressivo do Estado “funciona através da
violência” ao passo que os Aparelhos Ideológicos do Estado “funcionam através da ideologia”.
Podemos precisar, retificando esta distinção. Diremos, com efeito, que todo Aparelho do Estado,
seja ele repressivo ou ideológico, “funciona” tanto através da violência como através da ideologia,
mas com uma diferença muito importante, que impede que se confundam os Aparelhos
Ideológicos do Estado com o Aparelho (repressivo) do Estado. O aparelho (repressivo) do Estado
funciona predominantemente através da repressão (inclusive a física) e secundariamente através da
ideologia. (...) Da mesma forma, mas inversamente, devemos dizer que os Aparelhos Ideológicos
do Estado funcionam principalmente através da ideologia, e secundariamente através da repressão
seja ela bastante atenuada, dissimulada ou mesmo simbólica (não existe aparelho puramente
ideológico)...” ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro:
Graal, 2003, pg.69/70
636
“Lembremos que, na teoria marxista, o aparelho de estado (AE) compreende: o governo, a
administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões, etc. que constituem o que chamaremos
a partir de agora de aparelho repressivo de Estado. Repressivo indica que o aparelho de Estado em
questão “funciona através da violência” – ao menos em situações limites” ALTHUSSER, Louis.
Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal, 2003, pg.67
285

sistema político, o sistema sindical, os meios de comunicação e os meios


artísticos637.
Assim como Espinosa fala sobre os muitos meios do soberano exercer
seu poder de reinar sobre os ânimos de seus súditos, Althusser identifica uma série
de instituições cuja função é de aparelhos do poder ideológico da classe
dominante. Instituições que, no seio da organização social, mesmo que na sua
maioria possam estar formalmente desligadas da órbita estatal, sendo instituições
privadas, produzem, reproduzem e afirmam nos ideais, saberes, crenças,
informações, artes e educação da classe dominada a ideologia da classe
dominante638.
Cabe-nos aqui uma ressalva: nosso objetivo neste trabalho se restringe
a assinalar a proximidade da reflexão althusseriana a respeito dos aparelhos
ideológicos do Estado da ideia espinosana dos muitos meios de exercício do poder
do soberano, assim, deixaremos de lado a análise mais detalhada da reflexão de
Althusser acerca da ideologia, principalmente sua análise do caráter material da
ideologia e da categoria de sujeito639.
No entanto, nos atendo ainda somente à análise dos aparelhos
ideológicos de Estado, destacamos que o autor francês realiza uma breve análise
histórica desses aparelhos. Althusser afirma que, enquanto o aparelho repressivo
do Estado é o mesmo desde os primeiros Estados conhecidos (sua organização

637
“Designamos pelo nome de aparelhos ideológicos do Estado um certo número de realidades
que apresentam-se ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas.
(...) Com todas as reservas que esta exigência acarreta, podemos, pelo momento, considerar como
aparelhos ideológicos do Estado as seguintes instituições (...): AIE religiosos (o sistema das
diferentes Igrejas), AIE escolar (o sistema das diferentes escolas públicas e privadas, AIE familiar,
AIE jurídico, AIE político (sistema político, os diferentes partidos), AIE sindical, AIE de
informação (a imprensa, o rádio, a televisão, etc.), AIE cultural (Letras, belas artes, esportes,
etc.).” ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal, 2003,
pg.68
638
Sobre a nomenclatura dessas instituições como aparelhos ideológicos do Estado, mesmo sendo
a maioria delas instituições privadas, ALTHUSSER cita Gramsci para qualificar a distinção entre
público e privado como uma distinção própria do direito burguês que não abarcaria o Estado,
entendido como Estado da classe dominante: “Como marxista consciente, Gramsci já respondera a
esta objeção. A distinção entre o público e o privado é uma distinção intrínseca ao direito burguês,
e válida nos domínios (subordinados) aonde o direito burguês exerce seus “poderes”. O domínio
do Estado lhe escapa, pois este está “além do Direito”: o Estado, que é Estado da classe
dominante, não é nem público nem privado, ele é ao contrário a condição de toda distinção entre
público e privado. Digamos a mesma coisa partindo dos nossos Aparelhos Ideológicos do Estado.
Pouco importa se as instituições que os constituem sejam “públicas” ou “privadas”. O que importa
é o seu funcionamento. Instituições privadas podem “funcionar” como Aparelhos Ideológicos do
Estado.” ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal,
2003, pg.69
639
Sobre esses temas remetemos o leitor a obra do próprio autor: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos
ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal, 2003.
286

como exercito, polícia, tribunais, etc), os aparelhos ideológicos de Estado tiveram


uma diversificação crescente, existindo, em cada época histórica, um aparelho
ideológico de Estado dominante640. Assim, para o modo de produção feudal
Althusser destaca como aparelho ideológico de Estado dominante a Igreja, e para
as formações capitalistas maduras o aparelho ideológico escolar641.
Se trouxessemos esta análise althusseriana para a nossa sociedade
capitalista do século XXI certamente poderíamos apontar como dominante o
aparelho ideológico de Estado constituído pelos meios de comunicação. Numa
sociedade onde a informação circula globalmente, quase em tempo real, e as
notícias de todo canto do mundo influem na seara econômica dos mercados do
capitalismo financeiro, o poder sobre as informações e o poder de convencimento
dos meios de comunicação constituem o mais poderoso aparelho de constituição
de ideologia deste início do século XXI.
Com Althusser, instituições como a escola, a família, a Igreja e a
imprensa não são espaços neutros, mas aparelhos ideológicos. Desde a infância
inseridos no sistema escolar os proletários são adestrados nos comportamentos e
ideais mais caros a classe dominante. As famílias reproduzem em sua lógica de
funcionamento os valores da obediência e distribuição do poder também caros à
ideologia dominante. A Igreja suscita nos fiéis a resignação enquanto a imprensa
manipula a informação e as notícias pregando o discurso da classe que está no
poder. A construção da ideologia perpassa a sociedade impregnando todas as suas
instituições mais básicas dos ideais da classe dominante.
Com a função de reprodução das relações de produção capitalistas, os
aparelhos ideológicos de Estado, além de meios de propagação da ideologia da
classe dominante, são espaços da luta de classe. A luta entre dominantes e
dominados não se restringe ao acesso e comando do aparelho repressivo de Estado
e sua estrutura normativo-policial, a luta ideológica tem como campo cada uma

640
“A tese – pois de fato se trata de tese – se divide em três: ao contrário do Aparelho repressivo
de Estado, que é único e formalmente idêntico desde os primeiros Estados conhecidos da
antiguidade, a multiplicidade dos aparelhos ideológicos é crescente e tende a diversificar-se por
especificação; dentro dessa multiplicidade, existe, em cada época, um aparelho ideológico de
Estado dominante; o aparelho ideológico dominante nas formações capitalistas maduras é o
aparelho ideológico escolar” ALBUQUERQUE, J.A.Guilhon. “ALTHUSSER, a ideologia e as
instituições” in ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro:
Graal, 2003, pg.31
641
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal, 2003,
pg.75 a77
287

das instituições do aparelho ideológico de Estado e a afirmação dos ideais mais


caros à classe dominantes ou mais interessantes à realidade da classe dominada. E
se nosso filósofo holandês, já no século XVII, identificava como mais poderoso o
poder que se exerce sobre os ânimos, o poder consentido, Althusser leva ao
extremo a importância do poder ideológico e afirma:

Ao que sabemos, nenhuma classe pode, de forma duradoura, deter o poder


do Estado sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos
Aparelhos Ideológicos do Estado.642

Na sua análise dos aparelhos ideológicos do Estado Althusser se


aproxima das ideias enunciadas por Espinosa, séculos antes, acerca do poder de
reinar sobre os ânimos, e os muitos meios de fazê-lo, para além das ordens diretas
do Estado. O autor francês desenvolve, em termos marxistas, um estudo sobre as
instituições capazes de influir no imaginário coletivo, capazes de afirmar as ideias,
valores e práticas da classe dominante nas mentes e corpos dos dominados, muito
próximo do papel da imaginação na constituição do paradoxal desejo de servidão
em Espinosa.

4.5.4

A servidão sem tirano

Já vimos que é o desejo de servir que sustenta o tirano. Em sua


concepção intrinsecamente democrática do poder político, para Espinosa, mesmo
o mais tirânico dos regimes tem sua causa na potência da multidão. É a multidão
que, com sua obediência, constitui a tirania e é nas mãos desta que repousa o
destino de qualquer tirano. Ainda que seduzida pela imaginação ou pela
superstição, movida pelo medo ou pela esperança, imersa no amor ou no ódio, é a
multidão e não o tirano a causa imanente da própria servidão.
Se um regime tirânico se estabelece e se perpetua é porque no seio
daquela multidão já se encontravam as causas da tirania. É uma multidão servil
que constitui seu senhor e não o inverso643. É nas mentes e nos corpos de cada

642
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal, 2003,
pg.71
643
« Le pouvoir religieux – les bricoleurs du code/fiction que sont les théologiens – et le pouvoir
politique, se chargeonts dans le réel (des rapports de forces) d’exploiter à leur service cette auto-
288

indivíduo constituinte da multidão, no ingenium coletivo que com ela se constitui,


que estão enraizadas as relações servis, um imaginário capaz de desejar a servidão
como se se tratasse da salvação, uma concepção tirânica do poder político. A
pessoa do tirano apenas ocupa um lugar, exerce um poder, que já está constituído
pela própria potência da multidão, multidão que já é serva antes mesmo de ter-lhe
como senhor e, portanto, independentemente de sua pessoa específica644.
É neste sentido que Espinosa é categórico ao afirmar que é inútil à luta
pela liberdade a simples deposição e até o assassinato de um tirano, se não
abolidas as causas da tirania:

Se, contudo, ele [Maquiavel] teve um fim bom, como é de crer num homem
sábio, parece ter sido mostrar quão imprudentemente muitos se esforçam
por remover um tirano, quando as causas pelas quais o príncipe é tirano não
podem ser removidas e, pelo contrário elas se impõem tanto mais quanto
maior causa de temer se lhe oferece, como acontece quando uma multidão
mostra exemplos ao príncipe e se vangloria do parricídio como de uma
coisa bem-feita.645

Com efeito, as causas da tirania não estão no tirano, mas na própria


forma de constituição da multidão. Assim, nosso filósofo preceitua,
expressamente, que a deposição de um tirano por uma multidão servil só pode
resultar na ascensão de outro tirano para ocupar o espaço do primeiro. Pois a
servidão, que não nasce pelas mãos do tirano, mas pelas mentes e corpos dos
súditos, não é abolida pela deposição daquele, mas permanece nos desejos servis
destes.
Para Espinosa, uma multidão acostumada à servidão que, por qualquer
razão, revolte-se contra o tirano, para destituí-lo de seu poder, está apenas
comprando “a preço de muito sangue de cidadãos um novo tirano”646. Derrubar o
tirano não tem qualquer efeito sobre as causas da tirania, que estão, como vimos,
nas mãos da multidão. Logo, deposto um tirano, necessariamente uma multidão
servil irá apenas substituí-lo por outro, já que a tirania se mantém na própria
constituição daquele campo político, no próprio ingenium da multidão, cujo

soumission et cet auto-empoisonnement du désir. Mais leur rôle vient aprés coup, à la fois inscrit
dans le système que les hommes ont construit dans leur imaginaire. C’est de l’esclave que
procède le maître. » BOVE, Laurent. Stratégie du conatus...pg.178 (grifo nosso)
644
“Se tirania houver, já se encontra presente no momento da fundação.” CHAUÍ, Marilena.
Política em Espinosa... pg.191
645
TP, cap. V, parágrafo 7
646
TTP, cap. XVII, pag. 277
289

desejo pela servidão não conhece a liberdade, nem muito menos os meios de
exercê-la.
Vale aqui lembrar novamente a influência de Maquiavel quando este,
nos Discursos, afirma a dificuldade de um povo acostumado a servidão de manter
a liberdade. Neste sentido diz o autor florentino explicitamente que: ““O povo
acostumado a viver sob a autoridade de um príncipe, se por algum acontecimento
se torna livre, dificilmente mantém a liberdade”647. E ainda: “Um povo
corrompido que se torne livre com enorme dificuldade se mantém livre”648. Antes
de Espinosa, Maquiavel já antecipava a tirania inscrita no seio da multidão, tirania
que se reproduziria ainda que fosse dado a um povo a oportunidade da liberdade.
Espinosa não é um revolucionário, nosso filósofo é, pelo exposto,
bastante cético quanto às revoluções. Em sua vida Espinosa testemunhou a
revolução inglesa e aquela holandesa de 1672 que depôs a república e restituiu a
monarquia em seu país. Sobre a primeira nosso filósofo é crítico ferrenho dizendo
em seu Tratado teológico-político que o povo inglês “depois de muito sangue
derramado, acabou por reconhecer um novo monarca sob outro nome (como se
toda a questão fosse apenas de nome)”649 Já sobre a segunda, na sua Holanda,
Espinosa era partidário da república dos irmãos De Witt, e num cartaz, que é
impedido de colar por um amigo, chama os revolucionários de “Últimos dos
bárbaros” (Ultimi barbarorum), entendendo no agir revolucionário uma
barbárie650.
Segundo nosso filósofo, de nada vale depor um governante, ainda que
este seja um tirano, esperando com isso extirpar a tirania pois, se tirania existe, ela
está presente na própria constituição da multidão, no seu ingenium e instituições, e
não nas mãos de um ou outro governante. Daí decorre a ressalva espinosana de
poderem ser nefastos os efeitos de uma revolução tiranicida pois, frente aos
súditos de mãos ensanguentadas pelo assassinato do tirano anterior, o novo
governante, para não ficar a mercê dos súditos, terá que impor seu poder com
mais sangue, desta vez sangue dos cidadãos e, assim, necessariamente governará
647
MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro primeiro, capítulo 16
648
MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro primeiro, capítulo 17
649
TTP, cap. XVIII, pag.285
650
“No dia 20 de agosto de 1672, os irmãos De Witt são massacrados pelo povo nas ruas de
Amsterdã. Espinosa escreve num cartaz: Ultimi barbarotum (“Últimos dos bárbaros), mas é
impedido por um amigo de colá-lo nos muros da cidade. Termina a república e tem início a
monarquia constitucional holandesa.” CHAUÍ, Marilena. Espinosa uma filosofia da liberdade...
pg.29
290

também como tirano. “Daí o povo mudar tantas vezes de tirano sem nunca abolir
a tirania”651.
E se a multidão já é servil antes ou apesar da pessoa do tirano é
porque a servidão, que se expressa na relação entre governante e governados, é
uma servidão imbricada em todas as relações constituintes da multidão. Acrescido
a tudo que já analisamos em relação ao papel da imaginação, suas ideias, paixões
e práticas, na constituição do paradoxal desejo de servidão, a multidão que deseja
a tirania traz no seu próprio seio relações tirânicas entre seus indivíduos
constituintes. Se a potência da multidão é causa imanente do poder político, o
caráter tirânico deste tem sua causa imanente na tirania inscrita nas próprias
relações constituintes da multidão.
Assim, uma série de paixões tristes perpassam a multidão fazendo da
servidão não apenas experiência política do exercício do imperium, mas
experiência social e forma das relações entre os próprios indivíduos constituintes
da multidão. A multidão que constitui a tirania é tirânica já internamente, imersa
em relações de autoridade, medo, desconfiança, opressão, é o estágio social mais
próximo do que caracterizamos como o estado de natureza espinosano.
Se caracterizamos a ambição de dominação como consequência
natural da imitação afetiva652, na multidão tirânica este desejo de impor aos outros
seus próprios valores se constitui em desejo de opressão. As relações sociais
tornam-se espaço de rivalidade e de ambição por dominar o ânimo do outro.
Relações autoritárias constituem uma sociedade internamente hierarquizada em
dominadores e dominados.
Relações constitutivas do campo social como relações familiares,
escolares ou profissionais se realizam sob o peso da imposição da autoridade. Se,

651
“Aqui, porém, não posso deixar de frisar que também não é menos perigoso liquidar um
monarca, ainda quando seja absolutamente evidente que este é um tirano. Porque o povo,
acostumado à autoridade do rei e só por ela refreado, irá desprezar e pôr a ridículo qualquer
autoridade inferior. Por isso, se liquida um, ser-lhe-á necessário, como outrora aos profetas, eleger
outro em lugar do anterior, e este, mesmo que não o queira, será necessariamente um tirano. Como
é que ele pode encarar as mãos dos cidadãos ainda ensanguentadas pelo assassínio de um rei,
cidadãos que se vangloriam de um parricídio como se fosse de uma boa ação e que fizeram tudo
isso unicamente para que lhe servisse a ele de exemplo? É evidente que, se quer mesmo ser rei e
não reconhecer o povo como seu juiz e senhor, se não quer reinar provisoriamente, tem de vingar a
morte de seu antecessor e contrapor assim um novo exemplo, de modo que o povo não ouse repetir
tal façanha. Mas ser-lhe-á muito difícil vingar a morte do tirano pelo assassínio de cidadãos, se ao
mesmo tempo não fizer sua a causa daquele a quem sucede, não aprovar seus atos e não seguir, por
conseguinte, todas as suas pisadas. Daí o povo mudar tantas vezes de tirano sem nunca abolir a
tirania nem substituir o poder monárquico por um outro diferente.” TTP, cap.XVIII, pg.285
652
EIII, prop.31, corolário e escólio
291

como vimos, a imaginação que sustenta a obediência servil se dissemina por


muitos meios, além das ordens diretas do Estado, o caráter autoritário do poder,
que distingue a tirania, se espraia pela multidão em todas as suas relações
constitutivas. Se retomarmos a referência aos aparelhos ideológicos de Estado de
Althusser podemos compreender que uma multidão imersa na tirania é aquela em
que são autoritárias as relações dentro das escolas, dentro das igrejas, onde a
imprensa dissemina o discurso da autoridade e da obediência, e assim por diante
em todos os aparelhos ideológicos, de modo que já está instalado no seio da
sociedade o desejo de servidão, independentemente da pessoa do tirano.
Este triste cenário de autoridade e servidão se inscreve no íntimo da
multidão até o extremo em que a liberdade é entendida como autoridade, como a
posse do outro, como o poder de impor seus valores sobre o outro. Neste cenário,
“a liberdade se define não por sua oposição à escravidão, mas pela posse de
escravos.”653 A relação tirânica entre governante e governados é apenas uma
expressão imanente das relações igualmente tirânicas que constituem a própria
multidão. O desejo de servir é forjado no seio da multidão. A servidão, antes de
ser servidão ao tirano que exerce o poder político, se constitui nas relações sociais
mais elementares.
Além das relações autoritárias, e em função delas, outro traço
distintivo da multidão que sustenta a tirania é o medo recíproco entre seus
indivíduos constituintes, a desconfiança, a escassez de laços de amizade. Levados
pelas paixões os homens são, muitas vezes, contrários uns aos outros654. A
multidão servil está imersa na imaginação e a mercê das paixões mais tristes. A
ambição de dominação é ambição de subordinação do outro, ambição de
desigualdade. Na rivalidade da autoridade, uma multidão constituída por laços de
dominação não conhece o que seja a amizade.

653
“Por depender de causas externas e ser insaciável carência, a paixão engendra imagens do que
poderia satisfazê-la e crê saciar seu estado de privação pela posse de algo tido como um bem e,
detre todos os bens almejados, ter a posse de um outro homem parece ser o bem supremo, uma vez
que a alegria causada por outrem é amor que fortalece nosso conatus, levando-nos à busca da
dominação do desejo de outrem para que este também nos ame e se entregue a nós. Dessa maneira,
ser livre parece imaginariamente tanto como ser capaz de opor-se à necessidade natural quanto ser
senhor de outrem e, como consequência, a liberdade se define não por sua oposição à escravidão,
mas pela posse de escravos.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...pg.257
654
“À medida que os homens são afligidos por afetos que são paixões podem ser reciprocamente
contrários.” EIV, prop.34.
292

O medo e a desconfiança são os principais traços das relações sociais


da multidão servil. A ambição de dominação corrompe todos os laços afetivos
transformando todas as relações em desigualdade e subordinação. A tirania que se
dissemina pela sociedade desfaz qualquer traço de igualdade e amizade
mergulhando a multidão na solidão dos indivíduos competitivos, desfazendo o
comum em relações de autoridade e submissão.
É Etienne de La Boétie quem opõe desejo de servir e amizade655.
Entre desiguais não há possibilidade de amizade. A obediência ao tirano ou à
autoridade é o oposto da amizade. Tido como desigual e superior aos seus súditos,
o tirano não tem amigos. Da mesma forma, as relações hierarquizadas de
autoridade no seio da multidão são ambiente de medo e servidão, nunca de
amizades. Relações de dominação são a própria impossibilidade da amizade.

a amizade é um nome sagrado, é uma coisa santa; ela nunca se entrega


senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar por mútua estima; se
mantém não tanto através de benefícios como através de uma vida boa; o
que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento que tem de sua
integridade; as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e a
constância. Não pode haver amizade onde está a crueldade, onde está a
deslealdade, onde está a injustiça; e entre os maus, quando se juntam, há
uma conspiração, não uma companhia; eles não se entre-amam, mas se
entre-temem; não são amigos, mas cúmplices656

Lugar da experiência do comum, da confiança mútua, a forma mais


nobre de amor. Fundada na mutua estima, no compartilhar das alegrias e tristezas,
na certeza de não estar sozinho. O que só se constitui na igualdade, só é possível
no reconhecimento do outro em sua liberdade, e ao mesmo tempo na afirmação da
própria liberdade. Diz Espinosa que não há nada mais útil ao homem sábio que
outro homem guiado pela razão657, somente no comum se constitui a razão,
somente no comum se constitui a democracia. O oposto da tirania é a amizade.

655
“O Discurso [da servidão voluntária] simplesmente contrapõe desejo de servir e amizade.”
CHAUÍ, Marilena. “Amizade, recusa do servir” in La BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão
voluntária...pg.183
656
La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária... pgs.35/36
657
EIV, prop. 35, corolário 1
5

Conclusão

Tudo o que existe carrega em sua essência um esforço por perseverar


na existência. Cada um e todos os indivíduos que existem trazem em si uma
potência sempre atual e positiva de existir, uma potência que busca bons
encontros, alegria e liberdade. Assim também o sujeito político multidão, coletivo
de mentes e corpos, em sua organização em imperium se esforça pelas condições
materiais de expressão de sua potência coletiva e daquelas de cada um de seus
indivíduos constituintes. Em toda parte os homens se organizam em costumes e
um estado civil no seu esforço pela existência, pela segurança e pela liberdade.
E, no entanto, esse encontro de mentes e corpos que constituem a
multidão muitas vezes se organiza como forma de tirania. Muitas vezes, a
experiência demonstra, a busca individual pela alegria se desvirtua em uma
existência triste, o desejo de liberdade da multidão transforma-se em desejo de
servidão e o estado civil, que se constitui como expressão da potência da
multidão, transmuta-se em experiência da tirania. Tanto no campo ético como no
político, a potência individual ou coletiva, buscando afirmar sua liberdade, muitas
vezes se perde nas ideias, práticas e afetos da servidão.
Espinosa, numa compreensão absolutamente imanente da Natureza,
afirma que esta potência de perseverar na existência, que compõe a essência de
tudo o que existe, nada mais é que uma expressão da potência infinita de Deus.
Nosso filósofo nega qualquer concepção antropomórfica de Deus para afirmar um
Deus que está em tudo o que existe, e que tudo o que existe, existe em Deus658. O
Deus espinosano é a substância infinitamente infinita, eterna e livre que age
segundo a sua própria ordem de causalidade necessária.
No campo da imanência absoluta, afirmado por Espinosa, não há
espaço para virtuais que não se realizam ou um Deus que escolha entre possíveis.
O Deus espinosano é livre porque age somente em função de sua própria

658
“Tudo o que existe, existe em Deus, e sem deus, nada pode existir nem ser concebido.” E I,
prop. 15
294

potência659 e o faz necessariamente. Daí nosso filósofo afirmar que “As coisas não
poderiam ter sido produzidas por Deus de nenhuma outra maneira nem em
qualquer outra ordem que não naquela em que foram produzidas.”660
Ao negar o arquétipo do Deus antropomórfico que escolhe entre
possíveis e afirmar a causalidade necessária da Natureza Espinosa nega também
qualquer espaço para a superstição. Filha da crença na contingência e do medo a
superstição é a crença na manipulação da vontade de Deus através de práticas e
ritos, próprios das religiões e do discurso teológico do Deus transcendente.
Transposto para o campo político, o discurso da transcendência e a superstição
sustentam a concepção do poder político transcendente da soberania. A ideia dos
mistérios da vontade divina é afirmada, no campo político, como os mistérios do
poder, inacessíveis aos governados, a ideia do soberano que transcende a
multidão, dotado de um saber superior ao da plebe sobre os assuntos do Estado, e
de uma vontade livre capaz de distribuir bens e males.
O arquétipo da transcendência construído pelo discurso teológico e
permeado pela superstição, quando transposto para o campo político, aprisiona
soberano e súditos num sistema de medo recíproco. A plebe teme o soberano
imaginando-o o senhor da contingência, dotado de uma vontade livre. Capaz de
administrar bens e infligir penalidades, o soberano transcendente aos olhos da
plebe opera no campo dos mistérios do poder e das razões de estado, cujo
conhecimento é inacessível aos súditos. Já o soberano tem a plebe sabendo que
esta lhe supera em potência.
Mesmo que sustentado pelo discurso transcendente da soberania o
direito civil do estado tem no direito natural da multidão sua medida, guardião e
ameaça. O direito natural da multidão é a medida do direito civil pois é sua causa
imanente. Apesar de qualquer discurso imaginativo de transcendência, todo poder
político tem por causa imanente a potência da multidão e é na proporcionalidade
entre o direito natural da multidão e o direito natural individual ou de poucos
governantes que se inscreve o caráter democrático ou tirânico de um Estado e sua
maior estabilidade ou instabilidade.

659
“Deus age exclusivamente pelas leis de sua natureza e sem ser coagido por ninguém.” EI,
prop.17
660
EI, prop. 33
295

Além disso, o direito natural é guardião do direito civil pois guarda os


limites das disposições deste contra os eventuais interesses particulares do
soberano. Espinosa afirma a correspondência entre direito e potência e desta
decorre o limite de que ninguém pode transferir todo o seu direito a outrem. Daí
restar sempre um campo de direito natural intransferível que impõe limites ao
disposto pelo direito civil, como exemplo deste limite temos a liberdade de
opinião. Assim, mesmo o soberano que tenha seu poder alicerçado no discurso
imaginativo dos mistérios do poder e das razões de Estado deve observar os
limites do direito natural que guarda as fronteiras daquilo que pode ser regulado
pelas leis do estado e daquilo que, impossível de se transferir e de se regular pelas
leis, deve ser permitido ao direito natural da multidão.
Mas, ao lado das liberdades inalienáveis um outro limite se impõe ao
direito civil, é o limite da indignação ou furor geral da multidão. Dissemos que o
direito natural guarda o direito civil das pretensões de seu exercício para
satisfação de interesses particulares daqueles que exercem o imperium, e o afeto
que serve de termômetro desta relação política é a indignação da multidão.
Qualquer soberano deve evitar medidas que possam causar a indignação da
multidão, a indignação é estopim de revoltas, alimento para as conspirações
contra o poder constituído, limite da obediência, afeto da resistência.
E, além de medida e guardião do direito civil o direito natural é, por
outro lado, uma ameaça. Remonta a Maquiavel a ideia de que todo homem prefere
governar a ser governado, e Espinosa esposa esta máxima para afirmar no direito
natural de cada homem uma ambição pelo poder. Para nosso filósofo o mais
perigoso inimigo de qualquer Estado é o inimigo interno, são as conspirações, a
ameaça de sedição e revolta que vem dos próprios cidadãos ambiciosos por tomar
o exercício do poder. Assim, o direito natural de cada cidadão, impregnado pelo
desejo de governar e não ser governado, é a maior ameaça ao direito civil de um
Estado.
Neste cenário, seja sustentado pelo arquétipo teológico e pela
superstição, seja ancorado no contrato social hobbesiano, firmado entre indivíduos
racionais que temem a morte violenta, o discurso da soberania, da transcendência
do poder político, prende soberano e multidão num sistema de medo recíproco. A
multidão teme o soberano cujas ações lhe parecem envoltas nos mistérios do
poder, nas razões de Estado ou simplesmente numa vontade livre do poder
296

transcendente. O soberano teme a potência da multidão sabendo estar no direito


natural desta o limite e pior ameaça ao seu próprio poder.
Mas, da mesma forma que Espinosa recusa a crença num Deus
antropomórfico e transcendente, também o campo político espinosano se constitui
na imanência absoluta. O poder político em Espinosa não é locus da soberania
nem transcendente em relação ao campo social. O imperium espinosano é
expressão imanente da potência da multidão, e esta não se constitui pelo medo
supersticioso nem por qualquer contrato social, mas numa mecânica afetiva de
esforço pelo comum.
O sujeito político multidão em Espinosa tem suas relações
constituintes tecidas na experiência de afetos comuns. É a imitação afetiva que
leva cada indivíduo a buscar alegrias comuns com seus semelhantes, na
experiência de que afetos experimentados coletivamente são sempre mais fortes
que aqueles experimentados individualmente. Longe do móbil hobbesiano do
medo da morte violenta, a multidão espinosana tem sua constituição como
expressão do próprio conatus individual de seus constituintes na busca pela
alegria e pela liberdade.
Neste sentido, indivíduos atomizados não precedem o campo social
mas, em Espinosa, o processo de subjetivação é também intersubjetivo. É na
experiência dos bons e maus encontros, nas variações de potência decorrentes das
relações de composição ou decomposição com outras coisas singulares que se
constitui qualquer indivíduo. O “devir” humano661 é processo de afetar e ser
afetado por outros indivíduos, processo de subjetivação que só tem lugar na
experiência dos encontros com outros indivíduos. Os indivíduos, em relações de
composição, constituem o sujeito coletivo multidão da mesma forma que é na
experiência do coletivo que se constituem os indivíduos.
A multidão é, assim, uma multiplicidade de singularidades que não
precisa de nenhum poder transcendente que lhe constitua ou garanta sua unidade.
A sociedade em Espinosa não decorre de um contrato entre indivíduos
atomizados, mas também não é um organismo com uma ordem de valores
transcendentes, prévios aos indivíduos, a serem materializados. A gênese
constituinte da multidão é absolutamente imanente e inscrita na mecânica afetiva

661
Sobre o uso do termo devir remetemos o leitor a nosso item 3,1, b)
297

do esforço de cada um de seus indivíduos constituintes em perseverar na


existência.
O poder político é expressão imanente da potência da multidão. Numa
concepção intrinsecamente democrática do político o imperium espinosano não
transcende a multidão em discursos da soberania, mas mantém-se sempre
imanente à potência da multidão. Assim, ainda que seu exercício se perca nas
garras da tirania ou se edifique o mais libertário dos Estados, é sempre nas mãos
da multidão que está a causa imanente do poder político. Espinosa inscreve a
democracia no cerne do político.
Na análise do político nosso filósofo se aproxima de Maquiavel e
afirma estar na experiência a mestra de todo conhecimento adequado sobre a
política. Espinosa recusa elucubrações teóricas e análises abstratas para identificar
nos homens da práxis política o verdadeiro conhecimento acerca da política. É na
materialidade histórica dos conflitos e na natureza humana que Espinosa, assim
como Maquiavel antes dele, encontra o terreno para a sua análise da política.
E se é na natureza humana como ela se apresenta na experiência que
Espinosa delimita o terreno de sua análise acerca do político, nosso filósofo não
espera dos homens nada que a materialidade histórica já não tenha demonstrado.
Espinosa, mais uma vez seguindo Maquiavel, reconhece os homens como
passionais, movidos pela imaginação e pelo desejo cego mais do que pela razão.
A política, para Espinosa, se inscreve necessariamente no campo da imaginação e
das paixões, mesmo a constituição do mais democrático dos regimes tem esta
natureza humana por cenário. Espinosa recusa qualquer concepção da política que
tenha por ambição a elevação da multidão ao exercício ininterrupto da razão ou a
constituição de uma comunidade de sábios.
Tomando os homens como passionais, mais movidos pelo desejo cego
que pela razão, não é nas mãos de um governante ou alguns governantes que
nosso filósofo entende que deve ser deixada a segurança do Estado e a liberdade
dos cidadãos. Espinosa afirma estar nas instituições e não nas mãos dos
governantes os instrumentos mais adequados para a constituição da liberdade e da
segurança de um Estado. É pelas instituições de um Estado que deve ser guardada
a proporcionalidade entre direito natural da multidão e o direito natural de cada
indivíduo ou grupo de indivíduos, de modo a assegurar o exercício do imperium
298

sempre voltado para o bem comum e não usurpado para satisfação de interesses
particulares.
Assim, nosso filósofo dedica os últimos capítulos de seu Tratado
político a propor desenhos institucionais para os clássicos regimes de governo:
monarquia, aristocracia e democracia. A morte impede-o de terminar sua obra,
restando inacabada a sua análise do regime democrático, no entanto é possível
identificar que tanto as instituições propostas por Espinosa para o regime
monárquico quanto aquelas previstas para o regime aristocrático caminham na
direção de uma maior democratização destes regimes.
Apenas para citar algumas de suas características principais, uma vez
que já desenvolvemos o tema detalhadamente em nosso item 3.2, c), a monarquia
espinosana é estruturada com a previsão institucional de conselhos de cidadão que
devem aconselhar o monarca nos assuntos do Estado de modo que “todo o direito
seja vontade do rei explicitada, mas não de modo que toda a vontade do rei seja
direito”662. E, ainda de modo a garantir a democratização da monarquia, Espinosa
prevê a propriedade comum das terras e as armas nas mãos do povo que deve
zelar pela própria segurança e a segurança do Estado. Nosso filósofo, em seu
desenho institucional traçado para a monarquia assegura nas mãos dos cidadãos os
instrumentos de resistência a qualquer tentativa do soberano de usurpar o
exercício do poder político para fins particulares.
Da mesma forma, o regime aristocrático espinosano é constituído por
instituições que, mesmo na desigualdade inerente a este regime, mantenham o
maior grau de democratização do exercício do imperium e instrumentos de
resistência à tirania. Para citar apenas as principais características deste desenho
institucional democrático da aristocracia, Espinosa prevê que o número de
patrícios deve ser muito alto de modo que se evite, tanto quanto possível, sua
corrupção e conluio para fins particulares, e que este deve crescer sempre
proporcionalmente ao crescimento da plebe. Além disso, os patrícios devem se
distinguir sempre da plebe por trajes e cumprimentos próprios de modo que a
plebe possa sempre identificá-los entre a multidão. Os patrícios não podem
eximir-se de sua responsabilidade frente à plebe, podendo sempre ser distinguidos
pela plebe e cobrados por esta tanto pelo seu comportamento político como pelos

662
TP, cap.VII, parágrafo 1.
299

seus negócios particulares pois, diz Espinosa: “Quem, com efeito, não é capaz de
se governar a si mesmo e às suas coisas privadas muito menos será capaz de olhar
pelas públicas ”663
Os desenhos institucionais propostos por Espinosa para os regimes
monárquicos e aristocráticos garantem nas mãos da multidão instrumentos de
resistência a qualquer pretensão tirânica dos governantes, assegurando o mais alto
grau de democratização destes regimes intrinsecamente desiguais. Não é nas mãos
dos governantes, mas nas instituições do Estado e na própria potência da multidão
que nosso filósofo confia a guarda da liberdade dos cidadãos, da segurança do
Estado e do exercício do poder político em prol do bem comum.
Mas, se a potência da multidão se organiza em imperium e um Estado
organizado por instituições políticas, esta se expressa ainda em leis comuns que
garantem o cumprimento dos contratos, regulam e dão previsibilidade aos
comportamentos de seus indivíduos constituintes. Para Espinosa direito é sempre
potência atual e o direito civil é expressão das relações constituintes que
compõem a multidão. Absolutamente imanente ao campo social o direito civil
espinosano opera através de uma mecânica afetiva de ameaças de punições e
promessas de recompensas que inscrevem as normas nas próprias relações
constituintes da multidão.
Longe da transcendência de direitos naturais abstratos e universais,
que podem materializar-se ou não na ordem jurídica de um Estado, nosso filósofo
se afasta de toda a tradição jusnaturalista, e com ela da ideia de declaração de
direitos, para afirmar que todo direito só existe se encontra suas condições
materiais de exercício. O direito civil, em Espinosa, é potência atual e expressão
imanente das relações que constituem a multidão. Leis comuns estabelecem o
justo e o injusto, o certo e o errado que são expressões da potência da multidão.
Da mesma forma, a concepção espinosana acerca do jurídico se
distancia de qualquer das vertentes do positivismo ao manter a relação de
imanência absoluta entre direito civil e potência da multidão. O positivismo tem
por preceitos centrais a autonomia do direito como ciência frente as demais
ciências, como a sociologia ou a política, bem como a afirmação do juízo de
validade das normas como intrínseco unicamente ao campo normativo. A

663
TP, capítulo VIII, parágrafo 47
300

imanência propugnada por Espinosa entre direito civil e potência da multidão


impossibilita qualquer aproximação da concepção espinosana acerca do campo
jurídico e o positivismo. Apesar de nosso filósofo afirmar que são as leis comuns
que instituem, num Estado, as noções coletivas de justo e injusto, certo e errado,
isto não significa dizer que o direito as estabelece de forma autônoma frente ao
social. Direito civil é expressão imanente da potência da multidão e tem sua
eficácia inscrita numa mecânica afetiva intrínseca ao campo social.
Espinosa nos oferece uma compreensão imanente do campo jurídico
em que as leis comuns são expressões das próprias relações constituintes da
multidão, e sua lógica de funcionamento se inscreve na mecânica afetiva sempre
atual da potência coletiva. Direito em Espinosa é potência atual que não existe
separado de suas condições de exercício. Nenhuma ordem de direitos abstratos e
universais a materializar-se, nenhuma possibilidade de pensar o direito dissociado
do campo social ou político, nem jusnaturalista nem positivista, nosso filósofo
afirma uma concepção do direito como potência atual, expressão imanente das
relações sociais.
Mas ao lado de poder político e direito civil a potência da multidão se
expressa também como um imaginário coletivo, ideias, afetos e práticas comuns
da multidão compõem nas mentes e corpos dos seus indivíduos constituintes um
temperamento comum, um ingenium comum que pode nortear a constituição do
poder político mais próxima da liberdade ou da servidão. Se, como vimos, numa
concepção intrinsecamente democrática, Espinosa afirma o poder político como
expressão imanente da potência da multidão, seu caráter mais democrático ou
mais tirânico depende da forma de organização desta própria potência da
multidão, que pode ser mais apta à liberdade ou mais propensa à servidão. Neste
sentido, se estão nas mãos da multidão a constituição da democracia ou a solidão
da tirania, é no ingenium da multidão que estão as ideias, afetos e práticas que a
distinguem como sujeito político mais livre ou mais servil.
A concepção espinosana do imperium como expressão imanente da
potência da multidão coloca o tema da obediência no centro da analise do político.
Numa visão “de baixo pra cima” do poder político, é a obediência que sustenta
qualquer governante, e se estamos diante de um Estado democrático é porque a
obediência livre de seus cidadãos o constitui assim, da mesma forma, diante de
um tirano encontramos necessariamente como sua causa imanente súditos de uma
301

obediência servil. Assim, Espinosa diferencia duas formas de obediência, aquela


do cidadão e aquela do escravo. O cidadão ao obedecer as leis do Estado, que
estão em consonância com o bem comum, obedece ao mesmo tempo o próprio
conatus, já o escravo, ao obedecer ordens que correspondem a interesses
particulares do tirano obedece a utilidade alheia e é “inútil a si mesmo”.
E, no entanto, a liberdade ou servidão políticas, não dependem de
características pessoais do cidadão ou do escravo, mas da qualidade das
instituições e leis do Estado. Um Estado democrático é aquele em que o exercício
do poder político expressa os interesses do bem comum e, portanto, o cidadão que
obedece suas leis obedece ao interesse comum e ao próprio conatus. Já um Estado
tirânico tem o exercício do imperium desvirtuado para interesses particulares e o
escravo ao obedecer as ordens do soberano obedece, na verdade, à utilidade
alheia.
Porém, começamos dizendo que tudo que existe se esforça por
perseverar na existência e, assim, ninguém deseja a servidão pela servidão,
mesmo o escravo do mais tirânico dos regimes não obedece à utilidade alheia
desejando alienar-se dos próprios interesses. Mesmo o mais servil dos homens
obedece uma ordem por imaginar algo de bom na servidão. A imaginação tem um
papel central na constituição da obediência servil. Imersos em ideias inadequadas
e paixões os homens imaginam algo de bom na servidão e obedecem levados por
um desejo de servir que faz com que estes lutem pela servidão pensando tratar-se
da salvação664.
Neste sentido, Espinosa afirma que o mais poderoso dos governantes
é aquele que consegue reinar sobre os ânimos de seus súditos. A obediência pode
ser conseguida por diversos meios: a violência física, o medo, a esperança, no
entanto a sua forma mais poderosa é quando esta é ancorada na alienação da
própria capacidade de julgar daquele que obedece. É quando a obediência servil se
faz desejo de servir, quando a dominação subverte o julgamento do bom e do útil
dos súditos, de forma a levá-los a adotarem como seus os valores e interesses
particulares do soberano, que a obediência encontra sua forma mais poderosa, a
submissão.

664
TTP, introdução
302

O medo e a esperança são afetos constituintes do campo político e


estão presentes em todas as formas de seu exercício, sendo certo que a democracia
é constituída mais pela esperança que pelo medo e a tirania, pelo contrário, regime
sustentado mais pelo medo que pela esperança. No entanto, quando tratamos da
submissão, podemos identificar alguns outros afetos e ideias capazes de sustentar
a obediência como desejo de servir. Afetos e ideias que podem estar presentes no
ingenium da multidão e alimentar a imaginação servil.
O primeiro afeto que podemos citar ao investigarmos o que aprisiona
os súditos na imaginação da obediência servil é o amor ao tirano. A ideia, inscrita
no imaginário coletivo do soberano como indivíduo dotado de características
especiais, virtudes e sabedoria acima daquelas dos súditos, constrói no ingenium
da multidão um afeto de amor associado à admiração que constitui a adoração ao
tirano. O amor ao tirano leva, pela imitação afetiva, a multidão a buscar agradá-lo,
experimentando, por imitação, uma alegria acompanhada da ideia da alegria do
tirano.
Outras duas ideias que são úteis para a constituição da obediência
servil são a experiência da semelhança como uniformidade e a constituição de um
inimigo comum, o ódio ao não-semelhante. A uniformidade de hábitos, ritos e
ideias imposta à multidão contra a afirmação da multiplicidade de singularidades
que a constitui impõe instrumentos de coesão que, ao mesmo tempo que mantém
unida a multidão, constitui a semelhança como critério de exclusão e
discriminação. O ódio à indivíduos de outra nação, outra raça, outro povo pode
unir uma multidão pela experiência comum desta paixão triste, assim como pela
paixão alegre, que não é experimentada sem um grau de tristeza diz Espinosa, da
destruição do inimigo comum.
Nosso filósofo afirma, ainda, que o soberano tem em suas mãos
muitos meios de exercer sua influência sobre os ânimos dos seus súditos.
Espinosa associa ao poder político o poder ideológico, o que nos permite
aproximar suas reflexões aos debates sobre ideologia na teoria marxista. Nosso
filósofo coloca nas mãos do soberano muitos meios de exercício do poder
ideológico, muitos além das ordens diretas do Estado. Assim como no século XX
marxistas como Gramsci e Althusser buscam investigar a ideologia que ultrapassa
as esferas da estrutura normativo-repressora do Estado, Espinosa no século XVII
303

já identificava que o poder do soberano sobre o ingenium da multidão transborda


os limites das ordens expressas do Estado.
Por fim, é uma multidão servil que sustenta o tirano, e se a tirania
existe é porque esta se inscreve na própria constituição da multidão e não na
pessoa do tirano. Espinosa afirma que uma multidão servil, ainda que numa
revolução assassine seu tirano, conservará a tirania e apenas substituirá seu tirano
por outro governante igualmente tirânico. A tirania se inscreve nas relações
constitutivas da multidão, relações de autoridade, indivíduos norteados pela
ambição de dominação, servidão que se constitui no próprio tecido social. Uma
multidão perpassada pela desigualdade, pelo medo recíproco, pela desconfiança e
a autoridade, uma sociedade servil que não conhece os laços da amizade.
6

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