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Espinosa A - Imaginacao - No - Poder - Obediencia - Polit PDF
Espinosa A - Imaginacao - No - Poder - Obediencia - Polit PDF
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor em Direito.
Volume I
Rio de Janeiro
Janeiro de 2013
Ana Luiza Saramago Stern
Ficha Catalográfica
Stern, Ana Luiza Saramago
2v.; 311fls. ; 30 cm
CDD: 340
Resumo
Palavras chave
Espinosa; Política;Direito;Obediência;Poder; Estado.
Résumé
Mot-Clefs
Espinosa
Introdução 12
1. A imanência absoluta 22
1.1. O plano de imanência 22
1.2 Expressões singulares 33
1.3 Conatus 48
2 Soberania. 56
2.1 Superstição e servidão 56
2.2 O sistema do medo. 73
2.3 O medo e a alegria: Hobbes e Espinosa 89
2.3.1 A recusa do fundamento teológico do poder político 90
2.3.2 A causalidade eficiente transitiva x causalidade eficiente imanente
93
2.3.3 Conatus e concepção antropológica 94
2.3.4 Liberdade 103
2.3.5 A constituição do campo político 105
2.3.5.1 Estado de natureza 106
2.3.5.2 Pacto social e o Leviatã 110
2.3.5.3 Direito natural e direito civil 113
5 Conclusão 293
6 Bibliografia 304
Introdução
1
apud CHÂTELET, François e DUHAMEL, Olivier e PISIER-KOUCHNER, Evelyne, História
das ideias políticas, Jorge Zahar editor, Rio de janeiro, 1985.
2
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, São Paulo: Martins
Fontes, 2007. Livro Primeiro, cap.16
13
3
Tratado Teológico Político, prefácio.
14
4
Ética V, proposição III
5
Bergson, Henri. Memória e vida – textos escolhidos, ed. Martins Fontes, São Paulo, 2006, p. 20.
16
6
E I, prop. 15
7
E I, prop. 33
8
E III, prop. 6 e 7
17
impediu nosso filósofo de terminar sua última obra política e, portanto, seu
desenho institucional para os Estados democráticos.
Encerrando nosso terceiro capítulo analisamos o campo jurídico em
Espinosa. A mesma potência da multidão que se expressa em imperium constitui
leis comuns que vão regular e dar previsibilidade aos comportamentos,
assegurando o cumprimento dos pactos e instaurando os juízos coletivos de justo e
injusto, certo e errado. Longe da transcendência afirmada pelo jusnaturalismo e da
ambição de autonomia do jurídico do positivismo, para nosso filósofo, o direito
civil é expressão imanente das relações constituintes da multidão.
Finalmente em nosso quarto e último capítulo chegamos ao tema da
obediência política em Espinosa. Se, por um lado, a potência da multidão se
expressa em poder político e direito civil, ela é também a constituição de um
imaginário coletivo, um conjunto de ideias, práticas e afetos comuns que
perpassam mentes e corpos de seus constituintes, se expressando num
temperamento comum, um ingenium da multidão que a constitui como mais apta à
liberdade ou mais próxima da servidão.
Espinosa distingue expressamente a obediência livre do cidadão
daquela servil do escravo e isso em função da qualidade das ordens que cumprem:
o cidadão cumpre ordens que expressam o interesse comum e assim, ao cumpri-
las obedece na verdade o próprio conatus, já o escravo cumpre ordens que
expressam apenas o interesse particular daquele que as ordena e, portanto, age em
vista da utilidade alheia e é “inútil a si mesmo”.Tal distinção se coaduna com o
que dissemos acerca da distinção entre o Estado livre e a servidão política, pois
somente num Estado em que o poder político é exercido em prol do bem comum é
que a obediência livre do cidadão pode ter lugar. Da mesma forma, o escravo
obedece necessariamente um Estado tirânico, imerso na servidão da obediência a
interesses alheios.
Neste sentido, nos dedicamos à análise da experiência da obediência
como desejo de servidão. Estudamos como a imaginação pode engendrar a
obediência como experiência de servidão, experiência de tomar como seus os
interesses alheios, a alienação da própria capacidade de julgar. A obediência pode
se fundamentar em alguns meios distintos: a violência ou força física, o medo e a
esperança, e, ainda, na própria alienação da capacidade de julgar. Frente a todas
20
estas formas de dominação nosso filósofo afirma ser a mais poderosa delas aquela
determinada pela dominação sobre os ânimos.
A forma mais poderosa de dominação é aquela que inscreve nas
próprias mentes e corpos dos súditos o desejo pela servidão. Fazer a utilidade
alheia parecer o próprio bem, inscrever no ingenium da multidão ideias e práticas
da obediência, levar os homens a “combaterem pela servidão como se fosse pela
salvação9”, é a dominação sobre os ânimos que suscita a forma mais servil de
obediência.
Tomamos, assim, a dominação dos ânimos como cenário e
investigamos que afetos, que ideias e que práticas são capazes de inscrever a
servidão no ingenium da multidão. Já tendo, no segundo e terceiro capítulos, nos
dedicado à análise dos discursos da transcendência e do medo, e feito o estudo da
obediência política nos primeiros itens do capítulo quatro, neste último item do
nosso quarto capítulo buscamos evidenciar alguns outros afetos, ideias e práticas
capazes de alimentar a obediência nas mentes e corpos da multidão como
paradoxal desejo de servidão.
Aquilo que “não encontra nome feio o bastante”, “monstro de vício
que ainda não merece o título de covardia”10, diz La Boétie, o desejo de servidão
pode acompanhar-se do amor mais servil, a adoração ao tirano, assim como
constituir na imaginação dos laços de semelhança critérios de discriminação e
ódio ao outro, até o extremo da alegria triste do extermínio de um inimigo
comum. O soberano tem nas mãos muitos meios de dominação dos ânimos, meios
que vão muito além das ordens diretas do Estado, mas a tirania se inscreve nas
próprias relações constitutivas da sociedade. É uma sociedade autoritária e
medrosa que sustenta a tirania, e é arraigada em seu próprio ingenium que mora a
servidão.
A imanência absoluta propugnada por Espinosa estabelece o terreno
para uma concepção intrinsecamente democrática do político. E, neste cenário, se
o imperium é expressão imanente da potência da multidão, quando o poder
político se constitui como tirânico é nas mãos da multidão que encontramos as
causas de sua própria servidão. Nosso filósofo não despreza as paixões ou a
9
Tratado Teológico Político, prefácio.
10
“Então, que monstro de vício é esse que ainda não merece o nome de covardia, que não encontra
um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e a língua se recusa nomear?” LA
BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.13
21
A imanência absoluta
1.1
O plano de imanência
11
Exemplo singelo do conhecimento geometricamente demonstrado podemos reter na diferença
entre duas ideias distintas do conceito de globo: conceituando um globo como uma superfície
sempre eqüidistante de um ponto fixo talvez conheçamos sua forma mas não sua gênese;
diferentemente se conceituarmos o mesmo globo pela figura resultante da rotação de um
semicírculo sobre um ponto fixo, teremos então a demonstração geométrica do globo, sua gênese
necessária e seu conhecimento verdadeiro. O exemplo é do próprio Spinoza no parágrafo 72 do
Tratado da correção do intelecto: “Por exemplo, para formar o conceito de globo, finjo
arbitrariamente uma causa, a saber, o semicírculo que gira ao redor do centro, e dessa rotação
como que nasce o globo. Realmente, essa ideia é verdadeira, e ainda que saibamos jamais ter
surgido um globo na Natureza, esta percepção é, contudo, verdadeira e o modo mais fácil de
formar o conceito de globo.” Os Pensadores-Espinosa, ed. Abril, 1983, p.67
23
12
CHAUÍ, Marilena. Espinosa: uma filosofia da liberdade, São Paulo: Moderna, 1995. p. 43
13
Carta 76 apud ROCHA, Maurício de Albuquerque, Spinoza a razão e a filosofia, Tese de
doutorado, PUC-Rio, Departamento de Filosofia, Rio de Janeiro: 1992. p.33
14
“E, assim, demonstrada segundo a ordem geométrica significaria demonstrada segundo o
modelo da dedução necessária geométrica, isto é, segundo uma ordem que deduz o que decorre de
definições dadas que exprimem a natureza de uma figura.” SCALA, André. Espinosa, ed. Estação
Liberdade, São Paulo, 2003, p.97
15
“Ordine geométrico demonstrata é uma ordem discursiva adequada ao seu objeto e requerida
necessariamente por ele.” CHAUÍ, Marilena. A nervura do real, São Paulo: Schwarcz Ltda, 2000,
p. 733.
24
definição que a substância é causa de si e não pode ser concebida senão como
existente. Já na Definição 6 da Parte I o conceito de substância identifica-se à
Deus: “Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma
substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma
essência eterna e infinita.”
Na parte I da Ética Spinoza se dedica a desmontar o arquétipo
teológico de um Deus antropomórfico. O que faz da parte I da Ética um texto
também político é justamente seu combate à teologia e à superstição16. Para
Espinosa a teologia não é detentora do saber verdadeiro sobre Deus ou guardiã da
verdade sobre a existência. Assentada na transcendência de um Deus
antropomórfico a teologia para Espinosa tem como único objetivo assegurar a
obediência e sua função é política17. A teologia é um não-saber, um discurso
imaginativo de autoridade e obediência, para Spinoza toda teologia é política18.
Longe das superstições e do discurso teológico, Espinosa define Deus
como a substância, infinitamente infinita que é causa de si e de tudo que existe.
Deus é a Natureza19 infinita, eterna e produtiva, Deus é a existência em ato.
Contra a transcendência propugnada pela teologia nosso filósofo define um Deus
imanente que é a Natureza, que é em tudo que existe e “tudo o que existe, existe
em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido”20. O Deus espinosano
não se distancia de seus efeitos, nem transcende as coisas que existem, mas tudo o
que existe, existe Nele de forma imanente. A imanência encontra-se em cinco
momentos decisivos da Parte I da Ética: no primeiro axioma, que enuncia que
“tudo o que é, ou é em si e concebido por si, ou é em outro e concebido por meio
de outro”; na proposição 15, que enuncia que “tudo o que é, é em Deus e sem
Deus nada pode ser nem ser concebido”; na proposição 16, que enuncia que “da
16
“A crítica da teologia e a recusa em aceitá-la, quer como saber especulativo, quer como
fundamento da prática política, explica uma das mais espantosas inovações do discurso político
trazida pela filosofia espinosana, isto é, que o texto político mais importante de Espinosa seja
também seu texto ontológico mais importante, a Parte I da Ética, o De Deo.”CHAUÍ, Marilena.
Política em Espinosa, São Paulo: Companhia das letras, 2003, p. 86
17
“A teologia, não-saber, uma prática de origem religiosa destinada a criar e conservar autoridades
pelo incentivo ao desejo de obediência.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., p. 84
18
Voltaremos ao tema da teologia ao tratarmos da obediência política em nosso capítulo 3.
19
Usaremos indistintamente os termos Substância, Deus e Natureza por compreendermos que
Spinoza não faz distinção entre seus significados, conforme se conclui da Proposição XI da Parte I
da Ética: “Deus, ou, por outras palavras, a substância que consta de infinitos atributos, cada um
dois quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente”, e da seguinte passagem
do Prefácio da Parte IV da Ética: “É que, aquele Ente eterno e infinito a que chamamos Deus ou
Natureza age em virtude da mesma necessidade pela qual existe.”
20
Proposição 15 da Parte I da Ética
25
21
“Das oito primeiras definições, sete não serão demonstradas no interior desta Parte : elas
determinam critérios de distinção ontológica (substância, atributo e modo) e caracterizam
propriedades do Ser (causa sui, finitude, eternidade e liberdade)” ROCHA, Maurício de
Albuquerque, Spinoza a razão e a filosofia... p. 70
26
22
“A modernidade pode ser caracterizada, de acordo com o que se afirmou, como momento
histórico no qual se procedeu um intenso embate entre, ao menos, duas alternativas absolutamente
conflitantes: a modernidade nascida da revolução humanista (imanente) e aquela originada da
reação a tal revolução (transcendente). Assim é mais acertado falar de modernidades, de duas
alternativas existentes no interior de tal período histórico (...).” GUIMARAENS, Francisco de. O
poder constituinte na perspectiva de Antonio NEGRI, PUC-Rio, Dissertação de Mestrado, Rio de
Janeiro, 2002, p.33
23
“As obras de Copérnico (1473-1543), de Kepler (1571–1630), e de Giordano Bruno (1548-
1600), exemplificam esta atitude e suas conseqüências, teóricas e práticas. O primeiro sustenta que
a Terra não é o centro do Universo, mas sim o Sol; o segundo, observando o movimento dos
astros, delineia um caminho que será trilhado por Newton, séculos depois; o último, afirmará a
27
fisiologia, o corpo humano já começava a ser entendido como obra das leis
matemáticas da mecânica pelos estudantes de Leiden24. A realidade já não era
fruto exclusivamente de uma vontade divina indecifrável; mostrava-se, pelo
contrário, passível de compreensão pelo homem.
Já a perspectiva da transcendência surge como tentativa de contenção e
regulação às afirmações imanentes da liberdade. Proclamação da repressão
religiosa, política e moral, da ideia de um mundo regido por entes externos, de um
Deus antropomórfico e de uma vontade livre tirânica, esta segunda alternativa
moderna se apresenta sempre como resposta, reflexo deturpado e limitador das
forças revolucionárias da imanência.
A “modernidade da transcendência” ergue então seus tribunais e
fogueiras da Inquisição, que ardiam por toda Europa atrás de hereges pensadores.
O constructor do poder teológico-político, baseado na superstição e no medo
como fundamentos do político é o discurso que sustenta práticas sanguinárias de
perseguição e o exercício tirânico do poder. E, mesmo quando abandona o recurso
a um Deus antropomórfico, a transcendência se afirma no interior do sujeito,
concepção da razão e do livre arbítrio como limites e agentes de regulação das
paixões humanas. Dentre os pensadores desta última concepção regulatória, cabe
citar Descartes e Hobbes, com os quais, aliás, Espinosa dialogará diretamente25.
Toda a obra de Espinosa pode ser entendida neste contexto como uma
afirmação da imanência absoluta. Neste sentido, podemos dizer que Espinosa foi
aquele que construiu o mais perfeito plano de imanência. Ao afirmar Deus como a
Substância infinitamente infinita que é causa de si e causa imanente de todas as
coisas nosso filósofo não deixa lugar à transcendência26. O infinito espinosano
não admite o fora nem comporta um ponto fixo ou um centro que pudessem
basear a transcendência. A afirmação do infinito em Espinosa é a afirmação da
imanência absoluta.
Da mesma forma que o infinito não é a soma interminável de partes, o
eterno em Espinosa não é a soma indefinida de períodos de tempo. O eterno é o
existir contínuo e ininterrupto que não se divide em partes, mas transcorre na
existência: “essa substância é eterna, não porque contenha o começo e o fim dos
tempos, mas porque é ausência de tempo, pois nela existir, ser e agir é um só e o
mesmo. Essa substância é Deus.”27
A eternidade em Espinosa é a existência mesma, ininterrupta e
presente. Como diz o próprio filósofo na Ética: ”Por eternidade compreendo a
própria existência, enquanto concebida como seguindo, necessariamente, apenas
da definição de uma coisa eterna.”28Assim, Deus é eterno porque Nele a essência
e a existência são idênticas, uma não podendo ser concebida sem a outra.
Além de causa de si, infinito e eterno, Deus é livre. Está no conceito de
liberdade de Espinosa uma das maiores rupturas do pensamento espinosano. Deus
é livre porque age somente segundo a ordem necessária de sua natureza. A
liberdade de Deus não está em escolher entre possíveis, ou determinar que
existam coisas que contrariam suas leis naturais. Uma vez que a própria essência
de Deus envolve a existência, extingue-se o virtual ou o possível que não se
realiza. Em Deus, tudo o que existe, existe necessariamente e não por acidente,
escolha ou vontade.
Deus é livre porque age apenas segundo a necessidade de sua própria
natureza. Define Espinosa na definição VII da Parte I da Ética: “Diz-se livre o que
Marilena. “Direito natural e direito civil em HOBBES e Espinosa” em Política em Espinosa, ed.
Companhia das letras, São Paulo, 2003, pp. 289 a 314.
26
“Assim, ele (Espinosa) é o príncipe dos filósofos. Talvez o único a não ter aceitado nenhum
compromisso com a transcendência, a tê-la expulsado de todos os lugares.” DELEUZE, Gilles;
GUATTARI, Felix. O que é a filosofia ?, ed. 34, Rio de Janeiro, 1997, p. 66
27
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... p. 96.
28
E I, definição 8
29
29
EI, prop. 29
30
30
CHAUÍ, Marilena. A nervura do real...pg. 929
31
:“Em Spinoza, o ponto de vista ontológico de uma produção imediata se opõe a qualquer apelo a
um dever-ser, a uma mediação e a uma finalidade...” DELEUZE, Gilles. “Prefácio” em NEGRI,
Antonio. A Anomalia Selvagem, Ed. 34, Rio de Janeiro, 1993, p. 07
31
32
EI, prop. 32, corolário 2
32
33
CHAUÍ, Marilena. “Sobre o medo” in NOVAES, Adauto. Os sentidos da paixão, São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, pg.63
34
Voltaremos ao tema da superstição e sua ligação com o poder teológico-político no próximo
capítulo. Por ora basta acrescentarmos a seguinte observação: “(...) a superstição ancora-se na
crença em um poder para o qual não há, por definição, ancoradouro: a caprichosa fortuna. O desejo
imoderado de bens e o medo infindável de males exprimem uma experiência que se realiza sob o
signo da contingência, portanto, de tudo quanto se escapa ao poder dos homens. Na medida em
que bens e males parecem não depender dos humanos e estes desconhecem as causas necessárias
das coisas, dos acontecimentos e de seus próprios sentimentos e ações, não há como impedi-los de
acreditar no poderio da fortuna e de entregar-se a ele. A religião é a prática humana para suportar a
contingência; a teologia, a teoria imaginária da fortuna, ora chamada de vontade de Deus, ora de
providência divina.”CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em Política em
Espinosa, ed. Companhia das letras, São Paulo, 2003, p. 92
35
“Despersonalizando Deus, desfinalizando a atividade divina, recusando a transcendência divina,
demolindo a imagem da criação do mundo pela vontade divina, identificando liberdade e
necessidade da essência-potência de Deus, e demonstrando que nosso intelecto é capaz de
conhecimento adequado e verdadeiro da natureza divina, Espinosa faz desabar as construções
imaginárias, nascidas do medo, da ignorância e da superstição, e as tiranias que sobre elas
repousavam.” CHAUÍ, Marilena, Espinosa: uma filosofia da liberdade... pp. 52 e 53
33
1.2
Expressões singulares
36
GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte..., P. 47
37
“Os atributos, não sendo “representações” da substância, predicados, propriedades ou
designações extrínsecas; não sendo manifestações exteriores dependentes de uma vontade de
Deus, implicando qualidades morais; e por fim, não sendo separáveis do ser da substância, enfim,
os atributos exprimem qualidades da substância: sem a substância não poderiam ser, nem ser
concebidos, e esta também não poderia ser, nem ser concebida sem eles: os atributos são o ser em
“carne e osso” e por isso Spinoza diz que pertencem a ela, que estão compreendidos em seu ser.”
ROCHA, Mauricio. Spinoza, a razão e a filosofia... P. 72
38
Desta definição decorre uma divergência entre os comentadores acerca da natureza dos
atributos. No entanto, excede aos limites deste trabalho nos aprofundarmos no tema que é objeto
de diversas análises e rica bibliografia. Salientamos, apenas, que existem aqueles comentadores
que, como Hegel, seguido por Wolfson, acreditam que os atributos não tem existência própria mas
são apenas formas de apreensão intelectual da realidade. Tais comentadores formam o grupo dos
subjetivistas e baseiam sua posição no termo “intelecto” utilizado por Espinosa na definição de
34
atributo. Assim, para esses comentadores, os atributos não passam de formas de apreensão da
realidade sem existência objetiva por si.
Já os realistas como GUÉROULT, Rousset, CHAUÍ, ao contrário, advogam pela existência
objetiva dos atributos como constituindo a própria essência de Deus. Os atributos teriam, então,
existência própria independentemente se o intelecto os conhece ou não. Um argumento forte nesse
sentido é o fato de existirem infinitos atributos e nosso intelecto só perceber dois deles, o
pensamento e a extensão. Neste sentido, entendemos que é inegável a existência objetiva dos
atributos, sendo equivocada a posição subjetivista a esse respeito.
39
“Se o atributo exprime, de uma certa maneira, a essência da substância, entre atributo e
substância não pode existir uma distinção real. Os atributos são também em si e concebidos por si.
Para marcar a simples distinção de razão entre os atributos e a substância, Spinoza se vale do
termo ‘intelecto’ na definição do atributo.” GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da
imanência – Spinoza e as fundações ontológicas e éticas da política e do direito, Tese de
doutorado, PUC-Rio Departamento de Direito, 2006, p.31
40
Proposição II da Parte III da Ética
35
41
Proposição 7 da E II
42
“O pensamento mais difícil é o da univocidade, pois ele afirma: o ser se diz absolutamente em
um só e mesmo sentido de tudo isso de que ele se diz.(...) dizer que o ser é unívoco significa
afirmar que não há diferença categorial entre os sentidos supostos da palavra ser e o ser se diz em
um só e mesmo sentido de tudo o que é (...).” DELEUZE, Gilles. Cursos de Vincennes, 14 de
janeiro de 1974 – excerto sobre ‘Univocidade’, tradução Mauricio ROCHA, disponível em
<http://geocities.yahoo.com.br/guaikuru0003/univocidade.html>
43
“A expressão “paralelismo”, além de não ser de Spinoza, nem mesmo se encontra em qualquer
de suas obras, afirmaria a estrita correlação entre determinações do pensamento e da extensão,
como inscritas horizontalmente sobre duas linhas paralelas cujos pontos se correspondem (...). No
entanto, essa leitura é restritiva e insatisfatória (...)” MACHEREY, Pierre, Introduction à l’Éthique
de Spinoza - la realité mentale (Parte II), PUF, Paris, 1997 , Tradução: Mauricio ROCHA, mimeo.
44
“Contudo, esse paralelismo entre a ideia e seu objeto implica apenas a correspondência, a
equivalência e a identidade entre um modo do pensamento e outro modo tomado num único
atributo bem determinado (no nosso caso, a extensão como único outro atributo que conhecemos:
assim o espírito [mente] é a ideia do corpo e de nada mais). Ora, a seqüência da demonstração do
paralelismo (II,7, esc.) eleva-se ao contrário a um paralelismo ontológico: entre modos de todos os
atributos, modos que não diferem senão pelo atributo. Segundo o primeiro paralelismo, uma ideia
no pensamento e seu objeto em tal outro atributo formam um mesmo “individuo” (II, 21, esc.);
conforme o segundo, modos de todos os atributos formam uma mesma modificação.” DELEUZE,
Gilles. Espinosa, filosofia prática, ed. Escuta, São Paulo, 2002, p. 75
36
45
Ressaltamos que o conceito de correspondência utilizado por DELEUZE para definir a relação
entre os modos dos diferentes atributos da Substância, assim como seu termo paralelismo, não são
pacíficos entre os comentadores de Espinosa. CHANTAL Jaquet, por exemplo, prefere trabalhar
com o conceito de igualdade dos atributos, já Marilena CHAUÍ trabalha com o conceito de
equiparação das potências dos atributos. No entanto, escapa aos limites deste trabalho abordarmos
esta discussão, analisando todos os pontos de vista defendidos sobre o tema. Limitamo-nos aqui a
ressaltar a polêmica sobre o tema, esposando a posição deleuziana sem, no entanto, deixar de citar
seu caráter controvertido. Sobre uma análise crítica do uso do termo paralelismo em referência ao
pensamento de Espinosa remetemos o leitor à: ITOKAZU, Ericka Marie. Tempo, duração e
eternidade na filosofia de Espinosa , Tese de doutorado, Departamento de Filosofia – USP, 2008,
pg.54 a71
46
“A ordem e a conexão das coisas nada mais é do que a ordem e conexão das causas, segundo
as quais a ação divina se efetua em todos os atributos com idêntica necessidade. É preciso entender
que há na natureza um só e único sistema de ordem e conexão dos elementos que a constituem,
que é ao mesmo tempo o das coisas e o das causas, entre os quais se encontram as ideias e os
corpos (...). Essa ordem é a “ordem da natureza”, como aparece na proposição 24, ou ainda a
“ordem da natureza inteira” (ordo totius naturae), como diz o escólio da proposição 7.”
MACHEREY, Pierre, Introduction à l’Éthique de Spinoza - la realité mentale (Parte II), PUF,
Paris, 1997 , Tradução: Mauricio ROCHA, mimeo.
47
EI, prop. 21.
37
Por coisa singular entendo as coisas que são finitas e que têm uma existência
determinada. Se acontece que vários indivíduos concorrem para uma mesma
ação, de tal modo que todos em conjunto sejam a causa de um mesmo efeito,
48
Deste axioma decorre o explicitado por Espinosa na Proposição 3 da mesma Parte IV da Ética:
“A força pela qual o homem persevera no existir é limitada e superada, infinitamente, pela
potência das causas exteriores”.
38
49
Definição VI da Parte II da Ética
50
“... a realidade das coisas singulares é complexa, obedecendo a um princípio de composição que
faz dessas coisas singulares combinações ou associações, submissas a um princípio relacional. As
coisas singulares resultam do arranjo ou reunião de várias formas individuais, nas condições em
que a unidade é indissociável da pluralidade. Reunião que se efetua dinâmica e ativamente, quando
“vários indivíduos concorrem em uma mesma ação de tal modo que todos em conjunto sejam a
causa de um efeito.” ROCHA, Maurício, Spinoza, a Razão e a Filosofia... p.191
51
“Essa definição reveste-se ainda de outra importância porque nela a singularidade surge como
composição de indivíduos que concorrem para a mesma ação, (...). Em outras palavras, agir em
comum ou agir como causa única para a realização de uma mesma ação torna os componentes
partes constituintes do indivíduo, de maneira que individualidade significa unidade causal.”
CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em Política em Espinosa..., p. 132
52
A possibilidade de constituição de indivíduos compostos pela relação de composição entre
outras coisas singulares é o que possibilitará a Espinosa dispensar o recurso a pactos ou contratos
para a constituição do campo político. É a unidade causal que constitui imediatamente o sujeito
político multidão e não qualquer formalização jurídica. Espinosa identifica na relação de
composição entre indivíduos a constituição de um sujeito político complexo. É pela relação de
composição entre indivíduos que se constitui imediatamente o campo político. Neste sentido: “...
assim como o indivíduo é união de corpos (unio corporum) e conexão de ideias (conexio idearum)
e assim como a natureza é um indivíduo complexo constituído por corpos e ideias, as uniones
corporum e as conexiones idearum podem compor um indivíduo novo: a multitudo que, tanto no
Teológico-político como no Tratado político define o sujeito político. Desde já podemos perceber
por que Espinosa não precisará recorrer ao conceito de contrato para explicar a formação do
sujeito político.” CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em, Política em Espinosa,
p. 135
39
53
“Todos os corpos estão em movimento ou em repouso.” Axioma I da Proposição XIII da Parte II
da Ética ; “Todo corpo se move, ora mais lentamente, ora mais rapidamente.” Axioma II da
Proposição XIII da Parte II da Ética; e “Os corpos distinguem-se uns dos outros em razão do
movimento e repouso, da rapidez e da lentidão, e não em razão da substância” Lema I da
Proposição XIII da Parte II da Ética.
54
“Todos os corpos convêm em certas coisas.” Lema II da Proposição XIII da Parte II da Ética.
55
“Um corpo, quer em movimento quer em repouso, deve ser determinado ou ao movimento ou ao
repouso por um outro corpo, o qual, por sua vez, foi também determinado ao movimento ou ao
repouso por um outro, e este, de novo, por m outro, e assim até o infinito.” Lema III da Proposição
XIII da Parte II da Ética.
56
Escólio da Proposição II da Parte III da Ética
40
o que se passa na vida de seu corpo, tem ideia de todas as afecções do seu corpo.
Mas, vale ressaltar, isso não significa que a mente tenha sempre um conhecimento
adequado do que se passa no seu corpo. Como veremos a seguir, ao tratar dos
gêneros de conhecimento, a mente pode vir a ter um conhecimento verdadeiro das
afecções do corpo, mas o primeiro e mais comum conhecimento que a mente tem
das afecções do corpo é confuso, mutilado, inadequado, imaginativo. Na maior
parte do tempo e de forma mais imediata a mente percebe de forma inadequada as
imagens das afecções do seu corpo, as imagens da forma como o seu corpo é
afetado por outras coisas singulares.
Como modo do atributo pensamento a mente, além de ideia do seu
corpo é, ainda, ideia da ideia do corpo , ou seja, ideia de si mesma. O que também
não significa que a mente tenha sempre um conhecimento verdadeiro de suas
ideias, grande parte do tempo a mente tem um conhecimento inadequado,
imaginativo de suas ideias. Alcançar a verdadeira ideia do seu corpo e da própria
mente é um processo desvendado e demonstrado pela Ética. Por fim, cabe
destacar que se a mente é ideia de seu corpo, isso significa que ela é tão complexa
quanto ele, pois ela é constituída por todas as ideias (ou percepções) de todas as
partes e afecções de seu corpo. O corpo é uma união de corpos e a mente, uma
conexão de ideias.57.58.
Espinosa identifica na Ética três gêneros de conhecimento, três tipos
de funcionamento da mente: a imaginação, a razão e a intuição. O primeiro gênero
de conhecimento - a imaginação - é a forma mais comum de funcionamento da
mente59. A mente enquanto ideia do corpo só conhece o próprio corpo pelo
conhecimento de suas afecções. O primeiro gênero de conhecimento é norteado
pelas ideias das afecções do corpo, as imagens do que acontece no corpo quando
este é afetado pelo encontro com outras coisas singulares. O que acontece na
imaginação é que as ideias não seguem a ordem de encadeamento própria do
pensamento e da mente, mas ocorrem encadeadas na lógica das afecções do corpo,
uma lógica, portanto, exterior a própria mente.
57
Proposição XI da Parte II da Ética
58
Proposição XII da Parte II da Ética
59
“A filosofia de Spinoza seria de início uma filosofia da imaginação, pois esta constitui a
atividade principal e dominante da mente humana, enquanto esta é a ideia de um corpo. Além
disso, é preciso dizer que não se trata de filosofar contra a imaginação, mas com ela, isto é,
levando em conta as características que definem sua natureza positivamente.” MACHEREY,
Pierre, Introduction à l’Éthique de Spinoza - la realité mentale (Parte II), PUF, Paris, 1997 ,
Tradução: Mauricio ROCHA, inédito
41
Ressalte-se que com isso não estamos afirmando que o corpo seja,
necessariamente, o campo da desordem e da inadequação e a mente a morada do
conhecimento verdadeiro. É possível um conhecimento adequado das afecções do
corpo, inclusive a Ética é escrita para demonstrar esse processo de como se passar
das ideias inadequadas às ideias adequadas acerca das afecções corporais.
Ademais, em Espinosa não existe hierarquia entre pensamento e extensão. Já
vimos que o filósofo sustenta a potência do corpo assim como a potência da
mente. O que faz da imaginação conhecimento inadequado não é sua ligação com
as afecções corporais, mas o caráter imediato desta ligação, a forma inadequada
como estas ideias se encadeiam na mente seguindo a ordem das percepções e
sensações do corpo.
Para entendermos o que caracteriza a imaginação, e depois a razão, é
preciso, antes, definirmos o que constitui uma ideia adequada e uma ideia
inadequada para Espinosa. Segundo o filósofo, uma ideia adequada não é
adequada por corresponder ao seu objeto, mas ela corresponde ao seu objeto por
ser adequada. A ideia adequada é aquela que traz em si todos os elementos da
ideia verdadeira60. Assim, a caracterização de uma ideia como adequada decorre
de determinações que lhe são intrínsecas, sendo a conveniência com o ideado uma
determinação interna de sua condição de ideia adequada. Neste sentido diz
Espinosa em sua Carta 60:
60
Definição IV da Parte II da Ética:
“Por ideia adequada entendo uma ideia que, quando considerada em si mesma, sem relação com o
objeto, tem todas as propriedades ou denominações intrínsecas de uma ideia verdadeira.”
61
Carta 60, apud ROCHA, Maurício. Spinoza, a razão e a filosofia....p. 214.
62
“Nada existe de positivo nas ideias que permita chamar-lhes falsas.” Proposição XXXIII da
Parte II da Ética
42
rapidamente, e, absolutamente falando, no fato de poderem ora mover-se, ora estar em repouso.”
Demonstração do Lema II da Proposição XIII da Parte II da Ética
67
Proposição XXXVIII da Parte II da Ética
68
“Embora as noções comuns não sejam imagens ou imaginações, mas compreensão interna das
razões da conveniência entre as coisas, elas mantêm com a imaginação um vínculo externo: a
imaginação, ou a ideia da afecção do corpo, não é uma ideia adequada. Mas, quando exprime o
efeito de um corpo que convém com o nosso, torna possível a formação de uma noção comum, a
qual compreende intrínseca e adequadamente esta conveniência. Há também um vínculo interno:
se a imaginação capta efeitos exteriores dos corpos uns sobre os outros, uma noção comum explica
esses efeitos pelas relações internas que constituem tais corpos. Digamos que existe, para Spinoza,
uma espécie de convergência entre as características da imaginação e das noções comuns, pois
estas se apóiam sobre a imaginação. Aliás, como ele mesmo já dissera, esta última não é um vício,
mas uma potência.” ROCHA, Maurício. Spinoza, a razão e a filosofia... p. 219
44
isso conhecer conforme à razão é um esforço. Ser racional é um estado que pode
ou não ocorrer na experiência cotidiana e mesmo o mais racional dos homens não
tem qualquer garantia contra as ideias inadequadas da imaginação. Assim,
correntemente passamos da imaginação à razão e desta à imaginação novamente.
A razão percebe apenas o que há de comum entre as coisas, é o
encadeamento racional de ideias adequadas porém gerais, pois trata-se do
conhecimento das propriedades que são comuns a um conjunto de coisas enquanto
consideradas partes de um todo. Neste sentido, ainda que adequado, o
conhecimento do segundo gênero pode degenerar-se em abstração, caso tomado
por conhecimento de essências69. Confundir propriedades comuns a duas ou mais
coisas com a essência singular de cada uma delas é um desvio da compreensão
adequada das noções comuns, já que o segundo gênero do conhecimento nada
revela sobre as essências das coisas singulares. O que nos dá o conhecimento das
essências singulares é o terceiro gênero de conhecimento, a intuição70.
A passagem do segundo para o terceiro gênero de conhecimento se dá
pela ideia de Deus. A ideia de Deus não é uma noção comum, uma vez que
envolve a essência de Deus. No entanto, Deus, como apresentado na Parte I da
Ética é causa de si e de tudo que existe, em última instância, é o que há de comum
entre todas as coisas, e, portanto, a ideia de Deus pode ser considerada como a
mais geral das noções comuns71.
Já a ideia de Deus (Idea Dei), no sentido que Espinosa a trabalha nas
Partes II e V da Ética, como a ciência de Deus ou seja, o intelecto infinito
69
“Os princípios da razão são noções comuns que explicam o que é comum a todas as coisas e não
explicam a essência de nenhuma coisa singular. Daí decorre que ainda no nível das noções comuns
não é impossível cairmos em abstrações. Para isso basta que, esquecendo-nos do seu caráter não
essencial, ainda que adequado, atribuamos às “noções comuns” o caráter de essenciais. Ora, para
Espinosa só o conhecimento do terceiro gênero, a ciência intuitiva da Ética, tem esse caráter...”.
TEIXEIRA, Lívio, A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de
Espinosa, ed. Unesp, São Paulo, 2001. pp. 168 e 169
70
“Além desse dois gêneros de conhecimento, há ainda um terceiro, como mostrarei a seguir, a
que chamaremos ciência intuitiva. Este gênero de conhecimento procede da ideia adequada da
essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das
coisas.” Escólio II da Proposição XL da Parte II da Ética
“O esforço, ou seja, o desejo de conhecer as coisas por este terceiro gênero de conhecimento, não
pode nascer do primeiro, mas sim do segundo gênero de conhecimento.” Proposição XXVIII da
Parte V da Ética
71
“A relação do segundo com o terceiro gênero aparece sob a seguinte forma: sendo ideias
adequadas, quer dizer ideias que estão em nós como estão em Deus (II, 38 e 39), as noções comuns
nos dão necessariamente a ideia de Deus. A ideia de Deus vale inclusive para a mais geral das
noções comuns, visto que ela exprime o que há de mais comum entre todos os modos existentes, a
saber, que eles estão em Deus e são produzidos por Deus.” DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia
prática... p. 101
45
72
“A passagem do segundo para o terceiro gênero depende dessa transição relativa aos aspectos da
ideia de Deus. A transição ocorre quando vamos além da razão como formadora de noções
comuns, isto é, dando conta de um sistema de “verdades eternas”, e entramos no intelecto
intuitivo, na ciência intuitiva que da conta das verdades de essência, quando as ideias se refletem
em nós como em Deus, fazendo com que experimentemos que somos eternos.” ROCHA,
Maurício, Spinoza, a Razão e a Filosofia... .p.219
46
perceber porque a relação entre mente e corpo, para nosso filósofo, não se resume
à subordinação ou hierarquia. Assim como todos os atributos são reais, eternos e
potências infinitas de agir, como Espinosa demonstra na proposição 11 da Parte I
da Ética73, posição reafirmada por ele nas proposições 6 e 7 da Parte II da Ética74
ao demonstrar que a potência de agir de Deus é idêntica à sua potência de agir e
que, portanto, há plena igualdade entre todos os atributos, sem hierarquia entre
eles e sem precedência de um deles sobre os demais – são todos ser no mesmo
sentido ou univocamente --, assim também, os modos dos atributos estão numa
relação de igualdade, não havendo entre eles hierarquia nem precedência – são
todos ser no mesmo sentido ou univocamente. Além disso, um modo exprime a
essência e a potência de seu respectivo atributo e, da mesma maneira que um
atributo não tem uma relação causal com outros, assim também os modos de um
atributo não tem uma relação causal com modos de outro atributo – a causalidade
é interna a cada atributo e seus modos. Consequentemente, nem a mente pode
ordenar o corpo a mover-se nem o corpo ordenar a mente a pensar75. O que há
entre mente e corpo é a correspondência de serem ambos expressões da mesma
potência infinita de Deus.
Assim, todas as afecções do corpo tem sua correspondência em ideias
na mente. A mesma ordem e conexão das ideias na mente é a ordem e conexão
das afecções no corpo porque a ordem e conexão das ideias e as das coisa é uma
só e a mesma76. Em Espinosa não há hierarquia entre mente e corpo, nem relação
de comando ou subordinação: mente e corpo são modos de atributos distintos e
tem sua correspondência na univocidade divina.
Ao conceituar corpo e mente como partes da natureza Espinosa opera
uma ruptura fundamental com qualquer concepção antropocêntrica da realidade.
Para nosso filósofo o homem é apenas mais uma coisa entre outras coisas que
existem, apenas mais uma parte da Natureza. Assim, o homem não é um império
73
“Deus, ou seja, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime
uma essência eterna e infinita, existe necessariamente.” EI, prop. 11
74
“Os modos de qualquer atributo tem Deus por causa, enquanto ele é considerado exclusivamente
sob o atributo do qual eles são modos e não enquanto é considerado sob qualquer outro atributo.”
EII, prop. 6.
“A ordem e a conexão das ideias é o mesma que a ordem e a conexão das coisas.” EII, prop. 7.
75
“Nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao
movimento ou ao repouso ou a qualquer outra coisa (se acaso existe outra coisa).” Proposição II da
Parte III da Ética
76
“A ordem e conexão das ideias é a mesma que a ordem e conexão das coisas.” E II, Prop. VII
47
77
“Assim, este prejuízo tornou-se em superstição e lançou profundas raízes nas mentes, dando
origem a que cada um aplicasse o máximo de esforço no sentido de compreender as causas finais
de todas as coisas e de as explicar: mas, conquanto se esforçassem por mostrar que na Natureza
nada se produz em vão (isto é, que não seja para proveito humano), parece que não deram a ver
mais do que isto: a Natureza e os deuses deliram tal qual os homens.” Apêndice da Parte I da Ética
78
“Enunciada na forma negativa, ela diz que o homem não é uma substância, mas sim um modo
ou afecção da substância, reafirmando assim uma tese que é fundamental na Ética: é preciso
restituir ao ser humano seu estatuto integralmente natural, ele não é um império num império (...).
Não há transcendência do mundo humano (...). Portanto, a pretensa autonomia do homem é uma
ficção (...). Mas, como Deus é causa imanente, que age e existe como se produz, produzindo todas
as coisas pela sua infinita potência, e não por vontade ou arbítrio, toda a antropologia cartesiana
desmorona nesta passagem. A passagem retoma o Apêndice da Parte I.” MACHEREY, Pierre,
Introduction à l’Éthique de Spinoza - la realité mentale (Parte II), PUF, Paris, 1997 , Tradução:
Mauricio ROCHA, disponível em
<http://geocities.yahoo.com.br/spin_filo/spin_MACHEREY_E2_110.html>
48
1.3
Conatus
79
E III, proposição 7
80
“On le sait aussi, Descartes, dans sa physique géométrique des années 1630-1635, fait, ou tente
de faire, cette mise en équation et pose ce principe de conservation, qui est celle de la quantité de
mouvement, (...) s'il y a donc bien conservation, elle tient uniquement à une cause extrinsèque, qui
n'est même pas un premier moteur supra-lunaire, mais l'être créateur transcendant, et cela en raison
de la seule constance de sa volonté dans la continuité de sa décision créatrice et dans le choix des
lois qu'il s'est fixées pour as création ; le principe du mouvement se trouve dans une immutabilité,
qui est en dehors, au delà de lui.” ROUSSET, Bernard. Entre Galilée et Newton : les apports du
conatus hobbien et du conatus spinoziste...
49
81
“... Descartes avait domine la première moitié du XVII siècle en poussant jusqu’au bout
l’enterprise d’une science mathémathique et mécanicienne; le premier effet de celle-ci était de
dévaloriser la Nature, en lui retirant toute virtualité ou potentialité, tou pouvoir immanent, tout être
inhérent. La metaphysique cartésienne compléte la même entreprise, parce qu’elle cherche l’être
hors de la nature, dans un sujet qui la pense et dans un Dieu qui la crée.” DELEUZE, Gilles.
Spinoza et le probléme de l’expression, . ed. Minuit, Paris, 1968, p. 207
82
“ Pois não ouso negar que o corpo humano, ainda que mantenha a circulação sanguínea e outras
coisas, em função das quais se julga que ele ainda vive, pode, não obstante, ter sua natureza
transformada em outra inteiramente diferente da sua. Com efeito, nenhuma razão me obriga a
afirmar que o corpo humano não morre a não ser quando se transforma em cadáver. Na verdade, a
própria existência parece sugerir o contrário.” E IV, p. 39, esc.
83
“En effet, Spinoza suggère que le rapport que caractérise un mode existant dans son ensemble
est doué d’une sorte d’élasticité. Bien plus, sa composition passe par tant de moments, et aussi sa
décomposition, qu’on peut presque dire qu’un mode change de corps ou de rapport em sortant de
50
l’enfance, ou en entrant dans la vieillesse. Croissance, vieillessement, maladie: nous avons peine à
reconnaître un même individu. Et encore, est-ce bien ce même individu?” DELEUZE, Gilles.
Spinoza et le probléme de l’expression..., p.202
84
“Ce qui est à conserver ,ici, n’est pás lê mouvement vital abstraitment séparé de l’ensemble ou il
s’intègre: c’est dans sa totalité, le système de mouvements et de repos dont la formule définit notre
individualité. Nou voulons vivre, certes, en un sens, seulement vivre; mais la vie ne se réduit pas à
la simples circulation du sang ni aux autres fonctions biologiques élementaires. Vivre c’est vivre
selon ma essence individuelle...” MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza,
Paris : Les Éditions Minuit, 1988, pp.88-89
85
“Sendo uma força interna para existir e conservar-se na existência, o conatus é uma força interna
positiva ou afirmativa, intrinsecamente indestrutível, pois nenhum ser busca a autodestruição.(...)
51
Por afeto entendo as afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse
corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as
ideias dessas afecções. (Definição III da Parte III da Ética)
O corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua
potência de agir é aumentada ou diminuída, e, ainda, por outras que não
aumentam nem diminuem a sua potência de agir. (Postulado I da Parte III da
Ética)
Definindo corpo e alma pelo conatus, Espinosa faz com que sejam essencialmente vida, de
maneira que, na definição da essência humana, não entra a morte. Esta é o que vem do exterior,
jamais do interior.” CHAUÍ, Marilena. Espinosa uma filosofia da liberdade...p.63
86
“Mais notre force de pâtir est seulement l’imperfection, la finitude ou la limitation de notre force
d’agir en elle-même. Notre force de pâtir n’affirme rien, parce qu’elle n’exprime rien du tout: elle
enveloppe seulement notre impuissance, c’est-à-dire la limitation de notre puissance d’agir. En
vérité, notre puissance de pâtir est notre impuissance, notre servitude, c’est-à-dire lê plus bas degré
de notre puissance d’agir.” DELEUZE, Gilles. Spinoza et le probléme de l’expression..., p. 204.
87
“Nenhuma coisa pode der destruída, a não ser por uma causa exterior.” Proposição IV da Parte
III da Ética
“A duração é uma continuação indefinida da existência.” Definição V da Parte II da Ética
“Digo indefinida porque ela jamais pode ser determinada pela própria natureza da coisa existente
nem também pela causa eficiente, a qual, com efeito, põe necessariamente a existência da coisa,
mas não a suprime.” Explicação da Definição V da Parte II da Ética
“O esforço pelo qual cada coisa tende a perseverar no seu ser não envolve tempo finito, mas um
tempo indefinido.” Proposição VIII da Parte III da Ética
88
“Um modo existente define-se por certo poder de ser afetado. Quando encontra outro modo,
pode ocorrer que este outro modo seja “bom” para ele, isto é, se componha com ele, ou, ao
inverso, seja “mau” para ele e o decomponha: no primeiro caso, o modo existente passa a uma
perfeição maior; no segundo caso, menor. Diz-se, conforme o caso, que a sua potência de agir ou
força de existir aumenta ou diminui, visto que a potência do outro modo se lhe junta, ou, ao
contrário, se lhe subtrai, imobilizando-a e fixando-a” DELEUZE, Gilles. Spinoza – filosofia
prática, ed. Escuta, São Paulo, 2002, p. 56 e 57
52
97
“Uma afecção [afeto] não pode ser refreada nem suprimida, senão por uma afecção [afeto]
contrária e mais forte que a afecção [afeto] a refrear.” Proposição VII da Parte IV da Ética
98
“Esse ódio para com a coisa amada, junto à inveja, chama-se ciúme, o qual, por conseqüência,
não é senão uma flutuação da alma nascida do amor e do ódio simultâneos, acompanhados da ideia
de um outro a quem se tem inveja.” Escólio da Proposição XXXV da Parte III da Ética
99
“O medo (Metus) é uma tristeza instável nascida da ideia de uma coisa futura ou passada, do
resultado da qual duvidamos numa certa medida....” Definições dos afetos, XIII, Parte III da Ética
100
“A esperança (Spes) é uma alegria tristeza instável nascida da ideia de uma coisa futura ou
passada, do resultado da qual duvidamos numa certa medida...” Definições dos afetos, XII, Parte
III da Ética
“Segue-se dessas definições que não há esperança sem medo, nem medo sem esperança. Aquele,
com efeito, que está em suspenso pela esperança e duvida do resultado de uma coisa, supõe-se
imaginar qualquer coisa que exclua a existência da coisa futura, e, por conseguinte, nessa medida,
supõe-se que se entristece (...); e, conseqüentemente, enquanto está suspenso pela esperança tem
medo de que a coisa não aconteça ...” Explicação das definições XII e XIII dos afetos, Parte III da
Ética
54
causas externas, regido por ideias inadequadas e tomado por paixões, paixões que
podem ser tristes ou alegres101.
101
“Passividade significa ser determinado a existir, desejar, pensar a partir de imagens exteriores
que operam como causas de nossos apetites e desejos. A servidão é o momento em que a força
interna do conatus, tendo se tornado excessivamente enfraquecida sob a ação das forças externas,
submete-se a elas imaginando submetê-las.” CHAUÍ, Marilena. Espinosa, uma filosofia da
liberdade...p. 67
2
Soberania.
2.1
Superstição e servidão
102
Apêndice EI, pg. 65
57
103
Sobre a essência do homem e de tudo o que existe como esforço por perseverar na existência e
em nossa consciência de desejo pelo que nos parece útil, remetemos o leito à discussão acerca do
conatus que desenvolvemos no cap. 1
104
“En nous expliquant, dans l’Appendice du livre I, l’origine de notre croyance aux cause finales,
Spinoza ne fait, en somme, que développer ce qui est impliqué dans sa théorie de l’amour. Avant
d’entreprendre cette explication, il déclare que le moment n’est pas encore venu de la déduire de la
nature de l’esprit humain; mais il la fait découler de deux principes, qu’il admet provisoirement à
titre de postulat, et qui renvoient sans ambiguité aux deux livres suivants de l’Ethique : que nous
naissions ignorants des causes se déduit des propositions 24-31 du livre II ; que nous désirions ce
qui nous est utile se déduit de la seconde moitié du scolie de la propositions 13 du livre III (ou, ce
qui revient au même, de la propositions 28), qui trate du désir particulier, c’est-a-dire, précisément,
du desir modifié par l’amour ou par la haine. » MATHERON, Alexandre. Individu et communauté
chez Spinoza... pg. 102-103.
58
afecções corporais, nos encontros com outras coisas na Natureza, imaginam que,
como eles próprios, tudo o que existe responde a uma determinada finalidade, e
que esta se identifica à sua própria utilidade. Encontrando em cada coisa da
Natureza uma relação com seus próprios desejos e apetites, os homens julgam que
tudo o que existe, existe como meio, instrumento, para a sua própria utilidade105.
Se, entretanto, não puderem saber dessas causas por ouvirem de outrem, só
lhes resta o recurso de se voltarem para si mesmos e refletirem sobre os fins
que habitualmente os determinam a fazerem as coisas similares e, assim,
necessariamente, acabam por julgar a inclinação alheia pela sua própria.
Como, além disso, encontram, tanto em si mesmos, quanto fora de si, não
poucos meios que muito contribuem para a consecução do que lhes é útil,
como, por exemplo, os olhos para ver, os dentes para mastigar, os vegetais e
os animais para alimentar-se, o sol para iluminar, o mar para fornecer-lhes
peixes, etc., eles são, assim, levados a considerar todas as coisas naturais
como se fossem meios para a sua própria utilidade.106
105
« Et la Nature entière nous apparait alors comme un immense système de moyens mis au
service de nos propres fins » MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza...
pg. 106
106
Apêndice, EI, pg. 65
107
« Car c’est désormais à cette pseudo-explication finaliste, qui est la seule dont nous disposions,
et à l’aquelle presque rien dans notre esprit ne s’oppose, que nous allons désormais recourir, même
là oú il n’y a plus d’agent conscient. A propos de n’importe quel événement, la question « pour
quoi ? » se transformera insidieusement en la question « en vue de quoi » ? Et lorsque nous
croirons y avoir répondu, nous serons satisfaits, car rien ne nous incitera à cherche au-
delà. » MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza... pg. 105-106
59
o que existe para a utilidade humana, e os próprios homens para que lhe prestem
cultos e honras.
Do preconceito finalista, por julgarem que tudo na Natureza existe em
função de uma finalidade, os homens, na ignorância das causas das coisas, tomam
a finalidade de tudo o que existe como seus próprios interesses. Segundo seus
próprios juízos e afetos imaginam que um Deus ou Deuses antropomórficos
dispuseram tudo o que existe tendo em vista uma finalidade precípua, qual seja,
atender as necessidades humanas. Assim descreve Espinosa :
E por saberem que simplesmente encontraram esses meios e que não foram
eles que assim os dispuseram, encontraram razão para crer que deve existir
alguém que dispôs esses meios para que eles os utilizassem. Tendo, pois,
passado a considerar as coisas como meios, não podiam mais acreditar que
elas tivessem sido feitas pelo seu próprio valor. Em vez disso, com base nos
meios de que costumam dispor para seu próprio uso, foram levados a
concluir que havia um ou mais governantes da natureza, dotados de
liberdade humana, que tudo haviam providenciado para eles e para o seu
uso tinham feito todas as coisas.108
108
Apêndice, EI, pg.65,67
60
Torna-se, assim, evidente, por tudo isso, que não é por julgarmos uma coisa
boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a
desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la,
por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa. EIII, prop. 9, escólio.
109
« Telles est l’origine des notions de Bien et de Mal. Nous appelons Bien, au départ, ce qui
contribue à la santé (...), c’est-à-dire, en un sens très général, tout ce que affecte notre corps d’une
variation favorable; et le contraire, nous l’appelons mal. L’auto-mystification, ici, ne consiste
évidemment pas dans le seul emploi d’un mot nouveau. Peu importe le vocable, que Spinoza lui-
même utilisera sans incovénient par la suite. L’erreur consiste à croire que, par ce terme, nous
désignons une qualité intrinsèque de la chose, qui lui appartiendrait essentiellement et devrait être
reconnue comme telle par tous les hommes, et non pas son rapport momentané à notre organisme
individuel. » MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza... p. 110
110
Espinosa define o bem e o mal nas duas primeiras definições da Parte IV da Ética:
“1. Por bem compreenderei aquilo que sabemos, com certeza, nos ser útil.
2. Por mal compreenderei, por sua vez, aquilo que sabemos, co certeza, nos impedir que
desfrutemos de algum bem.”
111
“ Não desejamos nem fazemos coisas porque as julgamos boas, belas, justas ou verdadeiras,
mas porque as desejamos e as fazemos assim as julgamos. O juízo não determina o desejo, é
determinado por ele.” CHAUÍ, Marilena. “Laços de desejo” in NOVAES, Adauto. O desejo,
Companhia das letras, São Paulo, 1990, p. 61
61
com maior propriedade de tal discussão para ocasião mais propícia, no nosso
último capítulo, quando analisaremos a servidão, não mais a um poder soberano,
mas aos próprios afetos.
Por ora, voltemos à construção do tema da superstição e da soberania.
Dizíamos que pela crença de que tudo na Natureza foi disposto em
vista de uma finalidade, ignorantes das causas das coisas, os homens são levados a
crer que alguém criou tudo o que existe, por nenhuma outra razão do que
buscando suprir as necessidades humanas ou infligir-lhes sofrimentos, para
usufruto ou sacrifício dos homens. E de tal ordem é esse delírio coletivo que, nem
mesmo quando defrontados com acontecimentos nocivos aos próprios interesses
ou catástrofes naturais, os homens desistem de sua ilusão antropocêntrica.
Mas ao lado do preconceito finalista e da crença num Deus ou Deuses
antropomórficos de vontades tirânicas funciona uma mecânica afetiva capaz de
sustentar a superstição e inscrever a servidão no próprio esforço humano em
perseverar na existência. São os afetos de medo e esperança que acompanham a
imaginação da contingência e sustentam a superstição como desejo de servidão a
um poder ou poderes soberanos transcendentes. Nas definições dos afetos, que
encerra a Parte III da Ética, Espinosa assim define o medo e a esperança:
112
E, III, definições do afetos, 12 e 13
113
“A experiência da contingência e da dúvida torna o medo e a esperança inconstantes e
intercambiáveis não apenas em momentos sucessivos, mas também na simultaneidade: numa
62
metamorfose interminável, cada uma dessas paixões habita e perpassa a outra. Ou, como escreve
Espinosa, quem está suspenso na esperança e duvida do desenlace, teme enquanto espera, e quem
está suspenso no medo e duvido do que possa acontecer, espera enquanto teme.” CHAUÍ,
Marilena. Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa, São Paulo: Companhia das Letras, 2011,
pg. 175
114
« Lorsque notre effort a entièrement réussi, l’espoir, débarrassé de la crainte, devient sécurité ;
lorsqu’il a complètement échoué, la crainte, privée d’espoir, devient désespoir. Il nous faut donc,
pour un même dosage d’espoir et de crainte, envisager la direction vers laquelle il tend à chaque
instant; et nous obterons alors deux cas possibles : ou bien la crainte est en train de décroîte au
profit de l’espoir, et celui-ci s’achemine vers la sécurité ; ou bien elle est en train de s’accroîte du
détriment de l’espoir et s’achemine vers le désespoir. » MATHERON, Alexandre. Individu et
communauté chez Spinoza... pg. 128
115
« Se soumettre par crainte n’est pas la même chose que se soumettre par espoir. Les plus
malheureux, les plus frustrés, les plus asservis d’entre les hommes sont évidemment ceux qui
n’obéissent que parce qu’ils redoutent la potence : sans rien attendre de la vie, ils ne cherchent
qu’à fuir la mort, leur seule espérance étant d’éviter les danger que l’Etat a lui-même
artificiellement créés pour les contenir ; à peine, d’ailleurs, peut-on parler ici d’obéissance, à long
terme tout au moins : une société qui recourrait exclusivement à ce genre de stimulants ne
présenterait aucune garantie de stabilité interne, car l’esclavage, poussé à ce point, entretient un
mécontentement qui n’attend que l’occasion de se déchaîner. (...) dans les ‘libres Républiques’
dont Spinoza décrit la structure, les motivations positives l’emporteraient nettement sur les
motivations négatives ; les sujets, au lieu de se sentir menés, s’imagineraient assez souvent vivre à
leur guise ; ce qui les maintiendrait dans le droit chemin, ce serait surtout l’amour de la liberté,
l’espoir de s’enrichir, l’espoir d’accéder aux honneurs ; les châtiments, réduits à leur vrai rôle de
garde-fou, demeureraient la plupart du temps à l’arrière-plan. ». MATHERON, Alexandre, Le
Christ et le salut des ignorants chez Spinoza, Paris : Editions Aubier Montaigne, 1971, pg.
179/180.
63
116
« Cette nouvelle alternative est importante, car sur elle repose un choix politique décisif : l’État
peut gouverner en utilisant comme principal stimulant (principal seulement, car aucune des deux
méthodes n’est jamais entièrement négligée), soit l’espoir de récompenses lié à la crainte de ne pas
en être reconnu digne, soit la crainte de châtiments liées à l’espoir de ne pas les mériter ; et le
premier système est bien préférable au second, car il suscite l’amour et non la haine ; celui-ci fait
un troupeau d’esclaves uniquement soucieux d’éviter la mort, celui-lá un peuple libre qui cherche
à profiter la vie. » MATHERON, Alexandre, Individu et communauté chez Spinoza... pg. 129/130
117
“Filha do medo, por ele e nele parida, a superstição é tentativa desesperada e delirante para
encontrar uma unidade imaginária, capaz de recobrir e reconciliar uma realidade apreendida como
imediatamente fragmentada no espaço e no tempo.” CHAUÍ, Marilena. “Sobre o medo” in
NOVAES, Adauto (org.) Os sentidos da paixão, 1ª Ed., São Paulo: Companhia das letras, 1990,
pg. 63.
118
« Cette croyance en une divinité anthropomorphe, prise en elle-même n’est pas encore
superstition. Pour qu’elle le devienne, une cause supplémentaire sera requise. Spinoza, il est vrai,
fait allusion ici à la superstition. Mais la façon même dont il parle montre bien qu’il ne la confond
pas avec le préjugé qu’il critique. Il déclare en effet, que ‘ce préjugé est devenu superstition’ ;
mais, s’il est devenu, c’est qu’il ne l’etait pas à l’origine. Quand cette transformation se
produit’elle ? (...) Mais, précisément, nous n’en somme pas encore lá : nous croyons encore, pour
l’instant, que la Nature est déjà à notre service. Pour nous apercevoir qu’elle ne l’est pas toujours,
il nous faudra, entre temps, passe par l’experience de l’échec : alors naîtra la crainte, et, de la
crainte, la superstitions » MATHERON, Alexandre. Individu et communauté...pg. 108/109
119
TTP, pg. 6
120
TTP, pg. 7
64
125
“Si la superstition marche si bien, si elle a, comme le dit Spinoza, de profondes racines dans les
âmes, c’est justement parce que l’ordre représentatif qui la sous-tend me procède pas, ne
s’engendre pas de la représentation elle-même, mais du conatus, de sa vie même qui la nécessite et
la produit. Le secret le plus profonde de la force (et du pouvoir) de la superstition, c’est la force
même ou la puissance du conatus » BOVE, Laurent. La Stratégie du conatus...pg. 186
126
TTP, Prefácio, p. 5
127
“Portanto pertence à natureza do homem ser crédulo: é uma conseqüência direta de sua essência
desejante. E os homens não são supersticiosos porque possuem uma ideia confusa de Deus, eles
66
têm uma ideia confusa de Deus porque são supersticiosos. Assim, a religião não é a causa da
superstição, ela é o efeito.” SCALA, André. Espinosa, São Paulo: Estação liberdade, 2003, p.75
128
“Julgo que toda a gente sabe que é assim, não obstante eu estar convicto de que a maioria dos
homens se ignoram a si próprios. Não há, com efeito, ninguém que tenha vivido entre os homens
que não se tenha dado conta de que a maior parte deles, se estão em maré de prosperidade, por
mais ignorantes que sejam, ostentam uma tal sabedoria que até se sentem ofendidos se alguém lhes
quer dar um conselho. Todavia, se estão na adversidade, já não sabem para onde se virar, suplicam
o conselho de quem quer que seja e não há nada que se lhes diga, por mais frívolo, absurdo ou
inútil, que eles não sigam. Depois, sempre por motivos insignificantes, voltam de novo a esperar
melhores dias ou a temer desgraças ainda piores. Se acontece, quando estão com medo, qualquer
coisa que lhes faz lembrar um bem ou um mal por que já passaram, julgam que é o prenúncio da
felicidade ou da infelicidade e chamam-lhe, por isso, um presságio favorável ou funesto, apesar de
já se terem enganado centenas de vezes. Se vêem, pasmados, algo insólito, crêem que se trata de
um prodígio que lhes revela a cólera dos deuses ou do Númen sagrado, pelo que não aplacar com
sacrifícios e promessas tais prodígios constitui um crime aos olhos destes homens submergidos na
superstição e adversários da religião, que inventam mil e uma coisas e interpretam a natureza da
maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles. Tanto assim é,
que quem nós vemos ser escravo de toda espécie de superstições são sobretudo os que desejam
sem moderação os bens incertos. Todos eles, designadamente quando correm perigo e não
conseguem por si próprios salvar-se, imploram o auxílio divino com promessas e lágrimas de
mulher, dizem que a razão é cega porque não pode indicar-lhes um caminho seguro em direção às
coisas vãs que eles desejam, ou que é inútil a sabedoria humana; em contrapartida, os devaneios da
imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecem-lhes respostas divinas. Até julgam
que Deus sente aversão pelos sábios e que os seus decretos não estão inscritos na mente, mas sim
nas entranhas dos animais, ou que são os loucos, os insensatos, as aves, quem por instinto ou sopro
divino os revela.” TTP, Prefácio, p. 5 e 6.
67
129
« D’où la fonction politique et, en ce premier sens, instrumentale, de la religion : stabiliser la
superstition et, pour cela, entourer une superstition particulière d’un appareil propre à donner à
celle-ci la plu grande puissance possible dans l’imagination du vulgaire. » BOVE, Laurent. La
stratégie du conatus... pg.189
130
“Oficiantes dos cultos, senhores da moralidade dos crentes e dos governantes, intérpretes
autorizados das revelações divinas, os sacerdotes buscam fixar as formas fugazes e os conteúdos
incertos das imagens e paixões. Oradores nos púlpitos, disputadores nas cátedras, teóricos nas
antecâmaras do poder, censores do pensamento e da palavra alheios, os teólogos realizam na teoria
o que os sacerdotes realiza2m na prática, reduzindo a fé a crendices e preconceitos.” CHAUÍ,
Marilena.A Nervura do real... pg.99
131
Vale transcrever os comentários de Marilena CHAUÍ: “Conseguir a obediência sem o
constrangimento da força bruta é obter a posse absoluta do outro. E a teologia sabe que a
verdadeira tirania não é aquela que se exibe pelo ferro e pelo fogo, mas aquela que consegue
alcançar a universalidade e a homogeneidade do espaço social e político, os corações e as mentes.
Essa autoridade não quer a obediência obrigada, pois esta não a legitima: aspira pela obediência
desejada e consentida; busca a submissão que se suprimiu como obediência porque já deixou de
ser sentida como obediência. Não é surpreendente que, no campo teológico-político e no campo
teológico-metafísico, a liberdade só possa manifestar-se como insubordinação e revolta, como
pecado e heresia.” CHAUÍ, Marilena. “Política e profecia”, in Política em Espinosa, São Paulo:
Companhia das letras, 2003, pg. 13/14.
68
132
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, uma filosofia da liberdade, 1ª Ed. São Paulo: Ed. Moderna, 1995,
pg. 19/20.
133
Texto do herem pronunciado contra Espinosa em 27 de julho de 1656: “Com a ajuda do
julgamento dos santos e dos anjos, excluímos, expulsamos, maldizemos e execramos Baruch de
Espinosa, com o consentimento de toda a santa comunidade, na presença dos Santos Livros e dos
613 mandamentos que eles encerram. Formulamos este herem assim como Josué excomungou
Jericó. Nós o maldizemos Elias maldisse seus filhos e com todas as execrações que se encontram
na Lei. Que seja maldito de dia, que seja maldito de noite; que seja maldito durante o sono e
durante a vigília. Que seja maldito ao entrar e ao sair. Queira o Eterno nunca mais perdoar-lhe.
Queira o Eterno acender contra este homem toda a Sua cólera e lançar sobre ele todos os males
mencionados no Livro da Lei; que seu nome seja apagado deste mundo e para sempre, e que se
compraza Deus em separá-lo de todas as tribos de Israel, infligindo-lhe todas as maldições
encerradas na Lei. E vós, que restais fiéis ao Eterno, vosso Deus, que Ele assim vos conserve em
vida. Sabeis que não deveis ter (com Espinosa) qualquer contato, escrito ou verbal. Que não lhe
seja prestado nenhum auxílio e que ninguém se aproxime dele mais do que quatro côvados. Que
ninguém more debaixo do mesmo teto que ele e que ninguém leia seus escritos.” LUCAS, Jean-
Maximilien. A vida e o espírito de Baruch de Espinosa. Tratado dos três impostores, São Paulo:
Martins Fontes, 2007, pg. 58.
Alguns biógrafos assinalam, no entanto, que nosso filósofo poderia ter escapado das maldições e
da expulsão da comunidade se assim o quisesse. Bastaria a Spinoza uma retratação pública, o
pagamento de suas dívidas com a comunidade, a mudança de alguns hábitos e a contenção nas
críticas a teologia judaica que poderia ter permanecido na comunidade em que crescera. No
entanto, supomos que o filósofo já não cabia em sua vida de mercador. Os negócios da família já
lhe eram enfadonhos, as pressões da comunidade já lhe tolhiam a liberdade de pensar e, como
narra o seu Tratado da emenda do intelecto, Spinoza, por certo, já percebera que o sumo bem não
estava em riquezas, prazeres e glórias. Neste sentido: LUCAS, Jean Maximilien. “A vida do
senhor Baruch Espinosa, por um de seus discípulos”, em A vida e o espírito de Baruch de
Espinosa – tratado dos três impostores, Martins Fontes, São Paulo, 2007, pp. 32-37, ISRAEL,
Jonathan. Les lumières radicales – La philosophie, Spinoza et la naissance de La modernité (1650
– 1750), Paris : Éditions Amsterdam, 2001, p. 210. E ainda, sobre o caráter auto-biográfico ou não
do Tratado da emenda do intelecto ver: SCALA, André. Espinosa, ed. Estação Liberdade, coleção
Figuras do saber, vol. 5, São Paulo, 2003, pp. 30-41
69
134
Voltaremos ao tema da intolerância no Cap. 4, tratando do tema sob a ótica da mecânica afetiva
descrita por Espinosa na E IV, a imitação dos afetos e o critério de semelhança das “coisas
semelhantes a nós”.
135
Trabalhamos aqui com o termo soberania para designar qualquer forma de instituição do poder
político fundada no discurso da transcendência entre governantes e governados, da apropriação da
potência da multidão por interesses particulares dos governantes, do enclausuramento do poder
constituinte em símbolos, práticas e discursos de obediência servil a um poder constituído.
Neste sentido: “Quando o poder constituinte desencadeia o processo constituinte, toda
determinação é liberada e permanece livre. A soberania, ao contrário, apresenta-se como fixação
do poder constituinte, como termo deste, como esgotamento da liberdade de que ele é portador...”
NEGRI, Antonio. O poder constituinte...p.37
E ainda: “Existe, portanto, no âmago do conceito de soberania uma tendência à superação da
dinâmica social fundada na experiência da multiplicidade, visando à construção de uma unidade
que supere os dissensos inerentes a qualquer espaço social plural. Portanto o conceito de soberania
se orienta para a construção da unidade...” GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da
imanência...p. 253
Sobre a construção do conceito de soberania em suas diversas vertentes, e seu papel no
pensamento jurídico-político moderno, ver ainda Heller, Herman. La soberaría – contribución a la
teoria del derecho estatal y del derecho internacional. Universidad Nacional Autónoma de
México e Fondo de cultura económica, Cidade do México, 1995.
136
O termo anomalia para adjetivar a obra de Espinosa é de Antonio Negri em: NEGRI, Antonio.
A anomalia selvagem – poder e potência em Spinoza, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
137
“Yet we must bear in mind that in political theory many of the medieval arguments and
methods subsisted until the eighteenth century. In some form or other the discussion of theories of
Divine Right lasted a thousand years; while, as we have seen, many of notions we regard as
modern can be traced back to the medieval world, or even earlier.” FIGGIS, John Neville. Political
Thought from Gerson to Grotius 1414-1625, New York: Harper & Brothers, 1960, p. 26/27.
70
ressoavam pela Europa, entre os séculos XVI e XVII, construindo uma concepção
do campo político como distinto dos argumentos transcendentes do sagrado e do
direito divino. Até mesmo o poder da própria Igreja católica, desde o movimento
conciliarista, é objeto de disputas acirradas sobre a origem e limitação ao poder do
Papa e o papel dos Concílios138.
No entanto, se o pensamento político europeu chega ao XVII já
questionando a relação entre teologia e política, a extensão do poder da Igreja e
buscando afirmar a fundamentação secular do poder; por outro lado a superstição
e o discurso teológico imaginativo acerca da soberania ainda estão vivos e
presentes na práxis da religiosidade e da obediência política, nos radicalismos e
perseguições religiosas e na legitimação do poder soberano139. Ainda que na
Holanda de Espinosa se experimente o ambiente de maior tolerância religiosa da
Europa na época, e uma anomalia republicana que será derrubada em 1672 com a
revolta que assassina os irmão de Witt e restitui a monarquia da casa de Orange, é
fundamental ter em mente que o século em que escreve nosso filósofo é o berço
dos estados absolutistas na Europa140. Como encarnações deste ideário absolutista
podemos citar os Tudor na Inglaterra do XVI e os reis de Castela e Aragão, na
Espanha do XVI. E, como seu exemplo mais inquestionável, podemos citar que é
em 1643 que sobe ao trono da França aquele que será tido pela história como o
maior exemplo do ideário absolutista: Luis XIV, o rei-sol.
Ao tratar do poder teológico-político Espinosa não se refere apenas a
uma experiência histórica, que estaria restrita ao Estado teocrático Hebraico, ou a
divergências acerca da interpretação das Escrituras, mas nosso filósofo está a
138
Escapa aos limites desse trabalho uma análise detalhada do pensamento político e teológico
deste período, sobre o tema remetemos o leitor às seguintes obras: Skinner, Quentin. As fundações
do pensamento político moderno, São Paulo: Companhia das letras, 1996. FIGGIS, John Neville.
Political Thought from Gerson to Grotius 1414-1625, New York: Harper & Brothers, 1960.
139
“É verdade que a revolução humanista já atacou fortemente essa legitimação medieval do
poder. Mas não a erradicou: de modo que ela se reproduz, não tanto como legitimação do poder
quanto como superstição e conservação, irracionalidade e bloqueio. Como obscurantismo”
NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem...pg. 135.
140
Sobre a Holanda do século XVII vale destacar que sua anomalia frente aos seus vizinhos
europeus se destaca não só pela maior tolerância religiosa e liberdade de filosofar, como pela
forma de organização política ( republicana até 1672 e posteriormente uma monarquia
constitucional com a ascensão da Casa de Orange), assim também pela economia que desenvolve
um capitalismo mercantil ainda incipiente no resto da Europa. É em Amsterdã que se instala,
neste período, a primeira bolsa de valores com pregão permanente, assim como é também nas Sete
Províncias que funcionam o maior banco europeu e o maior centro mundial de lapidação de
diamantes. Sobre o tema remetemos o leitor às seguintes obras: NEGRI, Antonio. Anomalia
Selvagem...,e CHAUÍ, Marilena. Espinosa: uma filosofia da liberdade...
71
tratar de uma realidade de seu tempo, de um debate que ainda está vivo no XVII, e
cuja vizinhança do absolutismo torna-o uma ameaça constante à liberdade141.
O discurso da teologia, que no campo religioso fundamenta a crença
num Deus antropomórfico e transcendente, na política sustenta os poderes
soberanos de um governante que é ele próprio representante de Deus, imago dei, e
senhor de vontades insondáveis. O inesperado da fortuna ganha na política os
contornos das motivações do poder, inalcançáveis aos olhos do vulgo, das “razões
de estado”, do juízo sempre acertado e inquestionável daquele que exerce o poder.
Do temor a Deus ao temor ao governante, o arquétipo do poder teológico-político
leva para a relação entre governante e governados a mesma obediência servil
instaurada entre a divindade e seus fiéis142.
Aqui é preciso uma ressalva: para Espinosa não é a política que é a
secularização da teologia, não há uma precedência do imaginário teológico sobre
a instituição do campo político. Pelo contrário, é a teologia e a religião que são a
sacralização da política, que atribuem à política a imagem da soberania
transcendente143.
Teologia e política tem um vínculo visceral e Espinosa identifica que
toda teologia é política144. No entanto, o inverso não é verdadeiro, a política em
Espinosa não se restringe a esta manifestação servil da teologia145. A política,
141
É pertinente destacar a reflexão sobre a atualidade do debate sobre a relação entre teologia e
política. Quando a ideia de terrorismo se legitima por diferenças religiosas e uma satanização
daqueles que são de outra religião, quando a explicação de atos de guerra se funda em diferenças
religiosas, ou ainda quando se organiza no nosso Congresso Nacional toda uma bancada de
políticos, unidos pelos ideais e interesses religiosos comuns, é fundamental termos em conta o
quanto teologia e política podem ainda estar imbricados, e o quanto ainda nos é útil, portanto,
voltarmos a reflexão espinosana acerca do poder da imaginação e da superstição religiosa no
campo político. Sobre a atualidade do tema do poder teológico-político remetemos o debate a
CHAUÍ, Marilena. “O retorno do Teológico-político” in Cardoso, Sergio (org.). O retorno ao
republicanismo, Belo Horizonte: UFMG, 2004.
142
“Essa representação parece baixar do céu à terra. O mesmo desejo de submissão a um poder
uno e soberano, porque transcendente à fragmentação dos conflitos que dilaceram a sociedade e a
política, produz entre os homens uma relação que os conduzirá, ao fim e ao cabo, a submeterem-se
ao poder misterioso dos governantes. Com o advento dos arcana imperii – segredos do poder ou
“razão de Estado” – os homens, afinal, “combatem para a servidão como se esta fora a salvação”.
Na realidade, porém, e Espinosa não se cansa de repeti-lo, essa representação subiu da terra ao
céu.” CHAUÍ, Marilena. “Sobre o medo” in Os sentidos da paixão... pg.64
143
“Na realidade, porém, e Espinosa não se cansa de repeti-lo, essa representação subiu da terra
ao céu – a política não é a religião ou teologia secularizada; ao contrário, a religião e a teologia
são a política sacralizada.” CHAUÍ, Marilena. O retorno do Teológico-político...,
144
“Teológico e político são termos intercambiávieis” NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem...
pg. 135.
145
É na relação entre teologia e política que é possível estabelecer um ponto de comparação, ou
melhor de confronto, entre o pensamento de Espinosa e o pensamento de Carl Schmitt. Retomado
por alguns pensadores contemporâneos, Carl Schmitt, teórico da política nazista, toma a teologia
72
como modelo para pensar a política. No entanto, vale dizer que enquanto para Espinosa “toda
teologia é política, para Schmitt toda política é teológica”. Excede os limites deste trabalho uma
análise da obra de Carl Schmitt e mesmo de seu confronto com o pensamento de Espinosa, sobre o
tema remetemos o leitor a: CHAUÍ, Marilena. Retorno ao teológico-político... e ainda
GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência..., de onde citamos: “Sua proposta, sem
dúvida, envolve um certo retorno às origens teológicas do poder soberano, fundando-se no
conceito personalista de decisão excepcional. No entendimento de Schmitt, a política é teológica,
possuindo pleno sentido apenas se considerada de tal perspectiva.” Pg. 353.
146
No capítulo seguinte nos dedicaremos à análise da constituição do campo político em Espinosa
e estudaremos mais detidamente a organização do poder político como imanente à potência da
multidão, possíveis desenhos institucionais de regimes políticos propostos por nosso filósofo, a
democracia intrínseca à concepção espinosana de poder político, além de alguns outros temas
correlatos.
147
O termo é de BOVE, Laurent. Stratégie du conatus...
148
“Se, efetivamente, o grande segredo do regime monárquico e aquilo que acima de tudo lhe
interessa é manter os homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de religião, o medo em
que devem ser contidos para que combatam pela servidão como se fosse pela salvação e acreditem
que não é vergonhoso, mas sumamente honroso, derramar o sangue e a vida pela vaidade de um só
homem ...” TTP, prefácio, pg. 8
73
2.2
O sistema do medo149.
“Além disso, no vulgo não há meio-termo, se não teme é terrível, pois a liberdade e
a servidão não se misturam com facilidade.”
TP, cap 7, parágrafo 27
149
O termo sistema do medo é de Marilena Chauí, Política em Espinosa... pg. 280.
150
“A superstição cria e conserva os arcana: arcana Naturae e arcana Dei, mistérios da Natureza
e de Deus, de onde nascem os arcana imperii, os segredos do poder. Agora, sim, a superstição
imagina-se um saber. Ignorância vestida de conhecimentos, a superstição julga-se saber secreto
reservado aos iniciados, espalhando medo e loucura.” CHAUÍ, Marilena. “Sobre o medo” ... p.62
74
151
“Num jogo de espelhos infindável, o medo à Natureza se espelha no medo à Fortuna que se
reflete no medo à divindade, que repõe o medo à Natureza por meio do medo às autoridades
humanas. O medo ao divino, invisível ou visualizado pelos ritos, sob os efeitos da divisão social e
política, cria na imaginação religiosa dos crentes o medo ao teólogo e, neste, o medo da
heterodoxia e dos rivais. O medo ao humano, sob os efeitos da divisão social e política, cria na
imaginação política dos dominados o medo ao governante e, neste, o medo à plebe. Fundada no
medo recíproco nasce a Cidade como “rebanho tangido e feito para servir”. Solidão.” CHAUÍ,
Marilena. Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa...p. 161
75
Talvez isso que escrevemos dê vontade de rir aos que restringem só à plebe
os vícios que são inerentes a todos os mortais, a saber, que no vulgo não há
meio-termo, que é terrível se não teme, e que a plebe ou serve
humildemente ou domina sobranceiramente, que é alheia à verdade e ao
juízo, etc.; a verdade é que a natureza é só uma e é comum a todos. Mas nós
somos enganados pela potência e pela cultura, e daí o dizermos muitas
vezes, quando dois indivíduos fazem a mesma coisa, que a um deles é lícito,
e ao outro não, faze-la impunemente, não por ser diferente a coisa, mas
quem a faz. A soberba é própria de quem domina. Se os homens se enchem
de soberba com uma designação por um ano, o que será com os nobres, que
ostentam honrarias perpétuas! A arrogância destes, porém, reveste-se de
fausto, de luxo, de prodigalidade, de uma certa conjugação de vícios, de
douta tolice e de elegância na depravação, de tal maneira que vícios
repugnantes e torpes, se olhados um por um, pois nessa altura sobressaem
maximamente, aparecem aos inexperientes e ignorantes como coisas
honestas e dignas. Além disso, no vulgo não há meio-termo, se não teme, é
terrível, pois a liberdade e a servidão não se misturam com facilidade.
Finalmente, não é para admirar que não exista na plebe nenhuma verdade
ou juízo, quando os principais assuntos de estado são tratados nas suas
costas e ela não faz conjecturas senão a partir das poucas coisas que não
podem ser escondidas. Suspender o juízo é, com efeito, uma virtude rara.
Querer, portanto, tratar de tudo nas costas dos cidadãos e que eles não
façam sobre isso juízos errados nem interpretem tudo mal é o cúmulo da
152
Retomaremos o tema da afirmação da obediência servil na imaginação da multidão no último
capítulo.
76
153
TP, cap. 7, parágrafo 27, pg. 80/81.
154
“Para compreendermos o terceiro movimento do texto, precisamos relembrar que, como já
observamos, o uso espinosano dos termos plebs e vulgus aproxima e distancia Espinosa de seus
contemporâneos. Aproxima porque, como seus contemporâneos, Espinosa emprega plebs com
sentido eminentemente político – é aquela parte povo que, numa monarquia ou numa aristocracia,
não é detentora do imperium -, enquanto vulgus tende a opor-se a doctus na relação com a arte e o
saber – o vulgar é aquele que segue espontaneamente seu ingenium e seus impulsos naturais,
enquanto o douto guia-se pela razão e pelo studium, ou, se se quiser, a diferença se estabelece
entre o bruto e o cultivado.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg.280.
155
“Ora, a natureza é comum e a mesma em todos. Se as paixões são nossa ‘maneira humana de
viver’, não há como distinguir plebe e grandes. Nesse momento, porém, Espinosa introduz um
‘contudo’, iniciando a virada da análise ao passar à relação sócio-política fundada no logro: “nós
nos deixamos enganar”. Donde a conclusão: insolentes são os grandes. Se, ao iniciar o texto,
vemos a plebe com o olhar dos poderosos, agora nós os vemos com os olhos dela.” CHAUÍ,
Marilena. “Sobre o medo”...pg.67
77
afetos, embora não haja nenhum outro a que estejam menos submetidos do que
aos afetos do amor e da misericórdia.”156
Ainda seguindo o mote de que “a natureza é a mesma para todos”
Espinosa afirma serem os dominadores, e não os dominados, os mais sujeitos às
paixões e vícios vulgares, capazes de fazê-los temíveis aos olhos da plebe.
Invertendo o raciocínio dos moralistas e daqueles que “restringem só à plebe os
vícios que são inerentes a todos os mortais”157, nosso filósofo apresenta na figura
dos soberanos, aqueles que, com a dominação, se enchem de soberba: os que “se
não temem, são terríveis”158.
Num governo sustentado pela obediência servil e pela soberania
transcendente, a plebe resta alijada da participação nas decisões políticas, e
desconhecendo as “razões de estado” que determinam as ordens e regras a que
deve obediência, assim como qualquer homem vulgo, está mais sujeita à
inconstância e revolta. O que torna a plebe temível aos olhos do soberano é a
mesma mecânica que sustenta a própria soberania, ou seja, a transcendência entre
o exercício do poder político e seus súditos159. A plebe, movida pelo medo, oscila
entre paixões capazes de ameaçar a própria constituição do político porque é
mantida na ignorância das causas de sua instituição e de suas determinações. O
esquema imaginativo que envolve de mistério as decisões do poder soberano
mantém a plebe na condição de vulgo frente os arcana imperii, e seus
julgamentos longes da verdade e da razão.
Assim, sendo as mesmas as paixões inerentes a todos os homens,
Espinosa faz decorrer da própria organização do poder soberano as causas das
paixões e vícios atribuídos somente à plebe. São os segredos de estado, as
decisões imotivadas, fundadas nos mistérios e na suposta sabedoria transcendente
dos governantes, que condenam os súditos à ignorância e às paixões temíveis aos
olhos do soberano. Nosso filósofo já enunciara no capítulo 5, parágrafo 2 do
mesmo Tratado Político:
156
E IV, prop. 57, escólio. Espinosa discorre na Parte IV da Ética acerca da soberba. Voltaremos
ao tema quando analisarmos a servidão que não se restringe a forma do político mas que perpassa
o campo social no nosso capítulo 4.
157
TP, cap. 7, parágrafo 27.
158
TP, cap. 7, parágrafo 27.
159
“A primeira expressão indica que, se a plebe deforma e perverte o sentido das ações e decisões
governamentais, isso se deve a uma perversão do próprio regime que, deixando os cidadãos na
ignorância, ainda espera que saibam julgá-lo corretamente.” CHAUÍ, Marilena. Política em
Espinosa... pg.282.
78
160
TP, cap. 5, parágrafo 2.
161
TP, cap. 9, parágrafo 14. Vale aqui a ressalva que o trecho citado se encontra num capítulo
destinado por Espinosa ao estudo da melhor forma institucional de se organizar um regime
aristocrático e aquele de um estado composto de várias urbes. Não trataremos aqui ainda dos
desenhos institucionais propostos por Espinosa no TP, assunto de nosso capítulo seguinte, apenas
trouxemos o trecho acima para ilustrar a importância da participação dos cidadãos nas decisões
políticas para a própria liberdade e segurança do estado.
79
162
“A multidão é mais sábia e mais constante que um príncipe”, MAQUIAVEL, Nicolau.
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, São Paulo: Martins Fontes, 2007, Livro
Primeiro, 58
163
TP, cap. 7, parágrafo 27. “Sob esse aspecto, o elogio a MAQUIAVEL, que perpassa as páginas
do tratado, transparece com clareza porque Espinosa faz sua a afirmação do florentino nos
Discorsi: “La moltitudine è piu savia e piu constante che uno príncipe”, devendo, contra a opinião
de Tito Lívio, participar do governo.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg. 288.
164
“D’une façon générale, l’idée d’un droit “théorique”, conçu comme une capacite à agir,
susceptible d’être ou non reconnue et exercée, est une absurdité ou une mystification.” Bailibar,
Etienne. Spinoza et la politique, 2ªed., Paris: PUF, 1990, pp. 73/74
165
“O direito natural é portanto, neste caso, definido como expressão da potência e construção da
liberdade. Imediatamente. Se a potentia metafísica havia sido até aqui conatus físico e cupiditates
vitais, ela é agora reinterpretada e concebida como jus naturale. A imediaticidade e a totalidade
dessa função jurídica excluem toda mediação e só admitem deslocamentos procedentes da
dinâmica interna das cupiditates.” NEGRI, Antonio. Verbete “SPINOZA, Baruch – Tratado
Político” em CHÂTELET, François et alli (org.) Dicionário de obras políticas, Ed. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1993. Sobre o tema do conatus remetemos o leitor ao nosso capítulo 1
onde analisamos os principais conceitos da ontologia espinosana e o esforço singular de perseverar
na existência que constitui a essência de tudo o que existe.
80
166
TTP, Cap. XVI, pg. 234
167
Analisaremos no próximo capítulo as conseqüências da concepção espinosista acerca do direito
de natureza e do direito civil para o pensamento jurídico, bem como, com mais detalhes, a relação
entre direito natural e direito civil e entre a potência da multidão e o poder político.
168
“Por isso é possível afirmar que a teoria política spinozista não é capaz de assimilar a
possibilidade de transferência plena de direitos, como ocorre em HOBBES. (...) Transferir o
conatus, o direito natural, é absolutamente impossível; ninguém pode deixar a cargo de outrem o
esforço de perseverar na existência. Alienar o conatus é, antes de mais nada, uma impossibilidade
lógica.” GUIMARAENS, Francisco, O poder constituinte...p. 138
169
Seguiremos aqui análise realizada em CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em
Política em Spinoza...p.172 : “O direito natural é medida, guardião e ameaça do direito civil.
Medida, porque determina a proporcionalidade nas relações entre os cidadãos e o poder,
(...)Guardião, porque impede o desejo dos governantes de se identificarem com o poder, (...)
Ameaça, porque ninguém se despoja do desejo de governar e de não ser governado...”
81
Se duas pessoas concordam entre si e unem as suas forças, terão mais poder
conjuntamente e, conseqüentemente, um direito superior sobre a Natureza
que cada uma delas não possui sozinha e, quando mais numerosos forem os
homens que tenham posto as suas forças em comum, mais direito terão eles
todos.170
Quando os homens têm direitos comuns e são todos conduzidos como por
um único pensamento, é certo (...) que cada um possui tanto menos direito
quanto mais todos os outros reunidos o sobrelevem em poder...171
170
TP, cap. 2, parágrafo 13.
171
TP, cap. 2, parágrafo 16.
172
“Ora, o poder político tem a peculiaridade de distribuir-se de maneira geométrica ou
proporcional, isto é, um regime político será tanto mais poderoso quanto mais o poder soberano for
proporcionalmente maior ao de cada um dos cidadãos e à soma de seus poderes individuais. Ao
contrário, o regime será tanto mais fraco (terá menos poder e menos direito) quanto mais um ou
alguns de seus membros o igualarem em direito e poder, confundindo-se com a soberania e com a
lei. Se a democracia é o mais forte dos regimes políticos, a tirania é o mais fraco deles, pois nela é
nula a proporção entre o direito-poder do dirigente e o direito-poder dos governados. Eis por que,
se estes últimos não podem lamentar a existência do tirano, pois o deixaram adquirir o poder, o
tirano, por sua vez, não poderá lamentar se os tiranizados adquirirem poder para derrubá-lo. A
instabilidade da tirania, também encontrada na monarquia e nos regimes oligárquicos, é a origem
do medo à plebe.” CHAUÍ, Marilena. “Sobre o medo”... pg. 70
82
173
TTP, cap. XX, pg. 301/302
174
TP, cap. 3, paragrafo 8.
83
175
Apropriação de Espinosa pelo pensamento liberal ?
176
“Dans la tradition libérale, en effet, souverainété politique et leberté individuelle se déploient
dans ces deux sphères différentes, qui normalment n’interfèrent pas, mais se « garantissent »
réciproquement. (...) Or, cette conception (que Locke ne tardera pas à illustrer) ici ne convient pas.
(...) la règle énoncée par Spinoza ne peut avoir le sens d’une simple séparation. En fait, ce qu’il
entend démontrer, c’est une thèse beaucoup plus forte (sans doute assi beaucoup plus risquée) :
souveraineté de l’Etat et liberté individuelle n’ont pas à être séparées, ni à proprement parler
conciliées, parce qu’elles ne se contredisent pas. La contradiction serait de les opposer.”
BALIBAR, Etienne. Spinoza et la politique...p. 37/38
177
TTP, cap. XX, pg. 310.
84
Quem tudo quer fixar na lei acaba por assanhar os vícios em vez de os
corrigir. Aquilo que não se pode proibir tem necessariamente que se
permitir, não obstante os danos que muitas vezes daí advêm181
178
TTP, cap. XX, pag. 303.
179
“um poder que negue aos indivíduos a liberdade de dizer e de ensinar o que pensam será, por
conseguinte, um poder violento; pelo contrário, um poder que lhes conceda essa liberdade será um
poder moderado.” TTP, Cap. XX, pg. 302.
180
“Mas suponhamos que essa liberdade pode ser reprimida e os homens dominados a ponto de
não se atreverem a murmurar uma palavra que contrarie o prescrito pelos poderes soberanos;
mesmo assim, nunca estes hão de conseguir que não se pense senão o que eles querem: o que iria
necessariamente acontecer era os homens pensarem uma coisa e dizerem outra, corrompendo-se,
por conseguinte, a fidelidade imprescindível num Estado e fomentando-se a abominável adulação,
a perfídia, e daí, os ardis e a completa deterioração dos bons costumes.” TTP, cap. XX, pg.
305/306
181
TTP, cap. XX, pg. 305.
85
182
“Longe, porém, de uma coisa dessas poder acontecer, ou seja, de todos se limitarem a dizer o
que está prescrito, quanto mais se procura retirar aos homens a liberdade de expressão mais
obstinadamente eles resistem. Não, como é óbvio, os avaros, os bajuladores e outros de ânimo
impotente, para quem a suprema felicidade consiste em contemplar moedas no cofre e ter a barriga
cheia, mas aqueles a quem uma boa educação, a integridade de costumes e a virtude tornaram
ainda mais livres.” TTP, cap. XX, pg. 306.
183
TTP, cap. XX, pg. 306.
184
“E, todavia, é inegável que tanto se podem cometer crimes de lesa-majestade por atos como por
palavras, razão por que, se é de fato impossível retirar completamente essa liberdade aos súditos,
também será altamente pernicioso concedê-la sem nenhuma restrição.” TTP, cap. XX, pg. 302.
185
“Vimos, com base nos fundamentos do Estado, em que medida pode cada um gozar de
liberdade de opinião sem ferir o direito dos poderes soberanos. Mas podemos, com a mesma
facilidade, determinar a partir daqui quais as opiniões que num Estado são subversivas: são,
evidentemente, aquelas cuja aceitação implica a imediata cessação do pacto pelo qual cada um
renunciou ao direito de agir conforme entendesse. É, por exemplo, subversivo pensar que o poder
soberano não tem autonomia ou que ninguém está obrigado a manter os juramentos, ou que é
preciso que cada um viva como entender e outras opiniões do mesmo gênero que estão em
flagrante contradição com o referido pacto, não tanto pelo juízo e a opinião em si mesmos, mas por
aquilo que na prática implicam, ou seja, porque quem assim pensa está quebrando, tácita ou
explicitamente a fidelidade prometida ao poder soberano. Mas todas as outras opiniões que não
implicam uma ação, ou seja, que não envolvem a ruptura do pacto, a vingança, a cólera, etc., não
86
... deve-se ter em conta que pertence menos ao direito da cidade aquilo que
provoca a indignação da maioria. É, com efeito, certo que os homens por
inclinação da natureza conspiram, seja por causa de um medo comum, seja
pelo desejo de vingar algum dano comumente sofrido. E uma vez que o
direito da cidade se define pela potência comum da multidão, é certo que a
potência e o direito da cidade diminuem na medida em que ela própria
ofereça motivos para que vários conspirem. Há certamente coisas de que a
cidade deve ter medo, e da mesma forma que cada cidadão ou cada homem
no estado natural, assim também a cidade está tanto menos sob jurisdição de
si própria quanto maior é o motivo que tem para temer.
são subversivas a não ser, talvez, num Estado de algum modo corrupto, onde os supersticiosos e
ambiciosos, que não podem suportar os homens livres, conquistaram tal prestígio que têm mais
autoridade sobre o povo do que o poderes constituídos.” TTP, cap. XX, pg. 304.
186
Sobre a atualidade do tema da liberdade de expressão e da censura remetemos o leitor a:
Mello, Rodrigo Gaspar de. A Censura Judicial como Meio de Restrição da Liberdade de
Expressão. Análise Comparativa da Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, da Corte Suprema de Justiça da Nação argentina e do Supremo Tribunal Federal,
Dissertação de mestrado, Rio de janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2012.
87
187
Voltaremos ao tema da indignação no capítulo 4 ao tratarmos dos afetos que perpassam a
multidão no campo político. Nesta ocasião apontaremos o papel da indignação como afeto ligado à
resistência e à preservação da liberdade, sobre o tema destacamos a observação de BOVE,
Laurent. La stratégie du conatus... pg. 291: “ Sous l’effet de l’indignation générale, ce n’est pas à
la dissolution de ce corps que nous assistons, mais bien au contraire à sa réorganisation selon une
dynamique de stratégie de résistance-active du conatus du corps social. »
88
Julgo que a própria experiência ensina isso de forma bastante clara: jamais os
homens transferiram para outrem o seu poder em termos de tal maneira
definitivos que aqueles que receberam das suas mãos o direito e o poder
deixassem de temer e que o Estado não estivesse mais ameaçado pelos
cidadãos, ainda que privados de seu direito, do que pelos inimigos.190
188
TTP, cap. V, pg. 86
189
“Isso explica por que Espinosa demonstra que o inimigo político é sempre interno e só
efemeramente externo, pois o inimigo nada mais é do que o direito natural de um ou de alguns
particulares que operam para conseguir um poderio de tal envergadura que possam tomar o lugar
da soberania.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg. 252.
190
TTP, cap. XVII, pg. 251
89
a medida de seu poder, e que a potência da multidão reunida é sempre maior que
aquela do tirano que governa segundo os próprios interesses.
O soberano teme seus cidadãos pois reconhece no direito natural e
inalienável de cada um deles, direito de pensar e dizer o que quer que seja, um
limite ao exercício de seu poder. O soberano sabe ainda que, no exercício do
poder político, é preciso temer e evitar a indignação geral da multidão, pois esta é
capaz de inspirar a resistência e revoltas. Por fim, o soberano teme a plebe porque,
assim como ele próprio, todo homem prefere governar a ser governado, e no seio
da multidão estão cidadãos ansiosos por derrubá-lo, prontos a tramar conspirações
e incentivar a insatisfação de seus pares para tomarem, eles próprios, o poder.
A imaginação da relação de transcendência entre poder político e
potência da multidão, o discurso da soberania que sustenta a ideia de um
governante que não se identifica com a multidão, mas a governa segundo razões
misteriosas, sustenta-se num sistema de medo recíproco entre o soberano e a plebe
que acaba por condenar as duas partes à servidão. A plebe obedece servil ao
soberano, e o soberano é aprisionado pelo medo da plebe. O medo não constrói a
liberdade, nem da plebe nem do soberano.
O tirano é tão servo quanto seus súditos, o medo que perpassa a plebe
frente ao poder soberano, acaba por atormentar também o próprio soberano,
constantemente preocupado com traições, conspirações, revoltas. A tirania é o
mais instável dos regimes políticos e o tirano, sempre temeroso pelo seu futuro, é
tanto senhor de seus súditos quanto servo de suas próprias paixões. A tirania
enreda tirano e súditos na experiência do medo recíproco e na servidão191.
2.3
“No que respeita à política, perguntas qual a diferença entre mim e Hobbes.
Consiste nisso: conservo o direito natural sempre bem resguardado...”
Carta 50 de Espinosa para Jarig Jelles
191
Voltaremos ao tema dos afetos que perpassam o campo social e constituem tanto o soberano
como a plebe na experiência da servidão no capítulo 4.
90
2.3.1
192
Sobre a relação entre os dois autores vale transcrever a indagação de LAZZERI : “HOBBES a
été pour Spinoza un interlocuteur philosophique aussi important que Descartes, et la doctrine
politique spinoziste semble ne pas se démarque de celle de HOBBES tant elle présent, au premier
abord, bien des affinités et des ressemblances avec celle de l’auteur de Léviathan. Pour toute une
tradition, qui commence sans doute dès le XVII, leurs positions philosophique, religieuses et
politiques sont parfaitement assimilables : n’y a-t-il pas d’ailleurs de bonnes raison à faire valoir
pour justifier cette assimilation ? Leurs antropoloquies respectives ne se fondent-elle pas sur le
recours à un concept de conservation de soi que s’exprime dans l’effort constant de tout homme
por persévérer indefiniment dans son être ?” LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté –
Spinoza critique de HOBBES. PUF, Paris, 1998, pg. 1
91
193
“Eis por que ambos [HOBBES e Espinosa] analisam as religiões reveladas como resultado do
medo e consideram a teologia manipulação fraudulenta do pavor da massa com a intenção de
dominá-la.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg 290
194
“Pelo mesmo motivo, há em ambos o cuidado para distinguir as relações de favor ou graça e as
relações propriamente políticas, visto que a ideia do favor sustenta a teoria política cristã (romana
e reformada) que concebe os regimes políticos (na verdade, a monarquia e a aristocracia) como
teocracias, pois tanto o poder dos reis como o dos magistrados cristãos é dito provir de Deus, que
por um favor misterioso (uma graça) concede a alguns o direito de governar e de representá-Lo.”
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg.290.
92
195
“Aquilo que foi considerado como a primeira afirmação intelectual do questionamento da
autoria de Moisés na Escritura está no Leviatã de HOBBES, livro III, capítulo XXXIII. HOBBES
indicava que não há testemunho suficiente na Sagrada Escritura ou em outro lugar para nos
assegurar quem foram os escritores dos vários livros. (...)
O que deu ao texto completo sua garantia e autoridade? Se não foi revelado que o texto é a
palavra de Deus, então a aceitação do texto e o assentimento a ele vêm da autoridade do estado
[commonwealth]. HOBBES transformou a questão numa questão política para aqueles que não
tiveram uma revelação sobrenatural pessoal.” POPKIN, Richard H. “Spinoza e os estudos
bíblicos” in GARRET, Don (org.). Spinoza, 1ª Ed., Aparecida-SP: Editora Ideias & Letras, 2011,
pg. 477.
196
“Spinoza começou a mostrar originalidade quando em seguida afirmou que compreender a
Escritura e a mente dos profetas não é de modo algum a mesma coisa que ‘compreender a mente
de Deus, isto é, a verdade’. TTP cap. XII. Entender a Escritura se tornou, então, um
empreendimento estritamente histórico. (...)
Visto de outro ângulo, Spinoza secularizou completamente a Bíblia como um documento
histórico.” POPKIN, Richard H. “Spinoza e os estudos bíblicos” in Garret, Don (org.). Spinoza, 1ª
Ed., Aparecida-SP: Editora Ideias & Letras, 2011, pg. 495
197
“A leitura crítica da Bíblia, em ambos [HOBBES e Espinosa], tem a finalidade de impedir a
legitimação teológica do poder político, culminando na exigência de que o poder soberano também
detenha o poder religioso: só há soberania quando o poder não se divide e por isso mesmo as
igrejas devem ser instituições particulares, ao lado de outras, sem aspirar à universalidade que lhes
permitiria reter o poder espiritual, declarando-o superior e maior do que o poder temporal.”
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...p.290.
93
2.3.2
198
“HOBBES e Espinosa rejeitam as explicações baseadas em causas finais e criticam o finalismo
aristotélico e sua versão medieval não apenas porque consideram as causas finais uma ficção e
uma projeção antropomórfica sobre a Natureza, mas, sobretudo, porque para ambos nem mesmo as
ações humanas se explicam por causas finais.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg.301.
199
“E tendo esta semente da religião sido observada por muitos, alguns dos que a observaram
tenderam a alimentá-la, revesti-la e conformá-la às leis, e a acrescentar-lhe, de sua própria
invenção, qualquer opinião sobre as causas dos eventos futuros que melhor parecesse capaz de lhes
permitir governar os outros, fazendo o máximo uso possível de seus poderes.” HOBBES, Thomas.
Leviatã, in Os pensadores – HOBBES, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 2000, cap. XI, pg. 96.
200
HOBBES, Thomas. Leviatã, cap. XI, pg.95
201
“As causas finais não são apenas um engano teórico que uma nova física viria corrigir, mas são
um instrumento de dominação mascarado, visto que convertem a necessidade natural em
autoridade.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... p.301
202
“A crítica Hobbesiana e espinosana vem acompanhada da ênfase na causalidade eficiente que,
no homem, é designada pelos dois filósofos como apetite e desejo. No entanto não se trata da
mesma causalidade eficiente.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg. 302.
94
2.3.3
203
“A causa eficiente Hobbesiana é transitiva, isto é, uma vez produzido o efeito, a causa se afasta
e se mantém separada do resultado. Eis porque o direito natural pode ser causa eficiente da vida
civil e depois quase desaparecer, uma vez o direito civil estabelecido.” CHAUÍ, Marilena. Política
em Espinosa...p. 302.
204
“Em contrapartida, a causa eficiente espinosana é imanente, isto é, o efeito é sua expressão ou
sua realização particular, de sorte que a causa é mantida naquilo que produz.” CHAUÍ, Marilena.
Política em Espinosa...p. 302.
95
205
“Há nos animais dois tipos de movimento que lhe são peculiares. Um deles chama-se vital;
começa com a geração, e continua sem interrupção durante toda a vida. Deste tipo são a circulação
do sangue, o pulso, a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção, etc. Para esses movimentos
não é necessária a ajuda da imaginação.” HOBBES, Thomas. Leviatã in Os pensadores –
HOBBES, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 2000, p. 57.
206
“ O outro tipo é o dos movimentos animais, também chamados movimentos voluntários, como
andar, falar, mover qualquer dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginada pela
mente. (...) E dado que andar, falar e outros movimentos voluntários dependem sempre de um
pensamento anterior de como, onde e o que, é evidente que a imaginação é a primeira origem
interna de todos os movimentos voluntários.” HOBBES, Thomas. ob.cit.p.57.
207
“ Le mouvement animal est donc l’ensemble des mouvements internes et externes au corps qui
constituent le moyen par lequel le mouvement vital se conserve, puisqu’il dispose ainsi de ce qui
convient avec lui et peut se soustraire à ce qui l’entrave.” LAZZERI, Christian. Ob.cit. p. 17.
208
“ En distinguant ainsi mouvement animal et mouvement vital sur le mode du moyen et de la fin,
HOBBES affirme dès le fondement de son antropologie le principe qui en règle la construction : le
principe de distinction et de subordination.” Idem, p. 18.
96
209
“Quando um certo número de corpos da mesma ou de diversas grandezas são constrangidos
pela ação dos outros corpos a aplicar-se uns sobre os outros; ou se eles se movem com o mesmo
grau ou com graus diferentes de rapidez, de tal maneira que comunicam os seus movimentos entre
si segundo uma relação constante, diremos que esses corpos estão unidos entre si e que, em
conjunto, formam todos um corpo, isto é, um indivíduo que se distingue dos outros por essa união
de corpos.” Spinoza, Definição da Proposição XIII da Parte II da Ética. E ainda; “O corpo humano
é composto de um grande número de indivíduos (de natureza diversa), cada um dos quais é
também muito composto.” Spinoza, Postulado I da Proposição XIII da Parte II da Ética.
210
Neste sentido, é o próprio Espinosa quem faz a seguinte ressalva: “Se minha intenção fosse a de
tratar expressamente do corpo, eu deveria ter explicado e demonstrado isso mais longamente. Mas
já disse que é outra a minha intenção, e só me detive nessas questões porque delas posso deduzir
facilmente o que decidi demonstrar.” EII, prop. 13, Lema 7, escólio.
211
CHAUÍ, Marilena. A Nervura do real..., vol II, mimeo
97
216
“Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode um corpo.” Spinoza, Escólio da
Proposição II, da Parte III da Ética. E ainda: “Nem o corpo pode determinar a alma [mente] a
pensar, nem a alma [mente] determinar o corpo ao movimento ou ao repouso ou a qualquer outra
coisa (se acaso existe outra coisa)”. Spinoza, Proposição II, da Parte III da Ética.
217
“ Com efeito, não ouso negar que o corpo humano, conservando a circulação do sangue e as
outras coisas, por causa das quais se julga que o corpo vive, possa, não obstante, mudar-se em
outra natureza inteiramente diferente da sua. É que nenhuma razão me obriga a admitir que o
corpo não morre, a não ser quando de muda em cadáver (...). Sucede, de fato, às vezes, que o
homem sofre tais mudanças que eu não diria facilmente que ele é o mesmo...” Spinoza, Escólio da
Proposição XXXIX da Parte IV da Ética.
218
“Un seul et même individu peut donc « mourir » en changeant d’identité de multiples manières
(croissances, transformation, pathologies, etc.) bien que son corps et son esprit continuent de
vivre.” LAZZERI, Christian. Ob.cit.p.23
99
219
“O poder de um homem (universalmente considerado) consiste nos meios de que
presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro. Pode ser original ou instrumental.”
(grifo nosso). HOBBES,Thomas. Ob.cit.p.83
220
“Sua qualidade possessiva [do individualismo oriundo do século XVII] se encontra na sua
concepção do individuo como sendo essencialmente o proprietário de sua própria pessoa e de suas
próprias capacidades, nada devendo à sociedade por elas. (...) A relação de propriedade, havendo-
100
relações sociais entre indivíduos que operam pelo cálculo racional e a lógica de
mercado terá importantes consequência no campo político. Voltaremos a esta
temática a seguir quando da análise do estado de natureza e da constituição do
campo político em Thomas Hobbes.
Já Espinosa propõe uma compreensão totalmente diferente do esforço
em perseverar no ser, o conatus, que é a própria essência do homem. O conatus
espinosano não se resume à conservação, frente a perigos externos, das funções
fisiológicas essenciais ao funcionamento do corpo. Em Espinosa, o esforço em
perseverar na existência é também potência produtiva, que se expande sempre e a
todo instante até os limites de tudo o que pode221. Assim, diferentemente do
caráter negativo e conservador do esforço hobbesiano, a compreensão de Espinosa
da essência do homem é positiva e produtiva.
Neste contexto, para Espinosa as características do homem não são
meros instrumentos para o esforço em perseverar no ser, mas são dimensões deste
próprio esforço, expressões de sua potência. Mais uma vez Espinosa nega
qualquer relação hierárquica na construção de sua concepção antropológica e
institui que qualquer ação do ser humano, seja andar, falar, comer, etc., não é um
meio ou instrumento, orientado para a finalidade da preservação, mas expressão
imanente de sua própria potência produtiva. Numa relação absolutamente
imanente, qualquer ação do indivíduo é expressão de sua potência, expressão da
própria existência em si.
Ainda sobre a concepção antropológica de cada um, suas
proximidades e divergências, cabe nos debruçarmos sobre os temas dos afetos e
da razão humana. Hobbes e Espinosa parecem concordar ao negar qualquer
critério universal de bem e mal, e a identificar o bom e mau segundo um critério
subjetivo de utilidade no esforço de perseverar na existência222. Assim, os afetos,
para ambos os autores, não se relacionam a nenhum valor transcendente mas
se tornado para um número cada vez maior de pessoas a relação fundamentalmente importante,
que lhes determinava a liberdade real e a perspectiva de realizarem suas plenas potencialidades,
era vista na natureza do indivíduo.” MACPHERSON, C.B. A teoria política do individualismo
possessivo – de HOBBES a Locke, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979, p. 15.
221
“On peut donc reprendre l’excellente formule d’A MATHERON : « tendre à persévérer dans
mon être c’est donc tendre à produire ce qui se déduit de ce que je suis, et de tout ce que je suis. »”
LAZZERI,Christian. Ob.cit.p.32.
222
“Pois as palavras bom, mau e desprezível são sempre usadas em relação a pessoa que as usa.
Não há nada que o seja simples e absolutamente, nem há qualquer regra comum do bem e do mal,
que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos.” HOBBES, Thomas. Ob.cit.p.58
101
223
“I – Por bem entenderei aquilo que sabemos com certeza ser-nos útil. II – Por mal, ao contrário,
aquilo que sabemos com certeza que nos impede de nos tornarmos senhores de um bem qualquer.”
Spinoza, Definições da Parte IV da Ética.
224
Neste sentido é curioso destacar que tanto HOBBES no capítulo VI do Leviatã, como Espinosa
na parte III da Ética enumeram definições dos afetos do homem, como antes deles já fizera
Descartes.
225
“Que le principe de conservation commande en nous toutes nos fonctions et tout la vie de
relation cela signifie qu’il commande la vie affective mais cela signifie aussi qu’il commande
l’usage de la raison elle-même : (...) HOBBES fait de la raison un instrument au service des désirs
et donc, pour lui, du movement animal : elle est destinée à la recherche des moyens adéquats à la
fin que remplit ce dernier.” LAZZERI, Christian. Ob.cit.p.36.
102
226
“Os atos de cada indivíduo são determinados por seus apetites e aversões, ou melhor, pelos seus
cálculos quanto aos prováveis efeitos sobre a satisfação de seus apetites, causados por qualquer
ação que ele possa empreender”. Macpherso, C.B. Ob. Cit. Pg. 43
227
“Depois, visto que este esforço da alma [mente], pelo qual a alma [mente], enquanto raciocina,
se esforça por conservar o seu ser, não é outra coisa que compreender; este esforço por
compreender é, portanto, o primeiro e único fundamento da virtude; e não é em vista de um fim
qualquer que nós nos esforçaremos por conhecer as coisas; mas pelo contrário, a alma [mente],
enquanto raciocina, não poderá conceber nada como bom para si, senão o que conduz ao
conhecimento.” Spinoza, Demonstração da Proposição XXVI da Parte IV da Ética.
228
“Uma afecção, cuja causa nós imaginamos que está presente no momento atual, é mais forte
que se imaginássemos que ela não está presente.” Spinoza, Proposição IX da Parte IV da Ética. E
ainda: “Somos afetados mais intensamente relativamente a uma coisa futura que nós imaginamos
que sucederá em breve do que se imaginássemos que o tempo da sua existência está ainda muito
longe do presente.” Spinoza, Proposição X da Parte IV da Ética
103
2.3.4
Liberdade
229
HOBBES, Thomas. Leviatã, cap. XIV, pg.113.
230
“La liberté, on le voit, est donc tout autre chose que le pouvoir : elle est l’absence de tout
obstacle extérieur susceptible de nous empêcher de faire ce que nous voulons faire pour le cas où
nous arions le pouvoir de le faire. » MATHERON, Alexandre. « Le droit du plus fort » in Revue
Philosophique de la France et de l’ètranger – HOBBES et Spinoza, nº 2/1985, p. 153
104
231
Sobre a discussão acerca do conceito de liberdade em Espinosa remetemos o leitor ao nosso
Capítulo 1. “Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que
por si só é determinada a agir. E diz-se necessária, ou melhor, coagida, aquela coisa que é
determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada.” EI, definição 7.
232
“La libertad postula una definición negativa del medio como ausencia de obstáculo, como
medio vacío que permite el movimiento. Uno de los objetivos de HOBBES: la vacuidad del medio
frente a la potencia y al desarrollo del individuo que busca su utilidad.” ALTHUSSER, Louis.
Política e historia: de Maquiavelo a Marx. Cours à l’École normale supérieure 1955-1972,
Madrid: Katz, 2007, pg. 258
233
“A concepção política de Th. HOBBES é muito mais sutil do que pode parecer à enunciação de
seus princípios iniciais. Tomando como ponto de partida uma concepção individualista e realista
do homem, recusando previamente qualquer pressuposto moral...” CHÂTELET, François, et alli,
História das ideias políticas, Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2000, pg. 53.
234
“O home que se conduz pela razão é mais livre na sociedade civil, onde vive de acordo com leis
comuns, do que na solidão, onde obedece apenas a si mesmo” EIV, prop. 73
105
2.3.5
2.3.5.1
Estado de natureza
235
“HOBBES foi o primeiro pensador político a ver a possibilidade de deduzir os deveres
diretamente dos fatos mundanos das relações reais dos indivíduos entre si, inclusive a igualdade
inerente a essas relações; tendo visto essa possibilidade, foi o primeiro a dispensar suposições de
desígnios ou vontade externa” MACPHERSON, C.B. A teoria política do individualismo
possessivo...pg. 97.
236
“De fato, os dois filósofos elaboram uma teoria das paixões como manifestação originária da
natureza humana e de cujo jogo nascem o medo recíproco e o desejo de dominação,
desencadeando conflitos que exigem o advento da vida política, se os homens desejarem-se
conservar-se em vida. Para ambos, a política é o campo privilegiado para conter a violência
natural, diminuir o medo, e sobretudo, para evitar a funesta conseqüência do terror do
desconhecido, isto é, a superstição.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...p. 290.
237
“O medo, gêmeo de um pensador, marcando-o desde o nascimento, enlaçado com ele feito
herança ou gene, como seu direito ou natureza; a vida e obra de HOBBES são pontuadas por esta
paixão.” RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo – HOBBES escrevendo contra o seu tempo.
2ªed., Belo Horizonte: UFMG, 1999. p.17
238
“...metum tantum concepti tunc mea mater, Ut paretet geminos, méque metúmque simul”
Thomae HOBBESii Malmesburiensis Vita authore seipso, 1679, p.2 apud RIBEIRO, Renato
Janine. Ao leitor sem medo – HOBBES escrevendo contra o seu tempo. 2ªed., Belo Horizonte:
UFMG, 1999. p.17
107
239
“Asimismo, los hombres son iguales en su desigualdad física misma, puesto que cualquier
hombre puede matar a cualquier hombre: la muerte es el criterio de la igualdad” ALTHUSSER,
Louis. Ob cit. Pg. 259.
240
HOBBES, Thomas. Leviatã, Primeira Parte, Capítulo XIII, pg. 107.
241
“HOBBES postula duas espécies de igualdade entre os indivíduos: igualdade de capacidades e
igualdades de expectativas de satisfazer suas necessidades. Cada uma delas acarreta, na opinião de
HOBBES, uma igualdade de direitos. A igualdade de capacidades é afirmada como evidente a
partir da experiência e da observação. Os indivíduos não são absolutamente iguais em capacidades,
108
mas são tão iguais que o mais fraco pode facilmente matar o mais forte...” MACPHERSON, C.B.
Ob. Cit. Pg. 84
242
“Neste texto célebre – e o que causou maior irritação contra HOBBES – ele não afirma que os
homens são absolutamente iguais, mas que são “tão iguais que...”: iguais o bastante para que
nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro. Todo homem é opaco aos olhos de seu
semelhante – eu não sei o que o outro deseja, e por isso tenho que fazer uma suposição de qual
será a sua atitute mais prudente, mais razoável. Como ele também é forçado a supor o que eu farei.
Dessas suposições recíprocas, decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o
outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um ataque possível: assim a guerra se
generaliza entre os homens. Por isso, se não há um Estado controlando ou reprimindo, fazer a
guerra contra os outros é a atitude mais racional que eu posso adotar (é preciso enfatizar esse
ponto, para ninguém pensar que o “homem lobo do homem”, em guerra contra todos, é um
anormal; suas ações e cálculos são os únicos racionais, no estado de natureza).” RIBEIRO, Renato
Janine. “HOBBES: medo e esperança” in WEFFORT, Francisco C. (org). Clássicos da política,
vol. 1. 10ª ed., São Paulo : Ática, 1998, pg. 55.
109
243
“Esta teoría se destaca en contraste sobre el fondo de la sociabilidad natural a la que rechaza.
HOBBES critica abiertamente la teoría del zôon politikon, fundada en una mala observación de la
naturaleza humana.” ALTHUSSER, Louis. Ob.Cit. pg. 262
244
“Assim, no estado de natureza – quando abstraímos, como mais tarde o explicará J. J.
Rousseau, o que a sociedade lhes trouxe – os homens, dispersos, são potências movidas pelo
desejo, não limitados por nada (são integralmente livres), a não ser pela incapacidade material, na
qual pode se encontrar, de satisfazer esse desejo. Nesse mesmo estatuto – que exclui toda ideia de
sociabilidade (benevolente) e de harmonia com o meio – ele experimenta, enquanto máquina
sensível, sentimentos entre os quais predominam a inveja e o medo, em particular o medo de sofrer
e de morrer. Desse modo, se a ordem natural – ordem mecânica – é a ‘lei dos lobos’, disso resulta
que o estado de natureza é, ao mesmo tempo e contraditoriamente, plena liberdade – aquém de
todo direito – e terror constante: ele é inviável.” CHÂTELET, François et alli. História das ideias
políticas. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2000, pg. 51
110
afirma o político sempre como esforço pela alegria, esforço pela liberdade e poder
imanente às relações de composição que constituem o campo político. Ainda que
se organizem em uma tirania, ainda que resulte das relações de composição do
campo social, um poder que se exerça de forma violenta, ou mesmo usurpando
para interesses privados a potência da multidão, em sua gênese, todo campo
político em Espinosa se constitui por relações de composição, pela semelhança,
pelo esforço por afetos comuns, pelo esforço pela liberdade e pela alegria. O que
pode desvirtuar este esforço em servidão é a questão central desta pesquisa que
analisaremos mais detalhadamente a seguir.
2.3.5.2
245
“...la multitude qui fonde le contrat n’est pas chez lui ( HOBBES ) le concept de la masse, c’est
le concept d’un peuple toujours déjà décomposé, reduit par avance ( préventivement ) à la somme
de ses atomes constituants ( les hommes de l’État de Nature ), et susceptibles d’entrer un par un,
par le contrat, dans le nouveau rapport institutionnel de la société civile. » BALIBAR, Étienne. La
crainte des masses, Paris: Galilée, 1997, p. 74
111
246
“Este contrato político de sumisión no es un simples contrato entre el príncipe y el pueblo
(contrato feudal); un contrato de tipo príncipe/pueblo conduce a la anarquía, pues no hay tercero,
no hay juez exterior que haga respectar el contrato.
Este contrato es asimétrico, estructurado en dos niveles: entre todos los individuos de la sociedad
en primer lugar, que aceptan no oponerse, y que luego se ponen de acuerdo para alienar una parte
de sus derechos en el príncipe.
Asimetría del contrato en tanto le reciprocidad (de todos los individuos) tiene por contenido a un
tercero que está fuera del contrato; este tercero, por su parte, recibe una donación de derecho.
Entre el príncipe y el pueblo (después de su contrato) no hay reversibilidad: el soberano no se
compromete a nada: recibe.” ALTHUSSER, Louis. Ob. Cit. Pg. 270
247
Carta 50 de Espinosa para Jarig Jelles
248
“La teoría del poder absoluto es la de un individuo absoluto que está en el estado de naturaleza
con respecto a sus súbditos, y una restauración del estado de naturaleza entre un solo y todos. El
poder absoluto es guerra de uno solo contra todos. Pero la guerra no puede tener lugar, pues sólo el
112
soberano cuenta con todos los poderes. El soberano tiene sobre la ciudad los mismos poderes que
un hombre sobre sus facultades.
Resutado: HOBBES rechaza toda división de poderes (ejecutivo, legislativo, judicial), que se
confunden en el mismo hombre. La confusión del legislativo y del ejecutivo es específica aquí: el
príncipe dicta las leyes, hace el derecho. El rey es todos los poderes.” ALTHUSSER, Louis. Ob.
Cit. Pg.271,272.
249
“A soberania uns e indivisível do Estado é ilimitada: o contrato que a estabelece não a sujeita a
nenhuma obrigação, salvo a de assegurar a tranquilidade e o bem-estar dos contratantes. Temos
aqui o deus mortal, o Leviatã, esse monstro da lenda fenícia que é evocado pela Bíblia para dar a
imagem de uma força corporal à qual nada resiste. Dessa feita, a laicização completa da plenitudo
potestas dos teólogos realiza-se na própria noção do Estado.” CHÂTELET, François et alli,
História das ideias políticas... Pg. 51 e 52
113
2.3.5.3
250
“Com orgulho, na defesa de sua reputação contra o dr. Wallis, o filósofo [HOBBES] revela que
em 1640, ao ser instalado um Parlamento hostil ao governo autoritário do rei, foi ele ‘o primeiro de
todos os que fugiram’...” RIBEIRO, Renato Janine. Ob. Cit. Pg.17
251
“[Em Espinosa] não há pacto porque os homens constituem um indivíduo coletivo ou um corpo
complexo e uma mente complexa dotados de todo poder que seus constituintes lhe conferem: o
corpo político. O poder político (imperium) é, portanto, o direito natural comum ou coletivo.”
CHAUÍ, Marilena. Política e, Espinosa... pg. 299
252
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...pg. 296
114
253
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg. 296
115
254
HOBBES, Thomas. Leviatã, cap. XXI, pg. 176.
255
“Mas, dando poderes ao soberano, a fim de instaurar a paz, o homem só abriu mão de seu
direito para proteger sua vida. Se esse fim não for atendido pelo soberano, o súdito não lhe deve
mais obediência – não porque o soberano violou algum compromisso (isso é impossível, pois o
soberano não prometeu nada), mas simplesmente porque desapareceu a razão que levava o súdito
a obedecer. Essa é a ‘verdadeira liberdade do súdito.” RIBEIRO, Renato Janine. “HOBBES: medo
e esperança”...pg.68.
116
3.1
256
NEGRI, Antonio. Anomalia selvagem...pg.157
257
Utilizaremos aqui indistintamente os termo individualidade e subjetividade, sendo certo que
desenvolveremos nossa análise sobre a constituição de ambas também como sinônimos.
118
3.1.1
Indivíduo e subjetividade
Por coisas singulares compreendo aquelas coisas que são finitas e que têm
uma existência determinada. E se vários indivíduos contribuem para uma
única ação, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa de um
único efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma única coisa
singular.
258
E II, postulado 1: “O corpo humano compõe-se de muitos indivíduos (de natureza diferente),
cada um dos quais é também altamente composto.”
119
mente, ideia desse corpo, é também uma relação entre ideias259. A subjetividade
ou individualidade, aquilo que diferencia um homem de outro, seu semelhante,
não é outra coisa que as relações que lhe são constitutivas, relações entre partes
extensas, no corpo, e relações entre ideias, na mente.
No entanto, nenhum homem existe só ou isolado do encontro com
outras coisas singulares, e cada indivíduo composto traz em si um poder de afetar
e ser afetado por outras coisas singulares. Como cada coisa singular traz em si
uma potência, traz em sua essência um esforço de perseverar na existência, cada
indivíduo traz em sua essência uma potência de afetar e ser afetada por outras
coisas singulares.
O conatus, que determina a potência de existir de cada indivíduo, no
universo dos encontros necessários entre as coisas singulares, determina que,
necessariamente, as coisas se afetam mutuamente, causando-lhes variações de
potência que podem ser positivas, negativas ou neutras. Todo indivíduo está
inexoravelmente imerso em ordens necessárias de encontros e variações de
potência, que podem determinar-lhe um aumento ou uma diminuição de potência,
ou mesmo uma transformação de sua individualidade em outra coisa: sua morte.
Ao tratarmos do tema da individualidade ou subjetividade em
Espinosa, sobre as variações ou transformações às quais está sujeito um indivíduo,
no universo dos encontros, chegamos necessariamente ao tema da relação entre
essência e forma. Dissemos que, para nosso filósofo, o sujeito ou a subjetividade
não precede a experiência e, assim, também a essência não precede a forma, nem
existe sem ela.
Espinosa recusa a concepção de uma essência transcendente que possa
se materializar, ou não, na forma efetivamente existente. Nosso filósofo estabelece
a reversibilidade absoluta entre essência e forma: a essência só existe enquanto
forma efetivamente existente, e vice e versa. Neste sentido, é clara a definição 2
da E II:
Digo pertencer à essência de uma certa coisa aquilo que, se dado, a coisa é
necessariamente posta e que se retirado, a coisa é necessariamente retirada;
e, em outras palavras, aquilo sem o qual a coisa não pode existir nem ser
259
E II, proposição 13: “O objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um
modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa.”
120
concebida e vice-versa, isto é, aquilo que sem a coisa não pode existir nem
ser concebido.
260
« (...) a definição da ‘essência da coisa’ exclui a suposição de que a essência seja um universal
que pertence à natureza da coisa e que esta seja a existência particular daquela. A regra da
definição da essência da coisa é, portanto, clara: a essência da coisa é singular como a própria
coisa de que é essência e justamente por isso a ideia de Pedro deve convir com a essência de Pedro
e não com a de Homem. A conseqüência também é clara: porque a essência da coisa é inseparável
da coisa a cuja natureza pertence, a definição da essência da coisa não pode ser feita por gênero e
diferença, isto é, por predicação.” CHAUÍ, Marilena. A nervura do real... p. 925
121
O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada
mais é do que a sua essência atual.
Demonstração. Da essência dada de uma coisa qualquer seguem-se
necessariamente certas consequências (pela prop. 36 da P.1). Além disso, as
coisas não podem fazer senão aquilo que necessariamente se segue de sua
natureza determinada (pela prop. 29 da P.1). Por isso, a potência de uma
coisa qualquer, ou seja, o esforço pelo qual, quer sozinha, quer em conjunto
com outras, ela age ou se esforça por agir, isto é (pela prop. 6), a potência
ou o esforço pelo qual ela se esforça por perseverar em seu ser, nada mais é
que sua essência dada ou atual.
261
“ Chez Spinoza, c’est à la fois que les choses n’existent que formées, et que tout problème est
un problème de forme. » ZOURABICHVILI, François. Le conservatisme paradoxal de Spinoza –
Enfance et royauté, Paris: PUF, 2002, p. 25
262
“La philosophie de Spinoza place au centre de ses prèocupations pratiques le thème de la
conservation de la forme. » ZOURABICHVILI, François. Le conservatisme paradoxal... p. 31
122
263
“Tais estudos, que definem os corpos, os animais ou os homens, pelos afetos de que são
capazes, fundaram o que chamamos hoje de etologia. (...) A Ética de Espinosa não tem nada a ver
com uma moral, ele a concebe como uma etologia, isto é, como uma composição das velocidades e
das lentidões, dos poderes de afetar e de ser afetado nesse plano de imanência.” DELEUZE, Gilles.
Espinosa : filosofia prática. Ed. Escuta, São Paulo, 2002, p. 130.
264
« Cet objet n’est pas l’individu, mais l’individualité, mieux, la forme de l’individualité :
comment elle se constitue, comment elle tend à se conserver, comment elle se compose avec
d’autres selon des rapports de convenance et de disconvenance, ou d’activité et de passivité. S’il
est bien connu que l’individualité spinoziste n’esi à aucun degré substance, il faut rappeler qu’elle
n’est pas davantage conscience ni personne au sens juridique ou théologique. » BALIBAR,
Étienne. La crainte des masses, Galilée, Paris, 1997, p. 87
265
“Il s’agit d’une antropologie établie sur um ‘deplacement’, sur um détournement. Spinoza nous
dit que la conviction, nourrie depuis longtemps, de profiter d’une place privilégiée dans le dessein
divin, n’est rien d’autre qu’une ilusion. Arrêtons de nous penser comme un empire dans un empire.
Ni bête, ni ange, l’individu humaine ent une partie de la nature, res entre les autres res. »
123
CUZZANI, Paola de. « Une antropologie de l’homme décentré » in Philosophiques nº 29, 2002, p.
10
266
« Mas se, diferentemente, abraçarmos o pensamento de Spinoza, diremos tão somente que se
trata de uma singularidade anônima, vale dizer, não há algo de próprio no homem a distingui-lo do
restante da natureza. Mais do que isso, diremos que o homem é uma coisa como outra qualquer, na
natureza; é expressão substancial singular que não se repete. Nada há para além da experiência ou
que a preceda, só restando-nos a dimensão dos encontros como via de subjetivação.” Belluz,
Mariana Monteiro. A singularidade anônima do humano, dissertação de mestrado, PUC-Rio,
Departamento de direito, 2006, p. 84
267
Desenvolveremos melhor este tema da recusa espinosana ao jusnaturalismo a seguir, quando
tratarmos da identidade estabelecida por nosso filósofo entre potência e direito na sua célebre
colocação “tanto direito quanto potência”, afirmação presente já no TTP: “Para demonstrar esse
124
3.1.2
Variações e transformações
ponto, começo, porém, pelo direito natural do indivíduo, que vai até onde for o seu desejo e o seu
poder...” TTP, pg. 13
268
“L’individu, sans cesser d’être lui même, peut donc passer par plusieurs états, c’est-à-dire être
affecté de plusieurs façons. Appelons donc affections ces multiples ètats d’une même essence. »
MATHERON, Alexandre. Individu et communauté..., p. 44
125
Com efeito, deve-se, sobretudo, observar que, quando digo que alguém
passa de uma perfeição menor para uma maior, ou faz a passagem contrária,
não quero dizer que de uma essência ou forma se transforme em outra (com
efeito, um cavalo, por exemplo, aniquila-se, quer se transforme em homem,
quer em inseto). Quero dizer, em vez disso, que é a sua potência de agir,
enquanto compreendida como sua própria natureza, que nós concebemos
como tendo aumentado ou diminuído.269
269
E IV, prefácio.
270
“ La transformation, entendue au sens fort ou strict comme um changement affectant lê sujet, et
non seulement lês prédicats du sujet – la transformation ainsi comprise comme changement
d’identité (...) » ZOURABICHVILI, François. Ob.cit., pp. 04
126
Não existe nada na natureza, exceto Deus, que não possa ser destruído
por outra coisa mais potente. Se as variações de potência acompanham
inevitavelmente os encontros e constituem a própria singularidade, a
transformação é também inevitável, dependendo apenas do triste encontro com
outra coisa mais potente. Se a essência de tudo o que existe é o esforço por
perseverar na sua individualidade, o universo múltiplo dos encontros necessários
pode, a qualquer tempo, determinar sua destruição, sua transformação em outra
coisa irreconhecível.
Assim, a duração de qualquer coisa singular é sempre uma duração
indefinida. A temporalidade aberta da existência em Espinosa é compreendida
nesta incessante incerteza entre a afirmação do conatus, ou a submissão a uma
transformação ocasionada pelo encontro com outra coisa mais potente. Nenhuma
coisa singular tem um limite pré-estabelecido para sua existência, nem a garantia
271
Encontramos esse exemplo na Ética, IV, prop. 39, escólio: “Um homem de idade avançada
acredita que a natureza das crianças é tão diferente da sua que não poderia ser convencido de que
foi uma vez criança, se não chegasse a essa conclusão pelos outros.”
272
Exemplo também da Ética IV, prop. 39, escólio
273
Axioma da E IV
127
O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser não
envolve nenhum tempo finito, mas um tempo indefinido.
Demonstração. Com efeito, se envolvesse um tempo limitado, que
determinasse a duração da coisa, seguir-se-ia, então, exclusivamente da
própria potência pela qual a coisa existe, que, após esse tempo limitado, ela
não poderia mais existir, devendo se destruir. Mas isso (pela prop. 4) é
absurdo. Portanto, o esforço pelo qual uma coisa existe não envolve, de
maneira alguma, um tempo definido, mas, pelo contrário, ela continuará, em
virtude da mesma potência pela qual ela existe agora, a existir
indefinidamente, desde que (pela mesma prop. 4) não seja destruída por
nenhuma causa exterior. Logo esse esforço envolve um tempo indefinido.
Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior.
Demonstração: Esta proposição é evidente por si mesma. Pois a definição de
uma coisa qualquer afirma a sua essência; ela não a nega. Ou seja, ela põe a
sua essência; ela não a retira. Assim, à medida que consideramos apenas a
própria coisa e não as causas exteriores, não poderemos encontrar nela nada
que possa destruí-la.
que analisaremos também em nosso último capítulo. Por ora, restringimos aqui
nossa análise à afirmação da exterioridade das transformações.
Como a individualidade se define pelo poder de afetar e ser afetado,
nos encontros com outras coisas singulares, a noção de subjetividade em Espinosa
também só se constrói nas relações com os outros. Falar de sujeito, em Espinosa,
não é falar de uma interioridade que se distancie das ou preceda as experiências
dos encontros. A subjetividade espinozana, a todo instante, se constitui na
experiência da intersubjetividade, interior e exterior, em Espinosa, não se opõe,
mas se determinam mutuamente274.
Neste sentido, a subjetividade espinosana não é a materialização de
características abstratas e inatas, nem a conservação de uma natureza humana que
já esteja determinada desde o nascimento de um indivíduo. A subjetividade, ou
melhor dizendo, o processo de subjetivação, em Espinosa, é um incessante
movimento, determinado por encontros e variações de potência que constituem a
interioridade, ao mesmo tempo em que são determinados pela experiência
inevitável da exterioridade.
Vale ressaltar, no entanto, que nesse processo de subjetivação,
nenhuma coisa singular está à deriva, sem rumo, no mar dos encontros. Já vimos
que a essência de tudo o que existe é o conatus, esforço por perseverar na
existência, e este está presente no curso dos vários encontros que constituem a
experiência da individualidade. Inexoravelmente influenciado pelos encontros e
afetos, o processo de subjetivação é, todavia, norteado pelo conatus, pelo desejo,
pela busca por alegrias e pelo esforço por evitar tristezas.
A consciência de si é, necessariamente, a consciência de suas relações
com outros indivíduos, e das variações afetivas que as acompanham, consciência
daquilo que nos alegra ou entristece, dos bons ou maus encontros. Indissociável
274
“A exterioridade não é portanto sinônimo de alienação e inadequação. A exterioridade com a
qual compomos é interioridade.
Desse ponto de vista, a exterioridade deve ser distinguida da alteridade. Os outros não são
exteriores se há conveniência com eles. Nesse caso, aliás, Spinoza não fala de corpos exteriores,
mas de outros corpos, vários corpos. Não há de fato exterioridade, mas concurso e união a ponto
de poder formar um só e mesmo corpo. Na ação, estes corpos unidos podem assim constituir uma
só e mesma coisa singular com o si. A interioridade é inclusiva e não exclusiva. O si não existe
como entidade separada. Com efeito, ser é partilhar propriedades com os outros corpos humanos e
noções comuns com suas mentes. A comunidade quando exprime a conveniência de natureza, é
percebida pela razão, é a expressão do si. Neste sentido, ser consciente de si é ser consciente que o
si é também um outro que o si com o qual ele convém.”, CHANTAL, Jaquet. “Do eu ao si:
refundação da interioridade em Spinoza”, in MARTINS, André et alli (org.) As ilusões do eu:
Spinoza e Nietzsche , Rio de janeiro: José Olympio, 2011, pg.363
129
275
“Pourtant, la connaissance (même imaginative) que nous prenons de nous-même est
immédiatement aussi, de manière experimentale, celle d’un sujet capable de connaître et de se
connaître, ainsi que de juger de son utile propre. Ette reconnaissance de soi par soi ne serait certes
que pure abstraction, si nous ne nous reconaissions pas, avant tout, en tant qu’être singulier, c’est-
à-dire en tant que nous désirons quelque chose. » BOVE, Laurent. Ob.cit., p. 66
276
O conceito de devir, que nos é aqui fundamental para pensar a subjetividade, remete-se à obra
de DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs...,vol 4, pp.14-15: “Um devir não é uma
correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última
instância, uma identificação. Toda a crítica estruturalista da série parece inevitável. Devir não é
progredir nem regredir segundo uma série. (...) O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É
uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio devir, o
bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. (...)
Enfim, devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir
nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que
a da filiação. Ele é da ordem da aliança.” Sobre o tema destacamos ainda os seguintes
comentários:
“Os autores (DELEUZE e GUATTARI) respondem que os entes são diferenças e suas relações
devires, afetos ou modificações, que devem ser pensados independentemente das ideias de forma,
função, espécie e gênero. O conceito de devir acompanha o abandono das concepções
substancialistas e da perspectiva “hilemorfista” da individuação (simples encontro de forma e
matéria), para pensar os corpos como singularidades e seus devires como processos irredutíveis às
sobrecodificações do organismo, do significante e do sujeito.” Abreu Filho, Ovídio. “Resenha de
Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia” em Revista Mana, nº 4, 1998, p. 145. Também disponível
em : http://www.freewebtown.com/spinoza/milplatos_resenha_Ovidio.pdf, acessado em março de
2008.
E ainda: “Entrar no campo do devir é estar sempre compondo em nossos corpos algo de inusitado
a partir do encontro com o outro, embarcando constantemente em possíveis linhas de fuga
desterritorializantes. (...) Partindo dessa ideia, é afirmar que cada sujeito pode ser definido por uma
lista de afetos e devires, quer dizer, ele é, por si só, uma multiplicidade de acontecimentos que
nunca cessam de assediá-lo e de gerar efeitos diferenciados em sua vida.” DOREA, Guga. “Gilles
DELEUZE e Felix GUATTARI: heterogênese e devir” em Margem, nº 16, dezembro de 2002, p.
104. também disponível em http://www.pucsp.br/margem/pdf/m16gd.pdf, acessado em março de
2008.
277
E II, prop. 23
130
3.1.3
281
Sobre o tema: Dumont, Louis. O individualismo – uma perspectiva antropológica da ideologia
moderna, ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1985, de onde destacamos: “Quando nada mais existe de
ontologicamente real além do ser particular, quando a noção de ‘direito’ se prende, não a uma
ordem natural e social mas ao ser humano particular, esse ser humano particular torna-se um
indivíduo no sentido moderno do termo.” P. 79
282
Voltaremos ao tema da relação entre indivíduo e sociedade no pensamento antropológico
hegemônico da modernidade e sua oposição à concepção espinosana de multidão a seguir, quando
tratarmos da multidão como multiplicidade de singularidades.
132
283
“La raison que détermine entre les hommes un accord nécessaire n’a donc rien de
transcendant : elle n’exprime rien d’autre que la puissance de la nature humaine, qui se manifeste
et se développe dans la recherche de l’ « útile prope ».” BALIBAR, Etienne, Spinoza et la
politique...p.99
133
284
“... Espinosa demonstra que, sob a direção da razão ou na ação, os homens não se combatem
uns aos outros, pois, conhecendo as noções comuns (ou as propriedades comuns às partes de um
mesmo todo que as fazem convenientes entre si), sabem que é pela concordância que cada um e
todos aumentarão a força de seus conatus e sua própria liberdade. Em outras palavras, a razão
ensina que é preciso fortalecer o que os homens possuem em comum ou o que compartilham
naturalmente sem disputa, pois nisso reside o aumento da vida e da liberdade de cada um.”
CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em Política em Espinosa...p. 160
134
285
“À medida que os homens são afligidos por afetos que são paixões podem ser reciprocamente
contrários” EIV, prop.34
135
para si e para a coletividade, e o vínculo que tece o social pode esgarçar-se até os
limites do ódio recíproco286. Na realidade passional e imaginativa da política, não
é num acordo negociado entre os homens, acerca do bom e do útil, que Espinosa
encontra a gênese constituinte da multidão.
E é na mesma Ética que nosso filósofo desenvolve a mecânica afetiva
capaz de explicar a gênese do campo político como expressão do conatus, mesmo
no universo da imaginação e das paixões. É a imitação afetiva que evidencia
como, ainda que regidos por ideias inadequadas sobre o bom e o útil, os homens
podem buscar o convívio com outros homens. A realidade da experiência de
comunidade se explica no esforço pela alegria e pela liberdade, determinados pelo
próprio conatus de cada indivíduo, por mais vulgo ou dominado por paixões
tristes que este seja287.
A imitação afetiva, que costura os laços de sociabilidade constitutivos
da multidão, no universo passional dos vulgos, é construída por Espinosa na Parte
III da Ética. Neste intuito, nosso filósofo começa evidenciando a associação
afetiva que liga um indivíduo e a coisa que lhe é objeto de amor ou ódio. A
mecânica afetiva da imitação começa a ser desenvolvida por Espinosa pela
existência de um afeto primário de amor ou ódio entre um indivíduo e outra coisa
singular. Assim, Espinosa afirma que, se imaginamos que algo afeta de alegria
algo que amamos, seremos igualmente afetados de alegria pela mesma causa.
Contrariamente, se imaginamos que algo afeta de tristeza a coisa amada, aquele
que a ama será igualmente afetado de tristeza pela mesma causa.
Quem imagina que aquilo que ama é afetado de alegria ou de tristeza será
igualmente afetado de alegria ou de tristeza; e um ou outro desses afetos
será maior ou menor no amante à medida que, respectivamente, for maior
ou menor na coisa amada.”E III, proposição 21
286
Cabe a ressalva de que Espinosa não afirma que os homens, movidos pelas paixões, vão
discordar necessariamente acerca do bom e do útil, mas apenas que podem ser reciprocamente
contrários. Existe a possibilidade de um acordo entre os homens, mesmo no campo passional,
quando estes compartilham paixões alegres, no entanto, a aleatoriedade dessas ocorrências não é
suficiente para identificar nesta possibilidade a gênese do campo político. Neste sentido:
“Observemos que Espinosa não diz que sob as paixões os homens são sempre e necessariamente
contrários uns aos outros e sim que, na paixão, podem ser contrários uns aos outros, tanto quanto
podem concordar uns com os outros.” CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em
Política em Espinosa...p.147
287
“Ce que nous montre Spinoza, c’est qu’il y a un autre genèse (ou « production ») de la société à
partir des passions elles-mêmes, dans leur élément, bien que cette fois elle ne conduise à aucun
accord nécessaire.” BALIBAR, Etienne. Spinoza et la politique, 2ª edição, PUF, Paris, 1990,p.101
136
Quem imagina que aquilo que odeia é afetado de tristeza se alegrará; se,
contrariamente, imagina que é afetado de alegria, se entristecerá; e um ou
outro desses afetos será maior ou menor à medida que o seu contrário for,
respectivamente, maior ou menor na coisa odiada. E III, proposição 23
288
“Je vois (ou crois voir) de la joie (en ce que j’aime), donc je sens de la joie : mon esprit se
comporte comme un miroir de ce qu’il imagine voir en l’objet aimé. Il va de soi que ce qui
compte, dans ce domaine de l’économie des affects, ce ne sont que les images (ou les
imaginations) que j’ai des choses, et non la réalité effective desdites choses : que l’objet que j’aime
soit réellement affecté de joie ou que je l’imagine seulement dans cet état, alors qu’il éprouve en
réalité de la tristesse, ne fait aucune différence pour ce dont il est question ici. Nous sommes à un
niveau de mimétisme faisant que le caméléon devient rouge dès lors qu’il voit rouge (et cela même
si ce qu’il regarde paraît vert à tout autre que lui).” CITTON, Yves. « Les lois de l’imitation des
affects », in CITTON, Yves e LORDON, Frédéric (org.), Spinoza et les sciences sociales – de la
puissance de la multitude à l’économie des affects, Paris: Éditions Amsterdam, 2008, pg. 77
137
Por imaginarmos que uma coisa semelhante a nós e que não nos provocou
nenhum afeto é afetada de algum afeto, seremos, em razão dessa
imaginação, afetados de um afeto semelhante E III, proposição 27
289
“Cette analyse est d’une extrême importance: en fait elle déplace toute la problématique de la
sociabilité. Le « semblable » (...) n’existe pas comme tel naturellement, au sens cette fois d’un être
là donné. Mais il est constitué par un processus d’identification imaginaire, que Spinoza appelle
« imitation affective » (affectuum imitatio) (...), et qui agit dans la reconnaissance mutuelle des
individus aussi bien que dans la formation de la « multitude » comme agrégat instable de passions
individuelles.” BALIBAR, Etienne. Spinoza et la politique...pp. 103/104
138
290
“De même que nous tendons à persévérer dans notre être, c’est-à-dire à nous accorder à nous-
mêmes, de même nous tendons à nous accorder à nos semblables ; et ceci découle de cela : c’est
parce que les essences singulières des autres hommes ressemblent à la notre que l’affirmation de
nous mêmes passe par l’affirmation d’autrui.” MATHERON, Alexandre. Ob. cit. pp. 155-156
291
“Esse esforço por fazer algo ou deixar de fazê-lo, com o único propósito de agradar aos
homens, chama-se ambição, sobretudo quando nos esforçamos por agradar ao vulgo com tal zelo
que fazemos ou deixamos de fazer certas coisas que resultem em detrimento nosso ou alheio. Se
esse não for o caso, costuma-se chamá-lo de humanidade” EIII, prop. 29, escólio
292
“Com efeito, quem não é levado nem pela razão, nem pela comiseração, a ajudar os outros, é,
apropriadamente, chamado de inumano, pois (pela prop. 27 da P.3) parece não ter semelhança com
o homem.” EIV, prop. 50, escólio.
293
“Assinalemos primeiro que Espinosa põe explicitamente, com efeito, um critério de
reconhecimento da humanidade dos corpos, a saber, a imaginação do semelhante e a imitação de
seus afetos.” BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e
antropogênese, São Paulo: Autêntica, 2010, pg. 109
139
294
Limitaremos nossa análise a estes seis afetos porém ressaltamos que existem ainda outros que
igualmente decorrem da imitação afetiva, sobre o tema remetemos o leitor à EIII.
295
“A prop. 21 nos explica o que é a comiseração, que podemos definir como a tristeza originada
da desgraça alheia.” EIII, prop. 22, escólio.
296
“Essa imitação dos afetos, quando está referida à tristeza, chama-se comiseração.” EIII,
prop.27, escólio
“A comiseração é uma tristeza acompanhada da ideia de um mal que atingiu um outro que
imaginamos ser nosso semelhante” EIII, definição dos afetos 18.
297
EIII, prop. 27, escólio 2.
“A benevolência é o desejo de fazer bem àquele por quem temos comiseração” EIII, definição dos
afetos 35,
140
298
“La pitié joue donc, dans la communauté humaine, un rôle régulateur que varie en raison
inverse de la stabilité de cette communauté elle-même. Inexistante chez les sages, inutile dans les
sociétés idéales que décrit le Traite politique, accessoirement utile dans les sociétés de fait que
spinoza a sous les yeux, elle devient indispensable dans l’état de nature. » MATHERON,
Alexandre. Ob. Cit. p. 158
299
“Disons, pour comparer systématiquement le conatus inter-humaine au conatus individual, que
la pitié est à la communauté humaine ce qu’est à l’individu la tristesse indirectement bonne:
déformation de structure, mais qui compense cette autre déformation, plus grave encore, qu’est
l’inégalité excessive” MATHERON, Alexandre. Ob.Cit. 158
300
“A comiseração, no homem que vive sob a condução da razão é, em si, má e inútil” EIV, prop.
50
301
“Dans une société politique bien organisée, la pitié serait tout aussi inutile que dans une
communauté de sages...” MATHERON, Alexandre. Ob. cit. p. 157
141
exercício do poder político. Apesar de ser uma forma de ódio, na relação entre
multidão e poder constituído, a indignação pode ser afeto útil para resguardar o
imperium de ambições usurpadoras por parte daqueles que exercem o poder
político307.
Por fim, a terceira dupla de afetos que destacamos como decorrentes
da imitação afetiva são a emulação e a ambição. A emulação é o “desejo de
alguma coisa, o qual se produz em nós por imaginarmos que outros, semelhantes a
nós, têm esse mesmo desejo”308 Imaginamos que outro, semelhante a nós, deseja
algo e, por imitação afetiva, somos levados a desejar a mesma coisa que nosso
semelhante. Como num jogo de espelhos, na mecânica afetiva passional da
imaginação, os homens imitam o desejo de seus semelhantes e, por vezes, a mera
imaginação do objeto de desejo alheio já provoca nos homens o desejo pela
mesma coisa desejada por seu semelhante309.
A emulação, tal como conceituada por Espinosa, explica facilmente
fenômenos que são de nosso convívio mais corriqueiro como o marketing, que se
fortalece ao generalizar o desejo por determinado produto, ou mesmo a cultura da
moda que se afirma ao instituir no imaginário de vários os desejos pelos mesmos
objetos. Voltaremos a este tema que terá papel central na nossa análise dos afetos
que perpassam a multidão em nosso último capítulo.
Da imitação afetiva decorre que afetos experimentados em comum
com outros semelhantes a nós são sempre mais intensos que afetos
experimentados individualmente. Se uma alegria que nos afeta vem acompanhada
do afeto semelhante de imaginarmos outros compartilhando esta mesma alegria,
307
Laurent BOVE é explícito ao afirmar a indignação como um afeto correlato da resistência, e
sua positividade no campo político: « L’indignation est alors le signe de cette raison ou cette vertu
en reconstruction. Elle montre, comme la douleur, ‘que la partie blessée n’est pas encore pourrie’,
qu’une volonté de guérie est actuellement présente, que la vertu combat. L’indignation générale,
au sein d’un corps politique malade, est donc le signe d’une santé collective recouvrée. » BOVE,
Laurent. La stratégie du conatus... pg. 293
308
EIII, prop. 27, escólio 1.
309
« À la lumière d’une structure mimétique du désir, dont l’Émulation spinozienne donne très
précisément la formule de base, la socialité humaine apparaît comme un effrayant jeu de mirois
entre caméléons déboussolés, dont les comportements se balancent périodiquement entre
convergence et rivalité, voués à flotter au grés des aléas de configurations purement relationnelles,
sans guère d’ancrage possibles dans la ‘réalité’ rassurante qu’offriraient des besoins objectifs, non
aléatoires et non chaotiques. » CITTON, Yves. « Les lois de l’imitation des affects », in CITTON,
Yves e Lordon, Frédéric (org.), Spinoza et les sciences sociales – de la puissance de la multitude à
l’économie des affects, Paris: Éditions Amsterdam, 2008, pg. 79
143
nosso afeto será mais intenso que apenas a nossa alegria singular. Neste sentido, é
clara a proposição 31 da EIII:
Se imaginamos que alguém ama, ou deseja, ou odeia uma coisa que nós
mesmos amamos, ou desejamos, ou odiamos, amaremos, por esse motivo,
essa coisa com mais firmeza, etc. Se, por outro lado, imaginamos que
alguém abomina aquilo que amamos ou, inversamente, que ama o que
abominamos, então padeceremos de uma flutuação de ânimo.
Da busca por afetos comuns, que daí resulta, podemos identificar dois
tipos de ambição citados por Espinosa: primeiro a ambição por fazer o que
julgamos que agradará nossos semelhantes310, e segundo a ambição por fazer com
que nossos semelhantes amem as mesmas coisas que nós próprios amamos, ou
odeiem as mesmas coisas que nós próprios odiamos311.
A alegria de meu semelhante é também minha alegria, e minha
própria alegria é reforçada quando compartilhada com outros: a conclusão mais
evidente deste mimetismo é que os homens buscam, em regra, realizar o que
imaginam alegrar seus semelhantes e, por outro lado, evitam fazer o que
imaginam que os desagrade.
Esforçamo-nos por fazer com que se realize tudo que imaginamos levar à
alegria; esforçamo-nos, por outro lado, por afastar ou destruir tudo aquilo
que a isso se opõe, ou seja, tudo aquilo que imaginamos levar à tristeza EIII,
prop. 28
Nós nos esforçaremos, igualmente, por fazer tudo aquilo que imaginamos
que os homens veem com alegria, e contrariamente, abominaremos fazer
aquilo que imaginamos que os homens abominam. EIII, prop. 29
310
EIII, prop. 29
311
EIII, prop. 31, corolário e escólio.
312
“Esse esforço por fazer algo ou deixar de fazê-lo com o único propósito de agradar aos homens,
chama-se ambição, sobretudo quando nos esforçamos por agradar ao vulgo com tal zelo que
fazemos ou deixamos de fazer certas coisas que resultem em detrimento nosso ou alheio.” EIII,
prop. 29, escólio
144
Disso e da prop. 28, segue-se que cada um se esforça, tanto quanto pode,
para que todos amem o que ele próprio ama e odeiem também o que ele
próprio odeia. EIII, prop. 31, corolário.
Esse esforço por fazer com que todos aprovem o que se ama ou se odeia é,
na verdade, a ambição (...). Vemos, assim, que, cada um, por natureza,
deseja que os outros vivam de acordo com a inclinação que lhe é própria.
Como é isso que todos desejam, constituindo-se, assim, em obstáculos
recíprocos, e como todos querem ser louvados ou amados por todos,
acabam todos por se odiar mutuamente. EIII, prop. 31, escólio.
Isto posto, na realidade múltipla dos encontros e dos afetos, nada mais
impossível que esperar que, imersos na imaginação, os homens concordem, a todo
momento, sobre tudo o que é objeto de amor ou ódio, o que é causa de alegria ou
tristeza. Portanto, a ambição de fazer com que seus semelhantes se coadunem com
o juízo individual de cada homem é uma ambição necessariamente conflitiva, e o
tema da maior parte das disputas entre os homens.
Qualquer homem prefere seu próprio sistema de valores, decorrente de
suas próprias experiências individuais, ao sistema de valores de seu semelhante.
Sendo assim, a princípio, todo homem deseja impor a seus semelhantes suas
145
313
próprias concepções de bom e mau, belo e feio, objeto de amor e de ódio, etc .
Alexandre Matheron chama esta ambição de ambição de dominação. Neste
cenário, enquanto a imitação afetiva e seus afetos costura a sociabilidade, no caso
da ambição de dominação ela torna-se afeto de sedição e pode materializar-se em
ambição pelo exercício do poder político para fins particulares.
A ambição é mais um tema ao qual retornaremos com mais atenção no
nosso último capítulo. Por ora, basta-nos destacar sua gênese na imitação afetiva e
seu caráter conflitivo, frente à multiplicidade dos encontros e dos afetos nos quais
estão, inevitavelmente, imersos todos os homens. A imitação afetiva é o liame
imanente que constitui as relações entre os homens e seus semelhantes. A
multidão, em Espinosa, não é o resultado de um cálculo racional dos homens ou
um esforço adequado pelo bom e pelo útil, mas se tece nas linhas das paixões e na
semelhança imaginária.
3.1.4
314
NEGRI, Antonio. Verbete “SPINOZA, Baruch – Tratado Político” em Dicionário de obras
políticas... p.1131/1132
315
“Os comentadores da obra política espinosana não podem deixar de enfrentar o fato de que a
instituição do campo político não parece receber a mesma explicação no Teológico-político e no
Político, pois o primeiro invoca a idéia de pacto como instância instituinte enquanto o segundo
invoca o direito da multitudo como causa eficiente do corpo político.” CHAUÍ, Marilena. “A
instituição do campo político” em Política em Spinoza...p.164
147
316
“Em suma, o contrato no Tratado Teológico-Político possui caráter nominal, inexistindo, na
concepção spinozana acerca do contrato, qualquer das características que o qualificam nas
doutrinas contratualistas, Se Spinoza já poderia ser considerado um autor que se valia do termo
‘direito natural’ sem ser jusnaturalista, agora é possível estabelecer que ele usa o termo ‘contrato’
não chegando a se configurar um pensador contratualista.” GUIMARAENS, Francisco de.
Cartografia da imanência...p. 269
317
“Por isso é possível afirmar que a teoria política spinozista não é capaz de assimilar a
possibilidade de transferência plena de direitos, como ocorre em HOBBES. (...) Transferir o
conatus, o direito natural, é absolutamente impossível; ninguém pode deixar a cargo de outrem o
esforço de perseverar na existência. Alienar o conatus é, antes de mais nada, uma impossibilidade
lógica.” GUIMARAENS, Francisco, O poder constituinte...p. 138
148
322
“Em Spinoza não é o medo da morte que impulsiona a constituição da sociedade, mas sim o
desejo de viver bem, que somente se faz possível em comunidade. (...) Não é o cálculo racional
Hobbesiano, fundado no medo da morte, mas sim o desejo positivo de expansão da potência,
através da formação de uma comunidade...” GUIMARAENS, Francisco de. O poder
constituinte...p. 140
323
“O pensamento ocidental oscila entre duas imagens de sociedade, opostas e combinadas de
modo historicamente variável, onde se fundem os sentidos particular e geral da noção. Podemos
chamá-las, com Dumont (1965), de societas e universitas, ou, usando a distinção popularizada por
esse mesmo autor, de concepções ‘individualista’ e ‘holista’ do social”. VIVEIROS DE CASTRO,
Eduardo. “O conceito de sociedade em antropologia” in A insconstância da alma selvagem e
outros ensaios de antropologia, 2ªed., São Paulo: Cosac Naify, 2011, pg.300
324
“A primeira se funda na ideia de contrato entre átomos individuais ontologicamente
independentes: a sociedade é um artifício resultante da adesão consensual dos indivíduos, guiados
racionalmente pelo interesse, a um conjunto de normas consensuais; a vida social está em
descontinuidade radical com um estado de natureza, que ela nega e transcende. De inspiração
universalista e formalista, esta concepção tem como modelo metafórico (e geralmente causa final)
o Estado constitucional territorial, e, como problema típico, os fundamentos da ordem política.”
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Ob.cit. pg.300
150
325
“A segunda se funda na ideia de um todo orgânico preexistente empírica ou moralmente a seus
membros, que dele emanam e retiram sua substância: a sociedade é uma unidade corporada
orientada por um valor transcendente; ela é um universal concreto onde a natureza humana se
realiza.” VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Ob.cit. Pg. 300
326
O conceito de “parentesco” em antropologia remete a uma rica discussão a respeito da
multiplicidade de critérios e sistemas de parentes que, no entanto, escapa aos limites de nosso
trabalho. Trata-se de tema que, não obstante sua grande relevância, desperta uma série de
formulações e problemas que ultrapassariam em muito o objetivo do presente trabalho. Isto posto,
sobre o tema, remetemos o leitor, entre diversas outras bibliografias possíveis, a: VIVEIROS DE
CASTRO, Eduardo. “O problema da afinidade na Amazônia” in, A insconstância da alma
selvagem e outros ensaios de antropologia, 2ªed., São Paulo: Cosac Naify, 2011
327
“De inspiração particularista e substantivista, seu modelo metafórico (e às vezes causa
eficiente) é o parentesco como princípio natural de constituição de pessoas morais coletivas, e seu
problema típico é o da integração cultural de um povo enquanto Nação.” VIVEIROS DE
CASTRO, Eduardo. Ob. Cit. Pg.300
328
“As grandes imagens modernas para essas concepções são respectivamente o contrato (ou seu
negativo, o conflito) e o organismo, que atravessaram a antropologia do século XX sob avatares
múltiplos...” VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Ob.Cit. pg. 300/301
151
329
“Cônsul romano que, em 494 a.c., perante a plebe reunida no Monte Palatino, teria apresentado
o apólogo sobre os membros que se rebelam contra o estômago, prejudicando todo o corpo. Os
membros simbolizariam os plebeus e o estômago, os patrícios. Com sua revolta, aqueles causariam
a ruína destes, mas não seriam poupados da própria.” Pilatti, Adriano. “Nota do Tradutor 41” in
NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, Rio de
Janeiro: DP&A, 2002, pg.20
330
“A universitas está associada a um horizonte pré-moderno dominado pelo pensamento de
Aristóteles; a societas, aos teóricos do jusnaturalismo, de HOBBES a Hegel. Mas deve-se recordar
que a Antiguidade conheceu sociologias artificialistas com os sofistas e Antístenes, e que o
nominalismo medieval preparou o terreno para as teorias modernas do contrato. Por sua vez, o
modelo holista e organicista da universitas ressurgiu na reação romântica ao Iluminismo,
desempenhando um papel fundamental no desenvolvimento da imagem antropológica de (uma)
sociedade como uma comunidade étnica de origem que partilha um mundo de significados
tradicionais legitimados pela religião. De outro lado, boa parte da antropologia vitoriana e sua
descendência pode ser vista como herdeira tardia do Iluminismo.” VIVEIROS DE CASTRO,
Eduardo. Ob.Cit. pg.301
331
“Na solidariedade característica de uma sociedade industrial, os indivíduos desenvolvem
funções especializadas, diferentes entre si, mas, ao mesmo tempo, interdependentes. Durkeim, para
esclarecer esta solidariedade, usa a metáfora do corpo, segundo a qual cada membro e cada órgão,
embora desempenhem funções diferentes, estão mutuamente relacionados de forma que a soma
das partes compõem um todo integrado e homogêneo. Exatamente por isso, Durkeim chamou essa
solidariedade de orgânica,” Loche, Adriana A. et alli. Sociologia jurídica: estudos de sociologia,
direito e sociedade , São Paulo: Ed. Síntese, pg. 52.
152
332
“Espinosa não só pode manter a idéia, desenvolvida no Teológico-Político, da utilidade da
cooperação e da união de forças, mas sem precisar recorrer à idéia de pacto, como ainda pode
oferecer os fundamentos dessa cooperação, graças à teoria das paixões e dos desejos alegres, isto
é, dos afetos que fortalecem o conatus, de tal maneira que a percepção dos demais homens como
semelhantes e da utilidade de cada um deles e de todos para o fortalecimento do conatus individual
explica que constituam a multitudo e instituam o corpo político.” CHAUÍ, Marilena. “A instituição
do campo político” em Política em Spinoza...p.165
333
“A verdadeira atitude metafísica não consiste em fundar a política no dever-ser da comunidade,
mas em reconhecer que toda formação e permanência de comunidade são o produto contínuo da
potência produtiva das singularidade.” NEGRI, Antoni, O Poder Constituinte: ensaio sobre as
alternativas da modernidade, p. 458. Ed. DP&A, Rio de janeiro, 2002
334
“Tal concórdia deriva da constituição do comum, não significando ausência de conflitos.
Concordar, convir, é participar de um regime comum de produção, ressaltando-se que,
necessariamente, tal produção implica em conflitos internos ao movimento constitutivo.”
GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte... p.147
335
“Comecemos dizendo que a multidão não é nem encontro da identidade, nem pura exaltação
das diferenças, mas é o reconhecimento de que, por trás de identidades e diferenças, pode existir
“algo comum”, isto é, “um comum”, sempre que ele seja entendido como proliferação de
153
337
“Entretanto, era indispensável o aparecimento de um símbolo da unidade popular, tanto para
obter do povo, por via emocional, sua adesão à luta contra o absolutismo, quanto para a
institucionalização de lideranças.
Surge, então, como pura criação artificial, o conceito de Nação, que seria largamente explorado no
século XVIII para levar a burguesia, economicamente poderosa, à conquista do poder político. Era
em nome da Nação que se lutava contra a monarquia absoluta...” Dallari, Dalmo de Abreu.
Elementos de teoria geral do estado, p. 132, 20ª edição, Ed. Saraiva, São Paulo, 1998
338
“ À primeira vista, este conceito [nação] pareceria singularmente adequado àquele de
procedimento absoluto, não fosse o fato de que ele é um conceito genérico, real só na imaginação
(e, portanto, indefinidamente manipulável). Por outro lado, porém, é um conceito historicamente
determinado, freqüentemente em função da ruptura do processo constituinte, de sua hipóstase ou
limitação.” NEGRI, Antonio, O poder constituinte... pp. 42/43
339
Foge aos limites deste trabalho um estudo mais detalhado e atencioso sobre a questão da massa
como sujeito político. No entanto, apenas no intuito de diferenciar sua constituição daquela da
multidão spinozana, nos remetemos a descrição de Elias Canetti: “Tão logo nos entregamos à
massa não tememos o seu contato. Na massa ideal, todos são iguais. Nenhuma diversidade conta,
nem mesmo a dos sexos. Quem quer que nos comprima é igual a nós. Sentimo-lo como sentimos a
nós mesmos. Subitamente, tudo se passa então como que no interior de um único corpo.” Canetti,
Elias. Massa e poder, São Paulo: Companhia das letras, 2005, p. 14
155
340
“Com o desenvolvimento do capitalismo e com a afirmação de uma sociedade complexa,
fortemente articulada em classes, vem impondo-se a idéia de multidão como massa. Nesse caso, a
multidão é descrita como um conjunto massificado, confuso e indistinto, todavia capaz de força de
choque e/ou resistência.” NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre o Império...p. 144
341
“A afirmação da multiplicidade como dispositivo de compreensão do modo de composição dos
corpos e das mentes permite refundar o pensamento político, estabelecendo-se um novo sujeito
político. As multiplicidades são aptas a formar corpos e mentes, do mesmo modo que podem
constituir sujeitos políticos, multidões. A filosofia spinozana não faz coro com as inúmeras
vertentes do pensamento político que entendem que só a unidade é governável. O múltiplo não se
considera algo que carrega em si uma certa negatividade, um sinal de desordem ou desarmonia.
Trata-se, na verdade, daquilo que se encontra na origem da composição de todas as coisas.”
GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência...pp. 248-249.
156
3.2
Imperium: a potência da multidão
3.2.1
342
“Soberania e poder são chapados sobre a multidão e sobre os processos de constituição do
Estado a partir dos indivíduos: soberania e poder vão até onde vai a potência da multitudo
organizada. Este limite é orgânico, participa da natureza ontológica da dinâmica constitutiva.”
NEGRI, Antonio, verbete “SPINOZA, Baruch –Tratado Político” em Dicionário de obras
políticas...pp.1136/1137.
157
343
O termo “democracia originária” é citado por LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté –
Spinoza critique de HOBBES. PUF, Paris, 1998, p. 283 : « Dans la démocratie originaire
faiblement institutionalisée...”. E ainda, em RIBEIRO, Luis Antônio Cunha. A idéia de
democracia em Spinoza. Tese de Doutorado, IFCS-UFRJ, Rio de janeiro, 2005, p. 141: “ Esse
primeiro Estado, que nasce como uma multitudo organizada a partir de um consenso em torno da
instituição de regras de comportamento, pode ser chamado de ‘democracia originária’. O Estado
nasceria democrático e qualquer outro regime de governo se originaria da democracia.”
344
Neste sentido, diz Spinoza: “É por esta razão, creio, que os Estados democráticos se
transformam em aristocracias, e estas últimas em monarquias. Estou persuadido, com efeito, de
que a maioria dos Estados aristocráticos começou por ser democracia...” Tratado Político, cap.
VIII, § 12.
345
“A democracia, portanto, se encontra na origem da fundação do estado civil. Tanto a
aristocracia quanto a monarquia surgem a partir de eventos que conduzem os cidadãos de uma
democracia a transferir seus direitos.” GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência...
p. 278
158
346
“Spinoza s’inscrit pleinement dans le contexte d’une période où les transformations politiques,
la formation de l’État moderne absolutiste, au milieu des troubles et des violences
révolutionnaires, ont fait émerger comme tel le problème des mouvements de masses, donc de leur
contrôle, de leur utilisation ou de leur répression préventive. » BALIBAR, Étienne. La crainte des
masses, ed. Galilée, Paris, 1997, p. 59.
347
A expressão terrere, nisi paveant remonta ao jurista e historiador romano do início do século II,
Tacito, em seu Anais I, 29. Tal expressão é retomada por Spinoza, com alguma variação, em E IV,
54 : “O vulgo, se não tem medo, é algo a ser temido.” E ainda no Tratado Político cap. 7, § 27:
“...que (a plebe) é temível se não teme...”. Sobre o tema remetemos o leitor às análises de
BALIBAR, Étienne. La crainte des masses, ed. Galilée, Paris, 1997, pp. 84-85.
348
“A filosofia política moderna não nasce da administração, mas do medo. Sua racionalidade só é
instrumento de ordenação se também for instrumento de repressão. A angústia é a causa e a
repressão, o efeito da racionalidade instrumental. O moderno é, assim, a negação de toda
possibilidade de que a multidão possa se exprimir como subjetividade.” NEGRI, Antonio. O poder
constituinte... p.448
160
349
“Considerada a relação política como uma relação específica entre dois sujeitos, dos quais um
tem o direito de comandar e o outro o dever de obedecer, o problema do Estado pode ser tratado
prevalentemente do ponto de vista do governante ou do ponto de vista do governado: ex parte
principis ou ex parte populi.” BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade – para uma teoria
geral da política, ed. Paz e terra. P. 63.
350
Nossa análise, a seguir, acerca do conceito de soberania e dos discursos constitucionalistas
como instrumentos de contenção do poder constituinte da multidão segue principalmente as
formulações de Antonio NEGRI, em sua obra O poder constituinte – ensaio sobre as alternativas
da modernidade, DP&A, Rio de janeiro, 2002
351
HOBBES, Thomas. “Leviatã” em Os pensadores, ed. Nova cultural, São Paulo, 2000, cap.
XVII e XVIII.
352
“HOBBES é apenas um dos mais conhecidos representantes de uma extensa gama de autores
que enxergam na multidão o signo da desordem e do caos.” GUIMARAENS, Francisco de.
Cartografia da imanência... p. 245.
353
“...la multitude qui fonde le contrat n’est pas chez lui ( HOBBES ) le concept de la masse, c’est
le concept d’un peuple toujours déjà décomposé, reduit par avance ( préventivement ) à la somme
de ses atomes constituants ( les hommes de l’État de Nature ), et susceptibles d’entrer un par un,
par le contrat, dans le nouveau rapport institutionnel de la société civile. » BALIBAR, Étienne. La
crainte des masses ... p. 74
161
354
“Existe, portanto, no âmago do conceito de soberania uma tendência à superação da dinâmica
social fundada na experiência da multiplicidade, visando à construção de uma unidade que supere
os dissensos inerentes a qualquer espaço social plural. Portanto o conceito de soberania se orienta
para a construção da unidade...” GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência...p. 253
355
Sobre as diferenças entre o conceito de multidão espinosano e os conceitos de nação e povo tal
como enunciados pelo pensamento político hegemônico remetemos o leitor ao nosso item anterior.
356
“Quando o poder constituinte desencadeia o processo constituinte, toda determinação é liberada
e permanece livre. A soberania, ao contrário, apresenta-se como fixação do poder constituinte,
como termo deste, como esgotamento da liberdade de que ele é portador...” NEGRI, Antonio. O
poder constituinte...p.37
357
“E, no entanto, a ciência jurídica nunca se exercitou tanto naquele jogo de afirmar e negar, de
tomar algo como absoluto e depois estabelecer-lhe limites – que é tão próprio do seu trabalho
lógico – como o fez a propósito do poder constituinte.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte...
pg.9
162
358
“Deste modo, o poder constituinte é absorvido pela máquina da representação. O caráter
ilimitado da expressão constituinte é limitado na sua gênese, porquanto submetido às regras e à
extensão relativa do sufrágio; no seu funcionamento, porquanto submetido as regras parlamentares
(...) em suma, a idéia de poder constituinte é juridicamente pré-formada quando de pretendia que
ela formasse o direito, é absorvida pela ideia de representação política quando se almejava que ela
legitimasse tal conceito” NEGRI, Antonio. O poder constituinte... pg.11
359
“O constitucionalismo é transcendência, mas é sobretudo o policiamento que a transcendência
exercita sobre a totalidade dos corpos para impor-lhes a ordem e a hierarquia. O
constitucionalismo é o aparato que nega o poder constituinte e a democracia.” NEGRI, Antonio. O
poder constituinte... p. 444
360
A identificação entre poder constituinte e revolução, assim como o termo “termidor” para a sua
limitação são de Antonio NEGRI, neste sentido: ““O que significa então poder constituinte, se a
sua essência não pode ser reduzida ao poder constituído, mas deve ser compreendida em sua
produtividade originária? Antes de mais nada, significa estabelecer uma relação contínua entre
poder constituinte e revolução, uma relação íntima e circular, de modo que, onde o poder
constituinte estiver esteja também a revolução.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte...pg.39
361
“O poder constituinte se apresenta, portanto, como poder de criar uma nova ordem jurídica,
segundo a concepção constitucionalista. Trata-se de poder cujo telos é ordenar, regular, constituir
ordem normativa de cunho jurídico. Com esta consideração se encontra abortada e abandonada
toda a radicalidade do princípio constituinte.” GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte
na perspectiva de Antonio NEGRI... p. 91
163
362
“É possível que o termo “poder constituinte” tenha sido inventado pelos revolucionários
americanos, como já observamos. O certo é que, pela primeira vez na história moderna, estamos
diante de um processo tão complexo e massificado quanto concentrado em tempo breve; tão
potente, rápido e eficaz quanto inconcluso” e ainda: “Com isto, remontamos às origens históricas
do conceito de poder constituinte. O termo foi provavelmente introduzido pela primeira vez no
curso da Revolução Americana, mas está presente no desenvolvimento do pensamento político
desde os tempos da Renascença, estendendo-se até o século XVIII, como noção ontológica da
capacidade formadora do desenvolvimento histórico.” NEGRI, Antonio. Ob.cit.pgs. 219 e 39
164
363
“Estamos instalados bem no centro do processo constituinte, do processo revolucionário
democrático através do qual a liberdade se configura como fronteira. ‘A revolução democrática
teve dois anos de vida.... não após a Declaração de Independência, mas antes...”, e ainda : “ A
passagem da resistência à revolução, do associativismo à constituição dos corpos políticos, dos
comitia à representação continental, das militia ao exército, tudo isso se entrecruza num clima
político em que as prescrições ideológicas e as pulsões materiais produzem rapidamente resultados
irreversíveis e conduzem irresistivelmente a determinações radicalmente inovadoras. O espírito
constituinte é acima de tudo radical. Tenham sido religiosas ou sociais as suas origens, a revolução
é o motor do poder constituinte.” NEGRI, Antonio. Ob.cit.p. 218/219.
364
O caráter constituinte da Revolução Americana, e sua extensão historicamente inovadora
foram também reconhecidos pelas análises históricas de Gordon Wood. O autor americano
descreve as especificidades do processo revolucionário americano destacando seu objetivo, não
apenas como reação à opressão inglesa, mas, sobretudo, como esforço produtivo, constituinte.
Assim, diz Wood:
“By 1776 there could be no longer any doubt in the Americans’ minds that they were in the very
midst of a revolution, the most complete, unexpected, and remarkable, of any in the history of
nations. That it was truly a revolution was attested by the very language they used to express their
estrangement from the old order and their hope for the new. For their Revolution had become
something more than simply liberation from British rule. (…) What had begun in the 1760’s as
outbursts of hostility against specific actions of Parliament and particular Crown officials had
within a decade eSCALAted into a genuine revolutionary movement, sustained by a powerful,
even millennial, creed by which Americans saw themselves no longer merely contending for the
protection of particular liberties but on the verge of ushering in a new era of freedom and bliss.”
Wood, Gordon. The creation of the American republic 1776-1787, Ed. W.W.Norton &Company
Inc., New York, 1972, p. 43/44
365
“Quando a redação da Declaração de Independência for confiada a Jefferson, sabemos o que
ele fará: a vigorosa e maciça recondução de toda legitimidade governamental à soberania popular,
ao consentimento democrático direto, entendido como expressão de direitos anteriores a qualquer
constituição. Como expressão permanente de poder constituinte.” NEGRI, Antonio. O poder
constituinte... pg.221/222.
165
366
“É claro que, se o pessimismo diz respeito à democracia, o otimismo refere-se à Constituição da
República, ou seja, ao encerramento do espírito democrático e à domesticação do poder
cosntituinte. (...)
Aqui os paradigmas da ciência política sofrem uma transformação completa. Estamos diante de
uma espetacular reforma do conceito de poder constituinte: ele é absorvido e assimilado pela
constituição, é transformado num elemento da maquina constitucional. Ele se torna máquina
constitucional.” E ainda: “ Por conseguinte, o poder constituinte não só é definido pela
Constituição, mas é reduzido a um elemento formal do governo.” NEGRI, Antonio. Ob.cit.pgs.
233/234 e 238
367
Neste sentido, cumpre ressaltar que o aprisionamento do poder constituinte nas amarras
jurídicas constitucionais é movimento deliberado e consciente dos “pais fundadores” da América.
A preocupação de conter a revolução e a democracia é nítida nos escritos federalistas da época.
Sob o argumento de conter os riscos das facções que poderiam ameaçar a paz, Madison, no artigo
nº 10 de O federalista, enuncia da seguinte forma sua opção deliberada pelo abandono da
democracia pura, em prol de um sistema republicano representativo de governo: “Encarada a
questão sob este aspecto, pode-se concluir que uma democracia pura – que defino como uma
sociedade congregando um pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo
pessoalmente – tem de admitir que não há cura para os males da facção. Uma paixão ou interesse
comum dominará, em quase todos os casos, a maioria do conjunto; da própria forma de governo
resultarão entendimentos e acordos; e nada haverá para controlar a propensão para sacrificar o
partido mais fraco ou um indivíduo servil. A consequência é que tais democracias tem sido sempre
palco de distúrbios e discussões, revelaram-se incapazes de garantir a segurança pessoal ou os
direitos de propriedade, e em geral suas vidas tem sido tão curtas quanto violentas suas mortes. (...)
Uma república – que defino como um governo no qual o esquema de representação tem lugar –
abre uma perspectiva diferente e promete a cura que estamos buscando. Examinaremos os pontos
em que ela difere da democracia pura e compreenderemos tanto a natureza da cura como as
vantagens que devem resultar da União.” Hamilton, Alexander. Jay, John e Madison, James. O
federalista, Ed. Universidade de Brasília, Brasília 1984, p. 151
368
Sobre as possíveis aproximações e antagonismos da obra de Espinosa com Os federalistas,
Madison, Hamilton e Jay, e a proposta de repúblcia democrática de nosso filósofo em seu TP
166
The adoption of the 1787 Constitution by the Federal Convention and its
subsequent ratification by conventions in the thirteen original states
exemplified this new method of constitution making. It is important to
emphasize that the 1787 Constitution had no modern precedent. No country
had ever adopted a single-document constitution that had the status of
supreme law.371 (grifo nosso)
como antangônica a construção de uma república oligárquiaca nos EUA remetemos o leitor a:
GUIMARAENS, Francisco de Dois modelos de república: Spinoza contra os federalistas, mimeo.
369
GRIFFIN, Stephen M. American constitucionalism – from theory to politics, Ed. Princeton
University Press, Princeton, 1996, p. 15.
370
A teoria do poder constituinte é elaborada para justificar este status especial da
Constituição no ápice do ordenamento jurídico. Assim diz o autor americano: “By contrast, the
American Idea of a constitution, developed during the revolutionary period, was that a single
law that had a special status as a paramount or fundamental law. (...) The crucial move was the
development of a theory that would justify the supreme status of a constitution over other
laws.” GRIFFIN, Stephen M. Ob.cit.p.12
371
GRIFFIN, Stephen M. Ob.cit.p. 12
167
3.2.2
Um olhar sobre toda a obra do filósofo nos deixa claro que, se a noção
de experiência não encontra um desenvolvimento profundo e preciso, ela está
presente em momentos cruciais de sua teoria do conhecimento e de sua teoria
política. Porém, pior que a ausência de seu aprofundamento teórico, é que a noção
de experiência parece receber papeis contraditórios em diferentes momentos do
pensamento do autor. Por exemplo, se no Tratado da emenda do intelecto a
experiência vaga é o campo do conhecimento inadequado, das ilusões e da
imaginação; quando da análise espinosana do político a experiência ganha ares de
“mestra”, de conhecimento útil e adequado.
372
“Os comentadores costumam apontar como uma das lacunas do pensamento espinosano a falta
de um pleno desenvolvimento da noção de experiência e afirmam que o Tratado da emenda do
intelecto se interrompe justamente ao chegar a esse tema, o filósofo tendo sido obrigado a sustar o
discurso por não ter ainda uma clara idéia dessa questão. Outros chegam a dizer que a lacuna
decorre da ausência de uma elaboração científica espinosana (uma física) capaz de esclarecer o
sentido da experiência. Outros, enfim, declaram que a escolha da geometria torna impossível ao
filósofo alcançar a dimensão da experiência real, poia a necessidade absoluta que caracteriza as
operações geométricas é avessa às peripécias da experiência, sempre lacunar, contingente, opaca.”
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pgs. 218/219
373
“Que a experiência é mais ampla que a experiência errante, basta, para confirmá-lo,
observarmos os verbos empregados por Espinosa para referir-se a ela: ensina (docet), mostra
(mostrat, ostendet), comprova (comprovat), confirma (testat), estabelece (constat).” CHAUÍ,
Marilena. Política em Espinosa, pg. 220
170
374
“Há, assim, uma primeira localização negativa e restritiva: não precisamos da experiência para
o conhecimento de coisas que podem ser deduzidas de suas próprias definições e a experiência
nada ensina sobre as essências dessas coisas.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg.
220/221
375
“a experiência errante busca livrar-se da singularidade das existências construindo universais
abstratos que a decepcionarão...” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...pg.221
171
376
“No §4 do capítulo 1, o filósofo delimita o espaço de sua investigação: não procura as
experiências políticas dadas ou possíveis, mas “demonstrar com razões certas e indubitáveis o que
melhor concorda com a prática” e deduzir essa conveniência “da condição da natureza humana”.
Em outras palavras, sua investigação busca aquilo que faz de uma experiência humana uma
experiência política. Dessa maneira, o primeiro sentido do termo experiência configura-se de
modo determinado: a obra irá ocupar-se com a experiência enquanto experiência política.”
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg.223
172
Finalmente, uma vez que todos os homens, sejam bárbaros ou cultos, onde
quer que se juntem formam costumes e um estado civil, as causas e
fundamentos naturais do estado não devem pedir-se aos ensinamentos da
razão mas deduzir-se da natureza ou condição comum dos homens, coisa que
me proponho fazer no capítulo seguinte TP, Cap. 1, parágrafo 7
377
“Porém, o texto prossegue com uma nova delimitação do campo a ser investigado, pois
Espinosa, ao procurar aquilo que faz da experiência política uma experiência humana, encontrará
seu necessário fundamento na natureza humana: é na condição da natureza humana, escreve ele no
parágrafo 7 dessa primeiro capítulo, que devem ser encontrados as causas e os fundamentos
naturais do poder (imperii)” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa..., pg.224
378
“A primeira novidade trazida pelo objeto experiência política é a de que sua universalidade –
“em toda parte todos os homens” – invalida repartições e classificações usadas pelas tradição
clássica e cristã que distingue os homens em bárbaros e cultos, idólatras e fiéis, gentios e cristãos.
Em segundo lugar, também é excluída a suposição tradicional (greco-romana e escolástica) de que
a política tem como causa e fundamento a presença de uma alma racional no homem e,
consequentemente, fica invalidada a tentativa para compreender a experiência e as formas políticas
em sua constituição, conservação e destruição como obra da razão ou seus desatinos – “não é dos
ensinamentos da razão” que a experiência política deve ser deduzida.” CHAUÍ, Marilena. Política
em Espinosa..., pg.224
173
379
“Com efeito os homens são constituídos de tal maneira que não podem viver sem algum direito
comum; porém os direitos comuns e os assuntos públicos foram instituídos e tratados por homens
agudíssimos, quer astutos, quer hábeis, e por isso é difícil acreditar que possamos conceber alguma
coisa aplicável a uma sociedade comum que a ocasião ou o acaso não tivessem já mostrado e que
homens atentos aos assuntos comuns e ciosos da sua própria segurança não tivessem visto.” TP,
cap.1, parágrafo 3.
380
“Os meios, porém, de que deve usar um príncipe que se move unicamente pelo desejo de
dominar para poder fundar e manter um estado, mostrou-os o agudíssimo MAQUIAVEL
desenvolvidamente, embora não pareça bastante claro com que fim.” TP, capítulo 5, parágrafo 7
381
“Miren a Spinoza. En el capítulo I del Tratado político, que está profundamente nutrido de
Maquiavelo, asistimos a la oposición entre los filósofos que trataron la política en el modo de la
utopía moral o de la crítica moral (la utopía es una forma velada de la ilusión moral en política), y
los políticos, instruidos por la experiencia indefinidamente repetida de la historia humana de las
ciudades. Junto a los políticos se encuentran hombres que han reflexionado sobre esta experiencia
concreta de los políticos, y trataron sobre el tema. (…) A pesar de que no se lo nombra es este
párrafo, en los que se habla de estos homine acutissimus, es fácil reconocer a Maquiavelo entre
ellos, pues cuando Spinoza lo nombra más adelante, le da el mismo adjetivo: acutíssimus”
ALTHUSSER, Louis. Política e história…, pg. 191
382
“MAQUIAVEL rejeita a tradição idealista de Platão, Aristóteles, e Santo Tomás de Aquino e
segue a trilha inaugurada pelos historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Livio.
Seu ponto de partida e de chegada é a realidade concreta. Daí a ênfase na verità effectuale – a
verdade efetiva das coisas. Esta é sua regra metodológica: ver e examinar a realidade tal como ela
é e não como se gostaria que ela fosse.” Sadek, Maria Tereza. “Nicolau MAQUIAVEL: o cidadão
sem fortuna, o intelectual de virtù” in WEFFORT, Francisco de.(org.) Os clássicos da política, 10
ed., São Paulo : Ática, 1998, pg.17
174
383
“En un temps où dominaient les grandes thèmes de l’idéologie politique aristotélicienne, revue
par la tradition chrétienne et l’idéalisme des équivoques de l’humanisme, MAQUIAVEL rompt
avec toutes ces idées dominantes. Cette rupture n’est pas déclarée, mais elle est d’autant plus
profonde ; A-t-on réfléchi que dans son ouvre, où il évoque constamment l’Antiquité, ce n’est pas
l’Antiquité des lettres, de la philosophie et des arts, de la medecine et du droit, qui est en cours
chez touts les intellectuels que MAQUIAVEL invoque, mais une tout autre antiquité, dont
personne ne parle, l’antiquité de la pratique politique ? A-t-on assez réfléchi que dans cette ouvre
qui parle constamment de la politique des anciens, il n’est pratiquemente jamis question des grands
théoriciens politiques de l ‘Antiquité, jamais question de Platon et d’Aristote, jamais question de
Cicéron et des stoiciens ? » ALTHUSSER, Louis. La solitude de MAQUIAVEL, disponível em
http://multitudes.samizdat.net/La-solitude-de-Machiavel, acessado em 05/09/12
384
« Je crois qu’il faut aborder MAQUIAVEL d’un autre point de vue, et suivre en cela l’intuition
de Gramsci. Gramsci a écrit que Le Prince était un Manifeste politique. Or le propre d’un
Manifeste politique si on peut le considérer dans son modele idéal est de ne pas être un pur
discours théorique, un pur traité positif. Ce n’est pas que la théorie soit absente d’un Manifeste :
s’il ne contenait des éléments positifs de savoir, il ne serait qu’une proclamation dans le vide. Mais
Manifeste politique, qui donc veut produire des effets historiques, doit s’inscrire dans un tout autre
champ que celui de la connaissance pure : il doit s’inscrire dans la conjoncture politique où il veut
agir, et s’ordonner tout entier à la pratique politique provoquée par cette conjoncture, et par le
rapport des forces qui la détermine. On dira que c’est là une recommandation tout à fait banale,
175
mais la question se complique sérieusement quand on observe que cette inscription dans la
conjoncture politique objective, extérieure, doit aussi être représentée de l’intérieur du texte même
qui la pratique, si l’on veut inviter celui qui lit le texte du Manifeste, à se reporter lui-même à cette
conjoncture en connaissance de cause, et à mesurer exactement la place qu’occupe ce Manifeste
dans cette conjoncture. Autrement dit, pour que le Manifeste soit vraiment politique, et réaliste-
matérialiste, il faut que la théorie qu’il énonce soit non seulement énoncée par le Manifeste, mais
située par lui dans l’espace social où il intervient et où il pense. » ALTHUSSER, Louis. La
solitude de MAQUIAVEL, disponível em http://multitudes.samizdat.net/La-solitude-de-Machiavel,
acessado em 05/09/12 .
385
Excede os limites deste trabalho uma análise pormenorizada da biografia de MAQUIAVEL e
das circunstâncias e intenções da redação de cada uma de suas obras. Sobre o tema há farta
literatura dentre a qual remetemos o leitor a: Leffort, Claude. Le Travail de l’Oeuvre Machiavel,
Ed. Gallimard, 1972; Skinner, Quentin. MAQUIAVEL, Porto Alegre : L&PM, 2010 ; Sadek, Maria
Tereza. “Nicolau MAQUIAVEL: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù” in WEFFORT,
Francisco de.(org.) Os clássicos da política, 10 ed., São Paulo : Ática, 1998; NEGRI, Antonio. O
poder constituinte...
386
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, cap. 39, São Paulo:
Martins Fontes, 2007, pg.121
176
387
“Mas é preciso dizer também que Espinosa compõe o Tratado teológico-político na urgência de
circunstâncias terríveis. Se a acusação de ateísmo, particularmente, só se dirigisse a sua pessoa, ele
poderia não ter respondido, mas ela se dirigia também a seus amigos, em particular aos
republicanos, dos quais era próximo e que poderia ser enlameados e comprometidos com a
acusação. A liberdade de filosofar estava comprometida, era necessário inventar condições
políticas que a garantissem. (...) O risco da filosofia implica o da luta permanente, é seu caráter
automaticamente político e é uma lição do Tratado teológico-político.” SCALA, André.
Espinosa...pg.73/74
177
pelos Estados da Holanda, e que Espinosa seja o único autor não católico a ter o
nome colocado no Índex da inquisição, já depois de sua morte em 1690388.
388
“Entre 1670, data da publicação do Teológico-político, e novembro de 1677, ano da publicação
dos Opera posthuma, contam-se 48 resoluções das autoridades holandesas civis e eclesiásticas
contra as obras de Espinosa, único autor não católico a ter o nome colocado no Índex, a partir de
1690.” CHAUÍ, Marilena. A Nervura do real... pg.23
389
“Aproveitando-se das derrotas holandesas na guerra contra a Inglaterra, da aliança da Holanda
com a França católica (ou papista) e da recusa da Jan de Witt em atender a inúmeros pedidos de
excomunhão e de censura, assim como a inúmeras exigências econômicas e políticas dos
gomaristas, os pregadores calvinistas açulam o povo contra os De Witt, enquanto o Partido
Orangista dá um golpe de Estado contra o Partido dos Regentes.
No dia 20 de agosto de 1672, os irmãos De Witt são massacrados pelo povo nas ruas de Amsterdã.
Espinosa escreve um cartaz: Ultimi barbarorum (“último dos bárbaros”), mas é impedido por um
amigo de colá-lo nos muros da cidade. Termina a república e tem início a monarquia
constitucional holandesa.” CHAUÍ, Marilena. Espinosa uma filosofia da liberdade... pg. 29.
178
Maquiavel é famoso pela distinção entre uma moral que seria própria
da vida privada e os afetos e ações que são úteis à prática política. A virtú do
príncipe maquiaveliano nada tem em comum com a virtude cristã de valores
transcendentes390. A política é o campo dos conflitos humanos, dos afetos
próprios da natureza humana, tanto os nobres quanto os mais vis, pois, como diz o
próprio autor: os homens “são ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante os
perigos, ávidos de lucro.”391 O autor florentino considera os homens tal como são
390
Excede os objetivos deste trabalho tecermos análise sobre a virtú MAQUIAVELiana, assim
como sobre a fortuna, nossos objetivos se limitam a destacar algumas interseções entre o
pensamento Maquiaveliano e a obra de Espinosa. Sobre MAQUIAVEL remetemos o leitor
novamente a: Leffort, Claude. Le Travail de l’Oeuvre Machiavel, Ed. Gallimard, 1972; Skinner,
Quentin. MAQUIAVEL, Porto Alegre : L&PM, 2010 ; Sadek, Maria Tereza. “Nicolau
MAQUIAVEL: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù” in WEFFORT, Francisco de.(org.)
Os clássicos da política, 10 ed., São Paulo : Ática, 1998; NEGRI, Antonio. O poder constituinte...
391
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, cap.XVII
179
e não com qualquer juízo de valor sobre como deveriam ser. A política em
Maquiavel é o campo dos conflitos entre homens, e não entre princípios392.
392
« Ce qu’on réprouve chez lui ; c’est l’idée que l’histoire est une lutte et la politique rapport avec
des hommes plutôt qu’avec des principes. » Merleau-Ponty, Maurice. Note sur Machiavel,
disponível em http://www.caute.lautre.net/spip.php?article1002, acessado em 06/09/12
393
TP, Cap. 1, parágrafo 2
394
“Partiré de esta simples observación: Maquiavelo habla muy de vez en cuando del “hombre”, o
de la “naturaleza humana”: habla con mayor frecuencia, cuando habla de su deseo, de su maldad,
etc. De su gusto por la apariencia…, habla de los hombres en plural. Y este plural no es tanto la
marca de una generalización como la marca de una colectividad, con esto quiero decir, la
designación de hombres considerados en grupo dentro de sus relaciones sociales y políticas. Por
ejemplo, el sentido de esta infinidad del deseo humano. Parecería que Maquiavelo hablara de esto
como si se tratase de un atributo originario de la naturaleza humana. Pero en realidad, los ejemplos
que da son siempre ejemplos políticos sacados de situaciones políticas concretas.” ALTHUSSER,
Louis. Política e Historia...pg.230
180
395
“A decir verdad, creo que podría sostenerse que la antropología maquiavélica no sirve de
fundamento a su teoría política, porque no es una verdadera antropología. Sólo tiene la apariencia
de serlo, no tiene ni su realidad ni su estatuto. Es otra cosa.” ALTHUSSER, Louis. Política e
Historia...pg.230
396
“De ningún modo tenemos en Maquiavelo el equivalente de una teoría antropológica genética
como encontramos en HOBBES o en Spinoza.” ALTHUSSER, Louis. Política e Historia...pg.229
397
“De buen grado concluiría, pues, que la ausencia de deducción genética de las formas sociales y
políticas a partir de una teoría de la naturaleza humana denuncia el carácter artificial de la
antropología maquiavélica. Digamos: de hecho, construyó como antropología justo lo que
necesitaba como contenido y como concepto (el deseo infinito) para rechazar toda antropología
ética o religiosa; no dio demasiados conceptos ni si tomó el trabajo de fundar sobre ellos su teoría
política, por la razón fundamental de que, bajo la apariencia superficial de una antropología (o de
una teoría de la naturaleza humana), describe, de hecho, comportamientos políticos y sociales.”
ALTHUSSER, Louis. Política e Historia...pg.232
181
398
NEGRI, Antonio. O poder constituinte...pg. 148
« Quand nous le lisons, nous somme saisis par lui comme par notre oubli. Par cette étrange
familiarité comme dit Freud, celle d’un refoulé” ALTHUSSER, Lous. La solitude de
MAQUIAVEL...
399
ALTHUSSER, Louis. La solitude de MAQUIAVEL, disponível em
http://multitudes.samizdat.net/La-solitude-de-Machiavel, acessado em 05/09/12 .
400
« C’est peut-être là le point extrême de la solitude de Machiavel d’avoir occupé cette place
unique et précaire dans l’histoire de la pensée politique entre une longue tradition moralisante
religieuse et idéaliste de la pensée politique, qu’il a refusée radicalement, et la nouvelle tradition
de la philosophie politique du droit naturel qui allait tout submerger et dans laquelle la bourgeoisie
montante s’est reconnue. La solitude de Machiavel c’est de s’être libéré de la première tradition
avant que la seconde ne submerge tout. » ALTHUSSER, Louis. La solitude de MAQUIAVEL...
401
« J’irais jusqu’à suggérer que Machiavel est peut être un des rares témoins de ce que
j’appellerai l’accumulation primitive politique, un des rares théoriciens des commencements de
l’État national. Au lieu de dire que l’État est né du droit et de la nature, il nous dit comment doit
naître un Etat s’il veut durer, et être assez fort pour devenir l’État d’une nation. Il ne parle pas le
182
langage du droit, il parle le langage de la force armée indispensable à constituer tout Etat, il parle
le langage de la cruauté nécessaire aux débuts de l’État, il parle le langage d’une politique sans
religion qui doit à tout prix utiliser la religion, d’une politique qui doit être morale mais pouvoir ne
pas l’être, d’une politique qui doit refuser la haine mais inspirer la crainte, il parle le langage de la
lutte entre les classes, et quant au droit, aux lois et à la morale, il les met à leur place,
subordonnée. » ALTHUSSER, Louis. La solitude de MAQUIAVEL...
402
Apud CHAUÍ, Marilena. A nervura do real...pg.35
403
“Não seria preciso dizer com Yovel que “raramente, se alguma vez, houve filósofo tão solitário
quanto Baruch Espinosa”? Não se trata, evidentemente, da solidão social do eremita, pois sua
biografia, suas cartas e sua adesão ao Partido Republicano estão longe dessa imagem, porém da
solidão existencial como judeu, uma vez que, mesmo depois de abandonar a congregação judaica e
adentrar na comunidade internacional dos sábios, nunca deixou de ser visto como “o nosso judeu
de Voorburg”, nas palavras de uma carta de Huygens. Banido da congregação judaica, também
permaneceu desprovido de estatuto civil na república holandesa; filho de imigrantes que falava
português e espanhol, aprendendo o hebraico na Yeshiva e, tardiamente, o latim, não tinha afinal
língua alguma; num mundo em que a identidade pessoal era conferida pela religião, não possuía
nenhuma. A doutrina que ensinou não foi compreendida nem pelos amigos mais íntimos, e os
filósofos racionalistas não lhe puderam dar guarida, porque ultrapassou em radicalidade Descartes,
mas sem aceitar o ceticismo deísta. Sua ética do amor intelectual de Deus, singular e difícil, não
foi escrita para todos e muito menos para a massa, e sim para uns poucos que pudessem partilhar
seu “ensinamento altamente exotérico”” CHAUÍ, Marilena. A nervura do real...pg.35
183
3.2.3
Imperium e instituições
“Finalmente, uma vez que todos os homens, sejam bárbaros ou cultos, onde
quer que se juntem formam costumes e um estado civil...”
409
Sobre o tema remetemos o leitor ao nosso capítulo 2, quando da discussão acerca da relação
entre direito civil e direito natural.
410
“E, indo às razões, direi, vendo primeiro o lado dos romanos, que se deve dar a guarda de uma
coisa àqueles que tem menos desejo de usurpá-la. E, sem dúvida, se considerarmos o objetivo dos
nobres e o dos plebeus, veremos naqueles grandes desejo de dominar e nestes somente o desejo de
não ser dominados, e por conseguinte, maior vontade de viver livres, visto que podem ter menos
esperança de usurpar a liberdade do que os grandes; de tal modo que, sendo os populares
encarregados da guarda de uma liberdade, é razoável que tenham mais zelo e que, não podendo
eles menos apoderar-se dela, não permitirão que outros se apoderem.” MAQUIAVEL, Nicolau.
Discursos sobre a primeira década de Tito Livio... pg.24
411
“Além disso, é certo que não há ninguém que não goste mais de governar do que ser
governado: ninguém cede voluntariamente o comando a outrem...” Tratado Político, Cap. VII, § 5º
412
“Divergindo de seus contemporâneos, que não duvidam da abominável imagem “maquiavélica”
de MAQUIAVEL, Espinosa elogia o “penetrante florentino” como defensor da liberdade política,
e como o autor de O Príncipe, também o do Tratado político afirma que os homens não desejam
ser governados. Entretanto, dessa constatação, MAQUIAVEL obtivera uma consequência precisa:
o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado é pura negatividade que só encontra
positividade na figura do Príncipe. Espinosa, porém, depois de constatar que, por natureza, os
186
Nosso filósofo não espera dos homens nada além do que a natureza
humana, passional e conflitiva, já não tenha demonstrado pela experiência.
Espinosa não propõe nenhum projeto pedagógico que se arvore na ambição de que
os governantes ou a multidão guiem-se pela razão ou segundo princípios morais
homens não desejam ser governados, disso obtém uma outra consequência, positiva: por isso
mesmo todos desejam governar e não ser governados. Pode, então, concluir que o desejo do povo é
ser o sujeito da ação política e por isso a democracia é o mais natural dos regimes políticos”
CHAUÍ, Marilena. A nervura do real... pg.38
413
“Percebe-se, então, que nem o número de governantes, nem o caráter eletivo ou representativo
dos governos determinam a forma do corpo político. Esta é determinada exclusivamente pela
proporção de poder que se estabelece entre a massa [multidão] e a soberania.” CHAUÍ, Marilena.
“Direito é potência – experiência e geometria no Tratado Político” em Política em Spinoza... p.253
414
“Os homens operam constituindo um indivíduo coletivo ou complexo, a multitudo, e instituem
o imperium, como lemos no parágrafo 2 do capítilo III do Tratado político, ‘o corpo e a mente do
poder’ (...) dotado de toda potência que seus agentes lhe derem: o imperium é o direito natural
comum ou coletivo cuja ação é o ânimo e a mente da massa. Ao ser instituído como poder
soberano, esse direito coletivo implica simultaneamente um processo de distribuição de poderes,
determinando as duas normas universais do campo político e as formas particulares dos regimes
políticos. São normas universais: 1) é necessário que a potência soberana seja inversamente
proporcional à potência dos indivíduos tomados um a um ou somados, isto é, a potência soberana
– o imperium como direito civil – deve ser incomensurável ao poder dos cidadãos – o direito
natural individual – tomados um a um ou somados, pois o imperium é a potência da multitudo
expressa no direito civil; 2) é necessário que a potência dos governantes seja inversamente
proporcional à dos cidadãos, mas agora em sentido inverso ao anterior, isto é, tomados
coletivamente, os indivíduos ou s multitudo devem ter mais potência do que o gevernante, pois o
poder coletivo ou potência e direito da multitudo não se identificam com ninguém.” CHAUÍ,
Marilena. Política em Espinosa...pg. 170
187
transcendentes415. É no jogo mesmo das paixões, das ambições, dos conflitos que
a política espinosana se constitui. É preciso pensar uma democracia que se
constitua e se preserve no seio da imaginação, em meio às ambições e desejos dos
homens, no universo passional dos mais “bárbaros ou cultos”.
415
“Espinosa é o primeiro antropólogo da democracia moderna visto que originalmente propôs a
questão de como o auto-governo da multidão seria possível diante do fato de que esta – seguindo a
tradição, ele a chama de vulgus – se orienta constantemente por noções morais, imagens e
sensações, em imaginationes, assim como por manifestações de avidez, ira, inveja e anseio por
honra e não por ideias racionais. Espinosa não perde tempo com a teoria da adulação, que mais
tarde alcançou tanto sucesso, a de querer alçar a multidão sob o ponto de vista da razão ou da
maioridade lógica.” Sloterdijk, Peter. O desprezo das massas – ensaio sobre lutas culturais na
sociedade moderna. Estação liberdade, São Paulo, 2002, pp. 52-53
416
“Mostramos, por outro lado, que a Razão pode bem conter e governar as emoções, mas vimos
que o caminho ensinado pela razão é muito difícil; aqueles que, por isso, se persuadem ser possível
levar a multidão, ou os homens ocupados com os negócios públicos, a viver segundo os preceitos
da Razão, sonham com a idade de ou dos petas, isto é, comprazem-se na ficção.” Tratado Político,
Cap. I, § 5º.
188
417
“É no fundamento racional, portanto, das instituições e não no poder dos governantes que
Spinoza deposita a ênfase de sua análise política.” RIBEIRO, Luis Antônio. A idéia de democracia
em Spinoza. Tese de doutorado. IFCS-UFRJ, Rio de janeiro, 2005, p. 157.
418
“Da facilidade de se corromperem os homens” é o título do capítulo 42 do Livro primeiro dos
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, ed. Martins Fontes, São Paulo, 2007, p. 131.
419
“O papel das instituições traçado por Spinoza, o conduz para uma tendência já expressa no
século XVI por MAQUIAVEL. Trata-se, portanto, de uma concepção republicana e materialista
do fenômeno institucional, de maneira a determinar que as instituições, na política, ocupam o
centro dos processos desta natureza, em lugar das virtudes individuais dos governantes.”
GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza: uma cartografia da
imanência, Rio de janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 188.
189
420
“Apesar de a sociedade comum se encontrar conforma à razão, isso não impede que os seres
humanos se oponham a ela, afinal nem todos os seres humanos são racionais. Aliás, Spinoza deixa
muito claro que não necessariamente os seres humanos se tornam racionais. Disso se deduz a
necessidade de existência das instituições que, mediante um regime de promessas de recompensas
e de ameaças de punição, sejam capazes de articular medo e esperança naqueles que não vivem
sob a conduta da razão e os levar, ao produzir tais afetos, a se conformar ao ingenium
coletivamente constituído.” GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza:
uma cartografia da imanência, Rio de janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 188.
190
421
Cabe aqui a ressalva de que, pelos limites deste trabalho, nosso intuito ao tratar dos desenhos
institucionais dos regimes políticos em Espinosa restringe-se a exemplificar as instituições que na
monarquia e aristocracia constituem instrumentos de contenção do poder e expressão da potência
da multidão. Excede os limites de nosso trabalho descrevermos todas as características, diferenças
e eventuais processos de transição entre democracia, aristocracia e monarquia. Sobre o tema
remetemos o leitor a GUIMARAENS, Francisco de. Ob. cit. pp. 271-284
422
“Na verdade, porém, Espinosa propõe um remédio contra a causa da tirania; o Tratado Político.
De fato, logo na abertura do tratado, como vimos, Espinosa afirma que a estabilidade, a segurança
e a paz de uma república não podem se fundar nas virtudes privadas dos governantes, mas devem
apoiar-se no ordenamento institucional ( nas res ordinandae), de maneira que, quer sejam
passionais ou racionais, virtuosos ou viciosos, os governantes só possam se guiar pelo que as
instituições obrigam. Por esse motivo, cada um dos capítulos dedicados às diferentes formas
políticas apresenta para cada uma delas um conjunto de instituições públicas capazes de garantir
que costumes, leis e práticas sociopolíticas fundem e conservem uma forma política segundo as
exigências do direito natural...” CHAUÍ, Marilena. “A instituição do campo político” em Política
em Espinosa... p. 192.
191
3.3.3.1
A monarquia espinosana
423
“Spinoza, por sua vez, leva às últimas consequências sua concepção acerca das paixões. Se
todos – governantes e governados – são submetidos às paixões, nada justifica a crença de que
alguns são mais aptos a governar do que outros. Deste modo, qualquer modelo de organização do
Estado deve apontar para a democratização das instituições, pois a racionalidade política é sempre
limitada individualmente e virtuosa coletivamente. Só há racionalidade política adequada quando
constituída por muitos participantes.” GUIMARAENS, Francisco de. Dois modelos de república:
Spinoza contra os federalistas, mimeo.
192
cenário, nos cumprindo agora observar, apenas, que nosso filósofo escreve
sabendo da concepção absoluta a respeito da monarquia que inspira a maioria dos
debates de sua época. Por isso, não é estranho que Espinosa faça algumas
colocações explicitamente críticas a respeito da concentração do poder político
absolutamente nas mãos de um só.
424
“Estão, sem dúvida, muito enganados os que creem que pode acontecer um sozinho obter o
direito soberano da cidade. O direito, efetivamente, determina-se só pela potência, como
mostramos no capítulo II, e a potência de um só homem é, de longe, incapaz de sustentar tão
grande peso. Daí acontecer que aquele a quem a multidão elege rei chama para junto de si
comandantes, conselheiros ou amigos, aos quais confia a sua salvação e a de todos, de tal modo
que o estado, que se crê ser absolutamente monárquico, na prática, é realmente aristocrático, não
de modo manifesto, mas tácito, e por isso mesmo péssimo. A isto acresce que o rei, se é criança,
doente ou sobrecarregado pela velhice, é rei precariamente, e quem na realidade tem o poder
soberano são os que administram os superiores assuntos de estado ou que estão próximos do rei.
Isto, para já não falar do rei que, submetido à libidinagem, gere muitas vezes tudo consoante o
capricho desta ou daquela concubina ou favorito.” TP, cap VI, parágrafo 5
193
ser observados por este, assim como pelos seus cidadãos. Diz Espinosa no
parágrafo 1 do capítulo VII do TP: “não repugna de modo algum à prática que se
constituam direitos tão firmes que nem o próprio rei os possa abolir”.
425
Voltaremos ao tema do direito de resistência no nosso último capítulo
426
“E em parte nenhuma, que eu saiba, se escolhe um monarca sem absolutamente nenhumas
condições expressas. E isto não repugna à razão nem à obediência absoluta que é devida ao rei;
com efeito, os fundamentos do estado devem ser tidos como decretos eternos do rei, de tal maneira
que os seus funcionários lhe obedecerão completamente se, quando ele der alguma ordem que
repugne aos fundamentos do estado, se negarem a executar o que ele mandou.” TP, cap. VII,
parágrafo 1
194
Os reis, com efeito, não são deuses, mas homens que se deixam muitas
vezes apanhar pelo canto da sereia. Se, por conseguinte, dependesse tudo da
vontade inconstante de um só, nada estaria fixo. Assim, o estado
monárquico, para ser estável, deve estar instituído de modo que tudo se faça
de acordo somente com o decreto régio, isto é, que todo o direito seja
vontade do rei explicitada, mas não de modo que toda a vontade do rei seja
direito TP, cap.VII, parágrafo 1.
Neste sentido, para que o rei tenha sempre ouvidos para o que é de
interesse do bem comum, Espinosa prevê, para seu estado monárquico, a
instituição de um conselho, formado por numerosos cidadãos, escolhidos para
exercerem mandato temporário, o qual o rei é obrigado a consultar antes de
qualquer decisão427. O papel deste conselho é defender os direitos fundamentais
do estado, aqueles que podem, inclusive, limitar a atuação do rei, além de
promulgar as instituições e decretos do rei, cuidar de sua execução, bem como de
toda a administração do estado e da educação dos filhos do rei428.
427
“A primeira tarefa deste conselho será defender os direitos fundamentais do estado, dar
conselhos sobre o que deve fazer-se, para que o rei saiba o que decidir sobre o bem público e, além
disso, para que nada lhe seja lícito decidir sobre alguma coisa antes de conhecido o parecer deste
conselho.” TP, cap. VI, parágrafo 17.
428
Sobre o tema: TP, capítulo VI, parágrafos 15 a 20 e capítulo VII, parágrafos 3 a 5.
429
Sobre estas características do conselho e outras: TP, capítulo VI, parágrafos 15 a 26, e capítulo
VII, parágrafos 4 a 7.
195
430
Podemos ressaltar, ainda, que tal desenho institucional monárquico, em que o poder do rei é
limitado pela participação dos conselhos de cidadãos, permite à alguns comentadores de Espinosa
aproximarem suas idéias à organização institucional das monarquias constitucionais. Neste
sentido: “...l’égalisme de la monarchie spinoziste correspond à l’hypothèse d’une « monarchie
burgeoise », et paraît anticiper sur des régimes « présidentiels » ou « impérialiste » à venir...”
BALIBAR, Etienne. Spinoza et la politique...p.90
431
TP, capítulo VI, parágrafo 26 a 28
432
TP, capítulo VI, parágrafo 30
433
TP, capítulo VI, parágrafo 12 e capítulo VII, parágrafo 8.
196
434
TP, capítulo VII, parágrafo 8
435
TP, capítulo VI, parágrafo 10
436
TP, capítulo VI, parágrafo 34
437
« C’est le peupleen armes qui exige (et assure), tout d’abord de fait (de par la présence continue
de sa force), la loyauté du roi et le bon exercice du pouvoir pour lequel il a été par le peuple,
choisi. » BOVE, Laurent. La strátegie du conatus...Pg. 283
438
“Os cidadãos armados são, politicamente, senhores de si, na medida em que o poder do rei
somente se afirma mediante a busca do consenso da multidão. Conserva-se, portanto, a liberdade
ao se inscrever na expressão da potência da multidão a medida do poder do rei” GUIMARAENS,
Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza...pg.247
439
“No que respeita à religião, absolutamente nenhum templo deve ser edificado à custa das urbes,
nem devem ser estatuídos direitos em matéria de opiniões, a menos que sejam sediciosas e
197
Por fim, vale destacar que a monarquia espinosana tem ainda como
importante instituição uma delimitação muito restrita daqueles que podem ser
considerados nobres. Espinosa identifica a nobreza como uma classe perigosa à
estabilidade do estado. Próximos demais do poder e dedicados ao ócio, os nobres
são indivíduos propensos a conspirações, traições, crimes e golpes de todo gênero.
Se o pior inimigo do estado é o inimigo interno, dentre os cidadãos de uma
monarquia os mais perigosos são os nobres. Assim, no seu desenho institucional
do estado monárquico, Espinosa limita a condição de nobreza somente àqueles
descendentes diretos do rei440. Mais uma vez nosso filósofo tenta afastar, pela
própria estrutura institucional do estado, o risco de tirania.
3.2.3.2
A aristocracia espinosana
444
TP, capítulo VIII, parágrafo 2
445
TP, capítulo VIII, parágrafo 6
446
TP, capítulo VIII, parágrafo 11 e 13
447
“Deste modo, qualquer modelo de organização do Estado deve apontar para a democratização
das instituições, pois a racionalidade política é sempre limitada individualmente e virtuosa
coletivamente. Só há racionalidade política adequada quando constituída por muitos
participantes.” GUIMARAENS, Francisco de. Dois modelos de república: Spinoza contra os
federaliatas, mimeo.
200
“não há aqui que temer, pelo fato de o estado ser absolutamente delegado no
conselho, algum perigo de servidão humilhante para a plebe.”448
448
TP, capítulo VIII, parágrafo 6
449
TP, capítulo VIII, parágrafo 7
450
TP, capítulo VIII, parágrafo 9
451
TP, capítulo VIII, parágrafo 47
452
TP, capítulo VIII, parágrafo 10
201
453
Sobre o credo mínimo proposto por Espinosa no seu TTP remetemos o leitor a nossa análise do
tema no capítulo 2.
454
TP, capítulo VI, parágrafo 46
455
TP, capítulo VI, parágrafo 49
456
TP, capítulo VIII, parágrafo 20 a 26
457
TP, capítulo VIII, parágrafo 37 a 41
458
TP, capítulo VIII, parágrafo 29 a 35
459
TP, capítulo IX, parágrafo 1
202
3.3
“Na verdade, se há estado que pode ser eterno, é necessariamente aquele cujos direitos,
uma vez instituídos, permanecem inviolados. Porque a alma do estado são os direitos.
Mantidos estes, mantém-se necessariamente o estado”
Espinosa. TP, capítulo X, parágrafo 9.
460
TP, capítulo IX, parágrafo 15
461
TP, capítulo IX, parágrafo 2. A indissolubilidade da federação está prevista em nossa CF/88, art
1º.
462
TP, capítulo IX, parágrafo 5. A existência de uma casa de representação federativa, senado
federal, está prevista em nossa CF/88 no art. 46.
463
A defesa da forma federativa de distribuição do poder é um aspecto que aproxima o
pensamento de Espinosa às reflexões dos Artigos federalistas norte-americanos do século XVIII.
Sobre as proximidades e antagonismos entre o pensamento de Espinosa e aquele dos federalistas
Madison, Hamilton e Jay remetemos o leitor a: GUIMARAENS, Francisco de. Dois modelos de
república: Spinoza contra os federaliatas, mimeo.
203
3.3.1
Direito natural
464
“O pensamento político spinozano, de acordo com a tendência existente no século XVII, não
deixa de investigar a questão do direito natural. São inúmeras as vezes em que Spinoza usa o
termo em questão, o que, à primeira vista, levaria a crer que ele se filia à corrente jusnaturalista.
Tal asserção, todavia, não se comprova mediante uma análise mais cuidadosa da política
spinozana. É fundamental compreender, portanto, que o termo ‘direito natural’ assume outro
sentido. Spinoza constrói um conceito que recusa qualquer dos fundamentos da doutrina do direito
natural.” GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e pollítica em Spinoza..., pg.116
204
465
« La concepcion la plus générale du droit naturel est celle d’une justice idéale, d’une loi
absolue, supérieure aux lois émanant du législateur ou ayant une origine coutumière. Celles-ci,
qualifiées de droit positif ou arbitraire, ne doivent jamais contredire les préceptes du droit naturel,
ni dans les obligations ni dans les prohibitions qu’elles établissent. La croyance au droit naturel est
donc l’expression d’un idéalisme qui, refusant de considérer la justice comme une simple
convention, s’oppose ainsa à toutes les formes de positivisme juridique » LAINGUI, André.
« Grotius et le droit pénal » in XVII siècle, nº 126, 32ª année, 1980, pg. 37/38
466
“O pressuposto do direito natural é outro, pois parte da existência do conceito de justo
independentemente de qualquer lei ou imposição. O jusnaturalismo se superpõe à norma e a
antecede. (,,,) Para o jusnaturalismo, o direito natural prevalece sobre o direito positivo sempre que
ocorrer um conflito entre ambos” VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito:
primeiras linhas, São Paulo: Atlas, 2010, pg. 40
467
“A ideia de um Direito Natural, distinto do Direito Positivo, é muito antiga. Nós a encontramos
nas manifestações mais remotas da civilização ocidental a respeito do problema da lei e da justiça,
o mesmo ocorrendo na cultura do Oriente. Todavia, é entre os pensadores gregos que a aceitação
de um Direito Natural, como expressão de exigências éticas e racionais, superiores às do Direito
positivo ou histórico, passa a ser objeto de estudos especiais, até se converter em verdadeira
“teoria”. Pode-se dizer que as linhas fundamentais dessa compreensão do Direito Natural ainda
perduram em nossa época, assistindo razão a Husserl quando nos lembra que, no tocante às ideias
universais, somos todos “funcionários” da cultura grega.” Reale, Miguel; Lições preliminares de
direito, 24 ed., São Paulo: Saraiva, 1999, pg.312
205
468
« On s’accorde pour lire dans l’Antigone de Soplocle la première affirmation de cette justice
supérieure no écrit. A son oncle Créon dont elle a enfreint l’interdiction de donner une sépulture à
Polynice, Antigone réponde : « Je ne pensais pas que tes défenses à toi fussent assez puissantes
pour permettre à un mortel de passer outre à d’autres lois, aux lois non écrites, inèbranlables, des
Dieux ! Elles ne datent celles-là ni d’aujourd’hui ni d’hier, et nul ne sait le jour où elles ont paru »
Même si Antigone invoque l’origine divine de ces lois, ses paroles expriment bien la révolte de la
droit naturel contre le droit positif. » » LAINGUI, André. « Grotius et le droit pénal » in XVII
siècle, nº 126, 32ª année, 1980, pg. 37/38
469
Sobre as consequências políticas da afirmação platônica do direito natural fundamentado em
uma ordem cosmológica a organizar a vida política consultar: GUIMARAENS, Francisco de.
Direito, ética e política em Spinoza...pg.115 a 121.
470
“O problema que se põe pela linguagem, isto é, se algo é ‘natural’ ou ‘convencional’, põe-se
analogamente também para o direito. A primeira vez que se encontra no latim pós-clássico a
expressão positivus referida ao direito é uma passagem do Commento de Calcidio ao Timeu de
Platão (esta obra de Calcidio, um neoplatônico ou comentador de Platão, foi durante um longo
tempo – até o século XII – a única fonte do conhecimento medieval de Platão). (...) Como
dissemos, a distinção conceitual entre direito natural e direito positivo já se encontra em Platão e
em Aristóteles.” BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito, São
Paulo: Ícone, 1995, pg.16
“A ideia de Direito Natural brilha de maneira extraordinária no pensamento de Sócrates para
passar pelo cadinho do pensamento platônico e adquirir plenitude sistemática no pensamento de
Aristóteles, ordenando-se segundo estruturas lógicas ajustadas ao real. Seu conceito de lei natural,
como expressão da natureza das coisas, não se esfuma em fórmulas vazias, mas tem a força de
uma forma lógica adequada às constantes da vida prática. Sendo expressão da natureza humana, o
Direito Natural é igual para todos os homens, não sendo um para os civilizados atenienses e outro
para os bárbaros.” Reale, Miguel. Ob.cit. pg.312/313
E ainda: “A filosofia grega também relativizava as leis humanas. Para os sofistas, o direito natural
tinha como base a natureza humana, em que deveriam se enfatizar a liberdade e a igualdade dos
homens. Os sofistas invocam o direito natural para destacar o caráter arbitrário e artificial do
Estado. Posteriormente, Sócrates, Platão e Aristóteles distinguiram o justo segundo a natureza e
segundo a lei. O justo por natureza está no pensamento de cada um dos homens. O direito natural
orienta o sentido do direito positivo.” VENOSA, Sílvio de Salvo. Ob. Cit. Pg.41
206
471
“A doutrina estoica tem, para nós juristas, uma significação especial, por ter exercido imensa
influência sobre os juristas romanos, por intermédio especialmente de Panêcio e Posidônio, que
propagaram o estoicismo no mundo romano, no século I a.c. Os princípios de Zenão e Crisipo,
sobre o dever que tem todo ser humano de viver de conformidade à índole e às tendências do povo
romano, passaram a informar a Jurisprudência. Panteístas que eram, os estoicos não faziam
diferença entre as leis naturais e as que regem a conduta humana, compreende-se que o
jurisconsulto Ulíano tenha concebido o jus naturale como sendo aquele que a natureza ensinou a
todos os animais (quod natura omnia animália docuit).” Reale, Miguel. Ob.cit. pg.313
472
“O Jus gentium e o jus civile correspondem à nossa distinção entre direito natural e direito
positivo, visto que o primeiro se à natureza (naturalis ratio) e o segundo às estatuições do populus.
Das distinções ora apresentadas temos que são dois os critérios para distinguir o direito positivo
(jus civile) do direito natural (jus gentium): a) o primeiro limita-se a um determinado povo, ao
passo que o segundo não tem limites; b) o primeiro é posto pelo povo (isto é, por uma entidade
social criada pelos homens), enquanto o segundo é posto pela naturalis ratio.” BOBBIO,
Norberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito, São Paulo: Ícone, 1995, pg.18
473
“Entre os teólogos medievais, encontra-se outra explicação do direito natural. Santo Tomás de
Aquino, que assumiu oficialmente a posição de prócer da Igreja, existe uma perfeita gradação
entre três tipos fundamentais de leis: a lei eterna, razão divina que rege o universo e o
comportamento humano; a lei natural, que é reflexo da lei eternaque o homem conhece por meio
da razão; e a lei humana, criação do homem, legislação que é o instrumento para ordenar a
convivência. Para essa corrente, a fonte do direito natural é a vontade de Deus. Assim, o direito
natural é conhecido de todos, em qualquer local, em qualquer época. O direito natural busca
assegurar o bem comum com a aplicação da justiça. Essa posição admite a supremacia do direito
natural sobre as leis humanas.” VENOSA, Sílvio Salvo. Ob. Cit. Pg.42
474
« C’est pourquoi, jusqu’au XVII siècle, jusqu’à l’apparition de l’Ecole du droit naturel, le droit
naturel demeurera comme l’accessoire de la théologie ou du droit canonique. » LAINGUI, André.
« Grotius et le droit pénal » in XVII siècle, nº 126, 32ª année, 1980, pg. 38
207
475
Nos cumpre aqui ressaltar o importantíssimo papel do jurista holandês Hugo Grocio,
considerado por muitos o pai do jusnaturalismo moderno. Foi Grocio, em sua obra Direito da
guerra e da paz, o primeiro a defender sobre bases laicas o direito de natureza. Sobre seu legado
destacamos: « Quoi qu’il en soit, l’effort des continuateurs de Grotius consistera à établir le droit
naturel sur des bases laiques, nécessaires pour le rendre obligatoires pour tous les hommes,
quelquer religion ou croyances qu’ils professent... » LAINGUI, André. « Grotius et le droit pénal »
in XVII siècle, nº 126, 32ª année, 1980, pg. 39
476
Francisco de Guimaraens ao analisar a relação entre o direito natural em Espinosa e o
pensamento jurídico acerca do jusnaturalismo separa em duas vertentes o pensamento jurídico
acerca dos direitos naturais: o jusnaturalismo clássico e o jusnaturalismo moderno. A primeira
seria aquela desenvolvida até o medievo, sendo possível distinguir nela duas tendências, a saber, o
jusnaturalismo clássico da Antiguidade, fundado do pensamento cosmológico, e o jusnaturalismo
clássico influenciado pela doutrina cristã, já no medievo. A segunda vertente do jusnaturalismo,
aquela do jusnaturalismo moderno, tem como fundamentos o humanismo, o individualismo e o
racionalismo. Sobre o tema: GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política..., pgs. 115 a
148
Sobre o jusnaturalismo moderno destacamos: “Para a modernidade hegemônica, a razão é índice
de expressão daquilo que o ser humano é em essência, na medida em que tal faculdade seria o
diferencial entre os homens e os animais. Com o auxílio da razão, a doutrina moderna do direito
natural busca fundamentos para a obediência civil, construindo um arcabouço teórico que faz uso
da moral para pensar a legitimidade do direito. Portanto, pode-se entender que o direito natural
moderno é, na verdade, impulsionado pela busca de uma teoria da moral racionalmente válida que
sustente a ordem político-jurídica instituída.”GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e
política em Spinoza...pg.142
208
Vê-se claramente, (...), que no estado natural não há a noção de pecado (...):
ninguém, com efeito, é obrigado a agradar a outrem por direito natural, a
menos que o queira, e nenhuma coisa é boa ou má para a pessoa, senão
aquilo que em virtude da sua compleição ela decida ser um bem ou um mal.
Porque o direito natural não interdita senão o que não está no poder de
ninguém... Tratado Político, Cap. II, § 18)
477
“O direito natural é portanto, neste caso, definido como expressão da potência e construção da
liberdade. Imediatamente. Se a potentia metafísica havia sido até aqui conatus físico e cupiditates
vitais, ela é agora reinterpretada e concebida como jus naturale. A imediaticidade e a totalidade
dessa função jurídica excluem toda mediação e só admitem deslocamentos procedentes da
dinâmica interna das cupiditates.” NEGRI, Antonio. Verbete “SPINOZA, Baruch – Tratado
Político” em Dicionário de obras políticas...
209
Neste sentido, podemos destacar, ainda, que também não faz qualquer
sentido na filosofia espinosana a prática das declarações de direitos480. Muito
querida pelo jusnaturalismo moderno, a prática das declarações de direitos esteve
presente em diversas ocasiões históricas de transformação social, ou risco dela, na
modernidade481, e traz em seu bojo a afirmação da existência de direitos naturais,
inatos aos homens, a serem declarados ou enunciados. Note-se que, nestes
478 478
“D’une façon générale, l’idée d’un droit “théorique”, conçu comme une capacite à agir,
susceptible d’être ou non reconnue et exercée, est une absurdité ou une mystification.” BALIBAR,
Etienne. Spinoza et la politique...pp. 73/74
479
“... la notion de droit ne se définit pas, au départ, en rapport avec celle de devoirs. Pas plus que
la puissance qu’elle exprime, elle n’a originairement de “contraire” ou de “contrepartie”. Mais elle
a nécessairement des limites de fait...” BALIBAR, Etienne. Spinoza et la politique...p.74
480
“Spinoza nega qualquer registro da tradição transcendente do jusnaturalismo e do
contratualismo pois, ao associar o direito à potência, indica que não existe direito que não se
exerça, pois toda potência é, necessariamente, plena e atual. (...) Da mesma maneira, não há um
conjunto abstrato de direitos a ser declarado ou enunciado, como faz acreditar o jusnaturalismo.
Qualquer direito somente existe em concreto, materialmente atrelado a seu exercício e à sua
efetivação.” GUIMARAENS, Francisco de. O poder constituinte...p. 139
481
Dissemos que a prática política da declaração de direitos ocorre em ocasiões muito precisas. De
fato, na modernidade, encontramos declarações de direitos em situações revolucionárias: as
revoluções inglesas de 1640 e 1688; a independência norte-americana; a Revolução Francesa de
1789; a Revolução Russa de 1917. Também encontramos a declaração de direitos no período
posterior da Segunda Guerra Mundial, isto é, ao fenômeno do totalitarismo nazista e fascista, que
conduzem à Declaração dos Direitos Humanos de 1948. (...) tais declarações ocorrem nos
momentos de profunda transformação social, quando os sujeitos sociais tem consciência de que
estão criando uma sociedade nova ou defendendo a sociedade existente contra a ameaça de sua
extinção.” CHAUÍ, Marilena. “Direitos humanos e medo” in Fester, Antonio Carlos Ribeiro.
Direitos humanos e..., São Paulo: brasiliense, 1989, pg. 16
210
482
“Comprenons donc que le droit de chacun est toujours une partie de la puissance de toute la
nature: celle qui lui permet d’agir sur toutes les autres parties. En conséquence la mesure du droit
est aussi celle de l’individualité; (...) Comprenons également que la notion de droit correspond
uniquement à une actualité, et par conséquent à une activité. Ainsi une formule comme “les
hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits” n’aurait-elle ici aucun sens. Le fait est
que, dans la pratique, les homes ont de puissances inégales, sauf si quelque rapport de puissances
intervient pour les égaliser (un certain type d’Etat)”. BALIBAR, Etienne. Spinoza et la
politique…p.73
211
qualquer ser da Natureza não é outra senão o próprio poder de Deus, cuja
liberdade é absoluta. Tratado Político, Cap. II, § 3º
3.3.2
Estado de natureza
483
“Em oposição à tradicional doutrina aristotélica, segundo a qual a sociedade precede ao
indivíduo, Locke afirma ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade e do
Estado. Na sua concepção individualista, os homens viviam originalmente num estágio pré-
político, caracterizado pela mais perfeita liberdade e igualdade, denominado estado de natureza.”
Almeida Mello, Leonel Itaussu. “John Locke e o individualismo liberal” in WEFFORT, Francisco
de (org.), Os Clássicos da política, São Paulo: Ática, 1998, pg.84
484
Locke, John. Two treatsises of civil government, London: Everyman’s library, 1966, aput
WEFFORT, Francisco de (org.), Os Clássicos da política, São Paulo: Ática, 1998, pg.91
213
485
A concepção jusnaturalista de Locke, sua consagração do direito de propriedade como direito
natural e sua concepção do estado civil como resultado do consentimento dos cidadãos, fizeram do
autor uma forte influência nas declarações de direitos das duas revoluções burguesas que se
seguiram no século XVIII, a saber: a norte-americana de 1787 e a francesa de 1789. “A obra
política de John Locke teve uma influência considerável na intelectualidade europeia. Voltaire será
um seu ardente propagandista. Sua clareza, sua concisão, mas também sua moderação e sua
preocupação com a experiência comum fizeram dela o instrumento por excelência da luta contra a
tirania religiosa e política. As duas declarações dos direitos do homem – a norte-americana, de
1787, e a francesa de 1789 – inspiram-se diretamente nessa obra.” CHÂTELET, François et alli,
História das ideias políticas, Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2000, pg.60
486
“Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à propriedade constituem
para Locke o cerne do estado civil e ele é considerado por isso o pai do individualismo liberal”
Almeida Mello, Leonel Itaussu. “John Locke e o individualismo liberal” in WEFFORT, Francisco
de (org.), Os Clássicos da política, São Paulo: Ática, 1998, pg.88
“Com o Segundo tratado do governo civil (1690), John Locke apresentou a fórmula liberal do
Estado moderno, potência soberana e legisladora e unidade de uma multiplicidade de ‘súditos
francos’, assim como HOBBES – quarenta anos antes – apresentara sua fórmula autoritária.”
CHÂTELET, François et alli, História das ideias políticas, Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2000,
pg.60
487
Escapa aos nossos objetivos o estudo dos termos do contrato social proposto por John Locke,
nos limitamos a indicar a importância deste autor no que concerne ao tema dos limites ao poder e o
direito de resistência, bem como da tolerância religiosa, remetendo o leitor, sobre o tema, a leitura
da obra do próprio autor em Segundo tratado sobre o governo civil .
488
“O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato Hobbesiano. Em HOBBES, os
homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual, visando a preservação de suas vidas,
transferem a um terceiro (homem ou assembleia) a força coercitiva da comunidade, trocando
voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã.
Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam
livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que
possuíam originariamente no estado de natureza.” Almeida Mello, Leonel Itaussu. “John Locke e
214
discórdia, pois, cada um buscando apenas o que lhe pareça útil individualmente,
todos acabam por temer-se mutuamente, desfazem-se os laços do comum, e o
direito natural individual é reduzido à mera abstração, separado das condições
materiais de sua atualização.
490
“Na verdade não se trata de pensar que um dia o ser humano chegou a se encontrar em um
estado de total solidão, o estado de natureza, em que não havia qualquer regra de convivência ou
qualquer poder instituído. Spinoza não concebe o ser humano senão entre os demais seres
humanos. A experiência comprova que sempre houve sociedades, onde quer que existissem seres
humanos, de modo que o estado de natureza e o estado civil se diferem em razão da intensidade de
determinados afetos que se experimentam em cada uma dessas formas de expressão da potência
humana coletiva. Essa é a chave para a devida intelecção do estado de natureza e do estado civil:
os afetos.” GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência... p. 146
491
“Em estado de natureza, diz Espinosa, o direito natural é uma abstração. Em sentido
espinosano, abstração não significa hipótese lógica ou idealidade sem correspondente factual, mas
tudo quanto se encontre separado das condições que permitem sua realização, ou seja, abstrato
possui sentido ontológico. Em estado de natureza, o direito natural é abstrato porque se encontra
separado das condições de sua efetivação concreta, pois todos podendo tudo (visto não haver leis
determinando o permitido e o proibido), na realidade ninguém pode coisa alguma.” CHAUÍ,
Marilena. “Direito natural e direito civil em HOBBES e Espinosa” em Política em Espinosa...p.
297
216
uma revolução ou uma guerra externa, podem levar uma sociedade, que antes
estava organizada em estado civil, a encontrar-se em estado de natureza. O estado
de natureza, caracterizado pela falência dos laços sociais de constituição do
comum, pode constituir-se a qualquer tempo, em qualquer sociedade que se veja
conflagrada, em circunstâncias tais que somente paixões tristes acompanhem as
relações sociais492.
Nosso filósofo vai ainda mais longe e afirma que determinadas formas
de organização do político podem constituir-se em estado de natureza, ainda que
regidas por um direito civil e na vigência de um Estado. É o que Espinosa aponta
acontecer nos regimes tirânicos, onde somente o medo garante a obediência dos
cidadãos, reduzidos à condição de servos de um poder soberano. Voltaremos a
este tema no último item de nosso último capítulo, por ora destacamos, neste
sentido:
492
“ Proposons donc la réponse suivante: nul ne sait si l’humanité, à l’origine, a vécu à l’état de
nature ; mais bien des peuples doivent s’y trouver pendant le bref intervalle de temps qui sépare la
dissolution d’une société politique particulière et l’instauration, pas toujours immédiate, d’un
régime de remplacement ; état de transition, par conséquent, qui ne se réalise pas dans tous le cas,
mais lorsqu’il se réalise, est originel par rapport à la structure institucionelle qui lui succéde. »
MATHERON, Alexandre. Individu et communauté... p. 307
217
3.3.3
Direito civil
493
TP, capítulo II, parágrafo 23
494
“Se a multidão é de fato um conceito da maior importância na sua [de Espinosa] filosofia, é
porque ela permite pensar o direito como expressão e ordenação da coexistência de uma
multiplicidade de indivíduos, cada um deles com seu direito natural. Na medida em que é
expressão, ou mais espinosanamente, modificação, o direito conserva consigo a sua causa
imanente que é a multidão. E da mesma forma que a substância é causa imanente dos modos, a
potência da multidão é causa imanente do direito comum.” Aurélio, Diogo Pires, “Introdução” in
Espinosa, Baruch. Tratado Político, São Paulo: Martins Fontes, 2009, pg. LXIII
218
495
“O compromisso tomado verbalmente em relação a alguém de fazer ou, pelo contrário, de não
fazer tal ou tal coisa, quando se tem o poder de agir contrariamente à palavra dada, permanece em
vigor enquanto a vontade daquele que prometeu não se altera. (...) Portanto, se aquele que é por
direito de natureza deu próprio juiz julgou reta ou erroneamente (errar é próprio do homem) que o
compromisso tomado terá para si conseqüências mais nocivas que úteis e se considera em sua alma
que tem interesse em quebrar o compromisso, quebrá-lo-á por direito natural.” Tratado Político,
cap. II, parágrafo 12.
219
refrear uma paixão496. Assim, também o campo jurídico vai se inserir numa
mecânica afetiva própria, as regras de direito incidem sobre os afetos, e não no
campo racional. É através da mecânica afetiva das promessas de recompensas e
das ameaças de punição, da esperança e do medo, que o direito civil vai regular as
relações constituintes da multidão.
Os direitos, contudo, não podem ser invencíveis a não ser que sejam
defendidos não só pela razão, mas também pelo afeto comum dos homens;
de outra forma, se estão apoiados só no auxílio da razão, sem dúvida são
fracos e vencem-se facilmente TP, capítulo X, parágrafo 9
496
“ Mais especificamente, é porque nenhum afeto pode ser refreado a não ser por um afeto mais
forte e contrário ao afeto a ser refreado, e porque cada um se abstém de causar prejuízo a outro por
medo de um prejuízo maior. É pois, com base nessa lei que se poderá estabelecer uma sociedade,
sob a condição de que esta avoque para si própria o direito que cada um tem de se vingar e de
julgar o bem e o mal. E que ela tenha, portanto, o poder de prescrever uma norma de vida comum
e de elaborar leis, fazendo-as cumprir não pela razão, que não pode refrear os afetos, mas por
ameaças.” E IV, prop. 37, escólio 2.
497
E IV, prop. 65
220
498
Sobre o tema do positivismo jurídico, seus pressupostos históricos, principais características e
teorias remetemos o leitor a: BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do
direito, São Paulo: Ícone, 1995
221
502
“Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente de que se diz quando se afirma que
ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que entre vigência e eficácia possa existir uma
certa conexão.” KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.São Paulo: Martins Fontes, 2000,
pg.11/12
503
“O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma.
Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente
designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma
inferior.” KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.São Paulo: Martins Fontes, 2000, pg.215
Escapa aos limites deste trabalho o debate acerca da norma fundamental em KELSEN. Sobre o
tema: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.São Paulo: Martins Fontes, 2000, cap.V. E ainda:
GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza...pg.304/305
504
“Para ele (Hans KELSEN), a transcendência é máxima, absoluta. A especificidade do direito
consiste em regular sua própria produção.” NEGRI, Antonio. O poder constituinte... p.13.
223
505
“O positivismo spinozista é puramente aparente, (...) a relação multitudo-direito civil nega a
separabilidade dos dois termos e reporta o dualismo à identidade. (...) Ou seja, nega as próprias
condições nas quais é possível falar de positivismo jurídico: condições que prevêem a
transcendência do valor da lei dentro do processo de produção jurídica, que supõem uma orgânica
potência da normatividade enquanto tal – separada, portanto, eminente. O positivismo legalista não
ocorre em Spinoza porque não pode ocorrer, porque é contraditório e aberrante em relação a todas
as condições do sistema e à sua forma metafísica. O justo é um processo constituído pela
potência.” NEGRI, Antonio. Anomalia Selvagem... p. 253
224
“No que respeita à política, perguntas qual a diferença entre mim e Hobbes.
Consiste nisso: conservo o direito natural sempre bem resguardado.”
Ao contrário de Hobbes506, não é apenas como resíduo não pactuado,
passível de exercício no silêncio da lei, ou como virtualidade extrema de
resistência que nosso filósofo identifica o exercício do direito natural na sociedade
civil. Direito natural é conatus, esforço em perseverar na existência, e este se
expressa mais e melhor sob as leis comuns que na solidão do estado de natureza.
O direito civil não substitui o direito natural, mas, pelo contrário, garante as
condições materiais de seu exercício.
É impossível tornar-se livre com medo, a razão é o exercício do
comum, não da solidão, o conatus individual depende, para expressar-se, de
relações de composição com outros semelhantes a nós. Assim, o direito civil ao
garantir as relações de composição constituintes da multidão não é a alienação do
direito natural de cada um de seus constituintes, mas sim sua própria condição de
exercício. Direito civil e direito natural individual são interdependentes507. O
desejo de alegria, o desejo de liberdade são, necessariamente, desejo de
comunidade.
506
Sobre a relação entre direito natural e direito civil em HOBBES remetemos o leitor a nosso
capítulo 2, item 2.3
507
“O direito civil e o direito natural, portanto, são interdependentes, na medida em que as
potências singulares, que são a base constitutiva do estado civil, em razão de seu agenciamento
formam a potência da multidão, só se efetuam concretamente no interior do estado civil.”
GUIMARAENS, Francisco de. Cartografia da imanência...p. 158
4
508
TP, capítulo II, parágrafo 16
226
4.1
indivíduos conduzidos “como que por uma só mente” 509, um ingenium coletivo.
Se a multidão é sujeito político, ela tem uma subjetividade própria, um conjunto
de práticas, ideias e afetos comuns que determinam sua individualidade coletiva e
inscrevem, na imaginação de cada um de seus constituintes, traços do imaginário
coletivo510.
Sobre este tema cabe, logo de início, a ressalva da recusa espinosana
da transcendência. A imaginação que perpassa a multidão não é instituída por
qualquer poder transcendente, mas expressão das suas próprias relações
constituintes, de seu conatus511. Apesar dos mais diversos discursos da
transcendência se sustentarem na imaginação coletiva das multidões servis, é a
própria potência da multidão a causa imanente das ideias e afetos que constituem
seu imaginário coletivo, seja ele mais próximo da razão e, portanto, da liberdade,
ou mais povoado por ideias inadequadas e, portanto, mais servil, seja a multidão
mais unida e movida pela esperança ou pelo medo, pelo amor ou pelo ódio.
No campo afetivo já destacamos, no nosso item 3.1, c), a mecânica da
imitação afetiva que permite a Espinosa compreender a sociabilidade como
realidade imanente. Longe da ideia de um soberano que institua o campo social
através de um poder transcendente, e recusando a figura do cidadão contratante
que num cálculo racional de medo pactua a constituição da cidade por uma
transferência de direitos, o campo político em Espinosa é o terreno da experiência
do comum, a constituição de afetos comuns. Neste mesmo sentido, no campo
social espinosano os indivíduos constituintes da multidão compartilham práticas,
ideias e afetos comuns que são expressões imanentes dos laços que os unem.
509
TP, capítulo II, parágrafo 16
510
« C’est ainsi qu’à travers l’etude de l’Etat hèbreu peut se lire, dans la totalité de son sens, la
thèse spinoziste de la constitution du corps politique en fonction d’un système de significations
imaginaires. Car comme les hommes en général, abstraction faite de la société (...), chaque société
doit aussi, dans la représentation, définir son identité (c’est-à-dire son image propre) dans sa
différence avec autres société ; définir également (mais c’est la même chose) le sens de son
existence, son rapport au monde, aux autres (qu’il faut aussi signifier), et aussi son rapport à soi, à
ses besoins et ses désirs (rapport des hommes au sein de cette société et de tous à un ordre
symbolique commun qui unit chaque citoyen à une entité qui le dépasse et en laquelle se nouent
tous les fils de la logique des significations imaginaires et de l’identification...) » BOVE, Laurent.
Ob.cit. pg.201/202
511
« Le conatus de l’Etat, par lequel ce corps particulier commence d’exister, enveloppe doc un
imaginaire essentiel qui n’est (comme le Désir lui-même) manque de rien, imagination de rien,
mais puissance absolument positive de l’imaginaire, Nature naturante en quelque sorte, par
laquelle se constitue et s’institue un imaginaire naturé caractéristique d’une société particulière,
avec ses préjugés propes, sa langue, ses croyances, ses mouers, ses lois par lesquels se définit son
identité, son individualité singulière, son ingenium » BOVE, Laurent. Ob. Cit. Pg.252
228
512
« si les peuples se distinguent les une des autres par leur plus ou moins grande aptitude à la vie
sociale, la responsabilité en incombe à leurs lois et à leurs moeurs – c’est-à-dire, d’une façon ou
d’une autre, au conditionnement historico-politique auquel ils ont été soumis au cours des âges. »
MATHERON, Alexandre. Le Christ et le salut des ignorant chez Spinoza, Paris : Aubier
Montaigne, 1971, pg.158
513
EII, proposição 7
514
EV, prop. 1
229
515
TP, cap. VIII, parágrafo 47
230
516
Warren Montag atribui a ALTHUSSER um aproximação entre a imaginação em Espinosa e o
conceito de disciplina no sentido foucaultiano: “ Mais la double illusion d’un individu-sujet,
maître de lui-même et auteur de ses actions, n’est pas simplement un effet de l’imagination (le
premier des trois genres de connaissance d’après Spinoza), c’est également le centre d’un système
de superstition (avec ses appareils et ses pratiques - ALTHUSSER reconnaît en Spinoza le
premier à former le concept de discipline au sens de Foucault) qui détermine le peuple non
seulement à obéir aux prêtres et aux despotes, mais à vivre leur obéissance comme une forme de
liberté et à ne désirer rien d’autre que ce qui leur est commandé » MONTAG, Warren. Modernité
de Spinoza, extraits de la Préface de The new Spinoza, University of Minnesota Press, cool
« Theory out of bound » nº11, 1998, disponível em
http://hyperspinoza.caute.lautre.net/article.php3?id_article=968, acessado em 20/10/12 (grifo
nosso)
517
“Certamente, nada a ver com uma ideia transcendente, nem com uma superestrutura ideológica:
nada a ver tampouco com uma infra-estrutura econômica, já qualificada em sua substância e
definida em sua forma e utilização. Mas não deixa de ser verdade que o diagrama age como uma
causa imanente não-unificadora, estendendo-se por todo o campo social: a máquina abstrata é
como a causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relações; e essas relações de força
passa, “não por cima”, mas pelo próprio tecido dos agenciamentos que produzem” DELEUZE,
Gilles. Foucault, São Paulo: Brasiliense, 2005, pg.46 (Grifo nosso)
231
523
“Que o tempo da vida se torne tempo de trabalho, que o tempo de trabalho se torne força de
trabalho, que a força de trabalho se torne força produtiva: tudo isto é possível pelo jogo de uma
série de instituições que esquematicamente, globalmente, as define como instituições de sequestro.
(...) um grande mecanismo de transformação: como fazer do tempo e do corpo dos homens, da
vida dos homens, algo que seja força produtiva. É este conjunto de mecanismo que é assegurado
pelo sequestro.” FOUCAULT, Michel, A verdade e as formas jurídicas, 3ª Ed. Rio de Janeiro:
Nau, PUC-Rio, 2011, pg. 122
524
“É o problema das grandes oficinas e das fábricas, onde se organiza um novo tipo de vigilância.
É diferente do que se realizava nos regimes das manufaturas do exterior pelos inspetores,
encarregados de fazer aplicar os regulamentos; trata-se agora de um controle intenso, contínuo;
corre ao longo de todo o processo de trabalho; não se efetua – ou não só – sobre a produção
(natureza, quantidade de matérias-primas, tipo de instrumentos utilizados, dimensões e qualidades
dos produtos), mas leva em conta a atividade dos homens, seu conhecimento técnico, a maneira de
fazê-lo, sua rapidez, seu zelo, seu comportamento.” FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir, 16ªed.
Rio de Janeiro: Vozes, 1997, pg. 146
525
FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir, 16ªed. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, pg. 149
233
526
“Um saber que tem agora por característica não mais determinar se alguma coisa se passou ou
não, mas determinar se um indivíduo se conduz ou não como deve, conforme ou não à regra, se
progride ou não, etc. (...) Ele se ordena em torno da norma, em termos do que é normal ou não,
correto ou não, do que deve ou não fazer.” FOUCAULT, Michel, A verdade e as formas jurídicas,
3ª Ed. Rio de Janeiro: Nau, PUC-Rio, 2011, pg. 88
527
“O panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na
periferia uma construção em anel; no centro uma torre, esta é vazada de largas janelas que se
abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma
atravessando toda a espessura da construção; elas tem duas janelas, uma para o interior,
correspondendo às janelas da torre; outra para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado
a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente,
um condenado, um operário ou um escolar.” FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, 16ªed. Rio de
Janeiro: Vozes, 1997, pg. 165/166
528
“Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e
permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a
vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição
do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma
máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que
os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são portadores.”
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, 16ªed. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, pg. 166
234
529
Os mesmos conceitos de biopoder e biopolítica são também desenvolvidos pelo autor em seu
curso no Collège de France, principalmente em sua aula de 17 de março de 1976, publicada em:
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 2002 pgs. 285/315
530
“Assim, Vigiar e punir define o Panóptico pela pura função de impor uma tarefa ou um
comportamento quaisquer a uma multiplicidade qualquer de indivíduos, sob a única condição de
que a multiplicidade seja pouco numerosa e o espaço limitado, pouco extenso. (...) E A vontade de
saber tratará de outra função que emerge ao mesmo tempo: gerir e controlar a vida numa
multiplicidade qualquer, desde que a multiplicidade seja numerosa (população) e o espaço extenso
ou aberto” DELEUZE, Gilles. Foucault... pg.80
531
“Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na
medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser
vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala
se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na
medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que
são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.”
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 2002, pg.289.
532
“O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII,
centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte para
processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração
da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são
assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da
população.” FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber, Rio de Janeiro:
Graal, 1979, pg.131.
235
533
“E contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que resistem se apoiaram exatamente
naquilo sobre que ele investe – isto é, na vida e no homem enquanto ser vivo. (...) Foi a vida,
muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que estas últimas se
formulem através de afirmações de direito. O “direito” à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à
satisfação das necessidades, o “direito”, acima de todas as opressões ou “alienações”, de encontrar
o que se é e tudo o que se pode ser, esse “direito” tão incompreensível para o sistema jurídico
clássico, foi a réplica política a todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez,
também não fazem parte do direito tradicional da soberania.” FOUCAULT, Michel. A história da
sexualidade I: a vontade de saber... pg. 158/159
534
DELEUZE, Gilles. Foucault... pg.100
236
4.2
O cidadão e o escravo
535
TTP, pg.241
238
536
« Dans la tension de l’opposition du régime le plus mystificateur au régime le plus naturel,
Spinoza, dans TTP, V, est conduit à refuser la notion même d’obéissance pour caractériser la
position du citoyen au sein du régime démocratique... » BOVE, Laurent. La stratégie du
conatus...pg.195
537
TTP, pg.86
239
ou ordens externas. Obedecer de forma servil é realizar o bom que nos é imposto
por outrem, seguir uma ordem de valores exterior ao próprio conatus individual.
Neste sentido, o que caracteriza a obediência servil é tomar como primeira e
superior uma ordem estatal ou do soberano, em detrimento do próprio juízo de
utilidade e valor individual. Lembremos aqui da distinção ética entre liberdade e
passividade em Espinosa: é livre aquele que age tendo como causa adequada de
suas ideias e encontros apenas o próprio conatus, e, ao contrário, padece aquele
que é somente causa parcial dessas ideias e desses encontros. A obediência servil
reduz o indivíduo à passividade pois inscreve suas ações na servidão de ser
movido por ordens heterônomas538.
Ou seja, se a causa de uma ação é o próprio conatus de um indivíduo
diz-se que este age livremente, ainda que sua ação esteja em consonância com a
lei. Por outro lado, se a causa de uma ação é uma ordem alheia ou a lei de um
Estado, diz-se que o indivíduo obedece de forma servil. A obediência servil está
sempre relacionada à observância a um mandamento heterônomo, uma noção de
bom imposta por uma ordem externa539.
Não é por outra razão que nosso filósofo recusa a utilização do termo
obediência para qualificar qualquer ação do homem movido pela razão. Diz o
parágrafo 20 do capítulo II do Tratado político: “não podemos, sem grande
impropriedade, chamar obediência a uma vida controlada pela Razão”. A
diferença entre aquele que age livremente e aquele que obedece de forma servil
está na diferença entre a ação daquele que, criticamente, é causa adequada de seus
atos, e aquele que, submetendo-se a uma autoridade externa, apenas cumpre o que
lhe é ordenado.
Cabe aqui uma ressalva, para Espinosa existe uma diferença entre a
oposição liberdade/servidão éticas e liberdade/servidão políticas. A primeira dupla
538
« Hétéronomie, tout abord. Obéir, c’est exécuter un ordre pour la seule raison que nous
reconnaissons l’autorité de celui qui nous le donne : non parce que nous en compreenons nous-
même le bien-fondé, mais parce que telle est la volonté d’autrui. Cela ne signifie pas
obligatoirement que cet ordre soit contraire à notre intérêt véritable, ni même aux fins que nous
poursuivons consciemment ; mais cela signifie au moins, dans le meilleur des cas, que nous
n’apercenons pas la nécessité du lien causal qui unit son exécutions à la satisfation de nos désirs. »
MATHERON, Alexandre. Le Christ et le salut des ignorants chez Spinoza... pg.153/154
539
« Il est significatif que le TP, précisément, récuse d’emblée toute utopie, en soulignant
l’antithèse irréductible des notions d’obéissance et de liberté (TP, IV,5). Faire passer l’obéissance
en tant que telle pour la liberté est une mystification. La liberté réelle est synonyme de puissance et
d’indépendance, tandis que l’obéissance traduit toujours une dépendance. » BALIBAR, Etienne.
Spinoza et la politique...pg.112
240
se distingue pelo que acabamos de analisar, pela distinção entre agir e padecer, e
pelo conhecimento pela razão ou pelas ideias confusas da imaginação. É nesta
análise da liberdade ou servidão do sujeito ético que o termo obediência perde
sentido quando referido ao agir do homem livre. Já no campo da política, a
distinção entre liberdade e servidão ganha outro sentido, relacionado às formas de
exercício do poder político e os afetos, ideias e práticas que perpassam o ingenium
da multidão. A imaginação e a obediência são constitutivas do campo da política e
a distinção entre liberdade e servidão políticas se estabelece pela distinção quanto
ao exercício do poder político em prol do bem comum, numa sociedade livre, ou
desviado pela tirania para a realização de interesses particulares na servidão, a
oposição entre instituições que garantam à multidão instrumentos de resistência
contra qualquer tentativa de tirania, ou desenhos institucionais que distanciem a
multidão das condições de exercício de sua potência constituinte, liberdade e
servidão política se distanciam por um ingenium coletivo perpassado por afetos
fortes, que aumentam sua potência e mantém a multidão mais próxima da
esperança, ou uma multidão de temperamento servil dominada pelo medo.
Esta distinção entre o campo de análise ética e o campo de análise
política é fundamental para a compreensão do uso que Espinosa faz do termo
obediência em relação ao cidadão livre. Considerado como sujeito ético o cidadão
que age segundo os interesses do próprio conatus, que se coadunam com o bem
comum, age livremente, é causa adequada de seu agir e, portanto, não se pode
dizer “sem grande impropriedade” que obedece. No entanto, se considerada a
relação política entre cidadão e imperium, considerado o cidadão como sujeito
social confrontado com as leis comuns de uma sociedade, é possível ainda
utilizarmos o termo obediência540, mas uma obediência livre que é vontade
constante de cumprir o que “segundo o decreto comum, deve fazer-se”541
Duas figuras conceituais ajudam a ilustrar estas oposições entre
liberdade e servidão no campo ético e no campo político: o cidadão e o escravo.
Tomados do ponto de vista ético o cidadão é aquele que, ao cumprir as leis de um
540
Utilizaremos o termo obediência ao referirmo-nos ao cidadão livre, compreendendo sua relação
com as leis do Estado, seguindo Laurent BOVE que entende que este conceito só não se aplica ao
tratamento do sujeito ético individual, sendo ainda pertinente na análise da relação política. Neste
sentido: “... en tant que tel le sujet éthique n’est pas un sujet de l’obéissance, il ne l’est qu’en tant
que sujet social confronté aux lois particulières d’une société donée.” BOVE, Laurent. Ob. cit. p.
267.
541
“a obediência, porém, é a vontade constante de cumprir aquilo que é bom segundo o direito e
que, segundo o decreto comum, deve fazer-se.” TP, II, parágrafo 19
241
Estado, está, na verdade, agindo movido pelo próprio conatus, pois seus interesses
se coadunam com o bem comum inscrito no direito civil. Já o escravo obedece a
uma autoridade externa, sendo apenas causa parcial de suas ideias e encontros, e
tomando a utilidade de outrem – estado ou soberano – inscrita na ordem ou no
direito civil, como causa de sua própria ação.
E, no entanto, para passarmos à análise da oposição liberdade /
servidão no campo político cabe aqui uma inversão interessante. Esta liberdade do
cidadão e esta servidão do escravo, na relação política, não são consequências
tanto da utilização da razão pelo primeiro, e da imaginação pelo segundo, quanto
da própria constituição do imperium, das leis comuns e das instituições do próprio
estado. No campo individual, do sujeito ético, podemos tomar liberdade e
passividade como o agir ou padecer frente às ideias inadequadas e paixões, no
entanto, no campo político, liberdade e servidão se inscrevem na própria relação
entre potência da multidão e poder político, na organização das instituições do
Estado e no ingenium coletivo. Ninguém é livre numa sociedade de escravos e a
obediência livre do cidadão, quando este cumpre uma lei levado pelo próprio
conatus individual, só é possível numa democracia.
Vimos que um cidadão é livre porque, ao cumprir a lei, age segundo o
próprio conatus, porém, na relação política, isto não se dá necessariamente por
uma característica pessoal do cidadão, enquanto sujeito ético, mas por
características da própria lei e das instituições do estado. A liberdade assegurada
na democracia se constitui pela participação dos cidadãos na elaboração das leis,
sua liberdade de discussão e resistência, pela correspondência imanente entre
direito civil e direito natural da multidão, pela causalidade imanente entre
potência constituinte da multidão e exercício do imperium.
Faz sentido aqui a colocação de Laurent Bove quando este afirma que
“é a resistência que faz o cidadão”542. O que caracteriza o agir do cidadão livre no
campo político é sua participação no poder que este obedece, são as instituições
do Estado que garantem a resistência da multidão contra qualquer tentativa de
tirania, que garantem a liberdade na relação política e previnem contra sua
degradação em opressão, organização do imperium que mantém o exercício do
poder político atrelado aos interesses do bem comum: democracia. O cidadão é
542
« C’est la résistance qui fait le citoyen » BOVE, Laurent. La stratégie du conatus... pg.264
242
543
“Il faut distinguer, de l’obéissance superstitieuse au contenu de la loi (ou à la personne
incarnant cette loi), une obéissance vitale à la représentation commune de la loi en tant que telle,
comme lien vital entre les hommes, qui donne à leurs action unité, ordre et signification. Si le
contenu de la loi est l’expression d’un rapport d’intérêts et des forces au sein d’une société
particulière, l’existence d’une loi commune dans ses contradictions mêmes, l’unité et l’identité de
cette société . c’est cette distinction de la fonction et du contenu de la loi qui permettra de penser le
status du citoyen d’une libre République, à la fois obéissant librement à la lois mais aussi libre
d’examiner le contennu de cette loi, de le discuter et par là même de proposer à la souberaine
puissance sa modification, voire son abrogation, au profit de lois plus ajustées aux conditions
réelles de la société et de la Raison » BOVE, Laurent. La stratégie du conatus...pg.187
544
TTP, cap. V, pg.86
545
Dizemos aqui sujeito da tirania pois entendemos que, conforme demonstrado no item anterior
deste mesmo capítulo, são os servos que sustentam o senhor. Embora não sejam os escravos que
exercem o poder tirânico, é o desejo de servidão daqueles que sustentam o poder deste. É a
obediência que faz o tirano.
243
546
“Cependant, le sujet d’une libre république, comme le sujet éthique, se définit par sa puissance
de raisonner et de juger. Et chez le citoyen par excellence, cette puissance est celle de sa réflexivité
critique.” BOVE, Laurent. Ob.cit. p. 267
547
“As universidades fundadas à custa do Estado, são instituídas, menos para cultivar o espírito,
do que o constranger.” Tratado político, cap. VIII, § 49
548
Tratado político, cap. VIII, § 49
549
Vale destacar que é essa universidade que a Revolução Francesa, ao por fim ao Antigo Regime,
pretende derrubar, instituindo a educação pública leiga e a universidade pública leiga. No entanto,
ao longo da história, o liame entre educação e dominação política sempre se fez evidente, todos os
regimes autoritários buscam a dominação também do saber e a ingerência nas universidades como
forma de propagação e afirmação de seus ideais e fortalecimento, nas mentes e no ingenium da
multidão, de seu poder. No Brasil, durante a ditadura militar, não foi diferente existindo forte
censura e perseguição no âmbito universitário.
245
4.3
550
“Nous retrouvons alors, dans le TP comme dans le TTP, l’élogue de la diversité des opinions et
des enseignements, comme espace public de la liberte d’expression dans lequel peut s’exerce un
enseignement du point de vue de la raison.” BOVE, Laurent. Ob. cit. p. 274
551
“D’où, dans la société hobbienne, l’importance d’une éducation politique qui doit convaincre
les sujets de la vérité de la science politique de HOBBES, réduisant ainsi l’espace public de
l’expression plurielle des opinions en un champ de propagande...” BOVE, Laurent. Ob. cit. pp.
265-266
552
Neste sentido, o item 9 do cap. XIII de sua obra Do cidadão leva o título: “Uma correta
instrução dos súditos quanto às doutrinas políticas é mais um requisito para a conservação da paz”.
Da mesma obra destacamos: “Concebo, portanto, que é dever dos magistrados supremos fazer que
os elementos verdadeiros da doutrina civil sejam postos por escrito, e ordenar que sejam ensinados
em todos os colégios de seus vários domínios.” HOBBES, Thomas. Do cidadão, Martins Fontes,
São Paulo, 1992, p. 227.
553
“Chez HOBBES l’unanimité est l’essence de la machine politique, impliquée logiquement dans
son dispositif même.” BALIBAR, Étienne. La crainte des masses... p. 75
554
“Lorsque la vérité s’impose aux sujets de manière institutionelle, étatique et transcendante (...)
le sujet politique de l’obéissance est réduit à l’état d’automate.” BOVE, Laurent. Ob.cit. p. 266
246
como escravos, que buscam a salvação na servidão, que, dominados pelo medo e
impregnados de discursos da transcendência, identificam obediência e desejo de
servir.
A política, Espinosa o reconhece555, está sempre imersa no campo da
imaginação, mas existem ideias imaginativas e paixões fortes capazes de aumentar
a potência da multidão e engendrar a liberdade política, mantendo a multidão mais
próxima da esperança que do medo, e existem ideias imaginativas e paixões tristes
capazes de engendrar a tirania, dominar a multidão pelo medo e alimentar a
servidão.
No item anterior já distinguimos a análise da liberdade/servidão éticas
da análise da liberdade/servidão políticas. Neste sentido, desenvolvemos nossa
análise das figuras do cidadão e do escravo no campo da política, ao salientar que
tanto a condição de cidadão quanto a de escravo não dependem tanto de
características pessoais, mas da organização do poder político numa determinada
sociedade. A liberdade política do cidadão se constitui no exercício do poder
político em consonância com o bem comum, instituições que assegurem o direito
de resistência da multidão e a imanência entre potência constituinte e poder
constituído. Já o escravo é sujeito da servidão, obediente a um poder político que
se exerce para fins particulares, imerso em discursos da transcendência e no medo.
Agora nos dedicaremos à análise da servidão no campo ético,
investigaremos como a imaginação pode engendrar o paradoxo do desejo de
servidão. Se o conatus é sempre esforço positivo por perseverar na existência,
esforço, portanto, pela liberdade e pela alegria, como pode a obediência
desvirtuar-se em desejo de servidão, e uma multidão ser conduzida pela
imaginação a sustentar um tirano?
O tema da liberdade ou servidão como expressões imanentes do
ingenium da multidão remonta a Maquiavel. A concepção democrática do poder
que identifica nas características da multidão e na qualidade de sua obediência as
causas de sua própria liberdade ou servidão já está nos Discursos maquiavelianos,
quando o autor florentino afirma que “O povo acostumado a viver sob a
555
“aqueles que se persuadem de poder induzir, quer a multidão, quer os que se confrontam nos
assuntos públicos a viver unicamente segundo o que a razão prescreve, sonham com o século
dourado dos poetas, ou seja, uma fábula” TP, cap. I, parágrafo 5
247
Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem
um corpo, e não tem outra coisa que o que tem o menor homem do grande e
infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que lhe dais para
556
MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro primeiro, capítulo 16
557
MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro primeiro, capítulo 17
558
MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro primeiro, capítulo 53
248
destruir-vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os
colocais a serviço dele? Como tem tantas mãos para golpear-vos, se não as
toma de vós? Os pés com que espezinha vossas cidades, de onde lhe vem
senão dos vossos? Como ousaria atacar-vos se não estivesse conivente
convosco? Que poderia fazer-vos se não fosseis receptadores do ladrão que
vos pilha, cúmplices do assassino que vos mata, e traidores de vós
mesmos?559
com o pescoço sob o julgo, não obrigados por uma força maior, mas de
algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome
de um, de quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar as
qualidades pois é desumano e feroz para com eles.560
559
La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999,
pg.16
560
La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999,
pg.12
249
tirano não se torna tirano tanto por qualidades suas, mas por ocupar um lugar já
preparado pela própria sujeição daqueles que domina561.
Sobre a instituição da desigualdade entre governantes e governados,
sobre sua origem, o autor francês não se aventura em hipóteses históricas: a
desigualdade é resultado de um mau encontro, mas certamente acidental e não
necessária562, ou seja, La Boétie aceita a ideia de sociedades sem desigualdade
política, sociedades sem a instituição do Estado563. Porém, sobre a perpetuação da
desigualdade nas sociedades políticas La Boétie identifica sua fundação num
desvirtuamento da natureza humana que, de propensa à liberdade, desvirtua-se em
desejo de servidão564.
O tom de perplexidade da abertura do texto de La Boétie coloca-nos,
seus leitores, de frente com a paradoxal ideia de que são os povos que
voluntariamente sustentam seus tiranos. A obediência servil não se impõe numa
força vertical de cima pra baixo, do governante aos governados, mas, numa
inversão do desejo natural pela liberdade em desejo de servidão, e se mantém pelo
desejo de servir daqueles mesmos a quem oprime565. A violência não é causa da
561
“Mas não se torna senhor por querer, e sim por ter ocupado um lugar já preparado, por ter
respondido a uma demanda já formulada por aqueles, naqueles que domina: o povo. (...) é melhor
admitir que a cada momento de seu império a tirania se engendra a partir da vontade de servir.”
LEFORT, Claude. “O nome de Um” in La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª
ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.125/126
562
“Aliás o Discours de la servitude volontaire formula explicitamente duas perguntas : primeiro,
por que a desnaturação do homem ocorreu, por que a divisão instalou-se na sociedade, por que o
mau encontro sobreveio? Em seguida, como é que os homens perseveram em seu ser desnaturado,
como a desigualdade de reproduz constantemente, como o mau encontro se perpetua a ponto de
parecer eterno? La BOÉTIE não responde à primeira pergunta. Enunciada em termos modernos,
ela diz respeito à origem do Estado. De onde sai o Estado? É perguntar a razão do irracional, tentar
reduzir o acaso à necessidade, querer em uma palavra abolir o mau encontro.” CLASTRES, Pierre.
“Liberdade, mau encontro, inominável” in La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária,
4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.114.
563
Neste tema Pierra CLASTRES comentando a obra de La BOÉTIE traz para a reflexão as
pesquisas da etnologia a respeito das sociedades sem estado, ou mais propriamente sociedades
contra o estado. Sobre o tema: CLASTRES, Pierre. “Liberdade, mau encontro, inominável” in La
BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999 e
CLASTRES, Pierre. Sociedades contra o estado, São Paulo: Cosac Naify,
564
Sobre esse movimento Pierre CLASTRES entende que o autor trata de uma desnaturação do
homem: “se ele, por natureza é um ser-para-a-liberdade, a perda da liberdade deve exercer seus
efeitos no próprio plano da natureza humana: o homem é desnaturado, muda de natureza.”
CLASTRES, Pierre. “Liberdade, mau encontro, inominável” in La BOÉTIE, Etienne. Discurso da
servidão voluntária, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999, pg.114.
565
“Mau-encontro, a política descrita por La BOÉTIE não se explica pelo exercício da força nem
pela presença da covardia; seu mistério reside nessa ausência de constrangimento, no fato de que a
violência não é causa da servidão voluntária mas seu efeito. A tirania não é perversão de um
regime político legítimo, não só porque o regime de que seria cópia ou simulacro, a monarquia,
não se distingue dela, mas também e sobretudo porque a mola propulsora de sua instauração é o
250
569
“EIII, proposição 9 : A mente, quer enquanto tem ideias claras e distintas, quer enquanto tem
ideias confusas, esforça-se por perseverar em seu ser por uma duração indefinida, e está consciente
desse seu esforço. (...)
Escólio.Esse esforço , à medida que está referido apenas à mente, chama-se vontade; mas à medida
que está referido simultaneamente à mente e ao corpo chama-se apetite, o qual, portanto, nada
mais é do que a própria essência do homem, de cuja natureza necessariamente se seguem aquelas
coisas que servem para a sua conservação, e as quais o homem está, assim, determinado a realizar.
Além disso, entre apetite e desejo não há nenhuma diferença, excetuando-se que, comumente,
refere-se o desejo aos homens à medida que estão conscientes de seu apetite. Pode-se fornecer,
assim, a seguinte definição: o desejo é o apetite juntamente com a consciência que dele se tem.”
252
570
« La formulation même de Spinoza est éclairante et doit nous guider : les hommes ne
recherchent pas la servitude pour la servitude, la négation de leur désir pour la négation de leur
désir mais pour quelque chose dans la servitude, dans cette négation, qui est de l’order même du
salut, c’est-à-dire de l’affirmation de la vie. Les hommes combattaient pour la servitude avec la
même ardeur que s’ils combattaient pour leur salut parce qu’ils recherchent le salut dans la
servitude » BOVE, Laurent. La stratégie du conatus... pg.180
253
Desta forma fica claro porque é possível desejar como bom algo que, na verdade,
traz tristeza, desejar a servidão como se se tratasse da salvação: no campo da
imaginação o desejo pode afirmar a própria negação se imerso em paixões e ideias
inadequadas.
O escólio da mesma proposição 9 da E III, termina com a
importantíssima colocação:
Torna-se, assim, evidente, por tudo isso, que não é por julgarmos uma coisa
boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a
desejamos, mas ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la,
por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa.571
Nada do que uma ideia falsa tem de positivo é suprimido pela presença do
verdadeiro enquanto verdadeiro. (...)
Escólio. (...) Portanto as imaginações não se desvanecem pela presença do
verdadeiro, enquanto verdadeiro, mas porque se apresentam outras
imaginações mais fortes que excluem a existência presente das coisas que
imaginamos...573
571
E III, prop. 9, escólio
572
TTP, pg.8
573
E IV, prop. 1
254
A ideia falsa se afirma na mente com uma potência própria que não é
destituída apenas pela presença do verdadeiro enquanto tal. Ideias imaginativas
que acompanham afecções do corpo, por exemplo, não deixam de nos assaltar
apenas porque saibamos intelectualmente de sua falsidade. Cabe aqui o exemplo
espinosano acerca da distância que nos separa do sol:
1. “Por bem compreenderei aquilo que sabemos, com certeza, nos ser útil.
2. Por mal compreenderei, por sua vez, aquilo que sabemos, com certeza,
nos impedir que desfrutemos de algum bem.”574
4.4
575
Na E IV Espinosa discorre a diferença de intensidade entre os afetos referentes a coisas
passadas, presentes e futuras, e os afetos referentes a coisas necessárias, possíveis e contingentes,
assim como o conhecimento verdadeiro do bem e do mal relativo a essas variações. Dados os
limites deste trabalho não abordaremos o tema detalhadamente remetendo o leitor às proposições 9
a 17 da EIV.
257
10. Tem o outro sob seu poder quem o detém amarrado, ou quem lhe tirou
as armas e os meios de se defender ou de se evadir, quem lhe incutiu medo
ou quem, mediante um benefício, o vinculou de tal maneira a si que ele
prefere fazer-lhe a vontade a fazer a sua, e viver segundo o parecer dele a
viver segundo o seu. Quem tem o outro em seu poder sob a primeira ou a
segunda destas formas, detém só o corpo dele, não a mente; mas quem o
tem sob a terceira ou a quarta forma fez juridicamente seus, tanto a mente
como o corpo dele, embora só enquanto dura o medo ou a esperança; na
verdade, desaparecida esta ou aquele, o outro fica sob jurisdição de si
próprio.
11. Também a faculdade de julgar pode estar sob jurisdição de outrem, na
medida em que a mente pode ser enganada por outrem.576
576
TP, capítulo 2, parágrafos 10 e 11
258
577
E IV, prop. 65: “Conduzidos pela razão, buscaremos, entre dois bens, o maior e, entre dois
males, o menor”
578
E IV, prop. 65
259
Espinosa ressalta que, seja qual for a razão da obediência, não importa
se movidos pelo amor ou coagidos pelo medo, ainda que arrastados pelas paixões
e pelas ideias inadequadas, os súditos que agem conforme as ordens do Estado
agem por direito do Estado e não por direito próprio, ou seja, obedecem. Importa
à manutenção de um Estado a fidelidade dos súditos às suas ordens, e não os
motivos individuais que levam cada um deles a obedecê-las, pois sejam quais
579
TTP, cap. XVII, pg.251
260
580
“Sendo assim, desde que esteja conforme às ordens do soberano, faça um súdito aquilo que
fizer, seja movido por amor ou coagido pelo medo, seja (o que é mais frequente) levado pela
esperança e pelo medo ao mesmo tempo, seja por reverência, que é uma paixão composta de medo
e admiração, seja, enfim, por qualquer outro motivo, é sempre por direito do Estado e não por
direito próprio que ele age.” TTP, cap. XVII, pg. 252
581
TTP, cap. XVII, pg. 252
582
TTP, cap. XVII, pg.252
261
obediência que tem como único fundamento o medo: “Se fossem os mais temidos
os que tinham maior poder, então o maior poder seria o que têm os súditos dos
tiranos, a quem estes temem mais que a qualquer coisa”583
E ainda:
A natureza humana, porém, não tolera ser totalmente coagida e, como diz
Sêneca, o Trágico, nunca um poder violento aguentou por muito tempo; um
poder moderado, pelo contrário, é duradouro. Na verdade, quando os
homens agem apenas por medo, fazem o que menos gostariam de fazer e
não se importam com a utilidade nem a necessidade do que fazem,
procurando unicamente não pôr a cabeça em risco, isto é, não se expor aos
castigos.584
583
TTP, cap. XVII, pg. 252
584
TTP, cap. V, pg. 86
262
Porém, uma análise mais detalhada das posições dos dois autores nos
leva a concluir que a oposição entre ambos é apenas aparente e num juízo mais
profundo ambos se encontram ao falar da utilidade do medo para assegurar a
segurança do Estado e o poder dos afetos para governar os ânimos e garantir a
obediência. Maquiavel fundamenta sua opção pelo medo, como afeto mais seguro
para governar a multidão, em detrimento do amor ao príncipe, na inconstância dos
homens e no fato de que o medo depende apenas das ações do próprio príncipe
enquanto que o amor dependeria da opinião volúvel dos homens:
É, pois, com base nessa lei que se poderá estabelecer uma sociedade, sob a
condição de que esta avoque para si própria o direito que cada um tem de se
vingar e de julgar sobre o bem e o mal. E que ela tenha, portanto, o poder de
585
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, São Paulo: Hedra, 2007, cap. XVII, pg.163
586
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, São Paulo: Hedra, 2007, cap. XVII, pg.165
587
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, São Paulo: Hedra, 2007, cap. XVII, pg.169
263
prescrever uma norma de vida comum e elaborar leis, fazendo-as cumprir não
pela razão, que não pode refrear os afetos, mas por ameaças.588
Contudo, deve o príncipe fazer-se temer de tal modo, que, se não conquiste
o amor, evite o ódio, porque pode muito bem estar junto o ser temido e o
não ser odiado589.
588
EIV, prop. 37
589
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, cap. XVII.
590
« Mais la bonne et la mauvaise ne sont pas symétriques, puisque la non mauvaise se situe du
moins dans les parages de la bonne, tandis que la non bonne demeure en tout cas à distance de la
mauvaise. » LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre MAQUIAVEL, Paris : Gallimard, 1972,
pg.409
264
4.5
A multidão servil
4.5.1
O amor ao tirano
busca pelo que lhe é útil593, maior será este desejo de agradar o outro quanto mais
tivermos amor por este outro.
Nosso filósofo, em consequência da mecânica da imitação afetiva, não
prevê somente a ambição de agradar o outro594, mas admite expressamente que é
possível fazê-lo com tal zelo “que fazemos ou deixamos de fazer certas coisas que
resultem em detrimento nosso ou alheio.”595 A ambição de fazer o que
imaginamos que os outros veem com alegria pode suplantar a própria busca pela
alegria individual, e, podemos concluir que, tanto maior será esta ambição quanto
mais nos alegremos por imitação com a alegria do outro, ou seja, quanto mais
tivermos amor pelo outro.
Espinosa nos fala da ambição de fazer o que imaginamos alegrar ao
vulgo, ainda que por este não tenhamos nenhum outro afeto prévio, pelo simples
fato de que nos alegramos também ao imaginar outras coisas semelhantes a nós
afetadas de alegria. Ora, por força da imitação afetiva, tanto maior será nossa
alegria com a imagem da alegria alheia tanto mais tenhamos por esta um afeto
prévio de amor. Donde podemos concluir que nos esforçaremos com maior afinco
por alegrar alguém que amamos, do que por alegrar alguém para com quem não
nutrimos nenhum outro afeto.
Neste sentido, não é difícil identificar o quanto pode ser útil ao
soberano ser amado pelos seus súditos. O que distingue o desejo de servir é
justamente a alegria passiva que acompanha a servidão, a imaginação de alguma
alegria em realizar o que é considerado bom e útil pelo outro, o soberano ou o
direito civil. Espinosa trata claramente no Tratado Teológico-político da imagem
que deve manter o soberano perante seus súditos de modo que seja por estes
admirado:
593
“Esse esforço por fazer algo ou por deixar de fazê-lo, com o único propósito de agradar aos
homens, chama-se ambição, sobretudo quando nos esforçamos por agradar ao vulgo com tal
zelo que fazemos ou deixamos de fazer certas coisas que resultem em detrimento nosso ou
alheio.” EIII, prop. 29, escólio (grifo nosso)
594
“Nós nos esforçaremos, igualmente, por fazer tudo aquilo que imaginamos que os homens
veem com alegria e, contrariamente, abominaremos fazer aquilo que imaginamos que os homens
abominam.” EIII, prop. 29
595
EIII, prop. 29, escólio
267
O soberano deve ser visto por seus súditos com qualidades especiais,
uma pessoa digna de admiração. Estamos aqui diante, portanto, de uma forma
específica de amor que pode estreitar os laços de obediência e alimentar a
servidão nas mentes da multidão: a adoração, o amor por aquele a quem se tem
admiração597. O soberano adorado encontra mais facilmente o consentimento da
multidão que lhe venera, e a obediência mais poderosa pois permeada por alegrias
passivas598.
Podemos citar aqui, como exemplo, a figura de Moisés na fundação
do Estado Hebraico. Num primeiro momento, depois de fugido do Egito, todo o
povo hebraico se submete imediatamente à vontade de Deus, numa teocracia. No
entanto, diz Espinosa, o povo se apavora ao ouvir o estrondo da voz de Jeová,
“ouviram de tal maneira atônitos a palavra de Deus que julgaram ter chegado o
fim de seus dias”599, então os hebreus aboliram o primeiro pacto, firmado
diretamente com Deus, e “transferiram por completo para Moisés o seu direito de
interpelar Deus e interpretar seus éditos”600. O povo hebraico deixa nas mãos de
Moisés a tarefa de comunicar-se diretamente com Deus e governar segundo a Sua
vontade. Assim, Moisés passa a diferenciar-se dos demais cidadãos, é tido como
governante que tem a característica especial de comunicar-se diretamente com
Deus. O consentimento lhe vem, então, permeado pela crença religiosa e pela
adoração.
É mais fácil “reinar sobre os ânimos” quando se constrói na
imaginação da multidão a admiração pela figura do soberano dotado de virtudes
extraordinárias. A adoração leva a multidão a alegrar-se com a obediência ao
ponto de coloca-la acima de seus interesses individuais. E tal admiração pode ser
construída no imaginário coletivo da multidão fazendo-se acompanhar a pessoa do
soberano por uma série de crenças e um cerimonial próprio que lhe distingam dos
596
TTP, cap. V, pg. 86
597
E III, definição dos afetos, 10
598
“aquele ou aqueles que tiverem o poder soberano devem fazer com que os demais (ou todos)
acreditem na superioridade desse poder. Não basta a lei, é preciso a crença. Sem a fé na
superioridade do detentor do poder (rei, patrícios, povo), a multitudo jamais se submeterá e jamais
obedecerá.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa... pg.195
599
TTP, cap. XVII, pg.257
600
TTP, cap. XVII, pg. 257
268
601
“Tiranos, reis e oligarcas sabem que a plebe pode adquirir força para derrubá-los. Esse saber
engendra efeitos necessários: o esforço para manter a plebe dispersa e desorganizada (...) emprego
de cerimônias e ritos que teatralizam a política e reiteram a distância entre a plebe e os
governantes.” CHAUÍ, Marilena. Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, pg.169/170.
602
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe... cap. XVII e XIX
603
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe... cap. XVIII, pg.173
604
Merleau-ponty em sua Note sur MAQUIAVEL aprofunda a análise desta aparência virtuosa do
príncipe em MAQUIAVEL analisando a repercussão própria das ações históricas e o julgamento
da maioria dos homens pelas aparências. Sobre o tema: Merleau-Ponty, Maurice. « Note sur
MAQUIAVEL”, in Signes, Gallimard, 1985, também disponível em
http://www.caute.lautre.net/spip.php?article1002, acessado em 23/09/12
269
605
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo, Porto: publicações escorpião, 1974, pg 61
606
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo, Porto: publicações escorpião, 1974, pg 40
270
4.5.2
Por imaginarmos que uma coisa semelhante a nós e que não nos provocou
nenhum afeto é afetada de algum afeto, seremos, em razão dessa
imaginação, afetados de um afeto semelhante.” EIII, prop. 27
607
TTP, cap.XVII, pg.273
272
609
“O próprio fato de terem subsistido, apesar de andarem há tantos anos dispersos e sem um
Estado, não é para admirar, visto que se apartaram de qualquer nação e atraíram sobre si o ódio de
274
todas elas, não apenas pelos ritos exteriores, que são contrários aos das outras gentes, mas também
pelo sinal da circuncisão, que conservam religiosamente. A experiência, de resto, ensina que o
ódio das nações contribui imenso para a coesão dos judeus” TTP, cap. III, pg.64
275
610
“Aquele que odeia alguém se esforçará por fazer-lhe mal, a menos que tema que disso advenha,
para si próprio, um mal maior...” EIII, prop.39
“Quem imagina que aquilo que odeia é afetado de tristeza se alegrará; se contrariamente, imagina
que é afetado de alegria, se entristecerá; e um ou outro desses afetos será maior ou menor à medida
que o seu contrário for, respectivamente, maior ou menor na coisa odiada.” EIII, prop. 23
611
“Quem imagina que aquilo que odeia é destruído se alegrará.” EIII, prop.20
“A alegria que surge por imaginarmos que uma coisa que odiamos é destruída ou afetada de algum
outro mal não surge sem alguma tristeza de ânimo” EIII, prop. 47
612
Da mesma forma serve de traço de unidade de uma multidão qualquer atrair para si o ódio de
outros. Neste sentido, vale citar novamente o que diz Espinosa sobre o povo judeu: “A
experiência, de resto, ensina que o ódio das nações contribui imenso para a coesão dos judeus.”
TTP, cap.III, pg.64
613
“A dicotomia constitutiva da política é a oposição amigo-inimigo” CHAUÍ, Marilena. O
retorno do teológico-político...
276
aquele com quem o conflito não encontra nenhuma mediação e impõe a guerra até
a sua neutralização, submissão ou extermínio614.
O estrangeiro, a alteridade daquele que nega um determinado modo de
vida, eis o inimigo schmittiano615. E a autonomia da distinção entre amigo e
inimigo, frente a outras distinções, como a de cunho moral (bom e mau), ou a de
cunho estético (belo e feio), é, para o autor, a afirmação da própria autonomia do
político. Diz Schmitt:
A natureza objetiva e a autonomia intrínseca do político já se mostram nesta
possibilidade de separar uma tal contraposição específica como a de amigo-
inimigo de outras diferenciações e de compreendê-la como algo
independente.616
614
CHAUÍ, Marilena. O retorno do teológico-político...
615
“O caso extremo do conflito só pode ser decidido pelos próprios interessados; a saber, cada um
deles tem de decidir por si mesmo, se a alteridade do estrangeiro, no caso concreto do conflito
presente, representa a negação da sua própria forma de existência, devendo, portanto, ser repelido
e combatido, para a preservação da própria forma de vida, segundo sua modalidade de ser.”
SCHMITT, Carl. O conceito do político, Petrópolis: Vozes, 1992, pg.52
616
SCHMITT, Carl. O conceito do político, Petrópolis: Vozes, 1992, pg.53
617
“A guerra não é, absolutamente, fim e objetivo, sequer conteúdo da política, porém é o
pressuposto sempre presente como possibilidade real, a determinar o agir e o pensar humanos de
modo peculiar, efetuando assim um comportamento especificamente político.” SCHMITT, Carl. O
conceito do político, Petrópolis: Vozes, 1992, pg.60
618
“ a idéia de que a guerra é o locus por excelência de manifestação do político, não só porque é
pura ação como também porque nela se explicitam, de um lado, a essência do político como
oposição entre amigo e inimigo e, de outro, a essência da soberania como poder de decisão nas
situações de exceção.” CHAUÍ, Marilena. O retorno do teológico-político...
277
619
“O estado de exceção tem um significado análogo para a jurisprudência, como o milagre para a
teologia.” SCHMITT, Carl. Teologia política, Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pg. 35
620
“Ele [o soberano] decide tanto sobre a ocorrência do estado de necessidade extremo, bem como
o que se deve fazer para saná-lo. O soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente
vigente, porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a Constituição pode
ser suspensa in Toto.” SCHMITT, Carl. Teologia política...pg. 8
621
“A ordem jurídica, como toda ordem, repousa em uma decisão e não em uma norma.”
SCHMITT, Carl. Teologia política...pg.11
622
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo, Porto: publicações escorpião, 1974, pg 73
278
4.5.3
Se imaginamos que alguém ama, ou deseja, ou odeia uma coisa que nós
mesmos amamos, ou desejamos, ou odiamos, amaremos, por esse motivo,
essa coisa com mais firmeza, etc. Se, por outro lado, imaginamos que
alguém abomina aquilo que amamos, ou, inversamente, que ama o que
abominamos, então padeceremos de uma flutuação de ânimo.(...)
Corolário. Disso, e da prop. 28, segue-se que cada um se esforça, tanto
quanto pode, para que todos amem o que ele próprio ama e odeiem também
o que ele próprio odeia. (...)
Escólio. Esse esforço por fazer com que todos aprovem o que se ama ou se
odeia é, na verdade, a ambição (...). Vemos, assim, que cada um, por
natureza, deseja que os outros vivam de acordo com a inclinação que lhe é
própria... EIII, prop. 31
623
TP, cap. II, parágrafo 19
624
TTP, cap. XVII, pg. 252
279
625
TTP, cap. XVII, pag. 252
280
626
TTP, cap. XVII, pag. 252
627
“Por esse motivo, o papel específico da ideologia como instrumento da luta de classe é impedir
que a dominação e a exploração sejam percebidas em sua realidade concreta. Para tanto, é função
da ideologia dissimular e ocultar a existência das divisões sociais como divisões de classe,
281
escondendo, assim, sua própria origem. Ou seja, a ideologia esconde que nasceu da luta de classe
para servir a uma classe na dominação.” CHAUÍ, Marilena.O que é Ideologia, 2ª Ed. São Paulo:
Brasiliense, 2008, pg.96
628
Sobre a possibilidade de aproximação entre os pensamentos espinosano e marxiano, vale
destacar que Marx sabidamente foi leitor e admirador de Espinosa. Destacamos ainda que a
aproximação entre os dois autores é feita, em outros termos, por Antonio NEGRI em seu O Poder
constituinte.”Ao contrário, em outra tradição da metafísica moderna, de MAQUIAVEL a Espinosa
e Marx, é certamente absoluto o processo que se desenvolve na dinâmica do poder constituinte,
sem que este caráter absoluto jamais se faça totalitário.” NEGRI, Antonio. O poder
constituinte...pg.48
282
629
“Para o pensador marxista [Gramsci], as superestruturas apresentam dois momentos que se
complementam: a sociedade civil e a sociedade política.
A sociedade civil, ou aparelho privado de hegemonia, abarcaria uma complexidade enorme de
elementos ideológicos, tais como a ideologia da classe dirigente (...): a concepção do mundo,
divulgada em toda a sociedade visando vincular as camadas sociais à classe dirigente (filosofia,
religião, senso comum, folclore); direção ideológica as sociedade (meios de produção, reprodução
e divulgação da ideologia da classe dirigente, tais como sistema escolar, as bibliotecas, os meios
de comunicação social, etc.” DORNELLES, João Ricardo W. “O direito e o modo de produção
capitalista: reflexões sobre a instância jurídica a partir de uma análise marxista” in Amius Curie-
Revista do curso de direito da UNESC, nº 2, Criciúma, SC: Unesc, 2004 pg. 88.
630
“A sociedade política, por seu lado, corresponde ao Estado, ao aparelho jurídico-político
destinado a manter a dominação pela coerção direta sobre o conjunto da sociedade. E aqui a
instância jurídica aparece com o seu papel normativo coercitivo.” DORNELLES, João Ricardo
W. “O direito e o modo de produção capitalista: reflexões sobre a instância jurídica a partir de uma
análise marxista” in Amius Curie- Revista do curso de direito da UNESC, nº 2, Criciúma, SC:
Unesc, 2004 pg. 89.
283
631
“Esse fenômeno da conservação da validade das ideias e valores dominantes, mesmo quando se
percebe a dominação e mesmo quando se luta contra a classe dominante, mantendo sua ideologia,
é que Gramsci denomina hegemonia. Uma classe é hegemônica não só porque detém a
propriedade dos meios de produção e o poder do Estado (isto é, o controle jurídico, político e
policial da sociedade), mas ela é hegemônica sobretudo porque suas ideias e valores são
dominantes, e mantidos pelos dominados até mesmo quando lutam contra essa dominação”
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia...pg.102
632
TTP, prefácio, pg. 8
633
Warren Montag reconhece expressamente, no tratamento espinosano da questão da obediência,
alguns dos principais temas depois elaborados por ALTHUSSER em sua obra Aparelhos
ideológicos de Estado: “Comment pourrait-on expliquer autrement le fait que les hommes si
souvent « voient le meilleur et font le pire », qu’ils combattent et meurent pour le tyran qui les
opprime avec la même ferveur que s’ils étaient en train de combattre pour leur propre bien-être,
qu’ils sacrifient enfin leur puissance et leurs plaisirs au Sujet suprême et originel, Dieu, dont
l’amour pour eux, à ce qu’ils imaginent, s’accroît à la mesure de leur souffrance ? (on reconnaîtra
ici quelques-uns des thèmes majeurs de l’essai d’ALTHUSSER Idéologie et appareils
284
idéologiques d’État). » Montag, Warren. Modernité de Spinoza, extraits de la Préface de The new
Spinoza, University of Minnesota Press, cool « Theory out of bound » nº11, 1998, disponível em
http://hyperspinoza.caute.lautre.net/article.php3?id_article=968, acessado em 20/10/12
634
Sobre a influência de Gramsci na análise de ALTHUSSER acerca dos aparelhos ideológicos de
Estado destacamos:”a herança gramsciana na concepção de ALTHUSSER amplia a noção de
Estado e, portanto, de luta de classes, para o conjunto do que Antonio Gramsci chama de
Sociedade Civil.” E: “Nestes dois tópicos concentra-se a contribuição de ALTHUSSER à teoria
marxista do Estado, que consiste basicamente em compatibilizar as concepções de Engels sobre as
instâncias da estrutura e da superestrutura e a teoria do Estado de Gramsci. É aí que encontramos
os pressupostos básicos da teoria dos Aparelhos Ideológicos do Estado, que se origina no conceito
de Sociedade Civil de Gramsci.” Albuquerque, J.A.Guilhon. “ALTHUSSER, a ideologia e as
instituições” in ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro:
Graal, 2003, pg.17 e 14
635
“O que distingue ao AIE [aparelhos ideológicos do estado] do Aparelho (repressivo) do Estado
é a seguinte diferença fundamental: o Aparelho repressivo do Estado “funciona através da
violência” ao passo que os Aparelhos Ideológicos do Estado “funcionam através da ideologia”.
Podemos precisar, retificando esta distinção. Diremos, com efeito, que todo Aparelho do Estado,
seja ele repressivo ou ideológico, “funciona” tanto através da violência como através da ideologia,
mas com uma diferença muito importante, que impede que se confundam os Aparelhos
Ideológicos do Estado com o Aparelho (repressivo) do Estado. O aparelho (repressivo) do Estado
funciona predominantemente através da repressão (inclusive a física) e secundariamente através da
ideologia. (...) Da mesma forma, mas inversamente, devemos dizer que os Aparelhos Ideológicos
do Estado funcionam principalmente através da ideologia, e secundariamente através da repressão
seja ela bastante atenuada, dissimulada ou mesmo simbólica (não existe aparelho puramente
ideológico)...” ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro:
Graal, 2003, pg.69/70
636
“Lembremos que, na teoria marxista, o aparelho de estado (AE) compreende: o governo, a
administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões, etc. que constituem o que chamaremos
a partir de agora de aparelho repressivo de Estado. Repressivo indica que o aparelho de Estado em
questão “funciona através da violência” – ao menos em situações limites” ALTHUSSER, Louis.
Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal, 2003, pg.67
285
637
“Designamos pelo nome de aparelhos ideológicos do Estado um certo número de realidades
que apresentam-se ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas.
(...) Com todas as reservas que esta exigência acarreta, podemos, pelo momento, considerar como
aparelhos ideológicos do Estado as seguintes instituições (...): AIE religiosos (o sistema das
diferentes Igrejas), AIE escolar (o sistema das diferentes escolas públicas e privadas, AIE familiar,
AIE jurídico, AIE político (sistema político, os diferentes partidos), AIE sindical, AIE de
informação (a imprensa, o rádio, a televisão, etc.), AIE cultural (Letras, belas artes, esportes,
etc.).” ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal, 2003,
pg.68
638
Sobre a nomenclatura dessas instituições como aparelhos ideológicos do Estado, mesmo sendo
a maioria delas instituições privadas, ALTHUSSER cita Gramsci para qualificar a distinção entre
público e privado como uma distinção própria do direito burguês que não abarcaria o Estado,
entendido como Estado da classe dominante: “Como marxista consciente, Gramsci já respondera a
esta objeção. A distinção entre o público e o privado é uma distinção intrínseca ao direito burguês,
e válida nos domínios (subordinados) aonde o direito burguês exerce seus “poderes”. O domínio
do Estado lhe escapa, pois este está “além do Direito”: o Estado, que é Estado da classe
dominante, não é nem público nem privado, ele é ao contrário a condição de toda distinção entre
público e privado. Digamos a mesma coisa partindo dos nossos Aparelhos Ideológicos do Estado.
Pouco importa se as instituições que os constituem sejam “públicas” ou “privadas”. O que importa
é o seu funcionamento. Instituições privadas podem “funcionar” como Aparelhos Ideológicos do
Estado.” ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal,
2003, pg.69
639
Sobre esses temas remetemos o leitor a obra do próprio autor: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos
ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal, 2003.
286
640
“A tese – pois de fato se trata de tese – se divide em três: ao contrário do Aparelho repressivo
de Estado, que é único e formalmente idêntico desde os primeiros Estados conhecidos da
antiguidade, a multiplicidade dos aparelhos ideológicos é crescente e tende a diversificar-se por
especificação; dentro dessa multiplicidade, existe, em cada época, um aparelho ideológico de
Estado dominante; o aparelho ideológico dominante nas formações capitalistas maduras é o
aparelho ideológico escolar” ALBUQUERQUE, J.A.Guilhon. “ALTHUSSER, a ideologia e as
instituições” in ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro:
Graal, 2003, pg.31
641
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal, 2003,
pg.75 a77
287
4.5.4
642
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado, 9ªed., Rio de janeiro: Graal, 2003,
pg.71
643
« Le pouvoir religieux – les bricoleurs du code/fiction que sont les théologiens – et le pouvoir
politique, se chargeonts dans le réel (des rapports de forces) d’exploiter à leur service cette auto-
288
Se, contudo, ele [Maquiavel] teve um fim bom, como é de crer num homem
sábio, parece ter sido mostrar quão imprudentemente muitos se esforçam
por remover um tirano, quando as causas pelas quais o príncipe é tirano não
podem ser removidas e, pelo contrário elas se impõem tanto mais quanto
maior causa de temer se lhe oferece, como acontece quando uma multidão
mostra exemplos ao príncipe e se vangloria do parricídio como de uma
coisa bem-feita.645
soumission et cet auto-empoisonnement du désir. Mais leur rôle vient aprés coup, à la fois inscrit
dans le système que les hommes ont construit dans leur imaginaire. C’est de l’esclave que
procède le maître. » BOVE, Laurent. Stratégie du conatus...pg.178 (grifo nosso)
644
“Se tirania houver, já se encontra presente no momento da fundação.” CHAUÍ, Marilena.
Política em Espinosa... pg.191
645
TP, cap. V, parágrafo 7
646
TTP, cap. XVII, pag. 277
289
desejo pela servidão não conhece a liberdade, nem muito menos os meios de
exercê-la.
Vale aqui lembrar novamente a influência de Maquiavel quando este,
nos Discursos, afirma a dificuldade de um povo acostumado a servidão de manter
a liberdade. Neste sentido diz o autor florentino explicitamente que: ““O povo
acostumado a viver sob a autoridade de um príncipe, se por algum acontecimento
se torna livre, dificilmente mantém a liberdade”647. E ainda: “Um povo
corrompido que se torne livre com enorme dificuldade se mantém livre”648. Antes
de Espinosa, Maquiavel já antecipava a tirania inscrita no seio da multidão, tirania
que se reproduziria ainda que fosse dado a um povo a oportunidade da liberdade.
Espinosa não é um revolucionário, nosso filósofo é, pelo exposto,
bastante cético quanto às revoluções. Em sua vida Espinosa testemunhou a
revolução inglesa e aquela holandesa de 1672 que depôs a república e restituiu a
monarquia em seu país. Sobre a primeira nosso filósofo é crítico ferrenho dizendo
em seu Tratado teológico-político que o povo inglês “depois de muito sangue
derramado, acabou por reconhecer um novo monarca sob outro nome (como se
toda a questão fosse apenas de nome)”649 Já sobre a segunda, na sua Holanda,
Espinosa era partidário da república dos irmãos De Witt, e num cartaz, que é
impedido de colar por um amigo, chama os revolucionários de “Últimos dos
bárbaros” (Ultimi barbarorum), entendendo no agir revolucionário uma
barbárie650.
Segundo nosso filósofo, de nada vale depor um governante, ainda que
este seja um tirano, esperando com isso extirpar a tirania pois, se tirania existe, ela
está presente na própria constituição da multidão, no seu ingenium e instituições, e
não nas mãos de um ou outro governante. Daí decorre a ressalva espinosana de
poderem ser nefastos os efeitos de uma revolução tiranicida pois, frente aos
súditos de mãos ensanguentadas pelo assassinato do tirano anterior, o novo
governante, para não ficar a mercê dos súditos, terá que impor seu poder com
mais sangue, desta vez sangue dos cidadãos e, assim, necessariamente governará
647
MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro primeiro, capítulo 16
648
MAQUIAVEL, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Livro primeiro, capítulo 17
649
TTP, cap. XVIII, pag.285
650
“No dia 20 de agosto de 1672, os irmãos De Witt são massacrados pelo povo nas ruas de
Amsterdã. Espinosa escreve num cartaz: Ultimi barbarotum (“Últimos dos bárbaros), mas é
impedido por um amigo de colá-lo nos muros da cidade. Termina a república e tem início a
monarquia constitucional holandesa.” CHAUÍ, Marilena. Espinosa uma filosofia da liberdade...
pg.29
290
também como tirano. “Daí o povo mudar tantas vezes de tirano sem nunca abolir
a tirania”651.
E se a multidão já é servil antes ou apesar da pessoa do tirano é
porque a servidão, que se expressa na relação entre governante e governados, é
uma servidão imbricada em todas as relações constituintes da multidão. Acrescido
a tudo que já analisamos em relação ao papel da imaginação, suas ideias, paixões
e práticas, na constituição do paradoxal desejo de servidão, a multidão que deseja
a tirania traz no seu próprio seio relações tirânicas entre seus indivíduos
constituintes. Se a potência da multidão é causa imanente do poder político, o
caráter tirânico deste tem sua causa imanente na tirania inscrita nas próprias
relações constituintes da multidão.
Assim, uma série de paixões tristes perpassam a multidão fazendo da
servidão não apenas experiência política do exercício do imperium, mas
experiência social e forma das relações entre os próprios indivíduos constituintes
da multidão. A multidão que constitui a tirania é tirânica já internamente, imersa
em relações de autoridade, medo, desconfiança, opressão, é o estágio social mais
próximo do que caracterizamos como o estado de natureza espinosano.
Se caracterizamos a ambição de dominação como consequência
natural da imitação afetiva652, na multidão tirânica este desejo de impor aos outros
seus próprios valores se constitui em desejo de opressão. As relações sociais
tornam-se espaço de rivalidade e de ambição por dominar o ânimo do outro.
Relações autoritárias constituem uma sociedade internamente hierarquizada em
dominadores e dominados.
Relações constitutivas do campo social como relações familiares,
escolares ou profissionais se realizam sob o peso da imposição da autoridade. Se,
651
“Aqui, porém, não posso deixar de frisar que também não é menos perigoso liquidar um
monarca, ainda quando seja absolutamente evidente que este é um tirano. Porque o povo,
acostumado à autoridade do rei e só por ela refreado, irá desprezar e pôr a ridículo qualquer
autoridade inferior. Por isso, se liquida um, ser-lhe-á necessário, como outrora aos profetas, eleger
outro em lugar do anterior, e este, mesmo que não o queira, será necessariamente um tirano. Como
é que ele pode encarar as mãos dos cidadãos ainda ensanguentadas pelo assassínio de um rei,
cidadãos que se vangloriam de um parricídio como se fosse de uma boa ação e que fizeram tudo
isso unicamente para que lhe servisse a ele de exemplo? É evidente que, se quer mesmo ser rei e
não reconhecer o povo como seu juiz e senhor, se não quer reinar provisoriamente, tem de vingar a
morte de seu antecessor e contrapor assim um novo exemplo, de modo que o povo não ouse repetir
tal façanha. Mas ser-lhe-á muito difícil vingar a morte do tirano pelo assassínio de cidadãos, se ao
mesmo tempo não fizer sua a causa daquele a quem sucede, não aprovar seus atos e não seguir, por
conseguinte, todas as suas pisadas. Daí o povo mudar tantas vezes de tirano sem nunca abolir a
tirania nem substituir o poder monárquico por um outro diferente.” TTP, cap.XVIII, pg.285
652
EIII, prop.31, corolário e escólio
291
653
“Por depender de causas externas e ser insaciável carência, a paixão engendra imagens do que
poderia satisfazê-la e crê saciar seu estado de privação pela posse de algo tido como um bem e,
detre todos os bens almejados, ter a posse de um outro homem parece ser o bem supremo, uma vez
que a alegria causada por outrem é amor que fortalece nosso conatus, levando-nos à busca da
dominação do desejo de outrem para que este também nos ame e se entregue a nós. Dessa maneira,
ser livre parece imaginariamente tanto como ser capaz de opor-se à necessidade natural quanto ser
senhor de outrem e, como consequência, a liberdade se define não por sua oposição à escravidão,
mas pela posse de escravos.” CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa...pg.257
654
“À medida que os homens são afligidos por afetos que são paixões podem ser reciprocamente
contrários.” EIV, prop.34.
292
655
“O Discurso [da servidão voluntária] simplesmente contrapõe desejo de servir e amizade.”
CHAUÍ, Marilena. “Amizade, recusa do servir” in La BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão
voluntária...pg.183
656
La BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária... pgs.35/36
657
EIV, prop. 35, corolário 1
5
Conclusão
658
“Tudo o que existe, existe em Deus, e sem deus, nada pode existir nem ser concebido.” E I,
prop. 15
294
potência659 e o faz necessariamente. Daí nosso filósofo afirmar que “As coisas não
poderiam ter sido produzidas por Deus de nenhuma outra maneira nem em
qualquer outra ordem que não naquela em que foram produzidas.”660
Ao negar o arquétipo do Deus antropomórfico que escolhe entre
possíveis e afirmar a causalidade necessária da Natureza Espinosa nega também
qualquer espaço para a superstição. Filha da crença na contingência e do medo a
superstição é a crença na manipulação da vontade de Deus através de práticas e
ritos, próprios das religiões e do discurso teológico do Deus transcendente.
Transposto para o campo político, o discurso da transcendência e a superstição
sustentam a concepção do poder político transcendente da soberania. A ideia dos
mistérios da vontade divina é afirmada, no campo político, como os mistérios do
poder, inacessíveis aos governados, a ideia do soberano que transcende a
multidão, dotado de um saber superior ao da plebe sobre os assuntos do Estado, e
de uma vontade livre capaz de distribuir bens e males.
O arquétipo da transcendência construído pelo discurso teológico e
permeado pela superstição, quando transposto para o campo político, aprisiona
soberano e súditos num sistema de medo recíproco. A plebe teme o soberano
imaginando-o o senhor da contingência, dotado de uma vontade livre. Capaz de
administrar bens e infligir penalidades, o soberano transcendente aos olhos da
plebe opera no campo dos mistérios do poder e das razões de estado, cujo
conhecimento é inacessível aos súditos. Já o soberano tem a plebe sabendo que
esta lhe supera em potência.
Mesmo que sustentado pelo discurso transcendente da soberania o
direito civil do estado tem no direito natural da multidão sua medida, guardião e
ameaça. O direito natural da multidão é a medida do direito civil pois é sua causa
imanente. Apesar de qualquer discurso imaginativo de transcendência, todo poder
político tem por causa imanente a potência da multidão e é na proporcionalidade
entre o direito natural da multidão e o direito natural individual ou de poucos
governantes que se inscreve o caráter democrático ou tirânico de um Estado e sua
maior estabilidade ou instabilidade.
659
“Deus age exclusivamente pelas leis de sua natureza e sem ser coagido por ninguém.” EI,
prop.17
660
EI, prop. 33
295
661
Sobre o uso do termo devir remetemos o leitor a nosso item 3,1, b)
297
sempre voltado para o bem comum e não usurpado para satisfação de interesses
particulares.
Assim, nosso filósofo dedica os últimos capítulos de seu Tratado
político a propor desenhos institucionais para os clássicos regimes de governo:
monarquia, aristocracia e democracia. A morte impede-o de terminar sua obra,
restando inacabada a sua análise do regime democrático, no entanto é possível
identificar que tanto as instituições propostas por Espinosa para o regime
monárquico quanto aquelas previstas para o regime aristocrático caminham na
direção de uma maior democratização destes regimes.
Apenas para citar algumas de suas características principais, uma vez
que já desenvolvemos o tema detalhadamente em nosso item 3.2, c), a monarquia
espinosana é estruturada com a previsão institucional de conselhos de cidadão que
devem aconselhar o monarca nos assuntos do Estado de modo que “todo o direito
seja vontade do rei explicitada, mas não de modo que toda a vontade do rei seja
direito”662. E, ainda de modo a garantir a democratização da monarquia, Espinosa
prevê a propriedade comum das terras e as armas nas mãos do povo que deve
zelar pela própria segurança e a segurança do Estado. Nosso filósofo, em seu
desenho institucional traçado para a monarquia assegura nas mãos dos cidadãos os
instrumentos de resistência a qualquer tentativa do soberano de usurpar o
exercício do poder político para fins particulares.
Da mesma forma, o regime aristocrático espinosano é constituído por
instituições que, mesmo na desigualdade inerente a este regime, mantenham o
maior grau de democratização do exercício do imperium e instrumentos de
resistência à tirania. Para citar apenas as principais características deste desenho
institucional democrático da aristocracia, Espinosa prevê que o número de
patrícios deve ser muito alto de modo que se evite, tanto quanto possível, sua
corrupção e conluio para fins particulares, e que este deve crescer sempre
proporcionalmente ao crescimento da plebe. Além disso, os patrícios devem se
distinguir sempre da plebe por trajes e cumprimentos próprios de modo que a
plebe possa sempre identificá-los entre a multidão. Os patrícios não podem
eximir-se de sua responsabilidade frente à plebe, podendo sempre ser distinguidos
pela plebe e cobrados por esta tanto pelo seu comportamento político como pelos
662
TP, cap.VII, parágrafo 1.
299
seus negócios particulares pois, diz Espinosa: “Quem, com efeito, não é capaz de
se governar a si mesmo e às suas coisas privadas muito menos será capaz de olhar
pelas públicas ”663
Os desenhos institucionais propostos por Espinosa para os regimes
monárquicos e aristocráticos garantem nas mãos da multidão instrumentos de
resistência a qualquer pretensão tirânica dos governantes, assegurando o mais alto
grau de democratização destes regimes intrinsecamente desiguais. Não é nas mãos
dos governantes, mas nas instituições do Estado e na própria potência da multidão
que nosso filósofo confia a guarda da liberdade dos cidadãos, da segurança do
Estado e do exercício do poder político em prol do bem comum.
Mas, se a potência da multidão se organiza em imperium e um Estado
organizado por instituições políticas, esta se expressa ainda em leis comuns que
garantem o cumprimento dos contratos, regulam e dão previsibilidade aos
comportamentos de seus indivíduos constituintes. Para Espinosa direito é sempre
potência atual e o direito civil é expressão das relações constituintes que
compõem a multidão. Absolutamente imanente ao campo social o direito civil
espinosano opera através de uma mecânica afetiva de ameaças de punições e
promessas de recompensas que inscrevem as normas nas próprias relações
constituintes da multidão.
Longe da transcendência de direitos naturais abstratos e universais,
que podem materializar-se ou não na ordem jurídica de um Estado, nosso filósofo
se afasta de toda a tradição jusnaturalista, e com ela da ideia de declaração de
direitos, para afirmar que todo direito só existe se encontra suas condições
materiais de exercício. O direito civil, em Espinosa, é potência atual e expressão
imanente das relações que constituem a multidão. Leis comuns estabelecem o
justo e o injusto, o certo e o errado que são expressões da potência da multidão.
Da mesma forma, a concepção espinosana acerca do jurídico se
distancia de qualquer das vertentes do positivismo ao manter a relação de
imanência absoluta entre direito civil e potência da multidão. O positivismo tem
por preceitos centrais a autonomia do direito como ciência frente as demais
ciências, como a sociologia ou a política, bem como a afirmação do juízo de
validade das normas como intrínseco unicamente ao campo normativo. A
663
TP, capítulo VIII, parágrafo 47
300
664
TTP, introdução
302
Bibliografia
BERGSON, Henri. Memória e vida – textos escolhidos, ed. Martins fontes, São
Paulo, 2006.
305
CANETTI, Elias. Massa e poder, São Paulo: Companhia das letras, 2005.
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Frédéric (org.), Spinoza et les sciences sociales – de la puissance de la
multitude à l’économie des affects, Paris: Éditions Amsterdam, 2008.
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LAINGUI, André. « Grotius et le droit pénal » in XVII siècle, nº 126, 32ª année,
1980.